Você está na página 1de 146

TEORIAS DA

HISTÓRIA

Professora Me. Giselle Rodrigues

GRADUAÇÃO

Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor Executivo de EAD
William Victor Kendrick de Matos Silva
Pró-Reitor de Ensino de EAD
Janes Fidélis Tomelin
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi

NEAD - Núcleo de Educação a Distância


Diretoria Executiva
Chrystiano Mincoff
James Prestes
Tiago Stachon
Diretoria de Graduação e Pós-graduação
Kátia Coelho
Diretoria de Permanência
Leonardo Spaine
Diretoria de Design Educacional
Débora Leite
Head de Produção de Conteúdos
Celso Luiz Braga de Souza Filho
Head de Curadoria e Inovação
Tania Cristiane Yoshie Fukushima
Gerência de Produção de Conteúdo
Diogo Ribeiro Garcia
Gerência de Projetos Especiais
Daniel Fuverki Hey
Gerência de Processos Acadêmicos
Taessa Penha Shiraishi Vieira
Gerência de Curadoria
Carolina Abdalla Normann de Freitas
Supervisão de Produção de Conteúdo
Nádila Toledo
Coordenador de Conteúdo
Priscilla Campiolo Manesco Paixão
Design Educacional
Camila Zaguini Silva, Fernando Henrique Mendes,
C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a Nádila de Almeida Toledo, Rossana Costa Giani
Distância; RODRIGUES, Giselle.
Iconografia
Teorias da História. Giselle Rodrigues. Amanda Peçanha dos Santos
Maringá-Pr.: UniCesumar, 2018. Ana Carolina Martins Prado
146 p.
Projeto Gráfico
“Graduação - EaD”.
Jaime de Marchi Junior
1. História. 2. Função do Historiador. 3. Escolas Históricas. 4. EaD. José Jhonny Coelho
I. Título. Arte Capa
Arthur Cantareli Silva
ISBN 978-85-8084-843-4
CDD - 22 ed. 907 Editoração
CIP - NBR 12899 - AACR/2 Fernando Henrique Mendes
Qualidade Textual
Hellyery Agda
Jaquelina Kutsunugi, Keren Pardini, Maria Fernanda
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário
João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828
Canova Vasconcelos, Nayara Valenciano, Rhaysa Ricci
Correa e Susana Inácio
Impresso por:
Ilustração
Robson Yuiti Saito
Em um mundo global e dinâmico, nós trabalhamos
com princípios éticos e profissionalismo, não so-
mente para oferecer uma educação de qualidade,
mas, acima de tudo, para gerar uma conversão in-
tegral das pessoas ao conhecimento. Baseamo-nos
em 4 pilares: intelectual, profissional, emocional e
espiritual.
Iniciamos a Unicesumar em 1990, com dois cursos
de graduação e 180 alunos. Hoje, temos mais de
100 mil estudantes espalhados em todo o Brasil:
nos quatro campi presenciais (Maringá, Curitiba,
Ponta Grossa e Londrina) e em mais de 300 polos
EAD no país, com dezenas de cursos de graduação e
pós-graduação. Produzimos e revisamos 500 livros
e distribuímos mais de 500 mil exemplares por
ano. Somos reconhecidos pelo MEC como uma
instituição de excelência, com IGC 4 em 7 anos
consecutivos. Estamos entre os 10 maiores grupos
educacionais do Brasil.
A rapidez do mundo moderno exige dos educa-
dores soluções inteligentes para as necessidades
de todos. Para continuar relevante, a instituição
de educação precisa ter pelo menos três virtudes:
inovação, coragem e compromisso com a quali-
dade. Por isso, desenvolvemos, para os cursos de
Engenharia, metodologias ativas, as quais visam
reunir o melhor do ensino presencial e a distância.
Tudo isso para honrarmos a nossa missão que é
promover a educação de qualidade nas diferentes
áreas do conhecimento, formando profissionais
cidadãos que contribuam para o desenvolvimento
de uma sociedade justa e solidária.
Vamos juntos!
Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está
iniciando um processo de transformação, pois quando
investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou
profissional, nos transformamos e, consequentemente,
transformamos também a sociedade na qual estamos
inseridos. De que forma o fazemos? Criando oportu-
nidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de
alcançar um nível de desenvolvimento compatível com
os desafios que surgem no mundo contemporâneo.
O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de
Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo
este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens
se educam juntos, na transformação do mundo”.
Os materiais produzidos oferecem linguagem dialógica
e encontram-se integrados à proposta pedagógica, con-
tribuindo no processo educacional, complementando
sua formação profissional, desenvolvendo competên-
cias e habilidades, e aplicando conceitos teóricos em
situação de realidade, de maneira a inseri-lo no mercado
de trabalho. Ou seja, estes materiais têm como principal
objetivo “provocar uma aproximação entre você e o
conteúdo”, desta forma possibilita o desenvolvimento
da autonomia em busca dos conhecimentos necessá-
rios para a sua formação pessoal e profissional.
Portanto, nossa distância nesse processo de cresci-
mento e construção do conhecimento deve ser apenas
geográfica. Utilize os diversos recursos pedagógicos
que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita.
Ou seja, acesse regularmente o Studeo, que é o seu
Ambiente Virtual de Aprendizagem, interaja nos fóruns
e enquetes, assista às aulas ao vivo e participe das dis-
cussões. Além disso, lembre-se que existe uma equipe
de professores e tutores que se encontra disponível para
sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de
aprendizagem, possibilitando-lhe trilhar com tranqui-
lidade e segurança sua trajetória acadêmica.
AUTORA

Professora Me. Giselle Rodrigues


Sou graduada em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM
– PR) e mestre pela mesma instituição, mediante o Programa de Pós-
graduação em História. Trabalhei na Educação Básica de ensino, como
professora de História, nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino
Médio por dois anos e, desde então, venho atuando no Ensino Superior nas
modalidades presencial e a distância.
APRESENTAÇÃO

TEORIAS DA HISTÓRIA

CARO(A) ACADÊMICO(A)!
É com muita satisfação que apresento a você o livro que fará parte da disciplina de Te-
orias da História. Sou a professora Giselle Rodrigues e o preparei com muita dedicação
para que você conheça as principais concepções aplicadas à pesquisa e à construção
histórica.
Meu objetivo ao escrever esse livro foi o de discutir o que o historiador Marc Bloch deno-
minou de o “ofício do historiador”, na produção do conhecimento histórico, chamando
a atenção para os métodos, as técnicas e as práticas de pesquisa demonstradas pelas
usuais abordagens historiográficas nos últimos cento e cinquenta anos.
Para tanto, nas duas primeiras unidades do livro, discutiremos conceitos historiográficos
que permeiam o trabalho do historiador e a construção do conhecimento histórico, a
saber: o conceito de História; os fatos históricos e as fontes históricas; a noção de tempo
e de memória. Nas demais unidades, apresentaremos, em seus pressupostos teórico-
metodológicos, as mais conhecidas escolas históricas reveladas nos séculos XIX e XX.
Esse percurso que faremos possibilitará a você, acadêmico(a), compreender que a es-
crita da História, bem como o pensar crítico e reflexivo do historiador, envolve neces-
sariamente teorias. Desse modo, é fundamental estudar as diversas teorias que foram
elaboradas para analisar as múltiplas manifestações humanas ao longo do tempo.
Bom estudo!
Professora Giselle
09
SUMÁRIO

UNIDADE I

O CONCEITO DE HISTÓRIA E A FUNÇÃO DO HISTORIADOR

15 Introdução

16 O Conceito de História e o Trabalho de Historiador

26 Os Fatos Históricos

31 As Fontes Históricas

33 Considerações Finais

UNIDADE II

O TEMPO E A MEMÓRIA NA PRODUÇÃO HISTÓRICA

39 Introdução

40 A Importância e a Definição de Tempo Histórico

42 A Representação Simbólica e Coercitiva do Tempo: o Relógio e o


Calendário

45 A Noção de Tempo nos Diferentes Paradigmas

53 Definição de Memória

55 Relação entre História e Memória

56 Considerações Finais
SUMÁRIO

UNIDADE III

AS ESCOLAS HISTÓRICAS: O POSITIVISMO

61 Introdução

62 O Surgimento da Escola Positivista 

66 As Características Gerais da Escola Positivista

70 Langlois e Seignobos e o Método de Pesquisa em História

72 A Crítica dos Documentos e o Rigor Metodológico

75 O Modo como se Processa o Conhecimento Histórico: As Operações


Sintéticas

77 Considerações Finais

UNIDADE IV

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – O MARXISMO

83 Introdução

84 Os Princípios da Escola Marxista e suas Características Gerais

93 Quem foi Karl Marx?

98 O Materialismo Histórico e a Produção Historiográfica

110 Considerações Finais


11
SUMÁRIO

UNIDADE V

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – A ESCOLA DOS ANNALES

115 Introdução

116 Os Princípios da Escola dos Annales e suas Características Gerais

121 A Primeira Geração: A Elaboração de uma História Problema

127 A Segunda Geração: O Tempo Múltiplo

129 A Terceira Geração: A Fragmentação do Conhecimento

131 Os Campos da Historiografia Atual e seus Pressupostos Teóricos e


Metodológicos

138 Considerações Finais

141 CONCLUSÃO
143 REFERÊNCIAS
Professora Me. Giselle Rodrigues

I
O CONCEITO DE HISTÓRIA

UNIDADE
E A FUNÇÃO DO
HISTORIADOR

Objetivos de Aprendizagem
■ Abordar o conceito de História, discutindo seus diversos sentidos.
■ Analisar o trabalho do historiador na produção do conhecimento
histórico.
■ Discorrer sobre os fatos históricos e as fontes históricas em diferentes
abordagens historiográficas, a fim de mostrar como elas atuam no
conceito de História e no ofício de historiador.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ O conceito de História e trabalho do historiador
■ Os fatos históricos
■ As fontes históricas
15

INTRODUÇÃO

A História, enquanto ciência, como dizia Croce (1962), “é contemporânea”, pois


o interesse para estudar os acontecimentos humanos em um determinado perí-
odo, bem como os métodos que o historiador aplica para explicar esse passado,
partem da sua realidade social, política, econômica e cultural.
Desse modo, as motivações que levam o historiador a estudar os comporta-
mentos e pensamentos demonstrados pelos homens do passado, ou mesmo do
seu presente, associam-se a seu contexto.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Todavia, essa concepção de pesquisa nem sempre foi assim. Desde o momento
em que se fundamentou como disciplina e ciência – a partir da segunda metade
do século XIX – até as primeiras décadas do século XX, a História era entendida
como uma ciência objetiva, da mesma forma que as exatas, e, por isso, devia se des-
vencilhar das impressões de um presente recente e das interpretações subjetivas.
Nessa direção, o entendimento que o historiador tinha acerca da sua reali-
dade poderia, de forma alguma, interferir no exame do passado. A História era
entendida, portanto, como uma ciência neutra e não interpretativa. Cabia ao
historiador apenas narrar o que aconteceu, sem exprimir seus valores. Ao con-
trário, poderia comprometer a verdade dos fatos, assim como a objetividade
conquistada pela disciplina.
A partir do momento em que a História passou a ser reconhecida como uma
ciência subjetiva, no decorrer do século XX, muita coisa mudou na construção
histórica. Assim, os conceitos e métodos considerados inadequados cederam
lugar a novas ferramentas e objetos, porém, sem perder de vista as conquistas
do período anterior que imprimiram à História um caráter científico.
Nesta unidade, discutiremos as mudanças pelas quais passou a História, a par-
tir do momento em que angariou o status de ciência no século XIX. Nesse sentido,
traremos ao nosso estudo, algumas das concepções apresentadas por três grandes
correntes historiográficas: Escola Positivista, Escola Marxista e Escola dos Annales.
A discussão perpassa por essas correntes porque o objetivo principal desta
unidade é apresentar o conceito de História e o trabalho do historiador. Assim,
notar-se-á que cada abordagem apresenta uma visão peculiar sobre esses assun-
tos, conforme o contexto em que foram produzidos.

Introdução
I

Caro(a) acadêmico(a), ao estudar esse conteúdo, você notará que o conceito


de História se relaciona a outros conceitos – como homem, investigação, conhe-
cimento, explicação, passado e presente – e que o historiador desempenha seu
trabalho com base em diversas ferramentas, como os fatos e os documentos.

O CONCEITO DE HISTÓRIA E O TRABALHO DE

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
HISTORIADOR

A palavra “História”, conforme Marc Bloch (2001, p.51), é bastante antiga, pois
surgiu há mais de dois milênios. Por ser milenar, ao longo dos séculos, vários
estudiosos tentaram definir seu significado, na medida em que buscaram res-
ponder a pergunta “O que é História?”.
Na Antiguidade, o considerado Pai da História, Heródoto (484-425 a.C), ao
expor o objetivo principal de sua célebre obra, intitulada História, confirma o
sentido de “investigação” da palavra História:
Esta é a exposição das investigações de Heródoto de Halicarnasso, para
que os feitos dos homens não se desvaneçam com o tempo, nem fiquem
sem renome as grandes e maravilhosas empresas, realizadas quer pelos
Helenos, quer pelos Bárbaros; e, sobretudo, a razão porque entraram
em guerra uns com os outros (HERÓDOTO, 1994, p.53 apud PRIORI,
2010, p.12).

Como podemos notar, a intenção de Heródoto ao investigar a história dos


homens, como dos Helenos (em referência aos gregos) e Bárbaros, era evitar que
as ações humanas desvanecessem com o tempo ou fossem ignoradas ou apaga-
das da memória.
Saltando para a modernidade, a partir do final do século XIX, quando a pro-
dução histórica já havia conquistado o status de ciência, notamos a aparição de
vários conceitos sobre História.

O CONCEITO DE HISTÓRIA E A FUNÇÃO DO HISTORIADOR


17

Historiador grego, considerado o “pai da História”: Heródoto

Heródoto nasceu em Halicarnasso


(485 a.C. – 425 a.C), na atual Turquia,
e foi um importante historiador da
antiguidade. Sendo criado por seu
tio Pamiatis, pôde desfrutar de uma
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

boa educação, regada por muitas


viagens ao interior do mundo anti-
go. Graças a essas viagens, pôde reu-
nir informações sobre os costumes,
os mitos e as histórias dos diversos
povos que conheceu, como os ba-
bilônicos, os persas, os macedônicos
e os egípcios. Teve contato também
com alguns intelectuais, em especial Sófocles, com o qual desenvolveu uma
grande amizade. O resultado dessa boa educação certamente favoreceu
Heródoto a elaborar sua célebre obra “Histórias”, publicada em nove livros,
entre 430 e 424 a.C. Tal obra trata das guerras entre os gregos e os persas:
as Guerras Médicas. Em função dessa obra, o romano Cícero o chamou de
o “Pai da História”. Além de “Histórias”, Heródoto produziu outras obras que
tratam dos comportamentos humanos e fatos do mundo antigo. É tido tam-
bém como um grande geógrafo.
Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/biografias/herodoto.jhtm>.
Acesso em: 14 fev. 2014; <http://www.infoescola.com/biografias/herodo-
to/>. Acesso em: 15 mar. 2014.

O historiador francês Henri-Irénée Marrou (1904-1977) afirmava que “história


é o conhecimento do passado humano” (1978, p.28). Benedetto Croce (1866-
1952) dizia que a História é a “história contemporânea” (apud CARR, 2006, p.56).

O Conceito de História e o Trabalho de Historiador


I

Confira alguns significados da palavra Bárbaro:


No sentido do dicionário, bárbaro pode remeter a diversos sentidos, tais
como: glamoroso, formidável, estupendo, ignorância, rudeza, crueldade e
ferocidade. Ao longo das épocas históricas, contudo, a origem dessa palavra
expressou outros significados. Na antiguidade, por exemplo, os gregos de-
nominavam de bárbaros os povos do norte que apresentavam uma língua
diferenciada, cujo som que produziam parecia com um “bar-bar”. Por revelar

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
essa diferença linguística, o termo bárbaro era empregado para se referir
aos povos considerados não gregos e não romanos. A partir das invasões
germânicas, nos primeiros séculos da era cristã, a palavra adquiriu o signi-
ficado de ferocidade, crueldade e desumanidade, tanto que a derivação do
latim barbarus é brabus, que significa enraivecido e colérico. Por outro lado,
bárbaro também passou a expressar o sentido de valoroso, corajoso e deste-
mido, em referência ao espírito guerreiro dos guerreiros bárbaros.
Disponível em: http://emdiacomalp.wordpress.com/2008/07/08/origem-da-
-palavra-%E2%80%9Cbarbaro%E2%80%9D/. Acesso em: 2 abr. 2014.

Já o historiador britânico Edward Hallet Carr (1892-1982) dizia que a História


“se constitui de um processo contínuo de interação entre o historiador e seus
fatos, um diálogo interminável entre o presente e passado” (2006, p.65). Por sua
vez, Marc Bloch (1886-1944), historiador francês, destacava que a História é
“senão uma ciência dos homens no tempo e que incessantemente tem a neces-
sidade de unir o estudo dos mortos ao dos vivos” (2001, p.67).
Das definições apresentadas, é possível considerarmos que a História se
relaciona aos seguintes termos: investigação, conhecimento, homem, presente
e passado.

O CONCEITO DE HISTÓRIA E A FUNÇÃO DO HISTORIADOR


19

Para melhor esclarecer essas definições, discutiremos os pontos a seguir:


■ História enquanto conhecimento cientificamente elaborado.

■ História enquanto pesquisa documental.

■ História enquanto investigação seletiva.

■ História enquanto explicação.

■ História enquanto relação entre presente e passado.


Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Conforme Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva, na obra Dicionário


de conceitos históricos (2010, p.182), “os significados da História estão em
constante mutação e é preciso que o professor leve a reflexão em torno des-
sa constante mudança para a sala de aula, fornecendo instrumentos para
que seus estudantes possam compreender a complexidade da História e a
dificuldade de se responder à pergunta ‘O que é História’? Essa pergunta
não é nova, e cada corrente de pensamento procura dar sua própria respos-
ta. Por isso, não é possível oferecer uma definição fechada para esse concei-
to. O mais importante é estabelecer as linhas gerais do debate em torno da
natureza da História”.

O Conceito de História e o Trabalho de Historiador


I

HISTÓRIA ENQUANTO CONHECIMENTO CIENTIFICAMENTE


ELABORADO

De todas as definições que destacamos sobre o conceito de História, talvez as


mais elucidativas sejam as descritas por Marrou e por Carr. Respectivamente, os
dois autores identificam que “a história é o conhecimento do passado humano”
e que História é “um processo contínuo de interação entre o historiador e seus
fatos, um diálogo interminável entre o presente e passado”
Na primeira definição, nota-se o termo “humano” e nas duas nota-se o termo

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
“passado”. Em relação ao termo “homem”, observar-se-á, conforme Marc Bloch, na
obra Apologia da História ou o ofício de historiador (2001, p.54), que o objeto da
História é necessariamente o “homem”, ou melhor, os “homens”, no plural, já que
Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, [os artefatos ou
máquinas], por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as ins-
tituições aparentemente mais desligadas daqueles que a criaram, são
os homens que a história quer capturar. Quem não conseguir isso será
apenas, no máximo, um serviçal da erudição. Já o bom historiador se
parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali
está a sua caça.

Em relação ao termo “passado”, pode-


mos refletir: será que o conhecimento
histórico se relaciona a qualquer
passado? Conforme Priori (2010,
p.14), veremos que não, tendo
em vista que História estuda o
passado humano, ou seja, “dos
homens que vivem em socie-
dade, pois, afinal, não existe
homem no mundo, por mais
isolado, que não tenha relação
direta com a sociedade, com a
humanidade”.
Outra pergunta cabe ainda ser
feita acerca da palavra “passado”: ©shutterstock

O CONCEITO DE HISTÓRIA E A FUNÇÃO DO HISTORIADOR


21

será que esse passado humano pode ser revisto de qualquer maneira? A res-
posta, mais uma vez, é não. Deve ser retomado de maneira científica, por meio
da investigação e pesquisa. Pelo contrário, a História seria fruto da imaginação;
um conto de fadas.
Portanto, a pesquisa científica acerca do “passado” dos “homens” implica na
adoção de um rigor metodológico e pressupostos teóricos bem definidos. Além
disso, “para fazer ciência (pesquisa científica) não basta apenas reunir aquilo
que já conhecemos e organizá-lo; é preciso buscar mais, descobrir aquilo que
não conhecemos” (PRIORI, 2010, p.13). Isso significa que o historiador, ao olhar
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

para o passado, deve buscar o desconhecido; deve ser curioso.

HISTÓRIA ENQUANTO PESQUISA


DOCUMENTAL

Nas últimas décadas do século XIX, já diziam


os historiadores positivistas, Langlois e
Seignobos, na obra prima Introdução aos
Estudos Históricos (1946, p.14), que a “his-
tória se faz com documentos”, que “são todos
os traços que deixaram os pensamentos e os
atos dos homens do passado”. Em passagem
mais adiante, os autores afirmam que “onde
não há documentos não há história.
Apesar de terem sido imensamente cri-
ticados por historiadores que no século XX
pensaram o passado humano de maneira
diferente, como Marc Bloch e Edward Hallet
Fonte: <www.priceminister.com>
Carr, muitas das ideias desenvolvidas por
Langlois e Seignobos continuam válidas até os dias atuais. Isso acontece porque
o positivismo foi a primeira corrente historiográfica a criar uma metodologia
de investigação histórica.
Desse modo, algumas das afirmativas desenvolvidas por esses dois grandes

O Conceito de História e o Trabalho de Historiador


I

nomes do Positivismo continuam válidas e permitem-nos concluir que o conhe-


cimento do passado se faz apenas com documentos e que sem documentos ou
materiais de pesquisa é impossível investigar o passado. Mas o que são docu-
mentos para o historiador?
Nesse ponto é que se desenvolveu a maior crítica contra os historiadores posi-
tivistas, pois, segundo eles, a construção histórica se fazia apenas com documentos
escritos, como as leis, os registros, as certidões, as cartas, os decretos e os manuscri-
tos diversos. Contraditoriamente, a historiografia mais recente do século XX, como
a Escola dos Annales (que estudaremos mais adiante), considera que os documen-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tos são todos os vestígios que apresentam informações sobre as atividades humanas.
Desse modo, podem ser escritos ou não escritos (BOURDÉ; MARTIN, 2003).

Historiografia é um campo de estudo do qual nenhum historiador pode se


furtar. É a reflexão sobre a produção e escrita da História. Para Guy Bourdé
e Hervé Martin, é o exame dos discursos de diferentes historiadores, tam-
bém de como estes pensam o método histórico. Segundo esses autores, a
perspectiva historiográfica é uma ferramenta para o ofício do historiador, ao
descrever ‘escolas’ históricas, e como produziram conhecimento ao longo
do tempo.
Fonte: SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos his-
tóricos. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2010, p.189.

Nessa direção, para a historiografia mais atual, todos os registros que se relacionam
às atividades humanas, e que permitem extrair informações, são considerados
documentos. Assim, além dos documentos escritos, são considerados materiais
de pesquisa para o historiador: vestígios arqueológicos, arquitetônicos, imagé-
ticos, sonoros, orais, e digitais; séries estatísticas etc. Contudo, “o historiador
precisa saber interpretar esses documentos. Formular as questões adequadas para
obter as repostas adequadas às suas perguntas” (PRIORI, 2010, p.17). Em suma, o
documento não fala por si mesmo. Fala apenas quando o historiador o trabalha.

O CONCEITO DE HISTÓRIA E A FUNÇÃO DO HISTORIADOR


23

HISTÓRIA ENQUANTO INVESTIGAÇÃO SELETIVA

A investigação sobre os acontecimentos humanos envolve seleção, ou melhor,


escolhas, já que o historiador não dá conta de estudar todo o passado humano.
Face à imensa e confusa realidade, o historiador é necessariamente le-
vado a nela recortar o ponto de aplicação particular de suas ferramen-
tas; em consequência, a nela fazer uma escolha que, muito claramente,
não é a mesma que a do biólogo, por exemplo; que será propriamente
uma escolha do historiador (BLOCH, 2001, p.52).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Segundo essa perspectiva, o profissional da História apresenta o poder de definir


o assunto, a temporalidade e os documentos os quais propõe a abordar.
É o historiador quem decide por suas próprias razões que o fato de Cé-
sar atravessar aquele pequeno riacho, o Rubicão, é um fato da história,
ao passo que a travessia do Rubicão, por milhares de outras pessoas an-
tes ou desde então não interessa a ninguém em absoluto (CARR, 2006,
p.47).

Por essa atuação, podemos concluir que o historiador apresenta uma cumplici-
dade com seus objetos de pesquisa.

HISTÓRIA ENQUANTO EXPLICAÇÃO

Para saber investigar os documentos, é necessário saber interpretá-los e explicálos.

O Conceito de História e o Trabalho de Historiador


I

Como estamos tratando da temática informação na produção histórica, se-


gue um texto bastante interessante sobre os suportes informativos.
“Podem-se denominar suportes informativos todo conjunto de signos, prin-
cipalmente de textos, considerados saber constituído e que permitem ser
vistos e lidos como fonte de informações sobre um objeto determinado –
um texto de manual, um fragmento de livro, de jornal, um dossiê documen-
tário tratando de um objeto dado, mas também uma curva estatística, um
quadro, um mapa ou um plano produzido com o objetivo de uma comuni-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
cação de informações. Da enciclopédia ao atlas, passando pelo livro escolar,
todo discurso produzido com intenção de comunicar os elementos do sa-
ber disciplinar pertencem à esfera dos suportes informativos. Esses suportes
apresentam-se como informativos, descritivos, analíticos ou sintéticos. Por
oposição aos suportes informativos, definiremos como documentos, todo
conjunto de signos, visual ou textual, produzido numa perspectiva diferen-
te da comunicação de um saber disciplinar, mas utilizado com fim didático
– [...] os signos que não são reconhecidos como tais (documentos), senão
quando inseridos no quadro de uma problemática científica”.
Fonte: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; CAINELLI, Marlene. Ensinar História.
São Paulo: Scipione, 2004.

A explicação histórica se diverge da realizada pelos manuais, dicionários, jor-


nais, revistas, Internet, rádio e televisão, pois esses veículos apenas informam o
que aconteceu. Desse modo, a História vai além da informação.
Constitui uma explicação sobre os acontecimentos humanos, em outras palavras,
representa a interpretação do historiador, profissional que possui a capacidade
de ler os documentos.
Nenhum documento pode nos dizer mais do que aquilo que o autor
pensava – o que ele pensava que havia acontecido, o que devia acon-
tecer ou o que aconteceria, ou talvez apenas o que ele queria que os
outros pensassem que ele pensava, ou mesmo apenas o que ele próprio
pensava pensar. Nada disso significa alguma coisa, até que o historia-
dor trabalhe sobre esse material e decifre-o (CARR, 2006, p.52).

Mas, se o historiador tem a propriedade de ler e decifrar os documentos de


acordo com sua visão de mundo, ou melhor, suas experiências de vida, podemos
imaginar que a História seja uma construção subjetiva e, por isso, não científica.

O CONCEITO DE HISTÓRIA E A FUNÇÃO DO HISTORIADOR


25

Nada disso. De fato a História é subjetiva, pois não tem como seguir os mode-
los objetivos das ciências exatas, tendo em vista que não trabalha com objetos,
mas com homens. Nesse sentido:
Os fatos humanos são, por essência, fenômenos muito delicados, entre
os quais muitos escapam à medida matemática. Para bem traduzi-los,
portanto para bem penetrá-los (pois será que se compreende alguma
vez perfeitamente o que não se sabe dizer?), uma grande finesse de lin-
guagem, (uma cor correta no tom verbal) são necessárias. Onde calcu-
lar é impossível, impõe-se sugerir (BLOCH, 2001, p.54-55).

Contudo, apesar de sugerir prováveis explicações para os acontecimentos huma-


Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

nos, a História não deixa de ser uma ciência, tendo em vista que essas explicações
não decorrem da pura imaginação do historiador, mas de uma análise detida
sobre os documentos. Essa análise envolve um modelo teórico e metodológico
bem definido, como discutiremos nas três últimas unidades.

HISTÓRIA ENQUANTO RELAÇÃO ENTRE PRESENTE E PASSADO

O olhar científico, interpretativo e explicativo que o historiador dirige ao passado


é um olhar do presente. Isso ocorre porque o profissional de História não pertence
ao passado, mas sim ao tempo presente, cujo contexto é peculiar. Desse modo:
El historiador, pues, se enfrenta a um pasado que trata de compren-
der a partir
de su presen-
te. Su punto
de partida es,
inevitable-
mente, el pre-
sente en que
se halla, cuyos
problemas,
motivaciones
y vivencias
proyecta hacia
el objeto de su

©shutterstock

O Conceito de História e o Trabalho de Historiador


I

estudio. Comprender esta relación supone comprender, em primer lu-


gar, el carácter de toda obra histórica, en el momento preciso em que
fue elaborada (PAGÈS, 1983, p.43).

Por pertencer à sua época, necessariamente, as indagações do historiador acerca


do passado partem do seu presente e, por isso, é uma das obrigações do histo-
riador entender a sua atualidade.
Mas, para interpretar os raros documentos que nos permitem penetrar
nessa brumosa gênese, para formular corretamente os problemas, para
até mesmo fazer uma ideia deles, uma primeira condição teve que ser

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
cumprida: observar, analisar a paisagem de hoje (BLOCH, 2001, p.67).

Entretanto, embora o presente interfira na elaboração de perguntas para enten-


der os acontecimentos históricos, não devemos (enquanto historiadores) olhar
para os homens do passado propondo que pensassem ou agissem da maneira
como acreditamos ser correta. Entre o nosso presente e o passado estudado exis-
tem diferenças.

OS FATOS HISTÓRICOS

No dicionário da língua portuguesa, encontramos vários sinônimos para a palavra


“Fato”, tais como: realidade vivida, evento e acontecimento. Na produção histó-
rica, esses sinônimos são imprescindíveis na explicação do passado e expressam
as ações, as experiências e as ideias dos homens em uma determinada época.
Desse modo, o fato é a matéria-prima do historiador e aponta a temática a
qual ele se propõe a estudar, como a Revolução Francesa, a chegada dos europeus
à América ou a independência dos Estados Unidos. Porém, desde o momento
em que a História tornou-se ciência, no século XIX, a concepção em relação aos
fatos históricos se transformou.
Para os autores positivistas da segunda metade do século XIX, como Fustel
de Coulanges, os fatos falavam por si mesmos, ou seja, não necessitavam da

O CONCEITO DE HISTÓRIA E A FUNÇÃO DO HISTORIADOR


27

explicação do historiador. No entanto, os


fatos só transmitem alguma mensagem
quando o historiador os aborda e interpreta
(CARR, 2006, p.47).

NUMA DENIS FUSTEL DE


COULANGES (1830-1889)
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

©wikipedia
Voltando à perspectiva positivista, se os fatos
falavam por si, o papel do historiador não
era explicá-los, mas reuni-los e organizá-los, segundo um processo minucioso
e desprendido de julgamentos. A união entre os fatos, organizados cronologi-
camente, possibilitava a explicação histórica.
Deste modo a construção histórica deve fazer-se com uma massa inco-
erente de pequeninos fatos, uma espécie de poeira de conhecimentos
pormenorizados. Esta massa se constitui de materiais heterogêneos,
que diferem por seu objeto, sua situação, seu grau de generalidade ou
de certeza. Para classificá-los, a prática dos historiadores não conse-
guiu estabelecer um método próprio; a história, nascida de um gênero
literário, continua a ser a menos metódica das ciências (LANGLOIS;
SEIGNOBOS, 1946, p.150).

No momento em que Langlois e Seignobos articularam suas ideias, segunda


metade do século XIX, já dissemos que a História buscava atingir o status de
ciência objetiva, tal qual o apresentado pelas ciências exatas. Para isso, precisava
se desprender das interpretações e buscar incessantemente os fatos, pois esses
mostravam o que realmente se passou.
Os positivistas, ansiosos por sustentar sua afirmação da história como
uma ciência, contribuíram com o peso de sua influência para este culto
aos fatos. Primeiro verifique os fatos, diziam os positivistas, depois tire
suas conclusões (CARR, 2006, p.45).

Os Fatos Históricos
I

Se os fatos davam conta de explicar o passado humano, a busca desses fatos se


daria por mentes neutras, pois a interferência da imagem que o historiador pos-
suía acerca da sua realidade poderia alterar o valor ou verdade dos fatos.
O historiador constrói uma imagem dos fatos históricos antigos, pare-
cida com a lembrança dos fatos a que pessoalmente assistiu. Este tra-
balho, que se processa inconscientemente, é para a história uma das

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Os fatos estão disponíveis para o historiador nos documentos, os quais,
como vimos, podem ser de várias espécies (imagéticos, escritos, esculturais,
arquitetônicos, orais, sonoros, digitais, estatísticos, arqueológicos etc). No
entanto, para os positivistas, os fatos poderiam ser encontrados apenas nos
documentos escritos.
Fonte: BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé. As escolas históricas. 2. ed. Lisboa:
Publicações Europa-América, 2003.

principais fontes de erro. As coisas passadas, que temos de imaginar,


não são completamente às coisas presentes, que assistimos; nunca vi-
mos um homem semelhante a Cesar ou Clovis, nem passamos pelos
mesmos estados anteriores que eles passaram (LANGLOIS; SEIGNO-
BOS, 1946, p.154).

Contraditoriamente, as abordagens historiográficas que surgiram no século XX,


baseadas no Marxismo e nas discussões efetuadas pela Escola dos Annales, mos-
tram que os fatos não falam por si, ou melhor, transmitem apenas informações
que não dão conta de explicar uma realidade. Desse modo, cabe aos historiado-
res questioná-los e investigá-los, como nos recomenda Marc Bloch (2001, p.53):
No século X de nossa era, um golfo profundo, o Zwin, recortava a costa
flamenga. Depois foi tomado pela areia. A que seção do conhecimento
levar o estudo desse fenômeno? De imediato, todos designarão a ge-
ologia. Mecanismo de aluvionamento, papel das correntes marinhas,
mudanças, talvez, no nível dos oceanos: não foi ela criada e posta no
mundo para tratar de tudo isso? Certamente. Olhando de perto, po-
rém, as coisas não são de modo algum assim tão simples. Tratar-se-ia,

O CONCEITO DE HISTÓRIA E A FUNÇÃO DO HISTORIADOR


29

em primeiro lugar, de escrutar as origens da transformação? Eis o nos-


so geólogo já obrigado a se colocar questões que não são mais, estri-
tamente, de sua alçada. Pois, sem dúvida, esse assoreamento foi, pelo
menos, favorecido por construções de diques, desvios de canais, secas:
diversos atos do homem, resultado de necessidades coletivas e que ape-
nas uma certa estrutura social torna possíveis.

Ao empregar esse exemplo para se referir ao exercício de historiador, Bloch


(2001) chama a atenção para a questão de que os fatos históricos não devem ser
estudados de maneira artificial, mas de maneira profunda, pois somente a aná-
lise detalhada possibilita o entendimento do que se passou.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Esse entendimento do autor também se revela em outros autores contempo-


râneos às primeiras décadas do século XX, como Benedetto Croce. Conforme
Carr (2006, p.56), “o trabalho principal do historiador não é registrar, mas ava-
liar; porque, se ele não avalia, como pode saber o que merece ser registrado?”
A ideia de interdependência entre presente e passado é outra questão que
salta do estudo dos fatos. Para as abordagens historiográficas do século XX, este
estudo é feito de acordo com as preocupações do presente do historiador, ou seja,
em contraposição a ideia tão fixada na História de que o historiador não devia
se envolver com sua análise. Mais uma vez, Croce, segundo Carr (2006, p.56),
foi um pioneiro no refletir dessa questão.
Toda a história é “história contemporânea”, declarou Croce, querendo
assim dizer que a história consiste essencialmente em ver o passado
através dos olhos do presente e à luz de seus problemas.

Os Fatos Históricos
Para Croce toda interpretação produzida
pelo historiador acerca dos fatos é con-
temporânea porque “por muito distan-
tes que pareçam cronologicamente os
fatos por ela referidos, a história se rela-
ciona sempre com a necessidade e a si-
tuação presente, nas quais aqueles fatos
propagam suas vibrações. Assim, se eu,
decidindo-me ou recusando-me a um
ato de expiação, me recolho mentalmen-
te para compreender o que seja – isto é,
como tenha sido formado e transforma-
do – este intuito ou sentimento [...] são
parte do drama presente de minha alma
neste momento e, fazendo expressa ou
subentendidamente a sua história, faço
a da situação em que me encontro”.
Fonte: CROCE, Benedetto. A História:
pensamento e ação. Trad. Darcy Damas-
ceno. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar Edito-
res, 1962, p.14-15.

Benedetto Croce. Filósofo, historiador e político Italiano, que viveu entre 1866 e 1852.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Benedetto_Croce>.
31

Mas, se o historiador analisa os fatos segundo sua concepção de vida, assim como
a pessoa que os registrou, também expressa uma visão de um mundo. Assim,
poder-se-ia imaginar que os fatos não são apresentados de maneira pura, como
diziam os positivistas. Nesse caso, revelam-se de maneira transformada, pois:
Os fatos da história nunca chegam a nós ‘puros’, desde que eles não
existem nem podem existir numa forma pura: eles são sempre refra-
tados através da mente do registrador. Como conseqüência, quando
pegamos um trabalho de história, nossa primeira preocupação não
deveria ser com os fatos que ele contém, mas com o historiador que o
escreveu (CARR, 2006, p.58).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

AS FONTES HISTÓRICAS

Dentro da produção histórica, a palavra fonte é sinônima de documento que,


como vimos anteriormente, representa todos os sinais deixados pelos homens e
que expressa suas ações, ideias e experiências. Desse modo, as fontes históricas
ou documentos podem ser de várias espécies. Contudo, essa definição de docu-
mento é particular e moderna, tendo em vista que até o início do século XX, os
historiadores se divergiam quanto a essa colocação.
É nesse sentido que a utilização das fontes na construção histórica apresenta
história, “porque os interesses dos historiadores variaram no tempo e no espaço,
em relação direta com as circunstâncias de suas trajetórias pessoais e com suas
identidades culturais” (JANOTTI, In: PINSKY, 2005, p.10).
Segundo Karnal e Tatsch (PINSKY, 2009, p.13), podemos concluir que “não
existe um fato histórico eterno, mas existe um fato que consideramos hoje um
fato histórico”. Nessa direção, “é fácil deduzir que o conceito de documento siga
a mesma lógica. Fato e documento histórico demonstram nossa visão atual do
passado, em um diálogo entre a visão contemporânea e as fontes pretéritas”.
Seguindo essa perspectiva, notamos que os positivistas e analistas apresentaram
concepções diferenciadas sobre documentos.

As Fontes Históricas
I

Até meados do século XX, as “fontes mais valorizadas pelos pesquisadores”


(JANOTTI, In: PINSKY, 2005, p.10-11) foram as escritas, as quais eram sub-
metidas a rígido controle metodológico, tendo em vista que à história, desde a
segunda metade do século XIX, afirmou-se como disciplina acadêmica. As temá-
ticas expressas por essas fontes escritas se ligavam a área política e aos feitos dos
grandes personagens, como reis, rainhas e heróis.
A partir das concepções desenvolvidas por Karl Marx e Friedrich Engels no
século XIX – que diziam que as ideias surgiam graças às condições socioeco-
nômicas e não políticas, como antes se assentava – a História ganhou um novo

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
rumo, a partir da consideração de novas fontes, ligadas às atividades econômi-
cas e sociais, bem como interpretação dessas fontes. Assim,
Sob a influência desses parâmetros, desenvolveram-se os estudos de
Economia e Sociologia, voltando-se à coleta e interpretação de fontes
– antes focadas na área política e na atuação de grandes personagens
– para documentos sobre atividades econômicas, devassando-se car-
tórios, processos judiciais, censos, contratos de trabalho, movimento
de portos, abastecimento e outros e cunho coletivo e reivindicatório
(JANOTTI, In: PINSKY, 2005, p.11).

A propriedade de interpretar novas fontes ganhou notoriedade na medida em que


o século XX avançou e trouxe consigo grandes transformações. Para Janotti (2005,
p.13), os acontecimentos mundiais das primeiras décadas do século em questão,
como a Revolução de 1917 e o movimento operário, foram fundamentais para os
historiadores pensarem as transformações que estavam ocorrendo naquela rea-
lidade. Nesse refletir, a formação do grupo dos Annales, em 1929, foi essencial.
A partir dos Annales, a
História ganhou novas metodo-
logias de trabalho, criando novas
possibilidades, como a considera-
ção de novas fontes de pesquisa.
Para se referir a este fenômeno,
o historiador Jacques Le Goff, na
obra A História Nova (1995, p.28),
empregou o termo “Revolução
Documental”, que consiste:
©brasilescola

O CONCEITO DE HISTÓRIA E A FUNÇÃO DO HISTORIADOR


33

...numa multiplicidade de documentos: escritos de todos os tipos, do-


cumentos figurados, produtos de escavações arqueológicas, documen-
tos orais, etc. Uma estatística, uma curva de preços, uma fotografia,
um filme, ou, para um passado mais distante, um pólen fóssil, uma
ferramenta, um ex-voto são, para a história nova, documentos de pri-
meira ordem.

Notar-se-á que a Escola dos Annales – também conhecida nas últimas décadas
como “História Nova”, por se contrapor à História Positivista tida como tradi-
cional – ampliou imensamente o campo documental, ao valorizar diversos tipos
de fontes, não necessariamente baseadas em textos escritos.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

O que levou à ampliação da noção de documento, conforme Karnal e Tatsch


(PINSKY, 2009, p.15), foram os novos campos de pesquisa, que surgiram graças
à ligação que a História estabeleceu com outras áreas do conhecimento, como
a Sociologia e Antropologia, e que favoreceram a abordagem de novos objetos,
como as imagens, as crianças e as mulheres.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta primeira unidade, procuramos esclarecer o conceito de História, bem


como a função do profissional que lida com essa ciência. Vimos que o conceito
de História se relaciona a diversos outros conceitos – entre eles investigação,
seleção, pesquisa, passado e presente, conhecimento e homem – e que também
se transformou ao longo do tempo.
Também notamos que a produção histórica não é feita de qualquer modo.
Ela segue padrões específicos que obedecem à corrente historiográfica a qual o
historiador se filia. Desse modo, o trabalho do historiador segue as tendências
historiográficas, que também sofrem modificações no transcorrer do tempo.
O “tempo”. Esse termo tão difícil de esclarecer será objeto de discussão na
próxima unidade. Além dele, abordaremos a questão da memória e da teoria
na História.

Considerações Finais
1. Conforme a discussão apresentada no primeiro tópico desta unidade, intitulado:
O conceito de História e Trabalho de Historiador, liste as várias definições da
palavra HISTÓRIA.
2. Ainda de acordo com o primeiro tópico da unidade, redija um texto de 15 a 20
linhas, considerando o trabalho de historiador.
3. Segundo a discussão efetuada nos dois últimos tópicos desta unidade, estabe-
leça um contraponto entre a concepção positivista e analista (em referência
a Escola dos Annales) sobre fato histórico e fontes históricas.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Apologia da história
Marc Bloch
Editora:Zahar
Sinopse: Apologia da História, ou o ofício de historiador,
foi produzida por Marc Bloch antes de ser fuzilado pelos
nazistas, no contexto da Segunda Guerra Mundial, em
1944. Mesmo inacabada, a obra em questão foi publicada
pela primeira vez em 1949, pelo historiador e amigo Lucien
Febvre. Nela, Bloch evidencia os encaminhamentos
teóricos e metodológicos da escrita da História,
segundo a perspectiva da Escola dos Annales,
corrente historiográfica a qual ele e Lucien Febrve
haviam iniciado no final da década de 1929 e que tinha
como propósito fazer oposição às técnicas tradicionais
demonstradas pela Escola Positivista.

Que É História ?
Edward H. Carr
Editora:Paz e Terra
Sinopse: Nesta obra, o historiador Edward H. Carr
(1892-1982) também discute o ofício de historiador,
a partir da apresentação das grandes questões
teóricas e metodológicas que norteiam a escrita da
História, segundo o paradigma historiográfico do
Marxismo.

Material Complementar
Professora Me. Giselle Rodrigues

O TEMPO E A MEMÓRIA NA

II
UNIDADE
PRODUÇÃO HISTÓRICA

Objetivos de Aprendizagem
■ Discutir o conceito e representação do tempo, abordando sua
importância na escrita da História.
■ Compreender a problemática do tempo nos diferentes paradigmas
do conhecimento.
■ Definir o conceito de memória, bem como seu emprego na pesquisa
histórica.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ A importância e a definição de tempo histórico
■ A representação simbólica e coercitiva do tempo: o relógio e o
calendário
■ A noção de tempo nos diferentes paradigmas
■ Definição de memória
■ Relação entre história e memória
39

INTRODUÇÃO

Como nos dizia Marc Bloch (2001), em Apologia da História ou o ofício do


historiador, a História é “senão uma ciência dos homens no tempo e que inces-
santemente tem a necessidade de unir o estudo dos mortos ao dos vivos”.
Ao elaborar essa afirmativa, Bloch (2001) – que era contemporâneo aos prin-
cipais eventos mundiais que marcaram a primeira metade do século XX, como
as duas guerras mundiais, crise econômica de 1929 e regimes fascistas – buscou
romper com os métodos de análise histórica aplicados pelas vertentes tradicio-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

nais, a fim de entender as transformações econômicas, políticas e sociais de seu


tempo, pois os métodos contemplados pela História tradicional, ou Positivista,
sugeriam que os acontecimentos humanos só poderiam ser estudados quando
cristalizados no tempo, ou seja, após muitos anos de terem sido formados. Assim,
quanto mais distantes do historiador, menor era o risco desse historiador se
envolver emocionalmente com os fatos.
Para Bloch (2001), contudo, esse cuidado não garantia o caráter científico
da história, que tanto os positivistas debatiam, tendo em vista que o historiador
pertencia à sua época. Desse modo, o fato de o pesquisador se distanciar muitos
anos do evento nada significava. Agora, o fato dele ser impedido de compreen-
der seu presente mudava tudo.
Observar-se-á, na oposição de Bloch (2001) aos historiadores positivistas,
que o tempo é uma questão crucial na escrita da história e, por isso, preocupa
muito os historiadores. Em decorrência disso, desde a Antiguidade, buscou-se
definir o tempo.
Nesta unidade, apresentaremos, em um primeiro momento, o tempo, com
o propósito de definir o seu conceito e mostrar sua importância na produção
histórica. Discutiremos os entendimentos diferenciados que os homens e a dis-
ciplina tiveram, ao longo das épocas, acerca dessa problemática.
Em um segundo momento, discutiremos o conceito de memória e seu
emprego na historiografia, já que, segundo o jornalista Adauto Novaes (1992,
p.9), “tempo é memória, é experiência vivida. Esquecer o passado é negar toda
efetiva experiência de vida; é negar o futuro e abolir a possibilidade do novo a
cada instante”.

Introdução
II

Ao estudar esses conteúdos, você, acadêmico(a), notará que o tempo e a


memória são instrumentos valiosíssimos na escrita da História. O tempo, não
apenas porque delimita temporalmente o período em que a pesquisa será desen-
volvida, mas porque expressa traços do pensamento, das ações e experiências
humanas em uma determinada época, indispensáveis ao trabalho do historiador.
A memória, por sua vez, porque constitui uma importante fonte de pesquisa, na
medida em que retoma o passado mediante as lembranças.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A IMPORTÂNCIA E A DEFINIÇÃO DE TEMPO
HISTÓRICO

Para poder explicar o passado, o historiador, fundamentalmente, leva em consi-


deração a noção de tempo. O tempo está intimamente ligado à escrita da História,
tendo em vista que expressa as realizações humanas produzidas diariamente em
uma determinada época. Conforme Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique
Silva, na obra Dicionário de conceitos históricos (2010, p.390), o tempo é tão
importante para a História que na própria definição dessa ciência ele aparece.
A História – todos nós estamos acostumados com essa definição – é
o estudo das atividades e produções humanas, ou seja, da cultura, ao
longo do tempo. Assim, no próprio conceito de História está inserido
o conceito de tempo, o que nos mostra sua importância. No entanto,
tempo é uma daquelas noções que perpassa nosso dia a dia e às quais
damos pouca atenção, a despeito de sabermos de sua importância.

Observar-se-á, portanto, que o tempo é indissociável da História. Porém, definir


esse conceito não é tão fácil, pois mesmo sabendo que existe – como nas transfor-
mações que ocorrem em nossas vidas com o passar dos anos – não conseguimos
degustá-lo e visualizá-lo, muito menos tocá-lo ou ouvi-lo (ELIAS, 1998).
Para o sociólogo alemão Nobert Elias, na obra Sobre o tempo (1998), o
tempo não é uma construção natural e nem inata ao indivíduo. Pelo contrá-
rio, resulta de um longo processo de aprendizagem, iniciado pela humanidade
desde seus primórdios.

O TEMPO E A MEMÓRIA NA PRODUÇÃO HISTÓRICA


41

Esse aprendizado não foi


construído isoladamente,
mas pelos sujeitos reunidos
em grupos que apresentavam
características em comum e
compartilhavam das mesmas
experiências e ideias. Desse
modo, a noção de tempo é
uma convenção construída
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

socialmente, desde as épo-


cas mais remotas e, conforme
Elias (1998, p.8), tem como
finalidade orientar as comu-
©photos
nidades humanas em suas
atividades sociais.
Até a época de Galileu, o que chamamos ‘tempo’, ou mesmo o que cha-
mamos ‘natureza’, centrava-se acima de tudo nas comunidades huma-
nas. O tempo servia aos homens, essencialmente, como meio de orien-
tação no universo social e como modo de regulação de sua existência
(ELIAS, 1998, p. 8).

Ao elaborar a noção de tempo, os homens do passado recorreram aos fenôme-


nos periódicos que ocorriam na natureza e que expressavam transformações,
tais como: nascer e pôr do sol, mudanças da lua, transformação da noite e dia
e estações do ano.

©shutterstock

A Importância e a Definição de Tempo Histórico


II

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
©shutterstock

A REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA E COERCITIVA DO


TEMPO: O RELÓGIO E O CALENDÁRIO

Nas sociedades modernas, o relógio e o calendário representam os grandes sím-


bolos adotados pelos homens para contar e representar o tempo. O relógio marca
o passar dos segundos, dos minutos, das horas e dos dias. O calendário, o pas-
sar das semanas, dos meses e dos anos. Ambos se inspiram na observação dos
eventos recorrentes da natureza.
Nesse sentido,
“os relógios exercem na sociedade a mesma função que os fenômenos
naturais – a de meios de orientação para homens inseridos em uma su-
cessão de processos sociais e físicos. Simultaneamente, servem-lhes, de
múltiplas maneiras, para harmonizar os comportamentos de uns para
com os outros, assim como para adaptá-los a fenômenos naturais, ou
seja, não elaborados pelo homem” (ELIAS, 1998, p.8).

O TEMPO E A MEMÓRIA NA PRODUÇÃO HISTÓRICA


43

Por sua vez, o calendário, segundo


a abordagem de José Carlos Reis
(1994, p.114), também foi produzido
socialmente e também revela “uma
organização sucessiva da natureza”.
Contudo, em um contexto marcado
©shutterstock

pela modernidade, o calendário e, prin-


cipalmente, o relógio buscaram se distanciar dos fenômenos da natureza que os
inspiraram, pois as transformações científicas dos séculos XVI, XVII e XVIII –
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

baseadas na racionalidade, nas leis da física e da matemática – motivaram um


estudo mais complexo e detalhado sobre o tempo.
É nesse sentido que Newton, conforme expõe Elias (1998, p.9), buscou explicar
o tempo racionalmente, ou seja, como uma questão objetiva, criada pelo mundo
“e que não se distingue, por seu modo de ser, dos demais objetos da natureza,
exceto, justamente, por não ser perceptível”.

Isaac Newton (1642 a 1727) foi um físico, matemático e astrônomo, nascido


na Inglaterra. Na época em que viveu, a produção científica e cultural – muito
embora tenha sido em parte transformada pelo movimento cultural da Renas-
cença, entre os séculos XV, XVI e XVII, os quais, segundo Arnold Hauser (1995),
expandiram os princípios da racionalidade e da individualidade que já eram
experimentados desde a Idade Média, em meados do século XII – era ainda in-
fluenciada pelos preceitos religiosos do catolicismo, pois a sociedade daquela
época vivia uma fase de transição entre o tradicionalismo, decorrente da Idade
Média, e a modernidade, fruto dos novos tempos. Desse modo, é possível que
Newton, produto desse período de transição do tradicionalismo para a moder-
nidade, tenha sofrido grandes embates por fazer descobertas que contrariavam
a ordem das coisas. Entre suas descobertas, destacamos a lei da gravitação uni-
versal e a teoria das cores. A lei da gravitação universal foi pensada quando New-
ton, sentado em baixo de uma macieira, observou uma maçã caindo e notou
que havia uma força que a atraia à superfície do chão. Tal força também explica-
va a razão dos corpos celestes, como a Lua, não se afastarem da órbita terrestre.
Essa descoberta rompeu com a dependência da ação divina. Do mesmo modo,
a elaboração da teoria das cores, pensada por Newton a partir de um feixe de luz
direcionado sobre um prisma de vidro, certamente desconstruiu a ideia de que
alguns fenômenos, como o Arco-Íris, resultavam da ação divina e sobrenatural.

A Representação Simbólica e Coercitiva do Tempo: o Relógio e o Calendário


II

Não podemos perder de vista, contudo, que, nesse período histórico, a sociedade
caminhava para um processo de desenvolvimento industrial e capitalista. Desse
modo, era extremamente concebível que as concepções de tempo baseadas em
elementos da natureza, que ainda perduravam, fossem desfeitas em favor de um
tempo cronometrado e voltado à produção de mercadorias.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
©shutterstock

Buscou-se, então, a partir desse momento, um tempo que aplicasse uma disci-
plina do trabalho e exercesse sobre o ser humano o poder coercitivo, advindo da
sociedade capitalista, isto é, das pressões por uma maior produtividade. Segundo
Elias (1998, p.13-14), o indivíduo seria levado, desde criança, a se enquadrar a
este modelo.

O TEMPO E A MEMÓRIA NA PRODUÇÃO HISTÓRICA


45

Ora, o indivíduo não tem a capacidade de forjar, por si só, o conceito


de tempo. Este, tal como a instituição social que lhe é inseparável, vai
sendo assimilado pela criança à medida que ela cresce numa socieda-
de em que ambas as coisas são tidas como evidentes. Numa sociedade
assim, o conceito de tempo não é objeto de uma aprendizagem, em sua
simples qualidade de instrumento de uma reflexão destinada a encon-
trar seu resultado em tratados de filosofia; ao crescer, com efeito, toda
criança vai-se familiarizando com o ‘tempo’ como símbolo de uma ins-
tituição social cujo caráter coercitivo ela experimenta desde cedo. Se,
no decorrer dos seus primeiros dez anos de vida, ela não aprender a
desenvolver um sistema de autodisciplina conforme a essa instituição,
se não aprender a se portar e a modelar sua sensibilidade em função do
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

tempo, ser-lhe-á muito difícil, se não impossível, desempenhar o papel


de um adulto no seio dessa sociedade.

Notar-se-á que, para Elias (1998), o tempo introduzido pela modernidade não
provém de um processo de aprendizagem elaborado socialmente, mas de uma
dinâmica imposta por uma sociedade coercitiva – ou melhor, por um mercado
de trabalho – que exige do sujeito uma autodisciplina. Quando esse sujeito destoa
desse modelo, é considerado pela sociedade que o rodeia como um desajustado.

A NOÇÃO DE TEMPO NOS DIFERENTES PARADIGMAS

No decorrer da história, os homens apresentaram noções diferenciadas sobre o


tempo. Do mesmo modo, os modelos explicativos, também conhecidos como
teorias – que foram criados dentro da ciência histórica, para estudar os aconteci-
mentos humanos – mostraram entendimentos diferenciados sobre essa questão.
A existência de múltiplas teorias da história é um reflexo das diversas
concepções ideológicas assumidas pelos homens. Existe, pois, multi-
plicidade de histórias, como também uma multiplicidade de teorias da
história e de teorias do conhecimento. Nesta perspectiva, o tempo não
é pressuposto especulativamente, ele é construído conceitualmente.
Isso significa que o tempo da história não é um só, não tem uma só
figura, não é também abstrato, mas plural (ZANIRATO, 1999, p.91).

A Noção de Tempo nos Diferentes Paradigmas


II

Na abordagem de Zanirato, observar-se-á que o tempo na escrita da História


revelou-se de maneira plural, ou seja, em cada época, foi interpretado de maneira
peculiar e de acordo com a tendência teórica em voga. Na discussão subsequente,
trataremos dessa questão.

O TEMPO NOS DIFERENTES PERÍODOS HISTÓRICOS

Começando pela antiguidade, evidencia-se que, nesse período, o tempo era

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
encarado como eterno. Nesse sentido, o tempo existia segundo um movimento
circular, o qual passava por estágios sucessivos que se repetiam com constân-
cia, como no ciclo da vida.
Esse entendimento sobre o tempo pode ser observado, segundo José Carlos
Reis (1998), no pensamento mítico, poético e filosófico grego, cujas reflexões –
sobre a ética, a estética, a política e as coisas humanas – estiveram voltadas às
ideias eternas e aos movimentos regulares e sucessivos.
Em Zanirato (1999, p.91-92), notamos que esse pensamento aparece em
Aristóteles, pois ao discutir a física dos corpos, esse filósofo acreditava que o
tempo era um contínuo que não poderia ser desvencilhado da história. Assim:
Para Aristóteles o Universo é único e finito, eterno, seu movimento é
circular, é passagem em atos sucessivos. Não tem início, meio ou fim.
O tempo também se coloca nessa concepção, é eterno, isto é, existe
sempre, e as coisas é que são temporais, havendo um tempo para cada
gênero ou espécie. Cada ser tem um tempo: nascimento, desenvolvi-
mento e morte (ZANIRATO, 1999, p.92).

Aristóteles (384 – 322 a.C.) foi um filósofo. Seus pensamentos filosóficos e ideias
se relacionam a diversas áreas do conhecimento (como a física, a matemática,
a retórica, a ética, a biologia e a zoologia) e causam influências significativas na
educação e no pensamento ocidental contemporâneo. É tido como criador do
pensamento lógico, bem como da filosofia ocidental.

Disponível em: <http://www.suapesquisa.com/aristoteles/>

O TEMPO E A MEMÓRIA NA PRODUÇÃO HISTÓRICA


47

Conforme a autora, essa visão aristotélica de tempo circular e eterno foi supe-
rada com o surgimento de novas concepções embasadas nos escritos bíblicos.
Tais concepções, que se denominam de judaico-cristãs, viam o tempo de maneira
singular, linear e progressivo, uma vez que havia data exata para começar (cria-
ção divina) e data certa para acabar (juízo final).
Influenciados por essa forma de pensar, o tempo e a
história passaram a ser vistos como uma sucessão iniciada
com a criação Divina e predestinada a terminar como o
Juízo final. Traçou-se uma linha voltada para frente, o
tempo tornou-se linear e progressivo, seu movimento
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

direcionado para o fim (ZANIRATO, 2010, p.24).

Esse modo de ver o tempo foi bastante comum na Idade Média, tendo em vista
que, nesse período, a sociedade conservou, conforme o historiador da arte
Arnold Hauser (1995), um caráter espiritual e religioso. Seguindo essa perspec-
tiva, o filósofo e teólogo medievalista Santo Agostinho acreditava, conforme
Zanirato (1999), que o tempo era estabelecido por Deus, pois o universo havia
sido criado por ele.
Essa noção de tempo finalista religioso, que sinalizava a criação e o fim dos
tempos, foi sendo superada com o Renascimento. Esse movimento científico,
cultural, artístico e filosófico – ocorrido na transição do período medieval para o
período moderno – provocou mudanças significativas
no campo do conhecimento, a partir dos princípios
do racionalismo e cientificismo.
Todavia, para Hauser (1995), é importante res-
saltar que as descobertas do Renascimento já vinham
sendo ensaiadas desde a Idade Média. Desse modo, o
que o movimento fez foi apenas avançar, de maneira
empírica, em relação aos aspectos que vinham sendo
desenvolvidos nos períodos anteriores, sobretudo,
a partir dos séculos XI e XII, quando a sociedade e
a vida econômica passaram a se emancipar dos gri-
lhões do dogma eclesiástico.

A Noção de Tempo nos Diferentes Paradigmas


II

Trazendo essa questão para o campo da História, notar-se-á uma adequação


a tais mudanças. Nessa perspectiva racional e científica, o entendimento sobre
o tempo foi transformado. Por outro lado, os princípios de linearidade, de fina-
lidade e de progressividade persistiram, pois o tempo continuou a ser encarado
de maneira evolutiva e segundo uma linha reta que apresentava começo e fim.
A diferença é que “Dentro dos princípios racionalistas estabelecidos para o
entendimento do que vinha a ser ciência, a ideia do progresso apareceu ligada
ao conhecimento” (ZANIRATO, 1999, p.94), que não seria dado mais por Deus,
mas pelo homem.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O paradigma positivista, surgido no século XIX, é um forte expoente dessa
crença de que a racionalidade e cientificidade, advindas do homem, superam
a providência divina na problemática do tempo, como podemos notar em José
Carlos Reis (1994, p.93):
No século XIX, portanto, a filosofia e sua influência espiritual, seu tem-
po da alma ou da consciência, começaram a recuar em relação ao avan-
ço da influência do tempo da física sobre o vivido e o conhecimento
das sociedades. O tempo da ciência começou a se impor ao tempo da
consciência.

Essa imposição do tempo da ciência, em detrimento do tempo da consciência,


ocorreu em função da ideia de progresso, cuja finalidade era livrar o homem da
condição de barbárie e conduzi-lo à civilização.
A superação de uma etapa para outra, como da barbárie à civilização, mos-
tra que o tempo, para os positivistas, era visto de maneira sucessiva, cumulativa,
finalista e irreversível. Para Alfredo Bosi (1992, p.20), “essas visões do tempo são
o sangue mesmo que circula há séculos pelas veias de nossas crenças judeu-cris-
tãs, progressistas, evolucionistas, marxistas ou não”.

O TEMPO E A MEMÓRIA NA PRODUÇÃO HISTÓRICA


49

Vejamos como as questões que abordamos acima aparecem de maneira bastante escla-
recedora em um extrato da obra de José Carlos Reis.
“O tempo do conhecimento reflete, em geral, o tempo vivido embora nem sempre coin-
cida com ele. Antes do século XIX, o vivido histórico e seu conhecimento foram marca-
dos pelo tempo da ‘alma’, por um tempo ou mitológico, ou teológico, ou filosófico. As
sociedades míticas, religiosas ou ‘racionalistas’ elaboraram uma forma de conhecimento
histórico que tinha como base um tempo mítico, religioso e filosófico. O tempo vivido
era pensado com conceitos como Deus, alma, graça, rei, milagres, salvação, fim do mun-
do, mal/bem, quando a sociedade era religiosa; quando era racionalista, o tempo vivi-
do era pensado com conceitos como espírito, liberdade, história, ação intensão, justiça,
fases, emancipação, sujeito, homem, etc. Para essas sociedades e modos de saber do
humano, o tempo natural, se é importante, não é determinante. A história humana não
é inscrita no tempo cósmico, mas na história divina ou racional, em que o tempo cósmi-
co ganha um sentido cultural. Convivendo com esses tempos, começou a preocupação
com a datação rigorosa, na Renascença, que perde de vista o lado da alma e da cultura.
O esforço dos ‘eruditos’ de então era o de adequar a história ao calendário. Esse esforço
foi prosseguido pelos ‘positivistas’, no século XIX.
Nesse século, aliás, o tempo físico se impôs sobre todo conhecimento da sociedade. A
filosofia e sua influência espiritual começaram a recuar em relação ao avanço do tempo
da física sobre o conhecimento humano. O ‘tempo da ciência’ começava a se impor ao
tempo da ‘consciência’”.
Fonte: REIS, José Carlos. Tempo, História e Evasão. Campinas: Papirus, 1994, p.87-88.
II

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
©shutterstock

Do mesmo modo que o paradigma judaico-cristão e positivista, o paradigma


marxista entende o tempo como sucessivo, cumulativo, progressivo, linear e irre-
versível. Contudo, não tem como objetivo conduzir a sociedade para o juízo final
e nem, tampouco, à civilização. Seu maior objetivo, senão único, é transformar
a sociedade capitalista em uma sociedade igualitária, mediante a luta de classes.
Com o surgimento de uma nova maneira de se compreender os eventos huma-
nos, paralela ao positivismo e ao marxismo, o tempo histórico passou a ser visto de
uma forma diferente. Essa nova maneira, denominada de Nova História, surgida
nas primeiras décadas do século XX, deixou de lado os princípios da progressi-
vidade e da irreversibilidade em favor da simultaneidade (ZANIRATO, 1999).
A Nova História, assim, substituiu o tempo linear, visto em único sentido, por
um tempo múltiplo e plural, visto em diferentes sintonias. Essa perspectiva será
observada nas inovadoras ideias desenvolvidas pelo historiador Fernand Braudel.

O TEMPO E A MEMÓRIA NA PRODUÇÃO HISTÓRICA


51

Na última unidade deste livro, voltaremos a discutir sobre Fernand Braudel e


a temporalidade proposta na produção historiográfica por este importante
historiador. Mas, até que esta abordagem seja feita, segue uma prévia, com
algumas informações a seu respeito.
Fernand Braudel (1902 – 1985) foi um historiador francês nascido em Lu-
méville-en-Ornois, na França. Foi um dos mais importantes representantes
da Escola dos Annales e inovador da noção de tempo aplicado à produção
histórica. Formado em História na Universidade de Sorbonne, “ensinou em
uma escola na Argélia (1923-1932), enquanto trabalhava na elaboração de
sua tese sobre Filipe II de Espanha e o Mediterrâneo. Integrou um grupo de
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

intelectuais franceses (1933-1935) que colaborou na organização da Univer-


sidade de São Paulo”. Na época da Segunda Guerra Mundial, de volta à Euro-
pa, foi preso em um campo de concentração coordenado pelos nazistas em
Lübeck, onde escreveu sua tese, defendida em 1947 e publicada em 1949.
Ainda em 1949, tornou-se professor do Collège de France e, paralelamente,
diretor do Centre de Recherches Historiques da École des Hautes Études,
uma organização não governamental ligada à pesquisa e desenvolvimento
das Ciências Humanas. Ao longo de sua carreira intelectual e acadêmica,
dirigiu ainda a revista Annales, Economies, Sociétés, Civilisations.
Disponível em: <http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/FernBrau.html>;
<http://www.brasilescola.com/biografia/fernand-braudel.htm>.

O TEMPO MÚLTIPLO

Na obra intitulada História e Ciências Sociais (1990), Braudel aborda que a expli-
cação acerca dos acontecimentos humanos, ou melhor, a escrita da História, se
desenvolve em uma tripla duração de tempo: curta duração, média duração e
longa duração.
A curta duração é o tempo do acontecimento, das datas, para as quais se
busca apenas a narração dramática e ruidosa, sem atentar-se ao estudo das suas
motivações e significações. Para nosso autor em questão, esse tempo é ilusório,
porque é passageiro, por isso é próprio dos jornalistas e cronistas.No entanto, a
história tradicional ou positivista explicava a história dos homens na curta dura-
ção, mediante a reunião de fatos que mantinham alguma significância entre si.
Acreditava-se que a narração desses fatos organizados cronologicamente, de

A Noção de Tempo nos Diferentes Paradigmas


II

maneira linear, esclarecia o passado. Para Braudel (1990, p.11), entretanto, a sim-
ples narração dos fatos não dava conta de explicar as ações dos homens, tendo
em vista que:
O passado é, pois, constituído, numa primeira apreensão, por esta mas-
sa de pequenos factos, uns resplandecentes, outros obscuros e indefini-
damente repetidos; [...]. Mas esta massa não constitui toda a realidade,
toda a espessura da história, sobre a qual a reflexão científica pode tra-
balhar à vontade.

Nesta direção,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A ciência social tem quase o horror do acontecimento. Não sem razão:
o tempo breve é a mais caprichosa, a mais enganadora das durações
(BRAUDEL, 1990, p.11).

Essa ideia de que a curta duração é enganosa aparece em Alfredo Bosi (1992).
Para ele, as datas são apenas pontos de orientação, como as pontas de icebergs
que, quando entendidas de maneira isolada, nada significavam. Para compreen-
dê-las, é preciso mergulhar nas profundezas de sua atividade processual. Assim:
A data é, nessa perspectiva, um número-índice, o elo mais ostensivo de
uma cadeia dotada de sentido. 1492: Colombo chega às ilhas do Caribe,
o que significa um momento alto da expansão da cultura européia e do
catolicismo, de que o Novo Mundo seria continuador. 1792: Tiradentes
é enforcado após uma abortada conspiração anticolonial; hora cruel,
sem dúvida, mas prenunciadora de uma nova nacionalidade, o Brasil,
que trinta anos mais tarde se destacaria de Portugal por obra de um
príncipe, Pedro, neto daquela mesma dona Maria que ordenara o sa-
crifício dos inconfidentes. 1822: faz sentido como o que veio depois de
1792. O antes é a semente, o germe, a raiz do depois (BOSI, 1992, p.21).

Emprestando a analogia de Alfredo Bosi (1992), é possível refletirmos que a


média duração, também chamada de conjuntura, permite ao historiador mer-
gulhar um pouquinho nesse oceano em que se edifica a ponta do iceberg, pois
essa ponta, conforme Braudel (1990, p.12), “oferece à nossa escolha uma dezena
de anos, um quarto de século e, em última instância, o meio século”.
Ainda dentro dessa analogia sugerida por Bosi (1992), vemos que a longa
duração são as estruturas sobre as quais é possível notar as mudanças e perma-
nências nos grupos sociais. Desse modo, segundo Braudel (1990, p.14):

O TEMPO E A MEMÓRIA NA PRODUÇÃO HISTÓRICA


53

Para nós, historiadores, uma estrutura é, indubitavelmente, um agru-


pamento, uma arquitetura; mais ainda, uma realidade que o tempo
demora imenso a desgastar e a transportar. Certas estruturas são do-
tadas de uma vida tão longa que se convertem em elementos estáveis
de uma infinidade de gerações: obstruem a história, entorpecem-na e,
portanto, determinam o seu decorrer. Outras, pelo contrário, desinte-
gram-se mais rapidamente. Mas todas elas constituem, ao mesmo tem-
po, apoios e obstáculos, apresentam-se como limites (envolventes, no
sentido matemático) dos quais o homem e as suas experiências não se
podem emancipar.

Dentro dessa tripla duração sugerida por Braudel (1990), notamos que o tempo
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

histórico apresenta uma diversificação, a qual possibilita para a explicação his-


tórica estabelecer uma relação entre os fatos com suas conjunturas e estruturas,
como se um tempo levasse a outro tempo.

DEFINIÇÃO DE MEMÓRIA

Na formulação das explicações sobre os acontecimen-


tos humanos no tempo, a memória, enquanto fonte
de pesquisa, desempenha uma importante função.
Mas antes de abordarmos essa questão é fundamen-
tal definirmos o conceito de memória.
Notar-se-á, de acordo com as definições sintéti-
cas do dicionário, que a memória é a capacidade de
recordar e lembrar-se do passado. Pode ainda atrelar-
-se ao registro de dados, como no caso da informática.
Segundo Lisa Block (2012, p.24), nas mais diver-
sas línguas – como no espanhol, no inglês e no francês
– a palavra recordar se relaciona ao sentimento, “com ©shutterstock

el corazón, sin apartarse del pensamiento, se recuerda


com el corazón”.

Definição de Memória
II

Para o historiador Le Goff, na


obra História e Memória (1992,
p.419), a recordação, ou melhor,
a memória representa o conjunto
de funções psíquicas, as quais
permitem ao homem conservar
informações, mediante a atualização
de “impressões ou informações pas-
sadas, ou que ele representa como

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
passadas”.
©photos

Do mesmo modo, Moreira


(2011, p.1) considera que a memória
“no sentido primeiro da expressão, é a presença do passado”, pois ela é “uma
construção psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação sele-
tiva do passado, que nunca é somente aquela do indivíduo, mas de um indivíduo
inserido em um contexto familiar, social, nacional”.
Nas definições apresentadas, verificamos que a memória é uma construção
psíquica que permite aos homens reter informações sobre o passado. Porém,
esse passado não é relembrado de maneira total, mas de maneira parcial, tendo
em vista que cada indivíduo revela uma lembrança particular, uma interpreta-
ção única sobre o passado.
Nesse sentido, notamos que a memória é uma construção individual porque
expressa a imagem que cada pessoa atribui ao passado. Porém, notamos também
que é uma construção coletiva, já que a soma das diversas imagens individuais
expressa a representação dos significados que o grupo atribui aos acontecimentos.
Nas duas modalidades de memória, individual e coletiva, observar-se-á o
papel exercido pela realidade – social, econômica, política e cultural do indiví-
duo e de seu grupo – na transformação da memória. Nesse ponto, vale ressaltar
que as faculdades do consciente e do inconsciente – como “o interesse, a afetivi-
dade, o desejo, a inibição, a censura” – podem exercer sobre a memória individual
e coletiva manipulações (LE GOFF, 1992, p.422).
Essas manipulações podem ocasionar a deturpação da memória, sua modi-
ficação e até mesmo o esquecimento.

O TEMPO E A MEMÓRIA NA PRODUÇÃO HISTÓRICA


55

... num nível metafórico, mais significativo, a amnésia é não só uma


perturbação no indivíduo, que envolve perturbações mais ou menos
graves da presença da personalidade, mas também a falta ou a perda,
voluntária ou involuntária, da memória coletiva nos povos e nas na-
ções, que pode determinar perturbações graves da identidade coletiva
(LE GOFF, 1992, p.421).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

RELAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E MEMÓRIA

O emprego da Memória na produção historiográfica passou a ocorrer com a


chamada “revolução documental”, iniciada pelos Annales, a qual permitiu aos his-
toriadores utilizarem uma imensa variedade de documentos em suas pesquisas.
Essas transformações ocorridas na historiografia contemporânea, segundo
Moreira (2011, p.2), desacreditaram os métodos tradicionais e tornaram a História
e a memória mais complexas, tendo em vista que:
Lembrar o passado e escrever sobre ele não se apresentam como as ati-
vidades inocentes que julgávamos até bem pouco tempo atrás. Tanto
as histórias quanto as memórias não mais parecem ser objetivas. Num
caso como no outro, os historiadores aprenderam a considerar fenô-
menos com a seleção consciente ou inconsciente, a interpretação e a
distorção.

Nessa perspectiva, ao empregar a memória na produção histórica, o historiador


precisa ter claro que a memória e a História são coisas diferentes.
A História, embora seja uma ciência subjetiva, “não se contenta com explica-
ções superficiais e infundadas”. Seu compromisso é com a verdade histórica e, por
esse motivo, “seu objeto de pesquisa deve ser problematizado, contextualizado e
comparado” (AMÂNCIO et al., 2010, p.46).Nessa direção, a História se esforça
continuamente “no sentido de explicar, dentro dos limites de suas fontes, a tota-
lidade de seu objeto de investigação histórica” (AMÂNCIO et al., 2010, p.46).
Por sua vez, para Amâncio et al. (2010), a memória não apresenta compro-
misso com a verdade, pois expressa lembranças individuais e coletivas, que variam
no decorrer do tempo, segundo as experiências vividas, sejam boas ou ruins.

Relação entre História e Memória


II

Assim, as informações advindas da memória não são representações


reais do passado, mas construções individuais conforme a importân-
cia atribuída aos fatos narrados. Por isso, alguns acontecimentos são
esquecidos, suprimidos ou simplesmente manipulados por não se-
rem importantes para aqueles que vivenciaram o momento histórico
(AMÂNCIO et al., 2010, p.46).

Levando em consideração a vulnerabilidade da memória, ainda de acordo com


Amâncio et al. (2010), o historiador deve olhar para essas fontes de maneira
crítica. Desse modo, para Le Goff (1992, p.29), “deve esclarecer a memória e aju-
dá-la a retificar os seus erros”.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Mas de que maneira é possível esclarecer as memórias? Uma das respostas
mais recorrentes na historiografia contemporânea é: confrontar as memórias
com outros documentos.
A análise de outros tipos de fontes permite verificar se as informações con-
tidas nas memórias procedem. Segundo Moreira (2011, p.3), o exame desses
documentos propicia aos historiadores elaborarem uma crítica da reminiscên-
cia, ou seja, das lembranças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta segunda unidade, definimos os conceitos de tempo e de memória, bem


como demonstramos a importância que exercem na escrita da História.
Em relação ao tempo, vimos que definir seu conceito não é tarefa muito fácil,
pois apesar de senti-lo, não conseguimos vê-lo, tocá-lo e degustá-lo. Também
estudamos que a marcação do tempo é uma convenção construída socialmente
e resulta de um processo de aprendizagem, promovido pelos homens para se
orientar.
Em relação à memória, notamos que representa uma importante fonte de
pesquisa para o historiador, mas esse precisa manter alguns cuidados para tra-
balhá-la, pois as lembranças revelam imperfeições.
Nas próximas unidades, trataremos diretamente das teorias da História,
começando pelo Positivismo.

O TEMPO E A MEMÓRIA NA PRODUÇÃO HISTÓRICA


57

1. De acordo com o terceiro tópico desta unidade, discuta a noção do tempo


apresentada pelos diferentes modelos explicativos ao longo dos períodos
históricos.
2. Para Fernand Braudel (1990), a escrita da História se desenvolve em uma tripla
duração de tempo: curta duração, média duração e longa duração. O que isso
representa? Procure explicar, apoiando-se em seus estudos.
3. Como a questão da relação entre História e memória é tratada no último tópico
desta unidade? Produza um texto dissertativo que contemple a temática.
Busque, em outras fontes, informações complementares para enriquecer sua
discussão.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Tempo e História
José Carlos Reis (org). Vários autores

Editora: Qualquer
Sinopse: Nesta obra, organizada por José Carlos Reis,
é apresentada ao leitor textos de diversos autores que
apresentam em comum a preocupação em discutir a questão
do tempo. Nota-se, nestas construções, que a problemática do
tempo é vista como uma constante, cuja construção se articula
às ações humanas, que ocorrem segundo uma configuração
social, política, intelectual, etc.

No filme brasileiro Narradores de Javé, lançado no


ano de 2003, notamos a vulnerabilidade e mani-
pulação da memória. A história se desenvolve em
uma pequena cidade, onde pessoas muito simples
resolvem compartilhar suas lembranças, na espe-
rança de manterem vivas suas origens, ou melhor,
de preserverarem a pequena cidade que seria
inundada com a construção de uma represa. Ao
recordar o passado, cada pessoa revela uma visão
distinta sobre a fundação da cidade e essas visões
são transformadas, na medida em que um morador
local, alfabetizado, decide escrever um livro con-
tando a história do lugar.
Confiram a sinopse do filme no endereço abaixo:
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Nar-
radores_de_Jav%C3%A9>.
Professora Me. Giselle Rodrigues

AS ESCOLAS HISTÓRICAS: O

III
UNIDADE
POSITIVISMO

Objetivos de Aprendizagem
■ Discutir o desenvolvimento do paradigma historiográfico do
positivismo, destacando sua origem e características gerais.
■ Discutir as regras metodológicas elaboradas pelos positivistas para
fazer da História uma ciência.
■ Debater o modo como se processa o conhecimento histórico,
segundo os positivistas.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ O surgimento da Escola Positivista
■ As características gerais da Escola Positivista
■ Langlois e Seignobos e o método de pesquisa em História
■ A crítica dos documentos e o rigor metodológico
■ O modo como se processa o conhecimento histórico: as operações
sintéticas
61

INTRODUÇÃO

A explicação histórica revelou-se de maneira diversa no decorrer das épocas.


Desse modo, expressou-se de maneira peculiar e segundo os parâmetros cultu-
rais, econômicos, políticos e sociais do período em questão.
Na antiguidade greco-romana, sinalizada pela forte presença dos deuses nos
hábitos de vida, a explicação para os acontecimentos históricos era mítica, ou
seja, fundamentada na vontade dos deuses.
Durante a Idade Média, os acontecimentos históricos passaram a ser expli-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

cados por meio da religião, fundamentada na crença de um Deus único, uma


vez que neste período, conforme Arnold Hauser (1995), a sociedade medieval
era marcantemente cristã, até mesmo em suas estruturas hierárquicas.
A partir da Renascença – período em que as ideias de liberdade, de racio-
nalidade e de individualidade desenvolvidas, segundo Arnold Hauser (1995),
desde os séculos XI e XII atingiram grande desenvolvimento – a explicação his-
tórica amparou-se na razão.
Nesse sentido, nos trabalhos históricos do período moderno, sobretudo nos
do século XVIII, notar-se-á que a concepção filosófica, fundamentada nos prin-
cípios da racionalidade, foi uma marca registrada. Assim:
.... o século XVIII criou o pensamento específico da modernidade, as
filosofias da história, que seriam uma nova legitimação da história uni-
versal não mais baseada na fé. Elas são modernas porque têm a forma
de uma elaboração racional da história, de uma interpretação sistemá-
tica da história da humanidade universal... (REIS, 2006, p.29).

Segundo essa perspectiva moderna, na transição do século XVIII para o século


XIX, os teóricos da História se esforçaram para transformar esse ramo do conhe-
cimento em uma ciência empírica, objetiva e que pudesse ser comprovada, assim
como as ciências exatas. Todo esse esforço ocorreu porque a História era consi-
derada uma disciplina metafísica, especulativa e subjetiva, bastante parecida com
a Literatura.Mas, para se tornar uma ciência, a História precisava de métodos
próprios de trabalho, os quais pudessem comprovar a veracidade dos documen-
tos e proibisse os historiadores de interpretar as fontes de pesquisa.

Introdução
III

A Escola Positivista, também chamada de Metódica, surgiu na segunda


metade do século XIX e foi a primeira corrente historiográfica a elaborar um
método de investigação em História.
Nesta unidade, discutiremos o desenvolvimento do paradigma historiográ-
fico do positivismo, destacando sua origem e características gerais. Discutiremos
também o esforço dos positivistas, e seus métodos de análise, para fazerem da
História uma ciência no século XIX.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O SURGIMENTO DA ESCOLA POSITIVISTA

A origem da tradicional historiografia positivista remonta às proposições de


cientificidade elaboradas pelos intelectuais iluministas no século XVIII, as quais
abriram o caminho à elaboração de uma metodologia própria na produção his-
tórica, assim como favoreceram o abandono das milenares concepções.
Conforme Barros (2011, p.2), os princípios iluministas, herdados pelo paradigma
historiográfico do Positivismo, associaram-se às leis gerais ou padrões recorrentes
observados pelos teóricos do Iluminismo em meio à diversidade humana.
O Positivismo do século XIX [...] herda alguns de seus traços centrais
do Iluminismo do século XVIII, [...].O principal dos traços herdados
do Iluminismo é certamente a ambição de encontrar “leis gerais”, ou os
“padrões” que a multiplicidade e diversidade da experiência histórica
poderiam encobrir.

A obtenção de “leis gerais” na produção histórica foi constante na transição do


século XVIII para o século XIX, tendo em vista que, nesse momento, a História
“assume clara e explicitamente a pretensão à cientificidade como campo de saber
a se situar entre outras disciplinas universitárias” (BARROS, 2011, p.2).
Pode-se dizer que, até o início do século XIX, a História era compreendida
como uma área do conhecimento fundamentada nas concepções metafísicas e
especulativas, impostas pela Filosofia. Por essas imposições, não era vista como
científica, mas simplesmente comparada aos estilos literários.

AS ESCOLAS HISTÓRICAS: O POSITIVISMO


63

Esse status foi transformado quando a História


passou a incorporar métodos próprios no estudo
dos fatos históricos e, nessa transformação,
alguns dos princípios do iluminismo, como a
elaboração de regras e leis, foram fundamentais.
Nesse período, os historiadores se diziam ini-
migos declarados da Filosofia (SCHAFF, 1983).

©wikipedia
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Conforme expõe o historiador Jean Glénisson (1977), no século XIX, ocor-


reram transformações substanciais na vida econômica e social, assim como
nas concepções ligadas à religião e ao cosmo, as quais modificaram diversas
áreas do conhecimento, entre elas a História. Nesse sentido, “o século XIX foi
o século da história”, que caminhava à ciência.

Em oposição à filosofia, surgiu, portanto, uma História científica, a qual obser-


vava, relacionava e comprovava a veracidade dos fatos. Desse modo,
A influência metafísica da filosofia sobre o conhecimento histórico foi
substituída por uma atitude realista. Acreditou-se que o conhecimen-
to histórico tinha finalmente se estruturado em bases positivas ao en-
contrar um método seguro, objetivo, confiável, empírico (REIS, 2006,
p.36).

Contudo, embora demonstrasse um desejo profundo em se separar da Filosofia,


essa nova História, não conseguiu desprender-se dela totalmente, pois os histo-
riadores científicos acabavam repetindo seus pressupostos, ao considerarem que
a História apresentava um “desenvolvimento progressivo, racional e contínuo do
povo e do espírito em busca da liberdade” (REIS, 2006, p.38).

O Surgimento da Escola Positivista


III

Assim, conforme Reis (2006, p.37),


Mesmo querendo se distanciar de Hegel e dos iluministas franceses,
procurando resgatar o real tal como se passou, os historiadores-cientis-
tas só eram antifilosóficos em suas declarações. Na prática, ocultavam
sua dependência das idéias e conceitos da filosofia da história. O que
fizeram foi um esforço de rompimento com a metafísica, procurando
inspirar-se nas ciências naturais e imitá-las, com resultados parciais.

Um dos grandes representantes dessa nova tendência de historiadores-cientis-


tas foi o alemão Leopold Von Ranke (1795-1886). Para Schaff (1983), Ranke
foi uma personalidade radical dentro da Escola Positivista nas primeiras déca-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
das do século XIX, pois sua tese representou um divisor de águas na produção
histórica, em relação às técnicas de investigação, coleta e utilização das fontes.
Resumidamente, conforme Schaff (1983, p.102), a tese de Ranke se revelava da
seguinte forma: não há nenhuma interdependência entre o historiador e seus
objetos de estudo. O historiador estuda os acontecimentos de maneira mecani-
cista, segundo uma interpretação
passiva e contemplativa, ao apre-
sentar os acontecimentos, ele
deve fugir das emoções, fobias
e predileções, enfim de todo tipo
de condicionamento.
Em suma, para Schaff (1983,
p.102-103,), a produção histó-
rica de Ranke surgiu da junção
de “um número suficiente de
fatos bem documentados, dos
quais nasce espontaneamente a
ciência da história”.

AS ESCOLAS HISTÓRICAS: O POSITIVISMO


65

Leopold von Ranke nasceu na Prússia, dor diante do material com que trabalha.
no final do século XVIII (1795), e viveu Ranke tentou, tanto quanto possível, eli-
praticamente todo o século XIX (1886). minar os pontos de vista pessoais que
Seu pensamento caracterizou-se pela poderiam desfigurar o ‘verdadeiro’ con-
busca da objetividade e da aplicação do teúdo da história. A fórmula empregada
método histórico na investigação dos para garantir essa neutralidade foi a de
fenômenos sociais. A chamada história fundar os estudos das questões sociais
científica, divulgada por Ranke, tinha sobre métodos rigorosamente científicos.
como bases principais a neutralidade Os estudos históricos sob a perspectiva
científica, a objetividade e a fidelidade de Ranke diferenciam-se dos estudos filo-
aos documentos. Seu desejo, ao estudar a sóficos por serem a “ciência do único” e
história, era o de “mostrar” o passado sem terem como base a observação dos fatos,
sucumbir às paixões terrenas. Foi grande enquanto a filosofia se ocupa de abstra-
a influência desse pensador alemão sobre ções e generalizações.
a historiografia européia. Encontra-se, em
suas idéias, a maior parte dos pressupos- Fonte: FAUSTINO, Rosângela Célia;
tos de Charles Langlois, Ernest Lavisse, GASPARIN, João Luiz. A influência do
Charles Seignobos, Fustel de Coulanges - positivismo e do historicismo na edu-
professores de história e autores de vários cação e no ensino de história. In: Acta
livros destinados ao ensino dessa disci- Scientiarum. Maringá, 23(1):157-166,
plina - cujas premissas correspondem à 2001. Disponível em: <http://periodicos.
recusa de toda reflexão teórica, à redução uem.br/ojs/index.php/ActaSciHuman-
do papel da História, à coleta de fatos e SocSci/article/view/2765/1896>. Acesso
à afirmação da passividade do historia- em: 12 mar. 2014.
III

A tese desse historiador alemão serviu de base para que outros autores, contempo-
râneos ao século XIX, pensassem a escrita da História. Entre eles, destacar-se-iam
Langlois e Seignobos, autores que trataremos mais adiante.

AS CARACTERÍSTICAS GERAIS DA ESCOLA


POSITIVISTA

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Vimos que, ao longo do século XIX, os trabalhos históricos buscaram se des-
vencilhar das concepções filosóficas, tendo em vista que a História ansiava por
ser uma ciência empírica, amparada na observação e experimentação, tais quais
as ciências exatas.
Nesse sentido, os positivistas, a exemplo de Fustel de Coulanges, acredi-
tavam que a História era uma ciência pura e, por isso, deveria ser vista com
exatidão, ou seja, mediante a observação minuciosa dos textos com o propó-
sito de estudar apenas suas causas determinantes. Assim, “tal como o químico
ou o naturalista, não tem que investigar a causa primeira ou as causas finais”
(BOURDÉ; MARTIN, 2003, p.102).
Se do ponto de vista positivista a História
deveria ser tratada como uma ciência exata,
sua compreensão não se vincularia à inter-
pretação e análise dos fatos (que expressam
os atos dos homens, os costumes gerais de
um povo, a história dos países etc.), mas na
observação e narração desses, uma vez que
ao interpretar o acontecimento, o historiador
poderia mudar o verdadeiro curso do pas-
sado, retomando a perspectiva da Filosofia.
Esse era um risco que os positivistas não que-
riam correr. Desse modo,
shutterstock

AS ESCOLAS HISTÓRICAS: O POSITIVISMO


67

O Positivismo pregava a cientifização do pensamento e do estudo hu-


mano, visando a obtenção de resultados claros, objetivos e completa-
mente corretos. Os seguidores desse movimento acreditavam num ide-
al de neutralidade, isto é, na separação entre o pesquisador/autor e sua
obra: esta, em vez de mostrar as opiniões e julgamentos de seu criador,
retrataria de forma neutra e clara uma dada realidade a partir de seus
fatos, mas sem os analisar (BIRARDI et al. s/d, p.2).

Se os fatos não poderiam ser analisados, os positivistas acreditavam que o pas-


sado se explicava por si mesmo, “necessitando apenas seu estudioso recuperá-lo
e colocá-lo à mostra” (BIRARDI et al. s/d, p.2).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Essa discussão levantada permite observarmos que uma das características


da História Positivista, também denominada de Metódica – porque foi a pri-
meira vertente historiográfica a elaborar um método científico de pesquisa em
História – era a objetividade no estudo dos fatos.

Além da influência causada pelos princípios iluministas no século XVIII, a


História Positivista surgiu a partir das ideias do filósofo Auguste Comte, as
quais repercutiram não apenas na História, mas em diversas áreas do co-
nhecimento. Saiba mais sobre Comte lendo o extrato de texto relacionado.
“O verdadeiro fundador do pensamento positivista nasceu na França, na ci-
dade de Montpelier, em 1798. Isidore Auguste Marie François Xavier Comte
desde cedo revelou grande capacidade intelectual e prodigiosa memória.
De família monarquista e católica, suas influências tendiam para a tradição
do Antigo Regime francês. Nascido nove anos após a revolução francesa,
recebeu na escola uma formação nos moldes da tradição revolucionária
burguesa. Alimentando-se da filosofia iluminista, aproximou-se dos estudos
da ciência newtoniana. A partir daí inicia-se seu período de idealização dos
princípios positivistas. Sua primeira obra, ‘Plano dos trabalhos científicos
necessários para reorganizar a sociedade’, seguida dois anos mais tarde por
‘Sistema de política positiva,’ marca o início de seu pensamento positivista
no meio acadêmico”.
Disponível em: <http://www.uninove.br/PDFs/Mestrados/Educa%-
C3%A7%C3%A3o/eventos/PA%2016.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2014.

As Características Gerais da Escola Positivista


III

Essa objetividade diminuía o papel do historiador. Essa era outra característica


marcante na Escola Positivista. Coerente com o que já apontamos, a interpreta-
ção proferida por esse profissional poderia mudar o sentido do passado, pois era
subjetiva. Desse modo, “a escola metódica despreza o papel essencial das ques-
tões colocadas pelo historiador às suas fontes e louva o apagamento do mesmo
historiador por detrás dos textos” (BOURDÉ; MARTIN, 2003, p.102).
Logo, o papel do historiador se limitava ao levantamento de documentos
que pudessem comprovar os fatos, bem como à organização cronológica desses
fatos que expressavam características tão diversas.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Deste modo a construção histórica deve fazer-se com uma massa inco-
erente de pequeninos fatos, uma espécie de poeira de conhecimentos
pormenorizados. Esta massa se constitui de materiais heterogêneos,
que diferem por seu objeto, sua situação, seu grau de generalidade ou
de certeza (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p.150).

A busca incessante por documentos foi outra característica da História posi-


tivista, pois, segundo essa perspectiva, os fatos históricos apresentavam uma
natureza bastante díspar e, ainda, muitos demonstravam ser pouco prováveis
e até mesmo suspeitos. Para empregá-los, portanto, à produção histórica, era
necessário verificar como apareciam em diversos documentos, já que “a histó-
ria não passa da aplicação de documentos” (LANGLOIS; SEIGNOBOS apud
BOURDÉ; MARTIN, 2003, p.102).
Outra característica da História Metódica, segundo o historiador analista
Marc Bloch (2001), era o costume de trabalhar com o tempo cristalizado, ou seja,
depois de o fato histórico ter completado vários anos.
Para os positivistas, esse método diminuía a margem de erro, já que o his-
toriador, distante temporalmente do fato, estudaria o passado por ele mesmo e
não conforme as perturbações de seu presente. Para Bloch (2001), no entanto,
essa é uma ideia ilusória, pois o pesquisador não consegue se despir de suas
concepções de vida ao analisar um fato. Dessa maneira, quando o historiador
se interessa por um fato, ele leva consigo toda sua bagagem intelectual e suas
experiências de vida. As perguntas que ele lança aos documentos, como forma
de estudar o fato, partem da sua realidade.

AS ESCOLAS HISTÓRICAS: O POSITIVISMO


69

Esse entendimento sobre o tempo,


demonstrado pelos analistas – em referên-
cia aos intelectuais da Escola dos Annales
– fomentou duras críticas contra os positi-
vistas, pois acreditavam que História não era
uma ciência do passado e, além disso, todo
fato histórico já foi um dia contemporâneo.
Diz-se algumas vezes: “A his-
tória é a ciência do passado”. É
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

[no meu modo de ver] falar er-


rado. Pois, em primeiro lugar, a
própria ideia de que o passado, ©shutterstock

enquanto tal, possa ser objeto


de ciência é absurda. Como, sem uma decantação prévia, poderíamos
fazer, de fenômenos que não têm outra característica comum a não ser
não terem sido contemporâneos, matéria de um conhecimento racio-
nal? Será possível imaginar, em contrapartida, uma ciência total do
Universo, em seu estado presente? (BLOCH, 2001, p.52).

Mais uma característica da História Positivista revelou-se nos objetos eleitos.


Em suas pesquisas, os metódicos preferiam temáticas ligadas ao Estado, como
os feitos dos reis ou dos monarcas. Em face disso, a História Positivista, além de
Metódica, também é conhecida como História Política.
A história, tal como é entendida no século XIX – a história organizada
no quadro dos Estados, como quer Ranke – é, antes de tudo, uma his-
tória política: a dos reinados, guerras, negociações diplomáticas, das
perturbações causadas pelas revoluções na ordem dos governos. (GLÉ-
NISSON, 1977, p.22).

Além das características destacadas – como a objetividade, a busca por documen-


tos, a redução do papel do historiador, o tempo cristalizado e ênfase em assuntos
ligados ao político – vários outros sintomas podem ser diagnosticadas no inte-
rior da Escola Positivista e em seus métodos de análise histórica.

As Características Gerais da Escola Positivista


III

LANGLOIS E SEIGNOBOS E O MÉTODO DE PESQUISA


EM HISTÓRIA

Na obra Introdução aos Estudos Históricos, produzida no final do século XIX,


Langlois e Seignobos definiram as regras metodológicas do trabalho do historia-
dor. Dessa maneira, a obra em questão é considerada um dos primeiros manuais
a descrever o modo como se deve processar a pesquisa e produção em História.
Conforme Faustino e Gasparin (2011, p.162), os franceses Langlois e Seignobos,
na obra Introdução aos Estudos Históricos, foram os autores que melhor especi-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ficaram “o método científico aplicado ao estudo da história”.
Como vimos, a época em que os historiadores positivistas desenvolveram suas
ideias foi marcada pela luta da História para se transformar em ciência. Segundo essa
constante, a História precisava de métodos científicos, os quais pudessem ser verifi-
cados e comprovados. Esse era o único caminho para se distanciar das concepções
metafísicas e filosóficas, que deram a ela o estigma de construção literária. Assim,
Os historiadores do século XIX deveriam associar, com um desprezo
condescendente, o qualitativo de ‘literária’ a esta forma de história,
opondo-se à nova forma, que se empenhavam em definir: a forma cien-
tífica (GLÉNISSON 1977, p.20).

Introdução aos Estudos Históricos,


portanto, simboliza esse esforço que
já havia sido iniciado por Ranke.
Logo no início da obra, notar-se-á
a demonstração da clara intenção
dos historiadores do século XIX
de não “apresentar um resumo
da história universal”, tampouco
“acrescer de um número a já tão
abundante literatura da chamada
Filosofia da História”, mas sim mos-
trar “um ensaio sobre o método das
ciências históricas” (LANGLOIS;
©shutterstock
SEIGNOBOS, 1946, p.5-6).

AS ESCOLAS HISTÓRICAS: O POSITIVISMO


71

Para esses historiadores do século XIX, como Langlois e Seignobos, era


extremamente necessário refletir sobre os métodos da construção histórica, em
decorrência da diferença que existia entre a História e as demais ciências já con-
solidadas, como as exatas.
Por outras palavras, os processos racionais, que nos levam a atingir o
conhecimento histórico, são tão diferentes dos das demais ciências que
devemos conhecer-lhes as peculiaridades, para fugirmos à tentação de
aplicar à história os métodos das ciências já constituídas (LANGLOIS;
SEIGNOBOS, 1946, p.10).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Na realidade, o que nossos autores em questão almejaram foi o reconhecimento


científico e moderno da História. Para isso, ela precisava substituir o status de
disciplina literária e metafísica pelo de ciência empírica. No entanto, as ques-
tões pensadas por Langlois e Seignobos não tiveram como proposta redigir um
tratado de metodologia, mas fazer um trabalho que mostrasse, não apenas aos
especialistas, mas, sobretudo, ao público interessado, o modo como se produ-
zia o conhecimento histórico.
Nesse sentido, Introdução aos Estudos Históricos começou e a ser redigida
entre 1896 e 1897 e partiu de uma necessidade acadêmica: “informar os novos
estudantes da Sorbonne do que são e do que devem ser os estudos históricos”
(LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p.12).
Para esses dois historiadores, de maneira sintética, os estudos históricos
constituem-se por meio da análise de documentos.
A história se faz com documentos. Documentos são os traços que dei-
xaram os pensamentos e os atos dos homens do passado. Entre os pen-
samentos e os atos dos homens, poucos há que deixam traços visíveis
e estes, quando se produzem, raramente perduram: basta um aciden-
te para os apagar. Ora, qualquer pensamento ou ato que não deixou
traços, diretos ou indiretos, ou cujos traços visíveis desapareceram,
está perdido para a história: é como se nunca houvesse existido. Por
falta de documentos, a história de enormes períodos do passado da
humanidade ficará para sempre desconhecida. Porque nada supre os
documentos: onde não há documentos não há história (LANGLOIS;
SEIGNOBOS, 1946, p.15).

Langlois e Seignobos e o Método de Pesquisa em História


III

O grande legado dos positivistas para as


gerações de historiadores posteriores foi o apon-
tamento de que a falta de documentos impede
a produção histórica. Como vimos na primeira
unidade, os documentos válidos para a História
Positivista eram apenas os escritos e, preferencial-
mente, oficiais. Consequentemente, a explicação
que surgia da análise desses documentos era polí-
tica, pois provinha de fontes oficiais, as quais
©wikipedia

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tratavam dos eventos ligados ao Estado.
A história, tal como é entendida no século XIX – a história organizada
no quadro dos Estados, como a quer Ranke – é, antes de tudo, uma
história política: a dos reinados, guerras, negociações diplomáticas, das
perturbações causadas pelas revoluções na ordem dos governos (GLÉ-
NISSON 1977, p.22).

E o estudo desses documentos ligados ao político não deveria envolver a interpre-


tação, pois, ao contrário, os eventos – relatados nos documentos – poderiam ser
deturpados. Dessa maneira, o historiador devia manter neutralidade em relação
às fontes, bem como realizar uma crítica rígida a elas, mediante a incorporação
de métodos rigorosos na pesquisa histórica.

A CRÍTICA DOS DOCUMENTOS E O RIGOR


METODOLÓGICO

Como o conhecimento histórico é um conhecimento indireto e não observável,


segundo os positivistas, é fundamental o historiador saber estudar os vestígios
dos homens do passado contidos nos documentos, pois:
...para sabermos a relação que prende o documento ao fato, devemos
reconstituir toda a série das causas intermediárias que produziram o
documento. Devemos reelaborar mentalmente toda a cadeia dos atos
praticados pelo autor do documento, a partir do fato observado, por

AS ESCOLAS HISTÓRICAS: O POSITIVISMO


73

ele, até ao manuscrito (ou ao impresso), que temos hoje diante dos
olhos. Esta cadeia, tomamo-la em sentido inverso, começando pela ins-
peção do manuscrito (ou do impresso), para chegarmos ao fato antigo.
Tais são o fim e a marcha da análise crítica (LANGLOIS; SEIGNOBOS,
1946, p.46).

Essa inspeção a que Langlois e Seignobos se referem dizia respeito à crítica externa
aos documentos, a qual consistia nos trabalhos preliminares que o historiador
estabelecia, após ter selecionado os vestígios do passado a que pretendia estu-
dar. Tais trabalhos se referiam ao estudo “da escrita, da língua, das formas das
fontes, etc”, bem como na análise de procedência para verificar o local de origem
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

dos documentos, seu autor, sua data de produção, enfim seu valor (LANGLOIS;
SEIGNOBOS, 1946, p.46). E síntese, a crítica externa consistia no levantamento
das características físicas do documento.
Selecionados os documentos, feita a crítica externa acerca deles e, também,
a análise de procedência, o terceiro passo da construção do conhecimento histó-
rico, segundo os historiadores positivistas, era a crítica interna dos documentos,
a qual tinha “por objeto discernir nos documentos o que pode ser aceito como
verdadeiro” (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p.100).

Como já ressaltamos, o contexto histórico em que esses dois historiadores


positivistas desenvolvem suas ideias foi marcado pelo desejo de transfor-
mar a história em uma ciência objetiva e verdadeira, baseada na observação
e experimentação e não em concepções literárias e filosóficas, tidas como
subjetivas e pouco confiáveis.

Em síntese, a crítica interna consistia na análise do conteúdo do documento para


determinar o pensamento real do autor, assim como na análise das condições
em que o documento tinha sido produzido para saber se a informação contida
nele era verdadeira (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946).
O processo de crítica interna se referia, portanto, ao levantamento de ques-
tionamentos e dúvidas que tinham como propósito interpretar, de forma coerente

A Crítica dos Documentos e o Rigor Metodológico


III

e objetiva, os documentos, para determinar o que o autor desejou dizer de fato


e, por outro lado, controlar suas afirmações.
Nessa direção, para Langlois e Seignobos (1946), a interpretação dos docu-
mentos ocorria em dois sentidos: o real e o literal. O sentido real, como já
explicitamos, detectava a informação contida no documento, ou seja, sua men-
sagem real. O sentido literal, por sua vez, consistia em uma operação linguística
associada à Filologia, a qual tinha por objetivo conhecer o sentido das palavras
do documento, “bem como das expressões peculiares correntes na época em que
o texto foi escrito” (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p.104-105), isso porque a

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
língua demonstra significações que variam de acordo com o tempo.
A língua se transforma por um envolver contínuo. Cada época tem sua
língua própria que deve ser tratada como um sistema especial de sinais
(LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p.104).

Se a língua é flutuante, para ler um documento, o historiador positivista pre-


cisava saber a língua da época em que esse documento havia sido produzido.
Precisava também “conhecer a língua do país em que ele foi escrito” e, ainda,
estudar a língua do autor, ou seja, o estilo individual demonstrado em sua escrita
(LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p.105).
Outra questão crucial à interpretação do documento referia-se ao contexto. Para
os metódicos, as palavras e frases não deveriam ser analisadas isoladamente, mas
de acordo com o período em que haviam sido produzidas. Esse pressuposto, levan-
tado por Langlois e Seignobos (1946), continua
sendo importantíssimo na produção histórica,
já que uma palavra interpretada fora de seu
contexto poderá conduzir o historiador ao erro.
Em suma, como o historiador – em com-
paração com outros profissionais, como o
químico – não tem, segundo os metódicos,
a oportunidade de observar diretamente os
fatos, precisa saber estudar os documentos
que expressam sinais sobre esses fatos. Para
©shutterstock
isso, a crítica em relação aos documentos tor-
na-se fundamental.

AS ESCOLAS HISTÓRICAS: O POSITIVISMO


75

O MODO COMO SE PROCESSA O CONHECIMENTO


HISTÓRICO: AS OPERAÇÕES SINTÉTICAS

A crítica aos documentos, segundo Langlois e Seignobos (1946), fornecia apenas


dados isolados. Para completá-los, era preciso submetê-los às chamadas operações
sintéticas. A partir da crítica dos documentos, bem como das operações sintéticas
a eles voltadas, seria possível proceder à construção do conhecimento histórico.
Em síntese, as operações sintéticas dirigiam-se aos fatos históricos e revela-
vam-se nas seguintes observações:
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

1ª) Depois do historiador ter submetido a uma análise crítica os materiais


de pesquisa que pretendia trabalhar, era preciso imaginar os fatos, contidos nos
documentos selecionados, conforme os fatos atuais que julgavam análogos. O
objetivo era “obter a imagem mais próxima da que teria sido gerada na observa-
ção direta do fato passado” (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p.159).
2ª) Na sequência, era necessário agrupar os fatos imaginados em quadros de
modo a classificá-los em sessões, segundo a natureza das suas condições. Nesta
distinção, a aplicação de questionários poderia favorecer o trabalho. Conforme
Langlois e Seignobos (1946), os fatos históricos poderiam ser classificados nas
seguintes categorias e sessões:
a) Costumes Materiais: abarcavam a vida material (alimentação, vestuário,
habitação e mobiliário) e a vida privada (higiene, cuidados com
o corpo, cerimônias sociais e divertimentos).
b) Hábitos Intelectuais: contemplavam a língua falada, as
artes plásticas e de expressão (como a música e dança), as
ciências, a Filosofia e as crenças religiosas.
c) Costumes econômicos: tratavam
da produção (como cultivo do solo e
criação de animais), da transformação,
dos transportes e da indústria, do comér-
cio e da repartição (propriedades, produtos
e contratos).
d) Instituições Sociais: abordavam
a família (constituição, autoridade e ©shutterstock

O Modo como se Processa o Conhecimento Histórico: As Operações Sintéticas


III

condição de seus membros), a educação e as classes sociais.


e) Instituições públicas: contemplavam as instituições políticas, as institui-
ções eclesiásticas e as instituições internacionais.
3ª) Após ter agrupado os fatos em quadros, e classificado-os em sessões,
era preciso preencher algumas lacunas que ficavam entre os fatos por meio de
raciocínio construtivo.
O raciocínio construtivo, segundo Langlois e Seignobos (1946), era uma
operação responsável por graves erros, pois envolvia deduções. Em decorrência
disso, sua aplicação na construção histórica deveria envolver severas precau-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ções, tais como:
a) Entendimento de que a análise de documento e o raciocínio construtivo
eram coisas diferentes.
b) Os fatos extraídos do exame dos documentos não eram iguais aos resul-
tados de um raciocínio. O historiador não devia misturar essas duas faculdades.
c) O raciocínio não devia ser inconsciente.
d) O raciocínio não devia deixar qualquer sombra de dúvida.
4ª) A partir das operações citadas – imaginação, classificação e formação
de um raciocínio acerca dos fatos – sobressaía a quarta e última operação, que
buscava aglutinar todo o trabalho anteriormente executado em fórmulas, afim
de destacar-lhe as características gerais e suas relações. Esse processo final “nos
conduz às conclusões últimas da história e coroa
a construção histórica do ponto de vista cientí-
fico” (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p.160).
Apesar de a História seguir a mesma
orientação das outras ciências, na elabora-
ção de perguntas e de respostas metódicas,
em relação ao material evidenciado, ela, con-
tudo, por ser uma ciência distinta da Biologia
ou Matemática, por exemplo, requeria um
método próprio, o qual se relacionava ao fato
estudado.

©shutterstock

AS ESCOLAS HISTÓRICAS: O POSITIVISMO


77

A análise histórica não é mais real que o ato de ver os fatos históricos;
é um simples processo abstrato, uma operação puramente intelectu-
al. A análise de um documento consiste em procurar mentalmente as
informações nele contidas, para criticá-las uma por uma. A análise de
um fato consiste em distinguir mentalmente os diferentes pormenores
dêsse fato (episódios de um acontecimento, característicos de uma ins-
tituição) para fixar sucessivamente a atenção em cada um dêstes por-
menores; dizemos que esta operação consiste em examinar os diversos
aspectos de um fato (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p.152).

Como se nota, para os positivistas, a História era uma ciência bastante complexa
e, por isso, exigia uma série de operações metodológicas particulares. A partir
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

dessas operações, era possível chegar a um conhecimento histórico científico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta terceira unidade, discutimos o contexto em que surgiu a escola histo-


riográfica positivista, dando ênfase a seus princípios e características gerais.
Apresentamos também as regras metodológicas elaboradas pelos positivistas.
Vimos que a História Positivista se despontou na passagem do século XVIII
e XIX, período marcado por uma série de transformações econômicas, sociais e
científicas, as quais modificaram diversos campos do conhecimento. A História
não ficou de fora dessa conjuntura e, para isso, foi buscar inspiração nas ideias
desenvolvidas pelos iluministas, bem como pelo filósofo Comte, no decorrer
do século XVIII.
Essa inspiração motivou historiadores do século XIX a elaborarem modos
diferenciados para pesquisa histórica, amparados não mais no entendimento
filosófico e metafísico, mas na observação e na comprovação dos fatos obser-
vados. A maior satisfação da História, nesse momento, era tornar-se científica.
Nas duas próximas unidades, continuaremos nossa abordagem sobre as teo-
rias da História.

Considerações Finais
1.  Produza um texto dissertativo sobre o surgimento do paradigma historiográ-
fico do Positivismo, chamando a atenção para a crítica que os metódicos fizeram
em relação à Filosofia da história.
2. Compreendido o conceito de Positivismo, agora, é preciso caracterizá-lo. Assim,
de acordo com o segundo tópico desta unidade, enumere as características
gerais da Escola Positivista.
3. No penúltimo tópico desta unidade, debatemos o modo como os positivistas
estudam os documentos. Segundo esse debate, descreva a crítica efetuada
pelos positivistas em relação aos documentos.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Para aprofundamento de nossos estudos, observe a entrevista que realizamos com


a professora Me. Priscilla Campiolo Manesco Paixão sobre a temática do Positivismo.
Em que momento histórico surgiu o Positivismo?
Professora Priscilla: O Positivismo surgiu no decorrer da segunda metade do século
XIX, em um momento histórico em que a sociedade europeia buscava seu próprio
desenvolvimento, através das grandes descobertas científicas e tecnológicas. Essa
característica marcou a época e se espalhou para o campo dos estudos humanos,
como a História.
O que o Positivismo defendia?
Professora Priscilla: O Positivismo pregava a cientifização do pensamento e do estu-
do humano, visando à obtenção de resultados claros, objetivos, considerados como
corretos.
No que os historiadores positivistas acreditavam?
Professora Priscilla: Os seguidores desse movimento acreditavam em um ideal de
neutralidade, isto é, na separação entre o autor e sua obra, cujo conteúdo não de-
monstraria as opiniões e julgamentos de seu criador, mas somente retrataria de
forma neutra e clara uma dada realidade a partir de seus fatos. Os positivistas, des-
se modo, pensavam que o conhecimento se explicava por si mesmo, necessitando
apenas seu estudioso recuperá-lo e colocá-lo à mostra.
Quais foram os principais representantes desta corrente de pensamento?
Professora Priscilla: Na Filosofia, tivemos Auguste Comte; na Sociologia, Émile
Durkheim; na História, Fustel de Coulanges, Charles V. Langlois e Charles Seignobos.
Como a perspectiva do Positivismo visualizava o papel do historiador?
Professora Priscilla: Por ter se despertado em um contexto marcado pela tecnologia
e cientificidade, o Positivismo reduziu o papel desse profissional, de crítico e reflexi-
vo, para um mero coletor de informações e de fatos presentes nos documentos. O
saber histórico, nessa perspectiva, ocorre sem o esforço interpretativo do historia-
dor, uma vez que “Os fatos históricos falam por si mesmos”, como dizia o historiador
francês Coulanges.

Material Complementar
Professora Me. Giselle Rodrigues

AS ESCOLAS HISTÓRICAS –

IV
UNIDADE
O MARXISMO

Objetivos de Aprendizagem
■ Discutir o desenvolvimento do paradigma historiográfico do
Marxismo, destacando sua origem e características gerais.
■ Apresentar quem foi Karl Marx e quais foram suas contribuições ao
conhecimento histórico.
■ Apresentar o materialismo histórico, discutindo sua aplicação à
produção historiográfica.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ Os princípios da Escola Marxista e suas características gerais
■ Quem foi Karl Marx
■ O materialismo histórico e a produção historiográfica
83

INTRODUÇÃO

O paradigma histórico do Marxismo, também conhecido como materialismo


histórico, desenvolveu-se a partir dos escritos elaborados pelo alemão Karl Marx
(1818-1883), cujos pressupostos diferenciaram-se das concepções filosóficas e
históricas predominantes.
Ao formular suas ideias, Marx desejava criar uma interpretação diferen-
ciada sobre as sociedades humanas, desprendida das antigas ideias demonstradas
pelos primeiros socialistas, denominados por ele de “utópicos”, como Saint-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Simon (1760-1825) e Robert Owen (1775-1885), cujas ideias não especificaram


as estruturas da sociedade, apontaram apenas o modo como deveriam ser: feliz,
harmônica e virtuosa (VINCENT, 1995).
Marx também buscou se desprender das concepções teóricas existentes em
sua contemporaneidade, em especial, dos princípios hegelianos e positivistas.
Muito embora tenha sido formado dentro da concepção idealista de história, ela-
borada por Hegel (1770-1811), Marx não concordava que as estruturas sociais
eram movidas pelas ideias. Do mesmo modo, não concordava com as prepo-
sições defendidas pelos positivistas, que diziam que as decisões políticas eram
responsáveis pelas transformações econômicas, sociais e ideológicas.
Esse pensamento diferenciado e discordante, apresentado por Marx, foi for-
mulado a partir do contexto socioeconômico revelado após as primeiras décadas
do século XIX, quando o teórico tornou-se um adulto e passou a refletir sobre
as problemáticas da sua época de maneira madura.
Em colaboração com o filósofo e teórico alemão Friedrich Engels (1820-1895),
Marx ampliou seu horizonte intelectual, escrevendo diversas obras e criando o
que muitos estudiosos denominam de Socialismo Científico ou Marxismo.
Na produção historiográfica, o Marxismo causou uma “revolução”, por
apresentar outra perspectiva sobre as transformações históricas, divergente da
historiografia tradicional, a qual explicava os acontecimentos segundo uma
ótica política, baseada nos feitos dos reis e rainhas, dos governantes e monarcas.
O Marxismo, dessa maneira, visualizou os acontecimentos humanos e as
transformações históricas sob um ponto de vista socioeconômico, formulado a
partir das atividades realizadas pelos homens, e relações estabelecidas por eles,

Introdução
IV

na produção de bens materiais e de consumo.


Nesta unidade, procuraremos refletir sobre essas questões. Desse modo, dis-
cutiremos o surgimento da Escola Marxista e suas características gerais, bem
como conheceremos melhor quem foi Karl Marx e quais foram suas contribui-
ções à escrita da História.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
OS PRINCÍPIOS DA ESCOLA MARXISTA E SUAS
CARACTERÍSTICAS GERAIS

As raízes da Escola Marxista devem ser buscadas no pensamento Socialista, cujo


princípio remonta a certas concepções desenvolvidas no início da modernidade,
como as apresentadas por Thomas More na obra Utopia (1516), bem como no
período posterior à Revolução Francesa, que legou ao mundo ideias inovado-
ras. Nesse sentido,
A revolução foi o cadinho a partir do qual o socialismo derivou tanto
a própria palavra socialismo como os movimentos sociais que aderi-
ram conscientemente à ideologia.
Todos esses fenômenos têm suas
raízes nos períodos da revolução
e pós-revolução. As tentativas
vigorosas de estender a demo-
cracia, os direitos, a justiça e a
igualdade à ação social e política
radical (VINCENT, 1995, p.97).

Contudo, como veremos no decorrer da expo-


sição, as noções apresentadas pela Escola
Marxista – que surgiram graças aos escri-
tos do filósofo, teórico, político e economista
alemão Karl Marx (1818-1883) – não repre-
sentaram uma simples cópia do pensamento
socialista anterior ao século XIX. Nesse sen-
tido, foram inovadoras, pois “levaram a uma
©wikipedia

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – O MARXISMO


85

total modificação do caminho que vinha sendo percorrido pelas idéias socialis-
tas” (SPINDEL, 1986, p.29).
Os trabalhos desenvolvidos por Marx foram feitos no século XIX, sobretudo,
a partir de 1840, em um contexto europeu marcado por profundas transforma-
ções de ordem econômica, social, científica e tecnológica.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Conforme o historiador Eric Hobsbawm, as transformações da segunda me-


tade do século XIX decorreram da chamada “Segunda Revolução Industrial”.
Tal Revolução foi marcada pela descoberta e utilização de novas fontes de
energia (como o petróleo e a eletricidade), por uma forma revolucionária de
transportes (ferrovias e transatlânticos metálicos, movidos a vapor), avanços
na indústria química e nas comunicações (telégrafo elétrico).
Fonte: HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Por escrever em um período da história bastante movimentado, o pensamento


de Marx – como o de outros intelectuais modernos, a exemplo de Leopold Von
Ranke e Augusto Comte, que estudamos na unidade anterior – expressava os
dilemas conjunturais da sua época. Assim,
Analisando as teorias de cada um desses pensadores, podemos perce-
ber que eles estavam tentando compreender a sociedade de sua época,
e para isso, elaboraram e utilizaram conceitos e teorias diferentes. De
alguma maneira todos estavam interessados em pensar a relação entre
indivíduos e sociedade no mundo moderno, porém, as explicações in-
dicam justamente a complexidade dos problemas surgidos pelas novas
condições de vida do mundo moderno e as diferentes possibilidades de
interpretação dessas novas condições. Marx, por sua vez, interpretava
e procurava explicar as relações sociais de sua época através do fator
econômico (ALVES et al. s/d, p.2).

Especificamente, o pensamento de Marx ligava-se a proposições que contraria-


vam o pensamento teórico dominante, como o hegeliano e o rankeano. Desse
modo, conforme Priori e Martin (2001, p.93):

Os Princípios da Escola Marxista e suas Características Gerais


IV

Sua influência foi decisiva para ampliar o campo de novos horizontes


de pensamento para além das concepções existentes, como o positi-
vismo de século XIX e a concepção idealista da história, oriunda do
pensamento Hegeliano.

É certo que o Positivismo, a partir dos pressupostos de Leopold Von Ranke, foi
pertinente às ciências humanas, por ter sido a primeira escola a criar uma meto-
dologia de pesquisa em História, ao introduzir regras, métodos e conceitos ao
trabalho do historiador. Para Eric Hobsbawm (1998), essas realizações não foram
insignificantes, porém, foram limitadas, já que
os positivistas propuseram criar uma linha

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
de evolução para explicar os acontecimen-
tos humanos e transformações históricas nos
moldes das ciências exatas.
O pensamento hegeliano, por sua vez,
partia do princípio de que as ideias que
moviam a realidade eram formuladas pelo
espírito humano, o qual governava o mundo
e motivava transformações na natureza das
coisas, ou seja, na ordem social, econômica,
política e cultural.
©shutterstock

Para melhor compreender o pensamento do filósofo alemão Hegel, Georg


Wilhelm Friedrich (1770-1831), sugerimos a leitura do texto disponibilizado
no link de pesquisa abaixo relacionado. Em síntese, o texto retoma a ques-
tão idealista de história, ou seja, a discussão sobre as transformações histó-
ricas e da natureza a partir da perspectiva hegeliana, a qual supunha que as
ideias humanas constituíam o pensamento absoluto do qual derivava, ou
formulava, a realidade e as leis do mundo. O texto enfatiza que essa pers-
pectiva de história foi transformada, e até mesmo invertida, com as formula-
ções de Marx sobre a história que colocaram a dialética de Hegel sobre seus
próprios pés.
Disponível em: <http://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbe-
tes/h/hegel.htm>. Acesso em: 19 mar. 2014.

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – O MARXISMO


87

Karl Marx, apesar de ter sido formado na escola hegeliana, opostamente, acre-
ditava que as ideias que moviam e transformavam a realidade, como políticas e
jurídicas, não partiam do espírito humano, mas da atividade prática do homem
na produção de bens materiais e de consumo. Assim, seu pensamento contra-
riava o de Hegel, por supor que as transformações não aconteciam de cima para
baixo, mas de baixo para cima, ou seja, na base econômica e social.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

©shutterstock

Da mesma forma, em oposição à Escola do Positivismo, também não supunha


que a realidade era dada pelo viés político. Para Marx, inclusive, este campo havia
sido criado e se transformava em decorrência das condições econômicas e sociais.
É possível supormos que na época em que Marx pensou essas questões, que
contrariavam concepções imperantes, tenha sido bastante criticado e até mesmo
não levado a sério, tanto que, certamente, nem imaginava a repercussão de suas

Os Princípios da Escola Marxista e suas Características Gerais


IV

ideias posteriormente à sua morte. É nesse sentido que Eric Hobsbawm (1998)
discute, como veremos mais adiante, que muitas interpretações que são atribu-
ídas ao marxismo não se referem ao pensamento real de Marx.
Podemos ainda supor que, no momento histórico em que Marx propôs que
a mudança da ordem econômica, política e social, do contexto do século XIX,
dependia das transformações das relações de trabalho, possivelmente, tenha
causado um choque social. Por um lado, a burguesia industrial, a qual detinha
os meios de produção (capitais, máquinas, fontes de energia e matérias-primas)
seria prejudicada. Do outro lado, os operários, que tinham em posse apenas a

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
força de trabalho, possivelmente, visualizaram essas novas ideias com descon-
fiança, pois estavam ainda se acostumando com o processo industrial, o qual já
havia modificado seus modos de vida, para alguns autores de maneira positiva
e outros de maneira negativa.

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – O MARXISMO


89

Para os historiadores de tendência Marxista, o processo industrial, instituído a partir


do século XVIIII na Grã-Bretanha, impôs uma racionalidade econômica a qual trans-
formou drasticamente o estilo de vida dos trabalhadores. Antes da industrialização,
a experiência e sabedoria dos homens eram valorizadas. Esses produziam de manei-
ra familiar nas propriedades agrícolas ou oficinas artesanais de acordo com o tempo
da natureza (como estações do ano) e ainda tinham a terça-feira como marco para
o início do trabalho semanal. Após a industrialização, passaram a produzir em um
espaço rigorosamente delimitado, a fábrica, cuja regulamentação impunha a regu-
laridade, a rotina e a disciplina do trabalho; não considerando, desse modo, as expe-
riências do saber fazer dos homens, quanto menos seus costumes. Em síntese, o tra-
balho industrial – e principalmente o trabalho em uma fábrica mecanizada – impõe
uma regularidade, uma rotina e uma monotonia totalmente diferente dos ritmos
pré-industriais de trabalho – que dependem da variação das estações e do tem-
po, da multiplicidade de tarefas em ocupações não afetadas pela divisão racional
do trabalho, pelos caprichos de outros seres humanos ou de animais, e até mesmo
pelo desejo de se divertir em vez de trabalhar. As coisas se passavam assim mesmo
no trabalho remunerado qualificado pré-industrial, como o dos artesãos jornaleiros,
cujo gosto incorrigível de só começar a semana de trabalho na terça-feira (‘Santa
Segunda-Feira’) levava seus patrões ao desespero. A indústria tráz consigo a tirania
do relógio, a máquina que regula o tempo, e a complexa e cuidadosamente prevista
interação dos processos: a mensuração da vida não em estações [...] ou mesmo em
semanas e dias, mas em minutos, e acima de tudo, uma regularidade mecanizada
de trabalho que se choca não só com a tradição, mas também com todas as inclina-
ções de uma população ainda não condicionada para ela. E como os homens não
assimilavam espontaneamente esses novos costumes, tinham de ser forçados – por
disciplina e multas, por leis [...] e por salários tão baixos que somente a labuta inces-
sante e ininterrupta os fazia ganhar o suficiente para sobreviver.
Fonte: HOBSBAWM, Eric. Da Revolução Industrial Inglesa ao Imperialismo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1981, p.80.
IV

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
©wikipedia
Van Gogh. Os comedores de Batatas, 1885.

As ideias de Marx, portanto, foram pensadas para um momento histórico peculiar,


no qual as concepções dominantes, como as hegelianas, não mais concordavam
com a realidade prática do século XIX, marcada por intensas transformações
industriais e científicas, as quais transformaram a vida de milhões de trabalhadores.
Muitas vezes, as ideias de Marx são confundidas com o Socialismo, dando
a sensação de que o Marxismo criou o Socialismo. Entretanto, isso é um erro,
pois a ideologia do Socialismo surgiu muito antes da elaboração das concepções
marxistas, sem contar que existem diversos tipos de Socialismo.
O primeiro ponto, que já deve ser óbvio, é que o socialismo não é uma
coisa única. Mais exatamente, há socialismos que com freqüência se
sobrepõem a outras ideologias. Não existe nenhuma doutrina prístina.
Deve-se ser cauteloso ao fazer essa junção, visto que a posição domi-
nante do marxismo na história do movimento levou muitas vezes a
uma interpretação do socialismo através da ótica marxista. O marxis-
mo não é o verdadeiro socialismo, é uma variedade dentro do gênero
do socialismo (VINCENT, 1995, p.99).

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – O MARXISMO


91

A associação que muitas pessoas fazem do


Marxismo ao Socialismo, conforme expõe
Vincent (1995), deve-se à “posição domi-
nante do marxismo na história”, ou seja, ao
fato de as ideias de Marx terem se desta-
cado entre os diversos tipos de Socialismo.
O Socialismo a que Marx deu origem, con-
©brasilescola
tudo, é o Socialismo Revolucionário.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

O socialismo revolucionário é mais bem expresso por intermédio do


marxismo. O marxismo forneceu a mais poderosa e habilmente inte-
grada teoria do socialismo, fundamentada na combinação crítica de
materialismo iluminista, idealismo hegeliano, economia política liberal
e socialismo utópico (VINCENT, 1995, p.101).

Esse Socialismo Revolucionário se diferenciava dos demais tipos de Socialismo,


por interpretar as sociedades humanas sob uma ótica material e social. Desse
modo, diferente, por exemplo, do Socialismo Utópico, que não havia especificado
as estruturas sociais, o Revolucionário dizia que as condições materiais de pro-
dução representavam o alicerce social a partir do qual nasciam todas as demais
estruturas, como as políticas, as ideológicas e as jurídicas.
O principal aspecto distintivo do marxismo é a poderosa interpretação
histórica das sociedades. As condições materiais e econômicas de vida
formam a base de todas as estruturas políticas e sociais, assim como da
consciência humana. As relações de produção constituem os verdadei-
ros alicerces das superestruturas políticas e jurídicas (VINCENT, 1995,
p.101).

Por explicar o modo como as sociedades humanas se desenvolviam ao longo da


história, de maneira lógica e verificável, o Socialismo a que Marx deu origem
também ficou conhecido como Socialismo Científico. Na produção historio-
gráfica, ele surge com o nome de Materialismo Histórico, o qual discutiremos
detalhadamente no terceiro tópico desta unidade, após termos abordado quem
foi Karl Marx.

Os Princípios da Escola Marxista e suas Características Gerais


IV

Observe o quadro abaixo e conheça algumas das características apresentadas pelos


diversos Socialismos.

SOCIALISMO CARACTERÍSTICAS GERAIS PRINCIPAIS

REPRESENTANTES
Socialismo - Tinha como intenção descrever detalha- Saint Simon
Utópico damente a vida social, como os padrões de (1760-1825)
reprodução, a organização familiar, a alimen-
Charles Fourier
tação e o vestuário dos membros da comuni-
dade. (1772-1837)

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
- Exigia, também, “mudanças radicais na Robert Owen
economia e nas relações de propriedade da (1771-1858)
sociedade existente” (VINCENT, 1995, p.100).
Socialismo - Constitui uma poderosa Interpretação histó- Karl Marx
Revolucionário rica das sociedades. (1818-1883)
- Revela que as condições materiais e eco- Friedrich Engels
nômicas de produção formam a base das
(1820-1895)
sociedades e são responsáveis pela consti-
tuição das instituições jurídicas, políticas e
ideológicas.
- Aborda, também, o conceito de Luta de
Classes.
Socialismo - Repudia e reexamina o marxismo. Eduard
Reformista - Defende a democracia gradual e a reforma Bernstein
constitucional como caminhos para o socia- (1850-1932)
lismo, bem como a utilização do Estado no
Fabianos
alcance dos objetivos, tais como: igualdade e
justiça social. (final do século
XIX)
- Afirma que o sistema capitalismo é ruinoso,
ineficaz e não imoral. Socialismo Cros-
londita Britânico
(após 1950)

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – O MARXISMO


93

Socialismo - Está intimamente relacionado ao Socialismo Keir Hardie


Ético Reformista. Contudo, diverge-se em relação à (1850-1932)
questão ética e percepção de Estado.
J. Bruce Glasier
- Socialismo Ético supõe que o Estado não
(1859-1920)
deve simplesmente oferecer direitos mate-
riais e de segurança à população. Deve, ao R. H. Tawney
contrário, “facilitar a mudança moral através (1880-1962)
da educação. Contudo, a educação não pode
formar a moral dos homens” (VINCENT, 1995,
p.102)
Socialismo Pluralista - Pode ser encontrado em diversos formatos. Gustav Landauer
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

- Nele, o Estado não é considerado um meca- (1870-1919)


nismo à introdução do socialismo. Pierre-Jooseph
- Desse modo, o socialismo só pode aconte- Proudhon
cer a partir de uma pluralidade de grupos ou (1809-1865)
trabalhadores organizados.
- Esses pressupostos coincidem com a Escola
Anarquista.
Socialismo de Mer- - É um fenômeno bastante recente. Socialistas que se
cado - Origina-se graças ao fracasso do Socialismo agrupam a partir
Reformista no século XX. dos anos de 1980.
- Adeptos dessa escola acreditam que as
economias do sistema socialista não devem
conectar-se ao capitalismo, ou seja, podem se
desenvolver sozinhas, mediante cooperativas
de trabalhadores.

Fonte: a autora.

QUEM FOI KARL MARX?

Karl Marx foi um intelectual alemão que nasceu em 5 de maio de 1818, na cidade
de Trier, também denominada de Trèveris, localizada na capital da província
alemã do Reno – Renânia. Faleceu em 14 de março de 1883, em Londres.
Existem poucas informações sobre seu passado. Sabe-se apenas que seu pai,

Quem foi Karl Marx?


IV

Heinrich, era advogado e conselheiro de justiça. Em 1824, abandonou o juda-


ísmo e converteu-se ao protestantismo para poder ingressar em cargos públicos
da Renânia, normalmente proibidos aos judeus. Sua mãe, Enriqueta, era des-
cendente de rabinos, porém, não exerceu sobre a formação de Marx qualquer
influência intelectual (GIANNOTTI, 1996).
Marx era o mais velho dos meninos entre os nove filhos do casal Hienrich e
Enriqueta. Como seu pai, foi batizado ao protestantismo. Aos 17 anos de idade,
ingressou na Universidade de Bonn, com a intenção de estudar jurisprudência,
após concluir o curso secundário em Trier. Porém, em 1836, transferiu-se para

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
a Universidade de Berlim, onde se aproximou da Filosofia, a fim de estudar a
filosofia de Hegel.
Nesse momento, segundo Giannotti (1996, p.6), Marx se reaproximou de
sua amiga de infância, Jenny von Westphalen, e “ficou noivo dessa jovem de rara
beleza e alta posição social”. Porém, como a condição social entre os noivos era
bastante díspar, o casamento somente foi realizado oito anos mais tarde. Nota-se
que essa união foi amigável, apesar do casal ter sofrido muitas privações, prin-
cipalmente Jenny, que estava acostumada com fartura.
Se na vida pessoal Marx enfrentou dificuldades, principalmente financei-
ras, no campo profissional, nota-se que teve uma carreira bastante promissora.
Em 1841, defendeu sua tese de doutorado em Filosofia, relacionada ao pensa-
mento grego. Na sequência, começou a colaborar na elaboração de artigos na
revista Anedota, no jornal Gazeta Renan, do qual se tornou editor chefe em 1842.
Em 1844, Marx passou a atuar em Paris, nos Anais Germânico-Franceses.
Nessa revista, selou uma importante amizade e parceria intelectual com Friedrich
Engels (1820-1895). O início dessa amizade remonta a época em que Marx ainda
dirigia a Gazeta Renana.
O encontro entre os dois filósofos deu origem a uma série de obras e artigos,
pautados nos estudos filosóficos e científicos, relacionados aos grandes temas do
século XIX, os quais faziam referência à economia, à política e à sociedade. Porém,
antes de selar parceria com Engels, Marx produziu vários manuscritos, relativos à
filosofia de Hegel, dentre os quais se destacam: Introdução a uma Crítica da Filosofia
do Direito de Hegel (1843), A Questão Judaica (1843), Economia, Política e Filosofia
(1844), Manuscritos Econômicos-Filosóficos (1844) e Teses sobre Feuerbach (1845).

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – O MARXISMO


95

Conforme Giannotti (1996, p.9), as obras


Introdução a uma Crítica da Filosofia do
Direito de Hegel e A Questão Judaica cons-
tituem duas importantes obras, pois, nelas,
Marx discutiu a noção de crítica desenvol-
vida pelos novos pensadores hegelianos. Para
ele, apesar da Filosofia do Direito de Hegel
ter sido considerada por muitos teóricos de
sua época como “a mais pura expressão da
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Filosofia do Estado moderno”, deveria ser


vista com cautela.
Nesse sentido, segundo Marx, o Estado
moderno, contemporâneo ao século XIX,
©wikipedia

não deveria ser analisado a partir de uma


perspectiva metafísica, como apregoava os neo-hegelianos, mas “a partir da crí-
tica do Estado real que lhe serve de base” (GIANNOTTI, 1996, p.9-10). Tal crítica
não deveria se isolar no campo do discurso, deveria penetrar na realidade vivida,
motivando as forças sociais a buscarem uma transformação política.
Em síntese, a análise que Marx fazia do Estado do seu presente, o alemão, era
a de que esse estado “representava o passado dos povos modernos”. Segundo essa
perspectiva, o futuro desse Estado dependia do esforço geral das massas para se
emancipar dos laços que as alienavam (GIANNOTTI, 1996, p.10).
Em relação às obras elaboradas por Marx em parceria com Engels, desta-
camos a Sagrada Família (1845), a Ideologia Alemã (1846) e o Manifesto do
Partido Comunista (1848).
Sagrada Família aborda as repercussões políticas das discussões neo-he-
gelianas, as quais “preconizavam uma política liberal ‘elitista’, como se diria
atualmente”, ou seja, imposta de cima para baixo. Marx e Engels discordavam
dessa proposição. Por isso, na obra em questão, desenvolveram a ideia de que
o espírito das massas não deveria ser apartado das decisões políticas. Assim,
“Marx e Engels preconizavam um amplo entrosamento da teoria com os prole-
tários, pois diziam, nada é mais ridículo do que uma idéia isolada de interesses
concretos” (GIANNOTTI, 1996, p.12).

Quem foi Karl Marx?


IV

Ideologia Alemã, cuja abordagem revela um balanço geral das consciências


filosóficas de Marx e Engels, segundo Giannotti (1996), foi produzida no perí-
odo em que os dois teóricos encontravam-se no exílio em Bruxelas, após terem
sido expulsos do território francês, em fevereiro de 1845, por escreverem arti-
gos com conteúdo grevista.
Manifesto do Partido Comunista resultou do envolvimento de Marx e Engels
com a chamada “Liga dos Comunistas”, em Bruxelas, cuja intenção, no entendi-
mento de nossos teóricos, era a “de superar a contradição entre uma organização
internacional e os agrupamentos nacionais em que se aglutinavam os operários”

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
(GIANNOTTI, 1996, p.12).
O Manifesto foi preparado para o segundo congresso da Liga Comunista
e simboliza, para alguns estudiosos, um marco na história do pensamento da
humanidade, uma vez antecipa as tendências políticas do movimento socialista,
denotando as formações sociais, econômicas e políticas expressadas no contexto
do século XIX.
De maneira geral, a obra em questão discute a produção capitalista e as
consequências que esse sistema gerou na organização social e econômica, fun-
damentada na divisão entre classes sociais. Essa questão foi desenvolvida logo
nas primeiras páginas do texto, em que os autores convocam “os operários do
mundo inteiro à união” (GIANNOTTI, 1996, p.12).
Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, mestre de
corporação e oficial, numa palavra, opressores e oprimidos, em cons-
tante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora
disfarçada; uma guerra que terminou sempre, ou por uma transfor-
mação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das suas
classes em luta (MARX; ENGELS, 1980, p.8).

Como podemos notar, a divisão entre classes sociais não é uma caracte-
rística exclusiva do mundo moderno, ou seja, da realidade histórica em
que Marx e Engels escreveram o Manifesto. Tal divisão remonta às mais
diferentes épocas históricas, a começar pela antiguidade.

Nas primeiras épocas históricas, verificamos, quase por toda parte,


uma completa divisão da sociedade em classes distintas, uma escala
graduada de condições sociais. Na Roma antiga encontramos patrícios,
cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média, senhores, vassalos, mes-
tres, oficias e servos; e, em cada uma destas classes, gradações especiais
(MARX; ENGELS, 1980, p.8).

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – O MARXISMO


97

Da mesma maneira,
A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade
feudal, não aboliu os antagonismos de classes. Não fez senão substituir
velhas classes, velhas condições de opressão, velhas formas de luta por
outras novas (MARX; ENGELS, 1980, p.9).

Essa divisão ou antagonismo de classe, para Marx e Engels, só poderia ser superada
a partir da união dos explorados do mundo inteiro. Nesse sentido, o Manifesto
do Partido Comunista teve como missão a transformação econômica e social, na
qual os operários pudessem “sonhar com uma sociedade sem classes, em que a
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

abolição da propriedade privada garantiria a todos a satisfação de suas necessi-


dades” (GIANNOTTI, 1996, p.13).
De maneira geral, o conteúdo das obras de Marx, produzidas isoladamente
ou em parceria com o amigo Engels, denotava uma preocupação com a reali-
dade vivida, ao refletir, teoricamente, os acontecimentos contemporâneos ao
século XIX.
Karl Marx foi um escritor tremendamente realista e material: refletia
sobre o que via e vivia, analisava o que acontecia ao seu redor, a chama-
da “realidade concreta”, embora sua visão não se detivesse na superfície
aparente dos eventos, mas ultrapassava-os na busca de suas origens, no
auscultar de seus desdobramentos lógicos, nas suas articulações com
outros acontecimentos e situações. O mundo concreto e o homem real
constituíam sua matéria-prima e objeto de sua filosofia (MEKSENAS,
2008, s/p).

Retornando ao trabalho solitário de Marx, na época madura da sua produção,


notamos a edição do primeiro volume da obra O Capital (1867), cujos demais
volumes foram concluídos por Engels após sua morte, em 1883. Para muitos crí-
ticos, a produção de O Capital representa o início do pensamento marxista, pois
a obra define diversos conceitos relacionados. Contudo, apesar do senso crítico
de Marx ser bastante aguçado, sua obra “teve pouca repercussão na época em
que foi escrita, embora fosse atual e coetânea dos acontecimentos que tratava”
(MEKSENAS, 2008, s/p).

Quem foi Karl Marx?


IV

O MATERIALISMO HISTÓRICO E A PRODUÇÃO


HISTORIOGRÁFICA

Como já estudamos, a História é uma ciência subjetiva e, por isso, requer um


método de análise peculiar, diferente do aplicado nas ciências exatas. Contudo,
na ânsia de fazer da História uma ciência, os positivistas do século XIX criaram
modelos objetivos e exatos para estudar os fatos humanos amparados exclusi-
vamente no fator político.
Contrária a essa concepção, as ideias de Marx influenciaram magicamente

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
o entendimento dos acontecimentos, bem como a escrita histórica. Contudo, na
época em que elaborou seus escritos, ele não imaginava a repercussão que suas
ideias iriam causar no campo das ciências humanas (HOBSBAWM, 1998). É
também importante frisar que as proposições de Marx não foram criadas dire-
tamente para explicar os fatos históricos, ou seja, não se deslocaram como uma
teoria pronta dentro da História. Desse modo, foram os historiadores que se
apropriaram de Marx para renovar a historiografia moderna.
Muitas das ideias de Marx, apropriadas pelos historiadores modernos, foram
interpretadas de maneira simplista e equivocada, por se distanciarem das con-
cepções de Marx em sua fase madura. Essas interpretações deturpadas foram
denominadas por Hobsbawm (1998, p.159) como “marxismo vulgar”.
...a influência marxista entre os historiadores foi identificada como
umas poucas idéias relativamente simples, ainda que vigorosas, que, de
um modo ou de outro, foram associadas a Marx e aos movimentos ins-
pirados por seu pensamento, mas que não são necessariamente marxis-
tas, ou que, na forma em que foram mais influentes, não são necessaria-
mente representativas do pensamento maduro de Marx. Chamaremos
a esse tipo de influência de ‘marxista vulgar’, e o problema central da
análise é separar o componente marxista vulgar do componente mar-
xista na análise histórica.

Para Hobsbawm (1998, p.159), esse “marxismo vulgar” se fundamenta em ele-


mentos que afirmam que o econômico é o grande motor da História, ou seja,
se sustenta na “crença de que o fator econômico é fator fundamental do qual
dependem os demais”.

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – O MARXISMO


99

Na época em que esse princípio foi formulado, certamente, houve uma grande
comoção no campo da História, pois ele se distanciava da explicação tradicio-
nal, ao apresentar outro entendimento sobre os fatos históricos, cuja essência
não partia do político. Dessa maneira,
É difícil resgatar a admiração sentida por um cientista social inteligen-
te e culto ao final do século XIX, ao se deparar com as seguintes obser-
vações marxistas sobre o passado: ‘que a própria Reforma é atribuída
a uma causa econômica, que a duração da Guerra dos Trinta Anos se
devia a causas econômicas, as Cruzadas à fome feudal por terras, a evo-
lução da família a causas econômicas, e que a concepção de Descartes
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

sobre os animais como máquinas pode ser relacionada ao crescimen-


to da manufatura’. Entretanto, aqueles dentre nós que se lembram dos
primeiros encontros com o materialismo histórico podem ainda teste-
munhar a imensa força libertadora dessas simples descobertas (HOBS-
BAWM, 1998, p.161).

Nesse sentido,
A influência marxista (e marxista vulgar) até agora mais eficaz é parte
de uma tendência geral de transformar a história em uma das ciências
sociais, uma tendência a que alguns resistem com maior ou menor so-
fisticação, mas que indiscutivelmente tem sido a tendência em vigor no
século XX. A principal contribuição do marxismo a essa tendência no
passado foi a crítica do positivismo (HOBSBAWM, 1998, p.162).

Apesar de toda comoção causada e da importância para o rompimento com


a Escola Positivista, Hobsbawm (1998) evidencia que a grande influência do
Marxismo sobre a historiografia foi vulgar, muito embora esse “vulgar” apre-
sente ligação com o pensamento de Marx.
Como apontamos, o marxismo “vulgar” explica as transformações históricas
somente pelo fator econômico. Segundo Hobsbawm (1998), essa visão não per-
mite explicar as contradições que se revelam no interior das sociedades humanas
e, dessa maneira, não se refere exatamente ao Marxismo científico.
As proposições de Marx para a História, segundo nosso autor em discus-
são, consideram que o fator econômico atua conjuntamente com o fator social.
A ação desses dois elementos explica as transformações em suas contradições.
“Isso porque uma característica essencial do pensamento histórico de Marx é
a de não ser nem ‘sociológico’ nem ‘econômico’, mas ambos simultaneamente’’.
(HOBSBAWM, 1998, p.166-167).

O Materialismo Histórico e a Produção Historiográfica


IV

Mas como os fatores eco-


nômicos e sociais aparecem no
paradigma historiográfico do
Marxismo científico?
O fator econômico se revela
nas forças materiais de produ-
ção, também denominadas de
forças produtivas. Essas são
resultantes da atividade prá-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tica do homem, a qual envolve
meios materiais (como maté-
rias-primas e fontes de energia)
e intelectuais (saberes técnicos ©shutterstock

e científicos) de produção.
[...] as fontes de energia (madeira, carvão, petróleo, etc.), as matérias-
-primas (algodão, borracha, minério de ferro, etc.), as máquinas (moi-
nho de vento, máquina a vapor, cadeia de montagem, ferramentas de
todos os gêneros); ao examiná-las mais de perto, comportam também
conhecimentos científicos e técnicos (por exemplo, as invenções de La-
voisier que conduzem aos fabricos da indústria química) e aos traba-
lhadores (segundo o seu peso demográfico, a sua repartição no espaço,
a sua qualificação profissional) (BOURDÉ; MARTIN, 2003, p.154).

Em síntese, conforme Bourdé e Martin (2003), as forças produtivas não são ape-
nas materiais, são também humanas, uma vez que os componentes materiais,
feitos pelos homens, criam mecanismos os quais possibilitam a produção de
bens. Segundo Priori e Martin (2010, p.93-94), esse pressuposto:
....representa o reconhecimento do domínio do homem sobre a nature-
za e sua capacidade de transformação da mesma, colocando-a acima do
reino animal. Assim, o homem modifica a natureza de acordo com seus
interesses, transformando-a e junto com ela transforma-se a si mesmo.

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – O MARXISMO


101
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

©shutterstock

O fator social, por sua vez, revela- se nas relações sociais de produção, que deter-
minam as relações estabelecidas pelos homens entre si, como forma de construir
e dividir os bens que foram produzidos (BOURDÉ; MARTIN, 2003).
Notar-se-á que essas relações que os homens estabelecem entre si, como
forma de produzirem os bens necessários à sua manutenção, são formadas graças
à integração e convívio social do homem no campo do trabalho e da produção
nas mais diferentes épocas históricas, inclusive em nossa contemporaneidade.
Nas sociedades rurais do Ocidente medieval são relações de produ-
ção: o âmbito do domínio senhorial, com a repartição das terras entre
a reserva e as dependências do feudo, o sistema do trabalho gratuito,
o recebimento das taxas e das banalidades; mas também os diversos
estatutos dos camponeses – servos, forros, colonos, proprietários de
alódios – e a organização da comunidade aldeã, com a rotação das
culturas, os pastos incultos, as charnecas e os bosques comunais. Nas
sociedades industriais do ocidente contemporâneo são relações de pro-
dução: a propriedade dos capitais, autorizando a tomada das decisões,
a escolha dos investimentos, a divisão dos lucros, tal como o funcio-
namento das empresas, com a hierarquia do pessoal, a disciplina de
oficina, a ordenação das normas e dos horários; e a situação dos operá-
rios, variando segundo a grelha dos salários, o processo de emprego e
de despedimento, a importância dos sindicatos (BOURDÉ; MARTIN,
2003, p.154-155).

Como podemos notar, nas épocas históricas em que o maior bem era a “terra”,
como na Idade Média, as relações sociais de produção eram norteadas pelas deter-
minações ligadas ao solo, que apontavam o tipo de trabalho e as obrigações que

O Materialismo Histórico e a Produção Historiográfica


IV

cabiam a cada membro de


uma propriedade senhorial,
bem como a função social
dos indivíduos no interior
daquela sociedade. No
mundo contemporâneo,
essas relações são regidas
pela indústria, pelas avan-
çadas tecnologias, pelo

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
sistema financeiro etc.
Os conceitos de forças
©shutterstock
produtivas e de relações
de produção constituem, de
acordo com Bourdé e Martin (2003), a infraestrutura econômica das socieda-
des humanas, um dos grandes pressupostos do Marxismo.
A infraestrutura, por representar a soma das forças produtivas e das rela-
ções de produção, simboliza, dessa maneira, a base concreta de uma sociedade.
Acima dessa base concreta, edifica-se outra estrutura: a superestrutura jurídica
e política, a qual abarca aspectos ideológicos (como religião, filosofia e artes).
A noção de superestrutura jurídica e política pode compreender-se fa-
cilmente: abrange as instituições jurídicas, as instituições políticas, as
formas do Estado. Eis dois exemplos. No tempo da República romana,
do século IV ao século I a.C., as instituições políticas prevêem a repar-
tição dos poderes entre os magistrados, o Senado e a Assembleia do
Povo; definem a cidadania com os seus direitos e deveres; organizam as
legiões em função das classes de idade e das categorias fiscais; regula-
mentam a administração dos municípios, das colônias e das províncias.
Na época da Terceira República em França, no final do século XIX e
no início do século XX, as instituições políticas dispõem de um exe-
cutivo fraco – um presidente-ornamento e um governo muitas vezes
efêmero –, de um legislativo forte – o Senado e sobretudo a Câmara
dos Deputados –, de uma administração centralizada que controla os
departamentos, de uma vida democrática assegurada por eleições re-
gulares e leis liberais sobre a imprensa, a associação e o ensino. A noção
de consciência parece mais difícil de determinar. Entre as suas formas,
é possível alinhar as expressões literárias e filosóficas, desde os tratados
de Platão, Aristóteles ou Cícero, passando pelos ensaios de Kant, Vol-

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – O MARXISMO


103

taire ou Rosseau até os romances de Balzac, Stendhal ou Flaubert; é lí-


cito colocar as doutrinas religiosas, quer se trate dos mitos respeitantes
aos deuses gregos, do dogma da trindade na Igreja Cristã ou do sistema
simbólico do franco – maçonaria; e devem classificar – se as criações
artísticas, das pirâmides de Gizé e dos templos de Karnak aos quadros
de Miguel Ângelo, Rafael ou Ticiano, até às esculturas de Rodin ou Za-
dkine. Todas estas manifestações da consciência social são qualificadas
de formas ideológicas (BOURDÉ; MARTIN, 2003, p.155).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

©shutterstock

A superestrutura, como se verifica nos exemplos da citação destacada, envolve


aspectos institucionais (ligados ao Estado, à justiça, às formas de governo e às
leis) bem como ideológicos, os quais se revelam mediante ideias, doutrinas, cren-
ças, moralidade e produções artísticas e culturais. Em suma, a superestrutura
designa todas as forças que se colocam acima da base da sociedade.
Todavia, apesar de se apresentarem de maneira distinta e separada, a infraes-
trutura e a superestrutura conversam entre si, tendo em vista que as instituições
jurídicas, políticas e ideológicas dependem dos meios materiais expressos pelas
organizações sociais para existir e funcionar. Da mesma forma, os meios mate-
riais de produção podem ser alterados mediante as transformações nos modos
de pensar da sociedade. Essa suposição demonstra que existem ligações entre
infraestrutura e superestrutura (PRIORI; MARTIN, 2010).

O Materialismo Histórico e a Produção Historiográfica


IV

Para o materialismo histórico, essa relação entre infra e superestrutura per-


mite explicar as ações, as realizações e pensamentos humanos no tempo. Além
desses dois conceitos, outros se destacam no interior da teoria marxista e exercem,
na produção historiográfica, reconhecida importância. Dentre esses conceitos,
destacamos o de “modo de produção”, o de “contradição” e o de “luta de classes”.
O conceito de modo de produção representa o ponto de partida para os
estudos históricos e sociológicos. Seu entendimento se prende à combinação
das forças produtivas e das relações de produção demonstradas no interior das
sociedades em um determinado período (BARROS, 2001).

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Os modos de produção
foram relatados por Marx
em diferentes épocas histó-
ricas, desde o mundo antigo,
até o mundo moderno e
burguês. Segundo Bourdé e
Martin (2003), o que favore-
ceu o teórico a distinguir um
modo de outro foram as rela-
ções de produção reveladas
em cada período. Conforme http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/

essa técnica, é possível dis-


tinguir os seguintes modos de produção:
a. Modo de produção tribal: demonstra a utilização comum da terra.

b. Modo de produção antigo: teve como relação de produção a escravatura


e revelou-se no mundo helenístico e romano.

c. Modo de produção asiático: apresentou relações de produção, monitora-


das pelo Estado (Egito e China).

d. Modo de produção feudal: teve como relação de produção a servidão, a


qual se mostrou no Ocidente medieval.

e. Modo de produção capitalista: a relação de produção é regida pelo assa-


lariado, o qual se revela desde a Revolução Industrial até nossos dias.

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – O MARXISMO


105

Na forma como os modos de produção foram pensados por Marx, nota-se


uma progressão, cuja extensão lembra uma periodização que não é nada sim-
plista. O conceito de periodização é indispensável na produção histórica, pois
o historiador analisa os acontecimentos dentro de uma temporalidade, ou seja,
dentro de um determinado período.
Em relação ao conceito de “contradição”, ver-se-á que se estabelece graças a
uma incompatibilidade gerada na infraestrutura das sociedades, isto é, entre as
forças produtivas e as relações de produção que se estabelecem. Essa incompa-
tibilidade possibilita transformações na base econômica e, consequentemente,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

na superestrutura. Para Marx, a contradição representava o grande “motor da


História” (BOURDÉ; MARTIN, 2003).

©shutterstock

Exemplos de contradição revelam-se em diversos eventos históricos, entre eles,


Bourdé e Martin (2003, p.158) citam a Revolução Francesa, no último quar-
tel do século XVIII, e a Guerra de Secessão, nos Estados Unidos, na segunda
metade do século XIX.

O Materialismo Histórico e a Produção Historiográfica


IV

O primeiro caso, muito célebre, diz respeito à Revolução Francesa. No


século XVIII, a ascensão econômica, ligada ao progresso das ciências
e das técnicas, à renovação dos progressos agrícolas, ao crescimento
das populações, esbarra com a ordem antiga, com a administração mo-
nárquica, com os quadros senhoriais, com o sistema de corporações.
Verificam-se a tormenta da Revolução, depois a estabilização do im-
pério, entre 1789 e 1815. No século XIX, a sociedade capitalista liberal
instala-se, dirigida por uma burguesia de empreendedores que explo-
ram uma massa de operários assalariados. O segundo caso, menos co-
nhecido, refere-se aos Estados Unidos em meados do século XIX. A
existência da plantação esclavagista no Sul perturba o funcionamento
da indústria capitalista no Norte. O conflito resolve-se pela guerra de

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Secessão, de 1861 a 1865. Vencedor, o grupo dirigente do Nordeste li-
berta os antigos escravos negros, manda vir imigrantes europeus, mul-
tiplica as empresas industriais, conquista novos espaços; (BOURDÉ;
MARTIN, 2003, p.158).

©wikipedia

Nos dois exemplos discutidos, nota-se a incompatibilidade entre as infraestrutu-


ras que regiam a sociedade francesa e norte-americana. No primeiro caso, vemos
que o avanço nas técnicas de produção agrícola (somado ao aumento demográ-
fico da população) desencadeou uma transformação política e administrativa:
o Antigo Regime, presidido pela nobreza rural, foi substituído por uma nova
ordem monitorada pela burguesia. No segundo caso, vemos que a manutenção

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – O MARXISMO


107

do trabalho escravo, no Sul dos Estados Unidos (base material daquela região),
era vista pelos industriais da região Norte como um empecilho ao desenvolvi-
mento do progresso econômico. O fim do trabalho escravo somente ocorreu
por meio de uma guerra entre as duas regiões, vista pelos marxistas como uma
contradição.
Essa capacidade de uma sociedade saltar de um estágio para outro, a par-
tir da contradição que ocorre nas relações de trabalho e nos meios materiais
de produção, na teoria marxista, é identificada como “luta de classe”. Dentro
do paradigma historiográfico do Marxismo, o conceito de luta de classe é bas-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

tante empregado para explicar as transformações históricas pelas quais passa a


humanidade, pois essa luta de classes ocasiona mudanças estruturais na socie-
dade (políticas, sociais, culturais e econômicas).
Karl Marx, contudo, não inventou o conceito de “classe”, apesar de tê-lo
colocado no centro de seu pensamento. Esse conceito já havia sido cunhado por
pensadores desde o final do século XVIII, no contexto da Revolução Francesa e,
posteriormente, pelos socialistas franceses, como Fourier, Louis Blanc e Proudhon
– que chamaram a atenção para a sociedade dividida em classes sociais (possui-
doras, médias e laboriosas), como forma de denunciar os crimes do capitalismo
liberal – e foi apropriado por Marx com um sentido próprio (BOURDÉ; MARTIN,
2003).
Nos escritos de Marx, o termo “classe” aparece de maneira bastante destacada
no Manifesto do Partido Comunista, obra que já nos referimos no texto anterior.
O Manifesto foi elaborado em parceria com Engels e teve como missão redigir
o programa da Liga Comunista, da qual faziam parte. Conforme expõe Bourdé
e Martin (2003), a Liga Comunista era uma associação que reunia operários
ingleses, franceses e alemães com o objetivo de derrubar a ordem estabelecida.
Nesse sentido, não foi ao acaso que o Manifesto foi lançado em 1848, quando a
Europa foi sacudida por diversas manifestações operárias, denominadas como
Revolução de 1848 ou Primavera dos Povos.

O Materialismo Histórico e a Produção Historiográfica


IV

A Revolução de 1848 ou Primavera dos Povos é o nome que os estudiosos


deram ao conjunto de revoltas populares que ocorreram na Europa no ano
de 1848. Essa Revolução representou o levante das forças revolucionárias
de esquerda contra os velhos regimes monárquicos da Europa continental
e central. Seus motivos principais estiveram ligados às ideias advindas da
Revolução Francesa, que deram margem às propostas de transformações
exigidas pelos revoltosos. Somou-se ainda, como fator, a conjuntura econô-
mica européia das primeiras décadas do século XIX, marcada pela alta do
preço dos alimentos, em virtude das péssimas colheitas, e pela demissão de
operários. Segundo Hobsbawm (1977), o ano de 1848 foi previsto e espera-
do pelos intelectuais da época.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Na obra A Era do Capital (1977), Eric
Hobsbawm aborda que a Revolução de
1848 parece ter sido profetizada pelo mem-
bro da Câmara dos Deputados na França,
Alexis de Tocqueville, que alertou os seus
partidários contra um possível levante
social contra as forças legisladoras, bem
como pelos alemães Marx e Engels, que
escreveram o Manifesto.
No início de 1848, o eminen- ©shutterstock

te pensador político francês


Alexis de Tocqueville ergueu-se na Câmara dos Deputados para ex-
pressar sentimentos que muitos europeus compartilhavam: ‘Estamos
dormindo sobre um vulcão... Os senhores não percebem que a terra
treme mais uma vez? Sopra o vento das revoluções, a tempestade está
no horizonte’. Mais ou menos no momento, dois exilados alemães, Karl
Marx, com trinta anos, e Friedrich Engels, com vinte e oito, divulgaram
os princípios da revolução proletária contra a qual Tocqueville alertava
seus colegas, no programa que ambos tinham traçado algumas sema-
nas antes para a Liga Comunista Alemã e que havia sido publicado
anonimamente em Londres, em 24 de fevereiro de 1848, sob o título
(alemão) de Manifesto do Partido Comunista [...]. Em poucas semanas,
ou, no caso do Manifesto, em poucas horas, as esperanças e os temores
dos profetas pareceram estar na iminência da realização. A monarquia
francesa havia sido derrubada por uma insurreição, a república fora
proclamada e a revolução européia se iniciava (HOBSBAWM, 1977,
p.27-28).

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – O MARXISMO


109

A discussão promovida na primeira parte do Manifesto do Partido Comunista


expressou a contradição que existia entre as diversas classes sociais, em momentos
distintos da História, desde o início da humanidade, conforme já evidenciamos.
Desse modo, “a história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem
sido a história das lutas de classes” (MARX; ENGELS, 1980, p.8).
A luta de classes observar-se-á, dessa maneira, em cada modo de produção
que se estabeleceu ao longo da história, tendo em vista que nos meios materiais
de produção e nas relações de trabalho existiram grandes diferenças, as quais, na
visão de Marx e Engels, beneficiaram apenas a classe daqueles que dominavam.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Dentro da perspectiva do materialismo histórico, cada modo de produ-


ção põe em presença uma classe dominante, que possui o instrumento
de produção e confisca uma fracção do trabalho de outrem, e uma classe
dominada que só tem a sua força de trabalho e só dispõe de uma parte
do valor produzido. A extorsão do sobretrabalho toma formas diversas:
trabalho forçado do escravo no modo de produção antigo; prestação de
serviços do servo no modo de produção feudal; mais-valia roubada ao
assalariado no modo de produção capitalista. É por isso que cada modo
de produção contém em si uma contradição de interesses e faz nascer
um antagonismo de classes (BOURDÉ; MARTIN, 2003, p.160).

Sobretrabalho: de maneira sintética, é a doação ou transferência de uma par-


te do trabalho de um indivíduo para outro indivíduo. Como vimos, no mundo
antigo, era do escravo àquele que detinha o poder (como o Faraó). Na Idade
Média, era do servo ao senhor feudal, que detinha a posse da terra, conside-
rada o maior bem. No mundo moderno, do operário assalariado ao industrial.
Mais Valia: o termo foi cunhado por Marx para se referir à diferença entre
o salário pago ao trabalhador e o valor real que sua mão de obra produzia.
Nessa direção, a Mais Valia representa o valor do trabalho que não era repas-
sado ao assalariado e era apropriado pelo empregador em forma de lucro.

Ao refletir sobre a contradição da luta de classes, Marx intencionava, antes de tudo,


a transformação econômica e social de sua realidade. Tal transformação ocorre-
ria no campo da infraestrutura e proporcionaria mudanças no mundo das ideias.

O Materialismo Histórico e a Produção Historiográfica


IV

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desta unidade, notamos que o Marxismo Científico, que foi apropriado
pelo conhecimento histórico, buscou uma transformação na realidade do século
XIX, marcada por grandes transformações de ordem econômica, social, cientí-
fica e tecnológica, advindas da chamada Segunda Revolução Industrial, as quais
haviam modificado drasticamente a vida de uma porção de pessoas.
Notamos também, segundo Karl Marx, que essa transformação não ocorre-
ria no âmbito político nem ideológico, mas no âmbito socioeconômico, tendo em

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
vista que a teoria elaborada por esse pensador dizia que as instituições políticas,
jurídicas e ideológicas, que possuíam a capacidade de modificar as condições
humanas, eram formadas a partir dos mecanismos de produção, compostos pelas
forças produtivas e pelas relações de produção.
Vimos ainda que o grande motor dessa transformação era associado ao con-
ceito de contradição, bastante evidente entre as classes sociais nos mais diferentes
períodos históricos.
Por demonstrar uma reflexão teórica inovadora sobre os acontecimentos e
transformações históricas, as noções desenvolvidas por Marx – em sincronia com
a realidade apresentada no século XIX – foram apropriadas pela historiografia a
qual buscava se renovar e manter o status de cientificidade já demonstrado pelos
historiadores positivistas.

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – O MARXISMO


111

1. Discorra sobre o desenvolvimento do paradigma historiográfico do Marxismo,


destacando sua origem e características gerais.
2. De acordo com o extrato de documento abaixo, reflita e discuta sobre as dife-
renças entre as concepções de Marx e Hegel sobre a História.
“Examinando o desenvolvimento histórico da Humanidade, pode-se facil-
mente notar que a filosofia, a religião, a moral, o direito, a indústria, o comércio
etc., bem como as instituições onde esses valores são representados, não são
sempre entendidos pelos homens da mesma maneira. Este fato é evidente:
a religião na Grécia Antiga não é vista da mesma maneira que a religião em
nossos dias, assim como a moral existente durante o Império Romano não é
a mesma moral existente durante a Idade Média. [...] Um seguidor da filoso-
fia idealista não teria grandes dificuldades para explicar essas variações das
manifestações da inteligência humana, pois em seu entender elas seriam fru-
tos do espírito. Para um materialista, como eram tanto Marx quanto Engels,
contudo, a resposta a esta questão não poderia ser tão simples e inocente.
Deveria existir uma estreita correlação, passível de ser provada, entre este
movimento de idéias e a realidade material da sociedade; o movimento
seria produto de modificações que estivessem ocorrendo na base material
da sociedade”.
(SPINDEL, Arnaldo. O que é Socialismo. 19 ed. São Paulo: Brasiliense, 1986,
p.34-45).

3. Escreva os principais conceitos elaborados pelo materialismo científico para


explicar os acontecimentos e transformações históricas.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Manifesto do Partido Comunista


Autor: Karl Marx, Friedrich Engels
Sinopse: O Manifesto Comunista, originalmente denominado Manifesto
do Partido Comunista, foi publicado pela primeira vez em 21 de
Fevereiro de 1848, em Londres. Representa, historicamente, um dos
tratados políticos de maior influência mundial, pois “representou uma
bela utopia por muitos perseguida, serviu de base para importantes
revoluções socialistas, propondo a união dos trabalhadores, em todas as
partes do mundo, em torno de um ideal de igualdade, contra a opressão
e por uma vida plena”. O livro apresenta-se em quatro partes, a saber:
Burgueses e Proletários; Proletários e Comunistas; Literatura Socialista e Comunista e Posição dos
comunistas em relação aos diferentes partidos de oposição.

Disponível em:
<http://www.recantodasletras.com.br/artigos/1316373>.

Lorem ipsum
No vídeo Manifesto Comunista em Cartoon, de 8 minutos, produzido pelo cineasta Jesse Drew,
a partir de trechos extraídos dos desenhos famosos da Disney, notamos, de maneira bastante
descontraída, trechos de o Manifesto do Partido Comunista. Assistam ao vídeo no endereço
abaixo.

Drew, Jesse.Vídeo: Manifesto Comunista em Cartoon .Disponível em: <http://www.youtube.com/


watch?v=EaVbYyky-Bw>. Acesso em 21 de março 2014.
Professora Me. Giselle Rodrigues

AS ESCOLAS HISTÓRICAS –

V
UNIDADE
A ESCOLA DOS ANNALES

Objetivos de Aprendizagem
■ Discutir o desenvolvimento do paradigma historiográfico analítico,
destacando sua origem e características gerais.
■ Apresentar as três fases da Escola dos Annales, refletindo sobre seus
conceitos, métodos e contribuições ao conhecimento histórico.
■ Destacar os campos de pesquisa atual da História e seus
pressupostos teórico-metodológicos.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ Os princípios da Escola dos Annales e suas características gerais
■ A Primeira Geração: a elaboração de uma história problema
■ A Segunda Geração: o tempo múltiplo
■ A Terceira Geração: a fragmentação do conhecimento
■ Os campos da historiografia atual e seus pressupostos teóricos e
metodológicos
115

INTRODUÇÃO

Envolvidos por um espírito inovador, historiadores, contemporâneos da pri-


meira metade do século XX, deram origem a um movimento historiográfico,
cujo objetivo foi o de transformar radicalmente os conceitos, as metodologias e
práticas aplicadas à produção histórica.
Esse movimento denominou-se Escola dos Annales e surgiu, aproxima-
damente, em meados da década de 1920, a partir do descontentamento de
historiadores franceses com os pressupostos teóricos e metodológicos empre-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

gados pela Escola Positivista, no estudo dos acontecimentos humanos, os quais


se caracterizam: pela narrativa dos grandes acontecimentos que expressavam
o brilho do Estado, pela abordagem linear e superficial desses acontecimentos,
pelo desprezo dos fatos coletivos etc.
Essas características, portanto, fizeram com que os Annales considerassem
a História Positivista defeituosa e destoante das transformações históricas domi-
nantes no século XX, as quais haviam lançado um olhar para as massas incultas
da História e, também, haviam motivado mudanças teóricas em várias ciências,
como as Sociais (RÉMOND, 1996).

Conforme René Rémond (1996, p.19), as transformações históricas domi-


nantes no século XX decorreram das seguintes questões: “O advento da de-
mocracia política e social, o impulso do movimento operário, a difusão do
socialismo’’. Pensamos que tais questões tiveram como objetivo promover a
cidadania política das massas incultas, como os operários, para que pudes-
sem conquistar direitos econômicos e sociais, antes aceito apenas entre os
aristocratas.  As transformações do século XX, portanto, trouxeram à tona
uma nova filosofia, a qual motivou a intelectualidade e as ações políticas a
lançarem um olhar para os deserdados e os pequenos, com o objetivo de
reparar as injustiças históricas.

Introdução
V

Nessa conjuntura de transformações históricas e paradigmáticas, a cons-


trução histórica, da forma como era concebida, se revelava defasada. Por isso,
deveria ser substituída.
Havia chegado a hora de passar a história dos tronos das dominações
para o dos povos e das sociedades. Quanto aos historiadores que ti-
vessem a fraqueza de ainda se interessar pelo político, e praticar essa
história superada, fariam o papel de retardatários, uma espécie em via
de desaparecimento, condenada à extinção, na medida em que as novas
orientações prevalecessem na pesquisa e no ensino (RÉMOND, 1996,
p.18-19).

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A Escola dos Annales – liderada inicialmente pelos franceses Lucien Febvre e Marc
Bloch – teve como direção principal se opor à História Positivista, mediante o
desprezo da História do acontecimento, da insistência na longa duração, da transfe-
rência da vida política para outras atividades (econômicas, sociais e culturais) e da
tentativa de aproximação com outras ciências humanas (BORDÉ; MARTIN, 2003).
Os Annales, nesse sentido, abriram novas perspectivas ao ofício do historiador.
Nesta última unidade, discutiremos essas questões ao abordarmos o sur-
gimento desse movimento, suas características gerais e transformações.
Procuraremos, também, refletir sobre os caminhos apresentados pela historio-
grafia atual.

OS PRINCÍPIOS DA ESCOLA DOS ANNALES E SUAS


CARACTERÍSTICAS GERAIS

A Escola dos Annales foi um movimento historiográfico inovador, surgido na


França, no final da década de 1920. Também chamada de Escola analítica, para
se contrapor aos positivistas, que não analisavam e interpretavam os documen-
tos, o movimento transformou-se, ao longo do século XX, sobrevivendo até os
dias atuais.
A grande inovação dos Annales consistiu na elaboração de uma resposta ao
método positivista, que apresentava um gosto extremado pelos eventos políticos,

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – A ESCOLA DOS ANNALES


117

militares e diplomáticos, para os quais direcionava um relato linear, objetivo,


individual, generalizante e superficial.
O brilho político do Estado – revelado em suas instituições, em suas dispu-
tas e conquistas pelo poder – não era uma temática que interessava aos analistas,
ainda mais da maneira como era abordada, em face da conjuntura histórica e
teórica, apresentada na primeira metade do XX (RÉMOND, 1996).
A conjuntura histórica, segundo Reis (2000), foi caracterizada pela perda da
hegemonia mundial da Europa, em decorrência dos eventos que sinalizaram o
século XX, como as duas guerras mundiais e a perda de impérios coloniais. Assim,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

a Europa, que durante séculos havia desfrutado de um prestígio econômico, polí-


tico e cultural, passou a dividir sua notoriedade com outras regiões do mundo.
No século XX, portanto, a Europa perdeu a hegemonia mundial, per-
deu as suas nações mais potentes, seus impérios mais vastos, por meio
de guerras internas e externas e conheceu a lei absoluta do tempo: há
um momento em que o que parecia eterno, termina (REIS, 2000, p.31).

Em face do fim do eurocentrismo, a história da humanidade passou a contar com


outros centros de poder e, por isso, tornou-se muito mais complexa. Assim, não
mais é possível “pensar em um tempo universal, contínuo, linear, em direção à
liberdade absoluta da humanidade, sob a liderança da Europa” (REIS, 2000, p.31).

©shutterstock

Os Princípios da Escola dos Annales e suas Características Gerais


V

Essa nova configuração, marcada pelo fim da hegemonia política, econômica e


cultural da Europa e, ao mesmo tempo, pelo reconhecimento de outros centros
de poder (como Ásia e América do Norte), motivou os historiadores a refleti-
rem sobre essas questões. É nesse sentido que os Annales lançaram um olhar de
reprovação sobre as abordagens apresentadas pelos metódicos, tendo em vista
que elas priorizavam os eventos eurocêntricos em detrimento dos povos não
europeus, considerados como “primitivos” (REIS, 2000).
Outro fator que estimulou, conforme expõe Reis (2000), os historiadores a
romperem com o Positivismo partiu de fora do domínio da História. Veio da

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Sociologia, mais precisamente dos sociólogos durkheimianos que romperam
com a influência da Filosofia sobre os estudos históricos.
Na terceira unidade deste livro, discutimos que os positivistas se esforça-
ram para acabar com a influência exercida pela Filosofia sobre a História, uma
vez que a filosofia legava concepções metafísicas e especulativas, as quais eram
incompatíveis com o ideal científico proposto no
século XIX. Entretanto, apesar do esforço, conti-
nuaram repetindo seus pressupostos.
As Ciências Sociais, sob a influência do soció-
logo francês Durkheim (1858-1917), por outro lado,
conseguiram romper com essas concepções metafí-
sicas advindas da tradição filosófica, ao estudarem as
condutas humanas sob o ponto de vista racionalista,
baseado na observação, descrição e comparação dos
fatos sociais e não na tomada de consciência com
base nas próprias ideias (REIS, 2000).
O modo como Durkheim concebeu as condu-
tas humanas e o desenvolvimento das sociedades
proporcionou a atualização teórica e metodológica
©wikipedia
da História. Nesse ínterim, a história produzida e
contada pelos metódicos foi vista como desatua-
lizada e, por isso, foi combatida pelos Annales que notaram as transformações
ocorridas nas Ciências Sociais.

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – A ESCOLA DOS ANNALES


119

A originalidade de M. Bloch e L. Febvre foi a intuição dessa inatualida-


de da história ‘positivista’. Eles iniciaram, então, o combate pelo resga-
te da história por meio de sua readequação à nova realidade mundial.
Mas, certamente, não foram eles que ‘descobriram’ essa inadequação da
história. Eles, na verdade, compreenderam e desenvolveram o ataque
dos sociólogos contra a história metódica (BURGUIÈRE apud REIS,
2000, p.51).

Notar-se-á, portanto, que a conjuntura histórica e teórica da primeira metade


do século XX influenciou marcantemente a criação do movimento do Annales
e o rompimento radical com a Escola Positivista. O rompimento com os pres-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

supostos teórico-metodológicos do positivismo foi a característica essencial


demonstrada pela Escola dos Annales.

Conforme Le Goff (1995), não é de se admirar que a criação da revista Anna-


les d’ histoire économique et sociale (Anais da história econômica e social), a
qual deu vida ao movimento, surgiu exatamente em 1929, ano da crise de
1929. Essa crise que atingiu em cheio Wall Street, Estados Unidos, desmoro-
nou as economias capitalistas da América e da Europa e levou a humanida-
de a questionar a ideia de progresso, arraigada há centenas de anos. Essas
transformações, segundo François Dosse (2003, p.34), foram observadas pe-
los Annales que mesmo tendo produzido a Revista em janeiro, antes da crise
em outubro, “responde inteiramente às questões de uma época que desloca
o olhar dos aspectos políticos para os econômicos”.

Outras características da Escola dos Annales observar-se-á no novo modelo de


pesquisa e produção histórica inaugurado pelo grupo, tais como:
a. Oposição aos objetos de pesquisa valorizados pelos positivistas, que prio-
rizavam os eventos políticos em detrimento daqueles que denotassem o
social.

b. Abordagem do total: os Annales procuram considerar todas as esferas da


vivência humana, não somente a política.

Os Princípios da Escola dos Annales e suas Características Gerais


V

c. Novas abordagens de pesquisa, como: as mentalidades, o social, o quan-


titativo, o cultural, o urbano, as mulheres, a sexualidade e as ideias.

d. Ampliação das fontes de pesquisa: além dos textos escritos, os Annales


consideram documentos de todos os tipos, desde que apresentem algum
traço do fazer humano.

e. Superação do tempo linear, progressivo e irreversível, por um tempo múl-


tiplo e simultâneo.

f. Interdisciplinaridade: a História analítica estabelece um diálogo com

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
outras áreas do conhecimento, como as Ciências Sociais, a fim de se reno-
var e emprestar seus métodos.

Essas características são notadas durante o período de atuação dos Annales na


historiografia: do final da década de 1920 até os dias atuais. Segundo Peter Burke
(1997), a Escola dos Annales pode ser dividida em três fases ou gerações.
A primeira geração surgiu na
década de 1920 e sobreviveu até 1945.
Marcante nessa fase foi a luta estabe-
lecida pelos primeiros Annales, em
especial Lucien Febvre e Marc Bloch,
contra a História Política, desenvol-
vida pelos positivistas. Nessa luta,
novos conceitos e métodos de pes-
quisa histórica foram pensados.
Na segunda geração, que se iniciou
em 1956 e se estendeu até 1968, des-
tacou-se a figura de Fernand Braudel,
que inovou a noção de tempo histórico,
ao pensar conceitos diferentes (o de
conjuntura e o de estrutura) que permi-
tiram aos historiadores compreender as
ações e realizações humanas na longa
©shutterstock
duração e em diferentes sintonias.

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – A ESCOLA DOS ANNALES


121

A terceira geração se iniciou em 1968 e perdura até os dias atuais. Nela, nota-
-se uma fragmentação do conhecimento histórico, por meio da ampliação dos
temas e das abordagens de pesquisa.
Nos tópicos seguintes, discutiremos separadamente cada geração, dando
ênfase a seus pressupostos teórico-metodológicos que revolucionaram a escrita
da História.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A PRIMEIRA GERAÇÃO: A ELABORAÇÃO DE UMA


HISTÓRIA PROBLEMA

A Primeira Geração iniciou-se no final da década de 1920, a partir da Fundação


da Revista Annales D’ Histoire economiquet et Sociale e se estendeu até o ano de
1946. Teve como principais líderes Lucien Febvre e Marc Bloch, que trabalha-
ram em conjunto durante vinte anos (BURKE, 1997).

A Primeira Geração: A Elaboração de uma História Problema


Lucien Febvre
Nasceu em 22 de julho de 1878, na cidade de Nanci (França), e morreu
em 1956. Apresentou uma trajetória acadêmica, militar, burocrática
e intelectual intensa.
Febvre chegou a graduar-se em História em 1902. No ano seguinte,
já fazia parte da Fundação Thiers, onde permaneceu até 1907. Douto-
rando-se pela Sorbonne em 1912, foi logo lecionar na Faculdade de
Letras de Dijon (1913) e, mais tarde, na Faculdade de Letras de Estra-
burgo (1919) e no Colégio de França (1933). Em 1948, assumiu o cargo
de presidente da VI Seção da Escola de Estudos Superiores, tornando-
©wikipedia
-se no ano seguinte membro da Academia de Ciências Morais e Polí-
ticas. Mas sua vida não se limitou apenas às experiências acadêmicas.
Convocado para o exército em 3 de agosto de 1914, atuou nas frentes
de batalha até 7 de fevereiro de 1919. Durante este tempo, só deixou os campos em
1916, quando – ferido – teve de ser hospitalizado. De sargento foi a segundo-tenente,
tenente e daí a comandante, tendo sob suas ordens uma companhia de metralhadoras
[...]. Não obstante, Febvre não parou por aí. Assumiu muitas outras funções, bastante
diversificadas entre si, mas denotadoras de um trabalho intenso e intermitente: presi-
dente da Comissão da Enciclopédia Francesa; presidente da Comissão de História da II
Guerra Mundial; presidente da Comissão de História e membro do diretório do Centro
Nacional da Pesquisa Científica; vice-presidente da Comissão de Estudos para a Reforma
do Ensino; [...] presidente da Comissão de Historiadores Franceses; delegado da França
na UNESCO (1945), entre inúmeras outras atividades (MOTA, 1978, p.8-9).
Em meio a essas atividades, produziu uma infinidade de artigos e obras, muitas delas
vinculadas à Escola dos Annales, para a qual dedicou anos de sua vida em parceria com
Marc Bloch.
Fonte: MOTA, Carlos Guilherme (org). Lucien Febvre: História. São Paulo: Ática, 1978.
Marc Bloch
Nasceu em 6 de julho de 1886, na cidade de Lyon (França), e em 1944
(na conjuntura da Segunda Guerra Mundial), foi morto pelos nazistas
por ser judeu.
Foi um grande historiador. Apresentou uma vida acadêmica impor-
tante e redigiu inúmeros trabalhos científicos. Juntamente com Lucien
Febvre arquitetou a Escola dos Annales. Apresentou também uma car-
reira militar, ao atuar como soldado de infantaria na Primeira Guerra
Mundial e militar da resistência francesa na Segunda Guerra Mundial.
Neste último conflito foi preso pelos nazistas e fuzilado em junho de
1944. Outras informações sobre a vida profissional e pessoal de Marc
Bloch poderão ser visualizadas no link abaixo relacionado.
©wikipedia

Disponível em: <http://www.infoescola.com/biografias/marc-bloch/>.


123

O traço marcante dessa fase foi a luta constante contra a História Política e
Tradicional. Segundo Jacques Le Goff (1995), a História Política era a pedra no
sapato de Lucien Febvre e Marc Bloch, pois, por um lado, era vista como uma
história-narrativa e, por outro, como uma história factual e dos acontecimentos.
Conforme Reis (2000), a história-narrativa foi combatida pelos Annales por
contar a história dos fatos históricos (com ênfase nos políticos, diplomáticos e
militares) segundo uma ordem cronológica, evolucionista, linear e irreversível,
desprendida de análise e interpretações, uma vez que o objetivo maior era nar-
rar os eventos de maneira fidedigna.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

©shutterstock

O esforço maior dos historiadores da Primeira Geração foi, portanto, o de rom-


per com essas concepções de História. Para isso, instituíram um novo modo de
trabalhar o fato histórico, baseado na chamada história problema.
A história problema tinha como objetivo principal elaborar uma História não
automática, mediante a análise e interpretação dos fatos históricos. Em oposição
ao caráter narrativo da História tradicional, ela propunha levantar problemas
e hipóteses no início da pesquisa e direcioná-las aos documentos abordados,
segundo o presente do historiador.
A história-problema vem reconhecer a impossibilidade de narrar os
fatos históricos ‘tal como se passaram’. Por ela, o historiador sabe que
escolhe seus objetos no passado e que os interroga a partir do presente
(REIS, 2000, p.74).

A Primeira Geração: A Elaboração de uma História Problema


V

Na primeira unidade deste livro, estudamos que o olhar que o historiador lança
sobre o passado é, necessariamente, um olhar do presente, pois esse historia-
dor pertence ao tempo presente e não ao passado. Sendo assim, para entender
o documento que está sendo analisado, e inclusive formular hipóteses de traba-
lho acerca dele, o historiador precisa conhecer muito bem seu presente, já que a
ciência histórica é “uma resposta a perguntas que o homem de hoje necessaria-
mente se põe” (FEBVRE apud DOSSE, 2003, p.100).
Se a relação entre presente e passado se revela imprescindível para os Annales
– já que os problemas e hipóteses que motivam o historiador a estudar os acon-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tecimentos humanos são gerados segundo as preposições de seu presente – as
perguntas que esse profissional formula, em face dos problemas e hipóteses iniciais
que levantou, devem ser confrontadas com os documentos, a fim de comprovar
a veracidade e procedência de suas hipóteses iniciais.
A pesquisa histórica é a resposta a problemas postos no seu início e
verificação das hipóteses-respostas possíveis. A partir da posição do
problema o historiador distribui suas fontes, dá-lhes sentido e organiza
as séries de dados que ele também terá construído (REIS, 2000, p.74).

Nessa direção,
A organização da pesquisa é feita a partir do problema que a suscitou:
este vai guiar na seleção dos documentos, na seleção e construção das
séries de eventos relevantes para a verificação das hipóteses, cuja cons-
trução ele exigirá (REIS, 2000, p.75).

Em síntese, para os Annales, a história problema expressa o modo como o


conhecimento histórico é produzido. Como “resultado de uma explícita e total
construção teórica e não mais o resultado de uma narração objetivista de um
processo exterior organizado em si” (REIS, 2000, p.74-75).
Além da história problema e da relação entre presente-passado, os primeiros
representantes dos Annales instituíram novos conceitos de pesquisa histórica,
muito diferentes da História Política, tais como: novo conceito de fontes histó-
ricas, ideia de história total ou global e a interdisciplinaridade.
Em relação às fontes históricas, notamos, na primeira unidade, que a Escola
dos Annales ampliou sistematicamente o conceito de documento, ao valori-
zar diversos tipos de fontes. Promoveu, assim, uma verdadeira “Revolução

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – A ESCOLA DOS ANNALES


125

Documental”, tendo em vista que até o surgimento dos Annales eram conside-
rados documentos apenas escritos e de cunho político, militar e diplomático.
A história nova ampliou o campo do documento histórico; ela subs-
tituiu a história de Langlois e Seignobos, fundada essencialmente nos
textos, no documento escrito, por uma história baseada numa multipli-
cidade de documentos (LE GOFF, 1995, p.28).

Conforme Reis (2000, p.78), essa ampliação das fontes de pesquisa está intima-
mente associada ao projeto da história problema, pois “É o problema posto que
dará a direção para o acesso e construção dos corpus necessários à verificação
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

das hipóteses que ele terá suscitado, o que devolve ao historiador a liberdade na
exploração do material empírico”. Nesse sentido, as fontes não mais determinam
o tipo de pesquisa que o historiador irá realizar, mas a construção dos problemas
e hipóteses iniciais de trabalho que o levará a delimitar o tipo de fonte.

©shutterstock

A Primeira Geração: A Elaboração de uma História Problema


V

Outra proposta inovadora dos primeiros Annales foi a História total, também
denominada de História global, cujo fundamento se liga à ampliação do campo
documental e enfoque dos diversos grupos sociais.
Na abordagem da primeira e da terceira unidades, vimos que os positi-
vistas, ao considerarem apenas fontes escritas de caráter político, produziram,
consequentemente, uma História de grandes personagens, como reis, rainhas,
monarcas e governadores. Em contrapartida, a Escola dos Annales, ao consi-
derar fontes de todos os tipos, ofereceu aos historiadores a possibilidade de
contar a História de grupos marginalizados da História. No entanto, não pode-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
mos esquecer a contribuição do Materialismo Histórico a essa inovação, pois
os historiadores marxistas, contemporâneos aos analistas, ao privilegiarem fon-
tes ligadas ao econômico, também somaram à abordagem dos marginalizados,
com ênfase nos operários.
A questão da interdisciplinaridade, segundo Reis (2000), foi proposta por
Lucien Febvre e foi considerada como o “espírito” dos Annales, por afastar a
História definitivamente da Filosofia, oferecendo-a o estatuto de ciências.
A interdisciplinaridade propunha estabelecer um contato metodológico
entre a História e as Ciências Sociais (mediante a troca de conceitos, técnicas,
problemas, hipóteses e dados), uma vez que essas duas áreas do conhecimento
possuíam o mesmo objeto de análise: o homem.
Todas essas propostas inovadoras permitem-nos comprovar que o objetivo
maior dos primeiros Annales, principalmente Lucien Febvre e Marc Bloch, foi
o de romper com os pressupostos teórico-metodológicos da tradicional História
Política.

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – A ESCOLA DOS ANNALES


127

O Retorno da Narrativa
Nas últimas décadas, mais precisamente no início dos anos de 1980, muitos
historiadores anunciaram o retorno da narrativa em face das transforma-
ções mundiais que fizeram esses profissionais repensarem a produção his-
tórica. Como veremos no último tópico dessa unidade, os eventos que mar-
caram a segunda metade do século XX (como guerras e crises econômicas)
levaram a crer que nem tudo podia ser explicado pelo modelo determinista
econômico de análise histórica. Nesse ínterim, vários historiadores reconhe-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ceram que os fatos e as transformações históricas decorrem de inúmeras va-


riáveis: os sentimentos, as ideias e os valores humanos, a cultura de um povo
etc. Essa mudança paradigmática proporcionou o retorno da narrativa, tão
combatida pelas duas primeiras gerações dos Annales que a associavam aos
positivistas, pelo motivo de estudarem o individual, o fato em sim, em de-
trimento do coletivo/social, e de não analisarem os documentos. Apesar de
tudo, a narrativa retornou no âmbito da História contemporânea com uma
nova face, revelando-se nos estudos de indivíduos (biografias e micro-his-
tória) que estabelecem relações com o macro, ou seja, com a sociedade em
que se revelam.
Essas questões são tratadas no texto de Lawrence Stone. Ressurgimento
da Narrativa: reflexões sobre uma nova velha história (1979). Confiram no
endereço abaixo:
<http://pt.scribd.com/doc/59564000/STONE-Lawrence-O-Ressurgimento-
-Da-Narrativa>. Acesso em: 29 de março 2014.

A SEGUNDA GERAÇÃO: O TEMPO MÚLTIPLO

A Segunda Geração iniciou-se a partir do ano de 1946 e teve como principal


representante, após a morte de Lucien Febvre, em 1956, Fernand Braudel, des-
coberto pelo próprio Febvre (LE GOFF, 1995).
Na abordagem da segunda unidade, observamos que Braudel introduziu
na produção histórica uma nova concepção de tempo, inédita, pois ao conside-
rar que os fatos históricos se posicionavam em uma tripla duração em sintonia
(curta, média e longa), desfez o entendimento de tempo irreversível pensado
pelos positivistas, que enfatizavam o tempo progressivo do acontecimento.

A Segunda Geração: O Tempo Múltiplo


V

A tripla temporalidade pro-


posta por Braudel (1902-1985) foi
anunciada em sua obra-prima, O
©shutterstock
Mediterrâneo e o mundo mediterrâ-
nico na época de Felipe II, resultante
de sua tese, publicada em 1949, em três volumes.
O Mediterrâneo é um livro de grandes dimensões [...]. Sua edição ori-
ginal continha aproximadamente 600000 palavras, o que perfaz seis ve-
zes o tamanho de um livro comum. Dividido em três partes, cada uma

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
das quais – como o prefácio esclarece – exemplifica uma abordagem
diferente do passado. Primeiramente, há a história ‘quase sem tempo’
da relação entre o ‘homem’ e o ambiente; surge então, gradativamente,
a história mutante da estrutura econômica, social e política e, final-
mente, a trepidante história dos acontecimentos (BURKE, 1997, p.46).

Fernand Braudel (1902-1985), como explicitado na terceira unidade, foi um


historiador francês que muito agregou ao desenvolvimento da Escola dos
Annales. Apresentou uma carreira acadêmica de destaque no continente
americano, no Brasil (Universidade de São Paulo) e também na Europa. Na
época da Segunda Guerra Mundial foi preso e, no cárcere, escreveu O Medi-
terrâneo e o Mundo Mediterrâneo à Época de Felipe II, a qual foi defendida
em 1947 e publicada dois anos depois, em três volumes. Os detalhes desta
importante obra, a qual revolucionou a compreensão sobre a problemática
do tempo na produção histórica, poderão ser consultados no link abaixo
relacionado.
Disponível em: <http://www.infoescola.com/biografias/fernand-braudel/>.

Ao dividir a História dos atos humanos em uma multiplicidade de tempo, Braudel


buscou chamar a atenção para o fato de que a história dos acontecimentos, ou
seja, a história da curta duração era trêmula e enganosa. Em oposição a ela, pro-
pôs uma história da longa duração, entendida como global, por ser construída
a partir das estruturas econômicas, políticas e sociais.

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – A ESCOLA DOS ANNALES


129

Conforme expõe Peter Burke (1997, p.46), a produção de O Mediterrâneo,


durante o período da Segunda Guerra Mundial, ironicamente, facilitou o trabalho
de Braudel, tendo em vista que, preso em um campo de concentração, próximo
à cidade do norte da Alemanha, Lübeck, teve tempo para refletir e rascunhar
sua obra. Assim, “Sua prodigiosa memória compensou em parte a impossibili-
dade de recorrer às bibliotecas”.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A TERCEIRA GERAÇÃO: A FRAGMENTAÇÃO DO


CONHECIMENTO

A Terceira Geração iniciou-se no final da década de 1960, mais precisamente


nos anos que se seguiram a 1968, quando jovens historiadores, entre eles André
Burguière e Jacques Revel, envolveram-se na administração dos Annales. O
surgimento da geração remonta também à aposentadoria de Fernand Braudel,
em 1972, da presidência da VI Seção da École des Hautes Études en Sciences
Sociales (Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais), e a tomada da dire-
ção por Jacques Le Goff, em 1975 (BURKE, 1997).
Com a entrada de novos integrantes ao grupo e com a saída de Braudel, cuja
liderança marcou a Segunda Geração, transformações administrativas e intelec-
tuais visíveis aconteceram. Conforme Burke (1997, p.79), essas transformações
dificultam traçar precisamente o perfil da Terceira Geração, bem como identi-
ficar uma figura de destaque, pois “Ninguém neste período dominou o grupo
como o fizeram Febvre e Braudel”.
O fato de, na Terceira Geração, não ter se destacado nenhum nome que
imprimisse uma marca, a qual pudesse corresponder aos interesses de todos os
membros desse período, favoreceu a criação de tendências particulares, uma vez
que cada pesquisador enveredou para um campo de pesquisa de seu interesse.
É nessa direção que muitos autores – como François Dosse, na obra História em
Migalhas, e José D’ Assunção Barros – afirmaram que a Terceira Geração é mar-
cada por uma fragmentação do conhecimento.

A Terceira Geração: A Fragmentação do Conhecimento


V

Uma característica crescente da historiografia moderna é que ela tem


passado a ver a si mesma – de maneira cada vez mais explícita e auto-
-referenciada – como um campo fragmentado, compartimentado, par-
tilhado em uma grande gama de sub-especialidades e atravessado por
muitas e muitas tendências (BARROS, 2004, p.18).

Desse modo:
O historiador de hoje é um historiador da cultura, um historiador eco-
nômico, um historiador das mentalidades, um especialista em História
da Mulher, um medievalista ibérico ou um especialista nos estudos da
Antigüidade Clássica, ou quem sabe ainda um doutor em História do
Brasil Colonial mais particularmente especializado nos processos de

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
visitação da Inquisição do Santo Ofício (BARROS, 2004, p.18).

Contudo, essa divisão de saberes não ocorre apenas na História. Ela atinge
também diversas áreas do conhecimento em nossa atualidade, inclusive, as rela-
cionadas às ciências exatas.
Naturalmente que este não é um fenômeno que ocorreu apenas com
a história: uma ciência como a Física também foi se dividindo a partir
dos seus primórdios em muitos compartimentos internos, como a Ter-
modinâmica, a Ótica, a Mecânica e tantos outros. Longe vão os tempos
iluministas, em que um mesmo físico podia se interessar por diversifi-
cados objetos de investigação que iam da ótica à termodinâmica (BAR-
ROS, 2004, p.18-19).

Apesar da fragmentação do conhecimento se revelar de maneira negativa,


por outro lado, ela possibilitou a incorporação de novas ideias, bem como a valo-
rização de temas pouco enfatizados, tais como: o corpo, a infância, o sonho, a
psicologia, as mulheres, a sexualidade e a religiosidade. A abordagem desses
temas ligados ao cultural se relaciona à chamada História das Mentalidades,
anteriormente marginalizada do projeto dos Annales. Nesse sentido, Peter Burke
(1997, p.81) afirma que a Terceira Geração revelou-se de maneira mais aberta.
O itinerário intelectual de alguns historiadores dos Annales transferiu-se da
base econômica para a ‘superestrutura’ cultural, ‘do porão ao sótão’.
Por se abrir a novos caminhos e por não apresentar um perfil rigidamente
delimitado, o qual pudesse ser seguido, vários campos apresentam-se no inte-
rior da Terceira Geração.

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – A ESCOLA DOS ANNALES


131

OS CAMPOS DA HISTORIOGRAFIA ATUAL E SEUS


PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

Discutimos que o surgimento da Terceira Geração dos Annales possibilitou à


pesquisa e à produção histórica uma ampliação dos temas e das abordagens.
Essa inovação legou à historiografia de nossa atualidade um saber plural, divi-
dido em diversos campos.
O oceano da historiografia acha-se hoje povoado por inúmeras ilhas,
cada qual com a sua flora e a sua fauna particular. Ou, para utilizar
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

uma metáfora mais atual, podemos ver a Historiografia como um vas-


to universo de informações percorrido por inúmeras redes, onde cada
profissional encontra a sua conexão exata e particular. (BARROS, 2004,
p.18).

Essas diversas ilhas, redes ou campos que povoam a História atual versam a vários
domínios, expressos, por exemplo, na História Serial, na História Quantitativa,
na História Urbana, na História das Mulheres, na História da Vida Privada, na
História da Sexualidade, na História das Mentalidades, na Micro-História, na
História Cultural e na Nova História Política. É importante ressaltar, conforme
expõe Barros (2004), que mesmo dividida em diversos campos – o que pode
causar interpretações particulares para aqueles que se utilizam da História para
concretizar uma formação na sua trajetória acadêmica – toda produção histórica
deve se pautar em uma pesquisa ampla. Assim, não importa a linha historio-
gráfica a qual o historiador se filia. O completo sucesso de seu ofício depende
do conhecimento acerca de todos os enfoques possíveis. Nessa tarefa, uma pes-
quisa expansiva pode auxiliar.
Desse modo, o historiador, mesmo que se identifique com algum campo
histórico, precisa conhecer todos os campos, porque todos fazem parte de um
contexto em específico, sem contar que oferecem subsídios ao historiador para
entender a sua realidade e melhor elaborar sua pesquisa.
Nas linhas seguintes, trataremos de dois campos da História atual que cos-
tumam fazer esse exercício: a História Cultural e a Nova História Política.

Os Campos da Historiografia Atual e seus Pressupostos Teóricos e Metodológicos


V

A HISTÓRIA DAS MENTALIDADES E A HISTÓRIA CULTURAL

Durante muito tempo, a História das Mentalidades, apesar de ter sido rele-
gada do projeto dos Annales, sobreviveu e, como vimos, na Terceira Geração,
ganhou notoriedade por expressar as novas temáticas abordadas pelos historia-
dores. Contudo, conforme expõe Vainfas (apud CARDOSO, 1997, p.132), essa
valorização do mental, apesar de não ter sido exposta de maneira intensa pelas
primeiras gerações, já era feita antes mesmo da fundação dos Annales. Assim,
Bloch e Febvre inauguraram, pois, nos primórdios dos Annales, o estu-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
do das mentalidades, delas fazendo um legítimo objeto de investigação
histórica. Mas não se pense que foram eles os primeiros a se dedica-
rem ao estudo de sentimentos, crenças e costumes na história ocidental
(VAINFAS apud CARDOSO, 1997, p. 132).

Todavia, mesmo tendo revelado uma importância considerável, na década de 1980,


a História das Mentalidades, enquanto disciplina, demonstrou uma crise, diante
de várias críticas. As críticas se pautavam, segundo Vainfas (apud CARDOSO,
1997, p.144-145), em argumentos como: que os temas das mentalidades mostra-
vam uma debilidade explicativa; que suas explicações eram frágeis e superficiais,
e que foi mal compreendida.
Em face dessa crise, os historiadores das Mentalidades refugiaram-se em
novos campos historiográficos, os quais herdaram os temas e problemáticas
das mentalidades (VAINFAS apud CARDOSO, 1997). Entre eles, destacamos
a História Cultural.
A História Cultural é um dos campos historiográficos mais difundidos nos
dias atuais e o grande refúgio da História das Mentalidades, por não destacar o
estudo do mental, nem deixar de lado o caráter científico da História.
....o grande refúgio da história das mentalidades foi, contudo, o da cha-
mada história cultural, refúgio este sim mais consistente, posto que,
suas principais versões procuraram defender a legitimidade do estudo
do ‘mental’ sem abrir mão da própria história como disciplina ou ci-
ência específica – o que não é de somenos importância – e buscando
corrigir as imperfeições teóricas que marcaram a corrente das mentali-
dades dos anos 70 (VAINFAS apud CARDOSO, 1997, p.145).

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – A ESCOLA DOS ANNALES


133

A História Cultural, segundo Vainfas (apud CARDOSO,1997), apresenta quatro


características. A primeira rejeita o conceito “mentalidades”, por considerá-lo
vago, impreciso e ambíguo, já que não estabelecia relação com o mental e social.
Nesse sentido, esses “historiadores da cultura” procuram fazer uma conexão entre
o particular e o todo, identificado como sociedade global. Em outras palavras,
procuram relacionar o estudo dos sentimentos, das crenças e dos costumes com
o contexto social em que esse mental é fundamentado.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

©shutterstock

Os Campos da Historiografia Atual e seus Pressupostos Teóricos e Metodológicos


V

A segunda característica decorre da primeira e “revela especial apreço, tal como


a história das mentalidades, pelas manifestações das massas anônimas: as festas,
as residências, as crenças heterodoxas. Em uma palavra, a Nova História cultu-
ral revela especial afeição pelo informal e, sobretudo, pelo popular” (VAINFAS
apud CARDOSO,1997, p.149).
A terceira característica demonstra a “preocupação em resgatar o papel das
classes sociais, da estratificação, e mesmo ao conflito social, característica que sem
dúvida a distingue da história das mentalidades” (VAINFAS, apud CARDOSO,
1997, p.149).

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A quarta e última característica não é inédita, mostra que a História Cultural
é uma história do plural, pois continua a abordar inúmeros temas relacionados
ao mental, tal qual faziam as mentalidades.
Todas essas características apontam que a História Cultural constitui uma
tendência historiográfica, cujo desenvolvimento remonta aos pontos positivos
demonstrados pela História das Mentalidades. A História Cultural ainda realiza
uma conexão com outras modalidades historiográficas, as quais proporcionam
um ambiente rico para os historiadores, como relata José D’ Assunção Barros
(2011, p.60):
A História Cultural, enfim, tem permitido precisamente o estabeleci-
mento de um novo olhar sobre objetos que habitualmente têm sido
beneficiados por um tratamento historiográfico econômico, político
ou demográfico. Sua expansão, por conseguinte, vai muito além dos
objetos e processos habitualmente tidos por culturais, de modo que é
sempre oportuno enfatizar como a História Cultural tem se oferecido
cada vez mais como campo historiográfico aberto a novas conexões
com outras modalidades historiográficas e campos de saber, ao mesmo
tempo em que tem proporcionado aos historiadores um rico espaço
para a formulação conceitual (BARROS, 2011, p.60).

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – A ESCOLA DOS ANNALES


MATERIAL COMPLEMENTAR

Entre os precursores da História Cultural, podemos


citar: Jaques Le Goff e Peter Burke.
Disponível em: <www.diarioms.com.br>
Jacques Le Goff (1924 – 01 de abril de 2014) foi
uma das maiores autoridades nos estudos relacio-
nados à Idade Média. Como vimos, foi sucessor de
Fernand Braudel na Escola dos Anales, renovando
a pesquisa histórica sobre o Ocidente Medieval, a
partir do estudo da História Cultural, da História do
Imaginário e da Antropologia Histórica.
Disponível em: <www.wook.pt>

revistadehistoria

Peter Burke (1937), por sua vez, é um dos maiores re-


presentantes da História Cultural. É professor emérito
da Universidade de Cambridge e especialista em His-
tória Moderna. Adquiriu um reconhecimento notável
ao elaborar importantes estudos sobre a cultura, a
sociedade, a mídia e a produção de conhecimento.
De maneira geral, as obras de Peter Burke trazem
uma grande contribuição à historiografia, não so-
mente por abordar conceitos de maneira clara, mas
por discutir as constantes mudanças apresentadas
na historiografia.
Disponível em: <http://www.revistadehistoria.com.
br/secao/agenda/peter-burke-de-volta-ao-brasil>.

revistadehistoria

Material Complementar
V

A NOVA HISTÓRIA POLÍTICA

A História Política é outro campo da historiografia que adquiriu, ou melhor,


reconquistou importância em nossa atualidade.
Como vimos na Unidade anterior, a História Política foi relegada por inter-
pretar os acontecimentos humanos e transformações históricas, mediante uma
ótica política exclusiva, sem considerar o contexto sócio-econômico em que os
fatos eram desenvolvidos. No entanto, nas últimas décadas, os historiadores vol-
taram a se interessar pela História Política.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
As razões para o descrédito e revalorização do político na História, segundo
Rémond (1996, p.22), devem ser buscadas no contexto em que os historiadores
formularam essas concepções, pois:
Assim como, para explicar o declínio e o desaparecimento progressivos
da história política, foi necessário considerar ao mesmo tempo o movi-
mento próprio da pesquisa histórica e o ambiente ideológico, também
para compreender as razões da sua volta com plena força é necessário
escrutar alternadamente os dados gerais que desenham o contexto e as
iniciativas que são obra apenas dos historiadores.

O descrédito deriva da noção disseminada pelos Annales das primeiras gera-


ções e pelos Marxistas de que a História Política não interrogava os fatos, com o
intuito de buscar suas raízes mais profundas. Ela também não formulava hipóteses
explicativas sobre os fatos, relatava-os apenas de maneira superficial, generali-
zante, individualista e cronológica (RÉMOND, 1996).
A revalorização é fruto de uma reflexão que a historiografia faz sobre si
mesma, em decorrência dos vários eventos que marcaram a segunda metade
do século XX e que motivaram os historiadores a buscar em novos caminhos
para entendê-los, pois as explicações advindas da ideia de que as infraestruturas
governavam as superestruturas não davam conta de explicar aquela realidade,
conforme os exemplos:
....a experiência das guerras, cujo desencadeamento não pode ser expli-
cado apenas pela referência aos dados da economia, a pressão cada vez
mais perceptível das relações internacionais na vida interna dos Esta-
dos lembraram que a política tinha uma incidência sobre o destino dos
povos e as existências individuais; contribuíram para dar crédito à idéia
de que o político tinha uma consistência própria e dispunha mesmo

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – A ESCOLA DOS ANNALES


137

de uma certa autonomia em relação aos outros componentes da reali-


dade social. As crises que perturbaram o funcionamento das trocas e
desajustaram os mecanismos da economia liberal, obrigando o Estado
a intervir, também deram à política a oportunidade de penetrar num
setor diferente. O desenvolvimento das políticas públicas sugeriu que
a relação entre economia e política não era de mão única [...] a decisão
política pode modificar o curso da economia para melhor e para pior
(RÉMOND, 1996, p.23).

A percepção de que o político está em toda parte, e se aplica nas ações e trans-
formações históricas, fez com que muitos historiadores das últimas décadas do
século XX voltassem os olhares para a História Política, não para reafirmar a
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

reprovação feita pelas primeiras gerações dos Annales, mas para entender por-
que o político é importante e como pode ser apropriado pela produção histórica.
Segundo os historiadores interessados em História Política, como Réne
Remónd (1996), essa “Nova História Política”, para se contrapor à “Velha História
Política” realizada pelos metódicos, apresenta as seguintes características:
a. Pluridisciplinaridade: permite à Nova História Política estabelecer contato
com outras ciências e disciplinas (como a Sociologia, a matemática, lin-
guística, direito, psicologia e informática), as quais oferecem técnicas de
trabalho e entendimento acerca de vocabulários e conceitos específicos.

b. Quantitativo: a Nova História Política dispõe de uma abundância de dados


numéricos e estáticos que fornecem elementos à cientificidade pretendida.

c. Sociedade Global: a ideia de que a História Política se interessa apenas


pelas minorias privilegiadas em detrimento das multidões, o povo, não
mais se sustenta. A Nova História Política, assim, “pretende integrar todos
os atores – mesmo os mais modestos – do jogo político, e que se atribui
como objeto a sociedade global” (RÉMOND, 1996, p.33).

d. Longa Duração: os novos historiadores políticos estudam os eventos his-


tóricos não por eles mesmos, como faziam seus antecessores, mas a partir
das relações que estabelecem com a média e a longa duração de tempo.
Notar-se-á, portanto, que a História Política abriu-se a perspectivas que já vinham
sendo experimentadas por outras tendências historiográficas, como os Annales.
Essa abertura permitiu sua renovação e revalorização, bem como a noção de que
o político não se constitui por si só.

Os Campos da Historiografia Atual e seus Pressupostos Teóricos e Metodológicos


V

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta última unidade, podemos concluir que o movimento historiográfico ini-


ciado pelos Annales representou uma resposta conceitual, metodológica e teórica
aos problemas que se colocaram na conjuntura histórica desenhada na primeira
metade do século XX e que fizeram os historiadores perceberem que os discur-
sos positivistas não davam mais conta de explicar aquela realidade.
Se os discursos positivistas eram destoantes da conjuntura revelada, os
Annales tiveram que refletir outro modelo que pudesse ser aplicado ao estudo

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
e compreensão dos fatos históricos.
Esse modelo foi o da história problema, baseada na ampliação dos temas,
das fontes e das abordagens de pesquisa, bem como na multiplicidade do tempo,
estruturado na curta, média e longa duração. Considerou-se também a interdis-
ciplinaridade, a qual aproximou a História das demais ciências humanas, como
a Sociologia.
Em suma, os Annales proporcionaram a abertura de novos horizontes e,
graças às transformações apresentadas em suas gerações, sua permanência e atu-
ação na construção histórica continuam notáveis, apresentando-se em diversos
campos do conhecimento.

AS ESCOLAS HISTÓRICAS – A ESCOLA DOS ANNALES


139

1. Discuta o desenvolvimento da Escola dos Annales, destacando sua origem e ca-


racterísticas gerais.
2. Vimos no primeiro tópico desta unidade que a história problema tinha como
objetivo se opor às construções positivistas por considerá-las superficiais, auto-
máticas e não interpretativas. No que consistia essa história problema?
3. De acordo com o último tópico desta unidade, aborde as novas perspectivas
reveladas pela historiografia atual.
141
CONCLUSÃO

Neste percurso que fizemos sobre as concepções demonstradas pelas Escolas Me-
tódica, Marxista e dos Annales, notamos o modo como se processa o conhecimento
histórico, bem como no que consiste o conceito de História e o ofício de historiador.
Porém, se considerarmos que a escrita da História desenvolveu-se desde a Antigui-
dade, a partir de Heródoto, o “pai da História”, é óbvio que essa discussão não se es-
gota por aqui, mesmo porque, detivemo-nos ao exame das principais correntes his-
toriográficas apresentadas, aproximadamente, nos últimos cento e cinquenta anos.
Para as questões que foram apresentadas, percebemos que a produção do saber
histórico segue padrões específicos que saltam do modelo teórico pelo qual o his-
toriador se interessa. Esse modelo teórico norteia todas as ações desse profissional
e o induz a pensar em uma concepção específica sobre o conceito de História, assim
como nas técnicas e métodos aplicados à sua pesquisa e escrita.
Na primeira unidade, vimos que o saber histórico se relaciona a diversos concei-
tos, tais como: investigação, seleção e interpretação do objeto de pesquisa, relação
entre presente e passado, tempo múltiplo, diferentes fontes e abordagens. Esses
conceitos, contudo, foram construídos pelas abordagens mais recentes da historio-
grafia. Isso demonstra que as teorias da História se transformam com o tempo e
apresentam visões diferenciadas sobre os acontecimentos humanos e transforma-
ções históricas.
Na segunda unidade, observamos que o tempo, apesar de ser uma construção hu-
mana difícil de ser definida, é crucial à História, não somente porque delimita tem-
poralmente o período ao qual o historiador irá se debruçar, mas, principalmente,
porque revela os vestígios (sociais, econômicos, políticos, culturais, religiosos etc.)
de uma época. Observamos também que a memória constitui uma importante fon-
te de pesquisa ao ofício do historiador, por retomar uma temporalidade com a ajuda
das lembranças.
Por sua vez, nas três últimas unidades, estudamos os principais modelos teóricos
revelados nos séculos XIX e XX: o Positivismo, o Marxismo e os Annales. Notamos
que cada modelo formulou uma visão específica sobre os principais conceitos que
norteiam a produção do conhecimento histórico (como fato histórico, fontes de
pesquisa, tempo etc.), segundo uma conjuntura (econômica, social, política, cien-
tífica, ideológica etc.) específica. Nesse sentido, por se relacionar a uma conjuntura
e por expressar características próprias, verificamos que as teorias da História são
diferentes entre si.
Por conseguinte, se o trabalho do historiador apresenta uma sincronia com as te-
orias da História, que são peculiares, ele também é específico e, assim como as te-
orias, transmite uma resposta conceitual, metodológica e teórica a um problema.
143
REFERÊNCIAS

ALVES, Sérgio Reis et al. Pensando em sociedade. Disponível em: http://www.ate-


nas.edu.br/faculdade/arquivos/NucleoIniciacaoCiencia/RevistaCientifica/REVIS-
TA%20CIENTIFICA%202008/9%20PENSANDO%20EM%20SOCIEDADE%20-%20S%-
C3%A9rgio.pdf. Acesso em: 24 mar. 2014.
AMÂNCIO, Silvia Maria; IPÓLITO, Verônica Karina; PRIORI, Angelo. Memória individu-
al, memória coletiva. In: PRIORI, Angelo. Introdução aos estudos históricos. Marin-
gá: Eduem, 2010. p.45-53.
BARROS, José D ’Assunção. A Nova História Cultural–considerações sobre o seu
universo conceitual e seus diálogos com outros campos históricos. Cadernos de
História, Belo Horizonte, v. 12, n. 16, p. 38-63, nov. 2011. Disponível em: <http://
periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoshistoria/article/view/987>. Acesso em:
16 abr. 2014.
————. Considerações sobre o paradigma positivista em história. Revista Histo-
riar -Universidade Estadual Vale do Acaraú – v.4. n. 4, p.1-20, jan./jun. 2011.
————. Os Campos da História: uma introdução às especialidades da História. Re-
vista HISTEDBR On-line, Campinas, n.16, p. 17 -35, dez. 2004. Disponível em: <http://
www.histedbr.fae.unicamp.br/revista/revis/revis16/art3_16.pdf>. Acesso em: 16
abr.2014.
————. Os conceitos de ‘modo de produção’ e determinismo – revisitando as di-
versas discussões no âmbito do materialismo histórico. CLIO – Revista de Pesquisa
Histórica, Pernambuco, n. 28, jan. 2010. Disponível em : <www.revista.ufpe.br/revis-
taclio/index.php/revista/article/view/111/84>. Acesso em: 18 mar. 2014.
BIRARDI, Angela; CASTELANI, Gláucia Rodrigues; BELATTO, Luiz Fernando. O Positi-
vismo, Os Annales e a Nova História. 2008. Disponível em: <http://www.klepsidra.
net/klepsidra7/annales.html>. Acesso em: 13 mar. 2014.
BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. 6. ed. Lisboa: Editorial Presença,
1990.
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jor-
ge Zahar Editor, 2001.
BLOCK, Lisa. Recordar: uma palavra clave. In: CORNELSEN, Elcio Loureiro et al. (org.).
Imagem e memória. Belo Horizonte: Rona Editora. FALE/UEMG, 2012. p.23-40.
BOSI, Alfredo. O tempo e os tempos. In: NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e História.
São Paulo: Cia das Letras, 1992. p.19-32.
BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé. As escolas históricas. 2. ed. Lisboa: Publicações Eu-
ropa-América, 2003.
BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historio-
grafia. São Paulo: Editora Unesp, 1997.
REFERÊNCIAS

CARR, Edward. Hallet. O historiador e seus fatos. In: Que é história? 9. ed. São Paulo:
Paz e Terra, 2006.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora; CAINELLI, Marlene. Ensinar História. São Paulo: Sci-
pione, 2004.
CROCE, Benedetto. A História: pensamento e ação. Trad. Darcy Damasceno. 6. ed.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1962.
DOSSE, François. A História em migalhas: dos Annales à Nova História. Bauru:
EDUSC, 2003.
ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
FAUSTINO, Rosângela Célia; GASPARIN, João Luiz. A influência do positivismo e do
historicismo na educação e no ensino de história. In: Acta Scientiarum. Maringá, v.
23, n. 1, p.157-166, jan-jun. 2001.
GIANNOTTI, José Arthur (consultoria). Marx - Vida e obra. In: Karl Marx: para a crítica
da economia política do capital. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
GLÉNISSON, Jean. Iniciação aos estudos históricos. 2. ed. Rio de Janeiro – São Pau-
lo: Difel, 1977.
HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fon-
tes, 1995.
HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital: 1848-1875. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1977.
HOBSBAWM, Eric. Da Revolução Industrial Inglesa ao Imperialismo. Rio de Janei-
ro: Paz e Terra, 1981.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
HOBSBAWN, Eric J. Sobre História. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
JANOTTI, Maria de Lourdes. O livro Fontes Históricas como fonte. In: Pinsky, Carla
Bassanezi (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
LANGLOIS, Ch. V.; SEIGNOBOS, Ch. Introdução aos estudos históricos. São Paulo:
Renascença, 1946.
LE GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
LE GOFF, Jacques. História e memória. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1992.
MARROU, Henri-Irénée. Sobre o conhecimento histórico. Rio de Janeiro: Zahar Edi-
tores, 1978.
MARX, K.; ENGELS. Manifesto comunista. São Paulo: CHED, 1980.
145
REFERÊNCIAS

MEKSENAS, Eduardo. Importância e atualidade da obra de Karl Marx. Revista Espa-


ço Acadêmico. n. 86, jul. 2008. Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.
br/086/86Eemeksenas.htm>. Acesso em: 13 mar. 2014.
MOREIRA, Raimundo Nonato Pereira. História e memória: algumas observações. Prá-
xis: Revista eletrônica de História e Educação. ano II, n. 2, 2011. Disponível em:
<http://www.fja.edu.br/proj_acad/praxis/praxis_02/documentos/ensaio_2.pdf>.
Acesso em: 16 abr. 2014.
MOTA, Carlos Guilherme (org). Lucien Febvre: História. Coleção grandes cientistas
sociais. São Paulo: Ática, 1978.
NOVAES, Adauto. Sobre tempo e História. In: NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e His-
tória. São Paulo: Cia das Letras, 1992. p. 9-17.
PAGÈS, Pelai. Introducción a la Historia. Epistemología, teoria y problemas de mé-
todo em los estúdios históricos. Barcelona: Barcanova, 1983.
PRIORI, Angelo. A história e o ofício do historiador. In: _____. Introdução aos estu-
dos históricos. Maringá: Eduem, 2010. p.11-18.
PRIORI, Angelo; MARTIN, Andrey Minin. Marx e a história. In: PRIORI, Angelo. Intro-
dução aos estudos históricos. Maringá: Eduem, 2010. p.91-101.
REIS, José Carlos. Escola dos Annales: a inovação em história. São Paulo: Paz e Terra,
2000.
REIS, José Carlos. História e teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e
verdade. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
REIS, José Carlos. Tempo, História e Evasão. Campinas: Papirus, 1994.
REIS, José Carlos et al. Os Annales: a renovação teórico-metodológica e utópica da
história pela reconstrução do tempo histórico.  História e história da educação:
o debate teórico metodológico atual. Campinas, Autores Associados/HISTE-
DBR (1998).
RÉMOND, René (org). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ – Fun-
dação Getúlio Vargas, 1996.
SCHAFF, Adam. História e verdade. Trad. Maria Paula Duarte. 2. ed. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 1983.
SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos.
3. Ed. São Paulo: Contexto, 2010.
SPINDEL, Arnaldo. O que é Socialismo. 19. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e História Cultural. In: CARDOSO, Ciro
F; e VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domínios da História. RJ: Campus, 1997.
VINCENT, Andrew. Ideologias políticas modernas. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
REFERÊNCIAS

ZANIRATO, Silvia Helena. Concepções contemporâneas do tempo histórico. Cader-


no de metodologia e Técnica de pesquisa. Maringá. v.9, p.89-97, 1999.  
ZANIRATO, Silvia Helena. O tempo da história. In: PRIORI, Angelo. Introdução aos
estudos históricos. Maringá: Eduem, p.21-30, 2010.

Você também pode gostar