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A sede da gleba de Vila Amazônia - a comunidade de Santa Maria - fica cerca de meia
hora de barco de Parintins (estado do Amazonas). As terras que compõem Vila Amazônia
compreendem mais de trezentos mil hectares, sendo compostas por inúmeras comunidades.
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Professora do curso de Licenciatura Plena em História da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP) sob a orientação da Profª Drª Olga Brites. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do
Amazonas (FAPEAM). monicaxavierm@yahoo.com.br.
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sociabilidades ligadas ao trabalho, moradia, lazer, enfim, locais de cultura enquanto modo de
vida.
Com a Reforma Agrária, os posseiros passam a ser pequenos proprietários de terras e
outras situações emergem tais como a titulação das terras, pagamentos de impostos (ITR),
demarcação de terras, políticas públicas de infraestrutura na região, tais como a construção de
estradas, distribuição de energia (com o programa federal “Luz para Todos”), o acesso ao
crédito rural e mais recentemente a ampla disseminação de políticas assistencialistas como o
bolsa-família.
Há, portanto, uma importante mudança no padrão de ocupação de terras nessa região
que implica na reelaboração de sentidos do viver, seja nas relações de trabalho, nas relações
com a floresta, nas relações comunitárias e de vizinhança, no lazer, na educação, enfim, na
cultura desses sujeitos.
A História hegemônica na Amazônia é contada através do olhar do outro. Nesse
sentido, as memórias de colonizadores leigos (ligados à administração estatal portuguesa e
espanhola) e missionários (séculos XVI e XVII) e mais tarde as memórias dos viajantes
naturalistas (séculos XVIII e XIX) impulsionaram e embasaram a produção historiográfica
que acabou por cunhar uma certa ideia de “Amazônia”. Essa historiografia hegemônica é
ligada à adoção dos superlativos naturais como “natureza exuberante”, “inferno verde”,
“paraíso natural” (ALMEIDA, 2008). No século XX, surgiu uma nova forma de abordagem
sobre a História da Amazônia que é a dos “ciclos econômicos”.
Nesse sentido, este trabalho procura dialogar com sujeitos histórico-sociais silenciados
pela historiografia dominante e
“procura trazer à tona outras histórias da realidade social, valorizar novas temáticas,
desconstruir periodizações consagradas em arranjos oficiais que, em nome do bem geral e
da harmonia social, pretendem uniformizar contextos históricos, extirpando da história
tensões, conflitos, padrões e valores alternativos” (FENELÓN, 2006, pg.05).
Além do diálogo que se pretende estabelecer com sujeitos não hegemônicos, essa
pesquisa parte de uma inquietação atual que é problematizar certos conceitos que são
valorados positivamente pela mídia e até mesmo na academia como “desenvolvimento
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Dialogar com os sujeitos sociais que vivem em Vila Amazônia, que lidam com as
políticas do INCRA e IDAM5, que obtiveram luz com o programa Luz para todos ou aqueles
para os quais a energia elétrica ainda é apenas promessa, que recebem o Bolsa-Família, que já
receberam crédito rural para “desenvolver” sua atividade agropecuária, extrativa ou pesqueira,
ou para aqueles que ainda não se enquadraram no “perfil” de agricultor preconizado pelo
PRONAF, nos faz “perceber tensões nesses processos que explicitam as contradições e as
lutas de classes existentes no social construindo caminhos alternativos de maneira a exigir de
nós o reconhecimento de culturas em toda a sua pluralidade e diversidade”6.
Seu Odenil: Quando você vai convidar, ninguém diz assim que não, tudo diz que vai.
Quando chega na hora, depois dá aquela desculpa: rapaz eu não fui no teu trabalho
porque eu tava ocupado, tinha que fazer isso. Não é, é porque perderam o costume, agora
se você diz: eu preciso de 15 pessoas, eu tenho dinheiro pra pagar 15 pessoas, as vez da
até mais de 15, aparece gente, por causa do dinheiro. E, então isso aí, foi uma mudança
que houve.
(...)
Mônica: Quando é que começou a aparecer o dinheiro mesmo nessas relações aí?
Seu Odenil: Olha, começou a aparecer o dinheiro quando começou a aparecer essas
finança. Através das finanças que muita gente virou-se patrão. Quem sabe usar ele é
bom, e quem estraga né, porque tem gente que as vez estraga.
Mônica: Essas finanças como o senhor fala, essas finanças do governo?
Seu Odenil: Do governo através do banco né. Porque lá no interior, lá na comunidade
que por exemplo: olha, vai ter uma finança ai pra roça, o José, o Raimundo, o Benedito
fez a finança, os outros só tão esperando aqui, se eles recebe e dizer: Olha, eu vou fazer
trabalho, aí tem gente pra trabalhá, a senhora tá entendendo?
Seu Odenil atribui sentidos a este momento ao colocar que aqueles que recebem
financiamento de crédito rural acabam virando “patrão”, pois passam a pagar o trabalho que
antes era desenvolvido através do trabalho coletivo.
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Puxirum é uma forma de trabalho coletivo (mutirão) comum na zona rural na Amazônia.
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capitalista. De um lado vemos a realização de grandes projetos muito parecidos aos realizados
no período da Ditadura Militar, como a construção de Hidrelétricas como a de Jirau, Santo
Antônio e Belo Monte8, onde há a combinação de geração de energia elétrica para satisfazer
as necessidades do centro-sul, trabalhadores em condições precárias com baixos salários e
péssimas condições de trabalho9 e fortes impactos ambientais e sociais em grandes áreas de
florestas e remoção de populações tradicionais de seus territórios. De outro lado, vemos novas
práticas ambientalistas engendradas por outra forma de exploração capitalista, ligadas a
empresas e países que compram créditos de carbono, indústrias de fitoterápicos ou cosméticos
com base em produtos naturais. Os conceitos de “desenvolvimento sustentável” e a propalada
ênfase (fomentada por financiamentos públicos) na “agricultura familiar” são engendrados
neste contexto. Vila Amazônia passou por um processo de reforma agrária baseado num
ordenamento territorial do governo federal. Todas essas memórias e histórias compõem a
trama em que vivem e sobre a qual narram os seus moradores/trabalhadores.
BIBLIOGRAFIA
- ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Antropologia dos Arquivos na Amazônia. Rio de
Janeiro: Casa 8/ Fundação Universidade do Amazonas. 2008.
- MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto de. KHOURY, Yara Aun (orgs).
Outras Histórias: Memórias e Linguagens. São Paulo: Olho d’água. 2006.
- FENELON, Déa Ribeiro; MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto; KHOURY,
Yara Aun (orgs). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d’água, 2004.
- OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A geografia das lutas do campo. São Paulo: EDUSP,
1994.
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A construção das Usinas hidrelétricas em Jirau e Santo Antônio fazem parte do Programa de Aceleração de
Crescimento (PAC) que prevê a construção dessas duas usinas no Rio madeira e resultará no alagamento de um
trecho de mais de 500 Km² na região. Já a Usina hidrelétrica de Belo Monte está sendo construída no Rio Xingu
e conta com a oposição de parcela das etnias indígenas da região e de movimentos ambientalistas.
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Em 2011 ocorreram uma série de revoltas trabalhistas em obras do PAC, especificamente nas obras de Jirau e
Santo Antônio, os trabalhadores lutavam por direitos fundamentais tais como aumentos salariais, exigência de
boa comida nos refeitórios, a possibilidade de viajar com mais frequência para visitar suas famílias.
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