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Memórias, Histórias e Reforma Agrária em Vila Amazônia (Parintins/AM)


Mônica Xavier de Medeiros1

Esta pesquisa analisa narrativas orais de trabalhadores assentados em Vila Amazônia e


busca perceber as expectativas e interpretações destes sobre o processo de Reforma Agrária
vivenciado na região a partir de 1988, quando 78.270 hectares de terras foram desapropriados
para este fim. Pretende também analisar como estes trabalhadores percebem as políticas
públicas aplicadas na região não somente a partir da Reforma Agrária como, mais
contemporaneamente, com as políticas pautadas pela lógica do “desenvolvimento sustentável”
e da “economia verde”.

A sede da gleba de Vila Amazônia - a comunidade de Santa Maria - fica cerca de meia
hora de barco de Parintins (estado do Amazonas). As terras que compõem Vila Amazônia
compreendem mais de trezentos mil hectares, sendo compostas por inúmeras comunidades.

A História Social, bem como a análise de narrativas orais de trabalhadores de Vila


Amazônia, ajudam a pensar a problemática da pesquisa, pois percebemos como estes
significam esse tempo de mudanças pautado pelo desenvolvimento de uma série de políticas
públicas para a região como a própria Reforma Agrária, fruto de um ordenamento territorial
estatal, e outras como o Luz para Todos, abertura de estradas, crédito para financiamento de
atividades rurais entre outras.

Nos anos 80, com o advento da Nova República e o processo de redemocratização da


sociedade brasileira foi instituído um Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). A
construção de um PNRA era prevista pelo Estatuto da Terra, que havia sido aprovado em
1964 durante o governo do Marechal Humberto Castelo Branco, porém este não chegou a ser
elaborado. Ao contrário, durante o governo militar foi preconizada uma política fundiária para

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Professora do curso de Licenciatura Plena em História da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP) sob a orientação da Profª Drª Olga Brites. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do
Amazonas (FAPEAM). monicaxavierm@yahoo.com.br.
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a região amazônica, calcada nos paradigmas integração-segurança/desenvolvimento


(OLIVEIRA, 1994). O capital internacional e o capital industrial do Centro-Sul do país
tornaram-se sujeitos, juntamente com o Estado e os governos títeres locais na elaboração das
políticas de desenvolvimento para a região. A aplicação dessas políticas engendradas pelo
grande capital passava ao largo da ocupação tradicional da terra na Amazônia (VICENTINI,
2004).

As políticas de integração nacional e desenvolvimentistas atuaram no sentido de


modificar o processo cultural de apropriação de terras na região no qual trabalhadores rurais
se apossavam destas terras. Nesse sentido, esta pesquisa objetiva entender este processo
através da análise das narrativas orais de sujeitos históricos que o vivenciaram, ou seja, busca
perceber como essas pessoas significaram este momento de ordenamento territorial nesta
espacialidade na Amazônia. O trabalho com a história oral permite percebermos as
contradições desses espaços e como os sujeitos sociais resistem, submetem-se ou como
encontram alternativas a esses processos.
As políticas de colonização não representam novidade na região amazônica e mesmo
em Vila Amazônia. Desde a década de 30 do século XX, a Vila Amazônia é palco de políticas
de colonização. Em 1930 o governo do estado do Amazonas, em conjunto com o Japão,
promove a colonização japonesa, época em que ocorre a introdução do cultivo de juta (que é
trazida da Ásia e torna-se um importante produto para a economia de Parintins e do
Amazonas). Com a entrada do Brasil na 2ª Guerra Mundial e diante do “perigo amarelo”
alardeado pelas autoridades, tem-se a expulsão dos japoneses. Nas décadas de 50 e 60, as
terras de Vila Amazônia são compradas pelo empresário J. G. Araújo que, além da produção
da juta, diversifica as atividades agropecuárias e extrativistas da região. Em fins da década de
80 temos, então, nova intervenção com o INCRA e a formação de um dos maiores
assentamentos rurais da Amazônia.
É preciso pontuar enfaticamente que durante e mesmo antes de todos esses “ciclos”,
não havia um “vazio demográfico”, ao contrário, essa região é habitada secularmente por
inúmeras famílias de trabalhadores que vivem baseados na posse da terra. São pescadores,
agricultores e extratores que transformam as terras, florestas e águas da região em locais de
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sociabilidades ligadas ao trabalho, moradia, lazer, enfim, locais de cultura enquanto modo de
vida.
Com a Reforma Agrária, os posseiros passam a ser pequenos proprietários de terras e
outras situações emergem tais como a titulação das terras, pagamentos de impostos (ITR),
demarcação de terras, políticas públicas de infraestrutura na região, tais como a construção de
estradas, distribuição de energia (com o programa federal “Luz para Todos”), o acesso ao
crédito rural e mais recentemente a ampla disseminação de políticas assistencialistas como o
bolsa-família.
Há, portanto, uma importante mudança no padrão de ocupação de terras nessa região
que implica na reelaboração de sentidos do viver, seja nas relações de trabalho, nas relações
com a floresta, nas relações comunitárias e de vizinhança, no lazer, na educação, enfim, na
cultura desses sujeitos.
A História hegemônica na Amazônia é contada através do olhar do outro. Nesse
sentido, as memórias de colonizadores leigos (ligados à administração estatal portuguesa e
espanhola) e missionários (séculos XVI e XVII) e mais tarde as memórias dos viajantes
naturalistas (séculos XVIII e XIX) impulsionaram e embasaram a produção historiográfica
que acabou por cunhar uma certa ideia de “Amazônia”. Essa historiografia hegemônica é
ligada à adoção dos superlativos naturais como “natureza exuberante”, “inferno verde”,
“paraíso natural” (ALMEIDA, 2008). No século XX, surgiu uma nova forma de abordagem
sobre a História da Amazônia que é a dos “ciclos econômicos”.
Nesse sentido, este trabalho procura dialogar com sujeitos histórico-sociais silenciados
pela historiografia dominante e
“procura trazer à tona outras histórias da realidade social, valorizar novas temáticas,
desconstruir periodizações consagradas em arranjos oficiais que, em nome do bem geral e
da harmonia social, pretendem uniformizar contextos históricos, extirpando da história
tensões, conflitos, padrões e valores alternativos” (FENELÓN, 2006, pg.05).

Além do diálogo que se pretende estabelecer com sujeitos não hegemônicos, essa
pesquisa parte de uma inquietação atual que é problematizar certos conceitos que são
valorados positivamente pela mídia e até mesmo na academia como “desenvolvimento
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sustentável”2. Evidenciando suas historicidades, analisando os sujeitos que defendem os


projetos políticos que lhes são implícitos, podemos transitar para além da naturalização de
mais um “ciclo econômico”, que seria o da “economia verde”3. A análise desses conceitos nos
remete às políticas públicas implementadas na região neste início de século XXI como o
programa “Luz para Todos”, o “Bolsa Família” e o PRONAF4.

Dialogar com os sujeitos sociais que vivem em Vila Amazônia, que lidam com as
políticas do INCRA e IDAM5, que obtiveram luz com o programa Luz para todos ou aqueles
para os quais a energia elétrica ainda é apenas promessa, que recebem o Bolsa-Família, que já
receberam crédito rural para “desenvolver” sua atividade agropecuária, extrativa ou pesqueira,
ou para aqueles que ainda não se enquadraram no “perfil” de agricultor preconizado pelo
PRONAF, nos faz “perceber tensões nesses processos que explicitam as contradições e as
lutas de classes existentes no social construindo caminhos alternativos de maneira a exigir de
nós o reconhecimento de culturas em toda a sua pluralidade e diversidade”6.

A relevância da pesquisa consiste no estabelecimento do diálogo com esses


trabalhadores de Vila Amazônia, sujeitos histórico-sociais não hegemônicos e silenciados pela
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O tema da 9ª Semana Nacional de Ciência e Tecnologia foi “Sustentabilidade, Economia Verde e Erradicação
da Pobreza”, o que demonstra a grande repercussão e inserção da temática na academia. Tem-se essa nova
forma de exploração do capital como algo dado, naturalizado. As universidades inscreveram milhares de
atividades para o desenvolvimento da temática. Perceber como os conceitos “desenvolvimento sustentável” e
“economia verde” constituíram-se historicamente e a partir de quais disputas no social é um dos objetivos
desta pesquisa.
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A “economia verde” foi um dos principais temas discutidos pela Rio + 20 (Conferência das Nações Unidas para
o Desenvolvimento Sustentável). Os defensores desta política econômica afirmam aliar desenvolvimento
econômico, inclusão social e preservação do meio ambiente. Percebo a economia verde como outra forma de
exploração do capital tanto internacionalmente como especificamente na Amazônia, baseada em práticas
sociais diferentes das preconizadas durante a Ditadura Militar no Brasil.
4
O Programa Nacional de Desenvolvimento da Agricultura Familiar (PRONAF) é um programa da Secretaria da
agricultura familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário que financia com juros baixos atividades que
gerem renda ao agricultor familiar, ou seja, o produtor rural, o “pescador artesanal”, o extrator. Dentro do
PRONAF existe uma linha de crédito que atende especificamente assentados da Reforma Agrária. Nesta
pesquisa, pretendo problematizar que atividades são financiadas pelo PRONAF e sob quais condições.
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O Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (IDAM) tem por
objetivo promover assistência técnica às atividades agropecuárias, florestais, pesqueiras e agroindustriais das
populações rurais na Amazônia. Em Parintins, há uma sede do IDAM que acompanha a produção desenvolvida
pelo assentamento de Vila Amazônia, também é responsável pelo cadastro do produtor para obtenção de
crédito rural.
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FENELON, 2006, 7.
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historiografia oficial na Amazônia. A análise do diálogo com esses sujeitos permite-nos


repensar recortes temporais consagrados, estereótipos vinculados aos trabalhadores/moradores
que vivem na/da floresta bem como evidenciar outras histórias desta localidade (Vila
Amazônia/Baixo Amazonas), profundamente marcada não apenas por uma interpretação que
exalta os colonizadores desde os portugueses no período colonial aos japoneses no início do
século XX (o que acaba por ocultar os sujeitos com os quais pretendo dialogar na pesquisa),
mas também marcada na contemporaneidade por uma disputa de valores e práticas sociais
preconizadas pelas políticas de desenvolvimento sustentável para a região.

Seu Odenil Ramos Muniz, 54 anos, beneficiário do projeto de Reforma Agrária da


região, ao nos falar sobre o puxirum7 coloca:

Seu Odenil: Quando você vai convidar, ninguém diz assim que não, tudo diz que vai.
Quando chega na hora, depois dá aquela desculpa: rapaz eu não fui no teu trabalho
porque eu tava ocupado, tinha que fazer isso. Não é, é porque perderam o costume, agora
se você diz: eu preciso de 15 pessoas, eu tenho dinheiro pra pagar 15 pessoas, as vez da
até mais de 15, aparece gente, por causa do dinheiro. E, então isso aí, foi uma mudança
que houve.
(...)
Mônica: Quando é que começou a aparecer o dinheiro mesmo nessas relações aí?
Seu Odenil: Olha, começou a aparecer o dinheiro quando começou a aparecer essas
finança. Através das finanças que muita gente virou-se patrão. Quem sabe usar ele é
bom, e quem estraga né, porque tem gente que as vez estraga.
Mônica: Essas finanças como o senhor fala, essas finanças do governo?
Seu Odenil: Do governo através do banco né. Porque lá no interior, lá na comunidade
que por exemplo: olha, vai ter uma finança ai pra roça, o José, o Raimundo, o Benedito
fez a finança, os outros só tão esperando aqui, se eles recebe e dizer: Olha, eu vou fazer
trabalho, aí tem gente pra trabalhá, a senhora tá entendendo?

Seu Odenil atribui sentidos a este momento ao colocar que aqueles que recebem
financiamento de crédito rural acabam virando “patrão”, pois passam a pagar o trabalho que
antes era desenvolvido através do trabalho coletivo.

Atualmente vivemos um período no qual a questão ambiental tem grande relevância.


Há uma disputa declarada na floresta para consolidar determinada forma de exploração

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Puxirum é uma forma de trabalho coletivo (mutirão) comum na zona rural na Amazônia.
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capitalista. De um lado vemos a realização de grandes projetos muito parecidos aos realizados
no período da Ditadura Militar, como a construção de Hidrelétricas como a de Jirau, Santo
Antônio e Belo Monte8, onde há a combinação de geração de energia elétrica para satisfazer
as necessidades do centro-sul, trabalhadores em condições precárias com baixos salários e
péssimas condições de trabalho9 e fortes impactos ambientais e sociais em grandes áreas de
florestas e remoção de populações tradicionais de seus territórios. De outro lado, vemos novas
práticas ambientalistas engendradas por outra forma de exploração capitalista, ligadas a
empresas e países que compram créditos de carbono, indústrias de fitoterápicos ou cosméticos
com base em produtos naturais. Os conceitos de “desenvolvimento sustentável” e a propalada
ênfase (fomentada por financiamentos públicos) na “agricultura familiar” são engendrados
neste contexto. Vila Amazônia passou por um processo de reforma agrária baseado num
ordenamento territorial do governo federal. Todas essas memórias e histórias compõem a
trama em que vivem e sobre a qual narram os seus moradores/trabalhadores.

BIBLIOGRAFIA

- ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Antropologia dos Arquivos na Amazônia. Rio de
Janeiro: Casa 8/ Fundação Universidade do Amazonas. 2008.
- MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto de. KHOURY, Yara Aun (orgs).
Outras Histórias: Memórias e Linguagens. São Paulo: Olho d’água. 2006.
- FENELON, Déa Ribeiro; MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto; KHOURY,
Yara Aun (orgs). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d’água, 2004.
- OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A geografia das lutas do campo. São Paulo: EDUSP,
1994.

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A construção das Usinas hidrelétricas em Jirau e Santo Antônio fazem parte do Programa de Aceleração de
Crescimento (PAC) que prevê a construção dessas duas usinas no Rio madeira e resultará no alagamento de um
trecho de mais de 500 Km² na região. Já a Usina hidrelétrica de Belo Monte está sendo construída no Rio Xingu
e conta com a oposição de parcela das etnias indígenas da região e de movimentos ambientalistas.
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Em 2011 ocorreram uma série de revoltas trabalhistas em obras do PAC, especificamente nas obras de Jirau e
Santo Antônio, os trabalhadores lutavam por direitos fundamentais tais como aumentos salariais, exigência de
boa comida nos refeitórios, a possibilidade de viajar com mais frequência para visitar suas famílias.
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- VICENTINI, Yara. Cidade e História na Amazônia. Paraná: UFPR. 2004.

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