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DOS CONFLITOS QUE EMERGEM DAS ÁGUAS: A ORGANIZAÇÃO

COMUNITÁRIA EM TORNO DOS ACORDOS DE PESCA NO AMAZONAS

Francisco Igo Said Pinheiro1

Resumo: A Amazônia possui uma vastidão de recursos naturais que são utilizados desde os
primórdios pela população local, no entanto, com o avanço das relações de mercado na região
houve o agravamento da exploração desses recursos, resultando em diversos conflitos
ensejando o domínio das territorialidades aquáticas, florestais e agropastoris. Nesse sentido,
os chamados Acordos de Pesca surgem no contexto histórico de modernização da pesca por
meio de incentivos fiscais dos quais visavam a dinamização de pescadores comerciais e/ou
profissionais em detrimentos das atividades realizadas por pescadores artesanais, esses,
dotados de um exímio conhecimento ecológico, buscaram exercer essas atividades
conjuntamente ao estoque pesqueiro e a característica das espécies, opondo-se a lógica da
produtividade. Ao longo deste manuscrito trataremos da consolidação dos Acordos de Pesca
como a principal alternativa adotada por camponeses-ribeirinhos diante da ineficiência do
Estado no controle e monitoramento dos rios e lagos no estado do Amazonas, evidenciando as
características dos conflitos, o papel das instituições, o fenômeno da sobrepesca e o
empobrecimento desses pescadores. Mais ainda, buscar-se-á determinar a importância da
institucionalização dessa modalidade de gestão participativa do território pelas populações
que sempre preservaram sua sociobiodiversidade.

Palavras-chave: Territorialidade; Acordos de Pesca; Organização social.

INTRODUÇÃO

Antes mesmo de ser considerado um ser histórico, o homem cria e recria sua história
no tempo e no espaço simbioticamente a natureza de suas ocupações e no sentido amplo de
sua reprodução (KOSIK, 1976). Quando retratamos o contexto amazônico evidenciando as
populações tradicionais aqui existentes, a produção histórica das ocupações nas áreas de
várzea nos conduz a refletir sobre o modo de vida de camponeses-ribeirinhos. Estes, por sua
vez, possuem especificidades tangíveis de discussões ao abordarmos sua reprodução em
consonância as forças hegemônicas instituídas no bojo do sistema capitalista, sem, ao
mesmo tempo, descaracterizar a essência sociocultural ligada ao dinamismo familiar,
autônomo e dialógico com os meios terrestres, fluviais e florestais (SHANIN, 2005).

1
Geógrafo, Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Geografia – PPGEOG/UFAM
E-mail: franciscoigosaid@gmail.com
O processo de ocupação da várzea na Amazônia foi iniciada pelos indígenas que
realizavam atividades de subsistência ligada a pesca, agricultura e caça. A pesca, em
especial, concebia mudanças nas práticas de captura, perpassando técnicas primitivas e
inserindo novos apetrechos como a rede de malhadeira, introduzida pelos portugueses.
Concomitantemente a este processo, a região ganhara proporções nacionais em virtude do
ciclo da borracha e do crescimento expressivo da cidade de Manaus, impusionando fluxos
migratórios para a região.
Ressalta-se que a proletarização da da mão-de-obra indígena ou de migrantes do
restante do país fomentou a ocupação das áreas de várzea por esses trabalhadores dos quais
viviam em condições de subemprego. Diante dessa exposição, a ocupação das áreas de
várzea não pode ser confundida com uma noção de desilusão que motivou a partida de
inúmeros migrantes para a região norte brasileira, mas sim de uma construção de
territorialidades apropriadas de maneira contínua por indivíduos que buscaram sua
reprodução em simbiose a natureza, instituindo, assim, relações de controle, bem como de
subordinação, coexistindo em sintonia (CORRÊA, 1989; SOUZA, 1995).
Com o avanço do monopólio de produção pesqueira sobre a Amazônia, sobretudo, a
partir da década de 1970, onde o estado brasileiro através da Superintendência do
Desenvolvimento da Pesca – SUDEPE, incentivou a construção de grandes projetos
tecnocráticos voltados para a exportação de pescados e o crescimento da demanda urbana pelo
produto in natura, populações tradicionais começaram a sentir os reflexos da sobrepesca.
Seguindo essa lógica apoiada no pensamento de Oliveira (2005) a despeito das contradições
produzidas na região amazônica, nos possibilita entender a constituição desses monopólios
industriais que delimitaram frações territoriais destinadas ao circuito econômico de produção.
Como consequência da escassez de recursos pesqueiros, houve o crescente
deslocamento de camponeses-ribeirinhos para a pescaria considerada comercial, no sentido de
alimentar a indústria de exportação, apoiados pela iniciativa privada na aquisição de
equipamentos, bem como embarcações motorizadas dispondo de geleiras para o
armazenamento das espécies capturadas. O fato se deu pelo comprometimento da renda
familiar, pois no campo realizavam-se o plantio de diversas culturas que, uma vez colhidas,
tornavam-se matéria-prima para a produção de farinha e goma, por exemplo. Além disso, o
pagamento de um salário (diário, semanal, quinzenal ou mensal) criavam estratégias para o
transporte e comercialização da pequena produção do campo nas cidades, fato esse
corroborado pela socialização do trabalho na unidade familiar, onde esposas e filhos mais
velhos dividem as atividades.
Todavia, em quaisquer circunstâncias nutridas pelas relações de poder existem
resistências originadas pela organicidade social e o discurso defendido. A partir da década de
1980 organizações políticas e religiosas foram inseridas nas discussões em relação aos
conflitos de pesca, buscando compreender as manifestações locais e os efeitos das práticas
haliêuticas por meio das técnicas e quantitativo de espécies capturado. No estado do
Amazonas, as prelazias de Coari, Manaus, Tefé, Itacoatiara e Parintins iniciaram as
Assembleias Comunitárias tendo como princípios norteadores o desenvolvimento sustentável,
nesse caso, dos recursos renováveis da região. Inicialmente, buscou-se compreender a
natureza dos conflitos para que as demandas fossem sistematizadas e enviadas aos órgãos de
controle ambiental.
O conceito de Acordo de Pesca ou Gestão Participativa, surge a partir das conclusões
adquiridas ao longo de mais de dez reuniões envolvendo comunitários, religiosos,
pesquisadores, membros de ONGs e órgãos de fiscalização. Sua fundamentação englobava a
sustentabilidade dos recursos pesqueiros e o controle regulatório sobre as áreas de pesca,
definindo espaços de manejo, manutenção e de livre acesso, sendo responsabilidade dos
comunitários e fiscais do IBAMA a observação do cumprimento dos acordos (OVIEDO,
2006).
O histórico para o estabelecimento destes acordos ocorre em paralelo com a
notoriedade industrial e comercial dada a Manaus/AM através de seu modelo econômico, em
um momento onde se tentou tornar a pesca comercial mais industrial e mais ostensiva
buscando atender a demanda cada dia mais crescente. Eles surgem para dar fim a tensão entre
pequenos produtores e os pescadores comerciais.
Um segundo ponto quanto ao estabelecimento é suas origens e influências que
remetem a Europa da revolução industrial, que passava por mudanças estruturais do ponto de
vista social e econômico, momento em que os efeitos da pesca predatória começaram a ser
sentidos e foi necessário a mobilização social da classe de pescadores. No caso da Amazônia,
estes acordos se estabelecem na cidade do Itacoatiara/AM, com a mediação da Igreja Católica
e, com o passar dos anos, outros agentes passam a constituir essas políticas socioambientais
(ONGs, universidades e em menor volume, o estado).

TERRITORIALIDADES DISSIDENTES
Pensar territórios e territorialidades na Amazônia tornou-se desafiador para muitos
geógrafos/as que buscam compreender a formação histórica do espaço amazônico e suas
nuances. Para simplificar a questão, pensemos no processo de ocupação da Amazônia, a
priori, pelas missões religiosas e, posteriormente, pelo domínio ibérico. Esse período é
marcado mundialmente pelas rotas colonizadoras de um capitalismo em fases mercantis. Suas
marcas no tempo e espaço comprometeram substancialmente a relação da população indígena
dentro de sua cosmologia (PINTO, 2005). O território e as territorialidades em questão foram
cedidos coercitivamente pelas tropas portuguesas, avançando pela floresta, ocupando extensas
áreas de interesse para a atividade produtiva (drogas do sertão e engenhos de açúcar). Não
obstante, o projeto então iniciado teve como pressuposto o apagamento cultural dessas
populações, modificando traços identitários ligados a língua falada, vestimentas, organização
e padrão das moradias, até nas formas de extrair recursos do ambiente (pesca, extrativismo,
pequena criação em terra firme).
Em síntese, reverberou a matriz de pensamento branca e eurocêntrica em terras
brasilis, fato esse que acompanha, no decurso histórico, a tríade político-econômico-social
que dá sustentáculo ao Estado brasileiro, especialmente no que se refere a políticas
segregacionistas, racistas, xenofóbicas que, em tese, contribuem sobremaneira na produção de
discursos cuja afinidade se contrapõem a soberania de povos tradicionais, caso esse
manifestado no avanço do capital pelas territorialidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas.
No entanto, como bem nos advertiu Michel Foucault (2005), para cada relação onde o poder
se traduz em violência, nascem e renascem espaços de resistência através de questões afetivas
comuns a todos. E pelo que se acompanha em uma Amazônia pós Segunda Guerra Mundial
de projetos de integração, mineradoras, garimpo, agronegócio e tensões pelo acesso à terra
que ocorrem no interior desses megaprojetos mobilizações de grupos sociais objetivando
assegurar direitos pelo uso e ocupação de seus espaços socialmente produzidos, enraizados,
forma essa de ser e estar no tempo, logo, nesses pensamentos utópicos reside a necessidade da
luta pelo (re)territorializar-se (HARRIS, 2006; HARVEY, 2006).
A discussão acima comentada discorre sobre o processo de ocupação da Amazônia,
mais ainda, pelo que se produziu no espaço – os arranjos espaciais – e como a manutenção
desses espaços reverbera na preservação das territorialidades (MOREIRA,1982). Para isso,
precisaremos recorrer ao cerne ao cerne da discussão territorial na Geografia, analisando
manifestações humanas sobre o espaço à luz de tempos e espaços como fatores elementares
na elucidação da questão.
Como advertimos anteriormente, para a formação territorial concreta é necessário o
uso da força, da coesão no discurso, ou melhor dizendo, das relações de poder. Revisitando
Foucault (2005), ao longo de sua carreira enquanto filósofo contribuiu para o entendimento
das interfaces que compõem o poder, ou as microfísicas do poder, manifestada nas interações
cotidianas, entre sujeitos, instituições econômicas, jurídicas, ou na dimensão política
representada pelo Estado. O espaço enquanto resultado das relações sociais passa de natureza
imóvel (natural) a um espaço produzido pelo trabalho social, nesse sentido, ganha escopo de
território (MOREIRA, 1982). Isto é, a coesão territorial advém da produção de discursos de
afinidade, materializando organizações de interesses comuns, modelando e remodelando o
espaço, assim como, as territorialidades.
Durante o movimento de renovação dos estudos geográficos, buscou-se distanciar de
conceitos que transfigurassem o caráter científico de uma Geografia até então marcada pelos
trabalhos de Ratzel e La Blach, dos quais defendiam a ideia de territórios imóveis, ora
respondido pelo determinismo geográfico, ora pelo possibilismo. No geral, o interesse em
compreender o dinamismo das relações tanto sociais quanto territoriais valiam-se
exclusivamente do estudo da descrição, derivando concepções de síntese, pontes para a
compreensão dos processos, embora faltasse bases para a elucidação da totalidade social.
Através dos trabalhos de Raffestin (1993) a noção de mobilidade e fluidez passou a
incorporar analises circunscritas aos estudos territoriais, criando um campo complexo de
estudos que evidenciavam diferentes formas de olhar e pensar as relações no espaço
geográfico. Era dado o início, no final do século XX, das possibilidades de se construir uma
Geografia transdisciplinar, ensejando em interpretações aguçadas sobre diferentes
manifestações e territorialidades. Conceber analises acerca da produção do espaço a partir das
paisagens vistas e não vistas contribuíram na formação do campo teórico dentro da ciência
geográfica, buscando minimizar tensões e distanciamentos entre correntes de pensamento e
abordagens metodológicas. Isso significa dizer que a Geografia, desde então, dedicou-se a
maiores aprofundamentos nos estudos correlacionados aos campos político, econômico e
social, empreendendo “os seres da nossa espécie” e suas manifestações territoriais fixas,
móveis ou utópicas (HARVEY, 2006, p. 271).
Nesse sentido, alguns trabalhos tornaram-se pertinentes a pesquisas geográficas sobre
o estudo das territorialidades, evidentemente que por questões divergentes nos métodos
científicos concernentes aos padrões da ciência cartesiana, muitos trabalhos foram/são
invisibilizados, o que em certa medida tanto dificulta quanto contradiz o ideário de
compreensão da totalidade, cada vez mais desprendida da análise minuciosa das partes que
envolvem e respondem ao todo. Assim sendo, para Souza (1995) pensa territórios como parte
integrante em toda espacialidade social, significa dizer que o território pressupõe a existência
de um espaço primeiro, apropriado por grupos de forma contínua ou esporádica, construída e
descontruída. No que tange as influencias que permeiam a constituição das territorialidades,
Corrêa (1999) e Souza (1995) trazem à tona o papel dos atores sociais e as diferentes formas
de uso e ocupação do espaço sob diferentes interesses, sendo estes individuais ou coletivos,
em certa medida, permitindo a existência de uma coesão espacial e territorial.
Nas sociedades essencialmente capitalistas e integradas por intermédio da
globalização, a presença do Estado representa o mais forte modelo de planejamento e
ordenamento territorial à luz de interesses específicos, notadamente alinhados a políticas de
governos neoliberais e imperialistas, representando ameaças a territorialidades tradicionais,
cuja ocupação está assentada em áreas de valorização mercadológica em virtude dos bens que
podem ser extraídos ou produzidos nesses espaços. Logo, torna-se importante admitir a
preexistência de um planejamento territorial orientado, cujo papel do mercado financeiro
instrumentaliza a violência repressiva do Estado, uma vez que “a liberdade do mercado
precisa ser garantida por leis nas instâncias jurídicas, uso da autoridade, força e violência
(HARVEY, 2006, p. 234).
Marcelo Lopes de Souza (1995) ao discorrer sobre os espaços de poder imbricados na
produção de territórios apresenta três elementos dialéticos e de interesses contraditórios a
partir das relações de poder: espaço, ator(es) e poder(es). Segundo o autor, o(s) ator(es) atuam
como instâncias sociais [individual ou coletiva] sobre um arranjo espacial demonstrando
controle sobre o mesmo (poder). Contribuindo a essa intepretação, Zibechi (2015) vai discutir
as dimensões territoriais a partir da visão sistêmica das microrrelações de poder, constituindo
espaços socialmente produzidos e habitados. Para a autora, diante da complexidade das
relações que coexistem em determinado espaço, tornam-se determinante para o surgimento de
conflitos de interesses em diferentes graus, possibilitando organização social de diferentes
sujeitos, assim como a empresarial, industrial, latifundiária, etc. Associações, Instituições de
Classe, apoio político ou as conhecidas “bancadas ruralistas” são bons exemplos dessa
organização. Em seguida, afirma que diferentes elementos em sobreposição uns aos outros
potencializam discursos e representações identitárias, em contrapartida, movimentos
dissidentes se reagrupam em oposição a primeira organização territorial por via da
homogeneização dos interesses comuns, questões identitárias e contestação a lógica
preestabelecida, propondo, nesse sentido, rupturas e reconstruções territoriais, emergindo,
assim, novas territorialidades.
David Harvey (2006) descrevendo os espaços utópicos como espaços de esperança,
acabou por oferecer novos olhares para as relações essencialmente voltadas a produção do
espaço urbano, no entanto, via de regra, não se atendo apenas a estes campos de discussão. Na
visão de “si e do outro” o autor descreveu a simbiose entre os indivíduos e o meio vivido,
experienciado em suas cosmologias (p. 272). Diferentemente de uma visão mais abrangente
apenas das relações materialistas contextualizadas em trabalhos de cunho marxista, a
produção de territorialidades reúne critérios específicos empregados no espaço, tais como a
identidade definida ou redefinida com o lugar, todavia, fazendo-se necessário abstrações das
espaço-temporalidades que elucidarão a natureza dos processos. Por fim, retratou formas
altruístas embutidas na consolidação dessas ocupações por meio da cooperação mútua,
embora afirme que uma vez dada a cooperação, busca-se determinada organização territorial
para que se tenham distribuição de poderes (HARVEY, 2006).
Como vimos nessa tentativa de esboçar transformações espaciais em territorialidades,
mais ainda, dissecar as relações que envolvem a mobilização de capital e pessoas, voltamos a
escala cíclica das relações genuinamente de poder. Afinal, nas relações humanas o poder se
manifesta sob diferentes papeis. Talvez caiba a nós, geógrafos, compreendermos mais
atentamente a dimensão dessas e outras formas de assumir/ter poder, sem a presunção de
generalidades ou torna-las verdades absolutas, isso porque novos territórios resultam do
descontentamento de um sistema de opressão. Assim foi na Amazônia indígena, nos
mocambos reunindo ex-escravos africanos instituindo territórios quilombolas ou nas
ocupações ribeirinhas nas várzeas, foco de discussão desse artigo.

RECURSOS PESQUEIROS: RECONFIGURAÇÕES A LUZ DO CAPITALISMO


No caso da Amazônia brasileira, grande parte da população regional se desenvolveu ao longo
das calhas e dos braços de rios da complexa rede hidrográfica que compõem a bacia amazônica, cuja
extensão é de aproximadamente 7.500.000 km² abrigando um grande número de espécies espalhadas
pela vastidão ecológica. Diante das característica geográficas que a diferenciam do restante das bacias
hidrográficas do país ( e por quê não dizer do mundo?!), foram elaboradas projeções a partir de
relatórios técnicos de pesquisa, mesclando conhecimento teórico e empírico de pesquisadores
dedicados a compreender o potencial pesqueiro da região Amazônia, concluindo pela existência de
mais de 2 mil espécies, onde boa parte são consideradas primitivas, ou seja, que seus ancestrais já
viveram na região em períodos pretéritos a divisão da África e Ásia (Barreto et al., 2017). Entretanto,
não há consensos, Suanon (2004), por exemplo, acredita que a Bacia Amazônica abrigue um
contingente superior a 3 mil espécies, podendo, inclusive, esta quantificação chegar a 5 mil espécies
de peixes. Ademais, segundo Junk (1983), grande parte das espécies pertecentes ao ecossistema da
amazônia podem ser categorizadas como Silurídeos, Caracídeos, Cichlídeos,e outros, portanto, 44%,
42%, 6% e 8%, respectivamente.

Sendo as áreas de várzea comumente utilizadas na captura de pescado, a atividade


esta intimamente relacionada ao regime hidrológico local A principal área para pesca se dá
nas várzeas, que possuem um regime hidrológico que varia ao longo do ano, sua área
representa 5% do território de toda a Amazônia Legal, cabe dizer que existem mais de 3.500
km de extensão dos quais as vidas animais, vegetais e humanas se reproduzem em
temporalidades distintas da vivenciada em outras regiões do país (GOULDING;
FERREIRA, 1996), o que torna estas áreas propícias não apenas para a pesca para
subsistência, como para a pesca de finalidade comercial.
Com a implantação da Zona Franca de Manaus nos anos de 1970 e o agravante de
cheias excepcionais durante a mesma década, houve o constante movimento migratório
rumo as cidades da região, superlotando esses centros detentores de baixa infraestrutura
urbana, como o ocorrido em Manaus/AM, o que pode ser refletido diretamente na demanda
pelo pescado, o que também dinamizou interesses de uma pequena parcela dedicada a pesca
comercial baseada na lógica da produtividade.
Por meio da introdução do barco a motor e o surgimento de caixas de isopor
(poliestireno), pescadores comerciais lançaram-se com intensidade na pesca predatória. Mas
foi através da Superintendência do Desenvolvimento da Pesca – SUDEPE, criada em 1964,
que se materializou uma política econômica ligada ao mercado nacional e mundial no setor,
vislumbrando sua modernização e dinamização através de incentivos fiscais e criação de
linhas de crédito a estes pequenos capitalistas. Por outro lado, a partir daí, ocorreu-se a
pauperização e marginalização de pescadores artesanais historicamente ligados a pesca
como prática de subsistência, assim como um outro agravante no âmbito socioambiental: a
sobrepesca.
Dentre os fatores que podem ser elencados para se entender o que quase levou ao
exaurimento das populações de peixes rios amazônicos, estão: a) técnicas empregadas para a
captura e; b) ineficiência do Estado em estabelecer limites na atividade comercial.
O primeiro elemento relativo às técnicas empregadas na pesca nos rios da bacia
amazônica assemelha-se as técnicas que foram empregadas na Europa com adequações a
largura dos rios. Dentre os principais incrementos empregados na atividade pode-se atribuir a
utilização de embarcações de pequeno e médio porte movidas a combustível para o transporte
e a técnica de arrasto para a captura. Essa técnica consiste no transporte de uma rede
localizada no fundo dos rios a qual objetiva realizar a captura de qualquer material encontrado
no trajeto, dessa maneira é possível capturar um quantitativo considerável de peixes e tornar a
pesca mais barata, bem como uma taxa maior de lucro.
Como consequência a expansão mercadológica no setor ampliaram-se, também,
conflitos in loco entre pescadores artesanais e pescadores comerciais pela concessão do
direito a pesca, sobretudo em áreas destinadas a pesca para fins de subsistência. Isso se deve
ao fato de que, historicamente, foi estabelecido e – julga-se dizer – respeitado as
territorialidades de pesca ribeirinhos. A atividade artesanal esteve, desde o princípio, ligada
a reprodução das espécies, e do ponto de vista histórico, a instrumentalização da mão-de-
obra contava com o auxílio de equipamentos de baixo impacto ambiental, tirados da própria
floresta (caniço, tarrafa, espinhel, arpão, zagaia, arco e flecha), o que permitia a captura de
pescado durante o ano inteiro. Entretanto, com o avanço da pesca predatória esses lagos
foram invadidos e o estoque do peixe comprometido. Além disso, outros fatores
impulsionaram os conflitos, como as métricas de aumento da produtividade visando espécies
mais valorizadas no mercado que materializaram episódios do descarte de pescados
considerados inferiores (ex.: jaraqui, branquinha e pacu) nos lagos, após a adoção de
explosivos, redes de arrasto e malhadeiras na região (CRUZ, 2007).
Por outro lado, muitos camponeses-ribeirinhos, por causa da crise das atividades
agrícolas, sobretudo a partir da década de 1970, ocasionado por fatores de ordem
natural e econômica se lançaram na pesca comercial. O resultado de tudo isso tem
sido uma diminuição acentuada dos recursos pesqueiros, particularmente os
existentes nos lagos de várzea, ocasionando uma escassez de peixe na região. Os
camponeses-ribeirinhos, por sua vez, começaram a enfrentar dificuldades para
capturar peixes para sua alimentação, pois passaram a permanecer mais tempo
nessa atividade, prejudicando o trabalho no roçado (CRUZ, 2007, pg.164).

O segundo elemento trata da apatia do governo local e nacional diante da exploração


exorbitante do recurso por parte do mercado. O governo até tentou fomentar a atividade
pesqueira através da criação da SUDEPE, que falhou em modernizar a pesca na região, mas
que ainda assim não atingiu os objetivos elencados no Segundo Plano Nacional de
Desenvolvimento da SUDEPE (1985). Apesar dos esforços pela industrialização no setor
pesqueiro, o montante de 860.000 t/ano produzidos na economia de pesca, mais de 50%
advinham da pesca artesanal realizada por mais de 400 mil pescadores, destinada ao mercado
interno, sendo estes produtos comercializados in natura ou congelados.

Como parte integrante do modelo de desenvolvimento industrial promovido pela


SUDEPE, barcos motorizados começaram a desbravar mais intensamente os rincões em
busca de pescados lucrativos para atender a população urbana e setores industriais voltados
para a exportação. Como consequência, a sobrepesca comprometeu o desenvolvimento de
diversas espécies e fez desaparecer diversas outras. Além disso, têm-se registros de conflitos
em diversas partes da Amazônia pelos territórios aquáticos. De um lado, camponeses-
ribeirinhos lutaram pela concessão do direito da prática haliêutica de subsistência e
reprodução social, do outro, pescadores comerciais buscavam seu total estabelecimento na
região. Diante de tal cenário a SUDEPE passou a exercer uma maior influência na pesca,
atuando como um agente mediador nos acordos que começavam a ser estabelecidos entre as
comunidades através dos chamados “acordos de pesca”.
Os acordos de pesca surgem no entremeio de todas estas questões, os comunitários
buscaram maneiras de lidar com a sobrepesca e seus malefícios e, por intermédio da Igreja
Católica, estabeleceram estes tratados, que consistem em um acordo de utilização de uma
determinada área geográfica por moradores locais destinada ao manejo das espécies e seu
monitoramento baseado em “leis” internas baseadas em acordos morais entre os camponeses-
ribeirinhos.
Nas áreas de várzea amazônica os acordos de pesca foram amplamente difundidos a
partir da década de 1980 por se tratar de uma gestão participativa abarcando recursos
aquáticos, florestais e de terra firme. São resultantes de aprendizagens sociais envolvendo a
própria iniciativa local sob o apoio do Estado, Universidades, ONGs, e Agências
Internacionais de Financiamento (OVIEDO, 2006). Esse sistema de manejo criara
oportunidades individuais e coletivas para que famílias ribeirinhas acessem de igual maneira
seus recursos aquáticos respeitando a sustentabilidade do espaço em questão.
A SUDEPE está consciente de que a educação é a única solução para uma boa
administração dos recursos pesqueiros no que se refere à necessária vigilância sobre
o uso racional da Natureza e, em particular, sobre as pescarias. Por isso, considera
indispensável que a atual “Campanha Nacional de Conservação dos Recursos
Pesqueiros e Incentivos à Fiscalização da Pesca” seja intensificada e prestigiada
quanto à alocação de recursos. (...) De mesma forma, o atual sistema de controle e
preservação dos recursos pesqueiros deverá ser aperfeiçoado para uma nova forma
de atuação: mais integração a pesquisa e a extensão pesqueira (SUDEPE, 1985, pg.
38).

Ao longo dos anos estes acordos passaram a ser discutidos de maneira mais efetiva
pelo estado brasileiro, à medida em que discussões ambientais ganhavam organicidade e,
consequentemente, maiores cobranças internacionais pela aplicação de políticas ambientais
eficientes, delineando marcos decisórios na constituição de acordos de pesca como uma
medida lícita sobre o lugar de vivências e reprodução social. Em escala internacional, tais
ganharam materialidade a partir da criação da União para a Conservação da Natureza –
UICN, em 1980, passando a compor o Relatório “Nosso Futuro Comum” da Comissão
Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1986, e em caráter normativo por
via da Agenda 21, ocorrida em 1992 (ARRAES, et al., 2006).
PRIMEIROS ACORDOS DE PESCA E SEUS DESDOBRAMENTOS HISTÓRICOS
Os acordos de pesca firmados na amazônia a partir da década de 1960 possuem
influência direta de acordos firmados na Europa, e que estão intrinsecamente ligadas as
primeiras cooperativas onde os camponeses levados por um momento de crise e por uma
transição no modo de vida onde a maioria saia dos campos e rumava para as cidades. Diante
da escassez no campo, impedindo a reprodução do modo de vida, tornou-se comum a
proletarização coercitiva de pescadores que passavam a ocupar espaços portuários como o
de Hull, na Inglaterra, no século XIX, ou aqueles que residiam em barcos ancorando em
diversos portos pela Europa objetivando engajar-se como tripulantes na pesca oceânica
(DIEGUES, 1983).
Segundo DIEGUES, a exploração cada vez mais intensiva e predatória levou a
diversos acordos de pescas buscando estabelecer a proteção e até mesmo a limitação das
espécies para que assim assegurassem os estoques e os objetivos de produção.
Em 1902, foi criado o Conselho Internacional para a Exploração do Mar e, em 1949,
o Conselho Geral de Pesca no Mediterrâneo, com sede em Roma. Convenções
específicas foram assinadas para a proteção de espécies, como, por exemplo, a
Convenção de Londres, em 1946, com a finalidade de impedir a sobrepesca de
espécies como o arrenque, o bacalhau, etc., no Mar do Norte. Na base dos estudos
biológicos, foram adotadas inúmeras disposições controlando o tamanho da malha, o
tamanho do peixe a ser comercializado, etc. (DIEGUES, 1983, pg. 62).

Contudo, diversas espécies desapareceram dos ecossistemas marinhos, lagunares e


fluviais, motivadas pelo avanço da indústria pesqueira sobre os recursos pesqueiros,
desconsiderando a heterogeneidade das espécies e seus ciclos reprodutivos. Somado a
introdução do maquinismo em grandes embarcações, a eutrofização decorrente dos poluentes
industriais e das sociedades urbanas, que acabaram contribuindo para a crescente poluição das
águas, tornando a atividade pesqueira cada vez mais penosa, sobretudo para a pesca voltada a
subsistência.
Marx (2014) ao estabelecer relações entre a sociedade e a natureza acabou por
desmistificar a ideia de uma natureza intocada, alheia as mudanças antrópicas, sendo ela a
práxis da atividade humana sobre a natureza primeira. Nesse mesmo sentido interpretativo
Gutelman (1974) complementa a noção de metabolismo natural introduzindo outras forças
produtivas da natureza, como os processos físico-químicos, fotossíntese, a circulação de
elementos nutritivos, o que corrobora a tese de criação dos acordos de pesca devido a
territorialidades de pesca, constituindo o conhecimento ecológico adquirido por pescadores
artesanais ao longo da história, obedecendo as dinâmicas complexas do ecossistema
amazônico, distanciando-se, por assim dizer, na teoria da produtividade inserida no seio da
indústria capitalista ligada ao setor.
Movidos pelos interesses coletivos, esses pescadores ao perceber a degradação
causada pela intensificação da pesca comercial e diminuição na oferta de espécies ou até
mesmo o desaparecimento de muitas outras, estabelecem os primeiros acordos orientados para
a manutenção e reprodução das espécies, bem como o modo de vida sazonal de pescadores-
lavradores dedicados a agricultura e a pesca. Na costa oeste da Suécia essas práticas
converteram-se, de certo modo, em resistências de pescadores opondo-se a lógica de
proletarização que o mercado impusera as populações, uma vez que o conhecimento sobre o
ambiente aquático foi considerado substancial para a pesca intensiva. A organização
institucional se deu com a criação de Associações de Pescadores Locais que administravam os
períodos propícios para a pescaria de determinadas espécies e o manejo de outras, assim como
impedia o uso de determinados objetos que pudessem comprometer a procriação das espécies.
De igual maneira se viu na União Soviética, a qual a partir da criação da União dos Kolkhozes
houve o aprimoramento da gestão das águas interiores e exteriores, além da integração de
pescadores nas tomadas de decisões levando em consideração os conhecimentos ambientais
adquiridos no âmbito do vivido inseridos dentro da economia camponesa. Isso se deve,
fundamentalmente:

I. À importância do trabalho agrícola para a reprodução da família do pequeno


produtor ou do pescador-lavrador. Além disso, é o calendário agrícola que determina
o uso do tempo entre as atividades complementares (pesca, extração, etc.);
II. Ao dato de a reprodução dos meios de produção e da força de trabalho passar
necessariamente pelo trabalho agrícola;
III. À importância do trabalho familiar como limite extremo na organização da
produção;
IV. À baixa capacidade de acumulação decorrente do reduzido excedente gerado
nesse tipo de economia;
V. À produção voltada sobretudo para o autoconsumo e eventualmente para o
comércio;
VI. À dependência desse pequeno produtor vis-à-vis aos comerciantes
(DIEGUES, 1983, pg. 220).

Observando o que os países europeus fizeram para frear a pesca predatória as


paróquias por meio das comunidades eclesiais de todo o estado do Amazonas iniciaram os
acordos na região, onde o peixe se tornava escasso e os conflitos se avolumavam, como citado
anteriormente no texto. Lançada campanhas pelas Comunidades Eclesiais de Base – CEBs,
subordinadas as prelazias e dioceses do Estado do Amazonas, foi dado na cidade de
Itacoatiara pontapé para uma série de diversos encontros visando os interesses dos
camponeses-ribeirinhos pela manutenção do ecossistema de várzea, em 1983, denominado de
Assembléia do Povo (SPINDOLA, 1977). O documento introduzia os anseios dos
comunitários pela proteção dos lagos diante da invasão dos barcos pesqueiros, assim como
dar organicidade ao movimento de defesa do peixe. O mesmo ocorreu nas prelazias de Tefé,
Coari e Parintins. Cruz (2007) considera o período substancial para a configuração política
dos camponeses-ribeirinhos em detrimento a ausência de gestão dos recursos pesqueiros,
oportunizando a sensibilização da sociedade para a problemática.

Interessante mencionar a ocorrência do 1º Encontro de Ribeirinhos, em 1983,


denominado pela igreja católica como Encontro sobre a Pastoral da Pesca, sob a organização
da Comissão Pastoral da Terra (CPT) – Região Norte I e Comissão Nacional da Pastoral do
Pescador (CPP-Nacional), a qual buscou tratar as reinvidicações das populações ribeirinhas.
Nos anos de 1985 e 1986, nas cidades de Itacoatiara/AM e Coari/AM, respectivamente,
selaram a primeira fase do movimento em defesa da escassez de peixe. Os objetivos
elencados durante os encontros consitiam na demarcação de áreas destinadas a procriação,
manutenção, subsistência ou consumo e livre acesso das práticas pesqueiras. Para que se
formalizassem tal como uma política de pesca, ficou estabelecido a organização de Comitês
Municipais de Pesca ligados ao Comitê Regional, sendo este subordinado ao Ministério da
Agricultura. Apesar das dificuldades no estabelecimento de uma unidade de força
predominantemente camponesa-ribeirinha, em virtude da falta de consientização, os
alcances desses eventos foram satisfatórios ao determinar que instituições como o Instituto
Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA baixassem
portarias edurecendo fiscalizações de práticas predatórias, e que a peservação de lagos fosse
incluida em algumas leis orgânicas municipais (CRUZ, 2007).
No nono encontro batizado de Assembléia Regional dos Ribeirinhos, ocorrida em
Manaus, em 1992, foram estipulados como objetivos a avaliação dos avanços do movimento
pelo estado do Amazonas. Pode-se considerar interessante os resultados para a luta
camponesa pela demarcação de lagos, pois ao longo da prelazia de Itacoatiara mais de 50
lagos foram demarcados para o manejo; na pelazia de Tefé foram 22 lagos; em Beruri, 26
lagos; em Coari, 9 lagos. Estes encontros trazem a tona os principais atores que fazem parte
das relações estabelecidas, já que a Igreja na figura das Comunidades Eclesiais de Base
tornaram-se um agente de mediação importante ao longo de todos esses anos de produção de
acordos e intermediação de conflitos, no entanto, foi por meio da organização social dentro
das comunidade e entre os camponeses que as lutas de (r) existência ganharam forma e
conteúdo.
ATOR(ES), TERRITORIALIDADES E PERSPECTIVAS FUTURAS
Na década de 1960 o enfoque do governo brasileiro esteve em volta da
industrialização dos circuitos produtivos, os militares pouco ou nada faziam quanto a
regulação do uso de recursos naturais e a preocupação quanto a sua finitude. Isso se reflete
diretamente na questão aqui trabalhada, os atores que influenciavam diretamente nos
recursos pesqueiros eram externos ao estado brasileiro, e assim permaneceram por longos
anos. Estes atores estabeleceram sua importância por meio de elementos tangíveis e da
influência nas atividades regionais perpassando escalas nacionais e internacionais.
Um primeiro ator que se faz presente ao longo de toda a história amazônica e que
possui papel fundamental nas questões relacionadas a pesca é o camponês-ribeirinho. O
homem que vive com sua família ao longo dos rios e que tira seu sustento das águas,
trocando o excedente por algo que não produz, mas que, no entanto, precisa. A relação dele
com o ambiente se dá através de estreita ligação com o meio, onde vive do que a natureza
lhe proporciona, enquanto preserva seus meios de reprodução. Pode viver apenas com a
família ou junto da comunidade e é a partir dela que se organiza politicamente e preserva seu
modo de vida (CRUZ, 2007).
O segundo ator é o mercado a qual exerce influência signifcativa nos setores
econômicos, políticos e sociais da sociedade. Dentro da lógica desenvolvida na Amazônia,
as atividades exploratórias na pesca, ligadas ao mercado global, impuseram desafios as
populações tradicionais residentes nas áreas de várzea diante da escassez dos recursos que
antes apresentavam-se em abudência, possibilitando, assim, a permanência nessa localidades
em relação ao crescente movimento migratório para as cidades.
O terceiro ator é o Estado, neste caso, submisso as demandas do ator anterior. O
estado brasileiro em todas as suas esferas parece ser ineficaz em aplicar suas próprias
medidas e tem imensa dificuldade em se fazer presente e mediar conflitos que se apresentam
sob seus domínios. Todos estes atores se entrelaçam ao longo de toda a história da
Amazônia (ora numa relação amistosa, ora numa relação conflituosa).
Tendo interesses antagônicos, tanto camponeses-ribeirinhos quanto pescadores
comerciais (aqui abarca-se toda a estrutura mercadológica envolvida na atividade, assim
como seus agentes) manifestam suas práticas a partir de relações de poder e controle
estabelecidas nas territorialidades aquáticas, agropastoris e florestais. O resultado de tais
relações corroboram para a justificativa da diminuição da oferta de pescado e os impactos
ambientais gerados, ameaçando não apenas o modo de vida de populações tradicionais, mas
também a possibilidade de manutenção de famílias que sobrevivem da pesca e das trocas
intercamponesas a partir dessa atividade.
Este desequilíbrio de forças se deu por duas razões: a) vantagem tecnológica que o
pescador-comercial dispõe para explorar rios e lagos e; b) a interferência (ou a falta dela!)
por parte do Estado na regulação e fiscalização dessa atividade. A relevância dada a
intepretação das ações movidas pelo Estado por meio de seus interesses na atividade
pesqueira podem ser concebidas pelo fenômeno de causa e efeito. No primeiro momento são
estebelecidos objetivos para a industrialização dos setores de pesca, instituindo a lógica da
produtividade voltada ao consumo nos centros urbanos e também para a exportação. No
segundo momento, ocasiona a marginalização de pescadores artesanais diante da sobrepesca
e diminuição destes recursos para a subsistência, obrigando-os a migararem para outras
atividades consideradas rentáveis, muitas delas voltadas para o campo e a plantação de
culturas de ciclos curtos. Por último, tem-se a organização comunitária de pescadores
atuando na sistematização dos Acordos de Pesca como alternativa de conter os avanços de
pescadores comerciais nas áreas historicamente preservadas.
Neste cenário, podemos introduzir como um relevante ator, as Organizações Não
Governamentais (ONGs). Surgidas ao longo da ocorrência de Conferências Mundiais
voltadas as questões ambientais, as ONGs objetivavam a preservação e manutenção dos
recursos naturais no planeta. Na década de 1990, popularizam-se através da atuação política
e manifestações tanto na escala local, quanto na nacional e, principalmente, questionando os
padrões de desenvolvimento na perspectiva da macroeconomia internacional. É nesse
contexto que conceitos como desenvolvimento sustentável e ecodesenvolvimento são
cunhados e ganham força nas políticas públicas brasileiras, passando a estabelecer
normativas para a sustentabilidade dos recursos naturais e sua exploração para fins
comerciais e de subsistência.
A partir de 1996, os escritórios locais do IBAMA ganharam mais autonomia para
definir as regulamentações de pesca. Um exemplo é a portaria emitida pelo
escritório do IBAMA no estado do Amazonas, emitida em 2002, abordando as
pescas esportiva, recreativa e de subsistência (OVIEDO, 2006).

Como resultante da interação dos atores supracitados, os acordos de pesca começam a


passar por um processo de mudança com a participação ainda que incipiente do Estado, mas,
sobretudo, por intermédio da expressiva atuação de ONGS no manejo do pescado em áreas de
várzea. Estas organizações podem ser patrocinadas por recursos oriundos de empresas
públicas que buscam fomentar a criação de projetos de natureza ambiental, à exemplo do
programa de manejo realizado entre os povos indígenas Paumari, Apurinã, Jamamadi e Deni,
o projeto “Raízes do Púrus”. A organização é patrocinada pelo programa Petrobras
Socioambiental e atua junto às populações tradicionais das regiões Sul e Sudoeste do
Amazonas, suas ações vem apoiando povos indígenas acerca do manejo sustentável de
pirarucu (Arapaima Gigas) e outros produtos da sociobiodiversidade.
Este último ator surgiu no momento de transição na história do país, passando de um
momento de intensa exploração sob a lógica da atividade industrial para a adoção de discursos
ambientalistas, dos quais as ONGs passaram a atuar ativamente na consolidação dos Acordos
de Pesca ainda em fase de estudos (reuniões entre comunitários, agentes do IBAMA e de
prefeituras) e após sua instituição, representando uma significativa alternativa pela qual estes
recursos aquáticos são mantidos, monitorados e as espécies devidamente manejadas, unindo o
conhecimento ecológico e científico, além de intensificar o processo de emancipação social
entre pescadores artesanais.
Portanto, assumir a institucionalidade dos Acordos de Pesca como ferramenta de
governança dos recursos ambientais contribui para a mitigação da sobrepesca a qual se reflete
diretamente na capacidade de inúmeras espécies se desenvolverem na região, bem como a
captura consciente destes recursos por meio da pesca artesanal. A cogestão participativa
operada entre comunitários, instituições públicas e Ongs refletem a necessidade de ampliação
das discussões relativas ao acesso aos recursos aquáticos, mais ainda, compreender de que
forma a diminuição do estoque pesqueiro resulta na marginalização dessa classe de
trabalhadores. Não obstante, os resultados absorvidos durante a execução dos projetos
influenciam sobremaneira na conscientização coletiva dessas populações tradicionais quanto
ao uso de instrumentos de pesca de degradam o meio ambiente. Neste ponto, destaca-se mais
uma vez a atuação de ONGs durante o processo, penetrando em reuniões entre comunitários e
nas escolas, atuando na formação cidadã de indivíduos comprometidos com a reprodução do
seu modo de vida.

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