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AMPLIANDO DISCUSSÕES
Bacia Hidrográfica: uma abordagem multidimensional
O acesso a água é um direito garantido pela Constituição Cidadã brasileira de 1989. Entretanto, em
virtude da acentuada crise socioambiental, repensar a qualidade e potabilidade, além do seu valor e
uso econômico torna-se imperativo nos estudos técnico-científicos. Nesse sentido, conceber um
elemento dentro de um sistema, de maneira isolada, nos limita a compreensão da totalidade. Em
contrapartida, pensar a dinâmica humana e dos recursos naturais materializa o ofício do geógrafo,
dito isto, compreender conceitos e processos que envolvem trabalhos ligados a Bacias Hidrográficas -
BH transcende o olhar naturalista fortemente ligado a perspectiva monodimensional, isto é,
direcionando estudos a natureza dos processos isolados fortemente marcados no campo geológico,
geomorfológico e hidrológico, e nos conduz a perspectiva dos geossistemas, dinâmicos, portanto,
multimensionais pois emergem do encontro de analises fisiográficas mas também do papel da
influência antrópica na desregulação da dinâmica hídrica, variando de escala, hierarquia,
espacialidade. Trata-se de situar a discussão de BH na esfera política, afinal, ocorrem múltiplas
relações que se retroalimentam e precisam da regulação do Estado e sociedade civil para o
cumprimento de metas e objetivos que vislumbrem a sustentabilidade dos recursos.
Inicialmente partiremos da literatura científica no que tange a conceituação de uma BH, todavia,
priorizou-se trabalhos que dispuseram de melhores condições de integração ao tema e subtemas
(sub-bacias e microbacias), naquilo que se compreendeu como conceitos monodimensionais e
multidimensionais. Tratam-se de trabalhos monodimensionais aqueles cujo interesse pressupõe um
evento, recorte, processo, explicando a natureza das circunstâncias que definem a área estudada.
Em geral, dedicam-se a trabalhos de ordem quantitativa ou descritiva da paisagem. Por outro lado,
dentro de trabalhos multimensionais se permite analisar a origem dos fenômenos associando a
escala humana, portanto, social, originando conceitos qualitativos e quantitativos (GOMES, BIACHI e
OLIVEIRA, 2021) (Figura 1).
Dessa maneira optou-se por orientar a discussão dentro do campo da pluralidade conceitual, logo,
partiu-se do pressuposto de que os recursos hídricos fazem parte e são territórios ou hidroterritórios
(TORRES E VIANA, 2008). Expressam relações sinestésicas com a natureza dado o caráter
sistêmico das relações físico-naturais e sociais (LIMA e ZAKIA, 2000). Portanto, contrapõe
conceituações naturalistas – e por assim dizer, determinista – de conceber o espaço apenas do ponto
de vista fisiográfico. Na escala socioambiental, é possível segmentar elementos de uma BH sem
desintegrá-la de sua natureza mais abrangente (CHRISTOFOLETTI, 1980; BOTELHO E SILVA,
2004; TORRES e VIANA, 2008).
Tendo em vista a preocupação inicial de estudiosos no que se refere aos ciclos hidrológicos para
poder responder questões cruciais sobre o comportamento dos fenômenos dentro de uma BH, Barella
(2001) foi quem chegou mais próximo da integração conceitual entre os elementos geológicos,
hidrológicos e geomorfológicos. Para o autor, uma bacia hidrográfica pode ser compreendida como
um conjunto de terras drenadas por um rio e seus afluentes, cuja formação ocorre nas regiões mais
elevadas do relevo – os chamados divisores de água -, onde a água que escoa da chuva ou infiltra o
relevo formando nascentes e o lençol freático, ou percorre superficialmente até as partes mais baixas
dando origem aos rios e riachos.
As águas superficiais escoam para as partes mais baixas do terreno,
formando riachos e rios, sendo que as cabeceiras são formadas por riachos
que brotam em terrenos íngremes das serras e montanhas e à medida que
as águas dos riachos descem, juntam-se a outros riachos, aumentando o
volume e formando os primeiros rios, esses pequenos rios continuam seus
trajetos recebendo água de outros tributários, formando rios maiores até
desembocarem no oceano (BARELLA, 2001).
Nessa perspectiva, Lima (1976) e Tonello (2005), concordam que o comportamento hidrológico deriva
da geomorfologia e do tipo de cobertura vegetal existente, ainda assim, salientam que a interação
biótica e abiótica confluem para a compreensão de possíveis alterações no equilíbrio dinâmico da BH,
tais como: a infiltração e quantidade de água produzida como deflúvio, a evapotranspiração, os
escoamentos superficiais e superficial. Dito isto, pensar uma bacia hidrográfica também nos permite
entender os limites da presença ou ausência da atuação do Estado no planejamento territorial
levando em consideração a BH.
Dentro dos estudos de uma BH é comum encontrar trabalhos utilizando termos como “sub-bacia” e
“microbacia”, ambos relacionados ao recorte espacial de uma rede de drenagem a qual busca-se
analisar. Para Teodoro et al (2007) o termo bacia e sub-bacias são relativos, porém, diferentes
autores divergem quanto a área de uma sub-bacia. Para Faustino (1996) uma sub-bacia abrange uma
área superior a 100 km² e inferior a 700 km². Rocha (1997) estipulou que a área de uma bacia seja
entre 20.000 ha a 30.000 ha. Segundo Vélez, Núñez e Trujano (2003) a área total de uma BH varia
de 5.000 ha a 50.000 ha. De acordo com Gomes, Bianchi e Oliveira (2021) os critérios quantitativos
de uma sub-bacia apresentam ambivalências conceituais e que a reduzem ao seu tamanho espacial,
por conseguinte, advertem ao uso de generalizações conceituais dada a diversidades de BH
existentes e características intrínsecas.
Ademais, Teodoro et al. (2007) define sub-bacia como uma área de drenagem dos tributários do
curso d’água principal, assim sendo, esta conceituação apresenta duas ambiguidades: I-
frequentemente os canais desaguam no rio principal; II - o canal principal também recebe
contribuições de microbacias de primeira e segunda ordem de pequenas dimensões espaciais.
Inconstâncias quali-quantitativas referem-se a imprecisão com que métricas foram definidas, em
grande parte orientadas pela empiria, o que desencadeou arbitrariedades conceituais. Em função
disso, tornou-se laborioso compreender a hierarquização do sistema de drenagem de uma BH
através do estudo do nível de complexidade, quantidade de áreas drenadas, ordens dos canais e
relações com o canal principal do sistema fluvial (GOMES, BIACHI e OLIVEIRA, 2021).
Em relação as microbacias, a ambivalência conceitual prevalece em alguns trabalhos, contudo, a
convergência ocorre no fato da mesma se apresentar enquanto o recorte de maior sensibilidade
dentro de uma BH, resultando de interrelações existentes entre o ciclo hidrológico, pedogenético,
humano. Lima e Zaika (2000) ao discutirem as microbacias na perspectiva geomorfológica situam a
discussão sob a égide de um sistema dinâmico, pois ao mesmo tempo em que são sistemas abertos,
recebendo energia dos agentes climáticos emitindo emergia através do deflúvio, perturbações
orientadas pela ação humana podem não apresentar fragilidade no reestabelecimento do equilíbrio
dinâmico. Para os autores, processos hidroclimatológicos e geomorfológicos são observados com
precisão dentro de uma microbacia, a exemplo do comportamento às chuvas de alta intensidade
(curta duração), como também em referencia ao uso do solo (cobertura vegetal), isso deriva em
explicações quanto a quantidade e qualidade da chuva ou no comportamento do solo.
Paralelamente, existem discussões menos robustas, dedicadas a caracterização do sistema, como
visto em Faustino (1996) onde a microbacia constitui uma área de drenagem escoando direto a uma
sub-bacia, tendo a área inferior a 100 km², e em Cecílio e Reis (2006) que as definem como relativas
a uma sub-bacia hidrológica de área reduzida, cujo tamanho pode variar entre 10 a 20.000 ha ou 0,1
km² a 200 km², ou em Lima (2008) que indica uma área inferior a 1 ha podendo alcançar até 40 ha, e
em casos isolados, alcançaria proporções maiores que 100 ha.
Outros conceitos seguem a abordagem adotada pela ecologia, introduzindo a biologia para
compreender os fatores bióticos e abióticos. Inclui-se, assim, a dimensão social, evidentemente que
associada aos fenômenos e suas interdependências, como explicado anteriormente. Assim sendo,
uma microbacia constitui a menor célula de análise dentro de um ecossistema, portanto, pode-se
identificar as relações de interdependência dos processos que produzem perturbações que
comprometem seu funcionamento (MOSCA, 2013; LEONARDO, 2003). Em vista disso, Calijuri e
Bubel (2006) fazem a conjunção das unidades hidrológicas e ecológicas para conceituarem uma
microbacia, pois segundo a visão dos autores a mesma se manifesta a partir da presença de canais
de 1ª e 2ª ordem, esporadicamente com a presença daqueles de 3ª ordem, reunindo definições
relativas de estudos hidrológicos, geomorfológicos e biológicos. Essa conceituação se mistura aos
trabalhos de Chorley (1962), Christofoletti (1980), Lima e Zaika (2000) e Attanasio (2004), ainda
dentro da análise sistêmica, contudo, orientando sobre a necessidade de gestão e monitoramento dos
recursos, assim como problematizações sobre seu uso que condicionam as problemáticas
socioambientais.
Portanto, essa explicação contribui na distinção, definição e delimitação
espacial de microbacias e bacias hidrográficas, sendo sua compreensão,
crucial para a estruturação de programas de monitoramento ambiental, por
meio de medições de variáveis hidrológicas, liminológicas, da topografia e
cartografia e com o auxílio de sistemas de informações geográficas. Dessa
forma, pode-se chegar a uma adequação espacial de microbacias e bacias
hidrográficas (LIMA; ZAKIA, 2000).
A relutância da comunidade científica em relação a inconsistência metodológica e conceitual deriva
da imprecisão com que se definem sub-bacias e microbacias, incorporando na maioria dos trabalhos
a escala espacial dada a objetividade dos critérios que se busca utilizar. Não diferente do que ocorre
na literatura que versa sobre as sub-bacias, dentro da rede de microbacias a métricas são delimitadas
por procedimentos empíricos que desassociam a mesma de uma estrutura maior, pertencente a uma
BH. A exemplo a conceituação da FAO (2018) que direciona a microbacia apenas no campo do
planejamento territorial e socioeconômico, opondo-se aos padrões culturais de ocupação e
sociabilidade que comunidades tradicionais manifestam ao longo do espaço geográfico.
No entanto, por apresentar a menor célula de uma BH, seja pela semântica ou pelos critérios
quantitativos empregados, para fins de gestão, monitoramento e pesquisa dos recursos hídricos sob a
dimensão socioeconômica e fisiográfica, é nas microbacias que se analisa detalhadamente a
manifestação dos fenômenos físicos e humanos, quer seja pela análise acurada da morfometria a fim
de entender a propriedade do terreno, quer seja pelo manejo do sistema fluvial a partir da instituição
dos Comitês de Bacias Hidrográficas. Entende-se nesse primeiro momento que apesar das
ambivalências conceituais presentes na literatura científica, territórios aquáticos, hidroterritórios ou
dinâmicas hidrossociais fazem parte de uma unidade de planejamento cuja ação do Estado e dos
usuários desse recurso tornam-se determinantes para conceber além do equilíbrio dinâmico a sua
própria reprodução como sujeitos sociais que pertencem ao meio que lhes conferem identidade.