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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

A. Lemes

Psicologia e a Verdade: o mito de Foucault

Entre a divulgação da obra Maladie mentale et personnalité -ou Doença mental e


personalidade-, escrita em 1952 mas publicada em 1954, e o artigo A pesquisa científica e a
psicologia, publicado em 1957 mas redigido em 1953, observa-se uma profunda diferença sobre a
concepção da psicologia apresentada por Michel Foucault nos dois textos.

Visto que, na obra de 1954 fica claro que um dos objetivos do autor é contribuir com a
psicologia, no sentido de encaminhá-la para além das correntes psicológicas. Nesse momento,
portanto, Foucault ainda acredita em uma verdade do conhecimento da psicologia (ainda que, na visão
do autor, a psicologia se limite apenas em descrever os fenômenos psíquicos). Passando em ordem
pela psicologia naturalista, pela psicanálise e pela fenomenologia, parece haver, no texto, esse
movimento ascendente do saber psicológico em que Foucault ainda acrescenta uma antropologia
social (aparentemente com bases marxistas) e, por fim, a fisiologia de Pavlov. Esta antropologia social
visa derrubar pressupostos sobre os quais a psicologia se fundamenta, sendo o objetivo de Foucault
nesse livro “[...] mostrar de que postulados a medicina mental deve libertar-se para tornar-se
rigorosamente científica.”1.

Ou seja, nesse primeiro texto de 54, Foucault acredita que além de existir essa legalidade
do conhecimento psicológico, a psicologia tem potencialidade para se constituir como um saber de
fato científico, bastando para tal, a libertação de certas mitologias em que ela se sustenta. A verdade
real da psicologia nesse momento não é questionada, mas tida como um a priori.

Contudo, no artigo de 1957, essa visão da psicologia cai por terra. A psicologia, agora,
não só é completamente pautada em mitos como também a pesquisa em psicologia carece de total
positividade. Ou seja, a “verdade” psicológica já não mais existe.

1
Michel Foucault, Maladie mentale et personnalité, p.2
2

Para compreender esses diferentes posicionamentos do autor nos textos citados, deve-se
entender que, essa diferença de perspectiva é fruto da mudança do que Foucault pensava sobre o
homem. Em 54, Foucault é considerado um humanista. Portanto, ele acreditava em uma verdade do
homem. Doença mental e personalidade ilustra muito bem esse fato na questão de Foucault acreditar,
por exemplo, na existência concreta de doenças mentais. Essa doença poderia ser historicamente
reconhecida ou não como doença, mas ela de fato existia. Todavia, essa visão vai se modificando e o
autor deixa de acreditar em uma verdade do homem. Posteriormente em sua obra, Foucault
compreende, por exemplo, que não há uma doença mental verdadeira, mas que a partir de um grupo
(que será considerado doente), uma determinada sociedade elabora o conceito do que é o natural, do
que é o normal. Nesse sentido, a psicologia careceria de um fundamento real. Visto que, o que é
considerado normal são apenas arbitrariedades de uma determinada sociedade em um dado momento
histórico.

Portanto, em 54, Foucault tem a verdade do homem (logo da psicologia) como um a


priori. Porem, o autor considera a psicologia mais como uma ferramenta que descreve e tenta
interpretar os fatos patológicos de origem mental (o que no texto é chamado de “psicologismo”) sem,
contudo, conseguir determinar as causas (“raízes”) da doença mental. É por meio dessa falha da
psicologia que Foucault parte em busca dessas raízes e, através de uma análise histórica relata como
as linhas psicológicas abordam a questão da doença.

A primeira linha psicológica analisada refere-se à abordagem naturalista, para a qual a


doença mental é vista em termos de funções abolidas “[...] todos estes fenômenos levam a descrever
sua doença em termos de funções abolidas: a consciência do doente está desorientada, obscurecida,
limitada, fragmentada.”2 Nesse sentido, como afirmou Thiago Ribas “As estruturas patológicas são
identificadas aos primeiros estágios da evolução humana [...] o que permite que alguns adeptos dessa
perspectiva psicológica, presos em seus “preconceitos culturais”, identifiquem o indivíduo doente
com a criança e o primitivo”3 É entender a doença como uma regressão não intencional ao passado.
Entretanto, essa perspectiva psicológica que enxerga a patologia mental como uma involução, ignora,
para Foucault, dois aspectos: desconsidera a organização da personalidade mórbida além de não
conseguir determinar a origem do transtorno mental. Por isso, o autor afirma: “É, então, necessário
conduzir a análise além; e completar esta dimensão evolutiva, virtual e estrutural da doença, pela
análise desta dimensão que a torna necessária, significativa e histórica.”4

2
Michel Foucault, Maladie mentale et personnalité p.(1ª página do capítulo 2)
3
Thiago Ribas, ARQUEOLOGIA, VERDADE E LOUCURA: CONSIDERAÇÕES SOBRE O PENSAMENTO DE FOUAULT ENTRE
1952-1962 p. 31
4
Michel Foucault, Maladie mentale et personnalité ultima p. capitulo 2
3

Essa dimensão mencionada pelo autor refere-se à psicanálise. Nela, a doença é


interpretada através da história individual do doente e explicada pelo modo com que esse indivíduo
lida com a angustia nas relações conflituosas vividas e vivenciadas por ele. Há, portanto, uma
evolução em relação a linha teórica anterior, uma vez que, agora, a patologia mental é compreendida
em termos da “história individual” e passa a não mais ser entendida como uma simples regressão (ou
involução) sem sentido, mas como uma “fuga intencional ao passado”. “[...] a regressão não é
somente uma virtualidade da evolução, é uma consequência da história.”5 Logo, a doença é histórica
porque se refere à história individual e irreprodutível do doente, ela é significativa porque é o
resultado da forma como esse indivíduo reage aos conflitos observados vivenciados por ele, e,
portanto, é necessária num sentido histórico individual. Contudo, a psicanálise além de também não
dar conta da origem real da doença (por que e como o indivíduo relaciona-se de tal modo com a
angustia ao ponto de “ficar” doente?) não determina a “necessidade existencial” do evento mórbido.
Por isso, Foucault recorre à análise fenomenológica.

Essa análise, por sua vez, cai no mesmo problema que as outras perspectivas estudadas:
deixa de encontrar as raízes verdadeiras das doenças mentais. Para o autor, nesse momento, a
fenomenologia é superior as demais linhas psicológicas uma vez que faz o movimento de, segundo
Thiago Ribas, “[...] restituição simultânea da experiência que o doente faz da sua doença e do seu
universo mórbido.”6 Portanto, para Foucault “[...] é somente compreendendo-a [patologia mental] do
interior que será possível enquadrar no universo mórbido as estruturas naturais constituídas pela
evolução, e os mecanismos individuais cristalizados pela história psicológica.”7 Nesse sentido, a
análise fenomenológica vai mais longe que as demais análises pois, citando-se novamente Thiago
Ribas, permite afirmar que: “[...] o coração da doença está nesta integração contraditória entre a
retirada em um mundo privado e a queda na inautenticidade do mundo”.8

É, então, pela ausência de uma completude pela parte das psicologias em explicar a
origem real das patologias mentais que Focault recorre à antropologia social. Discorrendo seu texto,
Foucault irá afirmar que a as raízes verdadeiras da doença mental estão diretamente relacionadas com
os conflitos das estruturas sociais do meio. “[...] pode-se admitir que a doença comporta nas condições
atuais, os aspectos regressivos, porque nossa sociedade não sabe mais se reconhecer no seu próprio
passado; os aspectos de ambivalência conflitual, porque ela não pode se reconhecer em seu presente;

5
Michel Foucault, Maladie mentale et personnalité p. 4ª página do capitulo 3
6
Thiago Ribas, ARQUEOLOGIA, VERDADE E LOUCURA: CONSIDERAÇÕES SOBRE O PENSAMENTO DE FOUAULT ENTRE
1952-1962 p. 33
7
Michel Foucault, Maladie mentale et personnalité p. ... primeira página capítulo 4.
8
Thiago Ribas, ARQUEOLOGIA, VERDADE E LOUCURA: CONSIDERAÇÕES SOBRE O PENSAMENTO DE FOUAULT ENTRE
1952-1962 p. 34
4

que ela comporta, enfim, a eclosão de mundos patológicos, porque ela não pode ainda reconhecer o
sentido de sua atividade e de seu futuro.”9 E, mais adiante, “A doença revela, então, dois tipos de
condições: as condições sociais e históricas, que fundam os conflitos psicológicos sobre as
contradições reais do meio; e as condições psicológicas que transformam o conteúdo conflitual da
experiência em forma conflitual da reação.” Logo, para o autor, as contradições sociais possibilitam
a existência da patologia mental, mas ainda haveria uma verdade (uma verdade psicológica) que
determinaria a existência real da psicopatologia.

Por fim, Foucault conclui Doença mental e personalidade afirmando que:

“A verdadeira psicologia deve livrar-se destas abstrações [querer separar a doença de suas condições
de aparição] que obscurecem a verdade da doença e alienam a realidade do doente; porque, quando se
trata do homem, a abstração não é simplesmente um erro intelectual; a verdadeira psicologia deve se
desvencilhar deste psicologismo, se é verdadeiro que, como toda ciência do homem, ela deve ter por
objetivo desaliená-lo”.10

Portanto, evidencia-se que aqui que o autor ainda acredita em uma psicologia real e
positiva. Sendo que, o erro no qual ela se pauta e do qual precisa libertar-se é considerar que os
transtornos psicológicos têm sua origem no próprio indivíduo e não nas estruturas sociais
contraditórias do meio em que esse sujeito vive. Por mais que possuíssem falhas, as correntes
psicológicas ainda possuíam, pelo menos, um valor descritivo real, uma vez que seus estudos teriam
evoluído do que se concebia como o normal, como a verdade. Ainda assim, segundo Thiago Ribas,
“[...] apesar da doença aparecer como fracasso de adaptação, Foucault não se coloca entre os
partidários de uma psicologia da adaptação.”11 Uma vez que, para Foucault, é preciso modificar as
próprias estruturas sociais, “Não há cura possível quando irrealizam-se as relações do indivíduo e de
seu meio; não há, de fato, cura senão aquela que realiza relações novas com o meio.”12

Contrapondo-se a essa visão da psicologia como uma ferramenta de valor puramente


descritível, mas de verdade real, no artigo A pesquisa científica e a psicologia, Foucault desconsidera
totalmente a verdade da psicologia. Sendo que, o autor inicia esse artigo mostrando o porquê da
pesquisa em psicologia carecer de positividade.

Nesse artigo, Foucault demonstra que a psicologia parece possuir dois status: um
cientifico e outro não. Sendo que, “[...] não é a ciência que toma corpo na pesquisa, mas é a pesquisa

9
Michel Foucault, Maladie mentale et personnalité p. 90 - 91
10
Michel Foucault, Maladie mentale et personnalité p. 110
11
Thiago Ribas, ARQUEOLOGIA, VERDADE E LOUCURA: CONSIDERAÇÕES SOBRE O PENSAMENTO DE FOUAULT ENTRE
1952-1962 p. 42
12
Michel Foucault, Maladie mentale et personnalité p. 109
5

que, de entrada, opta ou não pela ciência.” 13 e, além disso, “[...] trata-se de tomá-la não como uma
pesquisa [em psicologia] no espaço de uma ciência, mas como o movimento no qual se pesquisa uma
ciência.” Com base nisso, Foucault explica: a pesquisa em psicologia é sempre um movimento de
oposição em relação à produção de conhecimento. Pois, a pesquisa em psicologia é realizada sempre
“contra um ensinamento”. Seu resultado acaba geralmente refutando o conhecimento estudado,
diminuindo, assim, o próprio conhecimento já consagrado. A pesquisa raramente complementa o
objeto de estudo, mas acaba cumprindo um papel de desmistificação da psicologia, “[...] o progresso
da pesquisa em psicologia não é um momento no desenvolvimento da ciência; é um desgarramento
perpétuo das formas constituídas do saber, sob o duplo aspecto de uma desmistificação que denuncia
na ciência um processo psicológico e de uma redução do saber constituído ao objeto que tematiza a
pesquisa.”14 Isso quer dizer que, a pesquisa em psicologia descobre e aponta o mito, mas não é capaz
de demonstrar a verdade psicológica que preenche a lacuna deixada por esse mito.

Foucault recorre a uma explicação no âmbito da formação universitária para tentar


justificar o déficit de positividade na ciência psicológica. O autor afirma que o Instituto de Psicologia
oferecia quatro possibilidades de diploma: psicologia pedagógica, experimental, aplicada e
patológica. Assim, formar-se-iam um grande número de alunos que, por não serem absorvidos por
um mercado de trabalho (a grande maioria), acabavam recorrendo à pesquisa psicológica como a
única maneira de uma atividade relacionada à psicologia.

E aí reside uma fortíssima contradição: somente médicos psiquiatras poderiam exercer a


“pratica real”15 da psicologia, sendo que estes não recebem na graduação qualquer formação
psicológica. Ou seja, o exercício real da psicologia nas curas psicoterapêuticas não é fundamentado
em nenhuma formação teórica, estando também afastadas da pesquisa. Logo, não há articulação entre
técnica, prática ou pesquisa em psicologia. Foucault conclui: “As pesquisa em psicologia não nasce,
por conseguinte, das exigências da prática e da necessidade que a prática tem de ultrapassar a si
mesma; ela nasce da impossibilidade que se encontram os psicólogos de praticas a psicologia;”16

Além disso, agora em 57, Foucault acredita que a negatividade do homem e das relações
humanas é sempre anterior ao que se define como normal. Portanto, ao contrário do que se tem em
54, agora a psicologia carece até mesmo de um sentido descritivo válido, uma vez que a definição do
que é a normalidade é construída a partir do que se concebe como o anormal. Então, o normal, de
fato, não existe; existe apenas o que se considera (o que se acredita) ser a verdade. A psicologia se

13
Michel Foucault, A pesquisa cientifica e a psicologia p. 4
14
Michel Foucault, A pesquisa cientifica e a psicologia p. 8
15
Michel Foucault, A pesquisa cientifica e a psicologia p. 11
16
Michel Foucault, A pesquisa cientifica e a psicologia p. 11
6

constrói em cima da negatividade. Primeiro defini-se o errado, o doente e o estranho para, no


afastamento dessas características se reconhecer o certo, o são e o normal. “A psicologia da adaptação
do homem ao trabalho nasceu das formas de inadaptação que seguiram o desenvolvimento do
taylorismo na América e na Europa. Sabe-se como a psicometria e a medida da inteligência procedem
dos trabalhos de Binet sobre o atraso escolar e a debilidade mental; os exemplos da psicanálise e do
que se chama agora de “psicologia das profundezas falam por si mesmos: são inteiramente
desenvolvidas no espaço definido pelos sintomas da patologia mental.”17 E ainda mais, Foucault
argumenta: “A doença é a verdade psicológica da saúde, na mesma medida em que ela é a contradição
humana.”18 Logo, agora em 57, a “raiz verdadeira” da patologia mental não existe mais, porque a
doença é apenas uma interpretação histórica e social de determinado comportamento, sendo que,
porem, ela de fato existe como doença, mas apenas dentro desse contexto.

Por isso, dentro dessa perspectiva o autor, em 57, afirma:

“[...] as técnicas psicológicas, devido a algumas das suas condições, perdem sua validade, seu
sentido e seu fundamento psicológico; elas desaparecem como aplicações da psicologia e a
psicologia sob o nome que elas se apresentam não forma mais que a mitologia de sua verdade [...]
por sua natureza, as técnicas psicológicas são, como o próprio homem, alienáveis.” 19

Ou seja, enquanto em 54, Foucault considera a existência de uma psicologia verdadeira,


uma vez que acredita numa essência humana universal, agora em 57 ele acredita que as próprias
técnicas psicológicas não tem um caráter, um fundamento verdadeiro. Isso porque a própria
psicologia careceria de uma veracidade atemporal. Visto que, para o homem sendo entendido como
um ser historicamente constituído, sem possuir uma humanidade real, fixa e, portanto, possuindo um
caráter mutável, as técnicas e os fundamentos psicológicos não são atemporais, mas mudam (ou
deveriam se atualizar) afim de atender as (novas) necessidades dessa humanidade alienável. “[...] a
pesquisa e a prática psicológicas não podem se compreender senão a partir das contradições nas quais
se encontra tomado o homem [...]”20

Por fim, outro ponto interessante entre essas duas obras do autor, reside na questão de
Freud e a psicanálise. Uma vez que, em 54, Foucault considera a psicanálise como uma psicoterapia
desprezível, que faz o paciente enxergar em seu íntimo a causa da doença fazendo com que ele não
enxergue mais os conflitos das estruturas sociais que lhe proporciona desconforto. Em 57, todavia, o
autor de certa forma elogia a psicanálise por ela ser, dentro das linhas teóricas, a única psicoterapia

17
Michel Foucault, A pesquisa cientifica e a psicologia p. 16
18
Michel Foucault, A pesquisa cientifica e a psicologia p. 17
19
Michel Foucault, A pesquisa cientifica e a psicologia p. 16
20
Michel Foucault, A pesquisa cientifica e a psicologia p. 17
7

que surgiu e se pauta em uma positividade. Isso porque o freudismo considera a consciência humana
como uma negatividade e a sexualidade como uma positividade. Foucault chega a afirmar que, dentro
da psicologia, as únicas pesquisas que de fato possuem positividade são freudianas. Contudo, na
ultima página de A pesquisa cientifica e a psicologia, Foucault ainda faz uma critica à Freud,
insinuando que este foi quem melhor compreendeu a situação insustentável da psicologia e quem
mais contribuiu para que essa “verdade” não caísse à tona.

Assim se encerra esta comparação entre os pensamentos defendidos por Foucault em


Doença mental e personalidade e suas divergentes concepções adotadas em A pesquisa científica e a
psicologia. Deve-se concordar que a principal diferença entre essas obras concerne no que diz respeito
a questão da validade ou não do saber psicológico, sendo que em 54 essa validade é real e inata ao
homem e, em 57, essa validade não existe. Poder-se-ia falar que, em 54, Foucault é um humanista e,
em 57 não mais. De qualquer forma, enquanto Doença mental e personalidade termina afirmando
que a psicologia deve se tornar realmente científica, pautada em uma fundamentação verdadeira, em
57, Foucault termina A pesquisa científica e a psicologia afirmando de maneira totalmente inexorável
que a psicologia como ciência, como um saber verdadeiro, é inviável.

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