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RESUMO
As condições de existência das marisqueiras têm sido agravadas pela perda de habitat,
degradação ambiental e sobrepesca, acarretando transformações produtivas e culturais
em comunidades pesqueiras. Este estudo etnográfico tem como objetivo a produção de
conhecimento de base socioantropológica sobre práticas empíricas de marisqueiras de
dois povoados do Baixo Sul baiano e tem como produto um inventário do seu estoque
de conhecimento acumulado sobre a dinâmica da reprodução ambiental do complexo
ecológico e das práticas tradicionais de manejo dos recursos naturais. A gestão da
produção condicionada pelas fases da lua, fluxo das marés e caráter agreste do
ecossistema permite jornada semanal de trabalho de cinco turnos de quatro horas
diárias no manguezal ou na beirada. Em Garapuá, a principal fonte proteica animal de
exploração feminina é a lambreta coletada com mão ou facão, enquanto em Barra dos
Carvalhos o siri é capturado com petrechos como gaiola, gereré, manzuá ou ripichel e o
aratu com vara e linha. Para incrementar a renda, desenvolvem atividades como o
beneficiamento. É com base neste "saber prático" que define o sentimento de pertença
a um grupo social que se pretende criar subsídios para políticas destinadas à promoção
do trabalho feminino na pesca, que as reconheça como produtoras de alimentos
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ABSTRACT
INTRODUÇÃO
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Woortmann (1992) lembra que terras não apropriadas privadamente utilizadas para
lavoura, criatório solto, retirada de lenha e coleta eram um dos pressupostos de
reprodução dos grupos pesqueiros no Nordeste brasileiro. Essas terras foram
privatizadas, reduzindo o espaço produtivo da mulher e a mariscagem passa assim de
atividade complementar a atividade principal. O estudo do IBAMA (1995) traz aspectos
importantes do processo produtivo da mariscagem como: 1. O caráter do manguezal
enquanto território de livre acesso, a prática de gestão acumulada ao organizarem o
processo de trabalho; 2. A dinâmica ambiental do manguezal variável pelo fluxo das
marés determina sua rotina de trabalho e parte da vida social comunitária; 3. O
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Oliveira (1993) diz que o imaginário social percebe o ecossistema mangue como
espaço geográfico desordenado e insalubre, imagem que “mediatiza grande parte das
relações sociais e o ecossistema no Brasil, onde visão semelhante é reservada às
zonas de prostituição femininas, também chamadas de mangue”.
Os povos e comunidades tradicionais são uma variedade de grupos étnicos que possui
vínculo territorial, identificação com um ecossistema específico, modo de produção que
entra em conflito com a marcha do agronegócio e forte expressão cultural. Esses
grupos querem estar integrados e reivindicam reconhecimento de seus direitos. Apesar
da grande relevância econômica e social da coleta dos mariscos, a invisibilidade da
categoria pescadora artesanal já chamada por Blume (2009) de subalterna, espécie
indireta de violência crônica a mulheresem situação de carência aguçada, evidencia
ausência de seriedade na elaboração de políticas ambientais e de desenvolvimento
social para comunidades tradicionais pesqueiras na Bahia. As marisqueiras podem
viver dos gêneros alimentícios que extraem, mas possuem outras fomes ao serem
tratadas como subcidadãs, conforme fala uma liderança do Movimento dos Pescadores
e Pescadoras da Bahia, “[...] não existe um projeto para a pesca artesanal, o projeto de
pesca do estado é para a pesca industrial. [...] o que chega pra gente são doenças,
poluição, prostituição e drogas”1. Ela quis dizer que o projeto do governo do estado é
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Srª Eliete Paraguaçu da Associação de Marisqueiras de Ilha de Maré na mesa redonda “Pescadores
artesanais e marisqueiras, direitos, diversidade e atividades impactantes ao meio ambiente e às águas”
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voltado para a maricultura industrial, uma vez que segundo Accioly (informação verbal)2
na Bahia não há como implantar pesca industrial, por serem as águas oceânicas
baianas as mais pobres do país em quantidade de pescado.
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Entrevista ao Prof. Dr. Julio Rocha, coordenador do grupo de pesquisa Historicidade do Estado e do
Direito da Faculdade de Direito - UFBA.
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Prof. Dr. Miguel Accioly, coordenador do ECOMAR/IBIO-UFBA na mesa redonda “Pescadores
artesanais e marisqueiras, direitos, diversidade e atividades impactantes ao meio ambiente e às águas”
no I Congresso Internacional de Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais realizado em
11/05/2012 na Reitoria da UFBA, Salvador - BA.
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METODOLOGIA
RESULTADOS E DISCUSSÃO
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Período do ciclo reprodutivo em períodos intercalados, que dependem da lua, maré, salinidade da água
e outras condições climáticas, em que fêmeas e machos saem das tocas para o acasalamento e nas
andadas seguintes, as fêmeas liberam as larvas, que se desenvolverão transformando-se em nova
geração de caranguejos.
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O know how, conhecimento tradicional mais artesanato ou conhecimento processual, é o conhecimento
de como executar uma tarefa. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Know-how>. Acesso em 7 maio
2013.
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que é chamado de “óleo de barco” em todo o corpo e rosto com o objetivo de repelir
mosquitos.
As técnicas utilizadas são a coleta com a mão ou com o facão e para localizá-la
atentam ao que chamam de “suspiro da lambreta”, “olho da lambreta” ou “olho d´água”
(Esteves, 2007), borbulho d’água na superfície provocado pelo molusco e que indica
sua presença. Na coleta com a mão devem tatear embaixo de “quizambas” ou
“quizangas” (Rhizophora mangle) até encontrar o animal enquanto na coleta com o
facão a mão só é levada à lama quando o facão toca o molusco.
A gente cava mais debaixo das raízes, tem o suspiro que é um ‘olhinho
d’água’ em cima da lama, você cava ali, ela ta ali nem que seja uma
filhinha. A gente cava muito em pé de raízes, em beira de rio assim que
tem muita lambreta(Valdete, marisqueira e pescadora de Garapuá, 33
anos, casada, 3 filhos).
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Região caracterizada pela relação ecossistema e clima.
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Reentrâncias costeiras cobertas de manguezais, com alta produção de mariscos e pescados, onde se
assentam comunidades pesqueiras tradicionais.
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Como estratégia de cuidado e proteção contra picada de insetos fazem uso de dois
shorts ao mesmo tempo confeccionados com tecido grosso, geralmente jeans, camisa
comprida, camisa de manga, calça comprida, luva e improvisam uma máscara com
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tecido deixando descoberto apenas a abertura dos olhos; para efeito repelente uso na
pele de óleo diesel, que na falta pode ser substituído por querosene, gás natural ao
qual pode ser adicionado azeite de dendê para mudar a textura, uso de creme
hidratante na pele tanto para ir ao mangue como para aliviar o ressecamento e danos
causados pela exposição a sol e ao óleo diesel; contra acidentes e outros perigos, o
trabalho em grupo é apontado como importante estratégia de proteção, evitando
afastar-se quando estão sozinhas ao pescar na beirada e no riacho; para prevenir
quedas devem andar com cuidado para não cair e retirar o excesso de lama dos pés
antes de subir na quizamba; o cuidado com efeitos da picada do moreati citado foi a
retirada do veneno por enfermeira do posto de saúde. Do mesmo modo, além de serem
frequentemente vitimizadas por quedas, percebemos grande incidência de doenças
ocupacionais como problemas crônicos relacionados à ergonomia com seus esforços
repetitivos e modos de posicionar o corpo durante o trabalho com o tronco totalmente
curvado, reumatismos e dores no corpo, problemas de coluna, varizes, inchaço nas
pernas, hipertensão pelo contato muito direto com o ambiente salino, hérnia, problemas
ginecológicos sendo a causa associada por elas com a exposição às temperaturas da
lama no inverno ou verão, a que chamam de “quentura” ou “friagem” do mangue,
inflamação nos dedos das mãos causada por fungos, cortes e quedas de unhas, cortes
e cicatrizes na pele, alergias e manchas na pele causadas pela excessiva exposição ao
sol, água salgada e pelos efeitos do uso de óleo diesel.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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GLOSSÁRIO
Arrodilho – Tecido torcido Buzano – Teredo (Teredo Caramuru – Peixe carnívoro
usado na cabeça para ajudar navalis). Molusco de corpo com formato de serpente e
no apoio ao carregar o alongado e vermiforme que mordida perigosa. Habita
samburá. perfura madeiras submersas. cavidades rochosas e frestas
em recifes de corais. Moréia.
Gaiola – Instrumento para Gereré – Artefato feito com Lambreta – A Lucina
captura do siri feito de palha bordas de ferro, garrafas pet pectinata (GMELIN, 1791),
de canabrava (Erianthus conhecidas na comunidade molusco bivalve filtrador
sccharoides). como buião encaixadas em comestível com conchas
cada lado de uma tela, as ovais semelhantes de cor
garrafas são cortadas,são branca e opaca, medindo
depositados pedaços de peixe cerca de 9 cm de
como isca, depois tampadas. comprimento.
Manzuá – Petrecho utilizado Moreati – Peixe peçonhento Mutuca – Mosca (Tabanus
na pesca do siri que tem o que vive sobre a lama do sudeticus) encontrada
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formato de cone ou saco, cuja mangue e que causa próxima a corpos d'água. As
boca é voltada para cima, frequentes acidentes pela fêmeas hematófagas podem
possui uma haste por onde é inoculação de veneno através picar o homem com picadas
manuseado. de espinho sobre o corpo. doloridas que coçam.
Pesca de Arrastão – Pesca Pesca de Calão – Rede de Quizambas ou Quizangas –
geralmente de camarão com pesca de malha larga, que Raízes do mangue vermelho
rede arrastada a grandes tem três lados retos com boias (Rhizophora mangle),
profundidades com barcos e um curvo e munido de uma das principais espécies
motorizados puxadas para pesos, pra pescar nas praias. arbóreas do mangue, própria
que peixes e mariscos sejam de solos lodosos, com raízes
retidos. aéreas, suporte de fixação
de moluscos.
Ripichel – Artefato usado na Samburá – Cesto construído Suspiro da Lambreta, Olho
pesca do siri e do aratu feito com cipós trançados para da Lambreta ou Olho D’água
de palha de canabrava por carregar peixes e mariscos. – Filete de água que
artesãos da própria borbulha na superfície
comunidade. partindo de uma cavidade do
animal.
REFERÊNCIAS
ACCIOLY, Miguel da Costa. 2005. Maricultura Familiar Solidária no Baixo Sul Baiano –
Marsol, Salvador: Ecomar/Ciags, da Universidade Federal da Bahia. 22p. (CNPq.
Seleção Pública de propostas para apoio a projeto de tecnologias apropriadas à
agricultura familiar. Edital CT – Agro/MCT/MDA/CNPQ n°022/2004. Processo:
506196/2004-6). Projeto concluído.
BLUME, Luiz Henrique dos Santos. 2009. Memória Popular: dialogando com narrativas
orais de pescadores e marisqueiras de Ilhéus-BA, 1960 a 2008. Mnemosine, Vol. 5,
Rio de Janeiro: Departamento de Psicologia Social e Institucional – UERJ, nº 2, p.53-
79.
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NETO, J. D.; CHAGAS, L. D.; FILHO, S. M. 1997. Diretrizes ambientais para o setor
pesqueiro: diagnóstico e diretrizes para a pesca marítima.Ministério do Meio Ambiente,
Brasília. 124 p. Apud ACCIOLY, 2005.
OLIVEIRA, Neuza Maria. 1993. Rainha das águas, dona do mangue: um estudo do
trabalho feminino no meio ambiente marinho. Revista Brasileira de Estudos
Populacionais, v. 10. Campinas, nº 1 e 2, p.71-88.
ROCHA, Júlio César de Sá; SERRA, Ordep Trindade; SANTANA FILHO, Diosmar
Marcelino (orgs.). 2012. Relatório do I Congresso Internacional de Direitos dos
Povos e Comunidades Tradicionais. Salvador: UFBA. 48 p. (Série Povos e
Comunidades Tradicionais, v. 1, n. 1).
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