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Campinas
2014
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Campinas
2014
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RESUMO
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ABSTRACT
Ethnoecology is a field of research that seeks to elucidate the relationship between human
societies and nature. On the west bank of the Reconcavo Baiano, is located Baia do
Iguape, placed on the mouth of the river Paraguaçu interface with the Baía de Todos-os-
Santos. In this place, which in August 2000 was created the Marine Extractive Reserve
Baía do Iguape, is situated a quilombola community called Salaminas Putumuju. The
income and livelihood of much of the community is based on the extraction of natural
resources such as fish and plant species such as palm oil and palm fiber (dendê and
piaçava). The reserve is currently experiencing the operation of large infrastructure
projects with potential impact that caused concern, particularly in fishing activities. We
chose to analyze the relationships human/environment based on the comprehensive
ethnoecological proposal of Marques and contextualize them in time and historical
processes experienced by extractivists. Furthermore, we investigated the native
perception about the environmental impact of the installation and operation of projects. A
combination of qualitative data collection (interviews, direct observation, guided tours) tool
was used. The territory took a Quilombo of runaway slaves during the colonial period and
slavery labor was present in this community until the recent accreditation quilombola. The
Pastoral Council Fishermen (Conselho Pastoral dos Pescadores) played a decisive role in
the process of social transformation. The local extractivists have in-depth knowledge of the
dynamics of fish stocks and the phenomenon of the tides which optimizes the exercise of
fishing activity. Also, understand the ecological piaçava resource that is historically
regarded as the main source of income of the local community aspects. The generating
enterprises large impacts, especially the operation of the Hydroelectric Plant Pedra do
Cavalo have been interpreted by fishermen as primarily responsible for the decline in fish
stocks in the region.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 1
OBJETIVOS .................................................................................................................................... 15
ASPECTOS METODÓGICOS DA PESQUISA ......................................................................... 17
Coleta de dados.......................................................................................................................... 17
Hidrodinâmica ......................................................................................................................... 99
xii
Esta tese é dedicada:
xv
Taty e Kátia por todo apoio, amizade, generosidade e pelos ouvidos emprestados.
Raquel, Gabi e Luziana por terem representado minha família campineira e por terem
compartilhado tantas emoções, frustrações, alegrias e ainda por gentilmente estarem às
voltas com documentos para resolver alguma pendência minha na Unicamp. Às meninas
do projeto Siris (Ana Teresa, Carol e Ketlen) por dividirem um trabalho de campo tão
divertido e compartilhar momentos ótimos no LETNO. A Gilsimar por ter me ajudado a
conduzir esse trabalho desde o início, agradeço pela partilha, pela torcida, pelo apoio
logístico e pelo grande afeto com o que fez tudo isso. Ao extra-bem e agregados (Mari,
Brena, Paulinha, Alan, Thaís, Thiago e os já citados) pela diversão garantida! A Libério,
Parísio, Cris, Jammili pelos bons e necessários momentos de terapia e descontração. A
João Ricardo pela “luz acesa no quarto escuro”. A Dani, Marcos e Patrícia por terem sido
além de tudo, um valioso suporte emocional na minha chegada a São Paulo. A Luciana e
Helena por terem tão generosamente me acolhido no primeiro mês em Campinas. A
minha família paulista (Nóbia, Céu & companhia) pelo carinho e acolhida aconchegante.
A Sônia Regina da Cal Seixas, por ter aceito me coorientar e por acolher o
desafio, sobretudo da minha distância física e por ter feito tudo isso com muita calma e
generosidade.
Aos queridos colegas da turma 2010 do NEPAM pelos divertidos e produtivos
momentos que passamos juntos. Aos professores do Doutorado Interdisciplinar em
Ambiente e Sociedade por suas importantes contribuições acadêmicas.
À CAPES pela concessão da bolsa de doutorado sem a qual não teria sido
possível desenvolver esse trabalho.
À UNEF, e em especial ao coordenador dos cursos de Comunicação Social,
Thiago Oliveira por terem gentilmente concedido afastamento para finalização dessa tese.
Aos amigos banda B pela alegria do convívio e amizade.
À UEFS através do Laboratório de Etnobiologia e Etnoecologia (LETNO) por
prestar estrutura e apoio logístico ao desenvolvimento dessa pesquisa.
Àqueles que de uma forma discreta, mas decisiva, emprestaram qualquer
momento de atenção para que fosse possível chegar até aqui. Sigo dizendo: é muita
gratidão!
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"O mangue é um paraíso, sem o côr-de-rosa e o azul do
paraíso celeste, mas com as cores negras da lama, paraíso
dos caranguejos" (GRIFO NOSSO)
Josué de Castro
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“Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos
inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando a
nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de
uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma
diferença que não produza, alimente ou reproduza as
desigualdades.”
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“Se aí você teve estudo,
Aqui, Deus me ensinou tudo,
Sem de livro precisá
Por favô, não mêxa aqui,
Que eu também não mexo aí,
Cante lá, que eu canto cá.
Você teve inducação,
Aprendeu munta ciença,
Mas das coisa do sertão
Não tem boa esperiença.
Nunca fez uma boa paioça,
Nunca trabaiou na roça,
Não pode conhecê bem,
Pois nesta penosa vida,
Só quem provou da comida
Sabe o gosto que ela tem.”
Patativa do Assaré
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"...Liberdade, essa palavra
que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda..."
Cecília Meireles
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ÍNDICE DE ILUSTRAÇÃO
xxvi
INTRODUÇÃO
1
Com a intenção de evitar o aprofundamento na questão conceitual em torno da tradicionalidade,
adota-se para efeito dessa tese a definição “operacional” de Conhecimento Ecológico Tradicional
(Tradicional Ecological Knowledge – TEK) de BERKES (2008), segundo a qual TEK corresponde ao “conjunto
de conhecimentos, práticas e crenças envolvendo processos adaptativos, difundidos através das gerações
por transmissão cultural, sobre as relações de todos os seres vivos (incluindo seres humanos) entre si e com
o seu ambiente”.
1
Na definição de Marques (2001), etnoecologia é “o campo de pesquisa
(científica) transdisciplinar que estuda os pensamentos (conhecimentos e
crenças), sentimentos e comportamentos que intermediam as interações entre
populações humanas e os demais elementos dos ecossistemas que as incluem,
bem como dos impactos ambientais daí decorrentes”. Já segundo Toledo e
Barrera-Bassols (2009) a etnoecologia consiste em um enfoque interdisciplinar
“que estuda as formas pelas quais os grupos humanos veem a natureza, através
de um conjunto de conhecimentos e crenças; e como os humanos, a partir de seu
imaginário, usam e, ou, manejam os recursos naturais”.
Pesquisas em etnobiologia inicialmente produziam listas de nomes
populares e científicos de animais e plantas úteis para determinada cultura e tais
estudos representavam uma descrição do conhecimento ecológico dos até então
considerados “povos primitivos” (ELLEN, 2006). De acordo com este autor, em
uma segunda fase, as pesquisas buscavam contextualizar histórica e logicamente
esses conhecimentos, enfatizando em princípio, aspectos da classificação do
mundo natural. Nesse contexto, surgiu o trabalho de Harold Conklin sobre o uso
de vegetais pelo povo Hanunoo em 1954. A partir de então, emergiu o foco na
percepção nativa acerca do mundo natural e a expressão “abordagem
etnoecológica” começou a ser utilizada (NAZAREA, 1999).
Ellen (2006) afirma que hoje a etnobiologia atua muito mais numa
perspectiva analítica do que descritiva. Pode-se constatar o mesmo com relação à
pesquisa em etnoecologia, que atualmente além de contemplar temas
historicamente tratados, tem vivenciado o surgimento de novas temáticas.
Segundo Reyes-García e Sanz (2007), as principais linhas de pesquisa atuais
nesse campo são os sistemas locais de conhecimento ecológico, as relações
entre diversidade biológica e diversidade cultural, os sistemas de manejo de
recursos naturais e as relações entre desenvolvimento econômico e bem-estar
humano. Hoje os estudos estão focados no entendimento de como as culturas
interpretam, conceituam, representam, se relacionam, utilizam e manejam o
2
ambiente (ELLEN, 2006) e para tanto, Hunn (2006) salienta a necessidade de
entendimento da linguagem local no sucesso dos trabalhos em etnociências.
Totalmente inserido em uma perspectiva descritiva e analítica, o
presente estudo utiliza o aporte teórico-metodológico da etnoecologia abrangente.
Tal teorização emergiu da prática (grounded theory) através das pesquisas
realizadas por José Geraldo Marques na Várzea da Marituba, estado de Alagoas
(MARQUES, 1995; 2001) e está em processo de construção e aperfeiçoamento.
Segundo o autor, essa teorização foi construída com o objetivo de proceder a
análise de dados quando nenhuma outra teoria testada, produzia resultados que
facilitassem a interpretação e sistematização dos mesmos.
A abordagem etnoecológica abrangente difere de outras abordagens
em etnoecologia principalmente por propor um modelo analítico que abrange
quatro dimensões das relações entre pessoas e ambiente2 como categorias:
1. Bases Conflitivas: Aprofunda as questões geradoras de conflito
na localidade e sua interferência na relação entre seres humanos e o
restante do ambiente;
2. Bases Cognitivas: Analisa os conhecimentos a respeito dos
recursos explotados (etnotaxonomia, ecologia trófica, hidrodinâmica,
etnofenologia, etc.) e as crenças locais, especialmente aquelas que possam
exercer alguma interferência nas atividades extrativistas;
3. Bases Emotivas: Aborda os sentimentos e possíveis
implicações destes na conservação de recursos naturais, tal como tratado
por Marques (2005);
4. Bases Consexivas: Analisa aspectos relacionados ao
comportamento dos extrativistas com relação aos recursos explotados.
Nesse contexto, considera-se que as pessoas mantém cinco conexões
básicas com o ambiente: pessoas/minerais, pessoas/vegetais,
2
A separação em quatro dimensões tem finalidade de facilitar a análise dos dados. Considera-se que para a
cultura local, tais elementos estão imbricados ou mesmo sobrepostos de modo que para o(a) nativo(a) seja
difícil ou até mesmo impossível distingui-los.
3
pessoas/animais, pessoas/pessoas, pessoas/sobrenatural. Tais conexões
podem ser caracterizadas de acordo com (Figura 1):
a. Tipologia Conexiva: Finalidade para a qual se
estabelece a conexão (ex: trófica, econômica, estética, lúdica, etc.);
b. Grau de Conectividade: Importância cultural da conexão
(forte/média/fraca);
c. Status Conexivo: Comportamento da conexão ao longo
do tempo (emergente, permanente, resiliente, evanescente, etc.);
d. Modalidade: Pode ser classificada como “limpa” ou
“suja” quanto a natureza social, ambiental e/ou política.
4
As inovações propostas pela etnoecologia abrangente possuem
implicações teórico-metodológicas relevantes. A primeira delas é a possibilidade
de aplicação da abordagem aos mais diversos contextos socioculturais, uma das
razões pela qual a mesma recebe a denominação abrangente. De acordo com
Marques (2001) essa abordagem pode ser aplicada a todos os sistemas
ecológicos, inclusive o urbano. Tal visão surge no contexto de uma etnoecologia
que sempre esteve mais ocupada em estudar as sociedades culturalmente
diferenciadas, ou tradicionais.
Do ponto de vista analítico, a etnoecologia abrangente apresenta
alguns pontos de divergência da abordagem de Toledo (1992). A última considera
as relações entre seres humanos e natureza de acordo com o sistema k-c-p
(kosmus, corpus e práxis) onde kosmus corresponde às crenças, corpus aos
conhecimentos e práxis à prática produtiva. A etnoecologia abrangente agrega
conhecimentos e crenças em bases cognitivas, trata a prática produtiva como
comportamento em bases conexivas e incorpora as dimensões conflitiva e emotiva
(pathos) à análise.
Além disso, se constituem em características típicas etnoecologia
abrangente, a abordagem predominantemente qualitativa que preconiza uma
análise do ponto de vista emicista/eticista3, onde os memes - fragmentos
reconhecíveis de informação cultural passados de pessoa a pessoa dentro de uma
cultura (DAWKINS, 1979; BLACKMORE, 2000) - são utilizados como ferramentas
capazes de aferir a consistência das informações obtidas em campo.
A partir da valorização do conhecimento empiricamente construído por
comunidades locais, certos setores da ciência têm admitido a existência de outras
formas de conhecimento que não o científico stricto sensu. A etnoecologia
considera que populações não-letradas, que não estão totalmente inseridas no
3
Abordagem emicista-eticista associando as visões nativa (êmica) e acadêmica (ética). É importante
ressaltar que as denominações êmico/ético são provenientes de vocábulos lingüísticos (fonêmica e fonética)
de modo que, neste caso, a palavra “ético(a)” não é empregada no sentido de “moral”. Nesta abordagem
não se pretende corroborar ou depreciar um ou outro tipo de conhecimento ou fazer qualquer julgamento
de mérito ou valor com relação aos mesmos, e sim apenas compará-los.
5
contexto da sociedade abrangente, possuem conhecimentos válidos a respeito
dos recursos naturais e que tal conhecimento influencia o manejo dos recursos
naturais.
A preocupação com o meio ambiente e com a diversidade cultural tem
estimulado o crescente interesse na etnoecologia. Desse modo, devido à sua
natureza multifacetada, os problemas de uso e conservação dos recursos naturais
precisam integrar conhecimentos de populações locais e científicos naturais e
sociais numa perspectiva interdisciplinar. Reyes-García e Sanz (2007) consideram
a conservação de ambos como um fator chave de adaptação ao meio ambiente e
reiteram que, justamente por isso, e também devido ao caráter multi-escalar de
suas análises, a etnoecologia pode contribuir para compreender e interpretar
problemas envolvendo ambiente e sociedades.
Alguns autores acreditam que diferentemente do uso desordenado que
a sociedade industrializada faz dos recursos naturais, algumas comunidades
(tradicionais ou não) vêm utilizando-os de forma a não colocá-los em risco de
esgotamento (e.g. DIEGUES, 2000). Hanazaki (2003) considera indubitável que
populações tradicionais provocam impacto sobre os recursos naturais, porém
afirma que este é “quantitativa e qualitativamente distinto do que aquele gerado
por sociedades modernas/urbanas”. Begossi et al. (2002) afirmam que, à medida
que as populações tornam-se urbanas, os processos de decisão passam
provavelmente a depender mais de fatores econômicos do que ecológicos.
No âmbito científico, a conservação da biodiversidade por comunidades
locais foi abordada habitualmente dentro de duas concepções antagônicas: os
mitos do “poluidor primitivo” e do “bom selvagem” (DIEGUES, 1994; HANAZAKI,
2003; SOUTO, 2006). A primeira concepção trata as populações tradicionais como
elementos externos aos ecossistemas e a sua presença seria inevitavelmente
responsável por efeitos deletérios ao ambiente, enquanto a segunda considera
que essas comunidades vivem em plena harmonia com os demais componentes
do mundo natural, sem lhes causar danos.
6
Na prática, esta questão é bastante polêmica. De acordo com Gerhardt
(2008), o debate polarizado tem gerado uma frenética e generalizada busca por
evidências (sejam elas baseadas em casos, exemplos, números, dados,
informações, relatórios, reportagens, relatos-denúncia, etc.) tanto por parte
daqueles que defendem a tese de que populações tradicionais (do passado ou do
presente) sempre depredaram a natureza quanto pelos que querem comprovar
que estas mesmas populações ajudam a preservar a biodiversidade. É evidente
que a complexidade no que tange à conservação dos recursos naturais por
comunidades locais vai muito além do reducionismo colocado pelas concepções
citadas, dada a complexidade das relações entre ser humano e natureza.
Os conhecimentos e práticas locais de povos tradicionais ainda que de
qualidade sub ou superestimadas, são hoje consideradas chaves para a
conservação da biodiversidade (BACELAR e SOUZA, 2008). Tal temática já havia
sido tratada no âmbito da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), durante
a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento,
realizada no Rio de Janeiro em 1992, na qual é citado o potencial do acervo de
conhecimentos historicamente acumulados pelas comunidades locais na
conservação da diversidade biológica (MMA, 2000).
O debate, ao menos em tese, tem alcançado a esfera das políticas
públicas. O conhecimento tradicional tem sido reconhecido como relevante, tanto
para os estudos da biodiversidade quanto para a conservação do patrimônio
biológico e genético no país. Acrescenta-se a isso, a diversidade cultural brasileira
que é representada por um grande número de comunidades locais detentoras de
considerável conhecimento sobre as espécies da flora e da fauna e de sistemas
tradicionais de manejo dos recursos naturais renováveis (MMA, 2002).
O termo “tradicional” foi utilizado no âmbito desta tese para fazer
referência tanto à comunidade da Salamina quanto ao conhecimento de
extrativistas daquela localidade. Tal escolha se fez assumindo a inexatidão,
controvérsia, complexidade e ainda o caráter político-ideológico implícito neste
conceito (VIANNA, 2008), mas considerando a importância dessa terminologia
7
para explicitar: 1. A relevância da tradição como referencial para construir o futuro
(VIANNA, 2008), 2. O caráter político do conceito, que se tornou um instrumento
capaz de garantir territórios “tradicionalmente ocupados” e 3. A inclusão de
comunidades quilombolas na categoria “povos e comunidades tradicionais” no
âmbito da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e
Comunidades Tradicionais (PNDSPCT) criada em 2007.
A existência de “comunidades remanescentes de quilombo” foi
reconhecida oficialmente pelo Estado Brasileiro na Constituição de 1988, que em
seu artigo 68 afirmou o direito dessas comunidades aos seus territórios. Segundo
Linhares (2004), tal inclusão na esfera legislativa se deu pela pressão de
movimentos sociais afro-brasileiros que assim se colocavam, de acordo com
Schmitt et al (2002) devido às expropriações incessantes que sofriam as
comunidades negras rurais. Leite (2000) afirma que, apesar do texto da
constituição expressar “a necessidade de reconhecimento da cidadania étnico-
cultural”, não se sabe se esse reconhecimento se dá com intenção de preservar o
patrimônio cultural ou se por garantir o direito à terra e à diversidade étnica.
Após a inserção do artigo 68, a identidade quilombola passou a ser um
elemento capaz de garantir a sobrevivência material e simbólica dos grupos
negros. A construção da realidade enquanto “remanescente”, segundo Arruti
(1997), passa a ser um elemento de força ainda maior que a própria comprovação
da etnicidade negra. Esta identidade é considerada por Schimitt et al (2002), não
como algo fixo, mas sim em curso, que se estabelece a partir das relações de
diferença formadas em decorrência de eventos históricos e torna-se fundamental
para a garantia do direito de território e consequente transmissão da cultura das
populações negras rurais. Quando a identidade de “remanescente de quilombo”
passa a ser admitida, as diferenças que se colocavam entre essas e as demais
comunidades como forma de estigma, a exemplo da utilização das denominações
“negro” e “preto”, passam a ser adotadas e valorizadas (ARRUTI, 1997).
Quilombos, mocambos, comunidades negras rurais, terras de preto e
comunidades remanescentes de quilombo, segundo Linhares (2004), são termos
8
correlatos, criados por grupos com diferentes pontos de vista para se referirem a
uma situação social singular. Considera-se que os grupos negros se constituíram
a partir de uma grande diversidade de processos (SCHIMITT et al, 2002) e que a
terminologia utilizada no âmbito da legislação (“comunidades remanescentes de
quilombo”) não contempla esta dinâmica. Um aspecto que contribui para a
inexatidão do termo é a sua vinculação à noção de temporalidade (ARRUTI, 2006)
com o propósito de solucionar a “relação de continuidade e descontinuidade com o
passado histórico em que a descendência parece não ser laço suficiente”
(ARRUTI, 1997). Segundo Linhares (2004), a terminologia é criticada por
acadêmicos e pelo próprio movimento social por considerar apenas a fuga e
negação do regime de escravidão e desconsiderar outras formas de resistência. O
autor afirma que ativistas negros preferem a denominação “comunidades negras
rurais” porque consideram a forma de vida social independentemente do seu
processo histórico de formação. Da mesma maneira, a expressão “terras de
preto” mais utilizada no norte e nordeste do Brasil, enfatiza o caráter comum das
propriedades e recursos.
A palavra “quilombo” por sua vez possui uma grande quantidade de
significados – ora designando lugar, ora povo, ora manifestações populares, etc –
e por este motivo seria útil para construir um aparato simbólico capaz de
representar a história das Américas (LEITE, 2000). A autora afirma que este
conceito pode ser visto pelos militantes como elemento aglutinador que permita
dar sustentação à afirmação da identidade negra. A palavra quilombo de acordo
com Leite (2008) foi ressemantizada pelos movimentos sociais, passando a
incorporar os princípios de liberdade e cidadania negados aos afrodescendentes
tais como direito à terra, ações em políticas públicas que ampliem a cidadania e
proteção às manifestações culturais.
Para efeitos deste estudo, opta-se pela utilização da expressão
comunidade quilombola para designar a Salamina Putumuju, em concordância
com autores que consideram que tal terminologia agrega elementos
socioantropológicos além do significado exclusivamente histórico, que se percebe
9
na expressão “remanescentes de quilombo” (ARRUTI, 1997; 2006; LEITE, 2000;
SCHMITT et al. 2000).
De acordo com Gomes (1995), a formação de quilombos tinha
reconhecida tradição na capitania da Bahia. O autor afirma que, no Recôncavo
Baiano, a existência de mocambos está registrada em documentos que datam da
década de 1580. Esta região, por reunir elementos das culturas indígena, negra e
européia, é considerada por Souto (2004) como o berço da cultura baiana. Pedrão
(2007) classifica o Recôncavo como um lugar de uma pluralidade de situações
agregando tanto aquelas determinadas pela escravidão e pela servidão quanto
aquelas constitutivas do universo do extrativismo reunindo ainda um elenco de
situações pertencentes ao que se aceita como moderno.
Fisicamente, o Recôncavo Baiano possui limites bem definidos, uma
vez que corresponde à faixa de terra que circunda a Baía de Todos-os-Santos. De
acordo com Pedrão (op. cit), a região apresenta uma identidade cultural única no
Estado da Bahia porque as pessoas se sentem parte da região, mais do que de
uma localidade ou município.
Na margem oeste do Recôncavo da Bahia, situa-se a Baía do Iguape,
sistema hídrico formado a partir da falha geológica Salvador - Maragogipe
(SANTOS, 2007), localizado na interface da foz do rio Paraguaçu com a Baía de
Todos-os-Santos. Ao longo do seu curso, o rio Paraguaçu percorre trechos da
Chapada Diamantina e da caatinga até chegar ao Recôncavo Baiano compondo a
bacia hidrográfica com o mais importante sistema fluvial de domínio inteiramente
estadual (PEREIRA, 2008). De acordo com Ramos (1993), o estuário lagunar que
forma a Baía de Iguape abrange aproximadamente 80 km 2 e se comunica com a
Baía de Todos-os-Santos através do Canal de São Roque.
Nesta localidade, abrangendo parte dos municípios de Maragogipe e
Cachoeira, situa-se a Reserva Extrativista Marinha Baía do Iguape4, criada em
4
Sobrepõe-se a esta, uma Unidade de Conservação Estadual: a Área de Proteção Ambiental Baía de Todos-
os-Santos, que inclui as águas da Baía de mesmo nome.
10
agosto de 2000, com a finalidade de garantir a exploração auto-sustentável e a
conservação dos recursos naturais renováveis tradicionalmente utilizados pela
população extrativista local. Nessa região, estão localizados os manguezais mais
bem preservados da Baía de Todos-os-Santos, de onde são extraídos recursos
que se constituem em importantes fontes de renda e subsistência para as pessoas
da região.
A área aproximada da Resex até 2009 era de 8.117,53 ha, sendo
2.831,24 ha em terrenos de manguezais, e 5.286,29 ha de águas internas
brasileiras (D.O.U., 11/08/2000). A partir de então, a unidade sofreu alteração em
seus limites por meio de emenda à Medida Provisória nº462 de 2009 que foi
convertida na Lei nº 12.058 de 13 de outubro de 2009.
Atualmente, conflitos socioambientais envolvendo a instalação de
empreendimentos (principalmente navais, hoteleiros e portuários) e interesses de
populações locais e grupos ambientalistas têm se tornado manifestos no litoral do
estado da Bahia. A Baía do Iguape, particularmente, convive com a operação de
três empreendimentos causadores de grande impacto ambiental: ao norte, a Usina
Hidrelétrica de Pedra do Cavalo e ao sul, os estaleiros de São Roque e Enseada
do Paraguaçu. A inexistência do plano de manejo da unidade acaba por facilitar a
inserção de atividades industriais nas adjacências da Resex.
A Usina Hidrelétrica de Pedra do Cavalo atua na geração de energia
desde o ano de 2004. A partir de então, a liberação de água pela barragem parece
ocorrer de modo aleatório, o que prejudica atividades pesqueiras provocando,
inclusive, o desaparecimento de espécies da localidade (PROST, 2007a;
SANTOS, 2008; ICMBio, 2009; OLIVEIRA, 2012). O estaleiro de São Roque foi
instalado na década e de 1950, passou um período desativado e voltou a operar
após o estabelecimento da Resex Baía do Iguape. A implantação do estaleiro
Enseada do Paraguaçu ocorreu em uma área que até meados do ano de 2009
integrava a reserva. Segundo documento de caracterização da unidade (ICMBio,
2009), na ocasião, os extrativistas locais de um modo geral estavam em
11
desacordo com a implantação do empreendimento por entenderem que o mesmo
representaria prejuízo às atividades pesqueiras.
Segundo dados do ICMBio (2009), cerca de 92 comunidades vivem nas
adjacências da Resex, dentre as quais, 26 são reconhecidas pela Fundação
Cultural Palmares como “remanescentes de quilombo” (ICMBIO, 2009). Grande
parte dos quilombolas que habitam a região tem sua única ou principal fonte de
renda proveniente das atividades pesqueiras e da extração de produtos vegetais
tais como o dendê e a piaçava (ICMBIO, 2009).
Dentre as comunidades, insere-se a Salamina Putumuju, que está
localizada na parte sul da Baía do Iguape e foi reconhecida como “remanescente
quilombola” pela Fundação Cultural Palmares em 10 de dezembro de 2004
(ICMBIO, 2009). Após o reconhecimento, a comunidade anteriormente conhecida
apenas por Salamina resgatou o nome do antigo quilombo: Putumuju. De acordo
com dados do INCRA (2006), na ocasião de realização do laudo antropológico, em
toda a comunidade viviam cerca de 40 famílias5.
O aumento na quantidade de estudos etnoecológicos realizados nos
últimos anos é reflexo do crescente interesse acadêmico pelas maneiras como as
diferentes sociedades se apropriam dos recursos naturais. Apesar disso,
pesquisas com essa temática ainda são escassas considerando a
sociobiodiversidade brasileira. Pesquisas envolvendo conhecimentos e práticas
tradicionais de comunidades quilombolas, por exemplo, são raras. Na região do
Recôncavo Baiano, alguns estudos etnoecológicos têm sido desenvolvidos a
respeito da pesca artesanal, mas não foram localizados trabalhos abordando o
extrativismo vegetal em áreas de remanescentes de Mata Atlântica locais. De
acordo com o ICMBio (2009) os aspectos culturais de atividades produtivas na
Reserva Extrativista Marinha Baía do Iguape necessitam ser aprofundados para a
elaboração do Plano de Manejo da Unidade de Conservação.
5
Dados obtidos através do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do Território Quilombola de
Salamina Putumuju realizado pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA, 2006).
12
Ainda que escassas, algumas pesquisas têm contemplado a pesca
artesanal na região do Recôncavo Baiano do ponto de vista etnoecológico
(SOUTO, 2004; 2007; 2008; SOUTO e MARTINS, 2009). No que se refere ao
extrativismo vegetal de produtos como piaçava e dendê, os estudos de cunho
etnoecológico certamente são ainda mais raros. Não foram localizados trabalhos
que investigassem as relações entre pessoas e ambiente em atividades
extrativistas florestais desta naureza no Recôncavo Baiano.
Considerando a riqueza da cultura e da biodiversidade da região do
Recôncavo Baiano e em particular, da cultura de origem predominantemente
africana dos quilombolas da Salamina Putumuju e sua singularidade devido a: 1.
seu relativo grau de isolamento com relação às comunidades adjacentes; 2. o
exercício das atividades extrativistas como principal meio de sobrevivência; e, 3.
as recentes modificações ambientais ocorrentes na localidade, propôs-se, com
esta pesquisa, documentar os conhecimentos, crenças, sentimentos e
comportamentos da população local com relação aos principais recursos
explotados através de um estudo etnoecológico, comparando conhecimentos
tradicional e acadêmico e analisando práticas extrativistas do ponto de vista da
conservação. Além disso, buscou-se verificar a percepção dos extrativistas quanto
aos efeitos das modificações no ambiente na relação da comunidade local com os
demais elementos dos ecossistemas que as incluem e contextualizar a produção
do conhecimento tradicional, abordando os processos históricos e relações de
poder vividas pela comunidade ao longo do tempo.
Do ponto de vista teórico-metodológico, pretendeu-se avançar na
incorporação de modelos de análise de dados qualitativos em etnoecologia e
ainda contribuir para o amadurecimento da teorização etnoecológica abrangente
(MARQUES, 1995, 2001) numa avaliação crítica sobre a sua aplicabilidade no
contexto das atividades extrativistas realizadas na comunidade da Salamina.
Além de desenvolver análises a respeito do contexto de reprodução
simbólica e material da comunidade estudada, foram enfocadas no estudo
etnoecológico as duas atividades de maior relevância dentro do seu contexto
13
cultural e socioeconômico: a pesca de camarão e o extrativismo da piaçava.
Dessa maneira, essa tese está organizada de forma a primeiramente inserir o
leitor no universo da comunidade estudada, trazendo no capítulo 1 aspectos de
localização, paisagem, modo de vida e a contexto histórico da Salamina Putumuju
conforme narrados pelos extrativistas entrevistados.
O capítulo 2 trata de duas dimensões da etnoecologia abrangente
(conflitiva e emotiva) envolvendo de forma ampla as relações entre extrativistas e
demais elementos da natureza. Percebeu-se, nas análises, que esses aspectos
não poderiam ser avaliados separadamente de acordo com cada uma das
modalidades de extrativismo enfocadas, uma vez que incidem sobre o modo de
vida da comunidade como um todo.
Optou-se por apresentar as dimensões cognitiva e conexiva
separadamente para pesca do camarão (capítulo 3) e piaçava (capítulo 4) uma
vez que se tratam de recursos provenientes de ecossistemas distintos. Fez-se
essa escolha com objetivo heurístico, visando facilitar a análise de conhecimentos
e comportamentos relacionados a cada um dos recursos explotados.
Finalmente, buscou-se analisar o fator temporal no capítulo 5
enfocando a dinâmica das conexões na comunidade estudada. A destinação de
um capítulo exclusivo para tratar essa análise se deu por considerar que esta é
mais importante contribuição deste estudo à teorização etnoecológica abrangente.
Nesse sentido, abordou-se no último capítulo as mudanças ocorridas na Salamina
tanto diante da sua própria dinâmica cultural interna quanto àquelas relacionadas
às recentes modificações ocorridas externamente à comunidade.
14
OBJETIVOS
GERAL
ESPECÍFICOS
15
16
ASPECTOS METODÓGICOS DA PESQUISA
Coleta de dados
6
Entrevistas informais são aquelas em que o pesquisador escreve registros de uma conversa casual
(ALEXIADES, 1996).
7
Pessoas encontradas casualmente foram entrevistadas.
17
Posteriormente foram realizadas 21 entrevistas semiestruturadas
abordando assuntos relacionados à biologia e ecologia dos recursos
(etnotaxonomia, etnofenologia, ecozoneamento, hidrodinâmica, territorialidade...),
crenças locais, estratégias de captura, utilização e conservação. Particularmente
no que se refere ao estudo da compreensão dos ciclos naturais pelos nativos
(etnofenologia – NABHAN, 2010), foram agregados indicadores vernáculos
(grassroots indicators - MARARIKE, 1996; ORONE, 1996) identificados pelos
extrativistas para relacionar eventos fenológicos distintos. Através das entrevistas,
foi investigado se os nativos percebem mudanças nos ciclos etnofenológicos e se
atribuem alguma causa a estes fenômenos.
A percepção local sobre as mudanças ocorridas no ambiente foi
estudada através da história oral. Para tanto foram realizadas entrevistas semi-
estruturadas empregando o gênero “história oral temática”, que segundo Freitas
(2006), permite a comparação entre diversas informações, apontando
convergências, divergências e evidências de uma memória coletiva. Todas as
entrevistas semi-estruturadas foram gravadas e transcritas de forma verbatim,
respeitando o linguajar nativo. Dentre os entrevistados, privilegiou-se contactar
aqueles indivíduos considerados “especialistas nativos(as)”, pessoas auto-
reconhecidas e reconhecidas pela própria comunidade como culturalmente
competentes no exercício de determinada atividade (MARQUES, 1995). A
ampliação amostral foi possibilitada pela inclusão de novos indivíduos,
sucessivamente indicados a partir dos anteriormente contatados.
Todas as entrevistas foram precedidas pela identificação do
entrevistador, explanação sobre os objetivos do trabalho e apresentação de um
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme indicações do Comitê de
Ética em Pesquisa (autorização em apêndice 1). O projeto de tese foi avaliado e
autorizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) 8 por
8
No ano de 2011, a solicitação de autorização de acesso ao conhecimento tradicional associado à
biodiversidade em pesquisas que não envolvam o acesso direto ao componente genético e nem a intenção
de gerar produtos e patentes, deixou de ser uma atribuição do Conselho do Patrimônio Genético (CGEN) e
18
tratar de conhecimento tradicional associado à biodiversidade (processo
02000.000446/2012-10 DPI/IPHAN/MinC – D.O.U. 18/07/2012 – apêndice 2). Por
tratar-se de uma pesquisa em unidade de conservação federal o projeto também
foi submetido a avaliação pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade e aprovado sob o número 27644-3(apêndice 3). Por se tratar de
uma unidade de conservação de uso sustentável, o projeto foi submetido ainda à
apreciação do Conselho Deliberativo da Resex Baía do Iguape, tendo sido
apresentado e discutido em reunião.
A coleta de dados também ocorreu através de observações diretas
(figura 3), quando os informantes foram acompanhados em suas atividades
extrativas rotineiras, ocasião em que também foram realizadas as entrevistas de
campo (ALEXIADES, 1996). Complementarmente, foi utilizada a técnica de
percursos guiados em campo, onde os próprios extrativistas serviram de guias em
áreas de extrativismo ou atividades que desenvolvem (GRENIER, 1998). Durante
essas incursões, foram feitos registros fotográficos (conforme permissão do sujeito
da pesquisa) das atividades cotidianas de extrativistas nos sítios de pesca e
coleta, nas ruas ou em suas residências. Nessas ocasiões, foram evitadas
interferências no trabalho desses profissionais para que o registro das imagens
seja fidedigno e para não atrapalhar o rendimento de suas atividades.
passou a ser analisado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), desta forma, o
projeto desta tese que aguardava parecer do CGEN, foi transferido para apreciação do IPHAN.
19
Figura 3- Observação direta do extrativismo da piaçava
20
Análise de dados
9
Sociedades de pequena escala são caracterizadas essencialmente por possuir algumas centenas a poucos
milhares de habitantes e certa autonomia política (SMITH e WISHNIE, 2000).
21
Optou-se nesta pesquisa por abordar o extrativismo pesqueiro e vegetal
na comunidade da Salamina Putumuju a partir de uma análise de caráter
etnográfico, privilegiando assumidamente uma análise qualitativa dos dados. A
análise escolhida parte do arcabouço teórico-analítico da etnoecologia abrangente
(MARQUES, 1995; 2001) e buscou integrar outros elementos com a intenção de
tornar as dimensões espacial e temporal os eixos da análise. Para tanto, agrega-
se um entendimento mais amplo de paisagem, assumindo-a de acordo com a
perspectiva de Ingold (1993) considerando a vida humana como um processo que
envolve a passagem do tempo e nela são construídas as paisagens que a pessoa
vive. Além disso, procurou-se associar aspectos trazidos pela etnoecologia da
paisagem, que tem assumido a importância dos processos históricos e relações
de poder na geração do conhecimento e manejo de recursos naturais (ELLEN,
2009; JOHNSON E HUNN, 2010a).
22
Figura 5. Ilustração da análise de dados
23
24
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A COMUNIDADE DA SALAMINA
25
sede do município ocorre por meio de embarcações, principalmente canoas de
madeira (predominantemente a remo e/ou vela) ou de fibra movida a motor. Além
disso, as embarcações disponíveis para o transporte de pessoas até as demais
localidades são escassas.
26
10
Figura 6 – Localização da Resex Baía do Iguape e Comunidade da Salamina Putumuju
10
O mapa representa a Resex Baía do Iguape com as limitações originais, antes das alterações sofridas em 2009. Material gentilmente elaborado por Simony
Reis.
27
Figura 7 - Mapa de remanescentes florestais destacando a área de estudo – comunidade da Salamina Putumuju (Baseado em mapa elabora do
11
pela Fundação SOS Mata Atlântica e INPE, 2009)
11
Material gentilmente elaborado por Allan Yu Iwama de Mello.
28
O nativo multi-estrategista
30
Figura 8 - Localização dos bairros que compõem a comunidade Salamina e principais pontos de referência utilizados pelos extrativistas
31
A B
C D
E F
32
Embora esteja sob a influência de uma Usina Hidrelétrica há quase dez
anos, a comunidade da Salamina só passou a ter energia elétrica em 20 de junho
de 2013, cabendo à população extrativista local durante muito tempo apenas arcar
com o ônus do impacto produzido pela operação do empreendimento. Essa
realidade não se aplica às fazenda Mutuca e Jaqueira, que com recursos
financeiros suficientes e alheias ao descaso do poder público com a comunidade
local, há muito tempo possuem eletrificação. As residências não possuem água
encanada, saneamento básico e a maior parte também não possui banheiro.
A água, entretanto, é abundante no território e a população local tem
acesso a este recurso através de fontes e riachos de água doce (figura 10). A
água obtida nesses locais é utilizada para os diversos fins: consumo familiar,
limpeza, lavagem de roupas e higiene. Alguns locais conhecidos localmente como
bicas estão situados bastante próximos à margem do Paraguaçu e são utilizados
pelos pescadores para obter água potável nos intervalos da pescaria (figura 11).
A B
33
As fontes recebem os nomes das pessoas que moram próximo a elas
(exemplos: fonte de Bié, fonte de Ademário). Apesar dos topônimos serem
sugestivos de posse, neste caso, as fontes são de uso comum, embora sejam
mais utilizadas por aqueles que moram próximos a ela. Esta mesma situação se
estende a alguns portos (exemplo: porto de Vidal, porto de Egídio), que apesar
dos topônimos também não se constituem em “pedaços possuídos” (Marques,
2001). Desta maneira, o espaço em geral é concebido localmente como uma
propriedade coletiva, com exceção das residências, quintais e roças que são
compreendidos como locais pertencentes a cada família. O território comum e
indivisível é uma característica comum entre quilombolas, dessa maneira, o
espaço é ocupado e explotado obedecendo a regras consensuais do grupo
(ANDRADE, 2011).
34
principalmente num contexto lúdico. Há que se destacar, entretanto, o potencial
pedagógico implícito nessas brincadeiras, que acabam por inserir naturalmente a
criança no universo do extrativismo (figura 12). As brincadeiras infantis refletem a
dinâmica local: ao invés de carros, as crianças utilizam as brácteas penducunlares
das palmeiras como se fossem canoas, constroem armadilhas para capturar
guaiamuns e brincam nos riachos.
Assim, tal como foi tratado por Marques (2001), a infância na Salamina
propicia inúmeras vivências ecossistêmicas e, em muitos casos, as brincadeiras
contribuem para a complementação da alimentação familiar, ainda que isso não se
constitua em uma obrigação infantil e também não seja considerado como
trabalho. Os adolescentes, por sua vez, frequentemente são recrutados a
trabalharem na pesca como ajudantes e é desta forma que eles acabam se
inserindo profissionalmente no universo extrativista, inclusive levando o
rendimento do trabalho para suas famílias.
35
A solidariedade e ajuda mútua são características presentes nas
relações entre os extrativistas. Assim sendo, transporte de materiais, construções
de residências e outras atividades que demandam maior esforço são realizadas
por um grupo em regime de mutirão que atribui a estas tarefas o nome de digitório.
Muitas residências da Salamina são feitas de taipa, construídas com
material autóctone como madeiras e barro. Um número cada vez maior de
extrativistas está edificando novas casas utilizando tijolos e aproveita as antigas
para guardar redes, defumar pescado e produzir azeite de dendê. As casas de
taipa estão sendo substituídas tanto devido à precariedade das construções que
possuem baixa durabilidade, quanto por causa do risco de infestação por
barbeiros. Na comunidade do Tororó duas pessoas moradoras de casas de taipa
afirmam ter adquirido doença de Chagas.
36
“...Outra coisa, a saúde aqui é muito precária.
Mas em vista de antigamente aqui tá ótimo agora”.
12
A palavra camponeses é empregada aqui como tradução da palavra peasant, utilizada originalmente por
Toledo (2001) e Toledo et al (2003) para designar as comunidades tratadas nesses estudos.
38
panhei nada, a pesca deu fraca, mei quilo de camarão eu já
parto pra outra coisa."
"Aqui quando não tá dando de um lado, a gente
parte pra outra. Se você vai pra camarãozeirra hoje e tomar
pau, amanhã eu já vou pra rede de fundo, se tomar pau de
novo no outro dia já bota outra arte."
Figura 13 – Ciclo anual de recursos naturais e atividades produtivas segundo informações êmicas
na comunidade da Salamina
39
Cada uma das atividades produtivas é desempenhada em uma
unidade de recurso distinta. Localmente identifica-se quatro: mata, quintal e/ou
roça, mangue e maré (figura 14). A mata se distingue das demais unidades de uso
principalmente pelo porte da vegetação arbórea e pelas espécies vegetais típicas.
A roça corresponde localmente às áreas cultivadas que geralmente, porém não
necessariamente, estão adjacentes às residências. O quintal por sua vez é
compreendido como espaço próximo às casas onde são manejadas plantas
frutíferas e onde, muitas vezes, estão contidas as roças. As roças/quintais quando
compreendidas como uma unidade, assim como a mata, são discretas, de modo
que é possível ver o limite entre estas e as demais unidades. Ao contrário disso, o
mangue e a maré são contínuos. No entendimento dos nativos, o mangue também
é maré, embora haja distinção entre as atividades a serem desempenhadas em
cada unidade.
13
Aipim é denominado em outros locais do Brasil como macaxeira ou mandioca.
40
manchas de monocultivo na área do quilombo. As roças são plantadas em áreas
próximas às residências, confundindo-se com o quintal onde muitas espécies
vegetais, sobretudo árvores frutíferas, já se encontram cultivadas. Esse sistema
de cultivo se assemelha ao home garden definidos por Toledo et al (2003) como
sistema agroflorestal localizado próximos às casas.
As roças atuam como um fator capaz de diminuir a dependência da
população local do mercado mais abrangente. Assim, algumas famílias plantam
itens empregados diariamente na alimentação, como tomate, cebola e pimentas.
As frutas que também possuem grande importância na dieta dos nativos também
são cultivadas. Assim como as roças, o mangue e a maré são unidades de
paisagem que possuem um manejo multi-específico (como citado por Toledo et al,
op. cit.). No ambiente de mata por sua vez, o manejo é predominantemente dos
recursos piaçava e dendê, embora outros vegetais (espécies frutíferas e outras
utilizadas na fabricação de utensílios) sejam também utilizados.
Ainda de acordo com esses autores, o grande número de espécies
utilizadas pelos nativos com diferentes finalidades confirma a manutenção da
biodiversidade no sistema de uso múltiplo. Quando comparados com áreas de uso
específico (agricultura de monocultivo, por exemplo), os usos múltiplos
representam uma menor produção por unidade de paisagem, mas uma maior
produção por paisagem agregada (TOLEDO et al, 2003). Analogamente, tomando
como referência pequenas comunidades de agricultores na Índia, Shiva (2000)
concluiu que estratégias que agregam biodiversidade são mais produtivas do que
os monocultivos em escala industrial e ainda que são essas pequenas produções
as responsáveis por alimentar a maior parte das pessoas no mundo.
No que se refere à pesca é necessário distinguir logo a princípio, duas
modalidades de atividades pesqueiras realizadas localmente: a mariscagem, que
envolve a captura de bivalves como ostras e sururu e captura de caranguejos e
aratus e pesca propriamente dita que especificamente no caso da Salamina,
compreende a captura de peixes e camarão utilizando instrumentos como rede e
41
anzol (linha). Essa distinção é similar àquela abordada por Souto (2004) em
trabalho desenvolvido em outra localidade do Recôncavo Baiano.
A mariscagem, de uma forma geral, é realizada com aparatos bastante
simples, como facão, colher de pedreiro e faca de cozinha. No que se refere à
pesca, no sentido estrito, é necessário o uso de apetrechos como rede, linha,
anzol e embarcações, o que limita o exercício da atividade àqueles que têm
acesso a este aparato. A parte das pessoas que não dispõe desses instrumentos
tem o exercício da atividade condicionado ao convite. Nesta situação, um
pescador proprietário da canoa e da rede, convida outra pessoa (geralmente
considerando as relações de parentesco) para ajudá-lo na atividade. Em geral, as
pescarias são realizadas em dupla e a produção é dividida igualmente. Aqueles
que possuem artefatos e embarcações pescam com maior frequência do que
aqueles que dependem do convite. Outras atividades pesqueiras que não
dependem do uso de embarcações, a exemplo da mariscagem, são realizadas
pela totalidade dos entrevistados e visam predominantemente a subsistência.
Apesar dos extrativistas contatados assegurarem que a piaçava é o
principal recurso utilizado pela população das Salamina, a maior parte identifica a
pesca como a atividade economicamente mais importante para a própria família,
em razão desta ocupação fornecer melhor retorno financeiro. Por este motivo, é
exercida prioritariamente pelos extrativistas, caso hajam condições de maré
apropriada e eficiência na pesca.
43
O plantio de algumas culturas é outra alternativa de renda e
subsistência utilizada pela população da Salamina. Destaca-se o cultivo de aipim
que se destina tanto à alimentação da família quando à comercialização nas feiras
da cidade de Maragogipe. Outros cultivos como inhame, milho, amendoim, batata,
banana e feijão se destinam em sua maior parte à subsistência.
45
Figura 16 – Etapas da produção do azeite de dendê. A - cozimento dos frutos de dendê; B -
maceração em pilão. C – bagaco obtido após peneiração; D – Produto da peneiração pronto para
novo cozimento
46
A Dimensão temporal
48
Uma história da Salamina tal como contada pelos nativos
“Eu sei que depois surgiu não sei o que foi que
teve aí que libertaram os escravo que passou a ser
assalariado. O pessoal trabalhava e recebia aquela
migalha... Aí eu não sei como foi lá, eles conseguiram ir
embora e venderam isso aqui pra outro dono que chama
Teotônio. Teotônio quando chegou pra aqui acabou com
esse negócio de engenho e passou a ser charqueada,
salgadeira. Matava o animal e fazia charqueada. Criava aí, aí
matava e fazia charque.”
52
Após o fechamento da charqueada, a fazenda Salamina foi novamente
vendida (INCRA, 2006). Dessa vez, o fato marcou a o início do Tempo de Rosalvo
Velho. Muitos dos entrevistados viveram este período e por esse motivo, os
eventos a partir daí passam a ser narrados com maior riqueza de detalhes.
53
para uso dos extrativistas impedia o deslocamento dos mesmos para outras
localidades.
55
A
Figura 14 – Locais utilizados pelo fazendeiro no tempo de Rosalvo Velho: A- Local onde
funcionava a venda; B – Local onde a os extrativistas entregavam a piaçava e onde eram feitas as
contas do pagamento; C – residência do fazendeiro
56
A unidade de medida utilizada na comercialização da piaçava é a
arroba, que no Brasil, equivale a 14,688Kg. Entretanto, para efeito de compra de
piaçava pelo proprietário da fazenda, a unidade de medida equivalia a 16 quilos, o
que mais uma vez prejudicava os extrativistas. Além disso, as frações que
ultrapassassem as arrobas não eram pagas, de forma que se o extrativista
entregasse cinco arrobas e meia, por exemplo, o patrão pagaria apenas pelas
cinco arrobas. Um funcionário chamado Diocrécio, era o responsável por calcular
o “pagamento” dos extrativistas junto com o fazendeiro.
57
e botava as mulher pra aprontar. Os caroço14 ali tinha que
ser todo repassado. Se ele chegasse no bagaço de uma
catadeira e achasse um caroço de piaçaba, vorta tudo pra
catar tudo. Porque é um desperdício, se achar um caroço..."
"Eu era escravo do velho. Eu tô dizeno que eu era
escravo porque eu era escravo. Porque no dia que eu não
trabaiava, não comia. Com idade de sete ano, de oito ano.
Eu tomava conta do animal dele."
"Eu tô lembrado quando eu chegava com piaçaba
lá pro fazendeiro pra comprar um radinho de pilha, e ele dizia
'Essa piaçaba aí é sua?' Eu era menino. Desde criança.”
14
“Caroço” é a parte da fibra da piaçava que possui maior valor econômico.
58
“Nós chegava aqui nesse Ferreiro, como eu disse
que pegava canoada de marisco, não era nós. Maragogipe
vinha com aquelas rede de calão aí nós ajudava puxar pra
ganhar muquequinha, até se for falar de mariscar, nós
mariscava pra ganhar aquele pouquinho, pra eles dar
aquelas muquequinha a gente. Dos outro, tudo dos outro,
vinha aquelas rede de Maragogipe, nós ia ali pro Ferreiro pra
puxar rede."
(Podia mariscar naquela época?) "Ah bom, até aí
caranguejo tinha graças à Deus, aí tinha fartura. Nós ia pra
mata, tinha tiririca, quando chegava nós tinha que correr pra
água salgada pra ir mariscar dentro do mar, aquilo coçava
como o quê, tinha que ir pro salgado pegar marisco pro povo
comer porque não tinha pirão em casa... Ia pro mato tirar
piaçaba pra ele, quando chegava tinha que ir pra maré. Era
pro mato e pra maré... Até que marisco, graças à Deus,
nunca faltou. Agora é que nós tá chorando por marisco. a
mariscagem era mais antiga, não tinha como ganhar nada
assim, dinheiro, tá entendendo? Era só pra comer
mariscando aí no mangue..."
59
“...a gente trabalhava há dias e não existia relógio.
Eles olhava pro sol e dizia: mei dia, vai! Quando a gente
terminava de comer: bora! Quem fumava pra fazer um
cigarro de fumo se demorasse, eles recramava: bora! Era os
empregado. (Qual era o trabalho?) Cortar o capim, plantar
mandioca... Plantava pra eles.”
60
Além do trabalho forçado, a violência física e simbólica foi amplamente
relatada pelos entrevistados. Muitos deles afirmaram que os patrões atribuíam aos
animais como cachorros e vacas, os nomes dos trabalhadores locais na intenção
de humilhá-los.
61
O Tempo de Rosalvo Velho teria durado aproximadamente até o ano de
1972. O seu falecimento marcou a passagem para o Tempo de Rosalvo Novo.
Apesar de não ter proporcionado grandes avanços nas condições de vida dos
trabalhadores, o novo período trouxe algumas mudanças significativas para os
extrativistas. De um modo geral, os entrevistados consideram que houve alguma
melhoria de vida, ainda que pequena, nesse tempo.
No Tempo de Rosalvo Velho os extrativistas tinham que entregar a
produção de piaçava semanalmente. Rosalvo Novo flexibilizou um aspecto da
compra da piaçava quando facultou aos extrativistas a entrega quinzenal da
produção. Nesse período os extrativistas passaram a ter maior oportunidade de se
deslocarem até Maragogipe, e a venda se extinguiu. A pequena quantidade de
embarcações disponíveis para realizar o deslocamento e a falta de condições
financeiras para custear o transporte tornavam o acesso à cidade ainda bastante
limitado.
62
ocorreu devido à facilidade de encontrar material para a construção desse
apetrecho nas matas locais.
63
subsistência e renda para a população local. Segundo a fala de entrevistados, a
pesca resistiu apesar da conjuntura desfavorável. Aos poucos, alguns extrativistas
começaram a adquirir pequenas canoas a remo e artefatos de pesca.
64
“Aí depois que ele morreu passou pra filha, a
Tânia. Aí já foi melhorando, tá entendendo? Depois que a
filha passou aumentou o trabalho, ela aí já começou a pesar,
a piaçaba ela pagava a arroba e os quilo, ele não fazia isso.
Se desse quatro arroba e dez quilo, ela já pagava os dez
quilo.”
65
com ele, os funcionários perguntaram se eles eram escravizados e então ele
respondeu que sim. A partir de então, foi agendada uma reunião entre alguns
extrativistas e a CPP, que reuniu representantes para dar entrada na solicitação
de reconhecimento enquanto comunidade remanescente de quilombo na
Fundação Cultural Palmares.
66
O CPP reuniu alguns representantes de extrativistas na Salamina e os
conduziu a Salvador para que fosse feito um documento solicitando o
reconhecimento da comunidade como remanescente de quilombo. Os extrativistas
afirmam que a certificação foi obtida com agilidade.
68
piaçaba custa trinta reais. Se tivesse na mão deles eles
pagava doze. (Antes) A gente tinha que vender pra eles
(fazendeiros). Aí o advogado chegou e disse: o trabalho vai
ser vendido pra quem eles quiser, eles vai trabalhar pra si
próprio. Aí que se tornou um quilombo. Aí descubriram, aí
pronto! A gente aqui não é mandado por ninguém!
Antigamente a gente era mandado! Aqui a gente faz o que
quer, cria o que tem condição de criar. Antigamente a gente
não podia criar um boi, não podia criar um porco e agora é
diferente. O probrema é que as condição aqui é pouca. Não
tem uma rodage, tudo é através de canoa, do mar."
69
obstante, em 2009 o Governo da Bahia através da Bahia Pesca disponibilizou
canoas de fibra a motor para várias comunidades pesqueiras da Baía do Iguape. A
Salamina foi contemplada com seis dessas embarcações, que ficaram distribuídas
entre os vilarejos e colaboraram com a ampliação do acesso à pesca.
70
realmente as terra somos nossa, na certidão isso não quer
dizer nada enquanto a gente não é titulado. A qualquer
momento a gente pode sofrer aqui um confronto aqui terrível!
Tem esse André aqui que é parente de Rosalvo Novo, não
que ele não tenha, que não precise, mas você sabe como é
esses cara... São amigo, aqui da fazenda aqui de cima, ele é
primo de Rosalvo Novo, não sei que é primo carnal... Ele tá
de olho. Então a qualquer momento, a gente pode sofrer um
massacre. Porque segundo a justiça, até agora, ele sabe que
não tem vigor. “
" A gente temos o comprovante como aqui é um
quilombo, agora só tá faltando o título da terra. Porque o que
é que diz o título da terra? Existe muita coisa que a gente
não pode fazer porque não temos o comprovante como a
terra é nossa. Não tem o título. Um empréstimo no banco a
gente fica um pouquinho difícil porque nós não tem o título da
terra. E é isso ai que nós tamo correndo atrás, o que nós
mais a gente precisa é isso aí: título das terra, energia e as
casa É o suficiente pra melhorar a vida da gente.”
71
dezembro de 2012. A falta de iniciativa do governo em cumprir as medidas de
desapropriação levou o Ministério Público Federal a acionar juridicamente o
INCRA para concluir a titulação do território quilombola Salamina Putumuju.
Somente em 20 de novembro de 2013, dois imóveis locais foram
desapropriados pelo INCRA, garantindo a titulação de uma parte do território
quilombola. Entretanto, três outros imóveis, dentre eles o que a disputa gerou mais
conflito, ainda não foram desapropriados. Além dessa, pode-se dizer que a outras
questões ameaçam a reprodução material e simbólica da população local, a
exemplo da pressão sobre os recursos naturais provocada direta ou indiretamente
pela ação de grandes empreendimentos que operam na região da Baía do Iguape.
A titulação de terras quilombolas no Brasil segue um ritmo
demasiadamente lento e o fato da primeira terra quilombola ter sido titulada sete
anos depois da promulgação da Constituição já é um indicativo dessa situação. É
importante ressaltar a falta de informações censitárias a respeitos das
comunidades quilombolas, sua população ou dimensão de seus territórios
(ANDRADE, 2012). Ainda de acordo com esta autora, os movimentos sociais
estimam que haja entre três e cinco mil comunidades quilombolas no país, destas
1.838 foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares e apenas 104 territórios
foram titulados, beneficiando 193 comunidades. É importante ressaltar que coube
aos estados do Pará e Maranhão a titulação de grande parte desses territórios. Os
dois estados somados possuem 72 dos territórios titulados no Brasil (ANDRADE,
2012).
De acordo com a Comissão Pró-Índio de São Paulo (2011) apenas um
território quilombola foi titulado durante todo o ano de 2011. A organização
destaca ainda as dificuldades para a efetivação dos decretos de desapropriação já
publicados do Diário Oficial da União, como é o caso da Salamina Putumuju,
devido à falta de reais condições concedidas ao INCRA pelo governo federal para
atuarem na desapropriação de terras.
A morosidade dos governos em efetivar a política agrária de titulação
de terras quilombolas acaba deixando comunidades quilombolas em situação de
72
vulnerabilidade com relação às pressões do agronegócio, empreendimentos de
infraestrutura e programas governamentais de segurança nacional (ANDRADE,
2012). Considerando o tamanho do território nacional de acordo com dados do
IBGE, atualmente 0,12% do território brasileiro corresponde a terras de quilombo e
com todos os processos de titulação que hoje estão em tramitação no INCRA
realizados, os quilombos não chegariam a ocupar 1% do território nacional
(INCRA, 2012). Em contraposição ao modelo agrário disseminado atualmente, o
território quilombola é de propriedade coletiva e nessa escala, é capaz de garantir
a todos, o direito de realizar cultivos pequenos e diversificados para subsistência e
renda. De acordo com Leite (2010), a invisibilidade sofrida pelos grupos rurais
negros no Brasil os expõe a uma forma de violência simbólica e constituem a
expressão máxima da ordem jurídica hegemônica.
73
Figura 15 – Área e limites do território quilombola Salamina Putumuju (conforme solicitado no Relatório de Identificação e delimitação) –
Elaborado com base em INCRA (2005).
74
Os vários contextos das atividades produtivas
Bases Conflitivas
75
do rio Paraguaçu, realizada através do consórcio Odebrecht, OAS e
UCT engenharia;
O quarto conflito, decorrente da presença de fazendeiros na localidade,
incide de forma mais direta no extrativismo vegetal.
76
Figura 19 - Localização dos empreendimentos geradores de grande impacto na Baía do Iguape
77
78
Usina Hidrelétrica Pedra do Cavalo
80
na casa de Cristóvão (desce). A água doce o mar fica todo...
Esse massambê, com a água doce ninguém encontra ele
aqui."
81
As falas dos extrativistas denotam que se existe algum tipo de
monitoramento ambiental ou controle de vazão da UHE Pedra do Cavalo em razão
dos efeitos prejudiciais à pesca, estes são ineficientes. Pode-se afirmar inclusive
que a própria fiscalização de cumprimento das obrigações legais do
empreendimento não é realizada com o devido rigor pelos órgãos competentes. O
problema ficou patente no período que a UHE operou com licenciamento
ambiental vencido (ano de 2009), o que fez com que o conflito “esquentasse” e se
manifestasse nos espaços do Conselho da Resex. A questão provocou longas
discussões no Conselho Deliberativo da Resex e gerou inclusive uma intervenção
do Ministério Público Federal (MPF) para cobrar que o Instituto do Meio Ambiente
da Bahia (IMA), então órgão ambiental do governo do estado, incluísse os
extrativistas na discussão do processo de licenciamento.
82
Atualmente, o Conselho da Resex demandou a formação de um Grupo
de Trabalho de Monitoramento da Qualidade Ambiental na RESEX Baía de Iguape
com o objetivo de formar um grupo técnico (pesquisadores e agentes públicos) e
empírico (representantes pescadores) para propor parâmetros de monitoramento
ambiental para a RESEX Baía de Iguape. Esta ação pode contribuir com a
melhoria das condições ambientais da Baía do Iguape, entretanto nada
representará se não forem garantidos mecanismos de fiscalização e punição em
caso de descumprimento das normas que já estão estabelecidas.
Canteiro de São Roque
83
"Esse daí (canteiro de São Roque) por enquanto
ele tá passando ainda aí se fizer esse aí de grande porte aí
vai complicar tudo a gente."
“... agora me parece que a pescaria só tá indo
cada vez piorando. É eu não sei se é por causa desses
estaleiro aqui embaixo, deve ser. Que agora depois desses
estaleiro pescaria também aí só tá diminuindo de tudo a tudo.
A quantidade que era tá diminuindo."
84
Estaleiro Paraguaçu
85
Através do Pólo Naval, o Governo do Estado da Bahia pretendia instalar
três estaleiros na região da extremidade sul da Baía do Iguape, próximo à
comunidade de Enseada do Paraguaçu. Afirma-se que em consequência da
mobilização de extrativistas e ambientalistas, o governo e as empreiteiras optaram
por instalar um único estaleiro na localidade. A medida não foi suficiente para
minimizar o conflito, entretanto, a desproporcionalidade das forças envolvidas
conferiu vitória ao estado e às empreiteiras. Atualmente, o empreendimento está
sendo implantado e hectares de manguezal e mata nativa já foram suprimidos.
Certamente o maior fator de impacto do Estaleiro Enseada do
Paraguaçu foi ocasionado pela dragagem de sedimentos. Os extrativistas
relataram que o pescado desapareceu da região por três meses em decorrência
da dragagem. Além disso, a dinâmica do impacto favoreceu a proliferação de uma
espécie de macroalga no estuário a que os nativos chamam de coentro. No
entendimento dos entrevistados, o estaleiro trouxe e trará grande prejuízo às
atividades pesqueiras. Muitos temem que as atividades portuárias cheguem mais
próximas à comunidade da Salamina e acreditam que a titulação das terras não
tenha ocorrido ainda devido a este tipo de especulação.
86
"O que eu acho, meu ponto de vista, eu acho
mesmo que a Petrobrás tá com os olho aberto aqui. Porque é
uma coisa muito próximo ao mar. É um premisso medonho.
E esses empreendimento... Por isso que esse título de terra
não saiu até agora porque eles tem os olho aqui (...) Aí bota
os sentinela aí e ninguém passa mais. É esse o plano da
Petrobrás é esse. Aí o que é que eles diz: vão embora,
desocupa! Ou então vão morar longe, lá fora. Porque a
Petrobrás tem interesse é nos porto, lembra? É a frente
marítma.”
87
88
Conflitos com fazendeiros
89
no território quilombola: Mutuca, Jaqueira e Gouveia. Desta, apenas o Gouveia foi
desapropriada.
90
para coletar o recurso, alegando que aquela era uma área historicamente utilizada
com essa finalidade. Os extrativistas registraram queixas contra o fazendeiro
perante a polícia e o ICMBio.
91
Após interferência policial, a tensão foi minimizada e os extrativistas
continuaram a utilizar a área para extrativismo, explotando as palmeiras que
restaram. Com base nos dados levantados através das entrevistas, pode-se
afirmar que o conflito se encontra atualmente em estado latente. Os entrevistados
afirmam que problemas dessa natureza não voltaram a acontecer.
92
se manifestaram de forma mais clara e violenta ainda não foram desapropriadas, o
que ainda confere um estado de vulnerabilidade à comunidade local.
93
94
Bases Emotivas
95
como esta contrariam o discurso pró-desenvolvimentista recorrente que busca
converter populações locais em mão de obra assalariada nos empreendimentos
de infraestrutura que se espalham nas proximidades de terras ocupadas por
populações tradicionais.
96
pegar uma tainha, num pegar o camarão, não pegar uma
comida. Nem que seja pra uma família. Isso é uma bênção,
uma coisa de Deus mesmo. Maravilha!"
97
98
Etnoecologia Abrangente da Pesca do Camarão
Bases Cognitivas
“Todas pescaria tem seu tempo certo. Tudo tem que ter conhecimento."
99
denominado localmente de cabeça d’água e coincide com o primeiro dia das luas
nova e cheia. O período de crescimento da maré inclui, portanto, uma série de
lançamentos que ocorrem a cada preamar. O nível máximo de maré se repete
depois da cabeça d’água segundo os pescadores e a esse acontecimento eles
denominam de maré igual.
100
arrastam a rede com muita rapidez e não há tempo suficiente para a captura do
camarão (“A rede não tem tempo de mariscar”) e ao consequente maior esforço
necessário para remar a canoa. Durante os períodos inapropriados para a pesca
de camarão, algumas pessoas passam a praticar a pesca com anzol (pesca de
linha).
102
Figura 23 – Figura ilustrando o comportamento das marés de quebra (acima) e de lançamento
(abaixo) de acordo com a percepção êmica
103
O fenômeno hidrodinâmico é detalhadamente compreendido pelos
pescadores locais e inclui tanto variações mensais, compreendidas considerando
os ciclos lunares, quanto enfoca aspectos de variação diária. Pode-se dizer,
portanto, que o pescador local possui um sofisticado conhecimento a respeito da
dinâmica das águas que lhes é bastante útil para o desenvolvimento das
atividades pesqueiras.
104
Aspectos biológicos e ecológicos
106
"O camarão come lama, sujeira. Camarão se tiver
uma carniça dentro do mar que hoje em dia não existe, ele
cai matando. Cachorro podre...”
109
110
Distribuição espacial e temporal dos camarões: Etnohabitat e abundância
111
De acordo com os estudos de Santos et al (2004), os índices
pluviométricos são fatores chave para a frequência de Litopenaeus schmitti.
Ainda segundo os autores, a espécie tem a sua maior produção no estuário por
eles estudado durante os meses chuvosos. Essa informação é aparentemente
incompatível com aquela fornecida por pescadores da Salamina. Entretanto, de
acordo com Santos et al (op. cit), outras condições ambientais gerais do estuários,
inclusive determinada por fatores de impacto ambiental, são determinantes para a
abundância dos camarões nesses sistemas ecológicos. Além disso, não está claro
se os entrevistados identificam o inverno como o período menos produtivo em
termos de biomassa disponível no sistema estuarino ou se consideram que há
menos camarão nesse período em decorrência da menor quantidade capturada
devido à dificuldade inerente à pesca em condições de chuva.
112
camarões na coluna d’água. Classifica-se como zoneamento horizontal
êmicamente percebido tanto a disposição dos camarões com relação ao substrato
onde são encontrados quanto ao deslocamento dos mesmos em direção ao
continente com a chegada das marés grandes.
No que se refere aos substratos, os entrevistados reconhecem pelo
menos cinco tipos de fundo no estuário: as pedras, a lama, o cascalho (substrato
que inclui areia, pequenas rochas e restos de conchas), o piçarro (corresponde ao
cascalho com lama) e os bancos de coroa (fundos arenosos que emergem
durante a maré baixa). De acordo com os pescadores, embora o recurso possa
ser encontrado em outros substratos, o habitat preferido do camarão são os
fundos lamosos.
113
ético são compatíveis no que diz respeito à preferência dos camarões pelos
substratos de pequena granulometria.
Os pescadores percebem ainda o comportamento do camarão de se
enterrar no substrato. Informações zoológicas confirmam esse comportamento nos
peneídeos de forma geral. De acordo com Castro e Huber (2012), os animais
detritívoros tendem a estar presentes em fundos lodosos. Segundo Santos (2007)
esses animais possuem a capacidade de se enterrar durante o dia tanto para
otimizar o forrageio quanto para defesa contra predação. É importante ressaltar
que o conhecimento do comportamento de enterramento dos camarões por parte
dos pescadores tem implicações importantes sobre as técnicas de captura do
recurso. Em decorrência do hábito bêntico desses organismos, os pescadores
utilizam uma rede de arrasto de fundo neste tipo de pescaria.
16
Embora os entrevistados utilizem expressões como “subir o rio” ou “descer o canal”, essas expressões não
significam deslocamento vertical e sim o movimento na direção mar-continente.
114
“... na pesca vai depender da maré. Tem vez que
ele dá embaixo e tem vez que ele dá em cima. Quando a
maré tá pequena, a gente pesca mais embaixo porque o
camarão tá embaixo, mais pra o lado do canal. E a maré vai
aumentando porque todo dia a maré aumenta, né? Aí a
gente vai subindo também, acompanhando o pesqueiro."
17
As expressões “água escura” e “água suja” são empregadas tanto neste trabalho quanto por Montenegro
et al (2001) no sentido de água turva, com sedimento em suspensão.
115
Os entrevistados afirmaram que com relação à distribuição vertical, o
camarão pode ser encontrado tanto nos locais mais fundos (“canal”), quanto em
águas mais rasas (“beirada”) e mais próximos da terra (“em terra”). A localização
do recurso está associada às marés e é mais um elemento de imprevisibilidade da
pesca, de acordo com os nativos. Não é possível antever onde o recurso estará
disponível, de modo que para encontrá-lo é possível investir nas tentativas
repetidas vezes.
116
"Mas isso tem tempo, né? Tem maré. Tem maré
que você vai e não traz nada. Tem semana que você pesca
uma maré toda e não arruma dinheiro pra comprar o café e o
café e o açúcar."
118
Indicadores vernáculos
119
cutupanha, bagre, arraia, língua-de-sogra, papa-terra, barbudo, pescada e tapa-
porco.
“Aí quando a gente sabe que a área tá boa pra
camarão aí já vai vim espécie de peixe diferente é a língua-
de-sogra, é a tapa-porco, é a papa-terra, é a pescada, é o
barbudo. Aí nós já sabe, o camarão tá aqui. Siri também, se
você tiver correndo a rede e aparecer um siri, vem qualquer
coisa ali. Ou algum peixe, ou camarão vai aparecer porque
siri não guenta ver camarão."
"É porque tem os tipo de peixe que a gente sabe
que vai dar o camarão, tá entendendo? Porque a pescada
mesmo, a gente pega na rede por quê? Ela vai comer o
camarão que tá na rede, aí ela chega lá e fica. Vai atrás do
camarão. Quando vem pescada na rede, vem camarão."
“Água escura é sarvage, é cutupanha, é bagre,
arraia, esses peixe de fundo.”
120
Figura 24 – Peixes de água escura (a. papa-terra, b. caratupanha, c. barbudo, d. sapoca-vermelha,
e. regalada)
121
122
Interpretação da paisagem
123
A
124
descobrino o Cais do Engenho porque sabe que não pega.
Você bota um lance lá nos Coelho, na hora que você avistar
essa torre aí ou que você avistar o cemitério, tire sua rede
senão você perde."
125
baixa. Casal e Souto (2011) encontraram oito unidades êmicas de paisagem
relacionadas à pesca de camarão em outra comunidade quilombola da Baía do
Iguape. É bastante provável que haja um maior número de ecozonas identificadas
pelos extrativistas da Salamina, entretanto, esse aspecto foi abordado apenas
brevemente nas entrevistas.
126
Bases Conexivas
Pessoa /Mineral
127
128
Pessoa / Vegetal
130
piaçava e o artesão tem no exercício dessa atividade, a possibilidade de arrecadar
uma renda extra.
No caso particular da pesca de camarão, a conexão com os vegetais é
mais forte na pesca de camboa-de-pau, um tipo de armadilha fixa feita de madeira
que de acordo com o Ministério do Meio Ambiente (2008), também é chamada de
curral ou tapagem (figura 27).
A conexão pescador/camboa é intermediada por uma conexão
pescador/vegetal, uma vez que além da estrutura da armadilha ser feita de
madeira, também são empregadas esteiras de fibra vegetal nesta arte de pesca.
Enquanto a estrutura da camboa é feita de madeira de árvores como o Buri, por
exemplo, para a captura do pescado são utilizadas esteiras fabricadas utilizando-
se talas de dendê (figura 28), trançadas com fibras de piaçaba, ambas abundantes
na localidade.
131
A B
C D
132
Figura 27 – Camboa de pau
Figura 28 – Talas de dendê em processo de secagem para confecção de esteiras para camboa
133
Alguns fatores fizeram com que a pesca de camboa fosse ficando cada
vez mais rara na comunidade da Salamina. O primeiro deles está relacionado ao
desgaste físico proporcionado pela atividade, uma vez que esta modalidade de
pesca é realizada durante a noite. O segundo diz respeito ao custo de tempo e
esforço para manter as armadilhas em funcionamento, já que a imersão da
madeira na água causa danos à estrutura, que precisa constantemente ser
reformada para não cair.
Muitas camboas foram abandonadas porque com o passar do tempo,
os moradores locais foram adquirindo condições financeiras de possuir as redes
de nylon. Atualmente resta apenas uma dessas armadilhas na comunidade, e
como a norma ambiental vigente proíbe que novas estruturas dessa natureza
sejam erguidas, elas tendem a desaparecer. Portanto, apesar da conexão
pessoas/camboa ocorrer atualmente, ela pode ser classificada como evanescente.
134
Pode-se dizer que a substituição das camboas por redes camarãozeiras
constitui um processo semelhante àquele identificado por Marques (2005) entre os
brejeiros maritubanos em que ocorre uma mudança cultural na pesca em direção
ao que é industrializado. Esse processo dinâmico, tal como discutido pelo autor,
implica em desconexões de baixo custo energético (aquisição de material
autóctone para construção de armadilha) e reconexões de alto custo energético
(uso de material produzido industrialmente), o que torna o nativo dependente do
mercado externo também para aquisição de equipamentos de pesca.
Ocorre localmente ainda outra conexão-meio estabelecida com os
vegetais para a realização da pesca que envolve o uso de canoas e remos. De
acordo com Maldonado (2004), canoa é o nome genérico atribuído a uma
embarcação construída com o tronco de uma árvore. Na Salamina há
predominância das canoas de um pau (figura 29) só que são aquelas talhadas em
um tronco de árvores. Essas embarcações não são produzidas na comunidade,
mas adquiridas em outros centros. Apesar de haver atualmente a inserção das
canoas de fibra para uso comunitário na Salamina, a maior quantidade de
embarcações utilizadas para pesca são de fato as canoas de madeira. É possível
afirmar que a conexão entre essas embarcações e pecadores possui um grau de
conectividade forte, uma vez que representa grande importância cultural no
exercício da pesca.
Ainda que atualmente alguns produtos de origem vegetal possam ser
substituídos por outros de origem sintética, as plantas ainda podem ser
consideradas um elemento presente nas atividades ligadas à pesca na Salamina.
De acordo com Oliveira et al (2006), ainda que haja o emprego cada vez em
escala maior de produtos de origem sintética, muitas populações litorâneas ainda
tem nos vegetais uma importante fonte de suprimento de necessidades,
empregando esses recursos na produção de vestuário, adorno, implementos
agrícolas, caça e pesca, medicina popular e construção de casas. Tal importância
é bastante perceptível na Salamina, onde os recursos vegetais são fundamentais
135
para a viabilização da sobrevivência da população local, seja como fonte de
alimento e matéria-prima para construção de moradia, seja enquanto estratégia de
obtenção de recursos pesqueiros.
Figura 29 – Canoa de uma pau só- principal tipo de embarcação utilizado para pesca na
comunidade da Salamina
136
Pessoa / Animal
Estratégia de captura
De acordo com Santos et al (2013), os camarões peneídeos são um
dos recursos pesqueiros mais rentáveis do mundo e o segundo mais importante
economicamente do nordeste do Brasil, perdendo apenas para a lagosta. Já no
litoral do sul e sudeste do país, segundo Robert et al (2007) o camarão constitui o
recurso pesqueiro mais explorado. No estado da Bahia, o Ministério do Meio
Ambiente (2008) com base em estatísticas pesqueiras, observou que os camarões
(branco, rosa e sete-barbas) representavam o grupo com maior volume de
pescado produzido. Os autores consideraram que esse resultado se deve à
grande quantidade de locais com fundo lodoso no litoral do estado, destacando-se
as baías de Todos-os-Santos e Camamu.
Ainda segundo o Ministério do Meio Ambiente (2008), a cidade de
Maragogipe se destaca no estado da Bahia no que se refere à produção pesqueira
de forma geral e também à pesca de camarão em particular. Na comunidade da
Salamina, o camarão é o recurso pesqueiro mais importante, embora outros
organismos marinhos também possuam relevância tanto para a renda quanto para
a subsistência da comunidade local.
De acordo com Acheson (1981), as ecozonas marinhas apresentam
grande diversidade de espécies e habitats que requerem uma gama de estratégias
para captura de vários recursos, o que leva pessoas de uma mesma cultura a
utilizar variadas técnicas de pesca. O mesmo pode ser afirmado para zonas
estuarinas, como a que provém o sustento de inúmeras comunidades como a
Salamina.
Diante da diversidade da fauna aquática (peixes, crustáceos e
moluscos) disponível no sistema ecológico, o nativo desenvolveu e/ou passou a
empregar uma série de técnicas que lhe possibilitaram usufruir de tais recursos.
Desse ponto de vista, mais uma vez é possível identificar o pescador da Salamina
como um multi-estrategista (TOLEDO et al, 2003), uma vez que, até mesmo os
137
especialistas na pesca do camarão executa também outras modalidades de pesca
e mariscagem. Assim, também no que se refere às atividades pesqueiras, o nativo
ocupa um nicho que é dinamicamente plural, tal como foi constatado por Marques
(2001) com relação à conexão com os vegetais na pesca na Várzea da Marituba.
Apesar de se reconhecer a importância dos peixes e os mariscos em
geral para a sobrevivência da comunidade local, optou-se nesse estudo por
aprofundar os aspectos ligados à pesca de camarão. Esta escolha se deu
justamente por ser esta uma atividade localmente considerada como mais
relevante e que é desempenhada por um maior número de pessoas. Pode-se
dizer que, na localidade, essa atividade ao longo do tempo teve uma importância
crescente.
No tempo dos fazendeiros, somente era possível pescar nas ocasiões
em que pessoas de outras localidades utilizavam sítios de pesca próximos à
Salamina, e assim, os nativos ajudavam a puxar a rede e recebiam pescado como
forma de pagamento. Posteriormente, a camboa de pau foi empregada
localmente, ainda que sobre forte restrição do proprietário da fazenda.
Com a extinção espacializada das camboas, conforme discutido
anteriormente, a pesca de camarões passou a ser realizada quase completamente
através da rede camarãozeira que representou uma inovação tecnológica na
pesca local (Figuras 30 e 31). Essa arte de pesca foi um meme que se espalhou
rapidamente na Salamina e o seu emprego é relativamente recente na
comunidade.
140
141
Figura 171 – Pesca do Camarão com rede camarãozeira
142
Figura 32 – Processo de defumação do camarão. A- Ferventação (pré-cozimento); B-
Separação dos tamanhos; C1-Camarões graúdos sendo arrumados em “espetos” e C2- Espetos
em cesta para defumação; D1- Camarões miúdos prontos para arrumação em cesta de
degumação e D2- Camarões miúdos em defumador.
143
armazenamento de outros alimentos, que anteriormente teriam que ser
consumidos prontamente.
A pesca de camarão possui um caráter sazonal, uma vez que só é
realizada durante as marés pequenas. Os entrevistados evitam pescar camarão
durante as marés grandes porque nessas ocasiões as redes se deslocam muito
mais rapidamente, não tem tempo para mariscar e correm maior risco de serem
danificadas. Além disso, em decorrência dos ventos e correntes mais fortes nesse
período, é necessário um esforço maior para deslocar a canoa a remo. Devido a
essa conjunção de fatores, o pescador é praticamente obrigado a desenvolver
outras atividades além da pesca de camarão. Do mesmo modo, a
imprevisibilidade da pesca também contribui para que alternativas de renda sejam
desenvolvidas quando o recurso está escasso mesmo em marés apropriadas.
A totalidade dos entrevistados percebe a diminuição na quantidade não
apenas dos camarões, mas também de todos os outros recursos pesqueiros
locais. O mesmo tem sido registrado por inúmeros autores em outras
comunidades pesqueiras ao redor do mundo. Por esses e outros motivos, é
recorrente que a literatura considere que haja uma crise mundial nos estoques
pesqueiros.
A dinâmica cultural da pesca é produto das interações entre pessoas e
ambiente e pode também significar uma resposta adaptativa às modificações do
mesmo. Diante do cenário de mudanças e incertezas ao qual está sujeito, o
pescador artesanal precisa criar mecanismos para lidar com a escassez dos
recursos pesqueiros. Desta forma, mudanças de estratégias de pesca, malha de
rede e até a ocupação de novos nichos surgem como possibilidades de viabilizar a
sobrevivência cultural e material dessas populações. Pode-se considerar que, na
comunidade estudada, esta estratégia está fortemente relacionada à combinação
de atividades produtivas que promovem uma complementaridade da subsistência
e renda.
É relevante mencionar que muitos nativos declaram ter na pesca, a sua
atividade mais importante e preferencialmente desenvolvida. Essa situação é
144
análoga àquela registrada por Marques (2001) dentre os brejeiros maritubanos
que quando questionados sobre o processo de tomada de decisão a respeito da
atividade realizada preferencialmente, respondiam: “a gente escolhe pescar”. Na
Salamina, tal preferência se dá pelo maior retorno financeiro fornecido pela pesca,
mas também porque esta é uma atividade prazerosa para a maioria.
Ainda que haja outras estratégias locais de sobrevivência, a crise nos
estoques pesqueiros produz sérias consequências negativas para a comunidade
da Salamina. É preciso considerar que muitos dos ajustes de caráter
socioecológico que ocorreram em nível local frequentemente representaram
resposta a alterações no ambiente provocadas por agentes externos à
comunidade. A escassez dos recursos pesqueiros compromete não somente a
principal fonte de renda de grande parte das famílias que vive na localidade, como
também subtrai da mesma, a sua principal fonte proteica.
145
146
Etnoconservação
147
No contexto do presente estudo, verificou-se que a comunidade da
Salamina é reconhecida tanto entre os seus membros internos quanto nas
imediações da Baía do Iguape por possuir uma conduta preocupada com a
preservação dos recursos naturais que se encaixa no que Smith e Wishnie (2000)
denominaram de ética conservacionista. Em todas as entrevistas, os pescadores
afirmaram não utilizar artes de pesca consideradas mais prejudiciais ao
ecossistema estuarino como a pesca de redinha (rede de arrasto com malha muito
pequena) e pesca com explosivos. Os entrevistados reconhecem os danos
provocados pelo emprego dessas técnicas de captura e consideram esse, um dos
motivos para a diminuição local do pescado.
148
indivíduos muito jovens de várias espécies de pescado. A problemática
envolvendo o uso de redinhas já havia sido detectada por Souto (2004) como uma
preocupação de todos os seus entrevistados da comunidade de Acupe, também
situada no Recôncavo Baiano.
Os pescadores locais também atribuem a diminuição na quantidade de
pescado ao aumento da população que utiliza o recurso. O aumento na demanda
pelo camarão inclui não apenas a Salamina, mas também as demais comunidades
que estão localizadas nas margens da Reserva Extrativista.
Vários outros autores (e.g. Nordi, 1992; Barros, 2001, Marques, 2001;
Souto, 2004, Martins et al, 2011) identificaram na fala de seus informantes o
aumento da população pesqueira como um dos motivos para a escassez do
pescado. No que se refere à pesca de camarão pode-se dizer que algumas
estratégias locais, com ou sem intencionalidade conservacionista, podem acabar
produzindo consequências sobre os estoques do recurso. O primeiro deles e de
mais fácil inferência, é o caráter sazonal da atividade pesqueira. O fato da pesca
só ser realizada em marés específicas provavelmente favorece a capacidade de
reposição dos estoques. A alternância de marés já havia sido considerada por
Souto (2004) como uma possível ação de consequências conservacionistas.
149
Soma-se a este fator, a combinação de estratégias que viabiliza a
sobrevivência da população local. As múltiplas atividades produtivas empregadas
localmente que associam a captura de diversos recursos pesqueiros, agricultura e
extrativismo vegetal podem implicar em menor pressão sobre a população de
camarão. As combinação de atividades produtivas já havia sido tratada por
autores como Diegues (1983), Adams (2000) e Marques (2001).
De forma bastante pragmática, Smith & Wishnie (2000) consideraram
que pode-se esperara que haja conservação em sociedades de pequena escala
(caracterizadas essencialmente por possuir algumas centenas a poucos milhares
de habitantes e autonomia política) quando há prevenção ou mitigação de
depleção de recurso, de extirpação de espécies ou de degradação de habitat.
Tecendo uma breve análise a partir desse aporte teórico, considera-se que as
ações da comunidade que envolvem ou não ética conservacionista, podem
produzir efeitos positivos sobre os recursos pesqueiros. Entretanto é necessário
ponderar que outros inúmeros fatores externos incidem sobre a abundância local
do pescado e, sendo assim, as alternativas locais provavelmente não são
suficientes para prover a manutenção dos estoques.
Ainda que não se refira a uma iniciativa local, deve-se considerar com
ação pró-conservação dos estoques de camarões, os períodos de defeso criados
a partir de ação governamental com efeito sobre o recrutamento de indivíduos
jovens. Segundo Santos et al (2013) o defeso do camarão da cidade de Camaçari
(Bahia) até o norte do estado do Espírito Santo, ocorre no período de 1 de abril a
15 de maio e de 15 de setembro a 31 de outubro, sendo o primeiro período com o
objetivo de proteger o recrutamento principalmente do camarão sete-barbas
(Xiphopenaeus kroyeri) e o segundo em atendimento à solicitação de
pescadores do município de Ilhéus (Bahia) para proteger a espécie Farfapenaeus
subtilis.
Como parte da ética conservacionista, na Salamina os pescadores
afirmam obedecer ao período de defeso do camarão, passando a executar outras
atividades pesqueiras (notadamente a pesca de linha e utilização de redes
150
tainheiras), agrícolas ou extrativismo vegetal quando estão impedidos de pescar
camarão.
151
“... chegar o ponto de você olhar pro mar e não vê
nada. Vê tudo como passaram uma vassoura, o fogo. E eu
nunca ouvi isso! Por essas empresa mesmo aí e vem
chegando mais uma e essa parece que é pior, porque tá
mais perto de nós."
152
Considerando a dificuldade na obtenção do pescado e a necessidade
de viabilizar a sua sobrevivência, é possível que o pescador adote estratégias de
pesca cada vez mais insustentáveis do ponto de vista ambiental. Tal situação
tende a alimentar o que Marques (1993) denominou de ciclo de degradação
ambiental e pobreza, quando esses dois problemas tendem a se retroalimentar
numa relação de causa e efeito.
É premente avaliar, entretanto, em que medida os grandes impactos
provocados são responsáveis pela alimentação desse ciclo e o qual o papel da
prática desenvolvimentista do Estado na piora das condições ambientais da BTS e
consequente agravamento das más condições de vida e saúde das populações
tradicionais pesqueiras.
153
154
Pessoa / Pessoa
156
excluindo os demais pescadores da região que são considerados pelos nativos
como o pessoal de Maragogipe, analogamente ao que foi identificado por Marques
(2001) na Várzea da Marituba.
Nota-se, portanto que enquanto se estabelece uma relação de
cooperação intracomunitária, também ocorre a competição com os pescadores de
outras comunidades, notadamente os da cidade de Maragogipe diante dos quais a
abundância de recursos é mantida em segredo.
157
Ubatumirim (litoral norte de São Paulo), dentre os quais provavelmente existe
segredo, embora este não implique de fato em restrição de acesso aos locais.
Não foi identificada a territorialidade expressa em “locais possuídos”, tal
como identificado por Marques (2001) com exceção da única camboa de pau que
ainda existe na Salamina, que possui um dono. Entretanto, constatou-se que a
territorialidade na pesca se manifesta também na disposição dos petrechos de
pesca. Os pescadores devem manter uma distância mínima entre as redes para
evitar prejudicar a atividade do colega e consequentemente evitar conflitos. De
acordo com a regra local, o pescador que lançou a sua rede primeiro tem
prioridade no lance e se outra rede for lançada sem uma distância mínima,
impedirá que a primeira capture o pescado. Quando isso ocorre, os entrevistados
dizem que deu ferro.
158
(Dá problema colocar uma rede perto da outra?)
"Dá problema. Quer dizer, quando é do mesmo território, aí
não. Porque a gente acha que não deve dizer nada, mas se
vim de outros lugares, da problema. Dá confusão, mas não
de briga, sabe?"
159
O preço pago por quilo de camarão varia entre sete e quinze reais. O
produto atinge o preço mais alto no período do verão, quando a procura aumenta
ou em ocasiões em que o recurso está escasso.
160
Pessoa / Sobrenatural
162
Etnoecologia Abrangente do Extrativismo de Piaçava
Bases Cognitivas
164
a infestação não é frequente e só ocorre quando a planta é maltratada pelo
extrativista:
165
"Tem. No inverno. Sempre assim no inverno dá
mais. Eu penso e vejo que é porque a terra é mais fresca, aí
dá mais. No verão é até mais difícil ter água."
166
piaçava. Tal conhecimento é importante para embasar a prática extrativista
principalmente do ponto de vista da localização dos recursos.
167
168
Interpretação da paisagem
169
(As pontas de mato tem nome?) “Tem... Tem os
bairro, os nome do bairro. Aí tem Vaca Morta, tem Mucugê,
tem Pucino, Lage da Estrela, Mucumbe Grande, Canta Galo.
Só bairro de mato, não mora ninguém. Giral da Onça, Cova
da Mulé, Ilha de Percília, Água Azul de cima, Água Azul de
Baixo, Campo do Vigário, Arrasto do meio..."
170
Bases Conexivas
Pessoa / Mineral
171
172
Pessoa / Vegetal
174
acordo com Vinha e Silva (1998), nativa e endêmica do litoral baiano. Outras
palmeiras apresentam potencial para aproveitamento de suas fibras, entretanto
segundo Ferreira (2005) existe uma “hegemonia mercadológica” das fibras A.
funifera em decorrência da alta qualidade das mesmas.
As pindobas podem ser encontradas inclusive nas matas cortadas por
trilhas que dão acesso às casas, no entanto, estão presentes em número maior
nas pontas de mato mais afastadas. O trajeto entre a residência do extrativista e
os locais de coleta pode ser longo, sendo percorrido em até uma hora e meia. É
necessário o uso de animais, como jegues, para transportar a produção no longo
percurso de volta.
175
Os extrativistas passam cerca de 8 horas nas matas coletando as
fibras. Esse tempo depende da distância do local de coleta com relação à casa do
extrativista e da situação de disponibilidade de recursos do local explotado. A
atividade envolve risco principalmente de acidentes com cobras.
176
O extrativismo da piaçava envolve outro processo além da retirada das
fibras: a catação. Enquanto a coleta é realizada em geral pelo homem, o processo
de catação, que consiste na separação das fibras, é realizado na maior parte da
vezes, em nível familiar com o envolvimento de mulheres e filhos (figura 34). Em
caso de coleta de grande quantidade de fibras, outras pessoas da própria
comunidade são pagas para ajudar na realização do trabalho.
177
No processo de catação, separa-se três componentes da fibra
denominados localmente de: caroço, parte mais valorizada que serve para a
fabricação de vassouras; casca ou lã, utilizada na cobertura de casas e quiosques;
e vidro, subproduto que pode ser utilizado como entulho (figura 35). Das três
partes, apenas o vidro não apresenta valor comercial. A casca passou a ser
comercializada recentemente e é vendida pelo valor de 10 reais por arroba.
178
Etnoconservação
179
se isso porque o extrativismo não implica em corte da planta e também não
envolve procedimentos que ameaçam a sua sobrevivência. Desse modo, quando
os extrativistas relatam a diminuição gradativa na quantidade de piaçava, eles
estão se referindo à escassez de fibras e não de árvores.
Alguns nativos afirmam que os pindobais ou matos ocupam uma área
cada vez maior na localidade. Segundo eles, as pindobas se espalharam pelo
quilombo após desativação de roças do antigo proprietário da fazenda.
180
obstante, os territórios ocupados por comunidades quilombolas mantém uma
cobertura de florestas e manguezais (figuras 36 e 37). Isso sem dúvida se deve à
relação histórica e alto grau de dependência que a população local mantém com
os recursos naturais que viabilizam a sua sobrevivência material e simbólica. O
modo de vida dos nativos, que estão inseridos no mercado abrangente, ainda que
de forma marginal, não adotou até o presente, o alto grau de consumo vigente na
que a sociedade hegemônica.
181
Figura 36 – Vista da margem do rio ocupada por uma fazenda
182
Pessoa/ Animal
184
Pessoa / Pessoa
18
Exceção a essa regra são as propriedades particulares de posse de fazendeiros, que podem ser explotada
por extrativistas, mas já houveram conflitos relativos a este uso.
186
A informação relativa à fartura de recursos em determinados locais é
compartilhada apenas entre aqueles que costumam trabalhar juntos, o que
geralmente envolve algum grau de parentesco. Talvez por este motivo, o exercício
da atividade em grupo é denominada êmicamente de parceria e a socialização do
segredo dentro do grupo, beneficia a cada um dos componentes. O exercício
coletivo da atividade, portanto, garante também o compartilhamento de
informações privilegiadas dos locais de concentração de recursos, o que confere
mais uma vantagem para a atuação coletiva dos extrativistas.
19
A denominação quintal, neste caso, é utilizada para denominar as redondezas das casas , podendo estar
situadas tanto atrás quanto na frente da casa.
188
O acesso a recursos comuns tem sido exaustivamente discutido em
estudos envolvendo ambiente e sociedades. Recursos de propriedade comum,
assim como a piaçava neste caso, são definidos por Berkes (2008) como aqueles
nos quais a exclusão (controle de acesso) é difícil e o uso coletivo inclui a
subtração – diminuição do total de recurso disponível para o próximo usuário.
Segundo Berkes (2005), recursos comuns (commons) podem ser utilizados nas
escalas global (e.g. oxigênio), regional (e.g. bacias hidrográficas) e local (e.g.
recursos pesqueiros), sendo que o maior número de trabalhos tem abordado
escala local.
Os extrativistas vendem a piaçava a atravessadores. Atualmente eles
possuem autonomia para realizar a comercialização do produto e afirmam que a
alta demanda torna fácil a sua venda. Apesar de praticamente toda a piaçava
produzida na Salamina hoje ser vendida para um único comprador, os
entrevistados afirmam que podem vendê-la ao comerciante que oferecer o melhor
preço.
189
"Entrego no máximo duas vez por mês.
Geralmente uma vez no mês eu vendo assim. Do jeito que
eu tô, se eu for no mato vinte dias, eu deixo aqui umas oito
arroba no máximo, sete arroba por aí, porque tá ruim mesmo.
Às vez completo com a pesca. A roça é pouca, mais pra
comer mesmo."
190
Pessoa / sobrenatural
191
Pode-se considerar a existência da vovó do mato como um meme,
porque essa é uma figura conhecida por todos, embora a maioria afirme nunca tê-
la visto. Entretanto, ainda que hajam algumas evidências de descrença, não se
pode afirmar que há uma total incredulidade sobre a existência da vovó do mato,
uma vez que em muitas falas aparece o paradoxo que Marques (2001) tratou
como “crer não crendo”.
192
Temporalidade e apropriação dos recursos: conexões ao longo do tempo
194
encontram-se atualmente em ruínas. Assim sendo, hoje a mandioca para
produção de farinha não é mais realizada localmente e o produto passou a ser
comprado nas feiras da cidade de Maragogipe.
195
Figura 189 – Camboa de paus em manguezal nas proximidades da cidade de Maragogipe
197
sei o que é que houve, teve um nhé, nhé, nhé por aí, e não
permaneceu. Ficou mesmo os trabalhador vendendo seus
trabalho onde queria, onde bem queria e entendesse."
199
200
CONSIDERAÇÕES FINAIS
201
Na percepção êmica, os impactos ambientais gerados por grandes
empreendimentos que atuam na Baía do Iguape, sobretudo aqueles decorrentes
da operação da Usina Hidrelétrica de Pedra do Cavalo são a principal causa da
diminuição dos estoques pesqueiros. Consideram ainda que a redução do
pescado incide negativamente de forma indireta sobre o extrativismo vegetal, em
virtude do aumento do número de pessoas que deixam a pesca para se dedicar a
essa atividade.
Considera-se que a opção pela etnoecologia abrangente como
ferramenta teórico-analítica associada à combinação de métodos essencialmente
qualitativos de obtenção de dados permitiu alcançar os objetivos propostos, ainda
que nem todos os aspectos nela contidos tenham sido de fato empregados na
análise (a exemplo das modalidades nas bases conexivas). Esta tese avançou na
incorporação das modificações mais recentes da abordagem escolhida,
particularmente considerando a dimensão temporal como um fator de grande
relevância na análise dos aspectos etnoecológicos.
A relevância da passagem do tempo (abordada também no status
conexivo) ganhou contornos especialmente importantes quando considerou a
trajetória histórica da comunidade estudada e as recentes modificações pelas
quais a Baía do Iguape tem passado em consequência da implantação e operação
de projetos desenvolvimentistas. Acredita-se ainda que contribuiu qualitativamente
com a análise, a aproximação teórica com a recente abordagem da etnoecologia
da paisagem que considera a importância das relações de poder e dos fatores
históricos no entendimento êmico acerca do mundo natural e apropriação de
recursos. Sendo assim, a etnoecologia abrangente mostrou-se uma abordagem
adequada ao tratamento do assunto, considerando a importância dos fatores
históricos nas relações que se estabelecem entre seres humanos e natureza.
Os elementos apresentados nessa tese permitem reiterar a importância
das comunidades tradicionais como detentoras de profundo conhecimento acerca
do mundo natural, a importância desse conhecimento na elaboração de
estratégias de sobrevivência e também a sua relevância para a conservação dos
202
ecossistemas. É necessário mencionar ainda que tais comunidades, tomando o
exemplo particular da Salamina, precisam ter garantidos os seus meios de
sobrevivência material e simbólica, cada vez mais ameaçados.
203
204
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220
Apêndices
221
Apêndice 1. Autorização emitida pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp para a realização da pesquisa.
222
223
224
Apêndice 2. Autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN) para a realização da pesquisa
225
226
Apêndice 3. Autorização do Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade para a realização da pesquisa.
227
3
Este documento somente poderá ser utilizado para os fins previstos na Instrução
Normativa IBAMA n° 154/2007 ou na Instrução Normativa ICMBio n° 10/2010, no
que
especifica esta Autorização, não podendo ser utilizado para fins comerciais,
industriais ou esportivos. O material biológico coletado deverá ser utilizado para
atividades
científicas ou didáticas no âmbito do ensino superior.
4
O titular de licença ou autorização e os membros da sua equipe deverão optar por
métodos de coleta e instrumentos de captura direcionados, sempre que possível,
ao grupo taxonômico de interesse, evitando a morte ou dano significativo a outros
grupos; e empregar esforço de coleta ou captura que não comprometa a
viabilidade
de populações do grupo taxonômico de interesse em condição in situ.
5
O titular de autorização ou de licença permanente, assim como os membros de
sua equipe, quando da violação da legislação vigente, ou quando da inadequação,
omissão ou falsa descrição de informações relevantes que subsidiaram a
expedição do ato, poderá, mediante decisão motivada, ter a autorização ou licença
suspensa ou revogada pelo ICMBio e o material biológico coletado apreendido nos
termos da legislação brasileira em vigor.
6
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acesso a componente do patrimônio genético existente no território nacional, na
plataforma continental e na zona econômica exclusiva, ou ao conhecimento
tradicional associado ao patrimônio genético, para fins de pesquisa científica,
bioprospecção e desenvolvimento tecnológico. Veja maiores informações em
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7
Em caso de pesquisa em UNIDADE DE CONSERVAÇÃO, o pesquisador titular
desta autorização deverá contactar a administração da unidade a fim de
CONFIRMAR
AS DATAS das expedições, as condições para realização das coletas e de uso da
infra-estrutura da unidade.
Outras ressalvas
1 A referida pesquisa deve ser aprovada pelo Conselho Deliberativo da RESEX
Baía do Iguape
Equipe
# Nome Função CPF Doc. Identidade Nacionalidade
1 jOSÉ GERALDO WANDERLEY MARQUES Orientador 026.220.504-10 108497
SSP-AL Brasileira
Locais onde as atividades de campo serão executadas
# Município UF Descrição do local Tipo
228
1 BA RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DA BAÍA DE IGUAPE UC Federal
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Autorização para atividades com finalidade científica
Número: 27644-2 Data da Emissão: 07/09/2012 20:52 Data para Revalidação*:
07/10/2013
* De acordo com o art. 33 da IN 154/2009, esta autorização tem prazo de validade
equivalente ao previsto no cronograma de atividades do projeto,
mas deverá ser revalidada anualmente mediante a apresentação do relatório de
atividades a ser enviado por meio do Sisbio no prazo de até 30 dias
a contar da data do aniversário de sua emissão.
SISBIO Dados do titular
Nome: Viviane Souza Martins CPF: 005.547.385-70
Título do Projeto: Estudo Etnoecológico e de Percepção de Impactos Ambientais
na Comunidade Quilombola Salamina Putumuju, Maragogipe, Bahia
Nome da Instituição : Universidade Estadual de Campinas CNPJ:
46.068.425/0001-33
Registro de coleta imprevista de material biológico
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biológico ou de substrato não
contemplado na autorização ou na licença permanente deverá ser anotada na
mesma, em campo específico, por
ocasião da coleta, devendo esta coleta imprevista ser comunicada por meio do
relatório de atividades. O transporte do
material biológico ou do substrato deverá ser acompanhado da autorização ou da
licença permanente com a devida
anotação. O material biológico coletado de forma imprevista, deverá ser destinado
à instituição científica e, depositado,
preferencialmente, em coleção biológica científica registrada no Cadastro Nacional
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Táxon* Qtde. Tipo de amostra Qtde. Data
* Identificar o espécime no nível taxonômico possível.
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