Maria Luiza Marcílio (2006) em um estudo utilizando relatos orais, listas
nominativas, registros paroquiais, cadastros nominativos, testamentos e atas da câmara para construir uma história da vida privada, afirma que em Ubatuba havia predominância de populações que ela classifica como de “camponeses pescadores livres” ou “agricultores pescadores pobres”, comunidades que tinham como prioridade a agricultura de subsistência em meio a poucas fazendas de exportação, formando núcleos familiares que se relacionavam entre si e com as vilas. As produções escoavam pelos portos de Ubatuba e de São Sebastião para abastecimento do mercado interno. Sua agricultura era articulada com a floresta e algumas áreas eram desmatadas e utilizadas até a exaustão do solo, o que acarretava mudanças frequentes das roças. O olhar do Estado sobre essas comunidades era de que eram desorganizadas e de que a população não aproveitava o que podia do solo, por isso havia medidas de inserção ao mercado, como a implantação de plantações de fumo para exportação na década de 1770. Como diz Marcílio, nenhuma comunidade camponesa funciona separada da sociedade, há sempre impostos e taxas a serem pagas, além de trocas comerciais mesmo que esporádicas. O café propiciou uma fase de inserção na economia de exportação após 1820, mas se encerrou no final do mesmo século XIX com a construção das estradas de ferro ligando o interior de São Paulo e o Rio de Janeiro a Santos. O início de produções para abastecimento interno no interior de São Paulo consolidou a decadência dos povoados do litoral norte de São Paulo que se fecharam com a agricultura de subsistência e a pesca, dando as características conhecidas da cultura caiçara até a década de 1950. Com a construção de rodovias de acesso, a especulação imobiliária e o turismo praticamente acabaram com as comunidades caiçaras. Luiz Geraldo Silva (2004) enfatiza que até o final do século XIX a produção para o mercado interno era intensa e que: Curiosamente, um dos resultados mais notáveis da decadência do litoral paulista foi a emergência, a partir de fins do século XIX, do sistema mais ou menos equilibrado e orgânico do modo de vida caiçara. Neste, combinava-se, como se observou de início, a produção agrícola de pequena escala –mormente de mandioca, feijão e milho – a pequena pesca feita em enseadas, baías e estuários e na linha da praia- particularmente a da tainha, realizada na “época fria” – e a cultura de árvores frutíferas no interior da Mata Atlântica. Ademais, a exploração da caxeta e do palmito, também realizada no interior da Mata, tendia a complementar as minguadas rendas domésticas das populações praianas. Estas rendas, claro, já não mais provinham de relações intensas e dinâmicas com o mercado interno, mas se limitavam a ganhos esporádicos obtidos em circuitos restritos ao próprio litoral paulista (SILVA, 2004, p. 55). Silva (2004) explica a transição da cultura caiçara de agricultora a pescadora nesse momento de declínio e mostra que a inserção na pesca não foi apenas pelo fato dos caiçaras terem contato com novas formas, como o cerco, mas por projeto das colônias de pesca, cujos dirigentes eram grandes comerciantes de pescado. Tanto Silva (2004), quanto Marcílio (2006) ressaltam o impacto da especulação imobiliária na década de 1950 em comunidades que não viam a terra com valor econômico. De acordo com Silva (2004), sem as áreas de agricultura, os caiçaras se voltam ainda mais para a pesca e na década de 1970 passam a ter acesso a motores, iniciando-se a diferenciação social nas comunidades pelo acesso a diferentes espécies de pescado. Ilhabela também era formada por diversos territórios caiçaras. Ary França (1954) afirma que não era diferente estudar a ilha e as demais comunidades, porque todas elas se comportavam como ilhas. Gioconda Mussolini (1945) e Ary França (1954), com trabalhos antropológicos realizados antes da chegada do turismo em Ilhabela, mostram essa configuração inicial vinculada à agricultura de subsistência intercalada com fazendas, principalmente de cana com seus alambiques e a passagem para a pesca. Mussolini (1945) atribui a inserção na pesca por causa do acesso à técnica do cerco, não relacionando com o mercado de pescados, como faz Silva (2004), mas apresenta muitos detalhes das comunidades nesse momento, inclusive faz um trabalho de memória, registrando contos, lendas e pasquins, versos que contam histórias da ilha. No caso do Bonete, não localizamos trabalhos historiográficos específicos, mas Márcia Merlo (2004) apresenta um trabalho de memória de Ilhabela e dedica um capítulo à comunidade, ressaltando o desejo de inserção social. Merlo (2004) considera a ilha e o Bonete como lugares ambíguos, do caiçara que se desterritorializa: Nesse processo de mundialização que chega à ilha por meio do turismo, as perdas e assimilações surgem e ressurgem na memória dos caiçaras em forma de submissão ou rancores, racismo, regionalismo, desespero. Como a perda da identidade, percebida muitas vezes mediante o esquecimento, ou ainda com o ressurgimento de uma identidade caiçara, centrada na imagem de um “caiçara puro” (MERLO, 2004, p.347). Há muitos trabalhos antropológicos abordando a questão dos caiçaras e Antonio Carlos Diegues, vinculado ao NUPAUB – Núcleo de apoio a pesquisas sobre populações humanas em áreas úmidas brasileiras, é um dos principais nomes. Diegues (2008) se posiciona contra a visão conservacionista dos Parques Estaduais construídos durante as décadas de 1970 e 1980 e defende que as comunidades tradicionais exercem um modo de vida que não agride o ambiente, portanto devem ser vistas como parte dele, e seu território preservado. Assim, define o termo comunidade tradicional e elenca diversas características, que demonstram suas especificidades, sendo a autodeterminação fator essencial. O termo e sua definição foram consolidados no Decreto 6040/2007, (BRASIL, 2007) que determina a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Ainda na antropologia, Adams (2000) se opõe à visão ambientalista que coloca o caiçara dentro do conceito de natureza, sem romper com a dicotomia homem/natureza: Meu argumento central será de que a “identidade” caiçara “ecologicamente correta” é uma representação historicamente datada, construída pelos antropocentristas com o intuito de garantir o direito destas populações à permanência nas unidades de conservação de Mata Atlântica. A minha leitura entretanto, será de que a construção dessa “identidade” terá um efeito inverso a médio ou a longo prazo, e apenas contribuirá para o enfraquecimento político destas sociedades, a despeito das boas intenções de seus propositores (ADAMS, 2002 p. 2). Paulo Stanich traz interpretações próprias sobre comunidades tradicionais. O autor faz uma coletânea sobre legislação e interpretações e defende a criação de leis que protejam as comunidades caiçaras tradicionais: O patrimônio cultural é sem dúvida o fator que gera mais urgência de tutela, e mantê-lo é uma necessidade coletiva para preservar também a história do povo brasileiro. Essas comunidades ainda mantêm muitos aspectos que são fiéis ao modo de vida da época da primeira colônia. Até o sotaque guarda reminiscências do português arcaico (STANICH, 2016, p. 31). Essa ideia de transformar em patrimônio cultural é evidentemente um olhar de fora e mais questionável a afirmação de que é uma cultura que mantém o modo de vida colonial, o que mostra o objetivo de preservar o passado da nossa cultura, a hegemônica, como se isso fosse possível e ignorando a forma de vida das comunidades, desejando as proteger como uma representação do nosso passado, como se fosse criar, o que seria no conceito de Pierre Nora (1993), um “local de memória”. Há ainda a linha de pesquisa geográfica, que destaca a disputa pelo espaço. Paulo da Silva Noffs (2007) pontua que “A disputa pela hegemonia do espaço na Baia dos Castelhanos está associada, por sua vez, à relação que se estabelece entre a população caiçara remanescente, os diversos segmentos de turismo e turistas e o Estado que regulamenta o uso do território”(NOFFS, 2007, p.05). Noffs se refere a Castelhanos, que é outra comunidade tradicional caiçara de Ilhabela, com casos muito parecidos. Sobre Ilhabela, Alan Faber do Nascimento afirma:
Assim, o ordenamento territorial visando à preservação da natureza nada
mais é que um álibi para a reprodução de um mercado imobiliário local de alta renda, num processo em que a “ameaça ao verde” é pretexto, a um só tempo, para privilegiar alguns poucos e punir muitos outros. Do mesmo modo que as medidas de proteção às comunidades tradicionais, além de imobilizar o caiçara a um passado idealizado, têm criado padrões urbanísticos e arquitetônicos cada vez mais restritivos e, consequentemente, mais exclusivos, bem ao gosto de um consumo turístico elitizado (NASCIMENTO, 2011, p.09).
Guilherme Paschoal Lima (2015) ainda nessa linha, estuda especificamente a
comunidade do Bonete e conclui que o boneteiro ainda tem o poder sobre seu território, embora ameaçado. Na análise sobre espaço e território Paschoal (2015) propõe a etnoconservação, a preservação do território, incluindo no conceito as comunidades tradicionais, pois não há a dicotomia homem/natureza e o espaço seria dos caiçaras.