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TAPEBAS: A REVITALIZAÇÃO DE UMA IDENTIDADE ÉTNICA

Wagner Pereira da Silva ( Pós-graduado em Cultura Folclórica)


RESUMO
Lutando bravamente para ser reconhecido como nação indígena, um povo resiste e teima
em preservar a sua cultura e sobreviver em harmonia com a natureza, às margens do rio
Ceará, que lhes garante a sobrevivência. São os remanescentes dos Tapebas que, hoje,
segundo a FUNAI, somam cerca de cinco mil pessoas, espalhadas em 17 comunidades pelo
município de Caucaia, no Ceará, e, apesar dos péssimos indicadores sociais, procuram
manter viva a consciência da sua identidade étnica e as suas tradições.A luta destes índios
pelo reconhecimento do seu “direito de fato” a um quinhão de terra, a defesa do seu habitat,
do meio ambiente, da sua própria cultura e da sua cidadania são alguns aspectos que
incentivaram o desenvolvimento do presente trabalho monográfico de pesquisa qualitativa
de cunho etnográfico. Estudando as manifestações da cultura dos Tapebas, esperamos
contribuir de alguma forma para uma maior conscientização da realidade de um povo que,
embora tenha tido o reconhecimento do seu direito à terra, ainda não pode ver
disponibilizado o seu quinhão dentro da imensidão do ambiente em que nasce, se reproduz
e continua a perpetuar a sua cultura.
Palavras Chaves: Tapebas, Identidade e Cultura.

INTRODUÇÃO
Enquanto não se conseguir decifrar o sentido das numerosas inscrições que se
acham gravadas nas pedras da fazenda Mucambo - sítio arqueológico no município de
Itapipoca -, os litóglifos da Pedra do Oratório e outras inscrições que se acham gravadas em
diversas pedras que ainda as conservam perfeitas, muito dos fatos, usos e costumes dos
nossos indígenas permanecerão na obscuridade, principalmente suas impressões sobre a
chegada dos europeus às praias do Ceará.
À falta deste cronista tupiniquim, deixaremos essas averiguações ao suor e às
lucubrações dos arqueólogos, limitando-nos às buscas bibliográficas e à pesquisa de campo
sobre os remanescentes donos da “mato queimado1” – Caucaia e seus primitivos donos, os
Tapebas -, restringindo-nos a descrever técnicas, usos e costumes que ajudaram a manter
uma identidade comum apesar da dispersão da tribo por dezessete comunidades localizadas
no município de Caucaia.
Nesse contexto, os Tapebas desenvolveram uma política descentralizada,
baseada na atuação das lideranças de cada comunidade, unidos por um ideal comum: a luta
para terem seus direitos reconhecidos como índios e suas terras demarcadas, bem como a
revitalização da sua cultura. Essa luta tinha como tentativa acender alguma luz sobre a
questão dessa identidade que, até 1980, segundo o antropólogo Henyo Barreto, era motivo
de dúvidas, preconceitos e vergonha, quando a própria FUNAI afirmava, em seus registros
realizados a partir dos levantamentos produzidos por antropólogos e missionários, que os
estados do Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte eram os únicos estados brasileiros onde
inexistiam índios.
Neste trabalho, lançaremos um olhar detalhado e comprobatório da
legitimidade de uma etnia, por meio da constatação de laços, ainda hoje em uso pelos

1
Etimologicamente, segundo Oliveira (2003:40), caucaia, significa “mato queimado”.
membros das dezessete comunidades, resistentes e conservadoras da cultura do povo
Tapeba que, apesar de confinados em pequenos lotes à beira do trilho, às margens do rio
Ceará, ou imprensados entre o barreiro, tendo que subsistir com a cata e venda de
crustáceos, pequenos peixes e frutas da safra à beira da BR-020, ou sufocada no meio do
lixão e da poluição das indústrias, lutam heroicamente, após a elevação da auto-estima pela
Arquidiocese de Fortaleza, pelo direito de se dizerem uma raça, de terem novamente
orgulho de seus heróis, de festejarem os seus feitos e os seus mortos e de comemorarem
com os seus vivos, de terem, enfim, uma Escola Diferenciada, onde não se leia pela
cartilha do branco, na qual o “B, A, BÁ” é ensinado com frutos importados, inexistentes na
região, cujo sabor é de dominação e preconceito.
A figura de seu povo aparece apenas como caricatura de uma raça extinta,
animal pré-histórico, impossível de se encontrar num vagão do trem da estação de Caucaia
ou na feira de domingo. Um povo que é estereotipado grotescamente nas escolas no dia 19
de abril.
Pretendemos mostrar um povo que, apesar das vicissitudes, das intempéries do
tempo e da xenofobia, não abriu mão da necessidade de construir um princípio de
unificação e um ponto de apoio efetivo e objetivo, para a ação de mobilização na
construção de um todo.
Com esse objetivo, de levantamento cultural, de um “modus vivendi”,
pretendemos demonstrar algumas técnicas conservadas como usuais no meio dessa
população, como forma de identificação de um vínculo cultural de uma raça, que se
reproduz de geração em geração por laços familiares, apesar dos apelos à modernidade e da
falta de espaços apropriados para o desenvolvimento de suas atividades.
Constitui-se um estudo de caso numa tribo, onde buscamos focalizar sua
cultura, meios de produção e sobrevivência, dentro dos padrões de uma raça em busca de
revitalização no município de Caucaia.
Procurando esclarecer se o que um povo faz, vivencia e acredita determina o
que ele é, ou seja, sua identidade, seu DNA cultural, perguntamos o que ser é Tapeba. O
que caracteriza categoricamente a identidade de um povo que resiste num quadro de
diversidades marcadas por discrepantes configurações sócio-econômicas ocasionadas por
grupos locais de interesses divergentes?
Na consecução deste trabalho foram feitas duas visitas às comunidades
Tapeba e ao Centro de Cultura Tapeba, nas quais entrevistamos as índias Francisca
Elenilda, Margarida, a pajé Raimunda e o professor Weber da escola indígena. Os mesmos
responderam perguntas sobre vários aspectos da comunidade indígena, entre eles:
econômicos, culturais e culinária.
Esperamos, com este trabalho, contribuir, de alguma forma, para o processo
que Henyo Trindade Barreto Filho denomina de “etnogênese”, ou seja, o processo de
formação de uma identidade categórica, a identidade do Tapeba.

Primitivos Habitantes da Nossa Seára


Como em toda a extensão das Américas, na ocasião da chegada dos europeus às
praias do Seára2, notou-se que o país era habitado por duas grandes raças de índios,
segundo Théberge, em seu Esboço Histórico Sobre a Província do Ceará (1973:17): os

2
Seára: segundo Lima (1976), a etimologia da palavra Ceará é tupi-guarani, que deriva de um nome
composto de “CEMO”, cantar forte, clamar, e “ARÁ” pequena arara, jandaia. É portanto: Canto de Jandaia).
chamados Tapuias, que falavam inúmeros dialetos e por este motivo também eram
chamados de “índios de língua travada” e os Tupis, que falavam todos a mesma língua e
por isso eram chamados de “índios da língua geral”.
A falta de documentos e precisão histórica (pois existem muitas controvérsias)
dificultam uma descrição mais efetiva sobre os nossos primeiros habitantes. Descrição que
só será esclarecida quando forem decifradas as pinturas rupestres que se encontram em
cavernas e a céu aberto e que devem se referir à vida, história, usos, costumes e tradições
desse povo.
Os grupos indígenas encontrados no litoral pelo
português eram principalmente tribos de tronco tupi que, havendo
se instalado uns séculos antes, ainda estavam desalojando antigos
ocupantes oriundos de outras matrizes culturais (RIBEIRO,
2004:31).

No Ceará, segundo Théberge (1973), predominava a raça Tupi que ocupava


quase toda a sua extensão, com exceção da Serra de Ibiapaba, das proximidades do litoral
onde hoje é Fortaleza, do vale do Jaguaribe e do Riacho dos Porcos, onde se encontravam
algumas tribos da raça Túpica e da nação Caetés e Pitaguaras.
Cada raça se dividia em nação e estas em tribos. Cada tribo tinha seu chefe, e o
maioral de uma nação tinha algumas vezes muitas tribos da mesma raça sob seu comando,
assim como também tribos aliadas ou vencidas.
Os Tapuias viviam muito isolados em tribos distintas e independentes umas das
outras, fazendo guerra aos Tupis a quem dedicavam um ódio mortal e estavam em guerra
continuada. Desta inimizade incessante veio o nome de Tapuia, que em língua Tupi, quer
dizer: “contrário ou inimigo”.
As nações e as tribos tinham cada uma o seu próprio nome, o que gera uma
grande confusão aos estudiosos para estabelecer a qual nação pertence determinada tribo.
Outro motivo para confusão é o caráter nômade das tribos, o seu constante ir e
vir, de conformidade com a safra do caju, e sua retirada para o interior do país com a
chegada dos colonizadores.
Todavia, algumas tribos tinham moradia permanente e até mesmo exerciam uma
agricultura rudimentar.

Na escala de evolução cultural, os povos Tupis davam os


primeiros passos da revolução agrícola, superando assim a condição
paleolítica, tal como ocorrera pela primeira vez, há 10 mil anos, com os
povos do velho mundo. É de assinalar que eles o faziam por um caminho
próprio, juntamente com outros povos da floresta tropical que haviam
domesticado diversas plantas, retirando-as da condição selvagem para a
de mantimento de seus roçados (RIBEIRO, 2004:31).

No meio da confusão de grafias dos nomes de nações e tribos, por parte dos
historiadores, não temos alternativas, que não seja relatar o que nos comunicaram os
cronistas da época e pesquisadores.
A predominância da raça Tapuia, no Ceará, se deve ao fato de que os mesmos,
tangidos de suas terras pelos invasores, procuraram as regiões secas e áridas dos sertões
cearenses como forma de se defenderem e se livrarem da perseguição, devido às condições
climáticas desfavoráveis ao europeu.
As principais tribos aqui encontradas pelos primeiros descobridores do Ceará
foram: os Tabajaras, os Tremembés, os Parangabas, Paiacus, os Jenipapos, os Icós, os
Chocos, os Cariris, os Carius e os Caucaias, entre outros.
Os Tabajaras eram da raça Tupi que tinha grande número de tribos e habitava a
serra da Ibiapava; os Tremembés era uma grande nação Tapuia que ocupava o terreno
situado entre a Serra Grande e o mar, desde o rio Acaraú até o Paraguaçu; os Parangabas,
nação Tupi, aldeada próximo à lagoa de Arronches; os Parnamirins se aldearam em
Messejana até o Pirangi; os Canindés, de raça Tapuia, ocupavam as vertentes do rio Curu
até a Serra de Baturité; os Paiacus residiam entre os rios Pirangi e Choró; os Jenipapos
eram Tapuias que ocupavam a chapada da Serra de Baturité; os Icós que habitavam entre o
rio Salgado e o rio do Peixe; os Chocos, de raça Tupi, vagavam no vale do Riacho dos
Porcos, e no pé da Serra do Araripe; os Cariris eram Tapuias e ocupavam a vasta região
compreendida entre a margem esquerda do rio São Francisco e as quebradas das Serras do
Araripe e da Ibiapaba. Estes eram “uma raça indômita e inquieta, de língua travada, como
se dizia, isto é, que não falava o idioma Tupi”, segundo Barroso (2004:53); os Carius eram
inimigos dos Cariris e estendiam-se pelo vale do riacho Cariús até o rio Bastiões; os
Caucaias, que falavam a língua geral, residiam em Soure e foram aldeados na Missão de
Caucaia; os Jucás eram muito guerreiros e ocupavam as margens do riacho do mesmo
nome; os Quixelôs entregavam-se com paixão às rapinas; os Inhamuns habitavam as
margens do rio Jaguaribe, entre os Quixelôs e os Jucás;
Estas são as tribos mais conhecidas e mais citadas nos documentos
consultados e todas elas desapareceram quase que completamente, ou pela perseguição dos
invasores, ou pelos efeitos do homem civilizado a quem não convinham demonstrar as
origens indígenas, ou, ainda, em decorrência de moléstias epidêmicas como o sarampo, a
bexiga e outras trazidas da Europa pelos invasores.
Conforme afirma Théberge (1973:24), os índios do Ceará “não tinham idéia
alguma de propriedade territorial e viviam numa espécie de comunidade de bens, a tal
ponto que aceitavam sem repugnância alguma a idéia de serem as terras do Brasil
propriedade d’El Rei.”
Tinham uma moral muito simples. Tomavam o seu alimento onde quer que
o encontrasse, enquanto outra tribo mais forte não os vinha expulsar, e deixavam, sem
pesar, o lugar onde não achavam mais o seu sustento com facilidade e, nesta retirada,
queimavam todos os utensílios de seu uso, com exceção das armas. Talvez esteja ai a
explicação do não apego dos cearenses a sua terra natal, sendo um povo andarilho ou
nômade encontrável em todas as localidades deste vasto mundo.
Sustentavam-se de mandioca e de outras raízes produzidas pelos lugares
onde residiam, assim como do produto da pesca e da caça, nem sempre abundantes,
conforme as localidades.

Daí a importância dos sítios privilegiados, onde a caça e a


pesca abundantes garantiam com maior regularidade a sobrevivência do
grupo e permitiam manter aldeamentos maiores (RIBEIRO, 2004:32).
A cultura destas plantas cabia às mulheres, assim como a preparação e
alimentos, como a farinha, e a fabricação de certas bebidas fermentadas, com sucos
retirados de plantas. Os homens só se ocupavam da caça, da pesca e da guerra.
Dirigiam-se, de outubro a novembro, para a colheita do caju, que usavam como
alimento e na fabricação da bebida denominada mocororó.
Quando se iniciou o povoamento do Ceará, com a fundação das primeiras
fazendas de gado e dos primeiros cultivos agrícolas, os índios em seus deslocamentos não
respeitavam, às vezes, nem as plantações dos brancos que se apossavam das terras. Tais
choques deram início a violentos conflitos que duraram trinta anos, segundo Barroso
(2004).
No ano de 1713, a Vila de Aquirás, então sede da capitania, foi inopinadamente
atacada. Morreram cerca de duzentas pessoas na sua defesa e o restante da população fugiu,
defendendo-se como pôde, indo acolher-se à proteção dos canhões da Fortaleza de Nossa
Senhora da Assunção na foz do Pajeú. “Esse êxodo deu origem à vila, e depois à cidade da
Fortaleza, que acabou superando a de Aquirás” (BARROSO, 2004:56).
Como nos contam os velhos documentos, entrou então, em ação a Cavalaria do
Certam, composta de homens conhecedores do terreno, bem como do modo de guerrear dos
indígenas, exterminando-os, em violenta guerra, que subiu pelo vale do Jaguaribe ao do
Cariri até os confins piauienses.
Os restos dos Icós foram exilados em Sousa, no alto sertão da Paraíba.
Os remanescentes dos Acriús e Arariús do rio Acaraú e da serra da Meruoca
foram confinados na povoação de Nossa Senhora da Assunção da Ibiapaba, e os últimos
Tremembés feneceram quase todos em Soure e em Almofala, onde ainda hoje, seus
descendentes conservam lembranças de seus ritos, cantos e danças.

Etimologia da Palavra Tapeba


O antropólogo Henyo Barreto (1993) escreveu: “A etimologia da palavra
Tapeba é tupi, segundo acordo entre os vários estudiosos como Alfredo Moreira Pinto e
Tomaz Pompeu Sobrinho, constituindo uma variação fonética de Itapeva (de ita/ta, i. é,
“pedra”; e peva, i. é, “plano”, “chato”): “pedra plana”, “pedra chata”, “pedra polida”, etc.”
Segundo Weber, professor indígena Tapeba, não se sabe, talvez “por fala
mesmo dos antepassados”, a palavra passou de Itapeva para Tapeba. Para ele, o nome em
português quer dizer “pedra chata” e faz referência a uma pedra que havia na lagoa dos
Tapebas, que deu origem ao povo e que sumiu misteriosamente.
Os antepassados se centralizaram ali próximo à lagoa e depois foram se
expandindo para as outras comunidades.
“Tapeba”, “Tapebano” ou “perna-de-pau” são atribuições étnicas pelas quais
uma dada coletividade se identifica e é reconhecida na paisagem social do município de
Caucaia como constituindo um grupo distinto. Esse reconhecimento estende-se ao nível
regional, dada a repercussão, nos meios de comunicação, do movimento reivindicatório que
os Tapebas empreenderam, com o apoio da Arquidiocese de Fortaleza, visando à proteção
de algumas áreas que ocupam hoje (entre as quais, o manguezal às margens do Rio Ceará)
e a recuperação do território da antiga Aldeia de Nossa Senhora dos Prazeres de Caucaia,
exigindo junto a FUNAI a demarcação de uma área indígena.
Perna-de-pau constitui a referência ao apelido de um ancestral, a figura
emblemática de José Alves dos Reis, o Zé Zabel “perna-de-pau”, tido como última forte
liderança dos Tapebas do Paumirim, o último Tuchaua. Logo após a sua morte, conta-se
que os Tapebas que viviam sob a sua autoridade se dispersaram numa espécie de diáspora.
O caso singular de que ele teria mantido casamento com várias mulheres e a
quantidade enorme de filhos que teve gerarando um grupo de descendência claramente
delimitado. Alguns elementos desse grupo, notadamente, descendentes da segunda geração,
casaram-se entre si. Estes se referem a si próprio como “a verdadeira nação”, opondo-se
aos Tapebas de outras localidades, considerados por eles como não sendo puros. Referem-
se a “Perna-de-pau” como o fundador da nação. Essa disputa pela autoridade e pela
legitimidade do discurso verdadeiro sobre os Tapebas era uma constante, principalmente
entre os “zabel”, os “pernas-de-pau”, que se julgam os legítimos interlocutores para falar
sobre os Tapebas e o passado deles.
Os jovens Tapebas mais identificados com um estilo de vida urbano e que
experimentaram viver fora da paisagem social local têm procurado romper com essa prática
do “casar em família”. Conflitam, assim, com a interpretação corrente entre os mais
antigos, de essa seria a prática mais correta e mais de acordo com os padrões morais, além
de tradicional.

Ser Tapeba
(...) Ser Tapeba hoje pra nós é estar manifestando nossa
cultura diferentemente da dos demais povos indígenas e do
restante da sociedade brasileira não indígena, né, vamos
dizer assim (...), então ser Tapeba é ter todo esse consciente,
ter a consciência da sua legitimidade enquanto índio, de
realmente se auto-identificar, não ter vergonha de dizer o
que é, mesmo com essa dificuldade
que a gente tem (...)
(Weber – índio Tapeba)

Com base no depoimento dos mais antigos, era proibido ser índio em Caucaia,
falar a língua nativa, se comportar como tal.
Nesse contexto, os costumes e a tradição indígena Tapeba foi impedida de ser
expressa e manifestada pelos índios.
Tapeba funcionou e em certos circuitos e contextos ainda funciona como um
insulto, um xingamento, dada a informação social pejorativa que o termo veicula, o qual
está associado a condutas como: comer carne podre (carniça), consumo de álcool,
promiscuidade, desonestidade, desrespeito pela propriedade alheia, indolência e
indisposição para o trabalho, bem como a imundície em que vivem os índios e a imagem de
miséria, em geral, a que estão associados. Esta “imagem pública” dos Tapebas ainda tem
muita força no contexto local. É comum alguns Tapebanos assentirem com alguns
elementos desse reconhecimento negativo de que são objetos, como definidores das
características singulares que os distinguem.
Em função dessa realidade, os Tapebas sofrem também perseguição, porque
pessoas do município questionam acerca da legitimidade de sua indianidade, embora
tenham sido oficialmente reconhecidos como índios, a partir de estudos antropológicos.
Ocorre que esse reconhecimento da relação de estigma de que são objeto, que
parece ter estado vinculada a uma ideologia e a uma prática de evitação, conforme alguns
relatos, só se faz em virtude da concepção atual, de que hoje eles gozam de um novo status.
Hoje eles são “reconhecidos”, são “vistos”; expressando assim, o respeito e o relativo
reconhecimento da cidadania concedidos pelas autoridades públicas e potentados locais,
bem como dos regionais com os quais convivem, da atuação da Equipe Arquidiocesana e
dos esforços empreendidos no sentido de regularizar a situação fundiária da área.
Os Tapebas dizem que têm consciência do que são e lutam para revitalizar seus
costumes. Exemplo disso é a ênfase dada a produção do artesanato indígena, que é
ensinado nas escolas diferenciadas dos Tapeba, a dança do Toré, ritual sagrado, que deve
ser diferenciado da apresentação do toré. No primeiro caso, os índios têm um momento em
que só eles podem participar, e no segundo, apresentam-se para pessoas alheias à aldeia:
escolas, universidades, turistas e o público interessado em conhecer a cultura indígena.
A índia Maria Lima da Silva, conhecida na comunidade como Castoré (porque
pescava muito em açude), explicou que dança e música significam muito para o povo
Tapeba e todos os dias, no final da tarde, eles fazem o ritual do Toré.
A dança Guerreira está sendo revitalizada, a medicina tradicional e o uso de
plantas medicinais estão sendo estimulados na aldeia. A Feira Cultural Tapeba está
acontecendo anualmente, culminando com a Festa da Carnaúba, a festa do dia do índio
Tapeba, a festa do dia do índio, os jogos indígenas, que reúnem anualmente, no mês de
abril, índios de diferentes etnias do Ceará, que se integram em várias modalidades de
competição, demonstrando como os índios têm atuado para recuperar e manter viva de
agora em diante suas tradições.
Como vimos, uma forte referência cultural para os Tapeba é o artesanato
indígena, com o qual os índios têm buscado manter a tradição no fabrico artesanal de peças
do vestuário, acessórios e enfeites, como brincos e colares utilizando técnicas
diversificadas, habilidades manuais e muita criatividade, com a nítida preocupação, por
parte dos artesãos, de retomar as práticas dos antepassados e utilizar como matéria-prima,
contas, conchas, sementes, búzios, cocos, madeiras, penas, escamas, fios, raízes, pedras,
espinhas e outros elementos extraídos diretamente da natureza.
A carnaúba, árvore reverenciada pelos índios e que fornece boa parte do
material que é usado na produção de peças do artesanato, seguida de uma variedade de
sementes, além do trabalho com a cerâmica.
Os artesãos se queixam de ver sua produção encostada pela falta de
oportunidade e condições no processo de comercialização de suas peças.
Os Tapebas têm muitos de seus hábitos culturais preservados, e entre estes
destacamos a prática de algumas modalidades esportivas como: o futebol, arco e flecha,
natação, corrida, arremesso de lança, cabo de guerra e corrida com tronco da carnaubeira.
Falando um pouco deste esporte, podemos dizer que ele tem um significado
especial, pois só os homens participam. Simboliza o respeito pela “Carnaubeira”, já que é
dela que tiram os materiais para fazer os artesanatos, casas e ainda vendem o pó ou a cera,
que dá uma para algumas famílias. As outras modalidades são desenvolvidas e praticadas
no âmbito escolar, onde o hábito desses esportes é empregado para fortalecer cada vez mais
a identidade cultural do povo. O futebol é a modalidade mais exercida e preferida pela
maioria dos homens e mulheres. Outro esporte que tem um significado importante é o cabo
de guerra, pois representa a resistência do índio em relação aos massacres e discriminação
que sofrem desde o início da colonização até os dias atuais.
Algumas das modalidades citadas acima não são praticadas diariamente, e sim,
em alguns momentos específicos, principalmente a corrida com tronco da carnaubeira, que
só é praticada na Feira Cultural e Festa da Carnaúba.
Outro fator importante está na revitalização da espiritualidade indígena. Os
Tapebas têm um terreiro sagrado, às margens da Lagoa dos Tapebas, que recebe o nome de
Pau Branco, localizado na comunidade de Lagoa II, onde, com maior freqüência são
realizados rituais que evocam a espiritualidade e o contato com a natureza, sob a orientação
do pajé Tatu, membro da comunidade.
São realizados ainda batismos indígenas, pois os índios sentem a necessidade de
propor aos membros da comunidade que fazem parte das igrejas católicas e protestantes, a
possibilidade de terem um vínculo maior com a cultura indígena. Os índios pretendem
também revitalizar os casamentos indígenas.
O importante para a sua auto-imagem e a imagem que os outros tenham deles, a
transição de “Tapebas imundos” para “índios” sujeitos de direitos e a reativação de
vínculos com parentes efetivos e parentes distantes, foi muito importante.

CONCLUSÃO
A arqueologia brasileira estuda o índio pré-histórico através dos seus
vestígios deixados nos sambaquis, encontrados ao acaso no solo, sendo que as conexões
mais evidentes estão entre as igaçabas dos cemitérios indígenas e os potes ainda hoje em
uso nos lares nordestinos, com a sua forma rudimentar.
As inscrições rupestres ou petróglifos têm dado origem a muitas conjecturas,
embora, nem sempre representem escritas, mas nelas devem estar expressos alguns sentidos
comemorativos ou mágicos.
A literatura oral é que tem contribuído com suas lendas e mitos para reforçar
o argumento de uma etnia, com sinais, por vezes, tão relevantes quanto sugestivos, uma vez
que o que um povo acredita ou faz, passa a identificar quem ele é.
É no convívio com as famílias, ao adentrarmos no terreiro, que se
patenteiam as reminiscências, seja no pote à porta de entrada, seja na rede de tucum armada
no alpendre. Mesmo o pobre jirau de varas com a louça de barro posta a secar é uma
herança ameríndia. Os bancos de tronco de carnaúba, o pilão e as gamelas de pau são
idênticos aos dos indígenas, talvez até mais rústicos que aqueles, pela pressa no seu feitio.
Não seriam motivos de surpresas aos antigos habitantes destas terras as panelas de barro, os
cacos de torrar café, os alguidares, encontrados nas choças das comunidades do Trilho, da
Lagoa II, ou qualquer outra. Até o nome do município, Caucaia, é Tupi, bem como quase
toda a toponímia local: Capuam, Iparana, Jandaiguada, Icaraí, Pabassu, Paumirim,
Tabapuá, etc.
A gostosa farinha de mandioca, o caranguejo, o tejo, o prear, o camaleão, a
nambu, o cassaco, o cuandu, o beiju e a tapioca, são palavras Tupis ou aportuguesadas, que
enfeitam os pratos de barro cozido, postos na esteira ou nas mesas de carnaúba dos
Tapebas.
Infinda seria a tarefa de enumerarmos todas as ervas, plantas, raízes, cascas,
sumos e sementes ministradas na medicina popular, garrafadas, mesinhas, rezas fortes
usadas pelos pajés, parteiras e rezadeiras.
O preparo da roça para o plantio ainda hoje se faz como os Tupis,
derrubando a mata e procedendo a queimada.
Arapuca, tocaia, arataca, mundéu são igualmente termos Tupis para
armadilhas de caça usadas até hoje.
Na cestaria, herdamos não só a técnica do trançado e as formas como
também mantivemos os nomes: uru, surrão, tipiti, jacá, caçuá, landuá, urupemba, entre
outros.
O certo é que pela sazonalidade da colheita, pela escassez de chuva ou pela
ganância do homem branco, os Tapebas não conseguiram garantir a posse das terras e essa
situação de instabilidade, aliada ao preconceito e a discriminação orquestrada por posseiros
com a conivência das autoridades, induziram os Tapebas a uma submissão cultural a ponto
de quase perder o direito de reivindicar as suas propriedades e a sua própria identidade
como nação indígena.
Acreditamos que, de alguma forma, com este trabalho, contribuímos para a
descoberta de que a melhor forma de vencer o preconceito e a discriminação é mostrar a
cara pintada e proporcionar o conhecimento desse povo, estabelecendo comparativos e
afinidades, revendo velhos conceitos estabelecidos por historiadores amestrados, a serviço
de uma ideologia, com o firme propósito de negar a existência de um povo, sua identidade
e seus direitos garantidos por lei e usurpados através dos tempos.
Concluimos este trabalho com o relato do índio Tabeba Weber que diz:

O que me emociona em ser Tapeba hoje, é assim, por tudo


que nós passamos, por tudo que nós sofremos, pelo genocídio, pelo
etnocídio, que é a matança dos povos, que é a matança da cultura, que é a
matança da língua, vamos dizer assim, né, mesmo assim a gente
conseguiu resistir.

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