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2011
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Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir o recente processo de patrimonialização cultural do
bairro do Porto de Trás, da cidade de Itacaré, situada no litoral sul do estado da Bahia; uma comunidade
étnica de afro-descendentes, tradicionalmente vinculada à pesca artesanal. Historicamente, os
moradores deste bairro, agrupados pelo pertencimento familiar, foram segregados no espaço urbano
por implicações raciais e sócio-econômicas. Com a introdução do turismo nos anos de 1990, o
bairro, que se preservou dos novos processos de ocupação, manteve suas práticas culturais e passou
a ser reconhecido como um reduto de “autenticidade” da cultura local. Pretendemos abordar os
processos de interação entre as esferas patrimoniais atuantes neste espaço turistificado, enfocando
particularmente a constituição da etnicidade dos moradores desta área.
Abstract: The article describes the process by which cultural heritage of Porto de Trás, a neigborhood
in Itacaré on the southern coast of Bahia, Brazil, has gained recognition. Porto de Trás is an ethnic
community of African Brazilians with a tradition of artisanal fishing. Historically, its residents,
organized in family groupings, have been segregated for their race and socioeconomic status.
Even with the arrival of the tourist industry in the 1990s and concomitant urban developments,
it maintained its traditional cultural practices, gaining recognition as an enclave of “authenticity”
referred to local culture. Interactions between the different spheres of heritage operating in this space
are discussed especially the construction of ethnicity by local residents
Keywords: Tourism; Ethnicity; Cultural Heritage; Itacaré (Bahia/ BR); African Brazilians.
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série de noções que se configuraram num dores que a cidade teve sua origem numa
vasto campo semântico. Justo por isto, aldeia indígena Guerém catequizada pe-
Gonçalves (2003) nos sugere posicionar o los jesuítas que aí vieram se instalar no
patrimônio como “categoria de pensamen- início do século XVIII e introduzir o plan-
to”, presente em toda e qualquer socieda- tio da cana-de-açúcar.
de humana. Em outras palavras, é neces- Os catequizadores construíram uma
sário identificar e comparar os diversos
contornos semânticos da categoria patri-
mônio para compreendê-la no tempo e no
espaço, estabelecendo as distinções entre
o que é normativo e o que é pragmático
sobre o patrimônio.
Isto significa dizer que em qualquer
situação que a questão patrimonial se
imponha, não devemos pensá-la como um
construto único, de amarras bem defini-
das e um sentido comum para o seu em-
prego. Seus sentidos e significados estão
diretamente associados aos atores, gru-
pos, agentes e agências que fazem uso Igreja de São Miguel e Monumento ao Cacau (Foto:
do conteúdo desta categoria, o que impli- Patricia A. B. Couto)
ca em afirmar que não necessariamente
um grupo ou segmento social que possui capela em homenagem a São Miguel e ba-
um patrimônio cultural faça uso desta tizaram a nova povoação de São Miguel
expressão de forma direta. Muitas vezes, da Barra do Rio de Contas no ano de 1718.
principalmente entre os grupos étnicos de Por sua extensa possibilidade de navega-
origem ágrafa, como é o caso dos morado- ção, ainda no século XVIII, o Rio de Con-
res do bairro do Porto de Trás, a compre- tas transformou-se no eixo de ligação en-
ensão do conteúdo patrimonial pode estar tre o interior da Chapada Diamantina e
condensada no plano simbólico, onde se o litoral, no qual São Miguel da Barra do
produzem os sentidos culturais. Rio de Contas servia como apoio náutico
Em termos etnográficos, tanto o “pa- devido às condições facilitadoras de sua
trimônio” quanto o “fenômeno turístico” foz. Assim, a pequena vila, devido a sua
podem ser qualificados como “fatos sociais localização no encontro das águas ribeiri-
totais” (Mauss, 1974) porque se caracteri- nhas junto ao mar, acabou por se consti-
zam como elementos mediadores que atra- tuir num ponto estratégico para embar-
vessam diversos planos simbolicamente que e desembarque de produtos da época
construídos no domínio social (Couto, e para o tráfico de escravos que serviam
2007b). Na situação em questão é o tu- às fazendas locais.
rismo, como “rizoma” (Barretto, 2003)3, A cana de açúcar não vingou como pro-
que em sua imprevisibilidade permite o duto regional. Foi somente em meados
engendramento de uma multiplicidade de do século XIX que a região do litoral sul
sentidos patrimoniais e produz uma nova do estado saiu de sua condição de forne-
consciência étnica nos moradores do por- cedora de produtos de subsistência para
to. ganhar relevância econômica e se tornar
a principal região produtora de cacau do
Um pouco da história do município estado (Falcon, 1995)4. A partir deste pe-
ríodo, o porto de Barra do Rio de Contas
De acordo com os habitantes do muni- ganhou um novo sentido. Como único vín-
cípio, a história de Itacaré se divide em culo de transporte náutico entre a região e
duas fases: antes e depois da construção a capital de São Salvador, passou a drenar
da estrada (1996-1998). Contam os mora- toda a produção cacaueira do sul do esta-
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bairro ícone da integração local atual, re- Digo ironicamente, porque no passa-
conhecido pela complexa mistura de seus do, durante o auge da cultura cacaueira,
habitantes - pescadores, surfistas e alter- os dois núcleos contíguos de ocupação, ti-
nativos; Conchas do Mar I e II, que em nham suas representações como lugares,
toda sua extensão litorânea concentra as remetidos ao espaço de moradia dos ne-
principais pousadas de bom padrão de Ita- gros, ex-escravos, servidores dos senhores
caré; São Miguel ou Alagados, um peque- do cacau, confinados no que os próprios
no trecho de habitações precárias entre a moradores do Porto e do Marimbondo
Pituba e os loteamentos da Concha; Alto denominam como a “antiga senzala da
da Ribeirinha, que vem se constituindo cidade”. A geografia deste confinamento
como um bairro de moradia para padrões
médio e alto em oposição ao seu vizinho
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“nível micro” se explicita através da cultu- Associação de Moradores que está plei-
ra compartilhada e cultivada pelo grupo, teando junto a Fundação Palmares o
que mesmo passando por uma longa traje- reconhecimento do Porto de Trás como
tória de estigma e segregação racial, não quilombo urbano, com o intuito de garan-
abre mão de seus valores, suas práticas e tirem a manutenção do território para as
de seu patrimônio cultural perpetuando-o famílias tradicionais locais, participarem
através de gerações. O nível médio surge das políticas de reparação propostas pelo
justamente quando os jovens do porto, ao Estado e gerarem capacitação profissional
saírem da localidade encontram a res- para a população jovem do Porto. Median-
sonância de suas praticas culturais de te o reconhecimento internacional das ri-
origem no “banco de símbolos” das afri- quezas patrimoniais do Porto, a prefeitu-
canidades afro-baianas contemporâneas, ra e as empresas turísticas locais, ainda
tomam consciência de seu patrimônio que de modo superficial, vem buscando
cultural e retornam com novos ideais, uma aproximação com os moradores, seja
valorizando a unidade e a coesão grupal, citando-os como patrimônio da cultura lo-
fundando inclusive, a Associação dos Mo- cal ou negociando sua inclusão nos calen-
radores do Porto de Trás, ainda em fins dários festivos.
da década de 1990. O contexto etnográfico atual nos re-
No nível macro o processo de reconhe- porta à De Vos (apud Vermeulen, H. e
cimento tem se dado num movimento di- Govers, 1994), segundo o autor, a proposi-
fuso, porém crescente. Embora o poder ção de organização social pressuposta por
público local, vinculado às velhas oligar- Frederic Barth, alega que a etnicidade,
quias da economia cacaueira tenha his- pensada enquanto organização social re-
toricamente ignorado as necessidades e quer interação regulada e como elemento
direitos dos habitantes desta área, a ar- da cultura implica na consciência da di-
ticulação dos moradores do Porto em tor- ferença, consciência esta que pode se dar
no de seu patrimônio, através de contatos em níveis tanto baixos quanto altos. No
com estrangeiros e turistas que visitam a primeiro caso, as pessoas aceitam as dife-
localidade de Itacaré e são atraídos pelas renças como adquiridas, não há um movi-
práticas culturais do bairro em busca dos mento étnico propriamente dito porque as
signos de “autenticidade da cultura local”, reflexões não ultrapassam as fronteiras
tem despertado o interesse de algumas do grupo. No segundo caso, a interação
ONGs internacionais, o que vem possibi- aumenta, o grupo toma consciência de sua
litando alguns benefícios para os morado- singularidade cultural e começa a exigir
res do Porto. seus direitos de reparação. A evidência
A título de exemplo, a CARE Brasil se dos fatos observados nos conduz a cons-
encarregou da construção dos banheiros tatação de que os moradores do Porto de
nas moradias do bairro, que até muito Trás vêm cumprindo a trajetória de cons-
recentemente só contava com um único tituição de uma etnicidade própria.
banheiro público. No ano de 2006, um
livro sobre “Biatatá”, uma lenda do Por- Conclusão
to foi confeccionado pelas crianças locais
e publicado pela editora espanhola Libre Ainda que consideremos o fenômeno
Obert, de Barcelona. Há cerca de três turístico como um “fato social total” que
anos, uma empresa turística internacio- provoca mudanças avassaladoras em qua-
nal financiou a construção de um centro se todas as sociedades onde aporta, é pre-
cultural no interior do bairro, solidifican- ciso observar que nem todas as mudanças
do um espaço anteriormente criado pelos implicam num processo de descaracteri-
jovens da “Tribo do Porto”, um grupo for- zação das culturas locais. Tal qual um
mado por capoeiristas da área. rizoma, este fenômeno imprevisível de-
Estes jovens, atualmente lideram a monstra que o movimento dialético é pos-
sível. No caso do Porto de Trás, o turismo,
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NOTAS
1 O presente artigo foi originalmente apresentado
no grupo de trabalho “Turismo, cultura e sociedade:
tradição e modernidade” da 27ª Reunião Brasileira
de Antropologia, realizada em agosto de 2010, em
Belém do Pará, Brasil. Agradeço especialmente as
contribuições de Barretto e Banducci no que se refe-
re a ampliação reflexiva deste trabalho.
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