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Resumo Absiract
O autor, identificando do ponto de vista con- The author, identifying from the conceptual
ceitual o que denomina “paisagem de histS- point of view what he calls “history landsca-
ria", faz um estudo cuidadoso do local atual- pe”, carries ot a thorough study of the place
mente chamado Museu Aberto do Descobri- currenily kiown as Museu Aberto do Desco-
mento, destacando os modos como forgas he- brintento (Open Musewn of the Discovery [of
gembnicas se apropriam dcsse espaço e o res- Brazil]). He points to the ways in which he-
significam, num processo engenhoso de ne- gemonic forces appropriate this space and
gociação imobilidria, de exploragio turistica, change its meaning, in an ingenious process
* Este artigo lem origem no subprojeto Paisagens de História, dirigido pelo autor no quadro dos projetos
Tdentidades: reconfigurações de cuitura e politica, apoiado pela Finep/Pronex (e que também conta
com o apoio do CNPq) e Construindo a Democracia: cidadania, nação e a experiéncia urbana con-
temporânea, patrocinado pela Fundação Rockefeller. Ele se apóia também na análise dos efeitos do
Projeto do Memorial do Encontro, sobre a população não-indígena da região de Porto Scguro, realizada
pelo autor para a elaboração do Estudo de fmpaeto Ambientul daquele projeto (Simbios, 1999). O
desenvolvimento da pesquisa acadêmica contou com a colaboração de Manuel Vieira da Conceição,
Junia Mehluns, Simone Frangeila, Pedro Okabayashi e Daniela Kuperman, tendo esta última partici-
pado de ambos os trabalhos, a pesquisa acadêmica e o EIA-RIMA. Este trabalho e às pesquisas que
lhe deram embasamento empírico contaram também com à destacada participação de Álvaro D' Antona.
** Professor titular de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (São Paulo) e consultor. Foi
presidente da Associação Brasileira de Aniropologia e do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,
Antístico. Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat). Publicou diversos trabalhos
sobre cultura e política, entre os quais destacam-se Produzindo o passado (São Paulo, Brasiliense,
1983). Desenvolvinento e direitos humanos: a responsabilidade do untropólogo (Campinas, Eduni-
camp, 1992), “Cidadania”, número temático da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
{Riv de Janeiro, Iphan, 1996). Paisagens paulistanas: transforimações do espaço público (Campinas,
Edunicamp, 1999) ¢ O espaço da diferença (Campinas, Papirus, no prelo).
TIntrodução
O presente estudo tem como pano de fundo a formação cconômica, política, social
e simbólica de uma área do extremo sul do estado da Bahia, que teve como pólo de
irradiação a cidade de Porto Seguro e recobre uma rede de sítios históricos ¢ arqueo-
lógicos associados ao início da ocupação portuguesa de terras da América meridional.
A delimitação dessa área, atualmente denominada Muscu Aberto do Descobrimento, foi
em termos financeiros uma das principais iniciativas do governo brasileiro e baiano
visando à comemoração do V Centenário, O ponto focal destas reflexões é a região de
Santa Cruz Cabrália e Coroa Vermelha, uma das áreas mais sensíveis desta rede de
sítios históricos. Sendo este, como se sabe, o lugar do desembarque de Pedro Álvares
Cabral em 1500, o sítio, o seu entorno e a população indígena aí residente têm estado,
nos últimos anos, na mira de diversas iniciativ: governamentais e empreendimentos
comerciais direta ou indiretamente associados à temática do descobrimento.
Do ponto de vista conceitual, trata-se aqui de identificar e compreender o sentido
de um conjunto de prati formadoras do que denomino paisagem de história. Convém,
portanto, iniciar por uma reflexão — ainda que breve — sobre o sentido em que util o
essa expressão.
As sociabilidades contemporâncas são estruturadas primordialmente pelo e para o
mercado. Se o setor financeiro foi a esfera em que primeiro se consolidaram os processos
e as tendências hoje identificados como formadores da alta modernidade, 0 sem dúvida
a circulação e o consumo de bens culturais um dos principais ingredientes das mudanças
que ocorrem nos estilos de vida e na formação de fronteiras simbólicas em toda parte.
Mas — é sempre útil insístir — longe de simplesmente gerar homogeneidade, o mercado
de produzi sentidos
estimula a geração e a circulação de todo tipo de recursos capazes
de lugar e de diferença. Atualmente, os marcadores de identidade tendem a projetar os
contextos tocais num panorama que é internacional (no sentido de que condensa uma
O extremo sul da Bahia corresponde grosso modo A região costeira da antiga Ca-
pitania de Porto Seguro. Desde o período colonial, o processo de ocupação dessa área
teve como metas @ extração de recursos naturais (como o pau-brasil), estratégias de
controle territorial (como o estabelecimento de entrepostos comerciais no litoral e al-
deamentos jesuítas) ¢ a progres iva introdução da cana-de-açúcar, auvidade que motivou
grandes investimentos e que, ao lado da pecudria, consumiu grandes extensdes de mata.
O impacto desse processo sobre os recursos naturais da regido não tardou a se
tornar visivel. Um manifesto de 1886, por exemplo, denuncia que nos engenhos e for-
nalhas do sul da Bahia “cada carrada de cana requer outra de lenha, assim vindo a
suceder que aqueles que não possuem grandes matas não fabricam açúcar”, *
A integragio do extremo sul à outras regides do país foi determinada pelo padrio de
ocupação territorial gerado pela economia calonial, que tinha os portos como pontos de
partida para à formação de ndcleos de povoamento e a via maritima como principal meio
de comunicação. Na década de 1950, alterou-se o padrão litorineo de ocupaglo gragas à
abertura da BR-101, que induziu a formaglo de núcleos de povoamento no interior.
O extrativismo predominou no extremo sul até os anos 1970, gerando uma agressiva
destruigio da Mata Atlântica até as fronteiras de Minas Gerais. Em 1973, a finalização
do asfaltamento da BR-101 promoveu delinitivamente a integragio do extremo sul &
cconomia nacional, acarretando, em função da disponibilidade de terras de baixo valor,
intensificagio da migração e diversilicagio dos investimentos.
As sucessivas divisdes de municipios originalmente extensos ¢ muito fracamente
povoados, a partir de 1950, permitem visualizar este processo de reordenação espacial
¢ reestruturação de relações socioeconômicas, no qual centros ccondmicos cmergentes
deslocam à centralidade econdmica de Porto Scguro na região.” As antigas vilas de
bela 1
Popula ro ¢ de Santa Cruz Cabrilia
Variagio da populagio entre 1970 ¢ 1996
70780 50791 51796
1970 1980 99D 1996 S ç Anval | (%) Anual| (%) Anual
Var Tx Var Tx Var Tx
%) (%) (%)
Bermonte TT0 3556 o Tose| nos 068|205 022 952 200
Portoa Seguro 33008 46,300 34,600 ndYS7| 3985 341/-25,14 -285[ 8741 6.48]
[TOTAl 81339 118231 154658 21501450 4534 381] 3081 2,72] 3901 3.36
Tabela 2b
Municipios da regi ul da Bahia
Evolução da taxa de urbanizagio de 1990 a 1996
1990 1996
Iihcus 64,46 71.20
Tiabuna 958 97,02]
Belmonte 49,21
Cruz Cabrilia 48.92
Eunipolis 90,07
Porto Seguro
tabela
Prado
Mamaraju
Caravelas
[Teixeira de Ficitas
Fonte: IBGE — Contagem 1996: (BGE — Censo Demográfico 1990
A partir dos anos 70, a população do extremo sul passou a ser predominantemente
urbana. Em 1996, as maiores taxas de crescimento urbano foram verificadas em Itabuna
(95,84%), Eunápo (90,07%) e Teixeira de Freitas (86,76%), cidades que se formaram
como centros de converg mneia de serviços e receptoras de mão-de-obra, em função das
oportunidades de negócio e emprego que ofereciam.*
Tabela 3
Mesorregiiio sul da Bahia
Crescimento populacional no perfodo 19911996, por sub-regides
1991 1996 Z 96/91
Baixo Sul 239.625 248 462 3.69
Cacaucira 1.142.189 1.137.465 -0.41
Extremo Sul 533219 602,903 13.07
Sul da Bahia 1.915.033 1.988.830 3,85
a operação dos Centros ‘Turisticos tem uma estrutura similar à dos shopping centers, sendo
gerenciada por uma administradora do condominio, coquanto que a administração e ex-
ploração dos hotéis ¢ condominios residenciais poderd ser realizada por administradores
independentes e/ou operadorcs.
10 Prodetur, 1992, p. 1
11 Prodetur, 1992, pp. 104-19
12 Prodetur, 1992, p. 42
13 Prodetar, 1992, p. 3
14 Prodetar, 1992, p. 3.
15 “A partir de 1991, a BAHIATURSA adotou uma série de wedidas, de forma a tornar a Bahia competitiva
no mereado intermacional, Entre elas, realizou campanhas promocionsis intensívas nos principais mercados
emissores nacionais ¢ internacionais, com nfaxe nó mercado agentino. No período 1991-1993, foram
investidos 23 imilhões de dótares” (Codetur, cap. 1V, 1997),
16 Codetur. 1997, cap. VI
Mapa 1
Principais cidades, vilas e povoados na Costa do Descobrimento
O Muscu Aberto do Descobrimento (Made) foi criado por meio do Decreto Federal
1874, de 22/4/1996, com basc na iniciativa de uma entidade privada, a Fundação Qua-
drilátero do Descobrimento, que em 1993 propunha — nos moldes do Prodetur — a
criação de um “parque temático, pensado como um grande cenário da civilização bra-
sileira e das outras culturas de língua portuguesa ou que solreram a sua influência”.
Segundo aquela proposta, à área abrangeria S00km*, com 52km de praias entre os rios
Caraíva ¢ Buranhém, formando o que se descreve como um grande salão de exposição
ao ar livre onde as peças principais seriam as vilas de Caraíva, Trancoso, Arraial d' Aju-
da e a cidade de Porto Seguro™
De acordo com a minuta de plano diretor”*, que foi o principal documento de
referência utilizado nas poucas reuniões públicas que se fizeram sobre o assunto,
¢ a implantação, prevista para se eletivar até o ano 2000 das seguintes obras prioritá-
rias:??
— APA — Espago do Primeiro Contato, na foz do rio Caí, município de Prado.
— Marco Oceânico do Avistamento no Mar, na direção do Monte Pascoal.
— Parque Nacional de Monte Pascoal, faixa que se prolonga do litoral ao interior,
entre os rios Caraíva ¢ Corumbau.
— APA — Projeto Quadrilátero do Descobrimento, abarcando a faixa litorânea entre
o rio Caraíva ¢ o Buranhém e abrangendo os seguintes empreendimentos: Pólo Ecoló-
gico da Mata Atlântica, Muscu Pero Vaz Caminha, Museu da Língua Portuguesa, Me-
morial Portugal, Memorial Brasil, Centro de Referência da Cultura Indígena, Muscu da
Companhia de Jesus, Centro de Referência da Cultura Negra e Pólo Ecológico Marinho.
Esse projeto — em sua formulação inicial — mostrou-se inviável em função do forte
impacto que provocaria sobre os modos de vida de uma população de aproximadamente
60.000 pessoas e por recobrir uma séric de unidades jurídico-administrativas diferencia-
18 Fundação Quadrilátero do Descobrimento. Miseu Aberte de Descobrimento: o Brasil renasce onde nasce.
São Paulo, Grálicos Buriti. [994.
19 Projeto elaborado pelos arquitetos Maria Elisa Costa ¢ Paulo Jobim.
20 M. E. Costa, 1997, p 2
A culturafcultivo do turismo
21 Além de Caraíva, Trancoso, Arraial d' Ajuda e Porto Seguro, à drea abrangia outros dois núcleos utbanos
(Vale Verde e Santa Cruz Cabrália) ¢ às ter as indigenas Pataxó de Barra Velha, Águas Belas, Co-
rumbauzinho, Aldeia Velha, Coroa Vermelha e Mata Medonha, que incluem as aldeias de Barra Velha,
Boca da Mata, Meio da Mata, Imbiriba ¢ Trevo do Parque.
22 Exemplos são os protestos da prefeituca de Prado em relagio à colocagio de um único portal simbólico
de acesso a0 Made na estrada Eunápolis/Porto Seguro ¢ ndo naguele municipio, o que segundo os
seus porta-vores contribuiria para reforgar a centralidade de Porto Seguro em toda a região. Assim
também, ela tem protestado pelo fato do programa comemorativo do V Centenário não destacar con-
venientemente 6 Monte Pascoal ¢ o Rio Cai, referéneias e atrativos localizados naquele município,
Tabela 6
Porto Seguro ¢ Santa Cruz Cabrália
Capacidade de hospedagem em 1994
Hospedagem Porto Seguro Santa Cruz
Cabrália
Leitos hoteleiros 12720 1609
Aparts 830 102
Areas de camping 9 2
Residéncias secunddrias 5357 1359
Pensões 3725 753
Fonte: Codetur (1997, p. 39)
26 Codetur, 1997, p. 23
27 Ver Tabela 3
28 Toffani, Frederico de Pauta. The chalenges of sustainable development in coastal setiings under of
tourism: the case of Porto Seguro in southern Habia, Brasil, 2 ., 1996, p. 161 ¢ p. 251
29 Urplan. 1997, p. 4
O crescimento populacional que vem se dando desde a década de 70 ndo foi acom-
panhado pela ampliagao correspondente de servigos públicos e pela criação da necessdria
30 Além desses problemas, a Base da dados para o Perfil Sócia-Econômica do Municipio de Santa Cruz
Cabrátia (CAR, 1996) menciona “a questão iniígena” e o fato de “1/3 do munictpio pertencer 2
Construtora Norberto Odebrecht” como problemas que agravam a questão sdcio-ambiental no muni-
cipio.
atualmente os benefícios do turismo [em Coroa Vermelha) são muito pequenos é os pre-
juizos muito grandes. À quantidade de lixo é muito grande. O artesanato é misturado. O
turista se sente perturbado sentindo aquela miscigenação, Quem visita Coroa Vermelha não
se hospeda 14,
Coroa Vermelha é uma favela, é uma vergonha! Precisamos preparar Cabrália à altura,
para que no ano 2000 possa receber os visitantes que vão chegar aqui! As pessoas estão
morrendo aí dentro de doenga.
A estas condições de vida soma-se toda uma série de conflitos mal-resolvidos com o
poder local e com especulador:
O principal invest mento planejado no contexto do V Centenário para Coroa Ver-
melha foi o chamado Memorial do Encontro, projeto arquitetdnico e urbanistico de
Wilson Reis que visava a construgiio de um museu, uma árca comercial ¢ um monu-
mento comemorativo. De um modo geral, a população envolvida tinha expectativas
bastante positiva em relação a cste ¢ outros investimentos que se plancjaram em função
das comemoragSes. Em primeiro lugar, eles poderiam tornar vidvel a extrusio da po-
pulação niio-indigena, que se encontrava pendente desde a homologagio da demarcagio
de Coroa Vermelha como terra indigena, em 1998, Além disso, poderiam melhorar as
condições de a na aldeia e a sua infra-cstrutura urbana, bem como as condições de
atendimento dos turistas ¢ visitantes.
Contudo, o projeto que efetivamente se pretendeu implantar foi motivo de muito
protesto por parte dos próprios pataxós e de organizações indigenistas, ambientalistas
e prolis: onal , tornando-se objeto de criticas ¢ sérias restrições técnicas.* Como resul-
tado dessas pressdes, foram revistos os fundamentos do projeto original, ¢ as obras que
se efetivaram, atendendo às restrigdes e orientações leitas pelos órgãos reponsdve pela
36 A propósito deste tema, é ilustrativa a imatéria publicada pelo jornal O Globo em sua edição de 31 de
dezembro de 1999, que teve como resposta uma manifestação dos antropólogos da Universidade
Federal da Bahia, da qual reproduzo à seguinte passagem: "o argumento central presente na matéria
(.. parece ser o de que os Pataxós não teriam direito às terras que efetivamente ocupam no Sítio
Histórico de Coroa Vermelha por estarem ali desde o início da década de 70 e não desde 1500, Este
argumento é plenamente contestado pelos pesquisadores com base nos estudos antropológicos e nos
fundamentos jurídicos da questão: “Ao chegarem a Coroa Vermelha, (...) aí construíram uma tradição
própria bascada, inclusive, no diálogo cultural com à sociedade nacional em tomo de *teimas' como
o antesanato indigena ¢ o imaginário nacional sobre o episódio do descobrimento. É. precisamente
nisto que se baseia o direito pataxó às terras ()"
Não só Coroa Vermelha mas todo o município de Cabrália ¢ grande parte de Porto
Seguro estão sendo transformados em dreas dependentes de uma só atividade: o turismo
e seus derivados. Essa tendência, que por si só é alarmante, agrava-se com a decadência
conjuntural do setor na drea:
taxa de ocupação média baixa, diária média baixa; gasto médio de turista por dia baixa;
quantidade rege antes da qualidade de serviços; atrativos turísticos cada vez mais fáteis ¢
comerciais; vida útil, padrão e porte da infra-estrutura hoteleira desvantajosos; falta de
gestão coordenada do setor turístico privado; falta de cuidado do espaço público ¢ do
Tecurso natural; comércio/serviço turístico massificado, uniformizado e com concorréncia
degradatória (comércio ambulante versus formal), sístema de arrecadação tributária dese-
quilibrado, concessões de uso sem relação custo- benefício equilibrada ete.””
Esse quadro tem como agravante o fato da revolução trbana em curso não ter sido
precedida pelo planejamento, apesar de o Plano de Referên Urbanístico-ambicntal
(PRUA) da Zona Turística de Porto Scguro ter alertado, em 1997, para a necessidade
de se “preservar a atratividade, sanidade e funcionalidade tanto dos niicleos individuais
quanto do conjunto do Centro Turístico como destino turístico”, Diante do grau de
dependénci da exploração dos atrativos turísticos, que, na região, aquele estudo con-
»
siderava “insano”, tornava-se imperativo defender a gualidade do destino turístico
Embora aparentementebenéficas à curlo prazo, essas recomendagdes têm efetivi-
dade limitada, pois clas excluem os interesses, as possibilidades ¢ os impedimentos da
populagdo residente. No caso da região de Porto Seguro, este é 0 cerne mesmo da
37 Usplan, 1997,p. §
38 Urplan, 1997, p. 7.
Em conclusão, a problemática