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”Lugares da memória” no Estado

do Paraná: demandas e políticas pela


preservação do patrimônio cultural

Teresa Jussara Luporini*

RESUMO

A sociedade brasileira vive entre a falta de uma política cultural por parte
das autoridades constituídas e a onda de preservação de diferentes memórias
por variados segmentos da população. A investigação apreende um dos mo-
mentos deste contexto, enfocando a preservação da memória como possibili-
dade de reinterpretação do passado, na constituição do espaço vivencial, no
cotidiano e no presente. Analisa a política cultural formulada e adotada pelo
governo do Estado do Paraná, na gestão 1991-1994. Recorta,
metodologicamente, a política setorial da área da cultura optando pela análise
das ações desenvolvidas, no âmbito da preservação, que apontam para a cons-
tituição de um inventário de bens culturais destinado a manter/consolidar a
identidade cultural paranaense e, neste sentido, criando “lugares da memória”.
Por meio da análise documental em registros oficiais, interlocução com os
atores sociais envolvidos – autores, gestores e agentes de coleta de dados
contatados, direta ou indiretamente via entrevista e questionários –, verificou-
se como as ações foram postuladas, a nível do discurso e, se a postura assumi-
da pelo governo respondeu a demandas, existentes ou emergentes, na socieda-
de paranaense. Constatou-se que ocorreu a criação de um espaço para o
surgimento/implementação da consciência preservacionista nos municípios
paranaenses atingidos pela proposta governamental, embora não se tenha efe-
tivamente colaborado para a democratização da cultura e a socialização do
conhecimento, nos níveis idealizados pela política oficial. Evidenciou-se que
a questão patrimonial está articulada à questão cidadã e é a formulação de
políticas culturais de inspiração democrática que afasta o enfoque conserva-
dor, xenófobo, saudosista para dar lugar à consciência do uso social do

* Professora da Universidade Estadual de Ponta Grossa - Doutora em Educação.

Olhar de professor, Ponta Grossa, 1(1):115-128, out. 1998.

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patrimônio cultural, permitindo a democratização dos espaços culturais e a s
socialização do conhecimento da realidade patrimonial paranaense.

Palavras-chave: políticas públicas, patrimônio cultural, educação patrimonial,


preservação da memória

A preservação do patrimônio cul- tigas fábricas, estações ferroviárias


tural ainda não é vista pela socieda- desativadas, das festas e comemora-
de brasileira e, especialmente, pelas ções, dos prédios e monumentos e de
autoridades constituídas, como um fa- tantos outros símbolos da presença
tor primordial diante das formidáveis material do homem, tanto por parte
tarefas de se permitir acesso à edu- das autoridades constituídas quanto
cação, habitação e saúde à maioria da de segmentos da sociedade civil.
população. Esta investigação procura apreen-
Entretanto, é preciso refletir so- der um dos momentos desse contex-
bre a possibilidade de se implementar to, enfocando a preservação da me-
de alguma forma a discussão sobre o mória como possibilidade de
resgate e preservação de diferencia- reinterpretação do passado na consti-
das memórias que são explicativas do tuição do espaço vivencial, no cotidi-
“modus vivendi” das comunidades ano e no presente.
espalhadas pela imensidão do terri- O estudo buscou o entendimento
tório brasileiro. das práticas de governo na área cul-
A compreensão do modo como tural, ao constituir um espaço de po-
essas comunidades se constituíram e der pela produção de uma série de do-
desenvolveram, em passado próximo cumentos que constroem um discur-
ou remoto, pode explicitar as relações so sobre o tema da preservação da
de poder que são vigentes até os dias memória.
atuais e que se constituem em obstá- Para tanto, foi analisado o plano
culos às tentativas de mudança de de- de ação do Estado, estabelecendo os
terminadas estruturas sociais, indicativos de sua concepção e exe-
reprodutoras das tremendas desi- cução, uma vez que foi somente nes-
gualdades que assolam a população ta década que, pela primeira vez, o
brasileira. governo paranaense criou um progra-
Embora não exista uma política ma que objetivou a elaboração de um
oficial consistente, nunca se assistiu inventário de bens culturais que atin-
como atualmente, a uma onda de pre- giu significativa “amplitude territorial
servação da memória das famílias (es- e temática”, e, segundo sua ótica, pri-
pecialmente de imigrantes), das ins- vilegiou os eixos de democratização,
tituições, dos caminhos, das ruas, das descentralização, socialização e pre-
praças e jardins, dos bairros, das an- servação da identidade paranaense.

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Pretendeu-se verificar como as ciência em relação ao patrimônio, não
ações foram postuladas em nível do só no Brasil, como em toda a Améri-
discurso e indicar se a postura que o ca Latina.
Estado assumiu responde a demandas O primeiro deles é o seu caráter
criadas, existentes ou emergentes na abrangente que se manifesta na pró-
sociedade paranaense. Para tanto, ana- pria conceituação do termo, que pas-
lisou-se especialmente a política sa de patrimônio histórico para
setorial desenvolvida pela Coordena- patrimônio cultural. Isso denota um
doria do Patrimônio Cultural da Secre- distanciamento de um enfoque
taria de Estado da Cultura - SEEC/PR. limitador, centrado em aspectos ape-
A tentativa de intelegibilidade do nas históricos, estéticos e oficiais, e
projeto governamental representou uma aproximação com outras áreas
uma opção metodológica pois exami- que passam a qualificar o termo
nou a política cultural paranaense ape- patrimônio - edificado, natural, antro-
nas pela ótica da questão patrimonial, pológico, urbano, ecológico, científi-
um dentre os aspectos que a caracte- co e outros - resultando, portanto, na
rizam; procedeu à análise do projeto expressão patrimônio cultural, que
governamental procurando aprender não deixa de incluir o histórico 1. Este
se os fundamentos da proposta cultu- novo conceito passa a direcionar as
ral estão articulados com princípios ações de preservação que começam a
democráticos destinados à preserva- contemplar outros tipos de edifica-
ção patrimonial. ções – que não apenas as construções
Por meio das intenções contidas oficiais, eclesiásticas e da sociedade
no projeto e ação governamental e da dominante – mas, também, aquelas
percepção construída em função dos que testemunham as atividades coti-
dados coletados, procurou esboçar os dianas do homem de diferentes seg-
desafios e as opções para a formula- mentos sociais, assim como suas ma-
ção de uma política cultural, de ins- nifestações de saber, fazer e lazer (esta
piração democrática, fundamentada postura marcadamente da última dé-
na participação social. cada).
A busca dessa percepção está ar- Especialmente no que se refere às
ticulada à existência de elementos que discussões sobre patrimônio históri-
caracterizam o crescimento da cons- co, observa-se que o desenvolvimen-

1
A este respeito ler MAGNANI, José C. Pensar grande o patrimônio cultural.LUA NOVA, 19--; Hughes
de VARINE-BOHAN, professor francês e técnico internacional daUNESCO, pioneiramente expressou a
preocupação em visualizar a questão do Patrimônio Cultural na perspectiva abrangente e
interdisciplinar, dividindo-o em três grandes categorias: elementos pertencentes à natureza (re-
cursos naturais/habitat natural); ao conhecimento (técnicas; ao saber, ao saber-fazer); bens cul-
turais propriamente ditos (objetos, artefatos, construções).

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to urbano, mercantilização, as indús- novos meios, o que exige uma
trias culturais e o turismo são reconceitualização do patrimônio cul-
visualizados como ameaças aos atu- tural.
ais processos de mudança. Daí decorre a ampliação do con-
CANCLINI(1994) indica que tais as- ceito de patrimônio, considerando a
pectos devem ser concebidos como apropriação de conhecimento via in-
contextos onde atualmente se inserem dústria cultural, as novas tarefas para
o patrimônio histórico e a identidade as políticas culturais em razão dos
nacional, marcados pelos “processos possíveis usos sociais do que foi pro-
de urbanização, industrialização e duzido no passado e da incorporação
massificação da cultura, as migrações ao patrimônio de produtos da cultura
e a transnacionalização de bens ma- popular.
teriais e simbólicos, a globalização e O segundo aspecto que caracteri-
as formas de integração econômica”, za o crescimento da consciência
que redefinem a conceituação do que preservacionista é a mudança de “es-
se infere por nação (p.95). cala da noção de patrimônio”, que
A mudança dessa concepção está passou da obra singular ao conjunto
articulada a uma posição de que a na- urbano ou territorial”. Desse modo
ção extrapola o conjunto de bens e ocorre, também, a mudança na
tradições originárias, mantidos em li- “metodologia e na problemática abor-
mites geográficos onde historicamen- dada” (Cf. GUTIERREZ, 1992, p. 121).
te se localiza uma população. Isto Significa dizer que não basta mais
porque seus habitantes mantêm rela- tentar a preservação, via decreto, de
ções de intercâmbio com outros paí- prédios do poder constituído, mas ten-
ses via estrangeiros ou imigrantes, tar impedir a destruição do patrimônio
tanto diretamente quanto via novos construído via conscientização das
meios de comunicação, reproduzindo, populações e da racionalização do
assim, por diferentes formas, a cultu- crescimento urbano. Assim, as inici-
ra nacional. ativas de intervenção passam a con-
Nessa perspectiva, as linguagens siderar a ação das comunidades e a
como rádio, televisão, cinema, vídeos encarar o patrimônio construído como
e discos se convertem em meios es- um “capital concentrado” passível de
tratégicos para o registro e divulga- ser reutilizado para habitação de seus
ção cultural da própria comunidade moradores atuais, evitando o enfoque
que os criou, integrando o patrimônio, exclusivamente turístico.
embora de forma diferente de outros Observam-se, nesse aspecto, duas
bens culturais tradicionalmente con- questões distintas: a possibilidade
siderados, mas extremamente im- concreta de intervenção de diferentes
portantes no mundo atual, caracteri- segmentos da população e a consci-
zado pela presença maciça desses ência dessa mesma população de que

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pode interferir na definição das estra- culturais brasileiros, em seus múlti-
tégias para a preservação e, portanto, plos grupos sociais, pode-se inferir
para a formulação de políticas cultu- que a tarefa de organizar um “conjun-
rais. to de bens” que seja representativo do
Nesse sentido, destaque-se a di- país, protegido oficialmente, é tarefa
ferenciada capacidade dos diversos delicadíssima que representa uma
grupos sociais de se apropriarem da opção que serve a interesses determi-
herança cultural. A participação de- nados.
sigual se reflete na hierarquização dos E é pela explicitação dessa subje-
capitais culturais. Mesmo legislações tividade na composição do patrimônio
democráticas de órgãos oficiais que cultural “oficial” que atualmente se
legitimam diferenciados modos de observa a tentativa de incluir no con-
organização e expressão da vida so- junto de bens nacionais aqueles que
cial não evitam o acesso preferencial representam, de alguma forma, as
dos grupos sociais que se colocam classes menos favorecidas economi-
hegemonicamente na produção e dis- camente, os grupos marginalizados,
tribuição dos bens culturais. Assim, a mas que participaram de maneira efe-
essência da desigualdade na compo- tiva para firmar presença e atuar de-
sição do patrimônio coloca a perspec- cisivamente em circunstâncias histó-
tiva de que ele seja estudado como rico-político-econômico-sociais, no
arena política em que se confrontam passado e/ou no presente. 2
diferentes visões de classe, etnias e JEUDY (1990), refere-se a esse
grupos, presentes na sociedade con- movimento refletindo sobre os limi-
temporânea. tes do patrimônio, os quais são esta-
A atuação popular na definição de belecidos por “critérios históricos es-
perspectivas de preservação esbarra téticos” e que podem privilegiar mo-
nas tensões entre o saber técnico dos numentos e obras de arte em detri-
profissionais que atuam na área cul- mento de objetos considerados de
tural e as iniciativas de intervenção menor significância, o que já repre-
dos habitantes da cidade, e o que senta uma seleção, opção.
subjaz a essas iniciativas que se vin- Sua reflexão vai mais além, ao
culam à identidade cultural. indicar que a questão atual sobre o
Analisando a riqueza de padrões sentido do patrimônio não está volta-

2
WILLIANS apud CANCLINI (1994) indica que o processo social de desenvolvimento do
patrimônio engloba três dimensões a serem consideradas: o arcaico “que pertence ao passado” e
é reconhecido como tal por quem hoje o revive; (...) o residual se formou no passado, mas se
encontra em atividade dentro de processos culturais; o emergente designa novos significados e
valores, novas práticas e relações sociais (p. 108).

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da, exclusivamente, para o que deno- rentes tipos de organizações tanto do
mina de “monumentalidade, 3 mas que setor industrial e do imobiliário como
se direciona para uma nova perspec- do turístico, que tratam o patrimônio
tiva que se configura na “valorização pela lógica competitiva. Sua atuação
das memórias coletivas”. Tal só pode ser freada se existirem pro-
posicionamento se expressa ao ultra- postas oficiais que zelem pelo
passar os signos que representam o patrimônio, enquanto um bem públi-
nobre, o religioso, o estético – “cas- co, definindo a regulação do desen-
telos, igrejas, obras de arte” – para volvimento econômico setorizado, no
considerar o que reflete as atividades sentido de proteger interesses coleti-
econômicas – “objetos artesanais, in- vos.
dustriais e agrícolas” – e os modos de No que se reporta à atuação do
viver, pensar e comunicar. Deixa, as- Estado, sua relação com o patrimônio
sim, de considerar como função é contraditória, porque ao mesmo
patrimonial apenas a guarda e conser- tempo que o qualifica como represen-
vação de objetos representativos/ tação da nacionalidade – agindo
evocativos do passado, para investir institucionacionalmente ao recuperar
no presente. sítios arqueológicos e centros histó-
Neste aspecto, enquanto espaço de ricos, criando museus, publicando
competição econômica, política e materiais voltados à preservação da
simbólica os usos do patrimônio es- memória – o utiliza como recurso para
tão assinalados por uma tripla dimen- a criação de uma identidade comum,
são: a ação privada, o Estado e os compartilhada, diluindo especificida-
movimentos sociais. Esses usos são des e conflitos de sua variada com-
caracterizados conforme a perspecti- posição. Neste aspecto registra-se a
va de interação entre as três dimen- presença dos movimentos sociais que,
sões. junto ao governo, traduzem a direção
Isso se dá porque, no que se refe- que o Estado deveria assumir na pre-
re ao setor privado, sua atuação nor- servação patrimonial.
malmente se expressa pelo uso Os movimentos sociais têm se
desordenado dos recursos ambientais destacado na defesa do patrimônio
e do espaço urbano, pela fúria edificado, urbano e ambiental, ocu-
especulativa imobiliária, em prejuízo pando um espaço ainda pouco consi-
dos bens culturais e dos interesses de derado pela política cultural. Porém,
parcelas majoritárias da população. a criação de uma consciência coleti-
Tais procedimentos derivam de dife- va em relação aos usos sociais do

3
Monumentaliadade – o termo utilizado para indicar monumentos históricos que definem “uma
ordem simbólica do passado”.

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patrimônio está longe de ser uma rea- de de realmente fazer valer os direi-
lidade. A mobilização popular, que tos definidos em lei, criando novas
tem se mostrado competente em situ- possibilidades de interferência na re-
ações de crise, tende a diminuir quan- alidade cotidiana.
do elas são solucionadas ou ameniza- Nesse sentido, o indivíduo deixa
das, uma vez que as classes menos pri- de ser apenas alvo do estatuto jurídi-
vilegiadas da população são obrigadas co para converter-se em cidadão, ati-
a enfrentar diuturnamente as questões vo no universo político, como sujeito
mais imediatas do cotidiano. que reivindica e que pode influenci-
Apesar disso, em suas diferentes ar, em maior ou menor grau, a mu-
vertentes, os movimentos sociais vêm dança social.
contribuindo para uma mudança de Na perspectiva do exercício da
posicionamento do setor público, es- cidadania, a articulação entre a cons-
pecialmente porque a questão do tituição do patrimônio e as políticas
patrimônio tende a ser visualizada, preservacionistas são extremamente
não somente como atribuição gover- atuais e fundamentais no contexto
namental, mas como responsabilida- contemporâneo porque, nas últimas
de dos diferentes segmentos sociais décadas, em nível planetário, vem se
mobilizados por contingências coti- concretizando uma política preser-
dianas comuns. Assim, a apropriação vacionista, especialmente no que se
democrática do patrimônio depende refere aos aspectos ecológicos. Nesta
da criação de condições materiais concepção a preservação de bens cul-
para que os diferenciados grupos so- turais/naturais se coloca como funda-
ciais possam nele encontrar uma sig- mento para a garantia de direitos uni-
nificação, compartilhando-o (cf. versais que ultrapassam especificida-
CANCLINI, 1994, p.95-114). des nacionais/locais. Assim, as polí-
Em tal enfoque, o objetivo de uma ticas culturais vêm perseguindo a in-
política cultural deixa de ser apenas a corporação de perspectivas cidadãs e
preservação do passado para conver- de garantia de direitos culturais.
ter-se na ampliação do espaço de par- Enquanto sujeito do contexto só-
ticipação no presente, o que envolve cio-político, o cidadão colabora para
o espaço da cidadania 4. Esta, enten- a construção de uma outra historici-
dida não só no seu suporte jurídico- dade, que não aquela imposta pelo
institucional, mas como possibilida- patrimônio tradicionalmente conside-

4
O termo entendido como conjunto de direitos civis, políticos e sociais aos quais correspondem
a cidadania civil – liberdade individual e direito à justiça –, a cidadania política – exercício de
participação na esfera política (eleições, etc...) –, e a cidadania social – direito ao bem estar, à
segurança, à educação e cultura, à previdência e assistência social (cf. MARSHAL, T. H. Cida-
dania, status e classe social).

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rado, a qual permita a formulação de função de que a memória é elemento
uma nova linha de intelegi-bilidade, fulcral da identidade, seja individual,
não só do passado, mas das lutas co- seja coletiva, cujo resgate/determina-
tidianas no presente. São essas lutas ção constitui-se numa das tarefas fun-
que podem garantir-lhe os seus direi- damentais para os indivíduos e para
tos culturais, inseridos em sua cida- as diferentes sociedades.
dania social; direitos que devem per- A questão da identidade dos dife-
mitir a ele tanto a sobrevivência quan- renciados grupos humanos está arti-
to o direito à memória, a criação e o culada aos locais onde se cristaliza e
acesso aos bens culturais, o que ne- se refugia a memória, a que NORA de-
cessariamente envolve as questões da nomina “lugares da memória”. Eles
memória e da identidade cultural. são criados em função da “aceleração
Justamente por tais razões o da história”, em meio dos fenômenos
estudo da memória, enquanto possi- do mundo contemporâneo como a
bilidade de vestígio, de registro que mundialização, a massificação, a
se faz e refaz na riqueza da experiên- mediatização. Os “lugares da memó-
cia humana, tem sido alvo do interes- ria” materialmente apresentam-se
se da discussão historiográfica na ten- como vestígios, restos, testemunhos
tativa de criar campos documentais do que já passou. Seu tempo é o que
baseados em seu registro. Isto se dá se expressa pelo desaparecimento da
porque a memória é visualizada tanto essência íntima da memória para
no seu caráter seletivo – ao privilegi- reviver sob a operação intelectual que
ar determinados registros –, como ao constrói a História.
seu caráter de criação – porque pode “Os lugares da memória nascem
ser produzida com objetivos bem de- e vivem do sentimento que não há
finidos. memória espontânea, que é preciso
LE GOFF (1990), em seus estudos criar arquivos, que é preciso manter
sobre essa temática, indica que a his- aniversários, organizar celebrações,
teria da sociedade em preservar a sua pronunciar elogios fúnebres, notariar
memória expressa o quanto esta se atas, porque essas são operações na-
torna importante. Especialmente para turais” (NORA, 1993, p. 12). Assim se
os poderes constituídos, com o obje- constituem registros de minorias,
tivo de exercer o controle social. Des- apoiados por uma gama de produto-
taca, com base em NORA (1990), em res tradicionais de arquivos: as gran-
que medida, na atualidade, a História des famílias, a igreja e o Estado. En-
está pressionada pelas memórias co- tretanto, a crescente democratização
letivas, a partir dos estudos dos locais da sociedade, a atual consideração à
onde as mesmas se encontram: memória de marginalizados, a valo-
Isto se coloca como imperativo rização de fontes da nova cultura oral
para os governos na atualidade, em contemporânea contribuem para uma

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formidável ampliação da materiali- para compor o patrimônio, o que se
zação da memória sob a forma de pro- coloca unicamente pela tradição e
dução de arquivos. É esta ânsia de ir cuja significação não interfere nas
em busca de suas origens, de sua iden- relações sociais no presente.
tidade que move diferentes atores so- Entende-se, assim, que a tarefa de
ciais na recuperação de memórias preservação para ser realizada de for-
particulares. Consagram-se, assim, os ma competente articula-se a diferen-
“lugares da memória”, que coexistem tes instâncias administrativas em seus
em três dimensões: material, funcio- níveis federal, estadual e municipal.
nal e simbolicamente. A primeira Entretanto, tal situação só poderá con-
pode ser exemplificada pelo arquivo figurar-se concretamente pela via da
ao qual se confere aura simbólica; a efetiva descentralização de poder po-
segunda – um testamento – se for va- lítico e de recursos, pela clarificação
lorizado enquanto ritual; a terceira – das políticas desenvolvidas na área
um minuto de silêncio – que só alcan- cultural, pela democratização dos ca-
ça a dimensão indicada se remete a nais de decisão – fóruns populares
determinada lembrança. (cf. NORA, com poderes deliberativos –, por le-
1993). Nesse entrelaçamento, os “lu- gítimos investimentos no setor – tan-
gares da memória” se caracterizam to do ponto de vista legal, pela cria-
como um movimento que articula ção de legislação pertinente, quanto
Memória e História, pois intencional- por destinação apropriada de recur-
mente se busca preservar os vestígios sos (a descentralização efetiva) –, pela
impedindo a ação do esquecimento. adoção de diferentes mecanismos de
A História, ao interpretá-los e devol- divulgação das ações desenvolvidas
vê-los à sociedade, os institui simbo- por órgãos preservacionistas no sen-
licamente. tido de manter/implementar eficien-
Para ser coerente, a política cul- tes canais de comunicação com os
tural do patrimônio articula-se aos si- diferentes segmentos da sociedade.
nais que o contexto histórico emite, A participação social na definição
reconhecendo o que se dimensiona patrimonial indica possibilidades
como residual e emergente no proces- educativas, no sentido como são en-
so social de desenvolvimento do tendidas por GOHN (1992), em suas
patrimônio. O primeiro, residual, por- dimensões de organização política, da
que embora criado no passado, ainda cultura política e espacial-temporal.
se mantém no presente no processo Abre-se, nesse enfoque, o espaço
cultural. O segundo, emergente, por- da educação não-formal pela progres-
que aponta para novas e atuais pers- siva aquisição da consciência de di-
pectivas: significados, valores, práti- reitos e deveres, luta especialmente
cas e diálogos sociais (cf. CANCLINI, pelo acesso aos direitos, possibilida-
1994, p. 106/109). Descarta, assim, de de organização e ação coletiva em

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função da clareza adquirida quanto a Tal perspectiva é tanto mais vali-
forma de funcionamento de órgãos osa na medida em que há uma ten-
públicos – procedimentos para a ob- dência manifesta nos meios educaci-
tenção de verbas, agentes envolvidos onais, de valorização do estudo da
em sua gestão, identificação de inte- memória local e uma grande sensibi-
resses presentes e/ou contemplados – lização quanto às especificidade his-
, elaboração de demandas represen- tóricas e culturais do meio originário
tativas dos direitos a conquistar. A tra- do aluno. É nesse sentido que RO-
jetória experiencial se revela educa- DRIGUES (1982) prega a necessidade
tiva pela compreensão dos elementos de preservação da documentação lo-
restritivos amparados na tradição, os cal e regional, por considerar que a
quais podem ser desmistificados pela História é de indiscutível contribui-
sua decodificação; pelo desvelar es- ção para a Historiografia e as Ciênci-
tratégias de conformismo/resistência as Sociais.
fundamentadas na análise da desigual- Para o autor, detalhar o desenvol-
dade social. Tais estratégias expres- vimento de uma comunidade é gerar
sam condições de vida dos diferentes sólida contribuição à História Nacio-
segmentos sociais no passado e no nal. Embora limitada pelo perigo da
presente, e explicam o contexto da fragmentação, a História Local apre-
apropriação de espaços públicos para senta os acontecimentos do cotidiano
usos privados. do homem comum coletados nos ar-
A participação social possibilita o quivos das famílias ou das institui-
acesso a uma educação autocons- ções, e na memória dos idosos. Isso
truída em processo, gerada por dife- supõe para o historiador local ter em
rentes fontes, relacionadas ao exercí- mente que os acontecimentos não são
cio do poder em variadas instâncias, obrigatoriamente representativos de
institucionais ou não. uma conjuntura regional ou mesmo
No que concerne à educação for- nacional. Aceitam-se as suas limita-
mal, registra-se que alguns municípi- ções, seja pela própria natureza do
os paranaenses já investem na possi- tema ou pela impossibilidade de pre-
bilidade de utilização dos patrimôni- encher um quadro histórico em todas
os, enquanto objeto de ensino, de dis- as suas implicações conjunturais.
cussão da relação Memória- História. Para CAMPOS (1986), os estudos
A reflexão sobre a forma como inte- locais representam material valioso,
ragem é importantíssima no que se senão diretamente para os estudos tra-
refere à História Local e ao que re- tados, para a percepção dos costumes,
presenta em termos de fontes e de das idéias, da mentalidade vigente na
compreensão do modo de pensar e época de sua produção. E cita como
viver local, de conhecimento sobre a exemplo a obra dos poetas românti-
identidade cultural. cos José de Alencar e Joaquim

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Manoel de Macedo como fontes de colar. Currículo encarado como uma
um tempo, testemunhos de um con- forma de arrumar e articular um pro-
teúdo que, sem o compromisso cesso pela busca e confronto de da-
metodológico do historiador, retratam dos pertinentes a uma realidade pró-
de forma espontânea os acontecimen- xima, que favoreça ao educando uma
tos de sua época. melhor compreensão das normas so-
SAMUEL ressalta que um projeto de ciais, usos, costumes e tradições que
História Local pode originar seus pró- regem a comunidade onde vive. Além
prios arquivos e fontes, numa verda- disso, tais dados podem favorecer a
deira miscelânea de documentos, ob- análise das transformações ocorridas,
tidos nos locais mais improváveis. dos avanços e retrocessos verificados
Também há possibilidade de utiliza- e das possibilidades de novas trans-
ção da “evidência oral” com todas as formações pela ação dos sujeitos so-
suas vantagens e mazelas, determi- ciais.
nando que “o relatório vivo do passa- É uma situação que não se limita
do deve ser tratado com respeito, mas apenas ao ensino de História, uma vez
também com crítica; como o morto” que se configura numa busca, por par-
(p. 239). te dos alunos, de diferentes modos de
Na perspectiva referendada pelos pensar, enxergar a realidade e expres-
autores, os arquivos locais passam a sar suas reflexões a respeito de um
assumir fundamental importância pela objeto de estudo e, conseqüentemen-
possibilidade de oferecer múltiplas te, de uma realidade da vida cotidia-
oportunidades de utilização. Aí se in- na. Revela situações complexas, que
cluem, também, os arquivos escola- permitem encaminhar a discussão
res. para as diferentes relações de traba-
A utilização dos arquivos, enquan- lho e poder na sociedade brasileira.
to procedimento de ensino, invoca a Os trabalhos de resgate de memó-
consideração tanto por parte do his- ria coletiva, são passíveis de desen-
toriador quanto do professor, às ca- volvimento por duas formas: contan-
racterísticas específicas dos variados do com os documentos de arquivos
materiais que o homem produz no seu tais como exposições, organização de
cotidiano. Ter em mente, também, a museus escolares, coleta de depoi-
forma como o documento se perpe- mentos, dentre outros; analisando as
tua enquanto memória, estabelecen- mais diferentes realidades patrimo-
do um poder decorrente dos signifi- niais para estabelecer enriquecedores
cados que encerra. diálogos com o passado.
A produção do saber por alunos, Essa postura supõe novas relações
tendo a História Local como objeto da escola com a comunidade: amplo
de estudo, pode ser uma experiência conhecimento dos bens culturais exis-
potencializadora para o currículo es- tentes, clareza quanto a capacidade de

125
sua utilização (como ponto de parti- Embora no caso analisado o pro-
da e não como simples ilustração), jeto não tenha alcançado a direção
estabelecimento de redes explicativas/ pretendida, especialmente no que se
con-texto histórico-social em que está refere à socialização do conhecimen-
inserida (cf. MANIQUE; PROENÇA, 1994). to produzido, esse é o real sentido de
A possibilidade de desenvolvi- uma política cultural preservacionista:
mento da Educação Patrimonial está que recusa a visão de cadastro, de
posta tanto formal, quanto não-formal conservação. Investir apenas nessa
e informalmente, pela utilização dos possibilidade é como negar a fruição
“lugares da memória” como fontes do do tempo, a dinâmica social; signifi-
processo educativo. Estando voltada ca valorizar o processo de fossi-
para questões relacionadas às realida- lização, voltar as costas para o cam-
des patrimoniais, a Educação Patri- po das possibilidades, negar a cria-
monial compreende desde a inclusão tividade do ser humano ao resolver
de conteúdos programáticos nos cur- as dificuldades cotidianas; apostar no
rículos escolares de todos os níveis imutável enquanto forma de poder,
de ensino até o acesso a cursos de recusar a leitura das lacunas, a pro-
aperfeiçoamento/extensão para os posta de indagações aos “lugares de
educadores e a comunidade em geral. memória” enquanto ritos de passagem
(FERNANDES, 1993; ORIÁ, 1997). Fun- dos diferenciados grupos sociais.
damental é que se trabalhe com a for- A clareza sobre a elaboração de
mação da consciência preservacio- uma política pública de preservação
nista pela via do conhecimento funda-se na relação entre o patrimônio
democratizante, que desvela a traje- cultural e a possibilidade de sua cons-
tória histórica e social da constitui- trução imaginária, os diferentes usos
ção do patrimônio cultural. a que se pode prestar, as diferencia-
A preservação, por meio da parti- das condições que a desigualdade so-
cipação social, constitui tarefa a ser cial impõe na sua composição, os ob-
exercida pela educação ao incentivar jetivos implícitos em sua constituição,
os alunos a preservar a sua história as possibilidade ilimitadas de sua
de vida e de seu grupo social, colabo- existência no contexto da indústria
rando para a implementação de valo- cultural e os parâmetros estético-filo-
res essenciais para a construção de sua sóficos que regem sua constituição,
cidadania. Nessa perspectiva, os es- preservação e difusão ( CANCLINI ,
tudos locais poderão exercer papel 1994).
fundamental para o ensino/aprendiza- Essas questões articulam-se com
gem de História, contribuindo para a a reflexão sobre a possibilidade de
conscientização dos futuros cidadãos formulação e fruição de políticas cul-
em termos da preservação da memó- turais de inspiração democrática, as
ria coletiva. quais se amparam no princípio da

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participação dos diferenciados seto- patrimônio cultural na forma como é
res sociais na vida cultural das cida- constituído, conservado, defendido, e
des, valorizando diferentes experiên- considerado representativo da vida
cias e capacidades de expressão, em sociedade.
oportunizando a expansão da
criatividade e o fortalecimento da
consciência crítica. Entretanto, tais REFERÊNCIAS
perspectivas só são exeqüíveis, pela BIBLIOGRÁFICAS
democratização dos espaços
institucionais, pelo fortalecimento da 1 CAMPOS, Pedro M. Esboço da
sociedade civil como pregado pela historiografia brasileira. In:
perspectiva gramsciana, isto é, pela GLENISSON, Jean. Iniciação
contemporaneidade com o contexto aos estudos históricos. 5. ed.
social, pela sintonia com a variedade São Paulo: Bertrand Brasil /
e a dinâmica dos movimentos da so- DIFEL. p.205-294.
ciedade civil. 2 CANCLINI, Néstor García. O
Tal postura remete para a questão patrimônio cultural e a constru-
da cidadania, em função de que é por ção imaginária do social. Revis-
meio da memória, do conhecimento ta do Patrimônio Histórico e
e compreensão de suas marcas, no Artístico Nacional, Brasília, n.
entrelaçamento das oposições popu- 23, p. 95-111, 1994.
lar - erudito, dos símbolos paradigmá- 3 FERNANDES, José Ricardo O.
ticos de realidades patrimoniais (na- Educação patrimonial e cidada-
cional/regional/ local) que, ao mesmo nia: uma proposta alternativa
tempo em que se constrói a qualida- para o ensino de História. Re-
de de ser cidadão, encerra-se o direi- vista Brasileira de História,
to de ser cidadão, pelo conhecimento São Paulo, v. 13, n. 25/26, p.
de valores e significados impostos a 265-276, set./ago. 1992/1993.
determinada identidade cultural. 4 GOHN, Maria da Glória. Movi-
Nesse sentido, exercer a cidada- mentos sociais e educação. São
nia encerra não só o acesso à memó- Paulo: Cortez, 1992. 117p.
ria como à ação de selecionar e se 5 GUTIERREZ, Ramón. História,
apropriar de seus significados. Assim, memória e comunidade: o direi-
cabe ao Estado – governo e socieda- to de patrimônio construído. In:
de civil – garantir, também, o acesso SÃO PAULO. Secretaria Muni-
aos direitos individuais e coletivos e cipal da Cultura. O direito à
a vigência da pluralidade cultural, memória: patrimônio histórico
uma vez que a consciência de perten- e cidadania. São Paulo: Depar-
ça do cidadão a determinado grupo tamento do patrimônio históri-
social revela uma concepção de co, 1992. p. 121-127.

127
6 JEUDY, Henry-Pierre. Memórias 219-243, set.fev. 1989/1990.
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