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Vol. 2, No 2 | 2013
Criatividade e protagonismo indígenas
Indigenous Protagonism and Creativity
Édition électronique
URL : http://journals.openedition.org/cadernosaa/195
DOI : 10.4000/cadernosaa.195
ISSN : 2238-0361
Éditeur
Núcleo de Antropologia Visual da Bahia
Référence électronique
Cadernos de Arte e Antropologia, Vol. 2, No 2 | 2013, « Criatividade e protagonismo indígenas » [En
ligne], mis en ligne le 01 octobre 2013, consulté le 09 mars 2020. URL : http://
journals.openedition.org/cadernosaa/195 ; DOI : https://doi.org/10.4000/cadernosaa.195
SOMMAIRE
Artigos
A história está no “drama”: jovens Xokó e produção de socialidade com linguagem das artes
Natelson Oliveira de Souza
Artigos
Ensaios (audio)visuais
Criatividade e Protagonismo
Indígenas
Maria Rosário de Carvalho
1 O dossiê deste Vol. 3 No. 2(2013) tem como autores cinco jovens, três dos quais
indígenas, sendo dois da etnia Xukuru-Kariri (estabelecidos na região do nordeste
brasileiro, predominantemente no município de Palmeira dos Indios, agreste alagoano,
e um pequeno contingente no muncípio de Glória, no estado da Bahia) e um do povo
Pataxó, hoje distribuído em várias aldeias na porção do extremo-sul baiano e no estado
de Minas Gerais; e dois jovens não índios. Os três primeiros tomam como objetos de
reflexão, respectivamente, o processo de criação da política indigenista no estado da
Bahia; o modelo de gestão territorializada da política de educação escolar indígena
nesse mesmo estado; e a produção, consumo e circulação dos adornos pataxós,
mediante um exercício de imersão na cultura da autora, ao passo que os dois não índios
examinam uma performance ritual criada e encenada por jovens índios Xokó do
município de Porto da Folha, estado de Sergipe, no baixo curso do rio São Francisco; e a
formação de uma nova aldeia pataxó que viria a se tornar uma espécie de laboratório
para a cultura nativa.
2 Na chamada para o Dosssiê, enfatizamos que o tema “Criatividade e Protagonismo
Indígenas” deveria se apresentar em distintos contextos etnográficos e diversas
abordagens teóricas e metodológicas. A nossa expectativa era, então, a de que os textos
submetidos tratassem o tema por meio de expressões individuais e coletivas e recortes
múltiplos, permitindo ao leitor surpreender o seu potencial tarnsformador no plano
das relações sociais e políticas, internas e externas às sociedades indígenas. A nossa
intenção, nesta Introdução, é, pois, avaliar até que ponto essa expectativa foi
concretizada, e como o foi.
3 O título do artigo de Arissana Braz Bomfim – a aranha vive do que tece --, uma clara
alusão aos aracnídeos que segregam seda, com a qual tecem as suas teias -- e o seu
primeiro subtítulo “Pra gente nunca esquecer o que nossos pais deixaro” talvez possam
ser entendidos, combinadamente, como a expressão sintética do ethos da trajetória de
uma indígena pataxó que, desde muito jovem, passou a colaborar, efetivamente, para
assegurar a reprodução biológica e social da sua família de orientação, assim como
7 Finalmente, quero referir ainda, no que concerne ao artigo de Arissana, ao uso das
penas de galinha e matérias primas industrializadas. Em um caso e outro, não há, por
parte dos produtores – e a autora é, também, produtora --, pejo em admitir o seu uso.
Há, vale lembrar, excelentes antecedentes de tais usos sem pejo aparente. Estou
referindo aos famosos mantos Tupinambá. Mais particularmente ao manto depositado
no Museu da Dinamarca, no qual um estudo realizado na Holanda, em 1979, teria
identificado a presença de penas de galinha ("chicken down") 2. Felipe Vander Velden
Ferreira registra, por sua vez, que o manto Tupinambá guardado no Museu do Homem,
em Paris, contém, em sua extremidade superior, uma tira de miçangas azuis e brancas
de origem europeia (Métraux, 1932, p. 4 apud Ferreira, p. 32, nota 8). Ferreira indaga,
argutamente, se esses mantos com penas de galinha teriam sido confeccionados para
uso ritual ou terão sido simples “peças decorativas, circulando em uma rede crescente
de peças provenientes de populações primitivas, e trazidas de cantos remotos do globo
para o espanto e a admiração dos europeus? Tais artefatos dirão mais sobre os Tupi
litorâneos ou sobre os europeus que deles adquiriam as peças guardadas ciosamente
por uns poucos museus na Europa?” (Ferreira, 2012, p. 100-101).
8 Ora, admitindo-se que, já nos séculos XVI e XVII, os Tupinambá na costa brasileira
coloriam artificialmente penas de galinhas para a confecção dos seus mantos, “qual é a
razão para considerarmos, hoje, como espúrio ou inautêntico, o uso das penas destas
aves nos adornos plumários e outros objetos de certas populações indígenas (...)?”
(Ferreira, 2012, p. 7).
9 No artigo “Aldeia Velha, “nova na cultura”: reconstituição territorial e novos espaços
de protagonismo entre os Pataxó”, Hugo Prudente Pedreira demonstra que tais novos
espaços resultaram de uma forte mobilização pela recuperação de áreas expropriadas
aos Pataxó, no âmbito da qual certos agentes sociais se destacam e, na sucessão dos
acontecimentos, têm a sua liderança contestada e destituída. Uma certa tendência à
centralização do poder então enfeixado costuma ocorrer e confronta-se com a
resistência dos liderados, aparentemente predispostos à renovação desse poder em
cadeia ou rede (e não apropriável como uma riqueza ou um bem), em cujas malhas “os
indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de
sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de
transmissão” (Foucault, 1986, p. 183-184). Nesse sentido, o leitor poderá acompanhar,
em escala reduzida, a constituição de grupos, líderes e unidades políticas, assim como
os mecanismos que são acionados para opor obstáculos à sua estabilização e ao
enrijecimento de assimetrias (Sztutman, 2008) na Aldeia Velha.
10 Designa-se de retomada às ações que, nos contextos etnográficos nordeste e leste do
Brasil, buscam reintegrar aos territórios tradicionais parcelas que, ao longo dos anos,
deles foram expropriadas. Em geral as retomadas envolvem homens, mulheres e
crianças que, em ações concertadas, recuperam-nas e mantêm-nas sob a sua posse,
acionando, na sequência, o Ministério Público Federal para que este interponha ação de
reintegração de posse e a cassacão de liminares de reintegração contrapostas pelos
comumente designados fazendeiros. Via de regra as liminares são prontamente
acolhidas pelos juízes locais, o que leva, muitas vezes, o contingente indígena ameaçado
de expulsão da parcela retomada a resistir ao seu cumprimento por agentes da polícia
militar. Exitosa a resistência, recursos e apoios, materiais e políticos, são mobilizados
para viabilizar a retomada e desencadear o processo de regularização junto à FUNAI. Na
BIBLIOGRAFIA
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Sztutman, Renato. O Profeta e o Principal. A ação política ameríndia e seus personagens. São Paulo:
Serviço de Comunicação Social. FFLCH/USP, 2008.
NOTAS
1. Cada armadilha não é apenas um modelo do seu criador mas um self subsidiário sob a forma de
um autômato, mas também um modelo de sua vítima. (...) De acordo com a forma da armadilha,
as disposições da pretendida vítima podem ser deduzidas. Neste sentido, armadilhas podem ser
consideradas textos do comportamento animal (Gell, 1996, p. 27)
2. O tema foi objeto de uma troca de e-mail´s, em 2005, entre John Monteiro e Amy J. Buono, do
Departamento de História da Arte & Arquitetura da Universidade da Califórnia, Santa Barbara.
Monteiro supunha que o estudo, que teria identificado penas de galinhas no manto depositado no
Museu da Dinamarca, referido por Buono, faria parte do livro organizado por Ernst avan den
Boogaart, Johan Maurits van Nassau Siegen, 1604-1679, A humanist prince in Europe and Brazil. Haia:
Government Publishing Office, 1979. Para Monteiro, o príncipe Nassau teria recebido o manto de
um dos líderes Potiguar que ele incorporou à sua corte, em Recife/PE, algum tempo antes de
retornar a Holanda, em 1644. Monteiro demonstrava curiosidade em saber quando o referido
manto teria sido identificado como Tupinambá, ao tempo que observava que os holandeses
designavam os falantes Tupi simplesmente Brasilianer, em oposição aos Tapuia, não Tupi (a cópia
da troca de e-mail´s foi redirecionada, generosamente, por J. Monteiro para Patrícia Couto,
pesquisadora do Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro da UFBA
que, por sua vez, o compartilhou comigo). Vale registrar que o assunto tratado nesse e-mail pode
ter sido suscitado pelo livro de Berete Due (2002) que, além de reproduzir as peças plumárias da
Kunstkammer Real, observa que a peça Hc.52 inclui, possivelmente, penas tingidas de galinha
(apud Ferreira 2012, p. 32, nota 7).
3. Barbara Myerhoff (1979) define como “cerimônias definitórias” um tipo de “auto-biografia”
coletiva, “um meio pelo qual um grupo cria sua identidade ao contar para si uma história sobre si
mesmo, um processo ao longo do qual ganha vida a sua “Identidade Determinada e Definida”(...)
(Turner, 2005, p. 182). Já no drama social de Turner, no sentido diltheyniano, “o significado é
engendrado pela articulação de problemas presentes a um rico passado étnico, que então é
infundido nos “feitos e provações” (frase de Dewey) da comunidade local. Alguns dramas sociais
podem ser mais definitórios do que outros, isso é certo, mas muitos dramas sociais contêm,
mesmo que apenas implicitamente, meios de reflexividade pública em seus processos
reparadores. Ao ativá-los, os grupos avaliam a sua situação atual: a natureza e a força de seus
laços sociais, o poder de seus símbolos, a eficácia de seus controles morais e legais, a sacralidade
de suas tradições religiosas, e assim por diante (Turner, 2005, p. 182-183).
AUTOR
MARIA ROSÁRIO DE CARVALHO
Universidade Federal da Bahia
Professora Associada do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal da Bahia.
mrgdecarvalho12@gmail.com
Artigos
Articles
NOTA DO EDITOR
Recebido em: 2013-08-07
Aceito em: 2013-10-21
O contexto etnográfico
1 Os Pataxó são um povo indígena que, dentre os muitos que habitavam a Bahia no século
XVI, resistiu a uma série de tentativas de eliminação física desfechadas desde a chegada
dos primeiros europeus ao Brasil. Atualmente, constitui uma população de
aproximadamente quinze mil indivíduos distribuídos em trinta e seis aldeias, sendo seis
no estado de Minas Gerais, nos municípios de Carmésia (Sede, Retirinho e Imbiruçu);
Arassuaí (Aldeia Jundiba); Açucena (Aldeia Jeru Tukumã); e Itapecerica (Aldeia
Moãmimati); e trinta no estado da Bahia, concentradas na porção do extremo sul, nos
municípios do Prado - Tawá, Cravero, Àguas Belas, Corumbauzinho, Cahy, Alegria Nova,
Monte Dourado, Maturembá, Tibá e Pequi ; Itamaraju - Trevo do Parque; Porto Seguro -
Juerana, Aldeia Velha, Imbiriba, Xandó, Bujigão, Barra Velha, Pará, Campo do Boi, Meio
da Mata, Boca da Mata, Cassiana, Pé do Monte, Jitaí, Guaxuma e Aldeia Nova; e Santa
Cruz Cabrália - Coroa Vermelha, Aroeira, Mata Medonha e Nova Coroa (Figura 1). Há
também famílias pataxós que vivem em áreas urbanas, principalmente nas cidades mais
próximas às aldeias.
Figura 1. Mapa das aldeias do povo Pataxó localizadas no extremo sul da Bahia. 1
Quando foi um dia ela falou assim: - amanhã eu vou fazer um cauim, um peixe na
patioba, e vocês vão vim pra cá que eu vou fazer uma dança lá no quintal. Aí quando
foi no outro dia a gente ansioso, fui pra lá. Chegou, Zabelê já tava com um pratão de
semente lá no chão né, agulha, aí começou a ensinar a gente fazer, pegar na agulha.
Ela falava isso aqui que é artesanato de índio, vocês tem que fazer isso aqui, pra
gente nunca esquecer o que nossos pais deixaro pra gente. Aí começou a ensinar. Eu
comecei a fazer através desse ensino de Zabelê […] ela começou a ensinar a dança
também pra gente, aí a gente começou a confeccionar os nossos adereços, a tanga,
ela levava a gente pra lagoa pra tirar taboa, botava a gente pra fazer o nosso próprio
cocar. (informação verbal)2.
4 Cristiane é, atualmente, professora da Escola Indígena Kijetxawê Zabelê 3, coordena o
grupo de cultura da Aldeia Cahy e, seguindo o exemplo da avó, confecciona os adereços
juntamente com os jovens do grupo, para incentivá-los e ensiná-los, tendo também a
ajuda do esposo, da mãe e do cacique da aldeia
5 Anderson, da Aldeia Tibá, afirma que com a sua avó Zabelê também aprendeu a fazer a
maioria dos adereços que confecciona: colar, brinco, pulseira e o cocar tipo coroinha
usado mais pelas mulheres. Assim, baseado nos adereços que já produz e em sua
habilidade no uso das matérias-primas, não tem dificuldade de aprender a confeccionar
outros adereços. Foi assim que aprendeu a confeccionar o cocar de duas tranças
elaborado e lançado em Coroa Vermelha: “já aprendi sozinho mesmo, peguei a base do
outro e fui. Na verdade eu comprei um em Coroa Vermelha e desse eu comecei a olhar”
(informação verbal)4. É desse modo que muitos Pataxó também aprendem, observando
e reproduzindo um determinado adereço, sem necessariamente ter alguém
intermediando o processo.
6 Há também outros contextos que favorecem tanto a aprendizagem quanto a troca de
adereços entre os Pataxó. Estou referindo aos encontros, reuniões, cursos e até
retomadas de parcelas do território indígena. Voltairis, da Aldeia Pequi, relata que
aprendeu a fazer muitos adereços com seu avô, inclusive a tanga da biriba, ao passo que
aprendeu a fazer o cocar
numa época de uma retomada lá nos eucalipto, ali perto do Guaxuma. […] já aprendi
com um parente lá da Aldeia Guaxuma né, eu vi ele fazendo, ele tava ensinando lá a
gente, aí eu aprendi o processo. Assim, com ele lá eu aprendi só o processo de tá
amarrando as pena né no barbante. Aí, já aprendi a colocar na trança os bordado
com os parente de Coroa Vermelha (informação verbal).5
7 Por outro lado, foi com Gilson, professor da Escola Indígena Pataxó Coroa Vermelha,
que concluiu o aprendizado: “[…] foi quando ele tava no Magistério ele trazia pra fazer
[…] quando tava com algum tempo que ia pros seus apartamentos ficava fazendo. E eu
com curiosidade ficava olhando ali, até mesmo perguntava alguma coisa e ele passava
informação pra mim.” (informação verbal)6.
8 Assim, aprender a fazer os adereços é um dos primeiros passos de um processo de
constituição da arte Pataxó, que está intimamente associado com a história e a memória
dos mais velhos e com o processo de socialização dos mais jovens, e em estreita
convivência com os demais, notadamente com os mais velhos. O exemplo de Zabelê,
anteriormente referido, é eloquente: convocou os netos para lhes transmitir a tradição
artesanal. Mas não se tratou de uma transmissão pura e simples: ela preparou um
ambiente ritual – awê, cauim e peixe na patioba – no interior do qual ocorreu a
transmissão, prática (agulhas, sementes e linhas) e teórica (à medida que ensinava a
confeccionar os colares, relembrava como havia sido o seu aprendizado, exortando-os a
não esquecerem o legado dos mais velhos). A mesma atitude foi observada em relação
ao ritual Awê, ao cauim e ao peixe.
9 Outros aspectos importantes dessa cadeia estão nas diversas formas de uso das
matérias-primas, na relação com a ecologia local e na maneira como os artefatos
circulam entre as aldeias e além delas, conforme descreveremos, a seguir, começando
por um pequeno painel da sua variedade.
Figura 2-3. Tanga de Biriba ou estopa (2012). Tanga de taboa exposta para venda (2011). 7
11 A tanga ou tupisay8 é uma espécie de saia feita com fibras soltas amarradas a uma corda,
que envolve a cintura. Não há muita variedade, tendo em vista que é feita apenas de
duas matérias-primas diferentes, ambas de origem vegetal, como mostram as Figuras 2
e 3. As diferenças mais perceptíveis estão relacionadas ao tamanho, pois há pessoas que
gostam e usam as mais longas, abaixo dos joelhos, e há outras que as usam mais curtas,
acima dos joelhos. A tanga da biriba é macia e maleável, ao passo que a tanga de taboa
já não é tão flexível assim. A segunda é a mais procurada pelos turistas, sendo vendida
acompanhada por um colar, um cocar, um bracelete e uma tornozeleira. Um conjunto
que pode ser encontrado com penas de diversas cores.
Figura 7-9. Oiti com cocar de taboa (2010). Cocar de taboa (2012). Pedro com cocar que tem
aberturas entre as penas feito por Gilson (2012).
Figura 10-12. Jovem Pataxó, durante participação dos Jogos Nacionais em Tocantins (2011).
Jovem Pataxó durante desfile da ihé baixú nos Jogos Pataxó de Coroa Vermelha (2012).
Jovem Pataxó com cocar de taboa, durante desfile ihé baixú nos Jogos Pataxó de Coroa
Vermelha (2012).
Figura 13. Meruka Pataxó durante participação nos Jogos Nacionais em Tocantins, em 2011.
Figura 14. Colares feitos de diversas sementes expostos em uma mesa para venda, 2011.
15 Os colares produzidos para a venda (Figura 14) são mais simples que os colares usados
para adornar os corpos indígenas em dias especiais (Figuras 15 e 16). O colar é a peça
final na composição dos adereços, usado, geralmente, em volta do pescoço, mas agora
também é possível encontrarmos grandes colares que, além de terem uma volta que
passa ao redor do pescoço, também se alongam e passam por debaixo dos braços, como
mostra a Figura 15. Podemos dizer que esses são modelos mais novos, confeccionados
mais para uso dos pataxós, sendo, portanto, mais comercializados internamente.
Figura 15-16. Colar Pataxó que envolve o pescoço e passa sob os braços (2012). Colar
Pataxó feito de tento, usado por um homem (2012).
16 Outro adereço que, ultimamente, tem ganhado espaço entre os Pataxó é o cinto, que
pode ser usado tanto por homens quanto por mulheres. Os Pataxó já usavam o cinto no
passado, porém o seu uso se intensificou no presente. Atualmente pode ser encontrado
em diversos modelos e também com variedade de matéria-prima, geralmente as
mesmas utilizadas em outros adereços, sendo mais comum o de linhas de crochê, fios de
lã e penas.
17 Embora exista uma grande diversidade de adereços Pataxó que são diferenciados pelas
cores e materiais usados, eles possuem uma unidade que os distingue de adereços
produzidos por outros povos indígenas. Assim, embora outros indígenas compartilhem
o uso de determinados adereços, é possível distinguir um Pataxó em meio a outros
indígenas mediante a composição do seu traje, i.e., cocar, tanga e colares. Ademais,
costumam usar penas nas cores vermelha, verde, amarela e branca, o que termina
constituindo um padrão Pataxó composto por vários fatores que se combinam desde a
produção.
Figura 17. Cinto feito com a trança do aricuri, enfeitado com sementes e penas e detalhes
de piaçava.
Vermelha. Ela ajuda a mãe na produção dos conjuntos das tangas de taboa 9 e outros
adereços menores, tais como colares, presilhas, etc. Outras famílias e indivíduos,
mesmo tendo outras formas de sustento ou profissão, também fazem adereços para
vender ou para, eventualmente, o próprio uso, tais como o professor Gilson, que leciona
na Escola Indígena Pataxó de Coroa Vermelha e ainda encontra tempo para
confeccionar alguns cocares; Anderson, neto de Zabelê, que não tem na produção de
adereços sua fonte principal de renda, mas produz cocares sempre que recebe alguma
encomenda; e Voltairis, professor de Patxohã da Aldeia Pequi, que também se encaixa
nessa situação. Meu pai, Wilson, dedica-se diariamente à produção de cocares que
minha mãe expõe na loja do Comércio Indígena10, para vender aos turistas, mas se
aparecer algum índio querendo comprar, ele vende, não obstante por um preço bem
mais baixo, principalmente quando é para o índio revender.
21 Muitas pessoas dominam a produção de determinados adereços e conhecem as
matérias-primas, pois produzem constantemente; outros, muito raramente se dedicam
à atividade; e finalmente há quem já tenha produzido muito, tendo interrompido em
um determinado tempo. São pessoas que sabem fazer, mas não fazem. Podemos dizer
que o número de pessoas que sabem fazer é bem maior se comparado ao dos produtores
regulares. Há ainda quem tenha certa habilidade para produzir um determinado
adereço, ou que saiba produzir vários, mas que prefere se dedicar apenas a alguns tipos,
evidenciando tendência à certa especialização.
22 Em algumas aldeias concentra-se uma maior produção de determinados adereços. Esse
fato se deve, muitas vezes, à disponibilidade de matéria-prima encontrada em cada
lugar. Coroa Vermelha, por exemplo, concentra a produção de cocares devido à maior
facilidade de encontrar as penas, que são compradas ou adquiridas, gratuitamente, nas
granjas. Em Barra Velha concentra-se a maior produção de colares, devido à grande
variedade de sementes encontrada na aldeia e à habilidade das mulheres.
23 As famílias que têm como principal fonte de subsistência a produção de adereços
tendem a variar a produção para incrementar as vendas. A manufatura de
determinados produtos tem grande influência na família, uma espécie de aprendizado
que podemos considerar como uma herança familiar. Em Coroa Vermelha, Ecleides
ajuda a mãe na produção de uma variedade de objetos, dentre os quais a zarabatana 11,
jogo de arco e flecha12, presilhas, palito de cabelo e os conjuntos de tanga,
anteriormente mencionados. Quando lhe perguntei se a sua mãe fazia adereços há
muito tempo, ela respondeu que Benedita Sena já nasceu fazendo, uma vez que fazia
desde quando morava na Aldeia Trevo do Parque, pois aprendera com Dona Tereza, sua
avó. Ecleides diz que, no momento, sua avó não produz mais, pois agora vive da
aposentadoria, contudo seus tios, que moram na Aldeia Trevo do Parque,
constantemente vêm à Coroa Vermelha fazer entrega desses mesmos produtos que ela e
sua mãe confeccionam.
Matérias-primas usadas
24 Os Pataxó sempre usufruíram da extração de vegetais para a produção de diversos
objetos, tanto para uso pessoal quanto doméstico, fruto da transmissão de saberes dos
mais velhos aos mais jovens. Daí que os adereços Pataxó, ainda nos dias atuais, sejam,
em sua maioria, confeccionados a partir da extração de matérias-primas naturais.
25 Os materiais utilizados para a produção dos adereços são diversos. E, embora os Pataxó
empreguem também materiais industrializados, não deixaram de utilizar as
tradicionais matérias primas, dentre as quais a trança do aricuri, a taboa, a estopa, as
penas, e as sementes que encontramos em grande variedade, em geral sementes de
frutos não comestíveis. As mais usadas são a juerana, o pariri, o tingui, o maui, o mata-
passo, o fedegoso, o olho de pombo, a salsa, o sabão de macaco e o tento, também
conhecido como pau-brasil.
26 Dos novos materiais que têm ganhado espaço na produção dos adereços, estão as linhas
de lã e de crochê, usadas principalmente na confecção dos bustiês e dos cintos, o que
possibilita a combinação com as cores dos cocares, como podemos observar na foto
abaixo:
Figura 18. Jovens Pataxós durante a festa do Araguaksã, Reserva da Jaqueira (2010).
“Casinhas”, e o outro na estrada que liga Coroa Vermelha a Porto Seguro, próximo a
uma praia conhecida como Ponta Grande, onde a matéria-prima pode ser encontrada
em abundância.
Como se faz
34 Cada adereço produzido pelos Pataxó constitui parte de um longo processo que
compreende desde a extração, coleta ou compra da matéria-prima, que pode ser
simples, mas em geral é bem complexo, até a elaboração do objeto propriamente dito.
35 Para a confecção dos colares despende-se um bom tempo no preparo das sementes até
deixá-las no ponto certo, considerando-se que cada uma delas tem uma propriedade
particular que interfere nesse preparo. Por exemplo, é necessário saber o tempo certo
em que a semente está pronta para ser colhida, de modo que mais tarde ela não venha a
murchar. Outro fator que vale destacar é que nem todas as sementes podem ser
encontradas ao longo do ano, o que quer dizer que a confecção dos colares acompanha
o ciclo da natureza. Podemos, assim, encontrar uma abundante quantidade de colares
de uma determinada semente em algumas épocas do ano. Portanto, a produção de cada
adereço é limitada também pela matéria-prima disponível.
36 No caso dos cocares grandes é necessário reunir uma boa quantidade de penas. E
quando essas são compradas ou obtidas nas granjas, vêm sujas, tendo que ser lavadas,
tingidas e, na sequência, selecionadas apenas as maiores, geralmente as penas da asa.
Um aspecto importante na produção desses cocares maiores, que requer a necessária
atenção, é a curvatura natural que as penas, por serem da asa, possuem, curvaturas
para a direita e para a esquerda. É preciso, então, atentar para as penas que serão
dispostas dos dois lados, de modo a observar a inclinação natural de cada uma. A
produção do cocar inicia-se, basicamente, dispondo-se as penas em uma única corda,
que unirá todas pelo bico, ou seja, pela parte em que não há plumagem, mas apenas o
“talo”. Em seguida, deve-se passar uma linha na metade de cada pena, costurando-se
uma na outra, para que o cocar se mantenha firme. Nesse ponto já temos um cocar
simples. Agora é só fixá-lo na trança do aricuri, depois colocar mais uma trança para
apoiar na fronte, possibilitando que o cocar fique mais aberto.
37 Como observamos no início desta seção, a produção de um adereço Pataxó não se limita
apenas ao processo de montagem ou tecimento da peça, mas compreende desde a
extração da matéria-prima, que pode requerer maior ou menor esforço do produtor, na
dependência da sua localização. Voltairis, anteriormente referido, relata, com detalhes,
como é o processo de confecção de uma tanga de biriba:
Pra fazer uma tanga é o seguinte: tem que primeiro fazer uma inxó que é de
madeira, tem que ser uma madeira resistente pra que ela não possa pocar ou aliás
lascar na hora de tá batendo lá na madeira. A melhor é feita de braúna. Depois da
inxó pronta aí sim que vai pra mata. Tem que encontrar a biriba que é uma madeira.
Você tem que encontrar ela bem certinha, ela com alguns caroços ou aliás nós, ela
não presta, não serve.
Dependendo do local, por que tem biriba as vez que tá num local lá embaixo no
barranco, num buqueirão que a gente fala, já tem outras que fica na chã em cima.
Quando ela é na chã a gente pode ficar no chão mesmo, mas quando é lá no brejo,
tem fazer um jurá pra poder a gente subir e tirar.. [...] Se for pra criança você tira de
uns quatro palmo, agora se for pra adulto é mais uns dez palmos. E aí tem um
processo que a biriba é o seguinte se for tirar ela com facão, ela não sai a fibra assim
tipo macia, se for de facão ela sai assim tipo uma casca. A inxó serve pra isso, pra ela
Cumuruxatiba. As vendas nas praias são mais frequentes no verão, quando há um fluxo
maior de turistas na região.
A comercialização de artesanato, ainda que dependente de consumidores sazonais,
aparece como uma indispensável via de acesso ao mercado, mesmo para os índios
das comunidades do Monte Pascoal que, distantes dos principais pontos de
comércio, têm que se submeter a intermediários ou se ausentar dos seus locais de
moradia na alta estação. (Sampaio 2000: 12).
44 Durante o inverno, a alternativa é recorrer a lugares mais distantes, mediante a
participação em feiras de artesanato e eventos que permitem a comercialização. Mas
ainda assim essas oportunidades não podem ser aproveitadas por todos, já que poucas
são as famílias que reúnem as condições para custear as viagens, o que submete muitas
delas, na maioria dos meses do ano, a uma situação de grave restrição econômica,
principalmente em Coroa Vermelha, local em que as famílias dependem, quase que
exclusivamente, da venda desses materiais.
Pataxó da Bahia. Por terem um forte sentimento de pertença ao lugar de onde saíram
(Barra Velha), os Pataxó ali estabelecidos mantêm relação também através dos adereços
que, na Bahia, são usados, dado demonstrativo de que nem as fronteiras territoriais
nem a distância impede a circulação dos adereços, o que assegura uma unidade, ou
como poderíamos dizer, um padrão Pataxó. Mas, cabe ressaltar que, não obstante
perceba-se a tendência à criação de um padrão, não prevalecem constrangimentos com
esse fim, o padrão ou a unidade se constituindo a partir da imagem de uma
“comunidade imaginada” (Anderson 1989: 14), que perpassa territórios distintos e
distantes.
Conclusão
49 Propomos, neste artigo, uma descrição dos adereços Pataxó, compreendendo desde a
matéria prima até a comercialização, e destacando, na produção, os processos de
aprendizagem que os mais velhos transmitem aos mais jovens, tal como lhes foi,
reciprocamente, transmitidos.
50 Nessa pequena mostra é possível perceber a variedade dos adereços Pataxó, que se
desdobra à medida que um novo detalhe é acrescentado, seja uma nova matéria-prima
utilizada em um cocar, um colar ou um cinto. Os detalhes, tanto produzidos por
matérias-primas de origem vegetal e animal quanto por produtos industrializados,
tornam-se significativos e agregam valor aos objetos.
51 É notável, assim, a grande rede que se tece através da circulação dos adereços,
permitindo aos Pataxós se manterem em uma dinâmica constante, de criação de novos
modelos, de inserção de novas matérias-primas, facilmente expandidas, uns e outras, às
diversas aldeias Pataxó, o que tende a produzir uma certa unidade nos adereços do
povo Pataxó, constituída, é claro, por uma enorme variedade...
BIBLIOGRAFIA
Anderson, Benedict. 1989. Nação e nacionalismos. São Paulo, SP: Ática.
Lagrou, E. 2010. “Arte ou artefato? Agência e significado nas artes indígenas.” Proa – Revista de
Antropologia e Arte 02 (1). Acesso em: 23 mar., 2011 (http://www.ifch.unicamp.br/proa/DebatesII/
elslagrou.html).
Sampaio, José Augusto L. 2000. “Breve história da presença indígena no extremo sul baiano e a
questão do território Pataxó de Monte Pascoal.” Pp. 121 - 136 in Política indigenista leste e nordeste
brasileiros, organizado por M. A. do E. SANTO. Brasília, DF: Ministério da Justiça/Funai.
NOTAS
1. Mapa elaborado por Juari Braz.
2. Entrevista concedida por Cristiane Maria de Oliveira Jandaia, 33 anos, em março de 2011, na
cidade de Cumuruxatiba - BA.
3. A Escola Kijetxawê Zabelê, com sede na Aldeia Tibá, distribui-se em seis núcleos localizados em
aldeias e extensões, na região de Cumuruxatiba. São elas: Aldeia Tibá, Pequi, Cahy, Maturembá
(extensão da Tibá), Alegria Nova e Monte Dourado.
4. Entrevista concedida por Anderson Souza Ferreira, 29 anos, durante pesquisa de campo em
janeiro de 2011, na cidade de Cumuruxatiba – BA.
5. Entrevista concedida por Voltairis - Irisnan Pataxó-, durante pesquisa de campo na Aldeia
Pequi, realizada em fevereiro de 2011.
6. Idem.
7. Todas as fotografias elaboradas pela autora.
8. Palavra em patxohã para tanga ou roupa.
9. Conjunto de tanga de taboa é um kit composto por um cocar, um colar, um bracelete, uma
tornozeleira e uma tanga, enfeitados com penas de galinha de granja tingidas. Pode ser
encontrado sob diversas cores.
10. Também conhecido como Shopping Indígena, o comércio de artesanato fica localizado no
Parque Indígena, uma área próxima à praia de Coroa Vermelha. Wilson não é Pataxó, mas por
viver na mesma região, convive e mantém contato com os Pataxó desde a infância.
11. Feita de taboca, uma espécie de bambu, a zarabatana é um arma de sopro acompanhada de
pequenas flechas usadas, hoje, por alguns povos indígenas, para abater pássaros.
12. Um kit feito pra venda composto por um pequeno arco, um bajaú, com algumas flechas e uma
pequena lança de pati.
13. Entrevista concedida em março de 2011, na Aldeia Tibá.
14. Entrevista concedida por Voltairis - Irisnan Pataxó, durante pesquisa de campo na Aldeia
Pequi, realizada em fevereiro de 2011.
RESUMOS
O presente artigo é baseado na minha dissertação de mestrado intitulada “Arte e Identidade:
adornos corporais Pataxó”, fruto de uma pesquisa etnográfica realizada entre 2010 e 2012, junto
ao povo Pataxó do Extremo Sul da Bahia. Ele descreve os adereços pataxó, destacando os
processos de aprendizagem, produção, comercialização e circulação entre as aldeias, e apresenta
também uma pequena mostra da variedade existente.
This article is based on my dissertation entitled "Art and Identity: Pataxó body adornments", the
result of an ethnographic research conducted between 2010-2012, among the Pataxó people from
the South of Bahia. The research describes the Pataxó adornments, highlighting processes of
learning, production, commercialization and exchange between the different communities, and
presents the diversity of the Pataxó’s artwork.
ÍNDICE
Keywords: adornments, Pataxó Indians, identity, art
Palavras-chave: adereços, Pataxó, identidade, arte
AUTOR
ARISSANA BRAZ BOMFIM DE SOUZA
Mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia. Professora na Escola
Indígena Pataxó Boca da Mata.
arissana_braz@yahoo.com.br
NOTA DO EDITOR
Recebido em: 2013-05-06
Aceito em: 2013-09-26
informa-nos que o nome da aldeia já havia sido escolhido e que os índios liderados por
Ipê já o consideravam cacique antes mesmo da conquista da terra, o que também ficou
registrado na declaração dos “Índios Pataxós Sem Terras”, escrita em 1993. 3 Devemos
levar em conta, portanto, que a Aldeia Velha enquanto comunidade política é anterior
ao seu definitivo estabelecimento no território.
12 Logo que cheguei em Aldeia Velha, ouvi que aquela era uma aldeia diferente das outras
porque Ipê "não chamou índio de aldeia, chamou índio da cidade". Ipê explica que
procedeu assim, entre outras razões, "pra não ter problema com os caciques". Tudo
indica que ele buscava, também, um espaço onde pudesse exercer mais livremente a sua
vocação política: “Eu não quis ocupar índio de aldeia nenhuma pra trazer pra Aldeia
Velha. Por quê? Porque [...] eu ia sentir assim, que eu tava tirando os índios das outras
aldeias pra formar uma aldeia pra mim, e o meu interesse não era esse”. Ipê sempre
enfatiza que os índios no Arraial d'Ajuda não tinham “conhecimento” de seus direitos,
referindo sua atuação entre eles como um trabalho de ensino, de convencimento, como
reconhece uma moradora da Aldeia Velha: "Ipê ensinou muitas pessoas aqui a se
reconhecer como indígena". Destacando a singularidade do seu trabalho, Ipê declara
que, diferentemente de outras lideranças atuantes na época, ele “conhecia a aldeia e
conhecia os índios que vivia fora”, estando, portanto, habilitado a agir como mediador
entre os índios que viviam no Arraial d'Ajuda e o crescente movimento de afirmação
identitária e reivindicação política e territorial pataxó, que tinha em Coroa Vermelha o
seu espaço mais ativo. Para tanto, o domínio de um discurso politicamente vigoroso e
inovador em torno dos direitos dos índios, e especialmente do direito à terra, foi
decisivo para que Ipê alcançasse a posição de liderança dos “índios desaldeados” –
assim designados, atualmente, pela comunidade. A aldeia enquanto comunidade
política é, assim, inaugurada por um compromisso entre o cacique e os seus liderados,
cuja posição de mediador do acesso ao reconhecimento, aos direitos e à terra é a
garantia oferecida pelo primeiro em troca da lealdade dos últimos. A retomada
consolida esta parceria, que a precede e é, de fato, sua condição. Nos termos deste
compromisso, a palavra “trabalho” ganha uma ênfase moral, pretende desenhar um
ideal de liderança: movido pelo desejo de "fazer o trabalho" e, por fim, amadurecido
pelo próprio esforço, pois "o trabalho ensina". Do outro lado do jogo político, aqueles
que mostraram determinação e "quiseram entrar no trabalho" foram os primeiros
aliados, formaram a base de sustentação política do cacique, e sentiram, com a chegada
de novos moradores, que a sua precedência no território deveria ser admitida como
precedência, também, de seus interesses.
13 O afastamento de Ipê do cargo de cacique foi precipitado por uma crise nesta parceria.
Em agosto de 2008, ele renuncia ao posto de cacique, em decorrência de um sério
conflito com a família indígena há mais longo tempo estabelecida no local, visto que ali
residente desde antes da retomada. No mesmo ano, Antônio, primo mais jovem de Ipê
recentemente estabelecido em Aldeia Velha, propôs à comunidade tornar-se cacique.
Ipê, então, decidiu concorrer com Antônio e, pela primeira vez, foi realizada uma
eleição para cacique em Aldeia Velha. Por fim, Ipê foi sucedido por Antônio, escolhido
pela maioria da comunidade. Como André Rego (2012: 105-108) indicou a respeito de
Coroa Vermelha, a eleição de um cacique pataxó é uma forma de escapar aos "conflitos
internos". O cacique eleito reivindica uma autoridade pretensamente independente das
lealdades implicadas na fase inicial de ocupação da aldeia. A liderança de Ipê, amparada
aldeia seria ainda “nova na cultura”. Neste sentido, é bastante significativo que a
primeira daquelas visitas tenha sido feita a Barra Velha. Atualmente, o bom
desempenho da Aldeia Velha nos Jogos Indígenas Pataxó, promovidos sempre no mês
de abril, bem como nos cantos e danças que têm lugar nas situações de reivindicação
política que reúnem as várias aldeias, é tomado como sinal do comprometimento
daquela comunidade com os interesses de todo o povo e costuma ser objeto de atenção
e de comentários positivos, especialmente entre os mais jovens. Segundo alguns líderes,
as relações da Aldeia Velha com as outras aldeias já teriam sido caracterizadas por um
sentimento de inferioridade, hoje suplantado. Satisfeitos, declaram que, hoje, Aldeia
Velha conquistou o “respeito” das outras aldeias, que puderam, assim, ver que eles
também "conhecem a cultura".
17 O investimento dos líderes mais jovens, que assumiram a tarefa de “desenvolver a
cultura” na aldeia, faz parte, portanto, de um esforço pela plena inserção da Aldeia
Velha no território Pataxó e de superação daquele momento anterior em que a aldeia
era, como eles dizem, "pouco divulgada". Isso mostra que o engajamento no movimento
de fortalecimento cultural e a nova conformação de uma cultura pataxó
constantemente reformulada se têm em vista o incremento da identidade “para fora”,
respondem, também, à política vivida “para dentro”, entre as aldeias. A questão do
reconhecimento pode, assim, no caso da Aldeia Velha, e para efeito deste argumento,
ser deslocada de sua acepção marcadamente interétnica, para sublinharmos o seu
sentido intraétnico.
18 Ao analisar o contexto escolar indígena, Ana Cláudia Souza (2001: 107) indicou a
emergência de um novo tipo de lideranças nas aldeias pataxós. Ao lado dos líderes
tradicionais, mais velhos, estariam em ascensão lideranças jovens – em geral, entre 20 e
35 anos – que tiveram na escolarização um dos principais mecanismos pelos quais se
tornaram representantes do grupo. Souza destaca que os professores indígenas são os
principais integrantes dessa nova categoria de líderes . Podemos levar em conta, ainda,
outros segmentos jovens que partilham desta posição, como os estudantes
universitários indígenas e os “pesquisadores pataxós”, termo nativo que pode abranger
alguns dos jovens engajados em iniciativas de fortalecimento cultural que envolvam
estudos sobre a língua e a história pataxó e também a criação de um corpus de
narrativas, cantos e danças, artesanato, desenhos, jogos e celebrações, que vem sendo
registrado em livros e apostilas usados nas escolas. Um líder jovem pode ser
reconhecido como “pesquisador” mesmo sem nenhum vínculo formal com o universo
acadêmico ou de ensino em geral, embora seja comum que estes espaços sejam
ocupados por um mesmo agente. O “conhecimento da cultura” é tomado pelos jovens
pataxós como um estudo, objeto sobre o qual se deve falar com toda propriedade e que
os reveste de autoridade. Atualmente, várias iniciativas da parte dos professores
indígenas e dos pesquisadores pataxós veem reunindo, registrando e reformulando a
história e os conhecimentos tradicionais, tendo por base a memória das gerações mais
velhas, e, simultaneamente, abrindo-se para múltiplas referências de outros contextos
indígenas, próximos e distantes. O domínio do material assim produzido, escrito e
também audiovisual, é muito valorizado pelos jovens, com as vantagens e o ganho
simbólico associados a esta “cultura” assim revalorizada, ao conhecimento letrado e a
uma linguagem estética refinada e atraente. Este movimento vem configurando novos
espaços de protagonismo abertos aos agentes sociais indígenas, como a escola indígena,
os cursos superiores interculturais e os, assim chamados, grupos de cultura. Longe de
representar uma ruptura com aquele processo que já vinha consolidando a identidade
pataxó em torno da demanda pelo território, este movimento reedita, em uma nova
linguagem e com novos instrumentos, uma velha prática, atualizando uma tendência já
estabelecida em enfatizar elementos distintivos como o idioma e a produção artesanal.
Dada esta unidade de fundo, é interessante acompanharmos a definição de um campo
polifônico.
19 Os moradores da Aldeia Velha se familiarizaram com aquele discurso renovado de
afirmação cultural a partir da já referida criação do grupo de cultura, há quase dez anos
atrás, que mobilizou, sobretudo, lideranças jovens. Durante todo o meu trabalho de
campo eu estive hospedado na casa de Ângelo, sua esposa Arnã e seu cunhado Rodrigo.
Ângelo e Arnã são estudantes do ensino superior em cursos de licenciatura
intercultural para formação de professores indígenas, em duas instituições diferentes, a
UNEB (Universidade do Estado da Bahia) e o IFBA 4. Todos os três ensinam na escola
indígena da Aldeia Velha e acompanharam o desenvolvimento do grupo de cultura
desde que para ali se deslocaram. Ao se estabelecer em Aldeia Velha, Arnã esteve entre
as primeiras “lideranças da cultura”, unindo-se a outros jovens que tomaram a
iniciativa da criação do grupo. Ela trazia uma significativa experiência e um discurso
inovador gestados em Coroa Vermelha, onde havia atuado como liderança ligada à
Reserva da Jaqueira e, posteriormente, ao grupo Torotê, duas iniciativas indígenas de
reafirmação cultural. Ela se aproximou da Aldeia Velha quando vendia artesanato no
Arraial d'Ajuda e, por fim, se estabeleceu nesta aldeia a convite de Ipê, que a conhecia
por seu envolvimento no movimento indígena em Coroa Vermelha. Durante a minha
estadia em sua casa, ela estava desenvolvendo uma pesquisa solicitada em uma
disciplina do curso de licenciatura intercultural e escolhera como tema o artesanato
pataxó. Com uma visão muito atenta para as transformações estéticas que ela viu
acontecer e ajudou a construir, Arnã se interessou em procurar Ipê para utilizar, em
seu trabalho, as fotografias antigas de quando, ainda jovem, ele tinha uma loja de
artesanato em Coroa Vermelha. Ela pediu ao seu irmão Rodrigo, também professor
indígena - e reconhecido como habilidoso artesão - que desenhasse modelos de cocares
antigos, a partir das fotos. Rodrigo tem muitos desenhos das peças atuais e das pinturas
corporais pataxós, alguns da sua própria criação e outros das suas apostilas de
professor, que compõem uma parte daquele acervo que vem sendo construído,
coletivamente, pelos pesquisadores pataxós. Os dois irmãos observavam com interesse
as diferenças de estilo e material entre as peças de duas décadas atrás e as atuais. As
primeiras lhes pareciam desajeitadas e ambos reconheciam no processo de afirmação
cultural um trabalho, também, de refinamento técnico. Do outro lado, Ipê, quando o
visitei na noite daquele mesmo dia, me expressaria a sua posição sobre essas
transformações. Contente pelo pedido de Arnã, ele me disse que não comentou nada
com ela, manteve-se silencioso, mas sabia que ela viera buscar, ali, o "verdadeiro"
artesanato pataxó, mais “rústico” e “tradicional”. Ele parece se ressentir um pouco das
mudanças que estão ocorrendo, e diz que mesmo antes de haver um grupo dedicado ao
fortalecimento cultural, Aldeia Velha sempre teve cultura, que os índios dali tanto
tinham cultura, que retomaram aquela terra.
20 Manuela Carneiro da Cunha já chamou nossa atenção para o fato de que os povos
indígenas estão incorporando o conceito antropológico de cultura em seus próprios
vocabulários, transformando-o em um conceito nativo. Esta operação introduz a
“cultura”, reapropriada e reformulada (enfim, como "metadiscurso"), na lógica da
cultura (em termos antropológicos) enquanto universo de significado compartilhado
por uma coletividade: ordens discursivas diferentes que "contaminam" uma à outra
(Carneiro da Cunha 2009). O ligeiro desacordo entre os pontos de vista de Arnã e de Ipê
que, aparentemente, passou despercebido entre eles, aponta para a possibilidade de
que, entre os Pataxó, diferentes agentes possam reivindicar diferentes perspectivas
sobre a cultura. É possível, portanto, que a apropriação nativa do conceito de cultura
seja variada e desigual dentro do grupo. Em oposição à ideia de cultura como um
discurso especializado, Ipê nos propõe uma perspectiva mais ampliada sobre a cultura,
que envolve, destacadamente, a luta pela terra – dimensão fundamental da identidade
pataxó atual, uma identidade em movimento, em luta. Assim contrapostas estas
perspectivas parecem estranhas uma à outra, o que não ocorre, de fato. Assim como
Arnã reconhece e valoriza a luta pela terra como dimensão da cultura e esteve
pessoalmente envolvida em outras retomadas pataxós, também Ipê reconhece no
movimento de reafirmação cultural assumido pelos jovens uma iniciativa legítima com
a qual se dispõe a dialogar e na qual lhe interessa intervir construtivamente. Os dois
pontos de vista sobre a cultura são igualmente admissíveis, dentro de um campo em
definição, pelos diferentes agentes que os reivindicam. Ocorre que eles estão engajados,
prática e discursivamente, de modo diverso no trabalho coletivo de redefinição da
identidade social pataxó – bem como no campo político tal qual ele se desenha,
localmente, em Aldeia Velha. O que é importante captar é que a cultura pataxó não é
um campo de consenso, mas uma arena significativa (nos termos weberianos em que
Gabriel Cohn define a cultura), onde os agentes sociais “orientam-se por diretrizes que
lutam para fazer valer também para os demais” (Cohn 2006: 10). Parece que esta arena
significativa espelha, também, a arena política em que se definem novos espaços de
atuação, novos atores e novos discursos, com destaque, no caso Pataxó, para as
lideranças jovens escolarizadas que assumiram o discurso da “cultura”.
21 Como já foi assinalado, a mobilização política em torno da reconstituição territorial
sempre envolveu, entre os Pataxó, o esforço pela restituição do direito de definir a sua
identidade social em seus próprios termos. Atualmente, a luta pela reapropriação da
identidade indígena pataxó está se formatando em um discurso especializado,
garantido por um grupo no interior do corpo social Pataxó. Se do ponto de vista das
relações interétnicas este discurso enseja o reconhecimento do seu direito à
autodeterminação, também no interior do grupo social este mesmo discurso é capaz de
elevar certos agentes a espaços de protagonismo. De fato, o reconhecimento externo só
pode acontecer porque, no interior das aldeias pataxós, esses agentes, sob certas
condições, ocupam os novos espaços de mobilização e assumem o papel de lideranças
no âmbito da revalorização da cultura.
22 Em certo sentido subsiste uma dicotomia entre o pensamento das gerações mais velha e
mais nova. Ana Cláudia Souza (2001: 83) demonstrou isso a respeito da escola. Se para
os primeiros a escola é o lugar de aprender as coisas dos brancos para que os Pataxó
não sejam mais enganados (evocando, paradoxalmente, a figura do índio afastado do
conhecimento legítimo), para os últimos a escola é o lugar privilegiado do
fortalecimento da cultura indígena. Ambas as perspectivas apontam para a superação
das relações de subalternidade para com a sociedade envolvente (Souza 2001: 85) e,
neste sentido, há uma continuidade de fundo sob o aparente desencontro 5, que se
expressa, entre outras coisas, no mútuo reconhecimento e, sobretudo, no respeito dos
jovens por aqueles que, no dizer de Souza (2001: 51), sofreram para “viabilizar o
presente”. De modo semelhante, a opção dos jovens pela diferença cultural como chave
interpretativa para explicar as relações entre índios e não índios, em um nível mais
simétrico, oferece um ganho interessante ao escapar da leitura hierarquizada que
Acolhendo esta arena significativa como definição, desde fora, da cultura pataxó,
podemos concluir que os discursos nativos sobre a cultura, em seu interior, guardam
com esta arena uma relação metadiscursiva (como sugeriu Carneiro da Cunha 2009);
dirigem-se a ela sendo, a um só tempo, expressão de sua realização, sua dinâmica
própria. É a partir deste quadro complexo que se destacam, hoje, entre os Pataxó,
atores de um novo tipo de protagonismo, engajados em uma reformulação cada vez
mais elaborada da cultura.
BIBLIOGRAFIA
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da Bahia.” Pp.454-463 in Agostinho da Silva, Pedro. (et al). Tradições étnicas entre os Pataxó no Monte
Pascoal: Subsídios para uma educação diferenciada e práticas sustentáveis. Vitória da Conquista, BA:
Neccsos-Edições UESB. (disponível em CD)
Bourdieu, Pierre. 1996. A Economia das Trocas Linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Edusp.
Carvalho, Maria Rosário Gonçalves de. 1977. Os Pataxó de Barra Velha: seu subsistema econômico.
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Cohn, Gabriel. 2006. “O Sentido da Ciência.” Pp. 7-12 in Weber, Max. A “Objetividade” do
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Grossi, Gabriele. 2004. Ici nous sommes tous parents: Les Pataxó de Barra Velha, Bahia, Brésil. Tese de
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Rego, André. 2012. “Uma aldeia diferenciada”: conflitos e sua administração em Coroa Vermelha/BA.
Brasília: Tese de Doutorado apresentada ao PPGS/UNB.
Sampaio, José Augusto Laranjeiras. 2010. “Sob o Signo da Cruz” Relatório Circunstanciado de
Identificação e Delimitação da Terra Indígena Coroa Vermelha.” Cadernos do LEME 2(1): 95-17.
(http://www.leme.ufcg.edu.br/cadernosdoleme/index.php/ e-leme/article/view/21/19)
_____. 2000. “Pataxó: Retomadas na rota do quinto centenário.” Pp.715-721 in: Ricardo, Carlos
Alberto. Povos Indígenas do Brasil: 1996-2000. São Paulo: Instituto Socioambiental.
Souza, Ana Cláudia Gomes de. 2001. Escola e Reafirmação Étnica: O Caso dos Pataxó de Barra Velha.
Salvador: Dissertação de Mestrado apresentada ao PPGCS/UFBA.
NOTAS
1. Grande parte dos argumentos aqui apresentados foram recuperados do primeiro capítulo e da
segunda e sexta seções do segundo capítulo da minha monografia de conclusão do curso de
graduação em Ciências Sociais, com concentração em Antropologia na FFCH-UFBA, intitulada
“Saber Andar”: Refazendo o Território Pataxó em Aldeia Velha, aprovada em abril de 2013.
2. Nos termos de uma relação de reflexividade, seguindo a inspiração de Manuela Carneiro da
Cunha (2009: 311 - 373).
3. “Os índios Pataxos sem terras se reuniram junto com o cacique, ipê. Discutiram um assunto
muito sério, e tomaram medidas. O que poderia fazer para conquistar a terra. Foi discutir
reuniões a um ano atrás o cacique ipê, fez pesquiza e descobriu um área de terra tradicional, que
já era de índios a muitos anos. No dia seguinte eles ocuparam esta área por nome Aldeia Velha, é
tanta verdade que Aldeia Velha que os índios quando ocuparam estão encontrando coisas
tradicional nesta área. [...]” [sic] (25 de maio de 1993). No final deste trecho, “coisas tradicional” é
uma referência aos vestígios arqueológicos ali encontrados.
4. Instituto Federal da Bahia, cuja unidade de Porto Seguro oferece o curso de Licenciatura
Intercultural Indígena. Pode ser interessante citarmos, aqui, o site da instituição, que informa que
a proposta do curso é a formação de professores indígenas em licenciatura plena, “com enfoque
intercultural, para lecionar nas escolas indígenas localizadas em aldeias e reservas indígenas em
consonância com a realidade social e cultural específica de cada povo e segundo a legislação
nacional que trata da educação escolar indígena”.
5. As atitudes em relação à escrita são bastante expressivas. Os Pataxó valorizam o letramento
como instrumento para superação da desigualdade em relação ao “branco”. Afastados da escrita,
ou do “papel”, reconheciam-se, no passado recente, afastados do poder e dos direitos. Hoje, os
jovens assumem a “cultura” como um conhecimento cultivado e cumulativo, trazido para o
domínio da escrita. Chamar a escrita em favor da cultura significa, por um lado, apropriar-se de
uma poderosa tecnologia do mundo dos brancos e, por outro, reapropriar-se do conhecimento
tradicional, historicamente desvalorizado.
6. Duas gerações, grosso modo. Muito provavelmente este quadro pode ser complexificado e
poderão ser definidos não dois, mas vários modos distintos de engajamento político que sejam
geracionalmente marcados, especialmente no cruzamento com outras determinações, como o
gênero, o pertencimento a certos grupos familiares ou o próprio letramento - ao qual Souza dá
um interessante destaque.
7. Bourdieu (1996: 81) nos alerta para "a contribuição que a luta de classificações, dimensão de
toda luta de classes, traz à constituição das classes” e outros grupos sociais mobilizados. Para ele,
cumpre ao cientista social restituir "a parte que cabe às palavras na construção das coisas
sociais". Gabriele Grossi (2004, p.65) já tratou da luta pela afirmação da identidade étnica Pataxó
como um caso particular das lutas de classificação nos termos de Bourdieu. Grossi propõe um
exercício interessante, ao demonstrar que os Pataxó reconhecem fases diferentes de suas
relações com os brancos em um processo de disputa pelo poder de nomear os grupos sociais:
antes eles eram chamados “tapuios”, e assim referidos como selvagens; depois como “caboclos”, e
deslegitimados enquanto um povo nativo; mas, hoje, declaram-se e são reconhecidos como
“índios”, revertendo um quadro de alienação simbólica.
RESUMOS
Discuto, partindo dos dados de uma pesquisa etnográfica realizada em Aldeia Velha, como o
processo de reconstituição territorial pataxó vem abrindo novos espaços de atuação política aos
agentes sociais indígenas, e entrevejo algumas implicações desta pluralidade de modos de
atuação surpreendidas no interior de um trabalho coletivo de reestruturação simbólica.
In this article, I try to demonstrate how the growing mobilization of the Pataxó Indians to
recuperate their territorial rights, as well as the emergence and consolidation of new villages,
created new spaces of political protagonism, and how some of the indigenous agents succeeded
in making use of these spaces in an innovative and creative way. The article focuses on the
context of the Pataxó village of Aldeia Velha, where I carried out fieldwork in 2011.
ÍNDICE
Palavras-chave: Pataxó, protagonismo indígena, afirmação cultural
Keywords: Pataxó Indians, indigenous protagonism, cultural affirmation
AUTOR
HUGO PRUDENTE DA SILVA PEDREIRA
UFBA, BA, Brasil
Graduado em Ciências Sociais, com concentração em Antropologia pela FFCH/UFBA.
hugo_prudente@hotmail.com
NOTA DO EDITOR
Recebido em: 2013-04-30
Aceito em: 2013-09-19
Introdução
1 Inicio este texto com um breve panorama. Os Xokó são um pequeno povo indígena
ribeirinho situado entre os estados de Sergipe e Alagoas, Nordeste do Brasil. Ocupam
uma ilha e uma porção de terras continentais no baixo rio São Francisco, margem
direita a jusante do rio, no município de Porto da Folha, estado de Sergipe. Trata-se de
um povo cujo território e ascendência reporta-nos às missões jesuíticas e capuchinhas
estabelecidas no final do século XVII, e encarregadas de efetuar conversões
relativamente unilaterais dos sistemas de crenças das populações nativas americanas,
i.e., convertê-los ao cristianismo, assim como integrá-los, num momento posterior, ao
sistema social e laboral da nova colônia portuguesa. Não realizo, aqui, uma descrição
mais densa dessa história, apenas recorro a este e outros aspectos por necessidade de
fornecer ao leitor breves contextualizações.
2 A história dos índios Xokó é demarcada por conflitos violentos por terras e territórios,
infortúnios bastante comuns a praticamente todas as populações nativas americanas.
Trata-se de uma característica muito persistente ainda na contemporaneidade, uma vez
A tensão na memória
9 O discurso dos mais experientes, que remonta à trajetória histórica dos índios Xokó
para atribuir sentido à vida diária da terra indígena, é percebido como uma referência
fundamental para os jovens no que tange à construção de uma disposição afetiva
específica em torno do que se entende por “identidade Xokó”, e do que eles são e/ou
deveriam ser no decorrer do tempo, enquanto “continuístas” de um território muito
recentemente conquistado. Nesse sentido, pode-se afirmar, em alguma medida, que
esta disposição9 está relacionada, em parte, a duas dimensões: i) como já dito, com as
histórias contadas pelos pais e demais parentes que protagonizaram diretamente o
conflito; e ii) com fragmentos de “memórias” da infância da parte dos próprios jovens
adultos com os quais dialoguei, qual seja, com aqueles que em meu estudo tinham cerca
de trinta anos. Cabe destacar, então, que uma parcela dos jovens ouviu e vivenciou a
luta, ao passo que outros apenas dela ouviram falar, do que resulta que há entre eles
percepções bastante diferenciadas no presente contexto de pesquisa.
10 Ao ouvir, interessado, suas histórias de vida, meu objetivo parecia-lhes algo um tanto
estimulante, pois não era comum pesquisadores buscarem o passado justamente em
suas falas, mas naquelas dos mais vividos. Alguns ficavam surpresos e hesitantes
quando eu solicitava conversar sobre as suas histórias. Joana 10, que estava prestes a
fazer o vestibular, por exemplo, expressou desconforto diante de meu incomum pedido.
Dominada pela timidez, recuou, não obstante tenha se disposto a falar em outra
ocasião: “eu não sou muito boa nisso, meu avô [o pajé] e minha avó sabem contar
melhor”. De um modo geral, as memórias que recolhi remetem-nos ao contexto de
privações em que viviam os pais e parentes destes jovens e, simultaneamente, às
vantagens que os fazendeiros insensíveis a tais condições buscavam extrair-lhes,
mesmo que eles estivessem enfrentando as piores condições de sobrevivência. Este
contexto de subalternidade é algo marcante na lembrança daqueles que conversaram
comigo. O cacique Bá costumava me dizer: “hoje, todos nós vivemos em um paraíso.
Com todos os problemas que ainda enfrentamos, nem se compara. E é por isso que
temos que lutar para não perder nunca mais nenhuma destas conquistas”.
11 Paulinho, neto do meu anfitrião, pajé Raimundo, afirma que jamais vivenciou nada
parecido com o que lhe diziam, e que a atual situação da aldeia representa, de certo
modo, uma dívida de todos para com os anciãos. No conjunto de suas memórias, o que
mais ficou marcado para ele foi o injusto sistema de relações econômicas que prevalecia
na produção de alimentos da fazenda, na época anterior aos atos organizados de
resistência indígena para recuperação da Ilha. Este período é caracterizado como um
tempo de sofrimento coletivo bastante acentuado, cujas condições materiais de
existência eram extremamente precárias. Seus parentes ainda viviam como meeiros da
família Britto. Tudo o que era produzido pelos índios Xokó em suas terras, embora na
posse da família Britto, era dividido, obrigatoriamente, de acordo com o sistema de
meia11, mediante o qual os usurpadores da terra retinham, levando em consideração,
também, a qualidade da produção, entre metade a dois terços da colheita de uma
família. O restante, na maioria das vezes, não era suficiente para atender a família,
relatou-me. Paulinho encara este fato como um ato paradigmático das injustiças que
acometiam seus parentes mais experientes, sem que houvesse qualquer assistência do
Estado para impedir que isso continuasse a acontecer. Isso, dizia-me, causava-lhe
revolta, sentimento central que o levou, assim como outros Xokó mais jovens, a ter
mais comprometimento com a luta, a indianidade e a conquista territorial dos Xokó e
do movimento indígena de um modo mais amplo.
12 Numa conversa com Anísio, criador do “Drama”, ele me relatou uma tensa recordação
do tempo de criança, quando lhe era permitido, na ocasião em que seu povo enfrentava
proibições de entrada e utilização de recursos naturais da área contígua à Ilha de São
Pedro12, acompanhar o pai para coletar fechos de madeira na Caiçara 13, parcela da terra
indígena ainda sob a posse dos Britto e na qual mantinham a criação de seu gado sob
forte vigilância armada:
[…] a gente era um povo pobre, não existia aposentadoria … eu não sei por
que … E a gente vivia da panela, da cerâmica … minha mãe, meu pai … até pra
gente sobreviver às custas da cerâmica era um pouco difícil porque o barro
apropriado pra construção era na Caiçara, e pra isso tinha que ir buscar lá …
13 Apesar dessa participação perigosa de Anísio nas idas e vindas pelas matas contíguas,
vale registrar que a necessidade de vigilância dos Xokó entre si e os parciais
impedimentos de mobilidade concernentes aos menos experientes ocorriam
praticamente em todos os âmbitos da vida diária da Ilha. Conforme Bá relatou, por
qualquer mínimo descuido dos pais, jovens e crianças, uma vez desassistidos, poderiam
se afastar nas matas, para brincar ou tomar banho no lado crítico do rio, na estreita
margem localizada ao sul, entre a Ilha e a Caiçara. Tratava-se do local de maior
potencial de conflitos, onde poderiam ser alvos das más intenções dos homens a serviço
dos fazendeiros, visto que os confrontos mais imediatos ocorriam, sobretudo, com os
capangas a serviço dos Britto.
14 Não era muito raro, contaram-me, eles serem repreendidos pelos pais por conta desse
descuido. As brincadeiras que ocorriam entre eles eram restritas ao centro da Ilha, aos
olhos de todos. Certamente, isso afetava, sensivelmente, os mais jovens, pois muitos
deles, em particular as crianças, eram submetidas a uma forte tensão, cuja lógica, de
certa maneira, deveria soar um tanto incompreensível devido às suas tenras idades,
mas que seria inevitavelmente desvendada algum tempo depois, no contexto em que o
litígio já estava consumado. Esta história passou a servir como um vetor fundamental
para a construção de uma nova socialidade Xokó, assim como serviu de suporte para a
mobilização coletiva em torno das posteriores políticas locais de identidade, centradas
nas novas conquistas de políticas públicas de Estado direcionadas ao desenvolvimento
autônomo dos povos indígenas.
15 Na perspectiva dos jovens adultos que vivenciaram parte do processo, a compreensão,
ainda que tardia, da lógica do que enganosamente lhes parecia ilógico nas restrições de
mobilidade promovidas pelos pais e demais parentes, nos tempos em que eram
crianças, certamente produziu efeitos consideráveis sobre suas identidades já
“amadurecidas” na rotina segura da aldeia. Um destes efeitos certamente se refere aos
possíveis condicionamentos morais (considerados relativos) que viriam a atingir, em
alguma medida, as suas dinâmicas cotidianas de agencialidades. Entre essas dinâmicas
destaca-se a elaboração de uma reconstituição cênica destas memórias, conforme
analisarei num âmbito bem particular deste artigo, qual seja, nas práticas norteadas/
norteadoras pelas/das linguagens específicas das artes como suporte para uma
transmissão desta história e do estado de indianidade.
origem histórica compartilhada, o teatro descrito pela autora teria sido representado
com vistas a colaborar na modificação desta “deficiência”, convergindo as memórias
fragmentárias e difusas para o reconhecimento de uma origem comum baseada em
Antônio do Alto, tido como o negro fundador da comunidade do Mocambo.
20 No que concerne ao teatro Xokó, ele ocorre num período em que o processo de auto e
alter-reconhecimento oficial já está aparentemente consolidado, muito embora não
constitua uma realidade acabada, conforme analisarei mais detidamente nas conclusões
deste artigo. Os jovens Xokó lidam com o seu teatro de um modo que é possível
percebê-lo como em um estágio distinto ao dos vizinhos, ou seja, eles praticam a
performance não mais tão focada na obtenção e consolidação de reconhecimento
elementar [primeiro estágio], visto que essa etapa é considerada efetivada, o que não
era o caso do Mocambo em 1997. Os jovens Xokó, em verdade, encenam a peça muito
mais para manter e re-produzir o que já foi obtido e consolidado, focando, então, a
redução das assimetrias sociais que persistem entre eles, o Estado e os não índios. Este
processo está implicado em uma construção de socialidade perante um tipo ideal já
dado e não em vias de construção, como seria o caso do Mocambo em 1997.
21 Relatando este fato, i.e., a realização cênica da Paixão de Cristo, Anísio revela que, ao
assisti-la ainda criança, foi-lhe despertado, imediatamente, o interesse pela criação
artística, seja na escrita literária, seja na elaboração de roteiros para encenações
similares àquela promovida por Rogério. Ao prestigiar a apresentação, ele se inquietou
tentando desvendar o modus operandi da linguagem teatral, pensando em como era
possível a organização das falas, das pessoas em seus momentos de entrar em cena, do
enredo, das conexões entre as temáticas entrelaçadas e, sobretudo, lançando-se ao
desafio de pensar como ele teria feito se fosse o próprio diretor. Este foi o princípio das
posteriores atividades criativas sistemáticas de Anísio. Alguns anos depois, ele passou a
vasculhar livros velhos e a escrever, incessantemente, sobre temas diversos, guardando
e compilando tudo o que elaborou. Numa das nossas conversas, ele me mostrou alguns
de seus pequenos livros artesanais guardados entre um considerável volume de papéis
Então, ser índio, hoje, é a razão da minha paz. É a minha vida, eu acho que
em lugar nenhum eu conseguiria viver […] a não ser aqui, porque aqui é onde
eu posso … onde eu tenho varias opções de trabalhar, de conseguir meu pão,
de ter a liberdade de expressar o que eu sou … eu costumo dizer e pensar …
27 No que tange à escolha do momento histórico chave da peça, cabe mencionar que o
conflito por terras entre índios Xokó e colonos é conhecido desde o início do século
XVII, quando o colonizador Pedro Gomes recebe uma doação de 30 léguas em quadra de
terras da coroa portuguesa, dando origem ao extenso Morgado de Porto da Folha. No
entanto, “O Drama” se concentra na história de conflitos violentos e litígios judiciais
que os Xokó tiveram, ao longo do século XX, com a última família que tomou posse
irregular do território indígena, favorecida pela Lei de Terras de 1850. Esta história
conflituosa se configura como fato definitivo para a mudança radical da vida dos índios
Xokó. É no seu decorrer que a transformação mais profunda ocorre, inclusive na
indianidade, quando se opera uma espécie de “viagem da volta”. É neste contexto que
os jovens atores destacam, cronologicamente, os diversos momentos difíceis aos quais
seus parentes estiveram submetidos e, sobretudo, a superação decisiva alcançada num
processo virtuoso de etnogênese indígena23, i.e., um radical processo de transformação
sociocultural.
28 A chegada de um pesquisador/historiador na terra indígena é o ponto de partida da
encenação. As suas perguntas a um Xokó ancião provocam a sua memória e a peça
recorre à conhecida técnica do flashback, com a qual os jovens reencenam o modo como
era organizada a vida nos tempos em que predominava subalternidade laboral e
29 Numa revisão da literatura mais recente sobre os índios Xokó, pode-se perceber que O
Drama ainda é bastante marginal, e jamais foi comentado enquanto um acontecimento
que detém a sua devida importância na formação étnica dos jovens, se confrontada com
o tratamento dado a outros elementos das manifestações mais tradicionais e
emblemáticas da política de identidade local. Como são os casos do complexo ritual do
Ouricuri e o Toré, considerados, com razão, as principais “locomotivas” das identidades
dos povos indígenas do Nordeste e da continuidade histórica da cultura nativa.
Acontece que, nesta metáfora que aqui lanço mão, os “vagões” restantes trazem à tona,
também, importantes e diversos elementos – que poderiam ser percebidos apenas como
“supérfluos da identidade” – para a compreensão ainda mais ampla do modus operandi
da construção étnica e relacional de povos como os índios Xokó. E esta peça cênica
juvenil ainda persiste enquadrada como um exemplo patente destes elementos
aparentemente residuais e à espera de uma legitimação um tanto maior.
visam produzir relação positiva (socialidade) entre eles mesmos enquanto parentes, a
fim de garantir a permanente territorialização assim como a própria indianidade, dois
elementos que não são vistos entre os Xokó como realidades acabadas. E, por outro
lado, visam constituir um tipo de “socialidade interétnica” com os vizinhos não índios,
cujas relações demonstram, claramente, serem inexoravelmente assimétricas 24, a fim de
construírem, mutuamente, uma rede social que esteja o máximo possível de acordo com
os seus anseios. Ainda que regidos por diferentes gramáticas sociais, buscam um modo
de relação que seja capaz de romper com as persistentes rotas de colisão, ou ao menos
diminuir os seus efeitos mais deletérios.
34 Numa possível leitura perspectivista, se bem a compreendo, estas situações suscitam a
ideia de que a realidade não é um dado25, de modo que ela sempre tende a ser vista sob
dois ou mais pontos de vista, tal como é considerada pela teoria relativista. A realidade
seria, então, o tipo de relação que se acentua/prevalece – não necessariamente objetivo,
ou sintético de uma relação dialética – na dinâmica do encontro destes pontos de
vista26. Por um lado, se os visitantes se dispõem a viajar até a Ilha de São Pedro para
assistir ao Drama, é no sentido claro de i) buscar estabelecer um tipo de relação, de
conhecer a história local onde ela mesma se expressa através das pessoas; ii) dispor as
suas referências práticas e teóricas anteriores à prova para saber em que podem se
transformar essas experiências. Por outro lado, se os Xokó elaboram uma laboriosa
peça de teatro visando estes outros é, também, no sentido de i) transmitir o
conhecimento de si e de seu povo para além de suas fronteiras porque isto seria, em
alguma medida, necessário para a plena efetivação do seu reconhecimento; ii) e este,
para estar completo, depende, além do próprio auto reconhecimento dos índios, da
rede social mais ampla e da mútua perspectiva dos não índios. Estas dimensões
certamente não se esgotam, mas fiquemos apenas nesta amostragem.
35 Este encontro assimétrico de subjetividades distintas busca proporcionar – quando
superada a fase da dúvida, o confronto de visões – uma leitura mútua dos atores em
questão, e, consequentemente, um novo modo de relação mais próximo possível de uma
compreensão compartilhada positiva da diversidade social e cultural que envolve
ambas as perspectivas, e não o aspecto oposto, qual seja, os diálogos e as práticas hostis
com o fim de reforçar, ou ampliar, a dúvida sobre a autenticidade do outro – o que
promoveria uma anti-socialidade. De todo modo, isso não quer dizer que a mutualidade
das novas visões, porventura proporcionadas pela experiência da peça, implique
necessariamente em igualdade de percepções. Um não índio que assim se reconheça e
seja reconhecido muito dificilmente compreenderá, exatamente, o que é ser um índio, e
vice-versa. No entanto, isso não os condena à incapacidade perpétua de estabelecer,
através de uma incessante troca de experiências e de historicidades, um conhecimento
e uma relação positivas entre si.
36 Enfim, a produção de socialidade almejada pela linguagem teatral construída pelos
jovens Xokó parece refletir esta busca contínua por um modelo de relação que reflita
um estado de bem-estar e de bem-viver basicamente momentâneos e desejáveis, um
estado da vida e não uma versão acabada desta, sem possibilidades de novas
transformações.
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Helsinki.
NOTAS
1. Ver Cimi (2012).
2. Carta produzida no II Seminário Nacional da Juventude Indígena ocorrida de 25 a 30 de
novembro de 2012, em Brasília. Disponível em: <http://tinyurl.com/clyh7un>. Os vídeos com as
discussões ocorridas neste seminário estão disponíveis em <http://www.ustream.tv/recorded/
27352697>, acessos em: 28/04/2013.
3. Cf. <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=235057>, acesso em
28/04/2013.
4. Souza (2011).
5. Grandes proprietários de terras do noroeste do estado de Sergipe que, desde os fins do século
XIX, tomaram posse das terras da antiga missão catequética da Ilha de São Pedro e
protagonizaram sucessivas disputas com os índios Xokó. Ver: Arruti (2004; 2009) e Dantas (1980;
1997).
6. Considerando o peso da idade e dos desafios decorrentes de circunstâncias bastante
conflituosas a que estão constantemente submetidos, assim como o duplo trânsito, cada vez mais
intenso, entre os contextos vivenciados entre as terras indígenas e fora delas. Ver Virtanen
(2007).
7. O conceito é referido na literatura como uma forma momentânea caracterizada por um estado
pleno de bem-estar por parte de um grupo social. A socialidade concerne a tipos de relação
praticados pelos grupos sociais, cujas intenções e projetos são orientados por um horizonte
comum plenamente desejado. É na construção da socialidade que se materializam as moralidades
e eticidades do grupo e os códigos que visam à garantia da organização social que se aproxima de
um tipo ideal. Ver McCallum ([1989] 2001), Strathern ([1988] 2006) e Viegas (2007).
8. Sahlins (2011), em sua análise recente sobre parentesco, trabalha com a noção-chave ‘mutuality
of being’ para demonstrar que a construção de uma rede de parentes ocorre, sobretudo, pela
percepção da mútua implicação da existência de uma pessoa em outras.
9. Esta disposição não deve ser considerada sob a perspectiva de que ela condicionaria os jovens a
um mundo social dado, no qual eles conseguiriam apenas uma rígida adaptação aos valores
sociais já estabelecidos pelos mais experientes. Devemos considerar que os jovens, assim como os
veteranos, são atores sociais que desempenham um papel criativo em sua própria historicidade,
sendo agentes – isto é, portadores de agência (Ortner 2006) – diante dos fenômenos do cotidiano
RESUMOS
O artigo explora alguns discursos e práticas de jovens índios Xokó, os quais apontam para
estratégias de produção da socialidade do grupo, pequeno povo indígena ribeirinho situado no
estado de Sergipe, Brasil, tendo em vista o seu processo de territorialização presente na própria
vida diária. Das diversas estratégias, aquela que faz uso de linguagens das artes, objeto de análise
neste texto, alcança grande importância para o grupo mais jovem, uma vez que envolve um tipo
inovador de economia nativa de comunicação intersubjetiva com os não índios, assim como entre
eles mesmos. O uso da escrita e da linguagem teatral toma o seu devido espaço quando está em
causa, para os Xokó, o ato de transmitir, eficiente e eficazmente, aos diversos interessados que
constantemente os procuram, o significado étnico do seu modo de ser e o percurso histórico que
experimentaram para ser o que são na vida contemporânea.
This article explores some discourses and practices of young Xoko Indians, which point to
strategies for the production sociality of this group – a small indigenous community located in
the state of Sergipe, Brazil – in view of their process of territorialisation, as present in everyday
life. Among their various strategies, those that makes use of the languages of art attain special
importance for the younger members of the community, as it fosters a certain kind of an
economy of native inter-subjective communication with non-Indians, and among themselves.
The use of writing and theatrical language becomes especially important when it comes to
communicate efficiently and effectively to the many outsiders of the community the meaning of
their “ethnic” way of being and to demonstrate what, historically, made them be what they are
today in contemporary society.
ÍNDICE
Keywords: Xoko Indians, youth, history, sociality, art
Palavras-chave: índios Xokó, juventude, história, socialidade, arte
AUTOR
NATELSON OLIVEIRA DE SOUZA
PINEB/UFBA
Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas no Nordeste Brasileiro. Mestre em Antropologia
(PPGA/UFBA).
natelson81@hotmail.com
NOTA DO EDITOR
Recebido em: 2013-05-06
Aceito em: 2013-10-28
Introdução
1 Fazem parte da história recente da relação entre povos indígenas e o Estado brasileiro
ações e ideologias concebidas com base na concepção de integração cultural à sociedade
nacional. Os povos indígenas eram considerados, até recentemente, seres em transição
numa linha imaginária, com implicações substantivas, que podemos traçar como tendo
dois extremos: o indígena e o ‘civilizado’. A partir da Constituição Cidadã de 1988,
inaugura-se um novo paradigma jurídico e político, reconhecendo-se o direito dos
índios de serem eles mesmos, mantendo suas tradições, costumes, línguas e o direito
originário sobre os territórios que ocupam. A Constituição abre prerrogativa para leis,
regimentos, regulamentos, planos e ações governamentais que reconheçam o direito a
uma educação formal para indígenas, pautada nos princípios de interculturalidade,
especificidade e diferença. Subjacente a esse reconhecimento, está a ideia de uma
sociedade não homogênea, algo que nunca fomos, mas sim multicultural.
2 Porém, em termos de políticas públicas, a legislação em vigor é apenas um primeiro
passo para o reconhecimento da diferença. Para efetivar uma verdadeira política de
educação intercultural nas aldeias indígenas, deve-se observar não somente o conteúdo
das regras, mas também os processos que envolvem sua implementação. Diante disso,
deixa-se de lado uma concepção de ‘cumpra-se’ da política pública, como se a mera
regulamentação fosse elemento suficiente para a sua efetividade, pois a
operacionalização apresenta inúmeros percalços ao nível local. Neste texto
pretendemos apresentar os problemas de implementação da política de educação
intercultural no estado da Bahia, a partir da análise do novo modelo de gestão definido
como Território Etnoeducacional.
3 Essa avaliação está intrinsecamente relacionada ao protagonismo político de indivíduos
e grupos indígenas. Ela é baseada nas pesquisas que realizamos em projetos acadêmicos
e em nossa atuação em espaços do governo e dos movimentos indígenas no estado da
Bahia. Em relação ao governo, ambos participamos da Comissão Gestora do Território
Etnoeducacional, que será descrita ao longo do texto. No âmbito dos movimentos
indígenas, participamos de organizações informais, como o Fórum Estadual de
Educação Escolar Indígena da Bahia (Forumeiba), instância que há mais de uma década
discute a política educacional.
4 Também atuamos como pesquisadores no Projeto Observatório da Educação Escolar
Indígena1, que desde o ano de 2010 realiza um diagnóstico pioneiro da situação
educacional dos povos indígenas no estado da Bahia, a partir de informações coletadas
por professores/pesquisadores em suas aldeias, além de contar com linguistas,
antropólogos, historiadores e cientistas políticos indígenas e não indígenas.
5 Os resultados do Projeto evidenciam déficits de implementação da atual política de
educação formal para indígenas e os condicionantes institucionais sobre a efetividade
do cumprimento da legislação que a regulamenta. Assim, pretendemos expor esses
déficits, bem como correlacioná-los aos condicionantes institucionais, em especial, o
atual regime de colaboração entre as três esferas de governo: municipal, estadual e
federal. Com isso acreditamos contribuir para a concretização efetiva de uma política
de educação intercultural para indígenas no estado.
6 O artigo divide-se em cinco tópicos. Primeiramente apresentamos um breve histórico
da política aqui examinada, tendo como marco inicial a Carta Magna de 1988; num
segundo momento, abordamos o processo de implementação do modelo de gestão do
Território Etnoeducacional no estado da Bahia. Em seguida, apontamos o resultado
material da política, através do diagnóstico do Projeto Observatório. No tópico quatro,
correlacionamos esse resultado com os problemas de implementação. Por fim,
desenvolvemos algumas considerações sobre o atual estado da política educacional e
seu caráter de política de reconhecimento.
pelos bolsistas, através das entrevistas e depoimentos de pessoas das aldeias, como a
quantidade de alunos indígenas que estudam externamente às áreas indígenas.
27 Assim, no ano de 2010 diagnosticamos 60 escolas indígenas, nas quais lecionam 420
professores e estudam 7.730 alunos. Dessas 60 escolas, 51 são municipais e apenas 09
estavam sob responsabilidade direta do sistema de ensino estadual 7. Isso explica o fato
de apenas 06 escolas oferecerem turmas de Ensino Médio, posto que esse ensino é
prerrogativa das escolas estaduais, enquanto o restante só oferta turmas do Ensino
Fundamental. Interessante notar que apenas três escolas não estavam localizadas em
terras indígenas legalmente demarcadas.
28 Em relação ao material didático específico, elaborado por professores indígenas, 43
escolas utilizam-no, enquanto 17 somente utilizam os livros didáticos nacionais. Porém,
verifica-se que o material didático específico é utilizado somente nas turmas iniciais do
Ensino Fundamental, limitando a ideia de interculturalidade na prática de ensino e
aprendizagem das turmas de Ensino Médio. Todas as escolas dispõem de fornecimento
de merenda escolar, mas relata-se inadequação do cardápio oferecido na merenda e a
descontinuidade na oferta desse serviço público.
29 Em termos de estrutura física, 42 funcionam em prédios escolares, 08 das quais contam
com laboratório de informática e apenas 07 com salas de leitura ou biblioteca. Porém,
18 escolas não funcionam em prédios escolares e nenhuma possui laboratório de
ciências. Além disso, o que os censos oficiais registram como prédio escolar mascara o
grande déficit de implementação da rede física da educação escolar indígena,
principalmente na rede municipal de ensino. Em pesquisa de campo, constatei que
muitas escolas funcionam em prédios improvisados, como casas de professores, igrejas,
bares e casas de farinha. Além disso, há escolas que funcionam, de forma ainda mais
improvisada, em armazéns de cacau, casas de barro, de lona e de palha.
30 Segundo dados do INEP de 2008 (Brasil 2009b), que contabilizava 6.969 alunos
indígenas, a maioria dos estudantes - 4.993 - estava nas turmas iniciais do Ensino
Fundamental, 995 em turmas de Educação Infantil, enquanto apenas 225 matriculados
no Ensino Médio, número menor do que o de matrículas nas Turmas de Educação para
Jovens e Adultos, que contavam com 726 alunos. A maioria desses estudantes estudava
em turmas multisseriadas – 1.205, existindo somente 14 turmas unificadas. Em
depoimentos, os professores indígenas apresentam como óbice para o processo de
aprendizado do aluno o fato das turmas serem multisseriadas. Todos os alunos,
independente da turma, assistem às aulas no mesmo horário e na mesma sala. A turma
multisseriada é um problema enfrentado por indígenas em todo o estado. Nelas, os
alunos, em diferentes estágios de formação, têm o aprendizado prejudicado, por não
disporem de um atendimento mais especializado, de acordo com os conteúdos
demandados pelo grau de formação de cada um.
31 Em relação aos professores, registra-se que já foram oferecidos dois cursos de Formação
de Professores no Nível Médio, o chamado Magistério Indígena, que formaram cerca de
197 professores. Além disso, vale notar que nunca ocorreu um concurso específico para
professores indígenas atuarem em sala de aula. Apesar de não termos o número exato,
cerca de 90% dos 420 professores trabalham por regime de contrato, seja pelo
município, seja pelo estado. A maior parte dos professores das escolas estaduais
trabalha sob o Regime Especial de Direito Administrativo (REDA), cujo tempo máximo
de duração do contrato é de 04 anos. Há professores e demais servidores, como
merendeiras, faxineiros, zeladores e vigias, que trabalham pelo regime de Prestação de
Condiderações finais
42 Apesar da problemática apresentada, não se pode negar o crescimento vertiginoso das
ações governamentais para a educação escolar indígena. Vinte e cinco anos após a
Promulgação da Constituição de 1988, construímos uma legislação sólida que abarca
diferentes dimensões dos processos educacionais de ensino e aprendizagem nas aldeias
indígenas. Da estrutura física à formação de professores, reconhece-se o caráter
intercultural da educação escolar indígena. Além disso, uma série de mudanças
institucionais criaram estruturas burocráticas para atender à elaboração e execução da
política.
43 Porém, o desenho da política deve ser redimensionado, tendo em vista a forma como o
sistema político brasileiro converte as demandas da sociedade civil em ações de
governo. O regime de colaboração entre os entes federativos, ao contrário do que
previram nossos legisladores, tem sido pouco eficiente na execução de uma política
efetivamente intercultural. Talvez seja o momento dos nossos policy makers, em diálogo
com as populações indígenas, repensarem o desenho da política, optando por uma
medida conservadora que envolva a centralização administrativa na esfera federal de
governo.
44 A centralização pode representar ganhos em termos de eficácia e eficiência da política,
ao diminuir o número de pontos de vetos das decisões, concentrar captação e execução
de recursos numa única unidade administrativa federal, que, inclusive, pelo histórico
da política e pela formulação de planos e programas, mostre-se mais sensível à
especificidade indígena do que as burocracias municipais.
45 Como pudemos constatar no trabalho de campo nas escolas e nos depoimentos de
pesquisadores indígenas, a escola tem se tornado um espaço central para a reafirmação
étnica, recuperando a autoestima de indivíduos e grupos que se identificam enquanto
indígenas. Os professores indígenas dentro das salas de aula, alunos sendo atendidos em
suas respectivas comunidades, a elaboração de alguns materiais didáticos específicos,
aulas que abordam aspectos simbólicos e culturais dos povos indígenas, como as aulas
de direito indígena, sobre grafismo, pintura, história indígena, são elementos positivos
dentro dessa nova escola.
46 A construção da identidade individual e coletiva perpassa o exercício da alteridade, isto
é, constrói-se uma identidade a partir da interação com os ‘outros-importantes’, sendo
esses outros constituídos pelos grupos primários nos quais os indivíduos são formados
e/ou pela sociedade como um todo (Taylor 1999). Assim, as políticas de reconhecimento
permitem modificações na formação de uma auto-imagem depreciativa de indivíduos e
BIBLIOGRAFIA
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por Amy Gutmann. Lisboa, LIS: Instituto Piaget.
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Silva, Luiz Fernando Villares (Org.). 2008. Coletânea da legislação indigenista brasileira. Brasília, DF:
CGDTI/FUNAI.
NOTAS
1. O autor foi bolsista de iniciação científica e Jéssica T. C. e Silva participou como pesquisadora
voluntária no Projeto.
2. Essa legislação pode ser encontrada na publicação organizada por Luiz Fernando Villares Silva
(2008).
3. No ano de 2004 é criada, na estrutura administrativa do MEC, a Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade, contando com uma Coordenação Geral de Educação
Escolar Indígena.
4. De acordo do com o Decreto 6.861/09, a Comissão deve ser composta por representantes do
MEC, FUNAI, um representante de cada povo indígena que habita o Território, entidades
indigenistas, Secretários de Educação dos Estados, do Distrito Federal e Municípios presentes no
Território estabelecido, e ainda aceitar a admissão de outros membros, como representantes do
Ministério Público, das instituições de educação superior, das redes de formação profissional e
tecnológica ou de outros órgãos ou entidades que desenvolvam ações voltadas para a educação
escolar indígena.
5. Segundo definição dos indígenas do povo Tupinambá, o termo significa “donos da terra” em
Tupi.
6. O Inep é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação, à qual cabe promover
estudos, pesquisas e avaliações sobre o Sistema Educacional Brasileiro para subsidiar a
formulação e implementação de políticas públicas para a área educacional.
7. Observamos, nos últimos anos, um processo de estadualização das escolas indígenas no estado
da Bahia. No ano de 2013 encontramos 22 escolas estaduais.
8. Políticos e burocratas que elaboram uma política pública.
RESUMOS
Neste texto, a partir das pesquisas desenvolvidas pelo Projeto Observatório da Educação Escolar
Indígena - Núcleo do Território Etnoeducacional Yby Yara, abordaremos algumas questões
referentes aos limites institucionais do modelo de gestão dos Territórios Etnoeducacionais para a
execução de uma política de educação escolar indígena intercultural. O Projeto propõe um
conjunto de ações voltado para o protagonismo indígena, por meio da formação de professores e
pesquisadores indígenas, produção de conhecimento intercultural e articulação política e
acadêmica, estimulando e subsidiando iniciativas educacionais e de pesquisa nos recém-criados
Territórios Etnoeducacionais. Assim, pretendemos discutir algumas questões teórico-
metodológicas referentes à implementação de políticas públicas para povos indígenas. A
expectativa é que essa discussão contribua na avaliação dessas políticas, tema ainda pouco
explorado, seja na ação governamental, seja na pesquisa científica.
In this article, based on research conducted by the “Projeto Observatório – Núcleo Yby Yara”, we
discuss the institutional limits of the management model of “Territórios Etnoeducacionais” and
ÍNDICE
Keywords: public policies, indigenous education, territórios etnoeducacionais
Palavras-chave: políticas públicas, educação escolar indígena, territórios etnoeducacionais
AUTOR
CARLOS RAFAEL DA SILVA
Mestrando em Ciências Sociais na Universidade Federal da Bahia. Bolsista do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). Esse texto foi escrito em colaboração com
Jéssica Torres Costa e Silva, indígena do povo Xucuru-Kariri e pesquisadora da política
indigenista no estado da Bahia.
rafael.silva_19@hotmail.com
NOTA DO EDITOR
Recebido em: 2013-05-06
Aceito em: 2013-08-03
Introdução
1 Desde o final da década de 1980, a política indigenista vem sofrendo transformações
significativas, tanto no que diz respeito às suas diretrizes, metas e conteúdo, quanto aos
arranjos institucionais de gestão da política e de responsabilização de órgãos e esferas
de governo que a promovem. Como é largamente sabido, a Constituição Federal de 1988
contém um capítulo específico sobre direitos indígenas, reconhecendo aos índios o
direito a exercerem e terem respeitados seus usos, costumes, crenças e tradições,
superando desta forma o conteúdo integracionista do modelo de intervenção anterior.
2 Inaugura-se, assim, a responsabilização do Estado brasileiro pela proteção e promoção
dos projetos específicos das comunidades indígenas. O que se segue, a partir da década
de 1990, é a construção de um paradigma participacionista na relação entre o Estado
brasileiro e os povos indígenas, caracterizado pelo estabelecimento de uma série de
normativos jurídicos que reafirmam o direito dos últimos a contribuírem para a
construção e execução de políticas públicas a eles direcionadas ou que os afetem de
alguma forma1.
agendas sociais (Arretche 2004). Dificilmente a questão indígena é inserida nas agendas
municipais e, de forma muito pontual, na agenda estadual 22.
51 Esse contexto resulta em uma política indigenista pautada na realização de ações
pontuais como resposta às pressões das lideranças indígenas e ação de alguns
funcionários de governo. Na maioria das vezes só há a inclusão dos povos indígenas nos
programas existentes mediante a pressão das lideranças indígenas que utilizam seus
recursos de mobilização para suscitar visibilidade para suas demandas. Estas apenas
conseguem impactar as agências na base, no processo de implementação.
52 Dada a trajetória quase que exclusivamente federal da política até muito recentemente,
os gestores estaduais não possuem a expertise para trabalhar com povos indígenas,
desconhecendo a legislação específica, a realidade das comunidades indígenas e, muitas
vezes, questionando que lhes seja dirigido um tratamento diferenciado. Os gestores
optam, muitas vezes, por “encaixá-los” nos programas governamentais mais gerais,
que, na maioria das vezes, não foram conformados aos seus padrões socioculturais.
Além disso, o modelo tradicional da administração pública departamentalizada e o
caráter isonômico da burocracia procedimental podem agir como empecilho para a
introdução de temáticas que requerem um tratamento diferenciado e intersetorial, tal
como se caracteriza a política indigenista.
53 A criação de estruturas específicas da política não representou, portanto, uma mudança
significativa no potencial fragmentador do desenho da política, posto que as novas
agências, que poderiam viabilizar a transversalidade e intersetorialidade da política,
tanto os órgãos colegiados quanto as coordenações, não possuem poder decisório
efetivo e os espaços hierárquicos das secretarias continuam sendo as arenas decisórias
da política. Mesmo enquanto instâncias de coordenação, essas agências não conseguem
ter comando sobre as ações dos outros atores envolvidos.
54 Às coordenações específicas, por outro lado, falta capacidade institucional e recursos
administrativos para realizar seu trabalho, sendo espaços extremamente fragilizados,
localizados na base da hierarquia da administração pública. A estratégia de criação
dessas agências resultou, na verdade, no surgimento de “guetos” da política, recaindo a
responsabilidade sobre ela nesses espaços, que não possuem condições mínimas de
atuação e servem como canais de legitimação e recepção dos impactos das pressões
advindas dos grupos indígenas.
55 Nota-se, desse modo, o “veto implícito” à concretização dessa política – nos termos de
Menicucci (2007) – por parte do governo estadual. A política indigenista não se mostra
estratégica e nem prioritária para o governo ou para a burocracia estadual, e ambos
depositam a responsabilidade sobre a mesma à esfera federal. O que reflete a condição
de ‘vácuo institucional’ da política indigenista, no que parece ser uma etapa de
transição entre um modelo extremamente centralizado em uma agência federal para
um modelo transversal e intersetorial. A falta de um contorno nítido caracteriza um
quadro de não política no governo da Bahia, que se pauta apenas nas orientações do
governo federal em algumas ações, sem que institua mecanismos efetivos para a sua
viabilização política, fiscal e administrativa.
Considerações finais
56 Com o processo de descentralização das políticas sociais e desmonte do padrão
centralizado na agência indigenista e a partir da intervenção e negociação de lideranças
indígenas, as questões indigenistas passam a ser inseridas na agenda do governo
estadual. Essa incorporação se desenvolveu, essencialmente, por dois meios. Pela
instituição de espaços próprios para a viabilização administrativa da política,
preenchidos pela criação de cargos específicos para a representação indígena dentro do
governo, e pela tentativa de transversalização da agenda indigenista em espaços não
específicos. Ambas dinâmicas estão interligadas, já que, diante da dificuldade de
inclusão dessa nova temática, os representantes indígenas nas estruturas específicas
passam a agir enquanto coordenadores e articuladores da política no nível estadual.
57 A política indigenista no estado da Bahia pode ser caracterizada, pois, a partir da
associação de: a) um desenho institucional potencialmente fragmentador: visualizado
na pulverização das arenas decisórias, multiplicação de pontos de veto e na dinâmica de
transversalização nas etapas de implementação, o que concorre para a diluição da
política indigenista em diversos órgãos; b) a ausência de incentivos e constrangimentos
institucionais para a cooperação: baixa institucionalidade da política; ausência de
regras específicas para responsabilização das agências; dificuldade de conformar as
metas da política indigenista às ações estratégicas de cada setor e agência; c) baixa
efetividade dos mecanismos de coordenação: órgãos colegiados frágeis e instâncias de
coordenação sem capacidade institucional para decidir e implementar suas decisões.
58 Nesse sentido, concluímos que a ausência de mecanismos integradores de coordenação
e de incentivos acirra a dinâmica fragmentária do desenho institucional. Aliado a isso,
constata-se a natureza redistributiva da política e o perfil social e político dos grupos
indígenas, que apresentam dificuldades em se organizar enquanto um grupo de pressão
eficiente – no sentido de provocar modificações nas instituições existentes que os
posicionam em situação de desvantagem. Na sua operacionalização, a política foi
transformada em distributiva, através da atuação da burocracia nas estruturas
específicas, na etapa de implementação, atendendo, pontualmente, demandas de
lideranças e grupos indígenas, pois estes só conseguem alcançar os canais de inserção
do aparelho do Estado nas instâncias de execução, mas não no processo de elaboração
de políticas públicas.
BIBLIOGRAFIA
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autonomia.” São Paulo em Perspectiva 18(2): 17-26.
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_____. 2007. “Estado da arte da pesquisa em políticas públicas.” in Políticas Públicas no Brasil,
organizado por E. Marques, G. Hochman, M. Arretche. Rio de Janeiro, RJ: Editora FIOCRUZ.
NOTAS
1. A coletânea organizada por Luiz Fernando Villares Silva (2008) contém uma compilação da
legislação indigenista brasileira.
2. As políticas de regularização fundiária com a demarcação de terras, e de fiscalização dos
territórios indígenas, e as políticas de saúde indígena continuam sendo iniciativas do governo
federal, portanto os governos estaduais não estão diretamente implicados na cena.
3. No âmbito do governo federal foram analisados os Planos Plurianuais (PPAs) de 2000-2003;
2004-2007 e 2008-2011. Além das Leis Orçamentárias Anuais (LOA), desde o ano de 2002 a 2012. Na
esfera estadual foram analisados o PPA 2008-2011 e o Plano de Trabalho Operativo – Povos
Indígenas, de 2010.
4. As entrevistas foram realizadas com seis gestores de programas, quatro servidores dirigentes
de coordenações e cinco técnicos nos seguintes órgãos estaduais: Secretaria de Justiça Cidadania
e Direitos Humanos (SJCDH), Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza
(SEDES), Secretaria Estadual de Educação (SEC), Secretaria Estadual de Agricultura, Irrigação e
Reforma Agrária (SEAGRI), Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (SEMARH),
Secretaria Estadual de Promoção à Igualdade (SEPROMI). Elas também foram produzidas com
lideranças indígenas do Movimento Unificado dos Povos Indígenas da Bahia (MUPOIBA),
representantes no Conselho dos Direitos dos Povos Indígenas da Bahia (COPIBA), no Fórum
Estadual de Educação Indígena da Bahia (FORUMEIBA) e na Comissão Gestora do Território
Etnoeducacional Yby-Yara (TEe).
5. Inclusive o papel de alguns deputados estaduais e federais que não havia sido considerado
inicialmente. No entanto, o Legislativo não foi analisado neste texto, já que nos concentramos nas
agências do Executivo estadual. Mas sinalizamos para a importância de pesquisas que analisem a
RESUMOS
No presente artigo abordaremos a política indigenista no governo da Bahia, caracterizando seu
modelo institucional, bem como os condicionantes deste sobre a interação dos atores políticos.
Mais detidamente, procuramos analisar como os atores indígenas estão institucionalmente
posicionados dentro do aparato estatal e limites e possibilidades do desenho da política
indigenista. A pesquisa foi realizada através de análise documental, entrevistas, além de pesquisa
de campo empreendida durante o ano de 2012. Apesar das modificações ocorridas nos últimos
anos e do protagonismo do movimento indígena, concluímos que a política indigenista
In this article we analyze the indigenous policy of the government of the Brazilian state of Bahia,
describing its institutional design as well as its constraints on interactions between political
actors. Further, we analyze how indigenous actors are institutionally positioned within the state
apparatus, and the limits and possibilities of the indigenous policy design. The research was
developed using documental analysis, interviews with strategic actors, as well as a field study
carried out in 2012. We conclude that, despite changes undertaken in recent years and the
achievements of the indigenous movement, the indigenous policy developed in Bahia state is still
not sufficiently institutionalized, in the sense of creating specific practices which would aim
towards a provision of public goods and services geared for indigenous peoples. As a
consequence, the state’s policies continue to be limited to restricted demands coming from
indigenous leaders, who can only act within the limited channels of the state administrative
apparatus, without being integrated in policy-decision processes.
ÍNDICE
Keywords: public policies, indigenous peoples, Government of Bahia
Palavras-chave: políticas públicas, povos indígenas, Governo do estado da Bahia
AUTOR
JÉSSICA TORRES COSTA E SILVA
Mestranda, e bolsista CNPq, no Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal da Bahia. Indígena do povo Xucuru-Kariri. Este texto foi escrito em estreita colaboração
com Carlos Rafael da Silva.
jessiktc@hotmail.com
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Articles
NOTA DO EDITOR
Recebido em: 2013-02-08
Aceito em: 2013-04-05
Introdução
1 O barroco foi um tempo de mudanças. Ele foi uma reação às inconstâncias da sua época
– quando valores e comportamentos foram postos em causa, alteraram-se as estruturas
de classe, cresceram o banditismo, as revoltas, os motins: “É, de facto, uma época de
crise, mas é também uma época de transição para novos modos de sociabilidade”,
afirma Boaventura de Sousa Santos (2002: 332).
2 Muitos autores encontraram no ethos barroco uma inspiração para se pensar sobre os
nossos dias. Características transgressoras, tais como o excesso e a ambiguidade,
serviram de mote para a construção de análises acerca da atualidade. Partindo da
metáfora do barroco desenvolvida por Santos (2002), o objetivo deste artigo é refletir
sobre as celebrações existentes no quilombo de Colônia do Paiol, uma comunidade
afrodescendente situada no município de Bias Fortes, Estado de Minas Gerais.
3 O barroco é uma das três metáforas criadas por Boaventura de Sousa Santos (2002) para
descrever as subjetividades emergentes e emancipatórias. O autor afirma que o
pensamento crítico, para ser eficaz, tem que assumir uma posição paradigmática, a
9 Para Bandeira e Sodré (1993), o quilombo da atualidade pode ser caracterizado como
grupo social de negros compartilhando relações sociais tipificadas a partir do uso
coletivo da terra, fundado nos princípios do igualitarismo e da reciprocidade,
caracterizado por afiliação de cor, laços de parentesco, localidade e práticas culturais.
Ilka Boaventura Leite enfoca o quilombo “como conceito sócio-antropológico para
discutir suas atuais implicações teóricas e políticas, principalmente no que diz respeito
ao quadro atual de exclusão social do Brasil” (Leite 2000: 333).
10 Pesquisa realizada pelo Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (Cedefes) 1
aponta para a existência atual de cerca de 400 quilombos em Minas Gerais, distribuídos
por cerca de 150 municípios. Existem 128 processos de titulação das terras em
andamento no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), mas apenas
uma área efetivamente titulada, o quilombo Porto Corís.
11 No caso específico de Colônia do Paiol, comunidade situada no município de Bias Fortes,
na Zona da Mata mineira, abriga hoje cerca de 250 famílias e sua origem deve-se à
doação de terras feita pelo fazendeiro José Ribeiro Nunes no ano de 1891 a nove de seus
ex-escravos. Esta história permaneceu por muito tempo resguardada apenas pela
memória coletiva, até que, em 2005, o antropólogo Djalma Antônio da Silva localizou o
documento de doação no Arquivo Público do município de Barbacena (MG).
12 Cada família de Colônia do Paiol possuía uma parcela de terras para plantio. Porém, ao
longo do século XX, fazendeiros do entorno foram invadindo o território. De acordo
com Djalma Silva (2005), desde o início da doação, as terras eram cultivadas pela
comunidade, mas a produção era insuficiente para o sustento do grupo, que
multiplicou-se com o tempo. Premida num enclave e cercada por fazendas, a
comunidade foi confrontada por crescentes problemas de sustentabilidade.
13 A perda das terras e a falta de recursos desencadearam um forte êxodo dos habitantes
da comunidade para as periferias urbanas, especialmente para a sede de Bias Fortes e
para o município de Juiz de Fora, situado a 52 km. Dentre os que ficaram, muitos
homens passaram a realizar trabalhos agrícolas sazonais em outras regiões, nas
chamadas “turmas”, que são contratadas por fazendas de Minas Gerais, Rio de Janeiro e
São Paulo.
14 Mas a migração não implicou necessariamente em desvinculação. Em termos gerais, o
êxodo rural, que se acelerou a partir da década de 1970,2 representou um incremento
econômico para os que saíram e para os parentes que permaneceram na comunidade.
Muitos dos que conseguem juntar algum dinheiro, optam por comprar terrenos e
voltam para o quilombo.
15 Quanto à educação, o acesso é difícil. As crianças frequentam o Ensino Fundamental,
mas, se quiserem dar prosseguimento aos estudos, precisam deslocar-se para o núcleo
urbano de Bias Fortes ou migrar. Duas mulheres de Colônia do Paiol conseguiram
ingressar no Ensino Superior, através de um curso particular de Pedagogia na
modalidade à distância, disponibilizado na sede do município.
16 A comunidade, cravada nas montanhas, é constituída hoje por algumas ruas, onde se
espalham casas de tijolos ou adobe. Muitas delas não são pintadas, mas cobertas por
barro – que confere belas tonalidades às paredes, variando entre o branco, o laranja e o
castanho. Os jovens que permanecem no quilombo erguem as casas nos espaços cedidos
pelos membros mais velhos da família, para constituírem os próprios núcleos
familiares.
pelo pensamento ocidental. Este desperdício de experiências faz com que o mundo
pareça menor e menos diverso do que na verdade é (Santos, 2006).
73 Já vimos que, através da opção pelo terceiro excluído, a população da recém-
conquistada América Latina deslocou sua insuportável contradição interna para o
interior de uma outra lógica – permitindo viver outro mundo dentro deste mundo.
Manobras de ressignificação, de ocultamento e dissimulação impedem que o modelo
hegemônico se instale, com pleno conforto, junto aos grupos sociais subalternizados.
Desta forma, a dominação é condenada a ser um trabalho inacabado, mesmo nos
espaços em que a resistência aberta tornou-se impossível.
74 Assim, Boris Toro (2009) define a dissimulação – e a simulação – como técnicas da
aparência ou arte do encobrimento. No contexto mediterrânico do século XVII,
significou uma resistência racional e criativa à opressão de um poder que começava a
infiltrar-se nas consciências, preenchendo o vazio deixado pelos cismas teológicos.
Referindo-se a Remo Bodei, descreve:
A dissimulação é, então, segundo o comentador italiano, uma estratégia de
sobrevivência e seu uso uma necessidade perante uma forma de poder penetrante e
totalitária […]. A simulação e a dissimulação convertem-se em parte de uma nova
forma de prudência, a qual não se define tanto pela administração dos prazeres ou
pela aquisição da média justa, mas sim pela cautela (Toro 2009: 173).
75 Desde uma visão pautada na cultura nagô, Muniz Sodré afirma que “o que o indivíduo
humano tem conhecido de permanente é mesmo a ambivalência” (Sodré 2005: 72). Esta,
no Ocidente, assume socialmente a feição de instabilidade das forças que se equilibram
provisoriamente numa unidade, do jogo contínuo das tensões, das lutas e das seduções
– tudo isso acionado pelo movimento simbólico. Para o autor, é esse movimento que
impõe limites a todo poder, uma vez que o impede de controlar o vazio que
necessariamente o delimita.
76 A lógica do modelo hegemônico ocidental não se adapta bem às ambivalências. A sua
ansiosa busca pela verdade – necessariamente universal – exige uma clara divisão entre
os dois lados de uma dicotomia. Céu ou inferno; bárbaro ou civilizado; não há
condescendência com os meios-termos, justamente porque a mentalidade cartesiana
não vive nas fronteiras. Assim, é inevitável o desconforto quando, no barroco, “a
representação do sagrado desliza subrepticiamente para a representação do sacrílego”
(Santos 2002: 335).
eles faziam a roda de Jongo e, ali, cada um cantava o Jongo falando o que queria falá,
mas sobre... pela canção. Daí, um entendia o que tinha que sê feito. Às vezes o que se
passô no dia, o que ia acontecê. Então, um já avisava o outro. E, era por meio de
ponto de Jongo que era comunicado as coisa (Dias 2001: 875).
90 Para que seja desenvolvida a análise do Jongo de Renê Pereira, voltemos ao barroco. Já
foi discutido que ele traz uma contradição interna, deslocada para outra lógica através
da opção pelo terceiro excluído. Esta ambiguidade é propícia à quebra de dicotomias –
entre aparência/realidade, sagrado/profano, riso/seriedade.
91 No Jongo cantado em Bias Fortes, é possível detectar novas bifurcações de sentidos: por
um lado, é um alegre folguedo, que segue ao ritmo da sanfona, pandeiro e violão. Por
outro, é um momento em que os iniciados são capazes de ver como está cada um dos
membros do grupo, aliviando as dores de quem precisa. É como se, naquele contexto
ritual, os corpos ficassem “transparentes”, deixando notar as necessidades das almas –
isso, se o uso desta oposição corpo/alma fosse cabível. Renê Pereira explica: “[O jongo]
mostra pra gente, que canta, energia negativa; ‘vamo ajudar essa pessoa, que ela
precisa’ ”.
92 Visto o cenário, dá-se a ação: o grupo mobiliza-se para intervir junto àqueles que,
dentre os participantes, estiverem necessitados. Quando todos cantam para aquele que
precisa, este sente o bem-querer coletivo e é curado. “A pessoa cresce”, descreve o
coordenador. Renê Pereira ilustra com o caso de um idoso das redondezas, que andava
desiludido com a vida:
Eu já vi um senhor de idade – um senhor daqui de Bias Fortes, morava lá [aponta
para uma direção da cidade] – ele ficava só dentro de casa, na beira do fogão. ‘Vamo
com nós, vamo jongá!’ ‘Não, isso aí é bobeira’. ‘Vamo com nós, vamo lá, o senhor vai
ver como o senhor vai sentir bem’. Aí ele foi. Aí chegou lá, ele não ficou cantando
não. Ele ficou quietinho num cantinho, depois ele começou dançar. Aí ele foi e falou
assim: ‘Ah, porque esse negócio é bão!’ Voltou no outro dia, aí nós fez uma dança. A
gente já cantou o Jongo, dança um forrozinho. Ele dançou, o hômi mudou, ficou
novo, durou muitos anos, resolveu até casar. O Jongo é isso; o Jongo resgata.
93 Um olhar estranho não capta tais dinâmicas internas. Então, qual a verdade do Jongo? É
cultura ou é cura? O interessante deste e de outros folguedos é que se torna impossível
extrair uma única verdade. Tudo depende da perspectiva a partir da qual são vistos, tal
como acontece no labirinto de espelhos que caracteriza o barroco. O Jongo é um, é
outro, e são ambos ao mesmo tempo.
94 Colônia do Paiol já teve, há tempos, o seu Jongo. Com raízes que penetravam na época
da escravidão, o grupo formava-se nas idas e vindas do trabalho. Como explica o senhor
Paulo Marinho, “nós ia capinar, aí saía um mutirão igual”. Durante os trajetos,
geralmente longos, a realidade cotidiana era mergulhada no mistério – dando
indicações dos profundos elos que unem a labuta diária ao sagrado.
95 Ao cantar e dançar o Jongo, o grupo de trabalhadores sacralizava o trajeto. A rotina
dava lugar ao maravilhoso. Os quilombolas de Colônia do Paiol falam com entusiasmo
desta magia, e de como ela era frequentemente colocada à prova: abundam casos
daqueles membros da comunidade que, empenhados em avaliar os jongueiros,
escondiam objetos pelo caminho. Sabonetes, bebidas, queijos – qualquer peça,
intencionalmente ocultada, servia para testar o poder ali presente. Era esperado que os
líderes do grupo pressentissem a existência do que fora posto no caminho, adivinhando
o seu esconderijo. É como descreve o senhor Paulo Marinho:
O que é que eles fazia? Comprava uma meia garrafa de pinga, pegava e punha lá por
baixo da ponte. Enfiada no barranco, por baixo da ponte. Padrinho Geraldinho
pegou um queijo, pôs dentro da sacola plástica e pôs lá. Eles [os líderes do Jongo]
chegou perto da ponte, eles começava a arrancar grama com as mão assim, com os
dente assim, com os dente lá, pastava a grama com o dente, ia rodando, rodando,
dum lado e do outro; quando caíram n’água. Eles caíram n’água todos os dois. Nós
falou: ‘O que é que é isso aí?’ Eles falou: ‘Aqui tem dendê! Aqui tem dendê!’ Eles
juntou lá debaixo da ponte, enfiou a mão debaixo e o compadre Negrinho saiu com
aquela garrafa na boca, assim.
96 O desafio serve, assim, para averiguar se o jongueiro realmente tem o dom. Nesse caso,
ele pressente o objeto – como se fosse uma barreira – e “cavuca, cavuca, qui nem um
tatu. Enquanto não acha, não passa”, explica Paulo Marinho.
97 Para viver o Jongo, é preciso ser iniciado. O interessante é que a sua função ritual não
está explícita, como acontece quando, por exemplo, se visita um terreiro de Candomblé.
Para o olhar desatento, ali está uma apresentação cultural, uma tradição; apenas um
grupo de pessoas a tocar, cantar e dançar. O religioso está dissimulado.
98 Mais que isso: o Jongo é curativo e sagrado, mas, ao mesmo tempo, “anima qualquer
festa”, como salienta Renê Pereira. Aqui está corporificada, a meu ver, a dimensão do
terceiro excluído; o salto para além da ambivalência, que torna impossível se tomar
partido por um único sentido. Dali emerge a quebra de dicotomias entre o riso e a
seriedade, entre o sagrado e o profano, entre aparência e realidade. Algumas pistas
revelam a sobreposição de significados sobre o mesmo significante, ou da presença do
outro mundo dentro deste mundo:
A arte barroca propriamente dita, em contraposição com a arte inspirada no ethos
realista, nunca pretendeu afirmar-se como atividade independente e autônoma; não
perseguiu uma estetização pura, desligada das outras formas de ruptura do
automatismo rotineiro da vida cotidiana. Longe de ver nela – no jogo e na festa –
obstáculos para a sua realização, fontes de impureza para as suas obras,
desenvolveu-se em conexão com elas, usando-as como material do seu próprio
trabalho e servindo à complexificação e enriquecimento das mesmas (Echeverría
1996: 184).
99 Echeverría acrescenta que tal característica da arte barroca faz com que seja
especialmente difícil abstrair as suas obras, como “pura arte”, do complexo conjunto
que inclui a interação com as atividades lúdicas e cerimônias festivas. A seu ver, isso
contribuiu para “desrealizar” a modernidade capitalista. E acrescenta que a presença
histórica da arte barroca encontra-se, assim, intimamente conectada com a chamada
cultura popular, “como cultivo dialético espontâneo da concreção histórica do código
social e em especial como cultivo dialético da sociabilidade religiosa” (1996: 184).
100 Assim, a ideia de enquadramento do Jongo dentro do âmbito da cultura ou da religião
perde completamente o sentido, uma vez que ele é regido por outras lógicas. Vejamos
outro exemplo desta indissociação: a festa pelo 20 de Novembro, Dia da Consciência
Negra, contou, em Colônia do Paiol, com a participação do Jongo de Bias Fortes. A
apresentação do grupo visitante foi a última, feita já ao cair da tarde. Ao invés de
subirem no altar, cantarem e dançarem, como fora feito pelos grupos de Maculelê e da
Congada, os jongueiros saíram, posicionaram-se ao alto da rua principal do quilombo e
deram início a uma procissão, que os levaria de volta à capela.
101 À medida que o Jongo avançava pela rua, os membros da comunidade iam
incorporando-se ao grupo, que engrossava na proporção dos passos. Alguns assistiam
de fora, outros ingressavam no cortejo, cantando e dançando alegremente. Eu mesma
Considerações finais
104 Vimos que a metáfora do barroco busca representar um mundo estetizado, teatralizado,
afeito às aparências, sensorial e ambíguo. É o espaço do corpo, do riso, do excesso e da
carnavalização – sendo, portanto, contrário ao modelo desencantado da modernidade.
105 A modernidade hegemônica pauta-se na nítida separação entre a vida cotidiana –
tempo da rotina e da produção – e os momentos de ruptura. Os últimos, segundo
Bolívar Echeverría, são tidos como improdutivos e adquirem um caráter de exceção:
Sem se confundirem entre si, mas estreitamente entrelaçadas uma à outra, as duas
modalidades da existência humana que se desenvolvem nestes dois momentos do
tempo cotidiano sempre dependeram, desde tempos arcaicos, da forma do tecido
que as junta. Por esta razão, quando a modernidade se empenha em reduzir estas
formas complexas a uma forma simples de intercalamento monótono e superficial
de breves interrupções improdutivas no curso de um tempo dedicado quase por
inteiro à produção de mercadorias e à reprodução da força de trabalho, encontra
resistências insuperáveis (Echeverría 1996: 168).
106 Longe de ser desencantado, o mundo dos quilombos – como tantos outros – é invadido
pelo estético. Ritualidade e mistificação, que transformam a realidade em beleza,
formam a base da estetização da vida cotidiana e compõem o espaço-tempo das
comunidades, espalhando-se através das mais variadas manifestações do sagrado. Mitos
deixam-se narrar; forças sublimes aproximam-se do mundano através dos rituais;
santos tornam-se amigos e até assombrações fazem-se pressentir em determinados
pontos do território.
107 O sagrado e o simbólico estão no dia-a-dia, revelando-se com maior exuberância nos
dias de festa. Portanto, as manifestações ali presentes revelam uma multiplicidade de
sentidos, que se entrelaçam com a realidade e com as memórias da comunidade. No
caso dos quilombos, que são cotidianamente atravessados pelas tensões do entorno, isto
se vê refletido nas suas celebrações.
108 Foi discutido que a metáfora do barroco, no âmbito aqui proposto, promove uma
proliferação de sentidos que subverte as mensagens originais. Desta maneira, a
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NOTAS
1. Cf. em www.cedefes.org.br
2. O incremento da imigração a partir deste período deve-se a dois fatores principais: por um
lado, a implementação da lei do usucapião, que levou os fazendeiros a deixarem de oferecer as
suas terras à meia para o plantio. Além disso, houve uma redução no preço do leite e dos
produtos agrícolas.
3. A reflexão aqui apresentada deriva da tese “Quilombo em festa: pós-colonialismos e os
caminhos da emancipação social”, produzida no âmbito do Programa de Doutorado em Pós-
Colonialismos e Cidadania Global do Centro de Estudos Sociais e da Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra, desenvolvida com o financiamento da Fundação para a Ciência e a
Tecnologia de Portugal. Tratou-se de um estudo comparado entre três comunidades quilombolas
de diferentes regiões do Brasil – Colônia do Paiol, em Minas Gerais, Mata Cavalo, em Mato Grosso
e Conceição das Crioulas, em Pernambuco. A partir de uma perspectiva teórica pós-colonial,
busquei desenvolver uma descrição densa, com o propósito de analisar os vínculos entre festa e
resistência no contexto quilombola.
4. Na legislação imperial, cai de cinco para três o número de fugidos.
5. Palmares situava-se ao sul da então capitania de Pernambuco, região Nordeste do Brasil. Os
relatos oficiais sobre este quilombo foram, sem exceção, feitos pelos seus inimigos, e não faltam
informações desencontradas. Ainda assim, é possível dizer que o quilombo foi fundado nos
últimos anos do século XVI, a partir do triunfo de uma revolta num grande engenho de açúcar
(Benassar e Marin 2000).
6. Abdias Nascimento (1980), por exemplo, propôs o termo “quilombismo” para descrever uma
proposta pan-africanista para o Brasil. Além disso, iniciou-se uma disputa entre o 13 de maio,
data da abolição da escravatura, e o 20 de novembro, dia do herói Zumbi. Arruti (2006) observa
que, dentro deste processo de conversão simbólica, surgiram muitas leituras distintas sobre o
tema.
7. Billi (2005) explica que o termo deriva de Broaki, província da Índia onde os portugueses
chegaram em 1510, passando a chamá-la Baróquia. Lá se colhia em abundância um tipo especial
de pérolas que apresentavam uma superfície áspera e irregular, cuja coloração mesclava o branco
com tons escuros.
8. Esta e outras traduções para a língua portuguesa são de minha autoria.
9. Inclusive no Brasil, onde a reação academizante predominou no período imperial; um marco
nesta direção foi a chegada ao país, em 1816, da Missão Artística Francesa, tendo em mãos a
tarefa de introduzir o sistema superior acadêmico e fortalecer o Neoclassicismo. Segundo Ávila
(1971), apenas o modernismo retomaria os estudos sobre a arte setecentista mineira.
10. Ancião, funcionário do município de Bias Fortes.
11. Adulto, morador do município de Bias Fortes.
RESUMOS
O presente artigo utiliza a metáfora do barroco (Santos 2002) para refletir sobre duas
manifestações culturais existentes na região da comunidade afrodescendente de Colônia do Paiol,
localizada no Estado de Minas Gerais, Brasil. A partir deste aporte teórico, e utilizando
entrevistas semiestruturadas e a observação direta como estratégias metodológicas, as
celebrações da Folia de Reis e do Jongo são pensadas desde a perspectiva das suas ambivalências e
polissemias, que apontam para as possibilidades de resistência em contextos de silenciamento.
This article uses the metaphor of the Baroque (Santos 2002) to reflect on two specific cultural
expressions in the quilombola (black) community of Colônia do Paiol, located in Minas Gerais,
Brazil. Based on this theoretical perspective and using semi-structured interviews and
participant observation as research strategies, the celebrations of "Folia de Reis" and "Jongo" are
analyzed in relation to their ambivalences and polysemies, pointing to their importance as
means of resistance in a context of structural oppression.
ÍNDICE
Palavras-chave: barroco, quilombo, jongo, folia de reis, resistência
Keywords: baroque, quilombolas, black community, jongo, folia de reis, resistance
AUTOR
CARLA LADEIRA PIMENTEL ÁGUAS
Universidade de Coimbra
carlaaguas@gmail.com
Tatiana Lotierzo
NOTA DO EDITOR
Recebido em: 2012-10-24
Aceito em: 2013-07-05
Introdução
1 É de Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont, uma imagem que será tornada célebre
entre os surrealistas. Em “Cantos de Maldoror”, o escritor descreve o belo a partir da
fórmula comparativa “é belo como...”. A sequência faz uso de cenas insólitas, como uma
ratoeira em operação, ou a retratilidade das garras de uma ave de rapina e termina com
uma correlação de elementos tão banais quanto distintos entre si, num lugar estranho
para ambos: “é belo como o encontro fortuito, sobre uma mesa de anatomia, de uma
máquina de costura com um guarda-chuva”1 (Lautréamont 1970:224). Esta mesma
formulação será usada por Man Ray na série fotográfica intitulada “O enigma de Isidore
Ducasse”; Max Ernst a escolhe para explicar o “exílio sistemático” (dépaysement
systematique) proposto por André Breton como um caminho para a surrealidade: o
movimento deliberado de retirar as coisas de seu lugar convencional, revelando a
ingenuidade por trás da associação entre uma forma e sua função imediata; máquina e
guarda-chuva adquirem uma nova e possível identidade no encontro sobre a mesa de
anatomia, a superfície onde se empreende a dissecação da matéria orgânica, o
conhecimento profundo da vida a partir da matéria-morta.
14 O que estaria por trás da ideia de “cognição sensória”, como sugere a junção operada
pelo termo, é precisamente a indivisibilidade entre as dimensões sensível e inteligível
na experimentação do mundo e nos processos de produção de saber. Assim, Wiseman
(idem, ibidem) observa que a percepção estética, segundo essa tradição, “torna-se uma
ferramenta para o entendimento, capaz de penetrar o mundo das aparências e prover
acesso a um mundo de relacionamentos inteligíveis” (idem, ibidem:74). Esse autor
reabre a vertente argumentativa proposta por Simonis (1980), tido como pioneiro na
delimitação de uma “lógica da percepção estética” (Simonis 1980:307) em Lévi-Strauss.
São autores que aportam contribuições fundamentais para a compreensão das
discussões sobre arte empreendidas pelo antropólogo, inserindo-se numa linhagem de
debates4 que pode ser vista em contraponto com as leituras disseminadas em momentos
anteriores, como a pós-estruturalista, representada por Derrida (2005). Segundo tal
perspectiva, o estruturalismo – e Lévi-Strauss, entre seus expoentes – assumiria uma
postura “logocêntrica”, ao reduzir a esquemas estruturais os objetos que se propunha a
analisar, evitando assim discutir sua “inscrição” ou “escrita”, ou seja, sua
corporificação sensível-material e histórica. O estruturalismo, segundo tais críticos,
reduziria a análise da obra ao intelecto, deixando de lado o domínio dos sentidos.
15 Em contraste, Wiseman (2010) afirma que Lévi-Strauss manteve uma preocupação
fundamental com a existência de um “pensamento corporificado” (Wiseman 2010:297),
ou seja, com o papel inegável das sensações para o processo cognitivo, de modo que
“para compreender o pensamento de Lévi-Strauss, deve-se rejeitar a falsa dicotomia
que opõe sensível e inteligível e ver a antropologia estrutural como uma meditação
longa e complexa sobre nosso relacionamento com o mundo perceptível” (Wiseman
2010:313).
16 Dentre os comentadores de Lévi-Strauss que privilegiam a ideia de uma função
cognitiva da arte em suas leituras, destacamos Merquior (1975) e Rocha (1994). O
primeiro critica Simonis (1980) por aquilo que considera uma “leitura unilateral”
(Merquior 1975:11) dos textos do antropólogo e uma transformação da antropologia
estrutural numa “metafísica estética” (Merquior 1975:11). Não obstante, Merquior
menciona a psicologia da percepção e da Gestalt, que identifica o papel ativo da visão
como decodificadora ativa da obra, por suas possibilidades de confirmar do ponto de
vista das teorias da arte algo que Lévi-Strauss estaria afirmando em suas ponderações
sobre a homologia estrutural entre o pensamento, a obra de arte e o mundo natural. Em
tempos recentes, Rocha (1994) retoma esse ponto, bem como o argumento de Merquior,
para quem o estruturalismo traz a obra ao centro da reflexão, afastando-se da
abordagem idealista que, a seu ver, privilegiaria a ideia de uma intuição criadora em
detrimento das possibilidades construtivas abertas pela obra per se.
17 Já Hénaff (1998), em análise bastante original, procura tecer reflexões sobre o processo
de miniaturização ou modelagem do natural, operado no objeto artístico com a
finalidade da produção de conhecimento. Ao fazê-lo, ele aponta para algo que, com
alguma liberdade, poderíamos chamar de uma agência da obra de arte, provedora de
uma visão do inesperado, ou mesmo do inimaginável, lócus de uma surpresa que “cria o
próprio evento na estrutura ou até mesmo o evento da estrutura” (Henaff 1998:195,
grifos do autor). Por esse motivo, a arte deveria ser vista como “invenção” (com os
sentidos de experimento, mas também de criação), na perspectiva de Hénaff.
18 Guardadas as diferenças, vale sublinhar que todos os autores citados possibilitam
identificar na arte uma camada fundamental da teoria antropológica lévi-straussiana,
inalcançável das formas sensíveis faz com que qualquer trabalho de representação
parta inevitavelmente de uma dose de experimentação sensível, produzindo-se na
relação entre um desejo de possuir o objeto em sua completude e a impossibilidade de
fazê-lo7. Logo, são objetos que apontam para a inserção discreta do humano em meio à
vastidão de possibilidades do mundo natural, que ele é capaz de apreender do ponto de
vista de um aparato sensorial e intelectual, mas nunca em sua completude e nunca de
modo absoluto.
27 Resta compreender as metodologias de abordagem disponíveis para esse trabalho de
descoberta das propriedades estruturais nos objetos, segundo Lévi-Strauss.
definição fosse idêntica ao objeto e a verdade das coisas pudesse ser formulada através
de palavras8. Por outro lado, como o signo e o objeto são marcados pela
superabundância, o conceito opera sempre uma redução, privilegia um aspecto entre
muitos possíveis. Assim, ele pode estabelecer “relações teoricamente ilimitadas com
outros do mesmo tipo” (Lévi-Strauss 2008:36) e opera “uma abertura do conjunto com o
qual trabalha”, sem no entanto aumentá-lo ou renová-lo: limita-se a obter o grupo de
suas transformações (Lévi-Strauss 2008:35-36). Desde que, portanto, uma dada relação
esteja fixada entre um signo e um conceito – e desde que o signo tenha sido
neutralizado pela convenção – o conceito pode adquirir novos significados. À medida
que o pensamento privilegia o conceito, afasta-se da concretude. A motivação
encontrada na natureza cede lugar à arbitrariedade, colocando em risco a
“comunicação”9 diante de um aprisionamento em estruturas artificiais cada vez mais
distantes de sua inspiração/intenção natural. Ao passo que torna distante a
compreensão recíproca no interior da cultura, também afasta os sujeitos das
possibilidades de ampliação ou renovação de sua experiência social – que se encontra
na base da ideia de humanidade.
33 Já os signos aceitam que “uma certa densidade de humanidade seja incorporada ao
real” (Lévi-Strauss 2008:35) e, diferentemente dos conceitos, não se pretendem
idênticos a ele. Exprimem, na visão do antropólogo, o conjunto de mensagens
constituintes do conjunto cultural em suas múltiplas possibilidades de significação,
ainda não filtradas pelo exercício de redução que está na base da construção de
conceitos.
34 Por fim, a imagem é fixa e pode desempenhar o papel de signo, ou coabitar com a ideia
no interior do signo, ainda que em si mesma, possa constituir uma espécie de espasmo
da consciência, anterior a qualquer experiência de significação. É igualmente
interessante, em termos dessa definição, perceber que a imagem, a princípio neutra, é
significante – e, portanto, constitui uma constante que, destacada de um conjunto de
estímulos visuais, revela algo inusitado não só aos sentidos, mas também ao intelecto.
35 Assim, se a ciência (ou pensamento científico) opera por meio de conceitos, ao passo
que o bricolage (associado ao pensamento mítico), de signos, pode-se pensar que o
cientista interroga o universo, pressupondo que encontrará significados unívocos em
relação a ele (os conceitos) – e, portanto, propõe uma estabilização que se supõe
definitiva; enquanto isso, o bricoleur interroga o legado da cultura, os “testemunhos
fósseis da história de um indivíduo e de uma sociedade” (Lévi-Strauss 2008:37),
reordenando de forma sempre original um conjunto de signos – e, por isso, produz
relações inéditas que o conceito ainda não pode exprimir. O primeiro cria eventos a
partir de estruturas – suas hipóteses e teorias; o segundo, estruturas a partir de eventos
– unindo vestígios do presente e do passado numa composição heteróclita e plena de
novas possibilidades a explorar.
36 Também não se pode ignorar que o peso da crítica à razão científica trazida por Lévi-
Strauss tem ressonância direta em seus debates sobre arte: o pensamento mítico
(selvagem) é libertador, porque se opõe à “falta de sentido com a qual a ciência, em
princípio, se permitiria transigir” (Lévi-Strauss 2008:38). O antropólogo denuncia,
portanto, um caráter ilusório da ciência, sua confiança na possibilidade de revelar a
essência das coisas, construindo significados unívocos; e lança luzes sobre o
funcionamento arbitrário dos signos ante a superabundância dos objetos que resistem
às tentativas de apreensão.10
37 É o momento de rever o lugar da arte. Segundo Lévi-Strauss, ela estaria a meio caminho
entre ciência e bricolage. Se o cientista atribuiria às estruturas preeminência sobre os
eventos e o bricoleur atribuiria aos eventos uma anterioridade em relação às estruturas,
a arte está:
Sempre a meio-caminho entre o esquema e a anedota, o gênio do pintor consiste em
unir conhecimento interno e externo, ser e devir; em produzir com seu pincel um
objeto que não existe como objeto e que, todavia, sabe criar sobre a tela: síntese
exatamente equilibrada de uma ou de várias estruturas artificiais e naturais e de um
ou vários fatos naturais e sociais. (Lévi-Strauss 2008:41)
38 A posição da arte em meio ao bricolage e à ciência apresenta algumas implicações que
gostaríamos de discutir com base em observações feitas pelo próprio Lévi-Strauss em
suas “Conversas com Georges Charbonnier” (1969).
39 Primeiramente, na realização da arte, não se pode prescindir da observação (e
significação) da natureza, mantendo-se fortemente vinculada à realidade física, ao
sensível, que lhe oferece recursos para provocar novos caminhos à apropriação
inteligível; por outro lado, não seria arte se não fosse uma atividade estética voltada
para si mesma, dialogando com seus cânones e métodos de reprodução internos – o que
estaria próximo das estruturas/hipóteses do cientista. Segundo o autor, se modelo e
obra de arte fossem idênticos, o artista
estaria reproduzindo a natureza e não criando um objeto cultural específico. Por
outro lado, se o problema não aparecesse, isto é, se não houvesse relação entre a
obra e sua fonte inspiradora, não estaríamos lidando com uma obra de arte, mas sim
com um objeto de natureza linguística. (Lévi-Strauss 1969:108)
40 Em segundo lugar, a arte não pode abandonar o desejo de possuir o objeto em sua
totalidade, tal como faz o cientista, englobando uma tendência intrínseca ao conceito;
por outro lado, é apenas ao libertar os signos da fixidez com que os conceitos induzem a
olhá-los que pode criar novos sentidos a partir de novas sensações – e nisso importa
mostrar que as imagens são significantes, mais do que estímulos do exterior à retina.
41 Por fim, se o movimento da ciência em direção ao conceito conduz a estruturas
artificiais carregadas de arbitrariedade – e ao risco de uma incomunicabilidade,
individualização ou desumanização excessiva –, ao aproximar-se do bricolage e do uso
de signos enquanto eventos, a arte adquire uma função claramente coletiva, realizando
seu potencial de comunicação. No entanto, como afirma Lévi-Strauss,
o equilíbrio entre estrutura e evento, necessidade e contingência, interioridade e
exterioridade é um equilíbrio precário, constantemente ameaçado pelas trações
exercidas num e noutro sentido, segundo as flutuações da moda, do estilo e das
condições sociais gerais. (Lévi-Strauss 2008:46)
42 É no âmago dessas reflexões, informadas pelo esforço de propor uma definição de arte
conforme à obra de Lévi-Strauss, que situamos a crítica do antropólogo às vanguardas,
à qual passaremos no próximo item.
desses níveis, ou mesmo sem codificação sistemática. Quilliot (2012) elabora crítica
complementar, argumentando que a aceitação da arte abstrata pelo grande público
indica sua capacidade de produzir significação. Assim, enquanto a teoria estética
elaborada por Lévi-Strauss parte de exemplos como o de que não há cores na pintura
senão porque existem objetos naturalmente coloridos – de modo que apenas por
abstração as cores podem descolar-se de seus substratos e considerar-se como termos
de um sistema separado, aqueles autores postulam que o mundo dos objetos é
construído conforme uma necessidade prioritariamente utilitária, de modo que as cores
(ou formas, ou quaisquer atributos da forma artística) emergem separadas de quaisquer
suportes objetivos.
53 Já Wiseman (2007) considera que a arte abstrata pode tornar-se inteligível porque o
pensamento é capaz de estabelecer homologias envolvendo qualidades abstratas (como
cor e luz), dotando-as de inteligibilidade. O autor recorda, nesse sentido, as
investigações levadas a cabo pelas sucessivas correntes artísticas – a exemplo do
impressionismo, mas também anteriores – que, ao longo do século XIX, abriram espaço
para a autonomia da cor enquanto linguagem independente, em diálogo com as
investigações científicas sobre a percepção.
54 O argumento deste autor diferencia-se dos anteriores, pois aqueles a princípio
descartam a noção de natureza proposta por Lévi-Strauss. Eco (1968), na medida em
que rejeita o argumento da “dupla articulação”, e também Quilliot (2012) defendem que
há uma autonomia do intelecto na invenção de formas autônomas, enquanto Wiseman
(2007) parte do princípio de que as imagens (e com ela, todas as propriedades da forma
artística) emergem do pensamento porque estão necessariamente inscritas no mesmo
substrato que as formas naturais. Pensar é uma função a um só passo natural e cultural,
segundo a teoria lévi-straussiana, de maneira que a emergência de cores na imaginação
já serve de indício quanto à sua indexação natural no corpo humano que, conforme
vimos com Descola (2010), consegue decodificar estímulos na medida em que
compartilha determinadas estruturas de relações com o meio natural.
55 Mas se a perspectiva de Wiseman nos parece neste ponto mais ajustada ao modelo
proposto por Lévi-Strauss, por outro lado ela também dá vazão a questionamentos, em
particular porque não há consenso quanto à capacidade de significação das relações
entre elementos abstratos em pintura. Wiseman (2007) cita o exemplo de Kandinsky.
Segundo o analista, este pintor
reconheceu que formas, geométricas ou não, e cores possuem sua própria
‘ressonância interna’. Por exemplo, ele viu diferentes tipos de triângulos [...] como
‘seres espirituais’, cada qual com sua própria identidade, seu próprio ‘tom’ (ou
‘perfume’), cuja distintividade se manifesta quando são colocados perto de outras
formas. A ‘ressonância’ de cada elemento pictórico – o ‘tom’ distinto que ele emite
ou, em terminologia estruturalista, seu valor semântico – pode ser modificada
(modulada) tanto pela modificação da forma ou da cor em si, quanto por
justaposição com outros elementos pictóricos. Não há tons ‘puros’ na arte abstrata,
pois o elementos pictóricos, como o ponto [...] devem ser considerados em relação
com outros elementos. (Wiseman 2007:115)
56 Embora voltado a mostrar que formas abstratas possuem capacidade de significação, o
trecho também dá vazão a pensar no contrário, pois a “ressonância” do elemento
pictórico poderia pertencer a um plano não-significativo, funcionando mais ao nível da
imagem do que do conceito. Assim, a “ressonância” de um triângulo poderia estar
imediatamente ligada à emoção estética, mas não à significação. Há ainda a
possibilidade de que algum tipo de significação pudesse ocorrer, mas num plano
individual e/ou ao nível de um grupo restrito. Com isto, poderíamos também reabrir o
tópico elaborado por Quilliot (2012), perguntando-nos em que medida a aceitação da
arte abstrata pode ser decorrente de sua capacidade de produzir emoção estética num
período de restrição cada vez maior dos espaços que possibilitam experimentar o
pertencimento a uma ordem cósmica e extra-cultural12.
57 Já o cubismo, segundo Lévi-Strauss, enfrentaria o problema inverso. A esse respeito,
Wiseman (2007) considera que o que aquele antropólogo
não vê ou aprecia é a capacidade de novas formas de arte forjarem suas próprias
ferramentas expressivas, para criar seus próprios idiomas estéticos,
independentemente dos (ou em oposição aos) códigos já reconhecidos por qualquer
grupo determinado. (Wiseman 2007:126)
58 Alternativamente, nos parece interessante pensar que Lévi-Strauss reconhece essa
capacidade e que sua crítica ao cubismo assume antes o sentido de preocupação
fundamental com uma função “comunicativa” ou coletiva da arte. Destarte, a pergunta
que traduz essa indagação diria respeito a como se constituem as linguagens capazes de
operar uma transformação estrutural nas formas de conhecer e relacionar-se com o
mundo sensível. No marco do pensamento lévi-straussiano, uma das condições
fundamentais para que a arte possa cumprir esse papel é constituir-se como uma
linguagem com grande poder de comunicação – o que depende precisamente da ideia
de emoção estética: uma dimensão primordial, relacionada ao próprio processo de
inserção na (e experimentação sensorial ou conhecimento da) natureza, e portanto,
fundamental para uma unidade inquebrantável, ou que deveria ser tomada enquanto
tal, segundo Lévi-Strauss: referimo-nos ao par natureza e cultura.
59 Conforme observa Hénaff (1998), o cubismo simboliza um movimento mais amplo de
ruptura radical entre a arte e natureza, segundo a perspectiva de um
antropólogo que assiste, de luto, como a humanidade se fecha em suas próprias
produções. Com resultados frequentemente desastrosos, desde a Renascença a
sociedade ocidental desenvolveu um projeto de dominação cujo objetivo era reduzir
o mundo natural ao papel de matéria a ser transformada, sem que as consequências
de tal violência fossem jamais avaliadas [...] A arte moderna testemunha essa
posição lamentável. (Hénaff 1998:204-205)
60 Mas não apenas a natureza está ameaçada, adverte Hénaff (1998): “A ruptura com o
mundo natural, por meio do corte da fonte profunda e necessária de toda criação, força
o ocidente a voltar-se para as culturas que ainda estão vivas, para miná-las naquilo que
cada vez mais lhe falta: sensações, energia, obras” (Hénaff 1998:205). Logo, o problema
da arte é o problema do ocidente. Mas se isto é verdade, em que medida a própria arte
se torna capaz de apontar caminhos distintos para superá-lo?
61 É importante deter-se na questão por um momento. Em primeiro lugar, seria válido
pensar uma forma de arte ocidental que, a princípio, assume o papel de realizar a
crítica da arte ocidental: ao substituir a representação pelo próprio objeto, o ready-made
torna-se “um objeto num contexto de objetos” (Lévi-Strauss 1969:95), o que aponta para
a intenção de destituir a obra de arte de qualquer aspiração de valor superior,
questionando a própria cultura que lhe atribui tal posição, além de denunciar o papel
do mercado como definidor do que seja arte.
62 Não obstante, Lévi-Strauss revela que essa crítica não é suficiente, pois concorre para o
rompimento com o mundo natural e anuncia
68 Entendê-lo, por sua vez, exige do analista um discernimento sutil entre o que Lévi-
Strauss define como consideração subjetiva do artista e uma consideração objetiva que
visa apreender a natureza.
Consideramos subjectivamente medas de feno quando nos entregamos a passar
para uma série de telas as impressões momentâneas que elas provocam no olhar do
pintor a esta ou aquela hora do dia e sob esta ou aquela luz; mas renunciamos no
mesmo momento a fazer o espectador discernir intuitivamente o que é, em si
mesma, uma meda de feno. (Lévi-Strauss 1983:348)
69 O trecho reitera, portanto, que é preciso que a arte provenha o público de uma dose de
informação objetiva, a fim de propiciar um alargamento da compreensão dos objetos –
ainda que sem descuidar do subjetivo, pois de outra maneira, bastaria observá-los.
70 O segundo exemplo que ganha destaque na crítica de Lévi-Strauss, nesse sentido, é o de
Anita Albus, cuja “atenção apaixonada”
é feita de ternura por todos os seres vivos: quadrúpedes, pássaros, folhas e flores,
servida por um escrúpulo de exatidão que rivaliza com o do naturalismo. Mas [...]
Anita Albus não se propõe copiar simplesmente estes modelos: ela aprofunda o
conhecimento que deles temos, reencontrando, com o gesto da mão e o movimento
do pincel, o impulso da criação natural. (Lévi-Strauss 1983:352)
71 A artista ainda revela uma ambição de “pôr a pintura ao serviço do conhecimento e
fazer da emoção estética um efeito de coalescência, dada instantânea pela obra, das
propriedades sensíveis das coisas e das suas propriedades inteligíveis” (Lévi-Strauss
1983: 352-353). O vínculo com o natural, portanto se confirma, bem como a coesão
intrínseca entre sensível e inteligível – fonte da emoção estética. O elogio à artista
parece coadunado a um reconhecimento de um esforço minucioso do artista para
transmutar as propriedades do mundo natural à tela, à luz de uma capacidade de
observação subjetiva. Nos dois exemplos, prevalece um esforço para acentuar a conexão
entre criador e o universo circundante. Um diferencial de Ernst e Albus é, portanto, que
sua arte se propõe a significar os objetos naturais.
72 Mas as coincidências não terminam nesse ponto. Anita Albus, como descreve Lévi-
Strauss, explora um jogo colecionista de curiosidades heteróclitas em minúcia de
detalhes; enigmas, não raro codificados em citações pictóricas (e nesse sentido, há que
destacar a reverência de Lévi-Strauss à constituição do métier artístico como uma
interlocução entre esquemas – o que é fundamental para a função comunicante da
arte); reaviva a tradição do trompe l’oeil; opera rearranjos e encontros entre objetos,
como o guarda-chuva e a máquina de costura sobre a mesa de anatomia (a associação é
do próprio antropólogo); e estabelece um diálogo com o surrealismo 14, além da arte
nórdica e germânica medieval. Logo, trata-se de um tipo de obra que oferece uma série
de elementos para a imaginação e o intelecto, que assim são desafiados e decifrar
imagens e questionar suas próprias limitações diante do universo, mas com base num
apelo à memória de seus conhecimentos sobre arte e natureza.
73 Os exemplos de Max Ernst e Anita Albus, na prosa de Lévi-Strauss, mostram-se
radicalmente distintos de sua avaliação sobre o impressionismo, o cubismo, a arte
abstrata e o ready-made. Se por um lado, arremessam o leitor em direção a um novo
universo de possibilidades para a apreciação artística, por outro inauguram
dificuldades, na medida em que convidam a uma transformação fundamental em
modalidades correntes do ver.
74 Se é válido afirmar que sua obra produz “significação” e “emoção estética”, é porque
terá conseguido reabrir o segredo da arte como produtora de “imagens de coisas vivas”
(Sekyen apud Lévi-Strauss 1983:353), devidamente transpostas à superfície plástica.
“Significação” e “emoção estética”, constituem, nesse marco, aspectos de uma união
indissociável entre cultura e natureza, reatualizada diante da arte.
75 É, evidentemente, impossível (e também desnecessário) validar a crítica do antropólogo
sobre arte. Em sendo crítica, nos parece mais interessante tomá-la como janela para a
imaginação. À luz do trajeto empreendido – e que não pretendeu senão um sobrevoo
inicial sobre esse universo reflexivo – podemos pensar que “significação” e “emoção
estética” adquirem peso fundamental no juízo crítico do antropólogo e se tornam as
balizas para uma restituição da arte a um lugar central na experiência coletiva. Talvez
seja lícito, nesse sentido, ver o chamado por trás desses conceitos menos pelo viés do
rechaço a determinados estilos, movimentos e escolas – que no mais parecem ter
cumprido um papel importante para a presente crítica a uma maneira ocidental de
encarar arte –, e mais para que, diante de certos objetos, não deixemos de nos
perguntar sobre as aprendizagens que ele armazena a respeito do mundo natural, seja-
nos ele exterior ou aquele guardado no interior de nossos aparatos perceptivos mais
fundamentais.
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NOTAS
1. Neste artigo, as traduções de trechos extraídos de obras em língua estrangeira são livres.
2. Em Entrevista a Didier Eribon, o antropólogo reafirma seu apreço por Ernst e o fato das
Mitológicas procederem uma colagem semelhante às do surrealista. Cf. Lévi-Strauss & Eribon
2005:57.
3. O exemplo clássico discutido em “O pensamento selvagem” é a tela Elizabeth d'Autriche, de
François Clouet (1571), atualmente no Louvre, em Paris.
4. Ver também Petitot (2010) e Keck (2010). O primeiro aponta para uma particularidade da noção
de estrutura de Lévi-Strauss, que se refere menos a uma estrutura de linguagem e mais a
estruturas imanentes ao sensível. Não por acaso, o antropólogo teria elegido como modelos o
“Tratado das proporções do corpo humano”, de Dürer; e “A metamorfose das plantas”, de Goethe
– o que também seria um indício de sua afinidade com as teorias da Gestalt. Keck discute a lógica
do sensível, buscando compreender o papel da natureza nesse processo.
5. Maniglier (2002) complementa tal reflexão, assinalando que “não há contradição, nem
exterioridade entre a busca de sentido da humanidade e a realidade física do mundo” (p. 41).
6. E sob esse aspecto, vale lembrar que “o que caracteriza o conceito lévi-straussiano de estrutura
é a insistência na noção de transformação: ‘Hoje nenhuma ciência pode considerar as estruturas
relevantes em seu domínio ao reduzi-las a um arranjo qualquer de partes quaisquer. Não é
estruturado senão o arranjo que responde a duas condições: é um sistema, regido por uma coesão
interna; e esta coesão, inacessível na observação de um sistema isolado, se revela no estudo das
transformações, graças às quais encontramos propriedades similares nos sistemas
aparentemente diferentes’” (Maniglier 2002:47).
7. O termo “objeto” aqui é sugestivo. Refere-se ao que serve de modelo à arte e, ao mesmo tempo,
suscita a rever a relação dialética entre sujeito e objeto, em que todo conhecimento das coisas só
é possível na maneira em que elas se pensam nos sujeitos.
8. Ou ainda, como se as palavras refletissem sem interferência alguma uma relação unívoca entre
ideias e coisas; e as ideias prescindissem das coisas na definição de mundo. Cf. Lenoir 1998.
9. Comunicação, em Lévi-Strauss, tem uma “natureza dupla”, a uma só vez física e semântica. A
ideia de comunicação, entendida simultaneamente como “circulação” (de bens, de mulheres e de
palavras, por exemplo) e “compreensão” recíproca (diálogo), pressupõe que a totalidade da vida
social e o acesso à vida simbólica são indissociáveis; uma não existe sem o outro (cf. Maniglier
2002:12); quando se perde a capacidade de significar a existência a partir de sua concretude (as
relações natureza/cultura), amplia-se a incomunicabilidade, a tendência à individualização e à
desumanização.
10. Não se deve supor, no entanto, que a ciência esteja operando apenas com base em conceitos e
vice-versa. O modelo pressupõe que cientista e bricoleur, assim como o artista, podem percorrer a
gama de possibilidades contida no interior do signo. Nesse sentido, enquanto método e teoria de
análise, Lévi-Strauss abre múltiplas possibilidades para a leitura do mito, da arte e da própria
ciência. A riqueza está justamente nas possibilidades de transformação que medeiam as relações
entre um e outro elemento.
11. Mas neste caso, há que não esquecer que na juventude Lévi-Strauss recebeu com grande
entusiasmo o início do cubismo e especialmente, a obra de Picasso. Cf. Passetti, 2008.
12. De todo modo, é preciso reconhecer o quanto não seria importante problematizar a ideia de
um alcance da arte abstrata, refletindo inclusive sobre sua difusão como um fenômeno de
mercado, ou seja, segundo uma lógica de consumo.
13. Cf. também Wiseman (2007): “Com os ready-mades de Duchamp, esta agência [aquela do
artista criador, descolada para a natureza no caso das conchas de Cellini] é novamente deslocada
para a cultura e assimilada às forças anônimas da produção em massa, que modelam o novo
ambiente urbano. A máquina se torna o artista” (Wiseman 2007:152) ou “a cultura se torna o
duplo da natureza” (Wiseman 2007:153).
14. Com uma diferença: “em lugar de pedir a um objecto que seja outra coisa diferente daquilo
que ele é, [Anita Albus] aplica-se com uma precisão minuciosa a dar a armação e o pregueado de
um tecido, ou, precisamente, os veios e o grão de uma velha madeira. Nós vêmo-los então como já
não sabíamos fazer, ou tínhamos esquecido que se podia vê-los” (Lévi-Strauss 1983:357).
RESUMOS
Este artigo aborda algumas considerações de Claude Lévi-Strauss sobre arte, discutindo as críticas
dirigidas pelo autor ao impressionismo, cubismo, pintura abstrata e ready-made à luz de uma
definição de arte que, conforme sua obra, leva em conta a capacidade do objeto artístico de
This article addresses some of Lévi-Strauss’ considerations on art, by discussing his critiques of
Impressionism, Cubism, abstract painting and ready-made under the light of a definition of art
that, accordingly to his work, takes into account the capacity of artistic objects to produce
meaning and aesthetic emotion. These reflections benefit from a dialogue with a group of authors
who sought to deepen the understanding of Levi-Straussian aesthetic theory, with the purpose of
reflecting upon the status attributed by the anthropologist to Western art and the possibilities of
perceiving the rationale for art criticism in his work.
ÍNDICE
Keywords: Lévi-Strauss, art, avant-garde, criticism
Palavras-chave: Lévi-Strauss, arte, vanguardas, crítica
AUTOR
TATIANA LOTIERZO
Universidade de São Paulo
Mestranda em Antropologia Social. Durante o mestrado, fui agraciada com bolsas CAPES e
FAPESP – o que viabilizou, dentre muitos processos, a produção deste artigo.
tatiana.lotierzo@usp.br
Ensaios (audio)visuais
(Audio)visual essays
objetos que habían encontrado en los depósitos de basura. En algunas ocasiones estas
personas transitaban por los carriles bici por lo que no podía evitar mirarlos, en otras
iban en paralelo por la acera o se cruzaban cuando me tocaba parar en algún semáforo.
Este medio no se puede ver aquí. Por favor refiérase a la edición en línea http://
2 journals.openedition.org/cadernosaa/201
3 Un día, confieso que más por estar aburrido que por un interés específico, saqué mi
teléfono móvil y le tomé una foto al chico que iba empujando su inseparable carrito que
ya no era de supermercado sino de supervivencia. Solía hacerlo, fotografiar cosas que
me llamaban la atención cuando podía hacer uso de mi teléfono (y en algunas ocasiones
en las que no debía haberlo hecho, con la bicicleta en movimiento) pero fue esa primera
imagen la que comenzó lo que podría denominarse una “serie”, en términos
fotográficos, sobre los carros de supermercado. Comenzó en Barcelona y en bicicleta
pero continuó cada vez que observaba carritos de supermercado fuera del entorno para
el que fueron construidos. Así, en este ensayo visual hay mayoritariamente imágenes de
Barcelona. Sin embargo decidí incluir algunas de San Francisco, Chicago y México para
mostrar cómo, con cierta independencia de las características propias del lugar, la
situación se repite con cierta homogeneidad y nos muestra con claridad que las
desigualdades sociales son un problema global. Los lugares en sí mismos no tienen otra
conexión que el hecho de que viajé a ellos en el periodo de unas pocas semanas. Mi
trayectoria entonces no fue sólo por las calles de una ciudad sino por varias ciudades en
las cuales me encontré con carritos de supermercado cruzando mi camino. Aunque
estos carritos casi siempre eran utilizados para transportar cosas, resulta curiosa la
observación de que en Barcelona eran utilizados más como instrumento de trabajo
mientras que en Estados Unidos funcionaban como un hogar móvil.
4 El ejercicio visual que aquí se presenta tiene tres objetivos que se sugieren apenas como
un bosquejo, una serie de apuntes para una agenda futura: a) Servir como ejemplo para
la discusión sobre las posibilidades de recolección de registros visuales/digitales/
móviles para la investigación. b) Reflexionar sobre nuestra posición como
investigadores en entornos urbanos, móviles y digitales utilizando el concepto de
trayectorias como concepto de trabajo y c) Discutir la emergencia de una agenda de
investigación etnográfica basada en dichas trayectorias, en este caso utilizando el
ejemplo de los carritos de supermercado. La serie de fotos que constituye el centro de
este ensayo no difiere mucho de las “aventuras narradas” que planteaba De Certeau y
que “producen geografías de acciones y derivan hacia los lugares comunes de un
orden…organizan los andares” (De Certeau 1996: 128).
generan esa ciudad cosmopolita y europea. La Figura 1, que muestra sobre el mapa el
camino que recorría todos los días, es un primer elemento de esta reflexión visual sobre
la movilidad, la ciudad y sus actores, lo que llamaré, como un concepto de trabajo
provisional: Trayectorias.
Figura 1
BIBLIOGRAFÍA
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NOTAS
1. Modelo que existe en varias ciudades del mundo: Londres, París, México D.F., Buenos Aires, etc.
2. Aunque quizá sea más adecuado decir los carritos (y en algunas ocasiones con sus personas)
puesto que mi interés no estaba centrado en un grupo humano sino en la cultura material que el
objeto “carrito”, utilizado en un contexto distinto al supermercado, representaba.
3. Resulta curioso pensar que, si mi trayectoria al trabajo hubiera sido cruzando el centro de la
ciudad seguramente estaría escribiendo sobre el turismo u otra de las “subjetividades móviles”
representativas de Barcelona: Los vendedores ilegales de cerveza, mejor conocidos en el argot
barcelonés como cerveza-bier, convertidos incluso en arte: http://michelesalati.it/Souvenirs-
Modernos (Consultado el 04/11/2013)
4. Para una distinción entre lugar y espacio ver De Certeau (2007: 129).
5. Utilicé Hipstamatic con la combinación permanente de película BlackKey SuperGrain B+W y la
lente John S.
6. Disponible en http://s3.amazonaws.com/lcp/qwerty/myfiles/baudelaire.pdf (consultado el
04/11/2013)
7. http://ccaa.elpais.com/ccaa/2012/02/25/catalunya/1330198632_698695.html o más
recientemente: http://ccaa.elpais.com/ccaa/2013/07/24/catalunya/1374646791_694482.html
(consultados el 04/11/2013)
8. Y que no es necesariamente una idea novedosa, ver por ejemplo Parmeggiani (2009).
9. Para una historia completa sobre el carro de supermercado ver Grandclement (2006).
10. Para una reflexión sobre las “políticas de la chatarra” ver el trabajo de Blanca Callén en
http://politicadechatarra.wordpress.com/
11. Ver También Gowan (2010).
12. Por ejemplo en Argentina hay un importante corpus de trabajo sobre los llamados cartoneros.
RESÚMENES
El siguiente trabajo es un breve bosquejo de las posibilidades del concepto de trabajo
“trayectoria”. Una trayectoria no es sólo, en el sentido literal del término, el trazo del
movimiento sobre un camino, sino que busca establecer una reflexión sobre las posibilidades de
recolección de registros visuales/digitales/móviles para la investigación etnográfica desde la
aleatoriedad del movimiento por la ciudad. El concepto de trayectoria busca dialogar con el de
“flâneur” de De Certeau y Benjamin, y con la etnografía visual/digital, especialmente en su
vertiente sobre el movimiento propuesto por Pink. Utilizando el ejemplo de los carritos de
supermercado, se busca iniciar un diálogo sobre la posible aplicación de dichas trayectorias en la
investigación etnográfica.
The present photo-essay is a brief outline of the working-concept “trajectory”. A trajectory is not
only a trace of a movement on a path but a reflection on the possibilities of visual/digital/mobile
data recollection for ethnographic research. The concept of “trajectory” is intended to establish
a dialogue with the “flâneur” of De Certeau and Benjamin, and with visual/digital ethnography,
especially insofar as related to movement (Pink). Using as an example supermarket trolleys, the
essay aims to establish a dialogue on the application of “trajectories” in ethnographic research.
ÍNDICE
Keywords: visual ethnography, trajectory, photography, mobility, city
Palabras claves: etnografía visual, trayectoria, fotografías, movilidad, ciudad
AUTOR
EDGAR GÓMEZ CRUZ
Institute of Communication Studies, University of Leeds
E.Gomez@leeds.ac.uk