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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA


DEPARTAMENTO DE MEDICINA SOCIAL E PREVENTIVA

AYLA MORAIS VITÓRIO GUERRA

MARIA ODILIA: A PRIMEIRA MÉDICA NEGRA DA BAHIA

Salvador
2019
AYLA MORAIS VITÓRIO GUERRA

MARIA ODILIA: A PRIMEIRA MÉDICA NEGRA DA BAHIA

Trabalho acadêmico apresentado à Faculdade de


Medicina da Bahia, ao Departamento de Medicina
Social e Preventiva, como requisito parcial avaliativo,
para o componente curricular História da Medicina
(MEDB92).

Docentes: Eduardo José Farias Borges dos Reis e


Ronaldo Ribeiro Jacobina.

Salvador
2019
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.....................................................................................................................4

MÉTODO...............................................................................................................................6

MARIA ODILIA: A PRIMEIRA MÉDICA NEGRA DA BAHIA....................................7

MATRIMÔNIO INTER-RACIAL NO SÉCULO XX......................................................12

MARIA ODILIA E A QUESTÃO FAMILIAR.................................................................13

CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................15

REFERÊNCIAS..................................................................................................................16

ANEXOS..............................................................................................................................19
INTRODUÇÃO

No Brasil, antes da vigência da Constituição Federal de 1988, a qual estabeleceu que


“homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”, as mulheres eram tratadas como
inferiores aos homens e sua função social era cuidar do marido, dos filhos e dos afazeres
domésticos. A partir do século XX, a figura feminina começou a lograr com mudanças na
sociedade, no entanto, diversas situações negativas - restrição de acesso a certos espaços,
submissão da mulher ao homem e violências simbólicas - persistiram (MAZZA, 2015).

No entanto, nem todas as mulheres que viveram antes da promulgação da


Constituição Federal de 1988 se contentaram em seguir o padrão da época, muitas assumiram
papéis de protagonismo em lutas em busca de direito e de espaços que eram negados pelo
período histórico em que estavam inseridas. Algumas foram vanguardistas e propuseram
revoluções significativas que impactam positivamente na vida das mulheres da atualidade; e
quando a luta feminista estava começando a ter suas primeiras vitórias, muitas dessas
mulheres já estavam formadas, exercendo suas funções e ainda dispondo de tempo para dar
conta de sua dupla jornada com os trabalhos domésticos.

Mesmo com muitas lutas, o cenário para muitas mulheres vanguardistas ainda era de
muita exclusão e opressão; e se tratando da esfera profissional, muitas funções eram negadas
às mulheres, em especial aquelas que tinham certos status social, tal qual a medicina. Para as
poucas que chegavam às universidades e conseguiam adentrar no curso em questão, o poder
de escolha sobre sua especialidade era raso, visto que suas vivências eram facilitadas se suas
especialidades fossem direcionadas aos cuidados femininos ou pediátricos; logo, restringindo
e dificultando o acesso a especialidades tidas como “masculinas”. Esse ambiente de restrição
contribuía massivamente para a estigmatização da ocupação de alguns postos de trabalho,
que eram reservados aos homens, e, por consequência, era comum mulheres largarem suas
profissões para cuidar de sua família, seja por pressão social, familiar ou individual
(BIASOLI-ALVES, 2000).

A situação feminina daquele período se agrava quando envolvia a questão racial.


Afinal, o racismo estrutural que naturaliza o racismo presente nas relações políticas, sociais,
jurídicas e econômicas; reafirmando a supremacia branca, tornava difícil, mesmo para
homens negros, a obtenção de bons empregos, uma vez que, para esses, eram destinadas as
profissões subalternas e braçais (BATISTA, 2018). Além disso, o racismo institucional
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vigente logo após a abolição da escravatura - que persiste nos dias atuais - dificultava o
acesso, principalmente das mulheres negras, às instituições de ensino superior para que estas
conseguissem ascensão social e intelectual. A universidade, historicamente, nasceu para
atender a elite branca brasileira e disseminou, por muito tempo, um discurso racista. Ela,
desde sua criação, é excludente (SILVA, 2017).

Assim, sob a ótica do protagonismo feminino e negro no âmbito profissional, o


presente trabalho tem por objetivo retratar a vanguarda de Maria Odilia Teixeira Lavigne que
foi a primeira mulher negra a se formar em medicina em pleno século XX. Além disso,
tornando-se, anos depois, a primeira professora negra da Faculdade de Medicina da Bahia.

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MÉTODO

Apesar de sua importância e pioneirismos, não há muitos estudos a respeito da vida


da biografada, então, para realização deste trabalho, foi realizada uma breve conversa com
Mayara Priscilla dos Santos, mestranda em História, cuja tese é “Maria Odília Teixeira: A
Primeira médica negra da Faculdade de Medicina da Bahia (1884- 1937)” além de
pesquisas bibliográficas sobre Maria Odilia e sobre o contexto histórico e social em que a
encantada viveu.

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MARIA ODILIA: A PRIMEIRA MÉDICA NEGRA DA BAHIA

Em uma época marcada pelo racismo e machismo, em que o lugar da mulher era em
casa, cuidando dos filhos e marido, e em uma cidade que teve seu processo de urbanização
alicerçado por questões de ordem econômica e social escravocratas, nasce Maria Odilia
Teixeira, no dia 05 de março de 1884, em São Félix do Paraguaçu – Bahia, cidade situada a
110 km de Salvador, com forte presença de sincretismo religioso e diversidade cultural,
características ratificadas por seus diversos museus e movimentos populares.

Sua mãe, Josephina Luiza Palma, filha de uma escrava liberta, cuidava da casa, do
marido e dos filhos - a ponto de Eusínio, seu genro, em um artigo chamá-la de “anjo tutelar”.
Já seu pai, José Pereira Teixeira, também filho de escravos, foi médico formado pela FAMEB
em 1879, tinha origem pobre e sustentou sua família com bastante sacrifício, uma vez que
como médico negro, não tinha muitos pacientes (SANTOS, 2016), afinal, naquele período, a
condição cidadã era frequentemente questionada por sua cor ser ligada à escravidão que
permaneceu até 1888. Mesmo após a Lei Áurea, não foram dadas aos negros condições
adequadas para uma vida digna e possibilidade de uma real igualdade com os brancos, em
função disso, aos negros eram reservadas todas as restrições e dificuldades possíveis para
conseguir estabilizar-se perante a sociedade; e até aqueles poucos que chegavam em espaços
grandes status, suas presenças eram negadas e até mesmo silenciadas, a ponto de Dr. José
Teixeira ter sido sustentado por seu genro por um longo período, até o dia de seu
encantamento (BRITO, 2018).

Dr. José Teixeira sofrera de asma, então, ele e sua família resolveram se mudar para
Irará, município da área de expansão metropolitana de Feira de Santana, onde o clima úmido/
sub úmido era mais propício para sua enfermidade. De lá, Odilia viajou para Salvador, para
fazer o curso de Ciências e Letras pelo Gynasio da Bahia, onde obteve conhecimentos
fundamentais para cursar, mais tarde, a medicina (SANTOS, 2016).

Os pais de Odilia sempre motivaram ela e seus irmãos a estudarem e adquirirem uma
formação acadêmica. De acordo com a tese de mestrado ainda não publicada de Mayara
Priscilla dos Santos, foi por influência direta de seu pai que Maria Odilia resolveu ingressar
no curso de medicina, escolha incomum para a época, uma vez que só tinha se passado trinta
anos após a aprovação do Decreto 7247 de 19 de abril de 1879, que garantiu legalmente o
direito da formação feminina em medicina no Brasil. A jovem entrou no salão nobre da

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Faculdade de Medicina de braço dado ao seu pai, sua inspiração, para receber o grau de
doutora.

Em entrevista realizada por Santos (2016) com José Léo, filho de Odilia, ele relata
que a mãe nunca falou sobre preconceitos ou dificuldades da vida acadêmica e nem mesmo
há relatos nas Memórias Históricas da Faculdade de Medicina sobre situações de misoginia
ou racismo com a biografada. No entanto, isso não quer dizer que esses atos não aconteceram,
afinal, no cenário histórico e social que a biografada viveu, era corriqueira a exclusão, olhares
tortos e palavras malditas para com essa minoria, então, era frequente mulheres e/ou negros
negarem sua identidade para tentar se adequar à universidade e às pessoas que a
frequentavam, desse modo, eles modificavam o cabelo, modo de se vestir e até mesmos seus
comportamentos. Como consequência, esses estudantes não se viam como pertencentes
àquele local.

Algo sugestivo da misoginia e racismo vivenciado por Odilia é a tese inaugural de um


dos colegas de classe de Odilia, Hidelbrando José Baptista, cujo título é “A mulher e a
Medicina Legal” (1909). Nessa tese, o autor descreve o perfil das mulheres e destaca os
perigos intrínsecos a este sexo, tais quais a menstruação e a menopausa, relacionando-os com
a possível execução de crime.

Na época vivida por Odilia, apesar da abolição da escravidão, ainda havia fortes
influências do pensamento de Nina Rodrigues, médico e antropólogo que foi o primeiro
introduzir os estudos sócio-etnológicos sobre os negros no Brasil. A partir dele, iniciou-se
pesquisas nessa área de modo a compreender a questão racial, sob olhar científico, em um
período próximo à abolição da escravidão. Apesar de sua importância em diversas áreas, ele
tinha ideias racistas, chegando a alegar que:

“Ninguem pode duvidar tão pouco de que anatomicamente o negro esteja


menos adiantado em evolução do que o branco. Os negros africanos são o
que são: nem melhores nem peiores que os brancos; simplesmente elles
pertencem a uma outra phase do desenvolvimento intellectual e moral.”
(RODRIGUES, 1894, p.120)

Diferente de muitos médicos que tiveram seus espaços em diversas homenagens,


Maria Odilia não teve tamanho destaque por seus feitos na medicina, uma vez que ela a
exerceu por um curto período e não publicou trabalhos, apesar de ser uma excelente
ginecologista (SANTOS, 2016). Tendo em vista o racismo e sexismo latente no período

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vivenciado por Odilia, não é de se assustar que ela tenha abandonado sua profissão tão cedo
e de forma tão natural, afinal, a ideia de que a mulher devia ter certos atributos como pureza,
fragilidade e submissão estavam enraizadas na sociedade e mesmo as mulheres a frente de
seu tempo estavam inclinadas a manter essas características (BIASOLI, 2000). A biografada
foi sim protagonista, mas também foi silenciada enquanto mulher negra, médica e professora
da FAMEB por conta de sua condição racial e gênero. Não é difícil imaginar o espaço que
ela teria conseguido com sua tamanha dedicação e integridade se sua situação fosse diferente.
Mas ela merece destaque e admiração por sua luta, coragem e força de vontade, pois apesar
desses entraves, ela conseguiu, em pleno século XX, se formar em medicina.

Para esta conquista, ela obteve a ajuda de seu irmão, Tertuliano, que era bacharel em
Direito e tinha boas condições para pagar uma parte da petição que foi apresentada ao diretor
Alfredo Thomé de Britto no dia 16 de março de 1904, e que foi aprovada no dia 18 do mesmo
mês. A FAMEB cobrou pelo primeiro ano de curso de medicina um valor de 50 mil réis –
quantidade bastante elevada para a época e para a condição financeira de seu pai (SANTOS,
2016).

Divergindo das outras seis mulheres que se formaram anteriormente em medicina


pela FAMEB, cujos trabalhos de conclusão de curso tinham como tema tocoginecologia ou
pediatria, a tese inaugural de Maria Odília foi “Algumas considerações acerca da
curabilidade e do tratamento das Cirrhoses Alcoólicas” (TEIXEIRA, 1909), doença que, na
época, já acometia boa parte da população e que persiste nos dias atuais. Nesse sentido, ela
foi vanguardista, pois, como supracitado, normalmente os temas escolhidos por formandas
em medicina eram relacionados a mulheres e a crianças. E em 15 de dezembro de 1909, ela
se torna a primeira mulher negra a se formar em medicina na Bahia, talvez no Brasil
(CREMEB, 2019), em uma turma com 46 homens e apenas ela de mulher. Passaram-se 18
anos para que a próxima afrodescendente se formasse em medicina, a Dra. Ítala Silva de
Oliveira, em 1927 (SANTOS,2016).

Odilia e seu irmão, Joaquim Teixeira, que fez parte do curso com a jovem, iniciaram
a carreira juntos, ao lado de seu pai, em Cachoeira, cidade, na época, considerada uma das
mais importantes do recôncavo baiano por sua economia de agroexportação, e era vizinha a
sua cidade natal (SANTOS, 2016). Não há relatos do motivo que levou a biografada a clinicar
em Cachoeira no início de sua carreira, entretanto, supõe-se que, mais uma vez, que por
questões raciais e de gênero, havia expressiva dificuldade para obtenção de bons empregos,
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os quais eram, preferencialmente, destinados para homens brancos, ainda mais em Salvador,
antiga capital do Brasil.

Esses irmãos desenvolveram sua clínica médica de maneira distinta. Joaquim


viajando e Odilia em Cachoeira e São Félix, depois em Salvador na Maternidade Climério
de Oliveira (SANTOS, 2016). Maria Odilia exerceu a profissão de parteira, sendo nomeada
em 1914 por resolução da Congregação, a pedido de Menandro dos Reis Meirelles Filho, que
na época era professor de Clínica Obstétrica e diretor da Maternidade Climério de Oliveira;
por lei, Odília passou a ocupar o cargo de Assistente de Ensino da cadeira de Clínica
Obstétrica. E assim, mais uma vez essa mulher foi pioneira ao receber o título de primeira
médica negra professora de medicina do Brasil. Entretanto, três anos depois, em 1917, ela
pediu a exoneração do cargo e voltou com seu pai para Cachoeira (JACOBINA, 2013).

Por sua condição de mulher e negra, Maria Odilia tinha maior noção de como tratar
suas pacientes de ginecologia, podendo oferecer-lhes maior humanidade, afinal, ela sabia o
que suas pacientes provavelmente sofreram com a medicina da época, pois havia a crença de
que as mulheres negras tinham predisposição para certas enfermidades na gravidez, tais quais
pré-eclâmpsia e hipertensão arterial, logo, não mereciam o mesmo tratamento que as
mulheres brancas (SILVA, 2011). Sob essa ótica, a feminização da profissão médica se
mostra importante por aproximar a profissional da realidade do paciente e assim, tornar o
atendimento mais humanizado. Princípio este que nos dias atuais é fundamental, mas na
época vivenciada por Odilia ainda não era comum por conta de o modelo de atenção ser
centrado na figura do médico (TEIXEIRA; VILASBÔAS, 2014). Mais tarde, se tornou
comum relatos e indignações de médicos, na própria Gazeta Médica, sobre a predileção das
mulheres por parteiras (SANTOS, 2016).

Além de médica e professora, a biografada era fluente em francês e lia grego e latim,
sem nunca ter saído do Brasil e ter vindo de uma família humilde. Essas línguas aprendidas
no Gynasio da Bahia a ajudaram bastante no curso de medicina, afinal, poucos livros eram
traduzidos para o português (SANTOS, 2016). Em uma sociedade que mulher não tinha o
costume de ler, frequentar faculdade ou trabalhar, Maria Odilia é um símbolo do feminismo,
que tinha começado a ter suas primeiras vitórias apenas no século XIX.

O curso de medicina, também supervalorizado na época era, por esse motivo,


destinado preferencialmente aos homens. Inclusive, é importante pontuar que os textos de

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relevância da época eram contrários ao pensamento e ao protagonismo de Odilia, como
mostra uma reportagem da Gazeta Médica de 1868:

Não se percebe todavia que haja prazer possível em uma mulher


conviver com as doenças mais repugnantes, e passar os melhores dias de
sua mocidade a dissecar cadáveres. Não pode haver mulher de gosto tão
deploravelmente[sic] depravado! Para se tornar bom cirurgião e bom
médico é preciso que o homem desde o começo da sua instrucção technica
se dê com toda a vontade e perseverança aos estudos anatômicos. Na[sic]
desempenho d’estes é mister vencer muita repugnância, desprezar muitos
preconceitos, expor-se a muitos perigos. A mulher pela sua compleição,
pelos seus hábitos, pela sua organização nunca poderia vencel-os. Se para
ser bom prático é preciso tudo isso, a mulher nunca poderia ser boa médica.
(A MULHER MÉDICA, 1868, p. 70-71 apud VANIN, 2013, p. 5)

A partir do ano do título de Doutora de Maria Odília, é possível perceber a intersecção


racial embutida na segregação de gênero, afinal, a primeira mulher a se tornar doutora pela
FAMEB, apesar de ter iniciado seus estudos no Rio de Janeiro, foi Rita Lobato Velho Lopes,
no ano de 1887, e se passaram 22 anos para que, em 1909, se formasse a primeira mulher
negra em medicina pela FAMEB. O mesmo aconteceu com a primeira professora da
FAMEB, Francisca Barreto Praguer, que lecionava em Obstetrícia e foi diplomada em 1887,
16 anos antes de Maria Odilia (JACOBINA, 2013). Hoje em dia há uma forte presença
feminina nas Faculdades de Medicina, em que, de acordo com pesquisa realizada pela
Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), o número de mulheres que entram em medicina
no Brasil é maior que o número de homens desde 2009, e que 39,9% dos registros dos CRMs
são de mulheres (BERNARDES, 2013).

No tocante à questão racial, há dados de 2010, em uma pesquisa realizada pelo Inep
(Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), que apenas 2,66% dos concluintes
de medicina eram negros (CAPUCHINHO, 2013). Com um recorte da própria UFBA,
segundo dados do concurso do ano 2000, 65,4% das vagas foram ocupadas por brancos, em
uma população que apenas 20% é branca (CFM, 2004). Só houve mudanças desse perverso
cenário e aumento do número de negros no curso de medicina com a Lei 12.711 de 2012,
nomeada Lei das Cotas, a qual sancionou que, a partir de 2016, todas as Instituições de
Ensino Superior vinculadas ao Ministério da Educação e as instituições federais de ensino
técnico de nível médio devem reservar 50% de suas vagas para as ações afirmativas
(CAPUCHINHO, 2013). Quiçá seriam esses os frutos do protagonismo de Odilia e dos outros
poucos negros que estudaram medicina ao longo dos anos nas faculdades de medicina,
abrindo portas para um expressivo aumento no ingresso e permanência de negros nas
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universidades? Eles deixaram um legado de luta por oportunidades, quebrando barreiras
impostas pelo contexto histórico e social.

MATRIMÔNIO INTER-RACIAL NO SÉCULO XX

Até mesmo sua vida matrimonial foi marcada pela questão racial. No final do século
XIX iniciou-se uma discussão a respeito da condenação do relacionamento entre “espécies”
diferentes. A miscigenação era sinônimo de degeneração, afinal, havia a crença de que os
mestiços herdariam as características negativas de cada raça. No entanto, estudos no século
XX afirmavam que a discriminação racial do casamento inter-racial estaria mais relacionada
a classe do que a raça, logo, quando um negro não é reconhecido como de classe inferior, a
discriminação racial é mais branda. Ademais, outro motivo para a reprovação do casamento
entre negros e brancos era dificultar a mobilidade social vertical, afinal, apesar de Odilia ter
status de médica, ela não tinha boas condições financeiras. Mas ainda que ela se casasse com
um branco e houvesse a mobilidade social, ela, assim como muitas outras negras que se
casaram com brancos na época, sofreram preconceito dos parentes dos cônjuges (BARROS,
2003).

Sabendo desses preconceitos intrínsecos ao casamento entre etnias diferentes, Odilia


inicialmente não aceitou se casar com o advogado Eusínio Lavigne por receio de preconceitos
raciais. Receio este que era válido, afinal, sua sogra se assustou ao conhecê-la, por conta de
sua cor. Mas, ainda assim, em 1921, Maria Odilia casou-se com o advogado Eusínio Gaston
Lavigne, rico, branco, dentro dos padrões heteronormativos de beleza à época, intelectual e
importante figura política da época, apreciava a emancipação, cultura e inteligência de sua
esposa (SANTOS, 2016).

Esse casamento chamou a atenção do corpo social, e se reuniram da catedral inúmeros


cidadão de Salvador, Ilhéus e Itabuna, sendo, inclusive, inspiração para Jorge Amado a criar
os personagens do livro “Tenda dos Milagres”, evidenciando o tabu do casamento inter-
racial no século XX na Bahia. No entanto, a citação do casamento na obra descontentou
Eusínio que, em defesa da sogra no trecho “O pai da noiva, plantador [...] A mãe -
murmuravam [...] era uma negra coberta de ouro e pedrarias, sua rapariga, macumbeira que
tinha prêso há mais de vinte anos, quem pode com feitiço?” (AMADO, 1970 apud SANTOS,
2016, p. 18), ele alegou que esse pensamento que foge da realidade, pode gerar reflexões
erradas (SANTOS, 2016).

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Logo após o casamento, mudaram-se para Ilhéus e a jovem decidiu abandonar sua
profissão para cuidar de seus dois filhos, José Léo e Gastão, e marido – porém segundo Heine
(2010), apesar da questão de gênero e raça serem extremamente vívidas na vida do casal, o
marido não incentivou a esposa a abandonar a profissão, considerando-a, inclusive, uma
excelente médica.

Com a ditadura do Estado Novo, em 1937, Eusínio foi deposto do cargo de prefeito
que exercia em Ilhéus, fato que levou o casal a tomar a decisão de retornar para Salvador. Na
capital baiana tiveram anos de felicidade até que Eusínio, já idoso, foi preso durante a
ditadura militar, em 1964, sem qualquer motivação juridicamente explicável – fato
infelizmente comum nesse nefasto período histórico (JACOBINA, 2013).

MARIA ODILIA E A QUESTÃO FAMILIAR

Maria Odilia proporcionou uma educação moral e intelectual excelente a seus filhos.
Tanto que ainda hoje ela é referência de conduta profissional para seus familiares, que na
ocupação médica dispôs de um filho, dois netos e três bisnetas. Sua bisneta Paula Lavigne,
formada em medicina, relatou em entrevista para o CREMEB: “Acredito que toda a minha
paixão pelo cuidar veio da minha bisa Odilia. Formar-se em Medicina sendo mulher negra
há tanto tempo não deve ter sido fácil. Muita luta, muita força e muito amor” (CREMEB,
2019).

Em 1960, o político Ruy Santos publicou um livro, cujo título é “Teixeira Moleque”,
o qual menosprezava as atitudes do pai de Maria Odilia. Ela, indignada com tal publicação,
escreveu uma carta à Ruy Santos falando de sua insatisfação e pedindo para preservar a
memória sagrada de quem fez tanto pela sociedade e família. Maria Odilia admirava muito
seu pai e reconhecia suas lutas para que ela e sua família tivessem uma boa criação, além de
seus bons feitos como médico (HAINE, 2010). Esta atitude revela, mais uma vez, a posição
de vanguarda adotada pela biografada durante sua vida, que mais uma vez fez o que não era
comum para pessoas em sua posição – mulher e negra – fazerem: criticou abertamente a obra
de um homem.

Maria Odilia não gostava do envolvimento de seu marido com a política e o com o
partido comunista, afinal, Eusínio patrocinava, com os bens da família, várias ações do
partido (SANTOS, 2016). Além disso, Maria Odilia tinha pensamento diferente do marido

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no que se refere às questões sociais. Enquanto ele acreditava que os problemas sociais só
seriam resolvidos a partir da política, ela entendia que a caridade resolveria os problemas,
quando aqueles que tivessem mais, dessem para os que tivessem menos (HEINE, 2010). Mas
ainda assim a biografada se encarregou de escrever notas de alguns dos trabalhos de seu
marido (SANTOS, 2016).

Uma prova de sua humildade é que, de acordo com o relato do Dr. Benedicto Silva,
Maria Odilia queria ser sepultada numa cova simples, assim como seus ancestrais
(JACOBINA, 2013). A biografada se encantou em 1971, aos 87 anos, por conta de um câncer
de pâncreas e seu marido em 1973, por um infarto (SANTOS, 2016).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

É notório o silenciamento do protagonismo de grandes nomes da história por estes


serem negros, situação agravada quando envolve o gênero feminino. Logo, é de se esperar
que não há homenagens concretas como hospitais e institutos com o nome da biografada,
nem mesmo os cidadãos de Ilhéus ou Cachoeira tem conhecimento de sua forte história,
talvez um “já ouvi falar”. Ela somente é de fato lembrada no dia das mulheres por poucas
pessoas e instituições.

Maria Odilia foi um símbolo da história da medicina baiana por seu protagonismo
feminino numa época cercada pelo machismo e racismo. Ela foi a primeira mulher negra a
se formar em medicina na Bahia e, talvez, no Brasil; além de ser a primeira professora negra
da FAMEB. Ela é um símbolo de luta e coragem para todas as mulheres.

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REFERÊNCIAS

BARROS, Zelinda dos Santos. CASAIS INTER-RACIAIS E SUAS


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de Filosofia e Ciências Humanas, Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2003. Disponível em:
<https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/14530/1/Zelinda%20Barros.pdf>. Acesso em: 05
nov. 2019.

BATISTA, Waleska Miguel. A inferiorização dos negros a partir do racismo estrutural. Rev.
Direito Práx., Rio de Janeiro, v. 9, n. 4, p. 2581-2589, out. 2018. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2179-
89662018000402581&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 01 nov. 2019.

BERNARDES, Júlio. Presença feminina na medicina aumenta no Brasil, revela pesquisa


da FMUSP. 2013. Disponível em: <https://www5.usp.br/31644/presenca-feminina-na-
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BRITO, Débora. Especialistas destacam protagonismo negro pelo fim da


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CAPUCHINHO, Cristiane. No curso de medicina, apenas 2,7% dos formandos são


negros. 2013. Disponível em:
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CREMEB. Dia da Mulher: conheça Maria Odília Teixeira, a primeira médica negra do
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conheca-maria-odilia-teixeira-a-primeira-medica-negra-do-brasil/>. Acesso em: 01 out.
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Disponível em: <https://ilheuscomamor.wordpress.com/2010/03/25/dra-odilia-lavigne-uma-
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JACOBINA, Ronaldo Ribeiro. Memória Histórica Do Bicentenário Da Faculdade De


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<https://jus.com.br/artigos/40676/a-mudanca-da-sociedade-o-papel-da-mulher-do-inicio-
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RODRIGUES, Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil. Salvador:


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Faculdade De Medicina Da Bahia (1879-1949). Revista Feminismos, Salvador, v. 1, n. 2,
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ANEXOS

Figura 1: Retrato de Maria Odilia Teixeira

Fonte: Memória Histórica Do Bicentenário Da Faculdade De Medicina Da Bahia (2008)

Figura 2: Maria Odilia Teixeira e Eusínio Lavigne

Fonte: CREMEB

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