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Universidade do Estado da Bahia – UNEB

Departamento de Educação – Campus II / Alagoinhas


Programa de Pós-Graduação em História

Patrick Moraes Sepúlveda

Entre os muros da exclusão: Trajetórias de alienados na


cidade de salvador (1903-1916)

Alagoinhas, maio de 2022


Patrick Moraes Sepúlveda

Entre os muros da exclusão: Trajetórias de alienados na


cidade de salvador (1903-1916)

Dissertação apresentada ao Programa


de Pós Graduação em História da
Universidade do Estado da Bahia–
Campus II como requisito parcial para
a obtenção do título de Mestre em
História.

Orientador(a): Profa. Dra. Maria Elisa


Lemos Nunes da Silva

Banca examinadora:

Profa. Dra. Maria Elisa Lemos Nunes da Silva (Orientadora) – UNEB


Prof. Dra. Gabriela dos Reis Sampaio - UFBA
Prof. Dr. Ricardo dos Santos Batista - UNEB

Alagoinhas, maio de 2022


Agradecimentos

Ao final desta jornada se passa um filme na nossa cabeça e nele contêm pessoas, momentos e
sentimentos. É verdade que a pesquisa é muitas vezes um processo árduo e às vezes solitário,
entretanto, é gratificante o seu resultado. Não somente pela produção que deixamos, mas a
aprendizagem e as experiências que adquirimos nesta trajetória. Presto aqui o meu singelo
agradecimento a todas as pessoas que acompanharam o meu crescimento e vivenciaram as
fases da construção deste trabalho.
Agradeço especialmente aos meus pais, Sônia e José, que proporcionaram todo o apoio e
subsídio a concretude deste sonho. Da mesma maneira, direciono os agradecimentos aos meus
irmãos Lucas e Victor, que, como minha mãe e meu pai, sempre acompanharam o meu
crescimento pessoal e profissional e nunca deixaram de estar ao meu lado.
Agradeço também a Johana, a companheira que a vida me deu. Que desde os tempos da
graduação esteve ao meu lado em todos os momentos. Nos de alegria, comemorou comigo e
nos de tristeza me confortou como ninguém o faria. Sou muito grato por tudo!
Agradeço à professora Elisa Lemos, minha orientadora, que com muito profissionalismo e
sensibilidade prestou todo o suporte nos momentos de dificuldade. Sentirei falta das longas
conversas durante as orientações.
Aos membros da banca, Ricardo Batista e Gabriela Sampaio, por terem aceitado o convite e
pelas sugestões pertinentes para o desenvolvimento desta pesquisa.
Aos professores do PPGH da UNEB, em especial a Ricardo Batista, a Paulo Santos e a
Raimundo Nonato, por todo auxílio e conhecimento compartilhado durante as aulas.
Às professoras da Universidade Católica do Salvador, especialmente à Renata Bahia, Luciana
Martins e Alessandra Carvalho, que acompanharam todo o meu desenvolvimento pessoal e
acadêmico desde os tempos da graduação.
Aos meus amigos Muller Sampaio, Wilson Badaró, Augusto Fiuza, Éder Mendes, Herbet
Menezes e Laura Coldeira.
Por fim, agradeço à FAPESB pela disponibilização de condições financeiras para a realização
desta pesquisa.
Resumo

Esta dissertação analisa a trajetória de três internos do Asilo São João de Deus, situado na
cidade de Salvador durante as primeiras décadas do século XX. Através de fontes como
periódicos, processos crimes e cíveis foi possível compreender aspectos sociais, culturais e
cotidianos das suas experiências de vida, os inserindo no contexto urbano de uma cidade
atravessada por ideais difundidos pelos grupos dominantes de civilização e modernização.
Compactuantes com tais ideais, a psiquiatria surge na Bahia do século XIX como uma
especialidade interessada em adquirir maior prestígio social e legitimidade através do discurso
cientificista. Acompanhando as concepções de psiquiatras estrangeiros, os médicos baianos
adquiriram o direito de gerir a instituição asilar a partir de 1903, quando a legislação brasileira
reorganizou a assistência aos alienados por todo o Brasil, aumentando as pressões sobre a
Santa Casa de Misericórdia, administradora do asilo baiano desde a sua fundação. Entretanto,
somente em 1912 os médicos assumiram o Asilo São João de Deus sob o apoio do Estado,
apelidando o período como “tempos áureos” do saber psiquiátrico na Bahia. Os indivíduos
aqui estudados se inserem nesse cenário e por meio dos seus “rastros” na documentação,
compreendemos que nem todos os alienados se adequaram a ordem disciplinar sugerida por
médicos e classes dominantes. Alguns deles, enquanto agentes do processo histórico,
tomaram decisões em prol dos seus interesses e se adaptaram à sua maneira a fim de
sobreviverem em uma sociedade desigual e excludente.

Palavras-Chave: Bahia; Psiquiatria; Loucura; Criminalidade; Trajetórias.


Abstract

This dissertation analyzes the trajectory of three inmates of the Asilo São João de Deus,
located in the city of Salvador during the first decades of the 20th century. Through sources
such as periodicals, criminal and civil cases, it was possible to understand social, cultural and
everyday aspects of their life experiences, inserting them in the urban context of a city crossed
by ideals spread by the dominant groups of civilization and modernization. Compliant with
such ideals, psychiatry emerged in Bahia in the 19th century as a specialty interested in
acquiring greater social prestige and legitimacy through scientific discourse. Following the
views of foreign psychiatrists, doctors from Bahia acquired the right to manage the asylum
institution from 1903 onwards, when Brazilian legislation reorganized assistance to the insane
throughout Brazil, increasing pressure on the Santa Casa de Misericórdia, the asylum
administrator. Bahia since its foundation. However, it was only in 1912 that the doctors took
over the São João de Deus Asylum under the support of the State, calling the period the
“golden age” of psychiatric knowledge in Bahia. The individuals studied here are part of this
scenario and through their "traces" in the documentation, we understand that not all the
alienated have adapted to the disciplinary order suggested by doctors and ruling classes. Some
of them, as agents of the historical process, made decisions in favor of their interests and
adapted in their own way in order to survive in an unequal and excluding society.

Keywords: Bahia; Psychiatry; Madness; criminality; trajectories.


Sumário

Introdução...............................................................................................................................11

Parte I- Os “tempos áureos” da psiquiatria na Bahia........................................................21

Parte II - Alienados, trajetórias e estratégias......................................................................69


2.1. O despejo do alferes..........................................................................................................71
2.2. O assassínio da Rua do Caquende.....................................................................................88
2.3. O roubo da Casa Ferraz...................................................................................................111

Considerações finais.............................................................................................................146
Arquivos e fontes..................................................................................................................149
Bibliografia............................................................................................................................151
Lista de ilustrações

Figura 1........................................................................................................................ 40
Figura 2........................................................................................................................ 41
Figura 3........................................................................................................................ 51
Figura 4........................................................................................................................ 55
Figura 5........................................................................................................................ 56
Figura 6........................................................................................................................ 56
Figura 7........................................................................................................................ 57
Figura 8........................................................................................................................ 59
Figura 9........................................................................................................................ 60
Figura 10...................................................................................................................... 62
Figura 11...................................................................................................................... 64
Figura 12...................................................................................................................... 65
Figura 13.....................................................................................................................113
Figura 14.....................................................................................................................113
Figura 15.....................................................................................................................114
Figura 16.....................................................................................................................114
Figura 17.....................................................................................................................129
Figura 18.....................................................................................................................129
Lista de tabelas, gráficos e quadros

Quadro I....................................................................................................................... 130


11

Introdução

A história dos alienados na Bahia é constituída por uma série de narrativas envolvendo
personagens diversos e motivações distintas. Ofuscados pelo silenciamento característico da
reclusão nas instituições asilares, os ecos de suas vozes são identificados a partir de trejeitos,
ações e pequenos sinais deixados como rastros nos documentos judiciais e exames de
sanidade mental. Esses relatos na maioria das vezes são deformados por outras concepções,
mas contêm detalhes surpreendentes sobre parte da vida destes sujeitos.
Em uma dinâmica urbana pautada na ideia de progresso e civilização, a loucura era
compreendida por médicos e políticos como um problema social e sanitário, sendo inclusive
objeto de políticas públicas nas primeiras décadas do período republicano. Inseridos nesse
contexto, os vestígios deixados por três indivíduos apontam para experiências individuais
distintas, mas que são atravessadas pela interdição.
O primeiro, Aprígio Bacellar Aranha, sem idade revelada, embora imaginemos se
tratar de um homem idoso por ter servido como alferes na infantaria das Forças Armadas,
residia no Distrito de Nazaré. Ele ganhou notoriedade no periódico baiano Gazeta de
Notícias: Sociedade Anonyma, por ter se negado a sair da residência onde morava mesmo
após uma ação de despejo. A revolta diante da decisão jurídica e o retorno ao local, o levou a
receber a alcunha de “inquilino perigoso”, ocasionando o seu encaminhamento ao Asilo São
João de Deus no ano seguinte.
Joaquim Pereira Navarro vivenciou situação diferente, pois assassinou a sua esposa,
Eponina Pereira de Navarro. O crime, cometido na presença da filha caçula e de funcionários
que trabalhavam na residência dos seus pais, no Distrito de Nazaré, gerou comoção popular.
Por ocupar lugar nos segmentos médios da sociedade e o apoio dos familiares, teve melhores
condições de defesa no processo judicial, justificando, com o auxílio do advogado, ter
cometido o ato em decorrência do seu estado mental. Tal alegação lhe favoreceu para ser
encaminhado ao hospício ao invés da prisão.
O último, Pedro da Silva Rego, supostamente invadiu e roubou a Casa Ferraz,
joalheria pertencente ao empresário Plínio Ferraz, situada na Rua Chile, centro da cidade do
Salvador. Na longa diligência, ele não se entregou à polícia mesmo tendo testemunhas que
afirmassem a sua participação no crime. O indivíduo, enquanto ex-oficial do exército, era
também leitor assíduo das teorias positivistas, experiência que o permitiu colocar em prática o
12

seu conhecimento na legislação, auxiliando-o também a simular uma doença mental com o
objetivo de escapar do encaminhamento ao presídio e transferir-se ao asilo.
Talvez as trajetórias desses sujeitos tenham em algum momento se cruzado durante a
internação, algo possível visto que foram pacientes do Asilo São João de Deus entre os anos
de 1912 e 1914. O certo é que apesar de terem vivenciado o cotidiano terapêutico na Bella
Vivenda1, cada um deles possuía singularidades, não somente em termos diagnósticos, mas
relacionadas a contextos culturais e sociais diferenciados.
As concepções sobre a loucura e a reclusão de alienados já estavam presentes em meio
às relações sociais na cidade do Salvador na segunda metade do século XIX, quando ocorreu
a inauguração do Asilo São João de Deus, direcionado ao tratamento de doenças mentais. Sua
fundação foi fundamental para a implantação da psiquiatria na Bahia, mesmo que
condicionada ao modelo de assistência da Santa Casa de Misericórdia até o ano de 1912.
A identificação da necessidade de implantação de uma instituição para tal fim partiu
dos médicos, sendo o Solar da Boa Vista de Brotas considerado o local mais indicado
cientificamente para o seu funcionamento, devido à distância do centro da cidade. A
propriedade teve a compra aprovada a partir da Lei N° 1080 de 1869.2 A residência que
pertenceu à família do poeta Castro Alves, cedia espaço para a terapêutica dos alienados,
trabalho conjunto entre médicos e a Santa Casa da Misericórdia.
Os quase trinta e nove anos da irmandade à frente do asilo, foram marcados por
conflitos com os médicos. Tais embates provavelmente se intensificaram após o decreto de
1903, que previa a reorganização da assistência dos alienados no Brasil. Nesse período, a
ciência acompanhou inúmeras transformações ao final do século XIX, dentre elas a medicina.
As novas perspectivas buscavam conferir maior legitimidade à especialidade psiquiátrica no
início do século XX e permitiram a implantação de um processo terapêutico relacionado à
doença mental a partir de discursos científicos, além de conferir maior autonomia desta
disciplina no âmbito jurídico.3
Para a psiquiatria, não havia mais espaço para justificar a loucura como doença moral
e motivada pelas paixões, como defendia o médico francês Philippe Pinel no século XIX. No
início do XX, era válido legitimar o saber e identificar os diversos tipos de alienação que

1
Alcunha dada ao Asilo São João de Deus no período da sua inauguração, na segunda metade do
século XIX.
2
RIOS, Venétia Durando Braga. O Asylo São João de Deos: As faces da loucura. São Paulo:
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006. p.64.
3
SANTOS, Bruna Ismerín. Aos loucos, os alienistas: Médicos, Famílias e Justiça em Salvador (1874-
1912). UFBA: Salvador, 2009. p.85-86.
13

poderiam ser desenvolvidos no indivíduo, cuja associação do surgimento da doença estava


vinculada ao organismo biológico. Para isso, houve a imersão em novos modelos teóricos
estrangeiros, principalmente nos da psiquiatria alemã, lideradas por perspectivas de Emil
Kraepelin. As novas concepções representaram uma nova fase da psiquiatria no Brasil,
sobretudo na figura de Juliano Moreira no Rio de Janeiro e Francisco Franco da Rocha em
São Paulo, que buscava aliar a teoria e a prática. Nesse momento, as colônias agrícolas
passaram a ser pensadas como locais eficientes para fins terapêuticos em função do interesse
na preparação do indivíduo para a lógica do mundo externo pautada nas relações de trabalho.
Segundo William Vaz de Oliveira, essas atividades tinham duplo intuito. O primeiro era
prestar retorno financeiro dos gastos da assistência ao Estado e o segundo, visava baratear os
serviços de assistência utilizando a mão-de-obra dos alienados.4
No hospital soteropolitano, o interesse na implantação de tais métodos não foi
diferente, principalmente quando as irmãs da misericórdia deixaram o asilo após as inúmeras
críticas de médicos e da imprensa contra a sua gestão. Em agosto de 1912, o Estado assumiu
o asilo e manteve o então diretor, Eutychio Leal, que sustentava o seu discurso nas linhas
teóricas alemãs e francesas, defendendo, inclusive, projetos internos voltados para o trabalho
de alienados5, como ocorreu nos casos das colônias da Ilha do Governador, no Rio de Janeiro
e no Juqueri, em São Paulo.
As experiências vivenciadas pelos personagens aqui estudados apresentam grande
complexidade, sendo necessário inseri-los na dinâmica do seu tempo com o objetivo de evitar
as armadilhas do classificado por Pierre Bourdieu como “ilusão biográfica”. Assim, como
apontou o autor, é fundamental nos atentarmos à “série de posições sucessivamente ocupadas
por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando
sujeito a incessantes transformações”. 6
Desse modo, os alienados estudados estiveram presentes na complexa e desigual
dinâmica social da cidade de Salvador durante as primeiras décadas do período republicano e
foram atravessados por questões que possivelmente influenciaram as suas ações. Regido por
um regime federalista, cujas unidades federativas possuíam determinada autonomia para
tomar decisões sobre os seus territórios, as cidades brasileiras experimentaram na Primeira

4
OLIVEIRA, William Vaz de. A assistência a Alienados na cidade do Rio de Janeiro (1852-1930).
Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2017. p. 96-98.
5
Em entrevista publicada no ano de 1918 à Revista Bahia Illustrada, Eutychio Leal disse ter investido
na “capacidade produtiva” dos alienados, em diversas funções laborais. Ver: Bahia Illustrada, Rio de
Janeiro, ano 2, ed. 4, n. 4, mar. 1918.p. 14.
6
BORDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. IN: AMADO, Janaína; Ferreira, Marieta de Moraes (coord.)
Usos e abusos da história oral. 8° ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.p.189
14

República, processos semelhantes de mudança, guardadas as suas especificidades por meio de


projetos regidos pelas classes dominantes que visavam proceder com diversas reformulações
no espaço urbano, sob o discurso modernizador. Na cidade do Salvador não foi diferente pois
para atingir o “progresso”, as elites locais viam a Europa como modelo ideal para tal fim.
Reformar o meio urbano se tornava prioridade das medidas políticas e significava a
transposição do passado colonial, iniciativa de maior evidência no mandato de J.J Seabra, no
qual se fazia presente o “bota-abaixo” de edifícios seculares para a implementação de seus
projetos.7
Aliado à ideia de modernização, os discursos acerca do projeto de “civilização” que
deveria ser implantado no Brasil também se pautaram na superação de costumes e hábitos
associados ao regime escravista. Para isso, foi dada relevância à prática do trabalho à luz do
modelo capitalista, que se amparava na mão-de-obra do homem livre e na sua capacidade de
produzir. Aos que não se adaptassem, o aparato policial operava sob as bases da vigília a
todos aqueles indivíduos que se encontravam “nos botequins e nas ruas” e que não
conseguissem “provar sua condição de trabalhadores”.8
Embora situados nesta lógica, é de se ressaltar que alguns alienados não seguiram à
risca os padrões considerados “civilizados” e enquanto sujeitos ativos reagiram contra a
injustiça e o abandono. Tais ações se apresentam muitas vezes de forma silenciosa na
hostilidade do ambiente asilar e podem ser identificados através da formulação de melhores
condições de sobrevivência, na organização de fugas, no silêncio ao serem questionados nos
exames de sanidade mental, dentre outros.
Na perspectiva dos médicos, o alienado não produzia para este sistema e as suas ações
destoavam dos padrões de sociabilidade do período. Eles eram enxergados de maneira
pejorativa, a partir da participação em desordens ou no envolvimento em crimes no espaço
urbano. Porém, os exames e prontuários, influenciados pelas perspectivas médicas, muitas
vezes compreenderam as articulações desses indivíduos de maneira limitada e sob bases
teóricas do período.
Nessa perspectiva, esta dissertação busca traçar trajetórias de indivíduos tidos como
alienados e observar as suas estratégias de sobrevivência dentro e fora da realidade asilar,

7
Segundo Leite, Seabra foi alvo de polêmicas ao tentar a derrubada do Mosteiro de São Bento para a
construir a Avenida Sete de Setembro, plano que não prosseguiu devido ao protesto de diversos
setores. Ver: LEITE, Rinaldo César Nascimento. E a Bahia Civiliza-se: Ideais de civilização e cenas
de anti-civilidade em um contexto de modernização urbana, Salvador (1912-1916). Salvador: UFBA,
1996, p. 68.
8
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
belle époque. 3° ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012. p. 255.
15

considerando as transformações da assistência ocorridas nas duas primeiras décadas do século


XX.
O período proposto por esta dissertação se justifica pelas transformações ocasionadas
após o surgimento da lei que Reorganizava a Assistência aos Alienados, no ano de 1903, e se
estende até o fim do governo Seabra e da primeira direção médica no Asilo São João de Deus.
Durante esse período, não somente a estrutura administrativa se modificou, mas também
foram introduzidas novas práticas no processo terapêutico. Entretanto, é importante
salientarmos que tais mudanças não ocorreram de maneira imediata na Bahia, tampouco
significaram melhores condições para os alienados após a transição administrativa.
As singularidades dos indivíduos aqui apresentados resultaram em experiências
distintas no processo de internação e na maneira como os médicos e a justiça conduziram seus
casos. Nesse sentido, devemos ressaltar que eles foram atravessados por um cenário no qual
as questões relacionadas à classe e à raça influenciaram diretamente na construção dos seus
diagnósticos, sendo a teoria da degenerescência o principal referencial para a associação das
doenças mentais aos segmentos pobres e negros.
Desse modo, buscamos questionar não somente a estrutura em que esses indivíduos
estavam inseridos, mas também o que era considerado “loucura” na cidade de Salvador, quem
eram os personagens analisados, quais eram os critérios dos psiquiatras para explicar as
doenças mentais e, por último, o modo como os alienados reagiram à disciplina institucional.
Tais questionamentos são possíveis após a expansão das possibilidades de pesquisa a
partir dos anos de 1980 do século XX, quando a historiografia contemplou a análise de fontes
e temáticas direcionadas aos diversos elementos presentes na sociedade. À luz dessas
reflexões, os historiadores amadureceram ideias voltadas principalmente para o campo da
história da saúde e das doenças, permitindo a compreensão destas enquanto elementos de
“desorganização e de reorganização social”. 9 A doença, portanto, não é apenas a invasão do
patógeno nos corpos dos indivíduos, mas um acontecimento inserido na realidade da
humanidade, gerando alterações nas dinâmicas sociais, nas organizações políticas e
econômicas de uma sociedade. Ela tende também a alterar costumes e hábitos, ao mesmo
tempo em que despertam complexos sentimentos, dentre eles, o medo da morte.
No caso da loucura, ela surge como objeto de interesse da história quando adquire o
status de “problema” social, através das variadas ações dos sujeitos que tinham por objetivo
transgredir a ordem estabelecida. Na Idade Média, ela teve sua análise baseada na ótica

9
REVEL, Jacques; PETER, Jean Pierre. O corpo o homem doente e sua história. In: LE GOFF,
Jacques e NORA Pierre. História: Novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. p.144.
16

religiosa e na transição para a sociedade moderna, adquiriu novos conceitos sustentados no


saber empírico e na consolidação de espaço terapêutico específico. Para Michel Foucault,
nascia uma nova sensibilidade não mais ligada aos elementos religiosos, mas à questão moral.
Se na Idade Média o louco “aparecia de modo familiar na paisagem humana, ele a partir de
então vai ser constituído como um problema de “polícia”. 10
A loucura, portanto, é um objeto de estudo de caráter demasiadamente subjetivo, no
qual não apenas os aspectos acerca do transtorno mental atravessam os diagnósticos dos
médicos e da sociedade – ela tem papel de classificar o sujeito como “louco” antes de
encaminhá-lo para o hospital- mas uma série de questões sociais e culturais específicas de
determinados grupos marginalizados.
Como mencionado anteriormente, durante o final do século XIX, concepções de
teóricos alemães, como por exemplo Emil Kraepelin, foram adequadas à realidade brasileira,
principalmente no que consistia à concepção de degenerescência, em que as classificações
nosológicas se correlacionavam cada vez mais a “fatores tais como raça, idade, sexo e posição
social”.11
No contexto da cidade de Salvador, onde a população era majoritariamente negra, tais
noções influenciaram diretamente nos diagnósticos produzidos pelos médicos baianos.
Através das concepções de degenerescência, psiquiatras, peritos, policiais e juristas
construíram perfis de maior predisposição à loucura e ao crime, os associando diretamente a
população negra e pobre. Entretanto, nem sempre havia concordância entre esses grupos na
formulação do diagnóstico, principalmente por esse se constituir como um grupo heterogêneo
e a psiquiatria estar construindo os aparatos científicos para se legitimar enquanto
especialidade. 12
Assim, o momento vivido pela especialidade na Bahia durante as primeiras décadas do
XX era de tensão, cenário esse classificado por Nina Rodrigues como “arrefecido” em artigo
publicado na revista O Brasil Médico meses antes de sua morte. Tudo indica a atuação dos
médicos baianos tenha se direcionado para as pressões sobre a administração da Santa Casa

10
FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2003. p.72.
11
CAPONI, Sandra. Loucos e degenerados: Uma genealogia da psiquiatria ampliada. Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 2012, p. 129.
12
DIAS, Allister Teixeira; MUÑOZ, Pedro Felipe Neves de. "Dramas de sangue" na cidade: algumas
trajetórias da "loucura-assassina" nas redes da psiquiatria (década de 1910). IN: NASCIMENTO,
Dilene Raimundo do; CARVALHO, Diana Maul de; LACERDA, Aline Lopes de (Orgs.). Uma
história brasileira das doenças, volume 3, Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2010. p.26.
17

de Misericórdia no Asilo São João de Deus, intensificadas a partir do século anterior, no qual
a acusavam de uma assistência leiga e arcaica.13
O cenário da psiquiatria na Bahia, portanto, foi caracterizado por conflitos e tentativas
de legitimação por parte dos médicos nas primeiras décadas do século XX. Em 1912, quando
finalmente conseguiram a administração do asilo junto ao Estado, foi possível notar o
aumento no número de produções da especialidade, sobretudo na difusão de estudos de caso
publicados por Eutychio Leal na Gazeta Médica da Bahia. Tal movimentação do então diretor
da instituição visava legitimar sua ciência e equiparar os baianos às experiências estrangeiras
e nacionais do que consideravam ser a “psiquiatria moderna”. Para tanto, Leal se baseou em
diversos médicos, dentre eles, Emil Kraepelin, Juliano Moreira e Francisco Franco da Rocha.
Inseridos nesse contexto estavam os alienados, que ao experimentarem a reclusão e a
exclusão da sociedade, buscaram formas de sobrevivência no sistema asilar. Nesse sentido,
consideramos que esses eram sujeitos ativos no processo histórico e para compreendermos
suas ações, utilizaremos as concepções do arcabouço teórico da história social inglesa, em
específico as noções de experiência.
Segundo E. P Thompson, homens e mulheres possuem a capacidade de ação variada e
sob complexas maneiras no processo histórico, embora:

[...] não como sujeitos autônomos, "indivíduos livres", mas como pessoas
que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como
necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida "tratam" essa
experiência em sua consciência e sua cultura[...].14

As resistências dos alienados foram por vezes relegadas por médicos às suas condições
de saúde, pois as relações sociais deste período eram regidas pela influência do projeto de
sociedade “saudável”. Desse modo, é comum que se identifiquem discursos que
transformassem a concepção sobre os indivíduos nas fontes, reduzindo suas estratégias de
sobrevivência a meros sintomas de sua doença.
O corpus documental utilizado para discutir o asilo e as trajetórias são, em sua
maioria, provenientes do Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). Lá, foi possível
localizar vestígios de personagens através dos Documentos Expedidos pelo Diretor do
Hospital Juliano Moreira. Outros documentos importantes são os processos crimes e os cíveis,
nos quais é possível acompanhar trajetórias. Caracterizados pela extensão e detalhes sobre os

13
SILVA, Vera Nathália dos Santos. Equilíbrio distante: A mulher, a medicina mental e o asilo,
Bahia (1874-1912). Salvador: UFBA, 2005. p. 77.
14
THOMPSON, E. P. A Miséria da Teoria. Rio: Zahar, 1981.p. 182.
18

personagens, o processo de Joaquim rendeu sessenta e nove páginas, incluindo testemunhos,


perícia e exame de sanidade mental. Na mesma linha, o de Pedro da Silva Rego apresentou
números mais elevados, sendo calculadas duzentos e dezoito páginas no total, incluindo
registros iconográficos. O menor deles foi o processo cível de Aprígio Bacellar Aranha, que
por tratar de uma ação de despejo, continha apenas dezoito páginas.
O periódico Gazeta de Notícias: Sociedade Anonyma se tornou fundamental no
decorrer da pesquisa, pois através dele pudemos localizar notícias específicas acerca dos
sujeitos. Este jornal era propriedade de José Alves Requião, localizado na Rua da Alfandega e
a sua primeira edição é datada de 7 de setembro de 1912. Talvez o seu nascimento, ocorrido
no mesmo dia da Independência do Brasil, tivesse simbologia proposital, pois como bem
indicou o seu subtítulo, as características de sociedade anônima lhe apresentavam como
pertencente às noções do que José Weliton Aragão Santos, seguindo os argumentos de Nelson
Werneck Sodré, conceituou como Grande Imprensa15 ou seja, uma empresa que “vende
notícia”, atravessada por ideologias liberais, comuns às classes dominantes do período, sob a
defesa de pautas como a “ordem legal, em progresso e civilização”. 16
A Revista Bahia Illustrada apontou informações específicas sobre o Asilo São João de
Deus, numa entrevista dividida em quatro edições mensais sobre a assistência à saúde mental
na Bahia, no ano de 1918. Na ocasião, relatos de Eutychio Leal, que àquele período não
administrava mais a instituição, articularam uma narrativa de defesa da autonomia do saber
médico para a terapêutica dos alienados. A partir dessas publicações, é possível identificar
que o conteúdo das matérias se destinava às classes dominantes, que defendiam temas como a
modernização e a civilização dos costumes da população soteropolitana, elementos evidentes
em páginas que expunham fotografias, cujo enfoque estava associado à vida privada das
famílias de prestígio. Longe de serem meras ilustrações, a iconografia reivindica a sua
importância enquanto fonte no decorrer deste trabalho, pois, através dela, é possível
identificar elementos a partir do “inventário de informações acerca daquele preciso fragmento
de espaço/tempo retratado”.17
Nesse sentido, durante a análise dessas fontes, se tornou necessário questionar quem a
produziu e qual a sua finalidade. A série de imagens publicada na Bahia Illustrada tinha o

15
Para Santos, a Grande Imprensa baiana teve que se adequar às ideias do sistema capitalista vigente,
em que o objetivo central se centrava no princípio do lucro, desse modo, o conteúdo das notícias era
mercantilizado a fim de atender as demandas das classes dominantes. Ver: SANTOS, José Weliton
Aragão dos. A Grande Imprensa na Bahia. Salvador: UFBA, 1985. p. 27-28.
16
“O nosso rumo”, Gazeta de Notícias: Sociedade Anonyma, 07.09.1912. p.1. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/721026/1. Acesso em: 29 de junho de 2021.
17
KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 4° ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012. p. 48
19

intuito de propagar os projetos desenvolvidos na antiga gestão do Asilo São João de Deus,
apresentando detalhes minuciosos sobre a estrutura institucional, as transformações durante a
administração do Estado e os espaços destinados aos enfermos. Caráter distinto das imagens
localizadas no processo crime de Pedro da Silva Rego, no qual o objetivo principal era
compor o banco de dados da Repartição Policial e reunir provas a serem apresentadas às
autoridades jurídicas.
Os periódicos citados foram acessados no acervo da Hemeroteca Digital, gerido pela
Biblioteca Nacional. Por meio deste site foi possível localizar vestígios de alienados por seus
respectivos nomes. A disponibilização dessas fontes em caráter digital foi um aspecto
facilitador, não somente por sua eficiência na busca, mas pela necessidade do isolamento
social no contexto atípico de restrições relacionadas à pandemia da COVID-19.
Houve também consultas a artigos publicados por Eutychio Leal, o então diretor do
asilo, na Gazeta Médica da Bahia a partir de 1912. Este periódico, inaugurado em 1866, tinha
como principal objetivo a divulgação de descobertas do saber médico baiano, além de ter sido
local propício para discussões da área. A criação desta revista possibilitou “condições para a
legitimação dos novos ramos disciplinares reivindicados pelos reformadores do ensino
médico”.18
Por fim, esta dissertação está dividida em duas partes. Na primeira, discutiremos a
assistência aos alienados na Bahia, as principais ideias que norteavam os médicos baianos
engajados nos estudos da especialidade psiquiátrica e a presença do Asilo São João de Deus
enquanto única instituição voltada para o tratamento das doenças mentais, espaço esse de
fundamental importância para a legitimação do discurso científico. Em meio ao processo de
transição administrativa, os médicos se articularam com o governo para a organização de uma
estrutura institucional considerada ideal para a implantação do seu saber, ao passo que
acompanharam e adaptaram variadas técnicas, advindas das teorias científicas estrangeiras e
aplicadas de acordo com a realidade soteropolitana.
A segunda parte enfoca as trajetórias de três indivíduos supostamente alienados. O
olhar sobre eles possibilitou compreendemos que a loucura é uma experiência singular e
coletiva, cujo diagnóstico, a partir de um determinado momento, foi subsidiado pelos critérios
de classificação das doenças pré-estabelecidos pela psiquiatria. Embora se encaixassem em

18
EDLER, F. C.: A Escola Tropicalista Baiana: um mito de origem da medicina Tropical no Brasil.
História, Ciências, Saúde Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 357-85, maio-ago. 2002. p. 375.
20

definições generalizadoras, existiam diferenças entre as suas experiências, tanto em termos


culturais, quanto àquele relacionado ao modo como se contataram ao meio social pertencente.
Num estado como a Bahia, com índices elevados de pobreza e uma sociedade onde a
população era majoritariamente negra, o diagnóstico da loucura também foi influenciado
pelos critérios de classe e raça. Por meio do discurso científico, a narrativa acerca da
personificação do sujeito louco se adequou à conjuntura nacional, produzindo desta forma,
meios para conter as denominadas “classes perigosas”.
21

Parte I
Os “tempos áureos” da psiquiatria na Bahia

Nos primeiros anos do século XX, o tratamento direcionado aos alienados e as


condições das instituições para esse fim se tornaram a tônica dos debates nos periódicos
populares e científicos de algumas cidades brasileiras. Aliado aos movimentos de
modernização, os médicos buscaram reivindicar o direito à terapêutica da loucura, assim
como desenvolveram novos métodos de compreensão desta enquanto doença.
Na Bahia, o debate sobre a loucura se iniciou a partir da segunda metade do século
XIX, quando conferiram a ela o status de problema social de interesse do Estado. Foi nesse
período que surgiram os primeiros movimentos para a fundação de uma instituição voltada
para a terapêutica dos alienados. O Asilo São João de Deus, em 1874, representou os
primeiros passos da saúde mental no estado, assim como facilitou o desenvolvimento da
assistência nos anos subsequentes.
Cabe salientarmos que nem sempre a assistência aos alienados foi gerida por médicos
especialistas, afinal, após a fundação do asilo, a Santa Casa de Misericórdia foi designada
como sua administradora. A irmandade, criada em Portugal sob os preceitos da assistência aos
pobres e desvalidos, tinha amplo domínio da gestão de asilos e hospitais no Brasil do século
XIX, operando sob ideias caritativas que lhe conferiram prestígio social. Na Bahia não foi
diferente, já que administrou a maioria dessas instituições, além de criar relações com as
classes dominantes, demonstrando assim um perfil elitista. Segundo Maria Renilda Nery
Barreto, participar da irmandade tinha significado sobretudo de projeção e ascensão social,
hierarquização essa de grande valia para as famílias tradicionais. 19
A existência do asilo na Bahia conferia certa preocupação da administração pública
sobre a necessidade de existir um local para o tratamento dos alienados, contudo, não
significou a consolidação da psiquiatria no âmbito científico e social.
Até a década final do século XIX, os médicos não eram os responsáveis pela gestão da
instituição e desenvolveram poucas discussões voltadas para a especialidade, principalmente
porque o decreto de autorização para a fundação da cadeira de psiquiatria na Faculdade de
19
BARRETO, Maria Renilda Nery. A Santa Casa da Misericórdia da Bahia e a assistência aos doentes
no século XIX. IN: SOUZA Christiane Maria Cruz de; BARRETO, Maria Renilda Nery
(Organizadoras). História da Saúde na Bahia: instituições e patrimônio arquitetônico. Barueri, SP:
Minha Editora, 2011. p. 4-7.
22

Medicina da Bahia e Rio de Janeiro foi sancionado somente em 30 de outubro de 1882,


mediante a Lei n° 3141.20 A partir desse momento, a especialidade pôde operar como parte do
currículo na formação dos médicos brasileiros, abrindo novas possibilidades de atuação na
última década do século XIX e a Gazeta Médica da Bahia, periódico criado em 1866, se
tornou um espaço propício para a difusão da situação da assistência aos alienados.
Tillemont Fontes, médico da Faculdade de Medicina da Bahia, utilizou-se do
periódico para a publicação de um discurso proferido na Sessão Ordinária da Sociedade de
Medicina e Cirurgia da Bahia, ocorrida em 5 de maio de 1895, intitulado “No passado e no
Presente”, onde chegou a criticar a administração do Asilo São João de Deus, alegando que
ela era:

[...] exercida por um indivíduo sem a mínima competência, e com poderes


discricionários para exercer, como melhor entender, as funções do seu cargo.
Repugnamos dizê-lo, nós que bem conhecemos aquilo e que testemunhamos
cenas deprimentes, o grau de decadência em que se tem deixado cair o asilo,
enquanto processos rigorosos de contraint, para atenuar o fato com a
expressão técnica, aplicam-se sem a mínima autorização ou vigilância
médica.21

A crítica direcionada à administração do Asilo São João de Deus tinha como alvos os
profissionais leigos que ali trabalhavam e a própria irmandade que, para ele, não conseguia
cumprir funções fundamentais para o funcionamento do tratamento dos alienados.
Nas últimas décadas do século XIX os problemas no asilo se intensificaram e
justificavam a urgência da intervenção do Governo do Estado e a implantação de uma
assistência médica. Em seu estudo sobre a loucura e o Asilo São João de Deus, Venétia Braga
Rios apontou para uma lista de dificuldades que os alienados experimentaram na década de
1880, quando Tillemont Fontes proferiu o discurso supracitado. Dentre eles, a “falta de
condições de salubridade, fragilidade do aparelhamento médico, superlotação, desarranjo
institucional” que se intensificaram com a epidemia de beribéri que acometeu boa parte dos
internos.22
Sustentado no discurso cientificista, Fontes também criticou a utilização da Casa Forte
como método de isolamento interno. Esse espaço, situado no asilo, servia para castigar os

20
BRASIL, Lei N° 3141, de 30 de outubro de 1882, Fixa a Despeza Geral do Império para os
exercícios de 1882, 1883, 1884. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/leimp/1824-
1899/lei-3141-30-outubro-1882-544791-publicacaooriginal-56300-pl.html.
21
Gazeta Médica da Bahia, ano XXVI, N° 11, maio de 1895. p. 415.
22
RIOS, Venétia Durando Braga. O Asylo São João de Deos: as faces da loucura. São Paulo:
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006. p. 159
23

doentes que desobedeciam às ordens na instituição, e, ao analisá-lo, tomou como base as


experiências estrangeiras para acusar a Santa Casa de uma assistência leiga. Para tanto, tentou
sustentar um discurso de legitimação do saber médico baiano ao citar Henry Maudsley,
psiquiatra inglês que condenou a infraestrutura de uma das instituições do seu país,
comparando-a com um “cemitério da razão destruída”.23
Assim, antes de sugerir as soluções, Tillemont Fontes deixou as últimas impressões
sobre o asilo que, para ele, merecia ser chamado de “depósito” de uma centena de alienados:

[...] enclaustrados em dois pequenos pátios, quando não presos naqueles


celebres cubículos, recebem desabrigados as ardentias do sol do verão, ou as
bagas latejantes das chuvas do inverno; onde mulheres desnudas, por entre o
riso inconscientemente alvar da moléstia, dormiam em esteiras em enxergões
de ferro num pavimento ladrilhado de mármore; onde tudo é a condenação
formal da higiene, no abandono frívolo dos recursos da terapêutica, onde
nem há o registro clinico, nem um só instrumento, destes que a ciência
aconselha.24

Após as críticas, sugeriu a reorganização da assistência no Asilo São João de Deus e


dentre as soluções mais relevantes considerava o funcionamento de um sistema “capaz de
satisfazer às condições de um serviço regular de assistência médico-legal de alienados”. Para
isso, era necessário que o “Estado, liberalmente subvencionado pelos cofres estaduais”
assumisse a instituição enquanto administrador geral. Cabia também a ele, a nomeação de
profissionais para a execução das atividades na sua configuração interior.25
Percebe-se, portanto, que ao final do século XIX ocorreu certa resistência da categoria
médica ao modelo de gestão centralizado no poder das irmandades, que apesar de seguirem e
utilizarem o conceito de tratamento moral desenvolvido por Philippe Pinel e Jean-Étienne
Esquirol na experiência do asilo soteropolitano, distorceram as concepções relacionadas às
doenças mentais, atribuindo o seu surgimento a questões religiosas. Essa noção só se
transformou quando médicos e cientistas a conferiram o status de doença. 26
Ao findar o século XIX, diversas teorias circundaram nos ambientes acadêmicos e
jurídicos brasileiros e como apontou Magali Engel, a psiquiatria se desenvolveu no Brasil a
partir da produção e difusão de “um saber eclético”.27 Nesse cenário diverso, é de se notar o

23
Tradução nossa. Gazeta Médica da Bahia, ano XXVI, N° 11, maio de 1895, p. 417
24
Idem.
25
Gazeta Médica da Bahia, ano XXVI, N° 11, maio de 1895. p. 417-418.
26
RIOS, Venétia Durando Braga. O Asylo São João de Deos: as faces da loucura. São Paulo:
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006, p. 69-70.
27
ENGEL, Magali Gouveia. Os delírios da Razão: Médicos, loucos e hospícios (Rio de Janeiro, 1830-
1930). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001. p. 161-162
24

apoio no organicismo, a partir de concepções, em sua maioria francesas e italianas, inclinadas


em analisar a questão da hereditariedade, os estigmas físicos e psíquicos, critérios tidos como
essências para identificar as doenças mentais.
Com questionamento ao modelo religioso e caritativo, Tillemont Fontes sugeriu a
implantação da filantropia no asilo. Inspirado nas experiências das instituições francesas e
inglesas dos finais do século XIX, ele tentou dialogar com as relações entre uma assistência
pública e privada. Segundo Gisele Sanglard e Luiz Otávio Ferreira, nessa organização as
ações de cada um deveriam ser bem limitadas, sendo o Estado responsável por ações gerais e
atuando de maneira direta em períodos de calamidade, enquanto cabiam aos filantropos ações
pontuais. 28
É de se notar que o modelo filantrópico sugerido por Tillemont Fontes acompanhava
um raciocínio voltado para o contexto do período, norteado por uma organização federalista e
liberal a partir da Constituição de 1891. Nela, inspirada na Constituição dos Estados Unidos
da América, os estados brasileiros ganhavam autonomia política para decisões relacionadas ao
seu território, os permitindo, inclusive legislar sobre o que lhes conviesse. 29 Inclusive, nas
últimas décadas do século XIX, Luiz Vianna enquanto governador da Bahia estabeleceu quais
eram as atribuições dos municípios e do estado nos serviços de saúde pública, dentre elas,
definiu que cabia ao poder municipal a “organização e direção dos serviços de assistência
pública”. Contudo, municípios como Salvador nesse período não conseguiam empreender
medidas de saúde pelo cenário de endividamento que viviam. 30
Objetivando fundamentar o seu discurso sobre a ineficiência da Santa Casa de
Misericórdia à frente do asilo, Fontes apontou que a irmandade regia sua administração
baseada em um “regulamento ou alvará criado nos tempos coloniais”, dependendo da ação
dos provedores, bem como dos mordomos que, segundo o médico, nem sempre reuniam
“condições de idoneidade e competência”. 31

28
SANGLARD, Gisele; FERREIRA, Luiz Otávio. Pobreza e filantropia: Fernandes Figueira e a
assistência à infância no Rio de Janeiro (1900-1920). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 27, n.53,
p.71-91, jan./jun. 2014. p. 75.
29
RESENDE, Maria Efigênia Lage de. O processo político na Primeira República e o liberalismo
oligárquico. IN: O Brasil Republicano: O tempo do liberalismo excludente. FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). 9° ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. p.
94-98.
30
SOUZA, Christiane Maria Cruz; SANGLARD, Gisele. Saúde Pública e assistência na Bahia da
Primeira República (1889-1929). IN: SOUZA, Christiane Maria Cruz; BARRETO, Maria Renilda
Nery (orgs.) História da Saúde na Bahia: instituições e patrimônio arquitetônico (1808-1958).
Barueri, SP: Minha Editora, 2011. p. 53-54.
31
Gazeta Médica da Bahia, ano XXVI, N° 11, maio de 1895. p. 418.
25

Ademais, a presença de um profissional na gestão tinha a função de prevenir as


diversas dificuldades que poderiam surgir, tanto no que consistia às questões clínicas mais
específicas, quanto às administrativas. Para tanto, esse representante necessitava se encaixar
em um determinado perfil. Ele precisava deter:

Conhecimentos especiais sobre tão delicados assuntos, desde a patologia


mental, até opinião a emitir em circunstâncias difíceis, em épocas muito
posteriores a reclusão quando o degenerado psíquico acidentalmente possa
comparecer perante os tribunais por delitos, ou reclamando sua liberdade
civil e o direito de testar. Atencioso, firme e severo deve ser o médico diretor
de um asilo dedicadamente compenetrado da tão pesada e não ambicionável
responsabilidade [...]32

Por fim, acreditava que o serviço clínico deveria não só operar atendendo aos doentes
da instituição, mas obter também o propósito de ensino, formando médicos com experiência
na prática psiquiátrica.
Em meio às denúncias e soluções expostas no periódico científico, os médicos ainda
assim não conseguiram adquirir o direito sobre o asilo soteropolitano, embora a publicação
contribuísse para as mudanças significativas para o campo da psiquiatria. A primeira delas
estava associada à sanção do Decreto de N° 1.132 de 22 de dezembro de 1903, que prometia a
reorganização da assistência aos alienados no Brasil e das instituições que prestavam esse
serviço.
Uma das primeiras resoluções da lei consistia na compreensão do hospício ou asilo
como estabelecimento ideal para a reclusão dos alienados que de algum modo
comprometessem a ordem e a segurança pública, sendo o estabelecimento dirigido por um
“profissional devidamente habilitado”. Nela, também foram determinados critérios e regras a
serem seguidos para a admissão dos indivíduos, tanto para os que ingressavam no serviço
público, quanto no particular. 33
Os direitos dos indivíduos comprovadamente acometidos por moléstias mentais, por
sua vez, foram ampliados, embora nem sempre seguidos à risca, como veremos nos casos
apresentados nas seções posteriores. Os artigos 10 e 11 da lei acima referida os resguardavam
contra violências, podendo a partir de então serem denunciadas através do Ministério Público

32
Gazeta Médica da Bahia, ano XXVI, N° 11, maio de 1895. p. 421-422
33
BRASIL, Decreto nº 1.132, de 22 de dezembro de 1903, Reorganiza a assistência aos alienados.
Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto-1132-22-dezembro-
1903-585004-publicacaooriginal-107902-pl.html.
26

e passíveis de ação penal contra o praticante. Da mesma maneira, foi proibida a manutenção
de sujeitos alienados entre criminosos nas “cadeias públicas”. 34
Entretanto, nem todos os alienados foram encaminhados inicialmente para os asilos e
hospitais especializados, como indicava o decreto. Mesmo após a resolução federal, era
comum encontrar sujeitos marginalizados nas cadeias e Casas de Correção da cidade de
Salvador à espera de uma vaga na categoria de indigente no Asilo São João de Deus. Alguns
viveram trágicas histórias, como é o caso do sujeito denominado de Ângelo Agostinho das
Dores, de vinte e cinco anos, lavrador, natural da cidade de Cairu.
O indivíduo viajou à capital na tentativa de encontrar melhores oportunidades de
emprego, contudo, não teve sucesso. Sendo “confundido como maluco” por vagar pelas ruas
foi capturado por policiais e enviado para a Estação de Sant’Anna e em seguida para a Casa
de Correção. No exame de sanidade mental realizado no dia 25 de dezembro de 1906, os
peritos médicos que se dirigiram à prisão para constatarem sobre a sua alienação o
descreveram como um homem de “cor escura, de altura mediana, rosto e cabeça redondos,
cabelos curtos, nariz grosso, olhos de tamanho regular, dentes sãos, pouca barba, orelhas
pequenas e com uma pequena cicatriz no dedo indicador esquerdo, trajando calça e paletó”.
Entretanto, não identificaram quaisquer sinais de alienação ao longo do diálogo e as
informações obtidas através dos carcereiros apontavam para um estado de “lucidez de
espírito”, motivo do qual aprovaram a sua liberdade.35
Não há como confirmar quanto tempo Ângelo ficou detido na Casa de Correção à
espera do exame, entretanto, procedimentos como esse pareciam comuns na instituição e
conferiam à psiquiatria maior espaço, sobretudo no meio jurídico, processo esse que poderia
resultar ou não na transferência dos alienados para o Asilo São João de Deus após constatada
a alienação.
Nesse sentido, após o surgimento da Lei de Assistência aos Alienados, a psiquiatria
pôde experimentar maior espaço na sociedade, adquirindo também o direito de dirigir
hospitais voltados para o tratamento das doenças mentais. Nas primeiras décadas do século
XX, instituições como o Hospício Nacional dos Alienados e o Hospício Juquery, situados no
Rio de Janeiro e São Paulo já contavam com a direção de médicos como Juliano Moreira e
Francisco Franco da Rocha respectivamente.
Na Bahia, Raimundo Nina Rodrigues participou ativamente da elaboração do relatório
para avaliar a situação do Asilo São João de Deus e a construção de um pavilhão anexo que

34
Idem.
35
APEB, Ofícios expedidos pelo diretor do hospital Juliano Moreira 1906 -1914. Caixa:3188.
27

funcionaria para o ensino de clínica psiquiátrica, através de uma Comissão organizada pela
Faculdade de Medicina da Bahia, em 1906. Influente entre os médicos, ele deixou uma
espécie de legado por defender uma direção médica na instituição, adaptar teorias estrangeiras
no Brasil, desenvolver estudos voltados para a área da antropologia criminal e atuar na
chamada Escola Tropicalista.
O projeto consistia na adequação do asilo ao modelo de clínica psiquiátrica autônoma,
contando apenas com o subsídio do governo e operando concomitantemente como local para
o aprendizado da especialidade, como já ocorria em instituições das cidades alemãs de
Dresden, Colônia e Stuttgart. Entretanto, as dificuldades estruturais do Asilo São João de
Deus eram o maior empecilho para a implantação do modelo sugerido, pois o descreveu como
“imprestável e condenado”, impossibilitando que a Faculdade de Medicina da Bahia
estabelecesse qualquer compromisso na fundação de um pavilhão direcionado ao ensino da
especialidade. 36
Após a crítica da estrutura disponível no estabelecimento, coube à Comissão
apresentar soluções. O modelo escocês de “asilo aberto” se tornava o mais indicado para a
realidade e o para os novos interesses da psiquiatria na cidade de Salvador. O asilo deixaria de
ser a instituição de isolamento nas bases pinelianas, das quais as irmandades se aproveitaram
durante o século XIX, e se ressignificava enquanto espaço terapêutico, se sustentando na
liberdade de circulação dos indivíduos na instituição, a prática do trabalho e a possibilidade
do tratamento em domicílio. Tal estratégia dos médicos brasileiros tentava aproximar a
estrutura asilar à ideia de hospital comum, onde não existiam mais grades e nem mesmo
muros para separar os indivíduos do mundo exterior.37
Enquanto colaborador efetivo na revista O Brazil-Médico, Nina Rodrigues publicou o
plano para a reorganização da assistência aos alienados na Bahia em cinco edições no ano de
1906, após o projeto ser indeferido. Segundo o médico maranhense, a versão final sofreu
“diversas modificações” em relação ao definitivo apresentado à Diretoria da Faculdade de
Medicina, contudo, optou pela publicação do “primitivo”, que em sua concepção poderia ser
relevante para a causa dos alienados e servir de auxílio para os outros estados da União,
interessados em seguir o modelo elaborado.38

36
O BRASIL-MÉDICO: Revista Semanal de Medicina e Cirurgia (RJ), Ano XX, N° 5, 01.02.1906. p.
43-44.
37
PORTOCARRERO, Vera. Arquivos da loucura: Juliano Moreira e a descontinuidade histórica da
psiquiatria. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002.p. 119-120.
38
O BRASIL-MÉDICO: Revista Semanal de Medicina e Cirurgia (RJ), Ano XX, N° 5, 01.02.1906. p.
40. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/081272x/1590.
28

Nina Rodrigues não chegou a presenciar a transferência de gestão do asilo em 1912,


tampouco que o sentimento de “arrefecimento” da assistência citada por ele daria lugar à
euforia dos conclamados “tempos áureos” da psiquiatria baiana, afinal, faleceu na França
cerca de dois meses após a publicação na revista científica.
Talvez o intuito de optar pela publicação em um periódico científico reconhecido em
âmbito nacional tenha sido propagar para a comunidade a precariedade da instituição baiana e
a denúncia acerca da impossibilidade de introduzir novas propostas na Bahia, possivelmente
pela falta de recursos do Estado para a realização de tais mudanças. Todavia, a crítica parece
se direcionar também aos médicos e a sua reação diante do cenário relacionado à assistência,
descrito por ele como “arrefecido”.
Conflitos entre médicos não eram incomuns no meio acadêmico e fora dele. Tais
divergências, sobretudo teóricas, podem ter impactado numa desunião da categoria e
constituído o cenário de arrefecimento mencionado por Nina Rodrigues. Como apontou
Gabriela dos Reis Sampaio no seu estudo sobre as práticas de cura populares no período
imperial, é difícil afirmar sobre a legitimidade do saber médico no final do século XIX, pois
além dessa não ser uma ciência homogênea ela não atingiu o prestígio entre todos os setores
da sociedade.39 Na conjuntura baiana, esse cenário não parece ser diferente nos primeiros anos
do século XX, afinal, embora a psiquiatria tenha se tornado mais conhecida enquanto
especialidade a partir da obrigatoriedade do seu ensino nas faculdades brasileiras, das
produções publicadas nos periódicos científicos e do surgimento da Lei da Assistência dos
Alienados de 1903, nem todos os médicos que compunham a categoria concordavam entre si,
sendo identificadas divergências nas diferentes aplicações teóricas sobre a doença que naquele
período circundava no meio social e acadêmico.
Com isso, não queremos afirmar que os médicos baianos não tentaram adaptar os
modelos classificados naquele período como “modernos” a sua realidade ou reafirmar a ideia
de fragilidade e atraso do estado em comparação a outros da União. Pelo contrário, percebe-se
a tentativa de acompanhamento de tais mudanças a partir dos projetos apresentados por
Tillemont Fontes à Comissão entre o final do século XIX e início do XX, mas que
provavelmente esbarraram nos orçamentos minguados do Estado e na falta de consenso diante
de perspectivas divergentes.
Tais divergências se deram possivelmente porque especialidades médicas como a
psiquiatria estavam processo de constituição no início do século XX, buscando assim garantir

39
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro
imperial. Campinas, SP: Editora UNICAMP, CECULTM IFHC, 2001. P. 47-48.
29

o seu espaço e autonomia. Embora já existisse a cadeira de psiquiatria e a delimitação do fazer


deste especialista, era comum a sua associação com outras áreas como a medicina-legal e a
neurologia, preocupadas respectivamente com as perícias médicas e o estudo das doenças que
atingiam o sistema nervoso. Segundo Ede Conceição Bispo Cerqueira, o processo de
demarcação destas áreas não foi linear, tampouco rápido, sendo relativamente comum nas
primeiras décadas do XX a dupla atuação desses médicos como psiquiatras e neurologistas.
Inclusive, o termo “psiquiatra” utilizado para designar o especialista na área era incomum em
atas atreladas ao meio médico, sequer era utilizado para designar esse especialista até 1912. 40
Logo, é nesse cenário heterogêneo da medicina no Brasil que a psiquiatria baiana
tentou se constituir enquanto especialidade autônoma na dinâmica social da primeira década
do século XX, através principalmente da Gazeta Médica da Bahia. Pinto de Carvalho foi um
dos médicos que utilizou o periódico para a publicação de suas aulas a partir do ano de 1907,
sob a titulação “notas de psiquiatria”, possivelmente com o intuito de validar a importância
dos saberes desta especialidade no campo de pesquisa baiano. Nelas, são identificadas
aproximações teóricas com as concepções do darwinismo social, bem como a presença de
discursos a favor do empirismo positivista, discussões sobre raça e alienação e a utilização da
craniometria como método de análise. 41
Em meio à variedade de perspectivas teóricas na compreensão da alienação, uma delas
se popularizou em torno do discurso de “psiquiatria moderna”: a concepção alemã de
categorização nosológica das doenças mentais, elaborada por Emil Kraepelin. Decerto ela
tardou a ser introduzida plenamente no contexto baiano, apesar de ser projetada pela
Comissão organizada pela Faculdade de Medicina da Bahia no relatório de 1903. Nela, os
médicos se articularam através da medicina clínica, sobretudo da análise laboratorial e da
anatomia humana, no intuito de identificar os principais agentes etiológicos no corpo físico
desencadeadores de comportamentos tidos como anormais para os padrões sociais do período,
ao mesmo tempo em que se aliaram aos princípios evolucionistas pautados no melhoramento
das raças.42
O auxílio dos periódicos científicos permitiu a maior difusão desses estudos no Brasil,
sobretudo a partir de Juliano Moreira, embora no contexto baiano outras concepções teóricas

40
CERQUEIRA, Ede Conceição Bispo. A Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e
Medicina-Legal: Debates sobre ciência e assistência psiquiátrica (1907-1933). FIOCRUZ: Rio de
Janeiro, 2014. p. 78-79.
41
SANTOS, Bruna Ismerín Silva. Loucura em família: Interdição judicial e o mundo privado da
loucura, Salvador-Bahia (1889-1930). Salvador: UFBA, 2015. p.57-63.
42
TARELOW, Gustavo Querodia. Psiquiatria e Política: O jaleco, a farda e o paletó de Antônio
Carlos Pacheco e Silva. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2020. p. 78-80.
30

tendessem a não as seguir plenamente até a direção de Eutychio Leal no Asilo São João de
Deus em 1912. Desse modo, as propagações dos resultados obtidos nos periódicos científicos
buscavam conferir novas perspectivas para a psiquiatria, deslocando as suas atenções para as
ações preventivas e profiláticas, atribuindo o surgimento das anomalias a fatores como a
“ignorância, o alcoolismo, a sífilis, as verminoses, bem como as condições sanitárias e
educacionais do povo brasileiro”. 43
Apesar de fundamental para a prática psiquiátrica naquele período e ainda reivindicado
pela categoria médica para a sua atuação, a especialidade se expandiu para além do espaço
asilar sob a ideia de prevenção, ao mesmo tempo em que se utilizou dos periódicos científicos
para conferir maior autonomia sobre seu discurso. Segundo Cristina Facchinetti, esse
movimento pode ser identificado principalmente a partir da fundação da Sociedade Brasileira
de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal, em 1907, e as publicações de concepções
teóricas alemãs e francesas no periódico Archivos Brasileiros de Psychiatria, Neurologia e
Sciencias Affins.44
A Bahia também buscou acompanhar essas transformações no saber psiquiátrico,
sendo a segunda década do século XX um marco, afinal, os médicos finalmente ganharam o
direito de administrar o Asilo São João de Deus junto ao Governo do Estado após contar com
o apoio dos meios de comunicação do período, principais críticos da gestão da Santa Casa da
Misericórdia na instituição. Porém, além de tardio, o processo de transferência conteve certas
complicações. Segundo Vera Nathalia dos Santos Silva, a rescisão do vínculo foi autorizada
após uma reunião da Mesa da Misericórdia, nela, ficou definido que a instituição deveria ser
de responsabilidade do Estado, em 1908. Contudo, o governo de Araújo Pinho alegou a
impossibilidade em assumir o hospital imediatamente, o que obrigou a permanência da
irmandade por mais dois anos até a solicitação de rescisão definitiva. 45
Mesmo após a solicitação, a Santa Casa se manteve à frente do Asilo até 1912. Em
meio ao processo indicou Eutychio Leal como diretor médico em 1911. Este médico não
estava vinculado diretamente à psiquiatria. Afinal, a sua tese de doutoramento se direcionava

43
OLIVEIRA, William Vaz de. A assistência a alienados na Capital Federal da Primeira
República: discursos e práticas entre rupturas e continuidades. Niterói: Universidade Federal
Fluminense, 2013.p. 208.
44
FACCHINETTI, Cristina. O Brasil e o seu louco: Notas preliminares para uma análise de
diagnósticos. IN: NASCIMENTO, Dilene Raimundo; CARVALHO, Diana Maul de (orgs.). Uma
história brasileira das doenças. Brasília: Paralelo 15, 2004. p. 303-305.
45
SILVA, Vera Nathália dos Santos. Equilíbrio distante: A mulher, a medicina mental e o asilo,
Bahia (1874-1912). Salvador: UFBA, 2005. p. 81-82.
31

ao estudo da peste na Bahia.46 Entretanto, em uma breve matéria da Revista do Brasil é


observado que realizou viagens para o sul do Brasil e para o Uruguai e a Argentina, com o
objetivo de observar e estudar outras instituições voltadas para a assistência aos alienados.
Segundo o periódico, essas viagens foram financiadas pela irmandade e representava a
tentativa da aplicação de melhorias na estrutura e organização do Asilo São João de Deus.
A ação da Santa Casa indica que nem todos os médicos estavam em constante conflito
com a irmandade nesse período e mesmo com os impasses com as autoridades públicas, ela
investiu recursos até os últimos anos à frente do asilo. A revista, por sua vez, elogiou os
financiadores pela iniciativa da viagem e a Eutychio Leal, demonstrando confiança para a
solução dos problemas existentes em uma instituição que “os doidos ainda endoideciam
mais”. Entretanto, tamanha euforia parecia ser pessoal, visto o exacerbado apreço pelo diretor
e o aguardo para o retorno mais breve possível ao “grêmio de seus amigos”, no qual se diziam
honrados em “fazer parte”.47
Um relatório produzido em setembro de 1911 pelo então diretor do asilo, sobre a
assistência aos alienados na Bahia indica a tentativa de equilíbrio do médico em meio às
tensões entre o Estado e a irmandade, o que pode ter influenciado na sua permanência no
cargo. Nele, Eutychio Leal tomava como referência não somente o Juqueri e o Hospício
Nacional dos Alienados, mas o relatório construído por Nina Rodrigues, onde se pleiteava a
construção do Asilo-Hospital. O relatório publicado somente em maio do ano seguinte na
Gazeta Médica da Bahia apontava para as necessidades de transformações na estrutura
direcionada aos alienados, cuja responsabilidade ainda era da Santa Casa de Misericórdia.
Embora sustentasse seu discurso na ciência, o médico considerou a permanência da
irmandade à frente da instituição, visto que ainda o era em termos de contrato. Inclusive,
Eutychio Leal se mostrou preocupado com os gastos da Santa Casa, tentando disponibilizar
serviços que amenizassem os problemas orçamentários. Entretanto, a questão financeira não
era o único entrave, pois a ela se misturava a organizacional. No asilo, os espaços eram
insuficientes para abrigar internos, em um momento de alta demanda pela internação de novos
indivíduos, o que impedia a separação nosológica entre alienados considerados agudos
curáveis dos crônicos. Consequentemente, na visão médica, esse aspecto atrapalhava o
processo terapêutico.48

46
LEAL, Eutychio. Diagnóstico da peste. Bahia,1909. These (Inaugural) - Faculdade de Medicina da
Bahia, Bahia, 1909.
47
REVISTA do Brasil, Ano VI, n° 4, 30.06.1911. p. 37.
48
Gazeta Médica da Bahia Vol. XLIIII, n° 8, fevereiro de 1912. p. 363-364.
32

Para além do problema sanitário, a recepção adequada de crianças descritas como


“atrasadas, idiotas e imbecis” também era considerado passível de melhora na instituição, ao
passo que não havia acompanhamento adequado a essa parcela, mesmo que pequena, que se
misturava aos adultos. A partir da sua observação, constatou que as ações desses internos se
assemelhavam com a “irracionalidade de pequenas bestas”, pois geralmente andavam sem
roupas e faziam as suas necessidades básicas em qualquer local do hospital. Utilizando-se
amplamente de expressões pejorativas relacionadas a esses indivíduos, o diretor considerou
implantar um modelo de assistência que abarcasse proposta semelhante ao que observou em
visita ao Pavilhão Bourneville do Hospício Nacional dos Alienados do Rio de Janeiro. 49
Na instituição carioca, os métodos utilizados para as crianças visavam primeiramente
adequá-las à normativa social através da educação, cujo objetivo consistia na garantia que elas
conseguissem independência em questões básicas como se vestir. À medida que adquiriam
domínio nas atividades e no desenvolvimento da fala, da leitura e a produção de desenhos,
avançavam para etapas de maior complexidade, sobretudo na aprendizagem nas oficinas, onde
o trabalho tinha caráter de direcionamento moral para indivíduos ainda em fase de
formação.50
Com a organização deste serviço, semelhante ao implantado no Hospício Nacional dos
Alienados, o diretor tentava se aproximar dos preceitos da “psiquiatria moderna”, no qual a
separação dos doentes por tipos patológicos era considerada o modo mais adequado para o
bom funcionamento da assistência. Para além da divisão dos pacientes, a balneoterapia e a
clinoterapia eram métodos terapêuticos considerados eficazes que o médico pretendia manter
na instituição. O primeiro consistia no tratamento através de banhos medicinais e era
direcionado aos pacientes mais agitados e violentos, porém, as dificuldades na infraestrutura
asilar e a escassez de água impediam qualquer resultado positivo. Já o segundo, focava no
tratamento de doenças a partir do repouso nas enfermarias do hospital.
É importante elucidar que ambos os métodos eram direcionados aos pacientes
curáveis, pois aos crônicos era cogitado o trabalho como alternativa terapêutica. Afirmando
que a ociosidade era “a única razão de desordem em uma casa de alienados”, Eutychio Leal
compreendia a laborterapia como um aspecto positivo tanto para a questão terapêutica quanto
econômica, o que lhe levou a adquirir duas máquinas de costura e inaugurar uma sala para as
mulheres realizarem este ofício. Segundo os seus cálculos, a produção dos pacientes gerou
49
Gazeta Médica da Bahia Vol. XLIIII, n° 8, fevereiro de 1912. p. 365-367.
50
SILVA, Renata Prudêncio da. Medicina, educação e psiquiatria para a infância: o Pavilhão-Escola
Bourneville no início do século XX. Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental
[online]. 2009, v. 12, n. 1. p. 195-208. p. 202-203.
33

variados tipos de peças, indo de cobertas a roupas para uso dos internos, o que para ele
diminuía os gastos da irmandade com artigos desta natureza.51
O relatório de Eutychio Leal se preocupava com os gastos da irmandade, visto que as
medidas tomadas na instituição se direcionavam para o reaproveitamento dos alienados em
atividades que de algum modo compensassem as suas internações. Em uma união entre
compensar gastos e modificar o aspecto do asilo, foram criados os jardins, que segundo o
diretor, além de “atenuar a aparência pesada” lhes rendeu “treze mil réis”, com perspectivas
de lucro maior após o seu alargamento.52
Projetou também a organização de uma horta, visto que os seus cálculos apresentados
ao provedor indicavam fartura no cultivo de legumes caso fosse procedida a sua construção.
Em perspectiva semelhante, cogitou a criação de uma marcenaria, utilizando pacientes como
mão-de-obra; uma colchoaria, que além de resolver os problemas da falta de colchões na
instituição, auxiliaria na distribuição do excedente a outros hospitais administrados pela
irmandade; a sapataria, que tendia a produzir sapatos para o uso dos pacientes; a tipografia,
que pretendia encadernar livros e revistas. 53
Para além da questão da produção e da redução dos gastos para a irmandade, o médico
tratou do regime open-door, mencionado como possibilidade no relatório elaborado por Nina
Rodrigues para a suavização da capacidade asilar. Para ele, a implantação desse sistema
pretendia não somente se sustentar na laborterapia, mas expandir os métodos terapêuticos cuja
sensação de “liberdade e a diversão” garantiria que os alienados pudessem deixar a instituição
para experimentar a vida exterior.
O procedimento funcionava da seguinte forma: o indivíduo poderia sair do asilo, desde
que acompanhado de um funcionário. A depender do quadro, era autorizada sua saída
sozinho. Contudo, ele deveria ter a responsabilidade de retornar à instituição. O diretor
afirmava que se os pacientes tivessem acesso ao conforto e a mínima liberdade enquanto
fossem pacientes dificilmente ocorreriam fugas, mas para que a proposta funcionasse, era
necessário primeiro proporcionar uma estrutura adequada de tratamento. Em termos de
atividades recreativas, ele havia providenciado jogos como gamão, damas, quebra-cabeças e
cartas, bem como via eficácia terapêutica no teatro e na música, principalmente para os mais
pobres, que segundo ele, tinham raras oportunidades de usufruir de tais formas de lazer. 54

51
Gazeta Médica da Bahia Vol. XLIIII, n° 8, fevereiro de 1912. p. 369-371.
52
Gazeta Médica da Bahia Vol. XLIIII, n° 9, março de 1912. p. 404-408.
53
Idem.
54
Gazeta Médica da Bahia Vol. XLIIII, n° 9, março de 1912. p. 408-410.
34

Com essas medidas, o diretor tentava gradualmente afastar o asilo da imagem de


instituição punitiva e de isolamento adquirida ao longo do século XIX. Seu movimento
acompanhou um momento no qual outros médicos tentaram fomentar novos pontos de vista
sobre a psiquiatria, no intuito de “recontar o passado para promover o presente” e “propor seu
projeto de assistência para a plena realização da ciência psiquiátrica”. 55 Como veremos
adiante, esse discurso permaneceu de forma contínua na Bahia, visto que Eutychio Leal
utilizou os meios de comunicação para promover o trabalho por ele realizado no Asilo São
João de Deus.
Uma das últimas sugestões para a reorganização da assistência no asilo era a fundação
da colônia para os alienados, defendida outrora na publicação do relatório da Comissão da
Faculdade de Medicina da Bahia, mas sustentada em trechos de Afrânio Peixoto sobre as
vantagens lucrativas para o Estado da existência de uma instituição, seguindo esse modelo, na
capital federal. Para o médico baiano, era necessário explorar a mão-de-obra de alienados
epiléticos e alcoólatras, pois:

Sendo grande o número de alcoolistas que sobrecarregam o erário público


com uma despesa inútil, visto como muitas vezes somos obrigados a mantê-
los aqui por sabermos que, mesmo cessado o delírio, o dia de alta é
frequentemente a véspera de volta, em carro da polícia, faz-se preciso criar
nas colônias do Estado uma seção para tais doentes, muitas vezes excelentes
trabalhadores quando isentos do álcool.56

Os alcoolistas eram, portanto, para o diretor uma mão-de-obra em potencial pelo fato
de conseguirem, em sua maioria, produzir quando não estivessem em delírio, principalmente a
partir da ideia deque algumas moléstias mentais só se apresentavam quando o indivíduo fazia
uso de bebidas alcoólicas.
Era comum a associação entre o alcoolismo e a alienação no meio científico durante o
século XX, pois os médicos consideravam que o consumo de bebidas alcoólicas poderia
desencadear o desenvolvimento de moléstias mentais. Ideias essas influenciadas por teóricos
da psiquiatria do século XIX como August Morel e Prosper Lucas que se sustentaram nas
concepções de hereditariedade e degenerescência, deduzindo que alguns indivíduos tinham
uma predisposição inata para desenvolver a alienação a partir do consumo alcoólico. Nesse
sentido, os psiquiatras também categorizaram e diferenciaram indivíduos acometidos pelo

55
FACCHINETTI, Cristiana; VENANCIO, Ana Teresa A. Da psiquiatria e de suas instituições: um
balanço historiográfico.IN: TEXEIRA, Luiz Antônio; PIMENTA, Tânia Salgado; HOCHMAN,
Gilberto (orgs.). História da Saúde no Brasil. 1° ed. São Paulo: Hucitec, 2018. p. 335.
56
Gazeta Médica da Bahia, vol. XLIIII, n° 10, abril de 1912. p. 473.
35

alcoolismo, eram eles “alcoolistas” e “dipsômanos”. Segundo Fernando Sérgio Dumas dos
Santos e Ana Carolina Verani, os alcoolistas eram indivíduos viciados que sempre
procuravam companhia para beber. O problema dizia respeito ao meio social em que viviam e
aos exemplos que possuíam no seu cotidiano. Já os dipsômanos bebiam sozinhos tentando
inclusive “esconder o seu ato” pois a incapacidade de controlar a vontade estava no centro da
questão.57
Talvez a partir desta categorização os médicos percebessem a possibilidade da
utilização dos alcoolistas e dipsômanos para a prática do trabalho na colônia, realidade
diferente em comparação a outros pacientes que as atividades laborais não eram indicadas.
O direcionamento prévio das medidas que deveriam ser tomadas em relação aos
alienados que de algum modo eram tidos como ônus aos cofres do governo auxiliava na
defesa de um discurso para a construção da colônia. Ela tinha como influência principal a
Colônia da Ilha do Governador no Rio de Janeiro, embora Eutychio Leal planejasse implantá-
la em posição de maior centralidade na cidade de Salvador, como aconselhou Nina Rodrigues
no relatório da Comissão publicado em 1906. Assim, foi pensada a construção de diversos
complexos, sendo que o primeiro estabelecimento funcionaria na Quinta da Boa Vista e seria
considerada unidade central.
Francisco Franco da Rocha experimentou projeto semelhante no Hospício Juquery, em
São Paulo, se tornando uma das principais referências para o médico baiano. Em tons de
elogios, Eutychio Leal admitiu que uma obra desta magnitude não era realizada “da noite para
o dia” e auxiliaria na modificação do ponto de vista da população em relação aos alienados,
que para ele, passariam a ser vistos sob a impressão de “ordem e de trabalho”. Na sua
perspectiva, o trabalho nos campos tinha a intenção de operar como um “perfeito simulacro de
liberdade por que todo espírito anseia quando a razão começa a voltar”, podendo ser alternado
de acordo com o quadro dos pacientes, reduzindo também os custos da internação.58
Ainda inspirado nos feitos do médico paulista, Leal sugeriu a possibilidade de
investimento na assistência familiar, que consistia na disponibilização de alienados para os
“nutrícios”, lavradores interessados na mão-de-obra dos pacientes em suas terras. O acordo se
firmava sob um contrato estabelecido entre o lavrador interessado e o diretor do hospício,
sendo a instituição responsável por encaminhar periodicamente funcionários para averiguar a
situação dos doentes. Ao considerar a possibilidade de implantação deste projeto na Bahia,

57
SANTOS, Fernando Sergio Dumas dos; VERANI, Ana Carolina. Alcoolismo e medicina psiquiátrica
no Brasil do início do século XX. História, Ciências, Saúde-Manguinhos [online]. 2010, v. 17, suppl
2, p. 400-420.
58
Gazeta Médica da Bahia, vol. XLIIII, n° 10, abril de 1912. p. 474-475.
36

visava iniciá-lo primeiramente nas chácaras suburbanas situadas nas redondezas do Distrito de
Brotas, embora, caso procedesse positivamente, também planejava a sua extensão,
disponibilizando alienados para outros Distritos próximos, como o Cabula e o Rio
Vermelho.59
A inspiração do diretor baiano em Franco da Rocha não foi por acaso, afinal, pretendia
implementar, de maneira similar, a laborterapia no hospital baiano, visando desafogar o
espaço asilar e resolver o ônus dos cofres públicos causado pelos alienados indigentes. Ao
argumentar apoiado nas medidas do médico diretor do Juquery, defendeu também o discurso
da autoridade científica interessada em adaptar projetos inovadores da psiquiatria daquele
momento na Bahia.
Sobre a prática do trabalho no hospital paulista e a organização geral para esse fim no
período da direção de Francisco Franco da Rocha, Maria Clementina Pereira Cunha aponta
que:

[...] o trabalho “terapêutico” era exercido quase exclusivamente nas colônias


agrícolas e apenas eventualmente se aproveitavam internos para tarefas
como o fabrico de cigarros, jardinagem, lavanderia, cozinha, consertos de
equipamentos e instalações etc. À Grande maioria não é dada outra escolha
senão a do trabalho do campo. Aliás, uma espécie de “volta À natureza” era
prescrita pelos alienistas, desde o início do século XX, como procedimento
terapêutico condizente com uma doença entendida de forma crescente como
um subproduto da “civilização”.60

Entretanto, apesar de tratada como projeto bem-sucedido pelo médico baiano, a sua
implementação em São Paulo se cercou por falhas e contradições. O trabalho agrícola era
indicado apenas para os indivíduos indigentes e do sexo masculino, com atividades voltadas
para a agricultura e pecuária. Como bem apontou, a ideia das colônias não surgiu como forma
de substituição do hospício e sim para auxiliar no suporte, ao mesmo tempo que propagava
uma liberdade ilusória do alienado através do sistema “open-door” mas que mantinha as
propostas de isolamento em localidades distantes do centro da cidade, onde estavam situados
os indivíduos considerados “normais”. 61
Embora as propostas citadas fossem fundamentais para equiparar a Bahia a outros
estados como Rio de Janeiro e São Paulo, onde a assistência aos alienados já funcionava sob

59
Gazeta Médica da Bahia, vol. XLIIII, n° 10, abril de 1912. p. 483-487.
60
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1986.p. 73.
61
BORGES, Viviane. “Trabalhar não cansa, descansar cansa”: Um olhar sobre o trabalho realizado
pelos internados de instituições psiquiátricas. AEDOS, N° 4, vol. 2, novembro, 2009.p. 48-60.
37

administração plena do Estado e sob direção médica, no relatório, Eutychio Leal parecia estar
longe de reivindicar uma autonomia médica no Asilo São João de Deus. Pelo contrário, talvez
cogitasse a manutenção administrativa visando permanecer como diretor. A proposta de
construção da colônia se caracterizava mais como uma espécie de desafogo para o Hospício,
que recebia indivíduos aptos ao trabalho e considerados “uma fonte de economia”, do que a
resistência a uma administração leiga. Inclusive, o médico aponta para a preocupação com o
“erário” da Santa Casa, que naquele período também era responsável por outras instituições
de saúde como o Asilo de Mendicidade, o Asilo de Expostos, Hospital dos Lázaros e o
Hospital Santa Izabel. 62
Entretanto, tudo indica que a Santa Casa não aderiu às propostas de Eutychio Leal,
visto que abandonou a administração da instituição em 1912. Após a publicação do Decreto
n° 1160 em agosto deste mesmo ano, um novo regulamento organizado pelo então governador
José Joaquim Seabra e do Secretário do Estado Arlindo Fragoso previa mudanças cruciais
para a assistência aos alienados na Bahia, ao passo que o Estado se tornava o novo
administrador do Asilo São João de Deus e o diretor, nomeado em 1911, foi mantido no
cargo.
Através do periódico Gazeta de Notícias: Sociedade Anonyma, foi identificada a
publicação de vinte e três artigos referentes ao regulamento em 9 de outubro de 1912, dois
meses após a efetivação da transferência administrativa. Através dele é possível compreender
em que ordem se deram as transformações referentes ao hospital baiano.
No primeiro capítulo, o regulamento tratou sobre a organização geral do hospital,
definindo assim um modelo híbrido, cujo espaço físico do terreno da Boa Vista se direcionaria
ao funcionamento do Asilo-colônia e a manutenção da estrutura hospitalar existente para a
internação imediata dos pacientes.63 Como mencionado anteriormente, ocorreu certa
influência do planejamento publicado pela Comissão da Faculdade de Medicina da Bahia em
1906, sendo utilizada sua base para a organização da nova fase do asilo.
Em termos de organização, ficou definido que os complexos seriam de
responsabilidade do diretor geral, assim como o que dizia respeito às funções administrativas
e sanitárias na instituição. De acordo com o regulamento, era permitido que ele designasse
profissionais para o cumprimento de funções internas, cabendo ao Estado a decisão de
expansão da equipe caso julgassem necessário. Com exceção dos farmacêuticos e dentistas,

62
Gazeta Médica da Bahia, vol. XLIIII, n° 10, abril de 1912. p. 482.
“Secretaria do Estado Decreto N. 1160 de 28 de agosto de 1912”. Gazeta de Notícias: Sociedade
63

Anonyma. 09.10.1912. p. 3.
38

ingressantes através de concurso público, os outros cargos geralmente eram distribuídos por
indicação, começando pelo médico diretor, selecionado pelo governo vigente.
Assim, cabia ao médico diretor formar uma equipe inicial contendo dois inspetores
responsáveis pelo total de cinco enfermeiros, indicar outros médicos, seguindo a proporção de
um para cada “150 doentes”, para auxiliá-lo no acompanhamento dos doentes. Enquanto a
distribuição das outras funções, no asilo deveria conter de cinco guardas, o administrador, um
amanuense, um porteiro, um dispenseiro, um chefe de oficinas, um foguista, um cozinheiro
com ajudante, um jardineiro, um horteleiro, além de auxiliares e serventes.
É de se notar que o corpo de funcionários especializados não condizia com o aumento
significativo do número de doentes encaminhados para o asilo naquele contexto. Tanto a
quantidade de enfermeiros, que totalizava dez, sendo uma equipe contendo cinco homens e
outra com a mesma quantidade de mulheres, quanto a proporção de médicos por doentes eram
insuficientes, dificultando assim o acompanhamento individual no processo terapêutico e
contribuindo para fugas como a de Pedro da Silva Rego, que trataremos na segunda parte
desta dissertação.
Com a delimitação das funções e a composição da equipe, era necessário também a
indicação dos serviços a serem investidos. Nesse sentido, era fundamental a inauguração dos
“gabinetes de eletroterapia, radiologia, hidro e balneoterapia, mecanoterapia, ginástica,
antropometria, oftalmologia, odontologia, anatomia patológica, fotografia, sala de operações
assépticas, sala de operações sépticas, sala de necropsia”. Com uma série de serviços
inexistentes devido a problemas antigos do asilo, o regulamento previa a implantação gradual
desses complexos, considerados fundamentais para o funcionamento da assistência aos
alienados.64
Como mencionado anteriormente, a organização da colônia direcionada para os
pacientes classificados como “crônicos tranquilos” era uma das pautas de maior interesse de
Eutychio Leal. Ela contaria com um regulamento e uma gestão específica, caminhando para
finalidades distintas do formato asilar comum. 65 Era também na colônia que os médicos
poderiam explorar a mão-de-obra dos alienados sob a justificativa terapêutica.

64
Idem.
65
A proposta da colônia se diferia do conceito existente de asilo fechado pois utilizava a mão-de-obra
dos alienados para diversas atividades voltadas para a agricultura e pecuária, ainda era compreendida
como uma alternativa dos médicos para a resolução superlotação dos hospitais, que a partir de então
tratariam exclusivamente os casos agudos. No caso brasileiro, as colônias passaram a funcionar no Rio
de Janeiro e em São Paulo ao final do século XIX. Ver: CLAPER, Jeanine Ribeiro. Colônia agrícola
para alienados no Rio de Janeiro (1890-1924): Discursos, projetos e práticas na assistência ao
alienado. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2020. p.52-54.
39

O trabalho era visto como um meio de reinserção dos alienados na sociedade, assim
como tinha o intuito de seguir a cartilha do tratamento moral. Como veremos adiante, por
mais que a implantação da colônia não tivesse se findado, a ordem principal do projeto
disciplinar no Asilo São João de Deus durante a gestão de Eutychio Leal estava associada à
lógica do trabalho, seja ela através dos ofícios ou no cumprimento de atividades laborais
dentro da instituição.
Se antes o relatório de Eutychio Leal só cogitava fundação das oficinas de artes e
ofícios, no regulamento a ideia se mostrava presente e era indicada para homens e mulheres,
oferecendo atividades como “sapateiro, funileiro, carpinteiro, florista, costureiras”, e o médico
era o responsável por regular o tipo, a duração e as condições para cada alienado. Até mesmo
uma espécie de remuneração era prevista caso ocorresse a venda de algum objeto produzido
pelos pacientes, sendo dividido os valores arrecadados em “dois terços para o hospício e um
terço para a bolsa de alienados, convalescentes e curados”. Entretanto, as informações
imprecisas impedem a compreensão se de fato os alienados eram remunerados por seus
ofícios ou se o lucro era retido no hospital.
A entrevista de Eutychio Leal, publicada na Revista Bahia Illustrada em 1918, nos
fornece uma ideia das atividades implantadas durante a sua gestão e a dimensão da produção
principalmente no setor da costura, ofício desenvolvido por mulheres. Segundo o diretor:

No primeiro ano em que esta sala funcionou prepararam-se 1521 peças de


roupa, assim descriminadas: blusas, 241; calças, 241; cobertor, 191; lençóis,
207; fronhas, 196; casacos, 127; camisolas, 91; camisas de mulher, 66;
toalhas de prato, 30; toalhas de mesa, 17.66

Os números indicam uma produção excedente, talvez com a finalidade de


comercialização, apesar de não serem revelados os valores arrecadados ou se foram
direcionados aos internos. É provável que este ofício tivesse o intuito inicial de produção para
uso cotidiano, tentando assim contribuir para a redução de gastos relacionados ao vestuário e
produtos para o conforto dos quartos.
Além da costura, a jardinagem e os serviços gerais também foram atividades de amplo
envolvimento dos alienados. Sobre a primeira, Eutychio Leal pontuou as tarefas de roçagem e
varredura como cotidianas na realidade dos pacientes responsáveis pelo jardim, enquanto ao
segundo grupo cabia a higienização das dependências, lavagem de roupas, distribuição de
refeições e até a contenção e fiscalização dos mais agitados. Em meio ao relato à revista, ele

66
Revista Bahia Illustrada. Ed. 4, Ano II, Rio de Janeiro,1918. p. 14.
40

afirmou a exploração dos doentes para a construção de estradas que visavam ligar os
pavilhões entre si, o nivelamento do terreno e a presença de grupos que britavam pedras para
a construção de blocos de cimento, como indicam as imagens abaixo:

Figura 1: Pacientes nivelando o solo do Asilo São João de Deus.

Fonte: Revista Bahia Illustrada. Ed. 5, Rio de Janeiro, ano II, 1918. p. 22.
41

Figura 2: Pacientes britando para a construção de blocos no Asilo São João de Deus.

Fonte: Revista Bahia Illustrada. Ed. 5, Rio de Janeiro, ano II, 1918. p. 22.

Como se pode constatar nas imagens, a população masculina, em sua maioria,


desenvolvia atividades que exigiam maior força de trabalho, embora, segundo o diretor,
existisse a presença de mulheres em menor número. Outros dois aspectos nos atraem a
atenção na segunda fotografia. O primeiro está ligado ao possível objetivo da publicação, que
parece tentar convencer os leitores das mudanças imediatas e a efetividade dos métodos
terapêuticos na nova fase da assistência aos alienados no Asilo São João de Deus a partir da
posse do Estado.
O segundo ponto a ser levantado na imagem está relacionado ao perfil racial dos
internos. Observamos que o trabalho laboral era exercido majoritariamente por negros. Tal
cenário é, como no caso dos alcoolistas mencionados anteriormente, resultado da sustentação
da medicina baiana em teorias relacionadas à degenerescência e à hereditariedade,
construindo assim novas categorizações para rotular como alienados os sujeitos que não
aderiam ao projeto civilizador. Desta maneira, a raça, os vícios, a sexualidade, dentre outras
temáticas, se tornaram objetos de estudo da psiquiatria e fatores determinantes para a reclusão
dos indivíduos no século XX.
O perfil de alienados presente na imagem também reflete o lugar ocupado pelos
negros no pós-abolição. As funções por eles exercidas eram associadas a ofícios específicos
42

na prática do trabalho.67 Tudo indica que o asilo tentou se adaptar a essa lógica e os que
estavam na categoria de indigentes, majoritariamente negros, foram direcionados aos
trabalhos laborais.
O número de pensionistas negros no Asilo possivelmente era irrisório e dificilmente
eles se envolveriam nas relações de trabalho dentro deste ambiente, afinal, a laborterapia era
indicada apenas para os indigentes.
Cabe ressaltar ainda que embora os médicos seguidores das concepções desenvolvidas
pela escola tropicalista correlacionassem determinados grupos à degeneração, Juliano Moreira
já tentava desbancar tais posições ao ser o precursor das ideias de Emil Kraepelin no Brasil.
Ao adaptar tais estudos à realidade brasileira, país com uma diversidade étnica e egresso de
um regime escravocrata, o médico baiano permitiu a implantação de novas maneiras de
pensar as doenças mentais e as suas causas. Ele considerava as moléstias mentais “um estado
de natureza diferente dos estados ditos normais”, cujas origens podiam se constituir tanto a
partir dos aspectos físicos quanto morais. Logo, pressupunha que fatores externos poderiam
contribuir para o desenvolvimento dessas enfermidades a partir do surgimento de lesões
neurológicas causadas por doenças como a lepra, a sífilis e o alcoolismo. 68
Embora seu estudo fosse conhecido, é possível que as visões deterministas ainda
prevalecessem no diagnóstico médico e algumas das doenças citadas fossem em sua maioria
atribuídas aos negros e mestiços da mesma maneira que a prática do trabalho era a eles
direcionada. Assim, em um aspecto geral, o número de internos considerados indigentes se
encaixava em perfis provenientes de segmentos sociais de menor prestígio, sendo eles em sua
maioria negros, pardos e descendentes de escravizados.
Como já mencionado, a responsabilidade de designar quem deveria cumprir as
atividades laborais cabia exclusivamente ao médico, era ele que definia os alienados indicados

67
Embora se direcione mais às condições de trabalho entre os trabalhadores domésticos pós-abolição, o
estudo de Marina Leão de Aquino Barreto nos auxilia a compreender a complexidade dessas relações,
com distinções quando à analisamos sob a perspectiva de gênero e raça na cidade de Salvador. A
autora notou que a maioria das mulheres declaradas como cozinheiras estavam vinculadas ao trabalho
doméstico, sendo uma minoria articulada aos serviços em estabelecimentos comerciais. A esses locais
era mais comum que se empregassem homens, talvez brancos, se ressaltasse nos anúncios de emprego
nos jornais as suas qualidades culinárias e se reforçasse a nacionalidade. Ver: BARRETO, M. L. de A.
Gênero e raça no trabalho doméstico livre em Salvador em fins do século XIX: o surgimento de uma
classe fatalmente segmentada. Revista Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 10, n. 20, p. 81-102,
2019.
68
VENANCIO, Ana Teresa A.; CARVALHAL, Lázara. Juliano Moreira: a psiquiatria científica no
processo civilizador brasileiro. In: DUARTE, Luiz Fernando Dias; RUSSO, Jane Russo; VENANCIO,
Ana Teresa A. (Org.). Psicologização no Brasil: atores e autores. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2005.
p. 79-82.
43

para a realização dos ofícios. Mas em quais critérios ele se pautava? Quais grupos eram
selecionados em sua maioria?
Para responder a tais questionamentos precisamos lembrar que no asilo baiano havia
duas categorias: os indigentes e os pensionistas. Os primeiros se configuravam sobretudo pela
escassez de recursos para arcar com os custos do tratamento e intercalá-los com a sua própria
sobrevivência. Para a admissão destes, eram previstos determinados critérios burocráticos,
como apontou o regulamento:

a) determinação do secretário do Estado, tendo em vista um atestado de dois


médicos;
b) guia, contendo nome, filiação, naturalidade, idade, sexo, cor, profissão,
domicílio, assim como quaisquer sinais fisionômicos e outros que façam
certa identidade do enfermo;
c) exposição dos fatos que comprovem a alienação e dos motivos que
determinaram a detenção do enfermo, caso tenha sido feita;
d) laudo do exame médico-legal feito por peritos da polícia quando for essa a
requisitante; nesse laudo e, na falta dele, no documento anterior, deverão ser
tanto quanto possíveis, arquivados os precedentes do enfermo, início,
marcha e duração da moléstia, suas características e quaisquer outras
indicações que possam interessar o caso. 69

Embora o regulamento tendesse a exigir maior controle sobre a população indigente, a


sua existência não significou a sua prática. Devido à alta demanda da instituição a partir do
ano de 1912 e as burocracias que envolviam a própria internação, provavelmente essas
exigências eram pouco seguidas.
O processo de observação na relação médico e doente durava geralmente quinze dias
antes da internação definitiva, tempo indicado como suficiente para que se compreendesse em
aspectos gerais se havia a alienação no paciente ou não. Apesar de seguir padrões e todos os
alienados serem submetidos ao processo de observação, é comum identificarmos a internação
provisória nos casos dos indigentes, que não possuíam recursos para o investimento nas
mensalidades e dependiam do subsídio do Estado para permanecer na instituição. Passado o
tempo indicado, e resolvidas as questões burocracia envolvendo o Estado e o diretor do asilo,
bem como supostamente compreendido o tipo de alienação, o paciente era encaminhado para
a internação definitiva e permanecia até que fosse considerado apto a retornar à sociedade.
Ao consultarmos os documentos expedidos pelo diretor do Asilo São João de Deus é
possível identificar pacientes com questionários preenchidos antes da solicitação formal

“Secretaria do Estado Decreto N. 1160 de 28 de agosto de 1912”. Gazeta de Notícias: Sociedade


69

Anonyma. 09.10.1912. p. 3.
44

tramitada entre Eutychio Leal e o Secretário do Estado, Arlindo Fragoso. Isso ocorria com
frequência e indica falhas no processo de internação, possivelmente por pressões do Estado na
retirada de doentes das prisões e casas de correção, encaminhando-os em massa ao asilo. Tal
medida buscava cumprir a Lei da Assistência aos Alienados de 1903, que obrigava a
condução dos doentes para hospitais especializados no tratamento.
Nessa perspectiva, nos deparamos com o caso de Cícero Gomes d’Azevedo, registrado
como ingressante no hospital em 26 de dezembro de 1913, na condição de indigente.
Entretanto, o seu exame médico foi procedido onze dias antes da solicitação formal, o que
indica que ele esteve internado por mais tempo, possivelmente aguardando a aprovação do
Estado.
A partir das informações presentes no prontuário de Cícero identificamos não só as
prováveis motivações que lhe levaram à internação, mas a metodologia dos médicos para o
ingresso dos pacientes. Esse documento continha vinte e nove perguntas padronizadas para
que se construísse o perfil dos pacientes. Nele, importava ao perito apresentar as principais
características dos alienados, bem como um breve histórico da vida destes e os motivos que os
levaram ao internamento.
Cícero foi descrito como um homem branco, de 41 anos, viúvo, que trabalhava como
lavrador e morava na Rua do Carmo, centro da cidade de Salvador. Sobre a infância,
representada nas primeiras cinco perguntas do questionário, os médicos indicaram que
nenhum ocorrido o levou a desenvolver qualquer tipo de alienação mental. Entretanto, a partir
do sétimo quesito, foi perguntado “que sentimentos, hábitos e gostos predominaram na idade
adulta?” ou se era “dado ao abuso de bebidas alcoólicas ou está sujeito a qualquer outra
intoxicação?”, quando se apurou o abuso do fumo, embora sem nenhum “vício de
conformação”.70
Da mesma forma que o uso abusivo de bebidas alcoólicas, o fumo também era
considerado um mal social associado aos vícios e faziam parte do repertório de costumes que
conduziam os indivíduos a diversas doenças, sobretudo a possibilidade do desenvolvimento
de moléstias mentais. Vista pela ciência do período como uma substância que degradava os
indivíduos tanto no seu aspecto físico quanto moral, o tabagismo foi combatido entre os
médicos a partir de finais do século XIX. Embora fosse inicialmente uma prática das classes
dominantes na Europa, como bem apontou Luísa Gonçalves Saad, a prática adquiriu uma
conotação pejorativa quando popularizada entre os segmentos subalternos, sobretudo negros.

70
APEB, ofícios expedidos pelo diretor do hospital Juliano Moreira 1914-1921.Caixa: 3189.
45

Os efeitos do tabaco eram regularmente confundidos com o ópio e estavam na maioria das
vezes associados a práticas de cura alternativas, a exemplo do curandeirismo, em um contexto
histórico que a medicina tentava consolidar o seu espaço na sociedade. 71
Apesar de ter sido observado pelo perito, o hábito de consumir o fumo não parece ter
impactado no seu quadro ou mesmo ter sido desencadeador da sua alienação, visto a pouca
relevância dada à prática ao longo do exame. Mesmo sendo considerado louco, a sua doença
não estava associada a esse hábito e talvez, para os médicos, a manifestação do fator
degenerativo não se encaixasse no seu caso pelo fato dele ser branco.
Tal hipótese se torna possível principalmente porque os médicos afirmaram as
probabilidades de sucesso do indivíduo caso ele possuísse melhores condições financeiras.
Nesse sentido, quando perguntado se Cícero possuía “despesas excessivas, prodigalidade ou
desvio na moralidade” a resposta do perito foi positiva, embora acreditasse que se ele “tivesse
dinheiro, faria as maiores prodigalidades”, uma vez que ele teve “boa educação” nas fases
iniciais da sua vida que não compactuavam com as “ideias” apresentadas durante os
momentos de agitação.72
Mas, afinal, quais motivos levaram Cícero à internação?
A partir do décimo quinto quesito o quadro diagnóstico de Cícero passou a ser
desenhado, sendo reveladas as principais suspeitas da sua alienação. Embora ele possuísse a
noção de “tempo e espaço”, suas ações se modificavam quando tinha acessos de “angústia” e
“fúria”, o que levou os médicos ao diagnóstico prévio de “megalomania”. Segundo o perito,
os sintomas da doença surgiram em maior grau seis meses antes da internação, após o
falecimento da sua esposa A partir deste acontecimento ele passou a manifestar delírios de
grandeza, quando alegava que possuía riquezas.
Observemos com atenção o caso supracitado. A alienação de Cícero estava muito mais
ligada à questão do delírio de grandeza, relacionado a uma riqueza na qual ele não possuía, do
que propriamente ao seu perfil social e até racial. É de se notar que ele teve alguma educação,
como afirmado pelo médico, e o fato de ser branco e lavrador o afastava de qualquer
diagnóstico ligado à degeneração. Situação distinta de outros alienados que adentravam no
asilo como indigente e na condição de pobreza e analfabetismo. Para a psiquiatria, a falta de
acesso à educação escolar ou formal também era um aspecto a ser considerado no diagnóstico
final, ideia essa defendida sobretudo por Henrique Roxo, que pautado nas teorias

71
SAAD, Luísa Gonçalves. “Fumo de negro”: A criminalização da maconha no Brasil (1890-1932).
Salvador: UFBA, 2013. p. 54-57.
72
APEB, ofícios expedidos pelo diretor do hospital Juliano Moreira 1914-1921.Caixa: 3189.
46

evolucionistas, alegava a inferioridade dos negros ao mesmo tempo em que os associava a um


estado de maior predisposição das doenças mentais por suas práticas e crenças religiosas. 73
Logo, o fator racial e a degeneração não se adequaram ao caso específico de Cícero,
levando-se em consideração o falecimento da esposa como o estopim da sua doença e o
delírio associado a um poder que o indivíduo não detinha. Entretanto, apesar de identificar a
manifestação da doença, o médico não soube prescrever formas de tratamento ou mesmo uma
“dedução diagnóstica” mais apurada para a patologia apontada. Desse modo, alegou que
nenhum tratamento estava sendo empregado e disse não ter “juízo formado, nem avanço
diagnóstico, visto não ser especialista de tais moléstias”. Dessa forma, só foram identificadas
a predominância do delírio e a megalomania. 74
A partir do questionário aplicado a Cícero, percebe-se que na segunda década do
século XX havia o desconhecimento de alguns médicos acerca dos diagnósticos relacionados
à alienação, seja por alguns métodos se caracterizarem como “novos” na realidade
soteropolitana ou pelo aproveitamento de médicos não especializados em psiquiatria no asilo.
Outro fato perceptível é a inexistência de critérios para a designação dos médicos que
fizeram o exame de sanidade mental, estando esse exame na maioria das vezes passível de
falhas ou limitado a padrões. É fundamental lembrarmos que o exame era um procedimento
realizado no processo de internação dos alienados, além de ser uma fonte de registro do
contato entre pacientes e médicos. Através dele, a medicina estabelecia critérios para definir a
patologia dos indivíduos, sendo ele uma ferramenta considerada válida do ponto de vista
científico e jurídico, em que o alienado respondia questionamentos a partir de um modelo pré-
estabelecido.75
Com o ingresso contínuo de alienados no Asilo São João de Deus, é possível ainda que
Cícero tenha passado por uma espécie de indiferença por parte do médico responsável pelo
questionário. Considerando as singularidades de cada indivíduo, talvez a situação vivida pelo
personagem tenha sido semelhante à ocorrida com Lima Barreto quando internado pela
segunda vez no Hospício Nacional dos Alienados do Rio de Janeiro. Na sua chegada ao
hospital, o escritor alegou ter passado por experiências no mínimo desconfortáveis no
Pavilhão de Observação, ala para os que ingressavam após serem capturados pela polícia.

73
DIAS, Allister Teixeira; MUÑOZ, Pedro Felipe Neves de. "Dramas de sangue" na cidade: algumas
trajetórias da "loucura-assassina" nas redes da psiquiatria (década de 1910). IN: NASCIMENTO,
Dilene Raimundo do; CARVALHO, Diana Maul de; LACERDA, Aline Lopes de (Orgs.). Uma
história brasileira das doenças, volume 3, Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2010. p. 27-28.
74
APEB, ofícios expedidos pelo diretor do hospital Juliano Moreira 1914-1921.Caixa: 3189.
75
SANTOS, Bruna Ismerín Silva. Loucura em família: Interdição judicial e o mundo privado da
loucura, Salvador-Bahia (1889-1930). Salvador: UFBA, 2015. p.148-150.
47

Entre dias transferindo-se de uma dependência a outra, em certa manhã se encontrou com um
médico denominado Adauto, que lhe fez perguntas, provavelmente parecidas com as feitas a
Cícero, e demonstrou certa indiferença antes de liberá-lo ao pátio.76
Diferentemente de Lima Barreto, ele vivenciou brevemente o internamento no
hospital. Talvez os procedimentos burocráticos, as incertezas médicas e os problemas
estruturais da instituição tenham contribuído negativamente para o tratamento do indivíduo,
visto que em 31 de janeiro de 1914 uma comunicação entre Eutychio Leal e Arlindo Fragoso
registrava o seu falecimento.77
A despeito de alguns alienados conseguirem o retorno à sociedade, a maioria, como
Cícero, não conquistou tal feito. Isso porque a saída do asilo, bem como a suspensão ou não
do tratamento dependia da figura médica que naquele momento era considerado o profissional
mais indicado para traçar o quadro nosológico individual. O alto grau hierárquico que
adquiriu no asilo após o desenvolvimento científico contribuiu para a ampliação dos seus
poderes, permitindo não somente os sequestros, que automaticamente privavam a liberdade de
determinados indivíduos, mas a capacidade de definir o tempo da reclusão, seja a estendendo
ou a suprimindo, além da possibilidade de transformar internações voluntárias em
compulsórias.78
Nesse sentido, não era incomum que internos finalizassem as suas trajetórias de vida
em reclusão, sendo na maioria das vezes abandonados por familiares que jamais retornaram
para buscá-los ou pela vulnerabilidade estrutural das instituições de reclusão em geral, que
possuíam um alto índice de mortalidade por doenças endêmicas diversas.
Em meio a esse contexto que se reflete diretamente no cotidiano dos alienados,
devemos considerar também o processo de adaptação da psiquiatria enquanto especialidade
médica na Bahia, em que uma série de teorias provavelmente influenciaram de modo
diferente à heterogênea categoria médica. Ou seja, é possível que a tentativa de popularização
das concepções da escola psiquiátrica alemã por Eutychio Leal, a partir de 1912, não tenha
surtido o efeito imediato esperado ou sido difundida com facilidade entre os médicos baianos.
Um exemplo desses movimentos pode ser identificado nas publicações do diretor do
asilo soteropolitano na Gazeta Médica da Bahia após a transição administrativa de 1912, onde
ele tentou forjar novas perspectivas sobre a especialidade no estado, publicando assim estudos

76
BARRETO, Lima. Diário do Hospício; O cemitério dos vivos. 1° ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2017. p. 34-36.
77
APEB, ofícios expedidos pelo diretor do hospital Juliano Moreira 1914-1921.Caixa: 3189.
78
CASTEL, Robert. A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo. Rio de Janeiro, Edições
Graal, 1978.p. 171.
48

referentes a doenças mentais a partir da análise de alienados internados no asilo. Para tanto,
desenvolveu o estudo de casos à luz das concepções kraepelianas no mesmo mês em que a
Santa Casa deixou a administração da instituição, a fim de expandir novos espaços para a
psiquiatria ao defender a possibilidade de implantação de uma assistência nos mesmos moldes
de instituições nacionais e internacionais.
No período em que empreendeu estudos no Asilo São João de Deus, a assistência aos
alienados na Bahia e o hospital estavam gradualmente tentando se inserir a partir das medidas
do governo, que àquele momento se norteava por ideais de modernização urbana da cidade de
Salvador.79 Não por acaso, o Governo do Estado da Bahia deslocou atenções para a instituição
soteropolitana, buscando cumprir medidas que naquele momento passaram a ser de sua
responsabilidade. Uma delas era a remoção de alienados da Casa de Correção, a fim de
cumprir o Decreto de 1903, que conferia ao asilo e aos médicos o direito terapêutico sobre o
alienado.
Em 1912, Arlindo Fragoso autorizou a transferência de oito alienados, dentre eles
homens e mulheres, da Casa de Correção após denúncias de uma série de maus tratos sofridos
no interior da instituição e repercutidos no periódico Gazeta de Notícias: Sociedade Anonyma.
Segundo o jornal, os responsáveis pelas agressões foram três presos acusados de crimes
variados, que deixaram nos doentes “sinais evidentes de abusos” e maus tratos, bem como
prováveis indícios de violência sexual, visto que foi constatada a gravidez em uma das
internas agredidas. Após a abertura do inquérito e convocados os médicos responsáveis para a
realização dos exames de corpo delito, foram procedidas as transferências dos indivíduos para
o Asilo São João de Deus. Em meio aos culpados, também foram punidos o administrador e o
médico do complexo, sendo solicitada a demissão do primeiro.80
Acontecimentos como o mencionado acima não eram isolados na vida dos detentos e
alienados, tampouco estavam limitados às prisões. A violência parecia ser algo corriqueiro
nas instituições de reclusão em geral e eram praticadas não só entre os indivíduos
encarcerados, mas também por guardas e, no caso dos hospitais, por enfermeiros. Entretanto,

79
A cidade de Salvador por uma série de transformações entre os anos 1912 e 1920. Sob o discurso
modernizador higienista, diversas reformas no espaço urbano se inclinaram a dissociar a imagem
colonial da capital baiana. Em meio a implantação de linhas de bondes e o alargamento das ruas,
tentava-se implantar novos costumes na sociedade soteropolitana, eles que foram absolvidos em maior
parte pelas classes médias e altas. Ver: FERREIRA FILHO. A. H. Quem Pariu e bateu, que
balance! Mundos femininos, maternidade e pobreza. Salvador, 1890-1940, Salvador: CEB, 2003.p.
66- 68.
80
“Grave atentado na Casa de Correção”. Gazeta de Notícias: Sociedade Anonyma, 20.07.1912, p.1.
49

esses relatos só vinham a conhecimento popular quando denunciados nas páginas dos
periódicos devido a acontecimentos de maior comoção pública. 81
No Asilo São João de Deus um desses episódios violentos se tornou notório após ser
publicado no jornal A Notícia em 10 de novembro de 1914, tratava-se do assassinato de Maria
de Tal. Narrava o periódico que Maria Romana atingiu a colega na cabeça durante o recreio
das mulheres com uma haste de ferro e em meio a confusões e gritos dos que as cercavam,
funcionários do hospital a contiveram e desarmaram-na. Enquanto explicava o motivo da
causa mortis da vítima encaminhada para autopsia no Instituto Nina Rodrigues, os repórteres
trataram de apresentar informações sobre a patologia da acusada. A mulher tinha 28 anos,
ingressou no hospital em 1912 e sofria de demência precoce, doença associada ao seu perfil
considerado impulsivo, hostil e violento.
Embora Maria Romana tivesse cometido o ato que ocasionou na morte de Maria de
Tal, segundo o Código Penal, os alienados não podiam se responsabilizar pelos seus atos,
entretanto, o meio de comunicação tratou de atribuir a culpa a alguém. Em primeiro ponto,
admiravam o trabalho de Eutychio Leal, por isso não julgaram como culpados nem o hospital,
nem o diretor. Para eles, acontecimentos como esses eram corriqueiros em instituições como
os asilos. Contudo, para o governo a situação não seguiu de modo semelhante, afinal, foi o
principal criticado pela estrutura disponibilizada para a assistência dos alienados,
disponibilizando uma instituição com funcionários e seções insuficientes para abrigar
pacientes que necessitavam de observação especial.82
Tanto a morte de Cícero quanto a de Maria de Tal são reflexos de uma série de
problemas estruturais do asilo. Embora distintos nas suas causas, é de se notar as falhas no
acompanhamento dos alienados causados possivelmente pelo número insuficiente de
funcionários, a carência de pavilhões com infraestrutura adequada para abrigar a demanda
exigida de pacientes, além da insalubridade. A última atingia, inclusive, toda a população
asilar e os expunham a inúmeras doenças, independentemente da classe na qual os alienados
ingressavam, apesar do pagamento das mensalidades conferir maior conforto e serviços
diferenciados.

81
Ver: TRINDADE, Claudia Moraes. Ser preso na Bahia no século XIX. UFBA: Salvador, 2012. p.
94.
82
“Efeitos da civilização? O crime do Asilo, Maria Romana mata Maria de Tal. O que sabemos sobre o
fato”. A Notícia, 10.11.1914, p.4.
50

Tal categorização criada e mantida desde a fundação do asilo no século XIX, dividia
os pensionistas em primeira, segunda e terceira classe com valores de internação variáveis 83 e
a organização destes passou por poucas mudanças após a transição administrativa de 1912.
Contando apenas com a eliminação da terceira classe e oferecendo serviços similares, o
internamento geralmente era acordado entre os responsáveis legais pelo alienado e a
instituição, cujo valor mensal pré-definido era calculado em trezentos mil réis84 aos
pertencentes da primeira classe, enquanto os da segunda desembolsavam cento e cinquenta e
cinco mil réis85, com taxas adicionais de dez réis para ambos, referente à “engomagem de
roupas”.
Tomando como base o cenário social da cidade do Salvador, em que a maioria da
população vivia dificuldades de sobrevivência, os pensionistas pertenciam a famílias que
compunham segmentos altos e médios da sociedade, possuindo condições para o investimento
no tratamento hospitalar. Os que compunham a segunda classe investiam quase o dobro do
valor de uma internação na primeira classe e ocupavam melhores seções em relação aos
indigentes, sendo encaminhados para as enfermarias. Já os que compunham primeira classe
ocupavam quartos particulares e com maior conforto, como é indicado na imagem abaixo:

83
Em seu estudo sobre o Asilo São João de Deus, Venétia Durando Braga Rios apontou para uma
divisão de classes entre pensionistas no século XIX, onde os alienados de primeira classe possuíam
quarto individual, os de segunda dividiam com outro paciente, enquanto os terceiros ocupavam
espaços de enfermarias gerais. Ver: RIOS, Venétia Durando Braga. O Asylo São João de Deos: As
faces da loucura. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006. p. 108.
84
APEB, Recibo de pensionistas 1914-1915. N° 165, Caixa: 3264.
85
APEB, Recibo de pensionistas 1914-1915. N° 161, Caixa: 3264.
51

Figura 3: Paciente da classe pensionista no quarto individual.

Fonte: EL-BAINY, EstênioIriart. Juliano Moreira, omestre,a instituição. In: Memorial


Juliano Moreira. Salvador, 2007. p.60.

Como aponta a imagem, os cômodos destinados aos pacientes da “primeira classe”


eram individualizados, contendo armários e camas para o uso particular. Entretanto, os
privilégios dos pensionistas não estavam limitados ao conforto dos cômodos, mas à
contraindicação dos médicos para esse grupo de pacientes, de práticas relacionadas ao
trabalho, sendo indicadas na maioria das vezes atividades mais amenas de ordem intelectual,
como a leitura.86
A partir de 1912, a distribuição dos enfermos tentou seguir uma divisão não somente
de classes, mas também por categorias nosológicas. A estratégia tentava aproximar ainda mais
o asilo baiano aos padrões experimentados por outras instituições, sobretudo as que seguiam
os preceitos da psiquiatria moderna, buscando assim conferir um status científico ao hospital.
Para tanto, os médicos optaram pelo aproveitamento dos indivíduos do sexo masculino para o
trabalho agrícola quando fosse organizada a colônia, desde que se encaixassem nos perfis
considerados “tranquilos” ou “crônicos”. No regulamento a organização estrutural do asilo
previa a seguinte orientação nosológica:

a) agudos tranquilos; b) agudos agitados ou semi-agitados; c) crônicos


dóceis; d) crônicos indóceis, turbulentos, perigosos, com tendências a

86
JACOBINA, Ronaldo. A prática psiquiátrica na Bahia (1874-1947): estudo histórico do Asilo
São João de Deus / Hospital Juliano Moreira. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2001.p. 162.
52

suicídios; e) paralíticos e imundos; f) crianças; g) pensionistas de 1° e 2°


classes; h) intercorrentes.87

Embora a divisão por categorias conste no regulamento e representasse a tendência ao


pensamento kraepeliano, seguido por Eutychio Leal, é provável que alguns desses critérios
pouco fossem seguidos na sua gestão, visto que as inadequações dos pavilhões e a
insuficiência de cômodos para separar doentes, criminosos, alcoólatras, epiléticos, dentre
outros. Problemas como esses não eram novidade no asilo baiano e impediram a implantação
dos métodos terapêuticos pretendidos, ao mesmo tempo que intensificavam os riscos da
superpopulação.
A realidade na sua gestão ainda era de escassez de recursos básicos para o conforto e o
tratamento dos alienados. Realidade muito distinta da sugerida no relato cedido à Revista
Bahia Illustrada, preocupado em construir uma ideia de progresso da psiquiatria na Bahia e
uma vitória sobre a assistência leiga. Os seus feitos enquanto diretor e a construção dos novos
pavilhões, tônica da sua narrativa durante quase toda a entrevista, se contrapôs a uma
realidade de persistência de problemas estruturais, denunciados durante a administração da
irmandade e mantidos até a entrada da direção seguinte.
Essa situação foi apresentada na Mensagem do Governador J.J Seabra à Assembleia
Geral Legislativa do ano de 1915. Nela, a superlotação dos internos é apontada como um
problema preocupante, agravado em função do retardo nas construções dos pavilhões,
consequência dos poucos recursos disponíveis pelo tesouro para a sua concretização. Aliado a
este entrave, existia o receio no avanço da epidemia de beribéri provavelmente pela questão
da insalubridade da instituição, mas segundo seu relato, foi cessada após a transferência de
alguns pacientes para uma enfermaria construída em Amaralina e outra em Itaparica. 88
Ainda que a epidemia fosse cessada, os administradores precisavam lidar com a alta
demanda de solicitações para o ingresso de novos pacientes e a insuficiência dos cômodos
existentes na instituição. Com o agravamento desse problema, doentes passaram a ser
recusados e atendidos apenas os ditos “casos especiais de evidente interesse público”. Na
ocasião, o governador enxergava o fim das obras das enfermarias femininas e dos pensionistas
como a solução para os problemas citados.

87
“Secretaria do Estado Decreto N. 1160 de 28 de agosto de 1912”. Gazeta de Notícias: Sociedade
Anonyma. 09.10.1912. p. 3.
88
SEABRA, José Joaquim. Mensagem apresentada à Assembleia Geral Legislativa do Estado da Bahia
na 1° Sessão Ordinária da 13° Legislatura pelo Dr. J.J Seabra, governador do estado Bahia: Seção de
Obras da Revista do Brasil. 1915. p. 82.
53

Entretanto, era a seção das mulheres o seu principal incomodo, considerando-as


grupos de maior agitação, a ponto de atingirem “os extremos da mais desordenada rebeldia”.
Desse modo, concluiu que elas precisavam urgentemente de novos cômodos, pois as seções
encarregadas de abrigá-las eram inadequadas para o número de internas existente. Para ele,
em comparação à ala feminina, os homens eram vistos como “doentes de mais fácil
direção”.89
É provável que embora vivenciassem realidades similares no asilo em um plano geral,
as adversidades naquele período pareciam ser intensificadas no caso do pavilhão feminino e
talvez a “rebeldia” característica desse grupo significasse, na verdade, ações contrárias ao
padrão proposto como adequados para as mulheres ou revoltas contra as condições desumanas
pela qual estavam experimentando na instituição.
O fato é que esse discurso compactua com a ideia de uma loucura feminina, que
buscava enquadrar como alienadas as mulheres que não seguiam os padrões de sociabilidade
impostos pela sociedade daquele período. É verdade, porém, que as noções de doenças
mentais se diferiam quanto à questão da raça e da classe social. No caso das mulheres
brancas, as normas sociais estavam associadas à moralidade, projetando assim uma
idealização generalizável de mulher, que seguia as condutas do cuidado ao lar, da família e de
obediência à figura masculina. Em contrapartida, as mulheres negras e pobres eram julgadas
pelo olhar médico através dos preceitos da degenerescência, as considerando como grupos
com alta predisposição a desenvolver alienações pelo meio que conviviam de desregramento e
tendência a promiscuidade. 90
Se nos deslocarmos para o relato de Eutychio Leal sobre a figura feminina na
entrevista ao Bahia Illustrada, tal ideia exposta por J.J. Seabra ganha tons similares, embora
diferentemente do governador, ele utilizou justificativas pautadas na ciência para defender
suas concepções. Para ele, as mulheres eram geralmente “menos dóceis” e até as
relativamente mais tranquilas se envolviam em “ligeiras perturbações da ordem, pequenos
conflitos, rusgas, às vezes, porém, terríveis trovoadas”, de mesmo modo que a “pornografia”
era a “linguagem dominante entre elas”, diferentemente dos homens que geralmente
demonstravam serem mais “comedidos”, “discretos” e respeitosos”.91

89
Idem.
90
CUNHA, Maria Clementina Pereira. De historiadoras, brasileiras eescandinavas: Loucuras, folias e
relações de gêneros no Brasil (século XIX e início do XX). Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 3, n° 5, 1998,
p. 181-215.
91
Revista Bahia Illustrada. Ed. 3, Rio de Janeiro, ano II, 1918. p.18.
54

Embora generalize um perfil feminino no asilo, as protagonistas desses “terríveis


trovoadas” provavelmente pertenciam à classe indigente, isso porque as mulheres pensionistas
estavam alocadas em alas mais confortáveis e o padrão de loucura construído estava mais
associado ao descumprimento de “condutas burguesas” de sociabilidade esperadas para serem
exercidas pelas pensionistas. Dessa maneira, a misoginia do discurso de Eutychio Leal tem
tons generalizadores, porém, se direciona às mulheres pobres que estavam amontoadas em
alas superlotadas, que, por consequência, resultaram em inúmeros episódios violentos como o
conflito envolvendo Maria Romana e Maria de Tal.
Em se tratando dos seus números gerais, o asilo passou por dificuldades em todas as
alas quanto à questão da sua superlotação, números esses significativos no relato de Seabra,
demonstrando que tais problemas se intensificaram na gestão de Eutychio Leal. Ao final de
1913, no dia 31 de dezembro, a instituição calculava “192 doentes” e no ano seguinte
recepcionou mais 139, números que praticamente dobraram, chegando a passar 331 pacientes
pelo asilo no período de um ano. Segundo o governador, 138 pessoas deixaram a instituição
em 1914, sendo 41 após obterem alta médica e 97 em decorrência de falecimento.92
A quantidade elevada de mortes reflete as fragilidades em termos de infraestrutura
vividas no asilo mesmo após a gestão dos médicos, dificuldades essas que impediam o
desenvolvimento de terapêuticas tidas como soluções para o desenvolvimento da assistência
aos alienados na Bahia. Nesse sentido, a intervenção do Governo do Estado da Bahia, pouco
modificou em termos de soluções para a precariedade dos pacientes no Asilo São João de
Deus nos quatro primeiros anos, após a saída da Santa Casa de Misericórdia, pois as medidas
empreendidas além de insuficientes também não acompanharam o fluxo de pessoas
ingressantes no hospital.
Contudo, há de se considerar que a Bahia, além de participar ativamente da política
nacional, também tentou organizar a estrutura sanitária do seu território. Segundo Ricardo dos
Santos Batista, mesmo com os conflitos acerca da discussão sobre a centralização ou
descentralização dos serviços de saúde no estado, governos como o de Severino Vieira, J.J
Seabra e Antônio Moniz de Aragão tentaram desenvolver as ações sanitárias no estado, tendo
sido criada a Diretoria Geral de Saúde Pública da Bahia em 1917. 93 Portanto, talvez o maior
problema em relação à assistência aos alienados, sobretudo no o governo de J.J Seabra, tenha

92
SEABRA, José Joaquim. Mensagem apresentada à Assembleia Geral Legislativa do Estado da Bahia
na 1° Sessão Ordinária da 13° Legislatura pelo Dr. J.J Seabra, governador do estado Bahia: Seção de
Obras da Revista do Brasil. 1915. p. 83-84.
93
BATISTA, Ricardo dos Santos. Sífilis e Reforma da Saúde na Bahia (1920-1945). Salvador,
EDUNEB, 2017. p. 42-44.
55

sido o repasse de recursos financeiros insuficiente para solucionar uma série de inadequações
na infraestrutura do Asilo São João de Deus.
Por exemplo, Eutychio Leal mencionou na entrevista ao Bahia Illustrada, em 1918 que
a partir de 1912 foi dada a continuidade de projetos inacabados de gestões anteriores na
instituição. Todavia, é verdade também que a sua preocupação no relato se direcionou a citar
os seus feitos na tentativa de construir novos espaços para a psiquiatria na Bahia.
A primeira das obras mencionadas pelo diretor foi o Pavilhão Kraeppelin, em
homenagem ao médico alemão, iniciada em 1910 no governo Araújo Pinho, mas continuada e
finalizada apenas após 1912.94 Como indicam as imagens a seguir, publicadas na entrevista,
esse era o prédio de maior capacidade no asilo baiano:

Figura 4: Fachada do Pavilhão Kraepelin.

Fonte: Revista Bahia Illustrada. Ed. 3, Rio de Janeiro, ano II, 1918. p. 17.

94
Segundo Eutychio Leal, a obra precisou ser interditada devido aos recursos escassos do tesouro e foi
dada a continuidade dois anos depois, no governo Seabra. Ver: Revista Bahia Illustrada. Ed. 3, Rio de
Janeiro, ano II, 1918. p.17.
56

Figura 5: Varanda principal do Pavilhão Kraepelin.

Fonte: Revista Bahia Illustrada. Ed. 3, Rio de Janeiro, ano II, 1918. p. 17

Figura 6: Varanda posterior do Pavilhão Kraepelin.

Fonte: Revista Bahia Illustrada. Ed. 3, Rio de Janeiro, ano II, 1918. p. 17.
57

Figura 7: Seção de tratamento do Pavilhão Kraepelin.

Fonte: Revista Bahia Illustrada. Ed. 3, Rio de Janeiro, ano II, 1918. p. 18.

É de se notar que a organização representada nas imagens da seção de tratamento do


Pavilhão Kraepelin publicadas no Bahia Illustrada, pouco condiziam com os relatos
relacionados à insuficiência de cômodos citados na fala de J.J Seabra em 1915. Tal
inconsistência narrativa pode estar ligada ao próprio intuito da entrevista, que de maneira
parcial tentou ressaltar os feitos na primeira gestão médica do asilo, período que, inclusive, o
diretor chamou de “fase áurea” da instituição. Para a construção desse imaginário, se tornava
fundamental a seleção minuciosa das fotografias a serem publicadas, de modo a dissociar o
asilo e a assistência na Bahia da administração anterior, considerada leiga.
Vale ressaltar também que o edifício surge na reportagem como o principal trunfo da
gestão do médico à frente do asilo, afinal, ele se aproximava dos padrões considerados
modernos do período, contendo escadas de mármore, enfermarias com camas alinhadas e
varandas cobertas de vidro. Ele se destinava principalmente ao tratamento dos pacientes
“agitados” e continha janelas que facilitavam a vigília dos enfermeiros noturnos em dois
cômodos. Neste mesmo prédio também funcionavam provisoriamente o ateliê de fotografia, o
laboratório de análises e pesquisas clínicas, o gabinete dentário, a sala do médico responsável
pelo pavilhão e o quarto do enfermeiro chefe.
58

Uma das virtudes exaltadas na reportagem acerca do tratamento aos alienados


abrigados no Pavilhão Kraepelin estava associada às possibilidades de disciplinarização neste
edifício. Segundo o diretor, os enfermeiros conseguiam organizar os pacientes a partir de
sinalizações sonoras. Quando ouvidas, os pacientes seguiam diretamente ao salão do refeitório
“lentamente, a procura dos seus lugares habituais” e após as refeições deixavam o local na
mesma ordem.95
Aqui nos é apresentada outra característica da instituição asilar: a disciplinadora. Para
tanto, se estabeleceram hierarquias nas relações internas, cuja figura médica passava a deter a
autoridade e aos pacientes, por sua vez, cabia respeitar as ordens adotadas para o andamento
da ordem. Entretanto, devemos considerar que nem sempre os médicos tiveram êxito na
manutenção da ordem, pois, como veremos adiante, a estrutura física dos outros pavilhões não
permitiu tais organizações.
O segundo pavilhão descrito foi denominado de Alfredo Britto, em homenagem, ao
médico baiano, um dos envolvidos na criação da Liga Bahiana Contra a Tuberculose.
Inaugurado durante a gestão de Eutychio Leal, este edifício tinha menor capacidade em
comparação ao Kraepelin e servia incialmente para abrigar alienados tuberculosos.
Como a loucura, a tuberculose era nas primeiras décadas do século XX uma
preocupação dos sanitaristas e psiquiatras, que viam relação entre as doenças nervosas e a
causada pelo bacilo de Koch. Francisco Franco da Rocha foi um dos médicos que relacionou
ambas em 1919. Entretanto, mesmo o Hospício Juquery, considerado hospital referência na
assistência aos alienados junto ao Hospício Nacional dos Alienados do Rio de Janeiro,
demonstrou dificuldades na recepção de loucos-tísicos, pois não disponibilizava profissionais
tisiologistas para assistir os doentes, o que impactou negativamente o tratamento desse grupo.
Segundo Claudio Bertolli Filho, era comum o isolamento dos tuberculosos devido à
possibilidade de transmissão da doença, tal afastamento criou um estigma de dupla
periculosidade, pois eram encaminhados tanto para os sanatórios, quanto para os hospícios. 96
O aparato institucional de assistência aos tuberculosos na Bahia era precário embora
ela fosse uma das doenças de maior incidência e mortalidade no período. A única instituição
específica era a Liga Bahiana Contra a Tuberculose, criada em 1900, que sempre funcionou
com dificuldade desde a sua fundação. Os estatutos da Liga previam a construção de um
sanatório na cidade do Salvador, mas a dificuldade financeira levou a que fosse aprovada a

95
Ver: Revista Bahia Illustrada. Ed. 3, Rio de Janeiro, ano II, 1918.p.18.
BERTOLLI FILHO, C. Sob o signo da degeneração: os “loucos-tísicos”. Revista Mundos do
96

Trabalho, Florianópolis, v. 12, p. 1-14, 2020.p.10-12.


59

criação de um dispensário, espécie de centro de referência e atendimento a tuberculosos o que


também só passou a funcionar em 1921, após o acordo firmado entre o governo do estado da
Bahia e o Departamento Nacional de Saúde Pública, criado em 1920. 97
Portanto, a criação no Asilo de São João de Deus de uma ala voltada para os loucos-
tísicos indica certa preocupação com o isolamento desses pacientes, com a finalidade de evitar
o contato com o restante da população asilar e consequentemente a proliferação da doença, ao
tempo também que busca suprir uma carência de assistência hospitalar. Afinal nas primeiras
décadas do século XX havia apenas, no Hospital Santa Izabel, da Santa Casa de Misericórdia
duas enfermarias específicas para portadores desta moléstia, uma destinada aos homens e
outra às mulheres.98
Entretanto, é de se notar que as medidas contra o avanço da doença tenderam a ser
flexibilizadas nesta instituição na gestão de Eutychio Leal, pois foi permitida a utilização do
Pavilhão Alfredo Britto, para encaminhar cerca de vinte doentes classificados como
“tranquilos”. Como indica as imagens na Bahia Illustrada:

Figura 8: Fotografia frontal do pavilhão Alfredo Britto.

Fonte: Revista Bahia Illustrada. Ed. 3, Rio de Janeiro, ano II, 1918.p. 18.

97
SILVA, Maria Elisa Lemos Nunes da. O dispensário Ramiro de Azevedo e a constituição de
políticas de enfrentamento da tuberculose na Bahia na década de 1920. IN: SILVA, Maria Elisa
Lemos Nunes; BATISTA, Ricardo dos Santos (orgs.). História e Saúde: políticas, assistência,
doenças e instituições na Bahia. Salvador: EDUNEB, 2018. p. 75-79.
98
SILVEIRA, José. Uma doença esquecida: a história da tuberculose na Bahia. Salvador:
Universidade Federal da Bahia, 1994. p. 15-30.
60

O imóvel de aparência humilde era uma alternativa nos momentos de maior fluxo de
pacientes na instituição e nem sempre acomodou os que eram considerados “tranquilos”. Por
pouco seguir os critérios descritos no regulamento sobre a distribuição de enfermos, Eutychio
Leal afirmou ter enviado os alienados “agitados” e “semi-agitados” para este pavilhão, no
intuito de uni-los para uma maior vigilância e para a prática da clinoterapia.99
Se o movimento proposto pela entrevista cedida por Eutychio Leal ao Bahia Illustrada
visava enaltecer a gestão do Estado na nova fase do asilo, citando o direcionamento dado aos
pavilhões, o contrário ocorreu quando o médico mencionou sobre a administração da Santa
Casa, que, para ele, detinha métodos que a psiquiatria reprovava. As críticas se direcionaram
principalmente a má utilização dos pavilhões e em torno da discussão sobre uma assistência
leiga. Tal construção ganhava sentido no discurso médico principalmente quando se tratava da
existência da denominada “Casa Forte”, alvo das principais críticas por parte do diretor.100 O
local foi descrito como “enorme erro de pedra e cal” e é caracterizado como um edifício
simples e de poucos cômodos, como sugere a fotografia abaixo:

Figura 9: Vista frontal da Casa-Forte.

Fonte: Revista Bahia Illustrada. Ed. 2, Rio de Janeiro, ano II, 1918. p. 13.

99
Revista Bahia Illustrada. Ed. 3, Rio de Janeiro, ano II, 1918. p. 18.
100
Revista Bahia Illustrada. Ed. 2, Rio de Janeiro, ano II, 1918. p. 14.
61

O prédio contava com “16 cubículos” descritos como “húmidos, estreitos, sem água,
sem esgotos, munidos de pesadíssimos portões de ferro” onde o único móvel presente era uma
“tarimba” anexada à parede. Apesar de não mencionado quais os critérios para o
enclausuramento neste local, acredita-se que tenha sido utilizada para disciplinar os alienados
que não seguiam as ordens na instituição. Como o seu caráter era punitivo, certamente era
difícil a probabilidade de sobrevivência na Casa Forte, devido às suas condições sanitárias
deploráveis e às limitações no acesso à alimentação. Segundo Eutychio Leal, os
enclausurados faziam as necessidades básicas numa “simples baldeação” na sua própria cela e
geralmente os dejetos escorriam por debaixo da mesma porta que continha um gradil utilizado
para a coleta de alimentos, água e cigarros distribuídos pelos guardas. 101
Após a descrição, o diretor afirmou que uma das primeiras medidas no início da sua
gestão foi a interdição do pavilhão. Em tom quase que romanesco, descreveu da seguinte
maneira o ocorrido:

Em 1912, o autor destas linhas pôde, entre júbilos, comunicar ao governo o


completo esvaziamento da Casa Forte, entre cujas formidáveis paredes
foram impiedosamente sacrificadas centenas de vida. Coube aos
sobreviventes da Casa Forte, já então caridosa e cientificamente tratados, a
obra de sua demolição.102

Em um discurso de libertação e bem-estar dos internos semelhante ao proferido


outrora por Philippe Pinel103, na França, Eutychio Leal parece ter forjado o fim de um período
atrelado à desumanidade no tratamento dos alienados e as evidências do despreparo da
irmandade. Nesse momento, aproveitou para delimitar o início do que considerou como a
nova fase da psiquiatria baiana, associada a um discurso científico e de maior humanidade
terapêutica.

101
Idem.
102
Idem.
103
Após assumir o Bicêtre no final do século XVIII, Philippe Pinel ficou conhecido por implantar
algumas mudanças em termos de organização e tratamento aos alienados França. O seu Traité Médico-
Philosophique sur l’Aliénation Mentale ou la Manie, obra que se tornou uma espécie de manual da
psiquiatria do século XIX, influenciou também médicos brasileiros, associando também a imagem de
Pinel como uma espécie de libertador dos alienados franceses, removendo as suas correntes e
definindo hospitais e asilos como locais ideais para encaminhamento desses indivíduos. Entretanto,
como apontou Robert Castel, o seu “ato fundador” não foi a remoção das correntes e sim a
organização do espaço hospitalar que contaria com o isolamento e a categorização dos indivíduos
“loucos”. Ver: CASTEL, Robert. A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo. Rio de Janeiro,
Edições Graal, 1978. p. 60.
62

Com a derrubada das paredes e a remoção das portas de ferro, a Casa Forte se
transformou no Pavilhão Manoel Vitorino 104 desta vez implementado com serviços básicos de
eletricidade e de água. Segundo Ronaldo Jacobina, esse prédio se tornou mais uma seção para
abrigar novos doentes após a reforma, mas depois de alguns anos passou a operar como o
manicômio judiciário, retomando o seu caráter de prisão criticado pela medicina na direção de
Eutychio Leal. 105
Em seguimento semelhante, o antigo dormitório e a enfermaria passaram por algumas
reformas a partir de 1916, dando origem ao Pavilhão Charcot.

Figura 10: A reforma do Pavilhão Charcot.

Fonte: Revista Bahia Illustrada. Ed. 2, Rio de Janeiro, ano II, 1918. p. 13.

O edifício continha quatro seções para a internação de ambos os sexos e era conhecido
por possuir grades nas janelas a fim de evitar “evasões e acidentes”. Segundo o médico, essa
característica concedia ao local um tom “sombrio e pesado de cárcere”, de isolamento, no
qual o diretor naquele momento tentava se afastar.106 Desse modo, como sugere a fotografia,
foi autorizada a substituição dos gradis por janelas com o objetivo de dissociar a ideia de

104
Manuel Vitorino era médico, formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, em 1876. Foi
governador da Bahia de 1889 a 1990 e vice-presidente da república no governo de Prudente de Morais
(1894-1898).
105
JACOBINA, Ronaldo Ribeiro. A prática psiquiátrica na Bahia (1874-1974): estudo histórico do
Asilo de São João de Deus/ Hospital Juliano Moreira. Tese (Doutorado) – Escola Nacional de Saúde
Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 2001. p. 217.
106
Revista Bahia Illustrada. Ed. 3, Rio de Janeiro, ano II, 1918. p. 18.
63

prisão, ao mesmo tempo em que aproximava o Asilo São João de Deus à representação de
hospital interessado em empregar um tratamento com bases científicas nos seus doentes.
É preciso ressaltar que apesar da descontinuação da Casa-Forte e de todos os outros
símbolos relacionados à desumanidade, isso não significou a redução da taxa de mortes, das
injustiças e dos abusos aos alienados, afinal, o espaço asilar já se configurava como um
espaço de isolamento e exclusão social dos indivíduos que não seguiam os padrões de
normalidade da sociedade.
É verdade que a psiquiatria baiana já pensava no sistema open-door, mas ele se
configurava mais como uma alternativa para impedir a superlotação asilar com alienados
toleráveis na dinâmica urbana do que uma iniciativa de “libertação” dos doentes. Tal
liberdade apesar de possível em alguns casos, em outros nunca ocorria, isso porque a ideia de
cura além de relativa, era amplamente dependente da figura médica. Atrelado a essa
possibilidade, estava a propagação da noção de que o médico era o único profissional
habilitado, confiável e capaz de conceber a cura aos pacientes.
O último pavilhão mencionado recebeu o nome do médico português, Júlio de Matos.
Neste edifício estavam situadas a cozinha, a despensa e as salas de banho, essa que, segundo o
diretor, se tornou “depósito de materiais imprestáveis”. Ao citar um trecho do seu relatório
apresentado ao governo no ano de 1913, Eutychio Leal reiterou o “estado deplorável” da
primeira dependência, descrita como “suja”, “anti-higiênica” e incapaz de servir para a
população asilar que naquele momento estava em expansão. Na despensa, os problemas eram
de ordem semelhante e justificavam a precariedade das condições de sobrevivência dos
internos no asilo, pois o seu solo “frouxo” e “mal ladrilhado” favorecia a proliferação e o
agrupamento de roedores.107
Para o diretor, as pequenas reformas eram insuficientes para solucionar os problemas,
sendo necessárias ações mais radicais na estrutura do edifício. Contudo, mesmo após enviada
a proposta de reformulação e aprovada pelo governo, as dificuldades atrasaram as obras
devido a situação de “penúria” do tesouro. Para tentar amenizar tais inconvenientes, a solução
foi reordenar o pavilhão e descontinuá-lo, para que se iniciassem mudanças pontuais como:

[...] a impermeabilização do solo; revestimento das paredes, de azulejo


branco, até a altura de dois metros; forros; substituição das grades de ferro
por elegantes janelas tipo Hitizig; comunicação das salas duas a duas por
uma larga porta; comunicações das quatro salas entre si por meio de um
amplo aposento colocado na interseção das grandes paredes divisórias;

107
Revista Bahia Illustrada. Ed. 4, Rio de Janeiro, ano II, 1918. p. 14.
64

aparelhos sanitários; banheiras e aquecedores; iluminação elétrica e das


varandas; telefone [...]. A diferença de nível do terreno entre a parte anterior
do edifício e a parte posterior, excessivamente alta, foi corrigida, por uma
larga varanda de cimento armado onde os doentes fazem recreio. 108

Assim, a estrutura física do prédio, em sua maioria, estava comprometida e as suas


obras perduraram por quase toda a gestão de Eutychio Leal. O Pavilhão Júlio de Matos foi
concluído somente em 1916, quando foi anunciada a inauguração no mesmo ano por Arlindo
Fragoso e J.J. Seabra.

Figura 11:Vista lateral do Pavilhão Júlio de Matos.

Fonte: Revista Bahia Illustrada. Ed. 4, Rio de Janeiro, ano II, 1918. p. 14.

108
Idem.
65

Figura 12:Vista traseira do Pavilhão Júlio de Matos.

Fonte: Revista Bahia Illustrada. Ed. 4, Rio de Janeiro, ano II, 1918. p. 14.

Apesar de não ter sido indicado em momento algum da entrevista se o pavilhão


abrigaria alienados e em que ordem eles seriam divididos, é provável que a implementação
das redes elétricas e a alocação de banheiras tivessem o intuito de utilizá-lo como alternativa
nos tempos de maior lotação. Como visto anteriormente, nesta seção, outros edifícios foram
aproveitados para o mesmo fim, já que a superlotação era uma preocupação existente,
principalmente em se tratando da ala feminina.
O governador Antônio Ferrão Moniz Aragão em mensagem apresentada à Assembleia
Legislativa, em de 1918, comentou sobre os problemas existentes no Asilo São João de Deus,
ao mesmo tempo que prometia resoluções. 109 Assim como Eutychio Leal fez no Bahia
Illustrada, a sua narrativa girou em torno de elogios, inexistindo qualquer crítica à gestão
antecedente. A instituição estava sob nova direção, a de Antônio Barreto Praguer, médico
baiano que defendeu a sua tese voltada para o estudo da psicoterapia sugestiva, no ano de
1893.110
O tom da narrativa de Moniz de Aragão ao longo da mensagem é de celebração dos
feitos do novo diretor no primeiro ano de gestão, sem necessariamente criticar as falhas da
gestão de Eutychio Leal. Entretanto, as obras pontuais em alguns setores do hospital além de
confirmarem a vulnerabilidade do hospital, indicam que muitos dos trabalhos iniciados pela
109
DE ARAGÃO, Antônio Ferrão Moniz. Mensagem apresentada à Assembleia Geral Legislativa do
Estado da Bahia na 2° Sessão Ordinária da 14° Legislatura pelo Antônio Ferrão Moniz de Aragão,
governador do estado Bahia: Seção de Obras da Revista do Brasil. 1918. p. 69-70.
110
PRAGUER, Antônio Barretto. Da psychotherapia suggestiva. Bahia,1893. These (Inaugural) -
Faculdade de Medicina da Bahia, Bahia, 1893.
66

direção anterior permaneceram inacabados ou pouco preservados. Nesse sentido, pequenas


obras no Pavilhão Kraepelin, o mais elogiado por médicos e políticos, foram necessárias
como o “conserto dos telhados, de paredes e do passeio, cobertura de toda a varanda, pintura
interna e externa, reparação e ampliação da iluminação elétrica”. 111
Apesar de apresentar as fragilidades da instituição em relação à infraestrutura, a
narrativa de Moniz de Aragão se concentra em um discurso de otimismo, aliado à
minimização de problemas antigos, inexistindo qualquer crítica à gestão anterior. Isso se
justifica possivelmente pela filiação política de Moniz de Aragão, um dos fundadores do
Partido Republicano Democrata e escolhido por J.J. Seabra como candidato a lhe suceder no
governo da Bahia.112
No entanto, a realidade da instituição mencionada pelo governador destoou dos
problemas que alegou necessitar solucionar quando o assumiu. Sob elogios a Praguer,
considerou que o hospício nunca esteve “tão abastecido de material e artigos de todo o
gênero” como no ano de 1917, incluindo “leitos, roupas, utensílios, banheiras,
medicamentos”, cenário distinto do apontado por J.J. Seabra no relatório de 1916.
Assim, Moniz de Aragão afirmou que ocorreu no Asilo São João de Deus algumas
reformas e construções, dentre elas a continuação da muralha ao seu entorno e a implantação
de um cômodo para o porteiro, a fim de minimizar fugas de alienados que, como veremos na
segunda parte desta dissertação, a sua ausência pode ter contribuído para a evasão de Pedro da
Silva Rego.
Também foram apontados da despensa, descrita como “superior” à anterior, e a
instalação de banheiras com aquecedores, que segundo o governador anteriormente só havia
uma em funcionamento. No relatório foi citada a pintura e o reparo de portas, janelas e o
assoalho do Pavilhão Central. Outra medida consistiu na realocação dos pensionistas, que
estavam situados neste prédio e nas enfermarias talvez pelos motivos da superlotação. Alguns
deles foram transferidos e passaram a abrigar a casa do diretor, local considerado de maior
conforto, já que Antônio Barreto Praguer optou por não residir na instituição.

111
DE ARAGÃO, Antônio Ferrão Moniz. Mensagem apresentada à Assembleia Geral Legislativa do
Estado da Bahia na 2° Sessão Ordinária da 14° Legislatura pelo Antônio Ferrão Moniz de Aragão,
governador do estado Bahia: Seção de Obras da Revista do Brasil. 1918. p. 70-72.
112
SOUZA, Christiane Maria Cruz de. A gripe espanhola na Bahia: saúde, política e medicina em
tempos de epidemia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; Salvador: EDUFBA, 2009. p.94-95.
67

Em termos de ampliação do asilo, foram inauguradas novas dependências nos


pavilhões Charcot113 e Victor Soares. O primeiro era composto por dois andares e duas
enfermarias, tendo sido finalizadas as obras dois anos depois do seu início. O segundo foi
uma homenagem ao negociante de mesmo nome, doador de “dezenove apólices federais
nominais” no valor de 1:000$000 (Um Conto de Réis) e de alguns bens ao asilo, que
auxiliaram nas reformas deste pavilhão com a aquisição de materiais de construção,
mobiliários e utensílios.114
O projeto da Comissão organizada, em 1906, para a construção do Asilo-Hospital na
região da Boa Vista finalmente se iniciou, não nos moldes descritos por Nina Rodrigues, mas
com a execução incipiente da clínica psiquiátrica. Com a autorização do Estado, o professor
da cadeira de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Bahia pôde escolher um dos edifícios
do asilo, o pavilhão Kraepelin, para o funcionamento do programa descrito como o “melhor
de todos” em comparação aos outros existentes. Como previsto nas bases do regulamento de
1912, o docente da especialidade deveria ser o responsável pelo serviço e tinha autonomia
para “utilizar-se dos doentes para fins didáticos e para prescrever-lhes o tratamento”.115 Já a
colônia, tida como alternativa fundamental para a nova organização da assistência aos
alienados, não foi inaugurada, talvez pela dificuldade financeira do Estado.
Nos relatos de Antônio Moniz de Aragão sobre a instituição, percebemos a ausência
da estrutura básica para o desenvolvimento do trabalho terapêutico. Ao apresentar os
pavilhões, mesmo com fragilidades, ele se sustentou em uma narrativa positiva que
compactuava na crença da psiquiatria como especialidade apta para empreender o tratamento
dos alienados, ao mesmo tempo conferiu a imagem de uma instituição que caminhava em
direção a acompanhar os modelos considerados modernos do período.
Dessa maneira, o seu relato buscava apresentar uma administração com novos
propósitos para a assistência e preocupada em desenvolvê-la sob os preceitos da “ciência
médica”, discurso esse que buscava acompanhar o contexto brasileiro, relacionado ao
desenvolvimento da especialidade. Entretanto, as implementações no asilo na gestão médica

113
O médico Jean-Martin Charcot atuou principalmente nas especialidades de neurologia e de
psiquiatria entre a primeira e a segunda metade do século XIX. Nos seus estudos, defendia que a
histeria era uma doença que alterava o sistema nervoso dos indivíduos, tendo como causas a
degeneração e o fator hereditário. Ver: NUNES, Sílvia Alexim. Histeria e psiquiatria no Brasil da
Primeira República. História, Ciências, Saúde Manguinhos, Rio de Janeiro, v.17, supl.2, dez. 2010,
p.373-389.
114
DE ARAGÃO, Antônio Ferrão Moniz. Mensagem apresentada à Assembleia Geral Legislativa do
Estado da Bahia na 2° Sessão Ordinária da 14° Legislatura pelo Antônio Ferrão Moniz de Aragão,
governador do estado Bahia: Seção de Obras da Revista do Brasil. 1918. p. 70-72.
115
Idem.
68

pouco conseguiram alterara a realidade dos alienados, presente desde a administração da


Santa Casa de Misericórdia.
O agravamento contínuo da situação física da instituição e os recursos minguados do
Estado para a melhoria dos serviços resultaram na precariedade das condições de
sobrevivência dos alienados na Bahia. Contudo, a diferenciação entre serviços e a condução
dada pela psiquiatria a partir de novos métodos categóricos produziram experiências distintas
e diversificadas a depender do perfil e classe pertencente de cada indivíduo.
Mesmo que os psiquiatras baianos tentassem durante as duas primeiras décadas do
século XX implementar métodos para categorizar indivíduos através de novos
direcionamentos, tais experiências indicam que embora todos estivessem passíveis de
desenvolver moléstias mentais, não é possível perder a referência de classe para análise pois
algumas delas eram agravadas ou estavam associadas às precárias condições de vida e de
trabalho. Ou seja, embora a loucura se apresente como uma preocupação das políticas
públicas entre a primeira e a segunda década, o modo de assistir os doentes além de desigual
era cercado por fragilidades tanto na orientação médica de qual método deveria utilizar para
tal, quanto na estrutura asilar necessária para implementar serviços.
Com as teorias ainda em processo de implementação, era comum que médicos baianos
recorressem aos manuais escritos por psiquiatras nacionais e internacionais, mas tal
desconhecimento, aliado ao discurso do saber hegemônico da ciência médica, abriu brechas
para falhas e observações mecânicas sobre os indivíduos, traçando assim diagnósticos
controversos, influenciados por fatores como a raça, o meio social e a degeneração.
Em meio a esse processo, as ações de alguns alienados demonstram que nem todos
seguiam os padrões disciplinadores e morais determinados pelo saber médico, utilizando
muitas vezes a lei para serem encaminhados ao espaço asilar, como alternativa de fuga da
realidade prisional. Essas singularidades presentes na documentação judicial permitem a
construção da trajetória de três indivíduos que, entre semelhanças e diferenças, nos apontam
para outra perspectiva em relação à história da psiquiatria: a do alienado. As instituições
deixam de ser o foco, na seção a seguir, e se tornam cenários de convivência dos personagens.
O espaço se amplia em uma perspectiva macro, onde o quadro central se situa na Salvador
republicana.
69

Parte II
Alienados, trajetórias e estratégias

No início do século XX o alienado passou a receber maior atenção do meio jurídico,


visto que, como foi mencionado na parte anterior, a partir do decreto 1.132 de 1903 foram
organizados novos mecanismos para conter a população acometida pela loucura. Nesse
momento, os médicos tentaram reivindicar para si a responsabilidade pela terapêutica das
doenças mentais e buscaram se legitimar através das teorias desenvolvidas por alienistas
europeus, fundamentação científica que lhes concederam legalmente o direito de administrar
instituições para esse fim no Brasil.
É de se destacar que a loucura possuía múltiplas facetas na sociedade do século XX,
na qual a nosografia tornou-se o trunfo da medicina para a construção de perfis de maior risco
para o desenvolvimento da doença. Assim, apesar de utilizar o aparato do asilo a seu favor, o
alienismo não se restringiu apenas à reclusão, mas se expandiu e se projetou em outros
âmbitos da vida humana como as fábricas, as ruas da cidade e ao ambiente familiar.
A loucura ganhou extensões cuja experiência dos indivíduos não pode ser ignorada.
Embora a maioria dos alienados vivesse em algum momento o isolamento nas instituições de
reclusão, a objetividade das suas ações ganha proporções extramuros. Deve-se considerar o
que determinados sujeitos representam para a realidade a sua volta e como agiram diante das
condições estabelecidas pois, apesar de figurarem a subversão, nem todos se articularam por
meio das revoltas para atingir os objetivos que desejavam.
Os alienados na maioria das vezes exerciam ações silenciosas, tanto no cotidiano
institucional, quanto na complexidade do convívio com outras pessoas tidas como “normais”
na cidade do Salvador. As fugas, as dissimulações, as modificações de postura na vida asilar,
a recusa ou os silêncios ecoados no questionário psiquiátrico podem significar também
estratégias de sujeitos anônimos frente a um sistema disciplinar. Desse modo, os personagens
aqui retratados se articularam de formas diferenciadas e ligadas às suas experiências
individuais.
Contudo, tais ações não surgem como regra e muito menos estão estruturadas em um
esquema organizado, tornando-se na maioria das vezes estritamente individuais. Desse modo,
devemos considerar que alguns alienados formularão estratégias a seu próprio favor enquanto
outros se adaptarão a proposta disciplinar do asilo. Embora isso não signifique que eles sejam
70

passivos no processo histórico.116 Quando recorrermos aos relatos de sujeitos que viveram a
experiência do isolamento, como foi o caso de Lima Barreto no Hospício Nacional dos
Alienados, percebemos perfis e formas variadas de agir diante daquela realidade. O próprio
romancista alegou o seguinte acerca das suas estratégias e dos companheiros de reclusão:

Os outros deliram em redor de mim e, se não choro, é para não me julgarem


totalmente louco. Imagino que essa convicção se enraíze nos médicos e me
faça ficar aqui o resto da vida. Ainda agora, meu irmão veio visitar-me e, nos
primeiros dias, um amigo; mas, dos que me vieram ver, na primeira vez que
estive aqui, nenhum veio. Se me demorar mais tempo, ainda, ficarei
completamente abandonado, sem cigarros, sem roupa minha, e ficarei como
o Gato e o Ferraz, que aqui envelheceram, vivendo aquele a fazer transações
de forma tão cínica, para arranjar cigarros. Troca pão por fumo e furta lápis
dos companheiros, para arranjar moeda para barganhar[...]117

O trecho apresentado sobre a experiência de Lima Barreto nos atrai para duas
considerações. A primeira está ligada ao controle de suas emoções no cotidiano asilar, das
quais seriam compreendidas pelos médicos, equivocadamente, como indícios da ausência da
razão e por consequência poderiam fazê-lo passar cada vez mais tempo naquela realidade. A
outra está ligada ao receio do romancista em tornar-se parecido com os alienados
denominados de Gato e Ferraz, que, para ele, precisavam se articular através de estratégias
deploráveis para conseguir os desejados cigarros. Nesse sentido, alguns dos indivíduos
parecem possuir noção de tempo, espaço e das suas próprias condições, seja na liberdade ou
como internos, o que não os impede de se adaptarem ao contexto a sua volta em uma ação em
prol da sobrevivência.
Nenhum dos personagens que serão retratados deixaram algum relato escrito sobre as
suas experiências na hostilidade dessa sociedade em constante transformação, o que torna a
construção de trajetórias de sujeitos anônimos uma tarefa complexa. Muitas vezes, eles
aparecem nas fontes devido à participação em algum fenômeno que chame atenção na
dinâmica social. Porém, a reconstrução das suas histórias torna-se uma possibilidade a partir

116
Na sua análise sobre o bandido Alberto Nicolat Talocín no manicômio La Castañeda, Molina aponta
para a relevância da análise das respostas dos indivíduos alienados no exame de sanidade mental, pois
essas são fontes autobiográficas que permitem “escutarmos as vozes” destes. Na maioria das vezes, o
alienado apresentava narrativas que de algum modo buscavam estabelecer sentido para a sua loucura.
Em contrapartida, alerta para a necessidade do confronto desses documentos com as produções
médicas do período, pois as próprias respostas dos sujeitos visavam articular linguagens de
convencimento aos peritos em defesa da sanidade. RIOS MOLINA, Andrés. Un mesías, ladrón y
paranoico em el Manicomio La Castañeda. A propósito de la importancia historiográfica de los locos.
Estud. hist. mod. contemp. Mex, Ciudad de México, n. 37, p. 71-96, jun. 2009. p. 75-76.
117
BARRETO, Lima. Diário do Hospício; O cemitério dos vivos. 1° ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2017. p. 78.
71

da análise em suas aparições em manchetes, mesmo que essas os apresentassem narrativas


carregadas de estigmas acerca das suas ações. Um segundo meio são os exames de sanidade
mental na etapa da anamnese que indicam pistas importantes sobre as suas relações
antecedentes. Por fim, através dos processos judiciais quando tais sujeitos eram capturados
pelas autoridades por se envolverem em algum crime.
Logo, as trajetórias dos personagens aqui estudados permitem a compreensão de como
grupos excluídos se articulam em uma dinâmica envolvida por diversos atores sociais, palco
onde as suas ações os logram de coadjuvantes a protagonistas, em uma cena de constantes
reviravoltas, alegrias e tristezas. Sentimentos mistos de diferentes interpretações e vividos por
indivíduos constantemente privados da circulação pelas ruas da cidade do Salvador. Mesmo
que na maioria das vezes ensaiassem as suas últimas cenas antes de desaparecerem nos rastros
presentes nos documentos, eles não deixavam de resistir a seu modo, em prol da
sobrevivência, a partir de experiências individuais e coletivas.

2.1.O despejo do alferes

No dia 25 de agosto de 1913, o jornal Gazeta de Notícias: Sociedade Anonyma publicou


uma manchete anunciando o sucesso da remoção de Aprígio Bacellar Aranha para o Asilo
São João de Deus. O tenente reformado do exército que estava em situação de rua era
conhecido por suas andanças ao lado de sua esposa no Distrito de Nazaré, centro da cidade do
Salvador. Foi encontrado e capturado nas proximidades, especificamente na Ladeira da Fonte
das Pedras, a partir de uma ação organizada dias antes e evidente no contato entre o Major
Cosme de Farias e o general Sotero de Menezes, inspetor da 7° região militar, sob o
argumento deste se encontrar “louco e ao abandono”.118
No dia da captura de Aprígio estavam a postos repórteres e autoridades policiais, que
auxiliariam caso houvesse resistência. A ação que deveria ser discreta se tornou um grande
espetáculo, formado pela multidão de espectadores curiosos que se organizaram aos arredores
para assistir a captura do alferes. Segundo o periódico, eles interagiam “aplaudindo a
resolução” como modo de parabenizar o major pela remoção do casal. A mulher, “uma pobre
sexagenária” sem parentes no estado, foi encaminhada ao Asilo de Mendicidade, enquanto
Aprígio foi para Asilo São João de Deus, local específico para o tratamento de alienados.

“O tenente Aprígio Aranha vae ser recolhido ao Hospício S. João de Deus”, Gazeta de Notícias:
118

Sociedade Anonyma, 21.08.1913, p.2.


72

Guiados no “carro de polícia”, tiveram as “cinco malas” que possuíam, confiscadas pela
Secretaria de Polícia.119
Durante a notícia, é possível identificarmos diversos elementos do discurso de
interdição ao alienado, bem como o modo como eles são apresentados nos periódicos. Como
nos romances policiais de finais do século XIX, o Gazeta de Notícias buscou construir perfis
para os personagens envolvidos de modo a atrair o leitor para o momento da ação. Através do
discurso, convida-os a apreciar duas figuras opostas: a do Aprígio antagonista, indivíduo
alienado e agressivo que estava em total abandono no Distrito de Nazaré, e o da autoridade
policial protagonista, representante da lei e sob a ideia de manutenção da ordem social.
Na disputa pela hegemonia do consumo da notícia, os repórteres se articularam através
da narrativa no intuito de uma comunicação mais fluida direcionada ao grande público. Em se
tratando de periódicos que circulavam na Bahia da Primeira República e da heterogeneidade
dos leitores, essa pareceu ser uma estratégia fundamental para direcionar a informação ao
leitor, no qual poderia conter improvisações que também lhes permitiam apresentar o
acontecimento sob a sua perspectiva. 120
Assim, os aplausos da multidão em função da resolução do Major Cosme de Farias
sugerem a satisfação no cumprimento de medidas em que parte dos envolvidos seria
supostamente favorecida. Tal contrato social poderá conter múltiplas perspectivas. Talvez
para o Gazeta de Notícias, que ia em defesa da modernização, era a possibilidade de transitar
pelas ruas sem a indesejada ameaça do sujeito desajustado. Para as autoridades policiais, a
concepção dessa não ser mais sua função e sim da psiquiatria. 121 Contudo, na perspectiva dos
sequestrados talvez essa não fosse uma medida que os favoreciam, visto que além da
liberdade subtraída, experimentaram provavelmente as péssimas condições de vida das
instituições de reclusão na Bahia daquele período.
Tomar conhecimento sobre a loucura de Aprígio e os motivos da sua interdição é
tarefa complexa, devido à escassez de fontes que explicitem o diagnóstico médico. Contudo,
ao retornarmos ao ano anterior, o indivíduo é localizado em uma notícia do dia 14 de
novembro de 1912, intitulada de “inquilino perigoso, não paga nem quer sair”, publicada pelo
119
“O tenente Aranha foi removido da Fonte das Pedras para o Hospício S. João de Deus, sua esposa
foi recolhida ao Asylo de Mendicidade”, Gazeta de Notícias: Sociedade Anonyma, 25.08.1913, p.2.
120
Em sua experiência no jornal The Times, Robert Darnton identificou uma série de práticas comuns
dos repórteres. Uma delas é a construção dos estilos das reportagens que podia variar de acordo com o
“tempo, o lugar e o caráter de cada jornal”. Tais práticas se adaptam à realidade de cada contexto e são
provenientes de relações complexas nas salas de redação, locais onde eram articuladas as melhores
narrativas para a produção da notícia antes de veiculada ao público. Ver: DARNTON, Robert. O beijo
de Lamourette. Tradução Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 54-57.
121
FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2003.
73

jornal Gazeta de Notícias: Sociedade Anonyma. Ela auxilia na reconstrução de parte da


trajetória do indivíduo e aponta indícios para as concepções de alienação mental.
Durante o procedimento, os repórteres acompanharam um despejo na rua do Mineiro,
Distrito de Nazaré, envolvendo os oficiais de justiça Januário Batalha Pinto e Jeronymo Britto
que tentavam desocupar e remover da residência o alferes Aprígio Bacellar Aranha pela “falta
de pagamento dos respectivos aluguéis”. Embora a ordem do Juiz da Vara Cível parecesse
uma simples resolução, para os oficiais a ação não surtiu o efeito esperado, pois em meio a
tensões o indivíduo se recusou a deixar o local mesmo diante da intimação judicial.
Segundo o jornal, além da recusa, o alferes se mostrou agressivo diante da presença
dos oficiais de justiça. O clima se tensionou ainda mais à medida que o diálogo se prolongou,
ao ponto de ocorrerem discussões com “fortes descomposturas e ameaças de morte”, sendo
necessário o auxílio da polícia para que se concluísse o despejo e que os ânimos finalmente se
apaziguassem. No final, o homem cedeu e “deixou a casa, levando seus carregos”.
Tudo parecia sob controle, por isso, os oficiais trancaram o imóvel e se retiraram do
local. Contudo, Aprígio aproveitou o momento da retirada do corpo policial, arrombou as
“portas principais do prédio” e “voltou com os seus carregos”. A partir da decisão do retorno,
o tenente reformado se voltou contra a ordem e se tornou uma espécie de subversor. Mas a
justiça era implacável e o próprio jornal alertou para a expulsão do indivíduo ao final da
notícia, afirmando que “o juiz da vara cível” iria agir “no sentido de fazê-lo sair dali, para
sempre”122.
A desobediência de Aprígio representa a capacidade de agência de determinados
indivíduos nesta sociedade, sejam a partir de escolhas pré-formuladas ou não. Três ações
especificas nos saltam aos olhos, por terem sido realizadas quando anunciado o despejo.
Seriam elas: a recusa para se retirar da residência; a discussão com os oficiais e por último o
retorno à residência após a saída das autoridades. Elas podem ser consideradas como reações
diante dos impactos que a perda do local de moradia poderia causar na vida de uma pessoa.
No entanto, a terceira ação parece ter sido pensada e organizada, ocorrida quando
Aprígio percebeu o momento mais adequado para retomar o que considerava ser de sua posse.
Sendo assim, o indivíduo buscou estratégias para o retorno à residência, sobretudo pelo medo
de morar na rua e mesmo que fosse necessário ser contrário à ação judicial.
Para compreendermos como se deu toda a situação envolvendo Aprígio e o que o
levou a viver na rua, precisamos retornar a meses anteriores, quando o farmacêutico

122
"Inquilino perigoso, não paga nem quer sahir, desrespeita mandado do juiz e volta para casa",
Gazeta de Notícias: Sociedade Anonyma, 14.11.1912. p.2.
74

Leopoldino Antônio de Freitas Pantú, tutor do menor Mario da Cunha Vasconcelos, entrou
com uma ação contra as irregularidades do pagamento do aluguel. O ofício, datado do dia 14
de maio de 1912, alegava que o alferes “há alguns meses” teria “se recusado ao pagamento
dos aluguéis”123. Nesse sentido, tudo indica que o cenário de tensão ocasionou conflitos
anteriores entre ambos. Diante da situação insustentável, o aparato jurídico se tornou o meio
mais eficaz de resolução.
Não há informação que possa indicar os motivos das irregularidades, mas talvez o
alferes se encaixe no perfil social de escassez de recursos financeiros, durante segunda década
do século XX. Atingidos pela crise de abastecimento, os segmentos populares soteropolitanos
precisavam sobreviver em uma realidade de altos preços nos gêneros básicos e no poder
aquisitivo reduzido. Segundo Mario Augusto da Silva Santos, em 1913 o Conselho Municipal
interveio, reduzindo provisoriamente preços e impostos relacionados a alguns gêneros.
Contudo, essa medida era pouco comum por parte do Município, pois defendiam a liberdade
do comércio assim como profissionais liberais e comerciantes. 124
Nesse sentido, o setor imobiliário era um grande aliado de determinados grupos
sociais que lucravam através da especulação e da cobrança de aluguéis. A prática era comum,
sobretudo nos distritos residenciais como o do centro da capital baiana e consistia na alocação
do maior número de inquilinos em quartos dos imóveis sem a devida preocupação com a
superlotação, tampouco com a salubridade e segurança. Somava-se a esses problemas a
constante instabilidade relacionada ao aumento do valor dos aluguéis, fator que dificultava as
condições de vida da classe trabalhadora.125
Tal realidade parece não ter sido exclusiva da Bahia, visto que o final do século XIX
foi marcado por intensa fiscalização do governo frente às condições sanitárias dos prédios e à
preocupação com moradias populares. No Rio de Janeiro, as autoridades organizaram
variadas medidas para o combate às habitações coletivas em que eram exigidos reparos nas
estruturas consideradas insalubres para os higienistas. A preocupação da administração

123
APEB, Processo Cível. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Ação de despejo, Seção: Judiciária.
Estante 74, Caixa: 2649, p.2.
124
Para saber sobre o aumento dos preços do gênero e sobre as políticas de abastecimento na cidade do
Salvador na Primeira República, ver: SANTOS, Mario Augusto da Silva Santos. A República do
Povo: Sobrevivência e tensão, Salvador (1890-1930). Salvador: EDUFBA, 2001. p. 86-95.
125
LEITE, Rinaldo César Nascimento. E a Bahia Civiliza-se: Ideais de civilização e cenas de anti-
civilidade em um contexto de modernização urbana, Salvador (1912-1916). Salvador: UFBA, 1996. p.
31-32.
75

pública se tornava direcionada às moradias dos pobres, tidas como foco de epidemias e abrigo
para os “degenerados”.126
Devido à burocracia jurídica, o processo se estendeu por aproximadamente seis meses.
Nesse meio tempo, ocorreu uma audiência pública na qual Aprígio não compareceu,
Leopoldino também precisou aguardar a autorização da Vara de Órfãos, visto que estava
exercendo o papel de tutoria a um menor proprietário legal da residência, cuja relevância
quase não é dada ao longo do processo. Dentre os documentos solicitados pelo órgão que
atrasaram o processo, estava a regularização da propriedade em relação ao pagamento Décima
Urbana127, espécie de imposto predial instituído desde o período colonial em todas as cidades
do país. O recibo anexado ao processo comprovava o pagamento do valor total de 40$000 ao
Tesouro Municipal. 128
Após os procedimentos burocráticos, em 5 de junho de 1912 o juiz da vara cível,
Juvenal Alves da Silva, aprovou a ação de despejo. Segundo o mandado judicial, o alferes
deveria “imediatamente evacuar a casa dita a Rua do Mineiro, Distrito de Nazareth, por ele
ocupada”. Caso não estivesse presente ou não quisesse se retirar, a ordem era que os oficiais o
despejassem, sob a “pena de ser tudo posto na rua”.129 Com a imediata definição, os oficiais
compareceram três dias depois ao local e então se iniciou uma espécie de odisseia para o
despejo de Aprígio.
Ao traçarmos parte da trajetória de Aprígio, com o auxílio do Processo Cível,
percebemos que a tensão entre o indivíduo e as autoridades não se iniciou por acaso, pois nos
meses anteriores já haviam ocorrido outros episódios envolvendo a tentativa de intimá-lo
sobre o despejo. Foram necessárias quatro tentativas em cinco meses para que o indivíduo
saísse do local. Na primeira, ocorrida no início de junho de 1912, ele ignorou a intimação que
previa a solicitação da sua retirada imediata junto aos seus pertences. 130
No início do mês de novembro, foi anexado ao processo o auto de resistência. Nele, os
oficiais alegavam que o inquilino Aprígio Bacellar Aranha teria “se oposto” ao despejo na

126
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: Cortiços e epidemias na corte imperial. 2° ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017. p. 33-37.
127
Para compreender como os impostos, incluindo a Décima Urbana, podem auxiliar na reconstrução
da história, ver: BUENO, B. P. S.; ARRAES, E. A.; MOURA, N. M. de; BORSOI, D. F. Décimas
urbanas e censos: a dimensão material e visual de vilas e cidades em fontes textuais. URBANA:
Revista Eletrônica do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade, Campinas, SP, v. 10, n.
1, p. 4–53, 2018.
128
APEB, Processo Cível. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Ação de despejo, Seção: Judiciária.
Estante 74, Caixa: 2649, p.4.
129
APEB, Processo Cível. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Ação de despejo, Seção: Judiciária.
Estante 74, Caixa: 2649, p. 11.
130
Idem.
76

segunda tentativa. Nesse momento, ele teria declarado que “de forma alguma consentia que se
efetuasse o despejo” pois era “oficial do exército reformado”. Assim, o seu serviço à nação
poderia significar um modo de afugentar as autoridades. A estratégia surtiu efeito, ao menos
momentaneamente, pois eles se retiraram do local e se dirigiram para a Secretária de Polícia a
fim de colher mais informações sobre o indivíduo e solicitar apoio ao então Chefe de Polícia.
Lá constataram que ele era de fato “Oficial pensionista do Exército”.131
Pouco se sabe sobre quando o personagem ingressou no exército, embora tenhamos
localizado no periódico Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro um homem de mesmo nome,
sobrenome, com a patente de alferes e que atuava no 4° regimento de Cavalaria. Foi
promovido à tenente “por antiguidade” em setembro de 1894132 e quatro anos depois, no mês
de janeiro, “reformado”.133 Seria esse o mesmo indivíduo despejado quatorze anos depois na
cidade do Salvador?
Ao pensarmos na organização das Forças Armadas e como ela se transformou na
transição do Império para a República, percebemos um aumento na transferência de oficiais
para estados como o Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Segundo José Murilo de
Carvalho, a Bahia foi um dos estados que reduziu o seu contingente em função do
fornecimento de tropas para o então Distrito Federal, pois diferentemente dos tempos de
Império, quando a organização estava atrelada à defesa das fronteiras e de regiões costeiras,
no período republicano as forças militares eram destinadas a regiões onde havia maior
concentração de poder político, medida preventiva que reduzia as possibilidades de levantes
contra o governo.134Portanto, o alferes pode ter vivido até finais do século XIX na cidade do
Rio de Janeiro, onde provavelmente residia por causa do serviço nas Forças Armadas. Após
ser reformado, mudou-se para Salvador, quando ocorreram os episódios relacionados ao
despejo.
A terceira tentativa das autoridades ocorreu no dia 12 de novembro de 1912e
representa o mesmo descrito na manchete “inquilino perigoso”, publicada pelo jornal Gazeta
de Notícias: Sociedade Anonyma. Ao analisarmos a matéria, percebemos que ela surgiu com o
intuito de alertar ao poder público para um problema de cunho social, e também sugere que
este periódico parecia estarem comum acordo com o ideário do período, visto o papel que se

131
APEB, Processo Cível. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Ação de despejo, Seção: Judiciária.
Estante 74, Caixa: 2649, p. 12.
132
“Notícias Oficiais, Ministério da Justiça”, Gazeta de Notícias, 08.09.1894. p.1.
133
GAZETA de Notícias, 16.01.1898. p. 1.
134
CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar ed., 2006. p. 32-34.
77

atribuiu em denunciar o delito enquanto estabelecia diretrizes de como a população deveria


agir para a manutenção da ordem. Nesse caso, o seu público-alvo era heterogêneo, pois a
notícia não se destina a exclusiva atenção das autoridades, mas também aos consumidores
diários do jornal com objetivo pedagógico e informativo, afinal, além de apresentar aspectos
sobre o ocorrido, o seu enfoque se direcionou à invasão do alferes e à convocação da justiça
para removê-lo da residência.
Nesse sentido, os periódicos não eram neutros, eles tinham vinculações partidárias e
buscavam influenciar as esferas da sociedade, principalmente quando se tratava da prática
política. Segundo Christiane Maria Cruz de Souza, alguns periódicos baianos muitas vezes
possuíam posição estabelecida e eram palco de confrontos, ao passo que manifestavam
abertamente o apoio a determinadas facções ou agiam enquanto oposição. Nesses casos, eles
se aproveitavam das crises econômicas ou epidêmicas para desacreditar os feitos do governo
em curso. Tal movimento era comum em jornais de ampla circulação no período, pois
indicava que a “imparcialidade denotava indiferença, falta de iniciativa e de atividade”. 135
Assim, o jornal adquiriu um caráter dicotômico nessa sociedade, pois participava das relações
sociais através da difusão dos principais acontecimentos diários da cidade e atribuía juízo de
valor sobre determinados fenômenos, utilizando a narrativa pedagógica para influenciar o seu
meio e auxiliar no caminhar do “progresso”.
No dia do acontecimento publicado no jornal, os oficiais de justiça registraram o
sucesso na remoção do indivíduo e “todos os objetos de dentro da referida casa”, sob o auxílio
dos policiais da Primeira Circunscrição. Sem mais ninguém presente, conferiram toda a
residência para se certificarem que estava vazia, trocaram a fechadura, trancaram “todas as
portas e janelas” e se retiraram para entregar a chave ao advogado de Leopoldino. 136
Talvez as autoridades e o próprio Leopoldino não contassem com o arrombamento
seguido do retorno do indivíduo ao prédio. É possível, ainda, que o tutor tenha recorrido aos
editores do Gazeta de Notícias, visando atrair a atenção dos populares para a situação ocorrida
e como um modo de solicitar medidas mais enérgicas das autoridades, pois após a invasão, ele
demonstrou preocupação em um ofício endereçado ao juiz da vara cível, no mesmo dia em
que a notícia foi publicada.
A narrativa do jornal muito se assemelhou à revolta do farmacêutico no ofício,
alegando que o inquilino em “desobediência às leis do país, arrombou a porta da casa” a
135
SOUZA, Christiane Maria Cruz de. A gripe espanhola na Bahia: saúde, política e medicina em
tempos de epidemia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; Salvador: Edufba, 2009. p. 98.
136
APEB, Processo Cível. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Ação de despejo, Seção: Judiciária.
Estante 74, Caixa: 2649, p. 13-14.
78

pedradas, “após o despejo referido” e não só a invadiu, mas pôs “todos os seus moveis” de
volta ao local. Ao optar por essa ação, Aprígio, se transformou oficialmente em um desertor
da ordem e tamanha desobediência foi descrita por Leopoldino como “fato único na história
judiciária desta terra”, surpresa essa acompanhada do receio pela não resolução do caso. Para
ele, Aprígio apresentava “atitude ameaçadora”, motivo pelo qual requeria novamente apoio
dos policiais, dessa vez, com a “permanência da força na dita casa por alguns dias”. 137
A figura policial, portanto, representou uma espécie de autoridade inabalável, em que
apenas a sua presença resolveria os problemas dos quais lhes diziam respeito, como a
segurança pública e o bem-estar social. O simbolismo acerca da polícia estava sustentado em
outros aparatos que remetiam à ideia de justiça, como a legislação, cujas “regras” possuíam
instituições indicadas para o seu mantimento. Contudo, como sugeriu Fátima Saionara
Leandro Brito, tais concepções se amparavam não somente no seu poderio natural, mas na
atuação dos jornais que nas matérias tinham o papel de “mostrar o fortalecimento das
instituições jurídicas e tornar visíveis as novas ordenações instituídas para a sociedade”. 138
Não teria sido à toa que ambos se apoiaram. Foi construída a ideia do sujeito
ameaçador e o procedimento surtiu efeito na quarta e última tentativa de remoção do
indivíduo da residência, quando o aparato policial prestou auxílio no despejo. Durante a saída
forçada, os pertences do alferes foram colocados na “rua em lugar muito distante”. Em
seguida, os oficiais pregaram as janelas frontais e traseiras do prédio para evitar outra invasão.
É nesta fase do auto que há pela primeira vez a informação de que Aprígio era casado e que
sua esposa também não queria sair “de forma alguma”. A resistência de ambos possivelmente
se enfraqueceu diante das próprias circunstâncias do momento, ao passo que teria sido
designado um praça para vigiar a propriedade, contendo gradualmente a reação do casal e
fazendo-os ceder definitivamente no dia 21 de novembro de 1912.139
O caso foi encerrado e arquivado, visto a inexistência de arrombamentos ou outras
tentativas de invasões por parte do alferes. Tudo indicava que ele parecia ter aceitado as
condições da justiça, talvez por saber da sua desvantagem numérica e não ter a quem recorrer
para retomar a propriedade.

137
APEB, Processo Cível. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Ação de despejo, Seção: Judiciária.
Estante 74, Caixa: 2649, p. 17.
138
BRITO, Fátima Saionara Leandro. Vidas errantes entre a loucura e a criminalidade: uma história
da emergência do Manicômio Judiciário no estado da Paraíba. Belo Horizonte: UFMG, 2016.p. 115.
139
APEB, Processo Cível. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Ação de despejo, Seção: Judiciária.
Estante 74, Caixa: 2649, p. 15-16.
79

De reação incomum aos padrões de convivência enaltecidos pelas classes dominantes,


a invasão da propriedade representou também espécie de desafio à ordem social, mesmo as
que viessem das mais altas esferas do poder local. Embora houvesse indefinição sobre o
diagnóstico em relação ao alferes, antes da sua chegada ao asilo, as autoridades e a população
pareciam entender a possibilidade do transtorno mental, porém, tal definição está atrelada às
atitudes incomuns e a situação de rua. Assim, o jornal contribuiu como formador de opinião
em relação a sua personalidade, o enquadrando a seu modo em concepções relacionadas aos
padrões de sociabilidade tidos como comuns. Por não se encaixar em tais definições e se
constituir como ameaça ao “progresso”, a figura do alferes transitou de veterano militar para
“inquilino perigoso”.
É extensa a lista de sujeitos interditados de maneira semelhante a Aprígio, o que
simboliza certa preocupação com os diversos “tipos” sociais em circulação pelas ruas. Eram
eles, mendigos, criminosos, vadios, degenerados, alcoólatras etc. Cada um com suas próprias
experiências de vida, mas na maioria das vezes apresentados de maneira estigmatizada nos
periódicos ou nos registros do Asilo São João de Deus ao serem relatados os motivos que os
levaram à interdição.
Alguns podiam ser apresentados através de histórias trágicas nas ruas, sempre sobre o
envolvimento em alguma desordem, motivo no qual eram geralmente capturados. É o caso de
um desses indivíduos, denominado de João Francisco, mas apelidado pela população
residente dos arredores do Largo de São Bento pelo vulgo de “bigodinho”. Segundo o jornal A
Notícia, o homem tinha a “mania de querer fazer parar a muque, bondes e automóveis”140, o
que o levou a ser autuado e encaminhado para a prisão em novembro de 1914. Embora
existisse a possibilidade de ser um caso de alienação, a burocracia presente no processo de
ingresso no asilo possivelmente impediu que ele fosse encaminhado imediatamente à
instituição, sendo transferido apenas em janeiro de 1915141, três meses após a sua prisão e
mediante a solicitação de transferência do major Cosme de Farias ao Secretário de Estado,
Arlindo Fragoso.
Os alienados em situação de rua eram velhos conhecidos da população e chegaram a
receber oportunidades de emprego e até apelidos nos distritos onde circulavam, o que indica a
tentativa de inserção desses indivíduos na dinâmica social. Alguns, inclusive, tentaram se
adaptar às condições de trabalho, sendo muitas vezes auxiliados pelos moradores, mas eram
140
‘’BIGODINHO’’ escapou de morrer... O São João de Deus o espera. A Notícia, Bahia, 04 nov.
1914. Várias Notícias, p.2.
141
APEB, Seção: republicano, ofícios expedidos pelo diretor do hospital 1914-1921. Requisição para o
ingresso de João Francisco. Caixa: 3189. 2° secção, n° 12.
80

em sua maioria impedidos pela captura e direcionamento a instituições de reclusão ou por


fatalidades.
O periódico A Notícia nos apresenta um sujeito que se encaixa neste perfil, mas que ao
contrário de bigodinho e Aprígio, teve a vida interrompida por um acontecimento trágico. O
homem denominado Júlio José Baptista tinha 24 anos, apelidado de “Cebola”, se transformou
em notícia ao se envolver no acidente que culminaria na sua morte no dia 03 de novembro de
1914. Sob a classificação de louco “inofensivo”, circulava pelos arredores da Praça dos
Veteranos. A alcunha parece ter sido dada carinhosamente por pessoas que o observavam na
região.
O anúncio da sua morte foi noticiado sob uma tonalidade de surpresa, pois
primeiramente Cebola era visto como inofensivo, ao contrário dos personagens citados até
aqui. Apesar de incomodar os transeuntes, o transtorno parecia nocivo somente a ele, pois
passava “os dias a fazer caretas, a assobiar músicas vagabundas, sempre desarticulando os
quadris”. Mesmo sendo considerado louco, exercia ofícios na região servindo “numa casa de
família” e talvez por isso as concepções da vizinhança sobre sua circulação se modificaram.
Prestes a ser recolhido ao Asilo São João de Deus, um grave acidente o levaria à morte. Em
uma das suas andanças comuns, não percebeu a chegada do automóvel de n° 105 pertencente
ao Sr. Armando Souza que vinha em “grande velocidade” na via e foi atingido, caindo quase
morto ao chão. O Chofer, Ernesto Guimarães, evadiu em direção a garagem da casa do patrão
e deixou Cebola à espera da emergência que o conduziu para o hospital Santa Izabel, mas ele
não resistiu aos ferimentos e faleceu.142
Mesmo divulgado o nome do chofer e proprietário do veículo, não foram localizadas
maiores notícias ou qualquer processo judicial relacionado aos envolvidos. É possível que
tenham atribuído o acidente à falta de atenção de Cebola, questão que pode ter influenciado
na inocência do condutor. Apesar de apontar para o problema da alta velocidade, o tipo de
narrativa buscava justificativas para o ocorrido, a primeira consiste na atribuição de parcela da
culpa ao indivíduo, visto que além de incomodar as pessoas, andava pelas ruas “descuidado”.
Como podia tal doente circular normalmente sem a assistência necessária? A notícia sugere
ainda que nem mesmo o cumprimento das práticas de trabalho o faria recuperar a razão, por
isso o encaminhamento para o asilo estava programado.

“O popular Cebola "esmagado" pelo carro 105”. A Notícia: Nosso programma, nossa rota, nosso
142

escopo. 03.11.1914. p.1.


81

Outra coluna do Gazeta de Notícias, intitulada de “louco que incomoda”, atrai a nossa
atenção para a ideia de sujeito indesejado. Se tratava de Felippe, sem sobrenome e idade
revelada. Era conhecido por circular como indigente pela região do Bonfim, local que o
periódico dizia ser comum que fosse avistado “a insultar e agredir os transeuntes”.
Nesse dia, Felippe invadiu a casa de D. Constança Cajado, uma viúva moradora da
região da Baixa do Bonfim ao lado das suas quatro filhas, por volta das sete horas da noite,
pois dizia querer passar a noite na propriedade. O subdelegado da Penha o capturou, mas o
autuou somente por algumas horas. Às duas horas da manhã, quando foi liberado, retornou à
mesma residência “armado de pedras” e “exigindo abrigo”. A gritaria foi tamanha que os
vizinhos acordaram e um deles, Joaquim Roque Mamede dos Santos, prestou auxílio retirando
a mulher do local e abrigando-a em sua casa. O alienado, por sua vez, lá permaneceu e pela
manhã podia ser visto circulando novamente nas ruas, motivo pelo qual o jornal reivindicou a
resolução do problema com a frase: “Aqui ficam estas linhas dignas de atenção por parte de
quem competir”.143
O protesto provavelmente se direcionou às autoridades responsáveis pela assistência
aos alienados, primeiramente o Estado, que àquele momento administrava o asilo, e depois os
médicos, profissionais detentores do saber acadêmico acerca da terapêutica da loucura. Como
podemos ver, a responsabilidade sobre os alienados muitas vezes se confundiu entre as
autoridades policiais e médicas à medida que as primeiras nada podiam fazer para manter o
indivíduo encarcerado. A polícia tinha um claro papel de auxílio na remoção dos alienados e
criminosos das ruas, contudo, a loucura e a terapêutica relacionada a estes eram de
responsabilidade da psiquiatria. Conforme mencionado na primeira parte desta dissertação, o
artigo 10 da Lei de Assistência aos Alienados de 1903, previa a proibição de manter alienados
“em cadeias públicas ou entre criminosos”144. Talvez por esse motivo Felippe não pôde ser
detido por mais tempo, não havendo alternativas para a polícia exceto liberá-lo. A libertação
culminou no seu retorno ao local, seguido novamente da invasão a propriedade.
A possível sensação de impotência dos poderes do subdelegado naquele momento
estava associada sobretudo ao saber sobre a doença e a inadequação estrutural da delegacia da
Penha para a manutenção do indivíduo no local por mais tempo. Em comparação com um
complexo prisional, a sua capacidade era reduzida e não há como saber se tinham outros
presos ali encarcerados, algo comum se lembrarmos das condições desfavoráveis de vida nas

“Louco que incommoda”. Gazeta de Notícias: Sociedade Anonyma. 10.05.1913, p.2.


143
144
BRASIL, Decreto Nº 1.132, de 22 de dezembro de 1903. Reorganiza a Assistência a Alienados.
Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto-1132-22-dezembro-
1903-585004-publicacaooriginal-107902-pl.html.
82

prisões latino-americanas, visto a superlotação e a precariedade deste tipo de instituição.145Em


se tratando da Bahia, tal fragilidade das cadeias no interior e na capital é anterior ao período
aqui estudado, visto que Claudia Trindade apontou para os problemas da infraestrutura das
cadeias provinciais na segunda metade do século XIX, cujas condições inadequadas de
higiene e segurança levaram as autoridades a recorrer para a transferência de presos à cidade
de Salvador.146
A despeito das suas particularidades, as experiências dos indivíduos citados se
assemelham, pois todos foram definidos como indesejáveis e alvos do empenho, enérgico ou
não, das autoridades em suas capturas. Torna-se inevitável a associação, visto que os médicos
brasileiros determinaram perfis predispostos ao desenvolvimento da loucura. Através dos
estudos de Raimundo Nina Rodrigues, a antropologia criminal muito dialogou com a
psiquiatria quanto às medidas em relação ao transtorno mental no Brasil. O médico
maranhense modificou, inclusive, a área do conhecimento que investigava as características
fisiológicas dos seres humanos sob o auxílio de teóricos italianos, e passou a estudar o
espírito, associando observações psicológicas a concepções sociais e raciais nas perícias.
Mariza Corrêa apontou para as diferenças estabelecidas nos critérios de avaliação do médico,
em que as ações infratoras dos brancos às normas sociais eram relativizadas em comparação a
dos negros, mesmo quando semelhantes.147
Por mais que os “tipos” criados variassem de acordo com as particularidades de cada
indivíduo, as suas experiências eram compatíveis, pois os critérios dos psiquiatras na
construção do diagnóstico atravessam a questão social. Nos questionários de internação do
Asilo São João de Deus, os itens 7 e 8 levam a uma maior compreensão sobre as doenças
associadas aos segmentos populares. Por exemplo, o sujeito denominado Felippe Teixeira de
Carvalho, tinha “32 anos”, cor “parda”, morador da “Fazenda Engenho Velho” e sem
profissão definida. Quando questionada “qual é a condição social, os meios de vida, as
preocupações e os revezes de fortuna?”, a resposta obtida foi “baixa condição social, sua
ocupação regular”, a sua pobreza estava, portanto, ligada ao motivo do seu internamento que
era a “embriaguez habitual”, tida como “base de sua psicose”. 148

145
AGUIRRE, Carlos. Cárcere e Sociedade na América Latina, 1800-1940. In: NUNES, Clarissa. et.
al (org.). História das Prisões no Brasil volume I. 1° ed. Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2017. p. 60-61.
146
TRINDADE, Claudia Moraes. Ser preso na Bahia no século XIX. UFBA: Salvador, 2012. p. 74-
76.
147
CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. 2°
ed. Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco. 2001.p. 112-113.
148
APEB, Seção: republicano. Ofícios expedidos pelo diretor do hospital Juliano Moreira 1914-1921.
Questionário de internação do paciente Felippe Teixeira de Carvalho. Caixa: 3189
83

O alcoolismo foi uma das preocupações dos psiquiatras nas primeiras décadas do XX,
pois enquanto doença social, conceito desenvolvido e difundido na Europa em meados do
século XIX, estava inserido no modo de vida capitalista, em que a produção era sinônimo de
progresso. Considerada mazela social, o vício se caracterizava primeiramente como de cunho
moral, cuja degradação atingia não somente o indivíduo habituado ao consumo de bebidas
alcoólicas, mas todo o seu círculo social e familiar, além de impactar diretamente na
produção.149 Lima Barreto é um exemplo de sujeito interditado devido ao alcoolismo, tendo
impactado a vida de todos os familiares, o que o fez experimentar o tratamento no Hospital
Nacional dos Alienados, relatado na obra Cemitério dos Vivos.
Dois episódios específicos assemelham a experiência do escritor aos dos sujeitos
mencionados, principalmente no que consistiu o cenário de abandono e os transtornos
ocasionados pela doença. Na mescla entre trechos citados em Cemitério dos Vivos e o relato
de Carlindo, irmão do romancista, Francisco de Assis Barbosa reconstruiu parte do ocorrido
datado do ano de 1919. Durante a narrativa revelou a agitação do romancista em uma crise,
andando sem rumo pela cidade do Rio de Janeiro. A andança noturna teve fim somente ao
amanhecer, quando finalmente foi encontrado na porta da “venda do “Seu” Ventura”. Ao se
deparar com o irmão, tivera sido encontrado em estado deplorável, com a vestimenta “suja e
rasgada, sapatos imundos”, além de apresentar comportamento fora do comum. 150
Outro episódio vivido por Lima Barreto está relacionado a sua primeira sequestração.
Através da crítica e acidez característica, o romancista comentou sobre a ação policial que
tinha como objetivo sua captura. Com o apoio solicitado pela família e a multidão de
transeuntes presenciando sua entrada no carro-forte, detalha o momento dado como
procedimento comum, principalmente quando os alienados manifestavam “comportamentos
considerados perigosos ou, ainda, por serem considerados indigentes”. Segundo Magali
Engel, em situação parecida a do escritor carioca, existia uma série de pacientes internados no
Hospício Nacional dos Alienados devido ao alcoolismo, número significativo que ocasionava
muitas vezes na superlotação dos hospitais especializados no tratamento a saúde mental. 151

149
Ver: SANTOS, Fernando Sergio Dumas dos; VERANI, Ana Carolina. Alcoolismo e medicina
psiquiátrica no Brasil do início do século XX. Hist. Cienc. Saúde-Manguinhos, v.17, supl.2, Rio de
Janeiro, Dec. 2010. p. 408-409.
150
BARBOSA, Francisco de Assis. A Vida de Lima Barreto: 1881-1922. 11. ed. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2017. p.291.
151
ENGEL, Magali Gouveia. A loucura, o hospício e a psiquiatria em Lima Barreto: críticas e
cumplicidades. IN: CHALHOUB, Sidney. et. al (org.). Artes e ofícios de curar no Brasil: Capítulos
de história social. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003. p. 57-59.
84

É inevitável percebermos semelhanças entre o episódio da captura de Lima Barreto e o


sequestro de Aprígio. A primeira delas consiste no momento da interdição, que segundo o
jornal Gazeta de Notícias, teria gerado o alívio representado pelos aplausos dos populares na
remoção do alferes das ruas, situação não muito diferente do romancista, que também atraiu a
atenção da multidão, embora não haja relatos de manifestações. Outro aspecto é a questão do
veículo utilizado, no qual a polícia, símbolo da ordem, se articulou com os poderes para
auxiliar a uma demanda que já se tinha a noção sobre quem era o responsável.
Representados como problema social, os indivíduos aqui citados certamente não foram
os únicos que sofreram intervenções dos médicos, visto que as doenças mentais estavam
muitas vezes associadas a segmentos sociais específicos. No ano de 1913, o alcoolismo já era
sinônimo de preocupação por parte dos médicos soteropolitanos, tendo sido pauta de em oito
edições seguidas escritas e publicadas pelo diretor do Asilo São João de Deus, Eutychio Leal,
no Gazeta Médica da Bahia. De abril a outubro foram apresentados diferentes casos relativos
a transtornos ocasionados pelo álcool e cada indivíduo possuía sua própria particularidade
quando se tratava dos vícios. Dentre os alienados estudados, um deles tem perfil semelhante
aos personagens anteriormente mencionados. Tratava-se do indivíduo referido pelas iniciais
P. A. S., que tinha 44 anos, era branco, casado, trabalhava como negociante e ingressou no
hospital no dia 9 de agosto de 1910.
No seu exame, é refutada a possibilidade de ter herdado transtornos dos parentes, visto
que eles gozavam de “boa saúde, ignorando qualquer fato relativo a moléstias, crimes ou
vícios”. Na fase da infância, não havia sinais de “perversão dos sentimentos, hábitos
anormais, nem onanismo precoce”, embora aproximadamente aos doze anos tenha iniciado a
vida sexual. Segundo Eutychio Leal, possivelmente P. foi influenciado por companheiros para
que frequentasse “vendas onde ia beber, às vezes tendo feito abundantes libações para ficar
embriagado". Contudo, apesar da bebida, não jogava. Pelo contrário, trabalhava e obtinha a
renda de “oito mil” contos, que estava “depositada em estabelecimentos bancários” sob a
guarda policial. Na publicação, o indivíduo ainda é descrito como “divertido” visto que
“dançava, passeava etc.” como de costume, embora retornasse para casa alcoolizado, o que o
fazia se sentir “alegre e falador”.
Em uma das suas andanças, foi capturado pela polícia e o chefe do distrito achou por
bem encaminhá-lo para o asilo, onde o colocaram em um quarto para observações. A conduta
“anarquista”, motivou a transferência. É importante apontarmos que nesse caso o
85

anarquismo 152 não tem sentido estritamente político, mas ligado a ações do sujeito nos
ambientes que circulava, ou seja, estava relacionada à subversão da ordem a partir dos
comportamentos desviantes.
No prosseguir do diagnóstico as atitudes sugeridas como incomuns se associavam às
suspeitas do indivíduo aos profissionais do asilo e ao tratamento. P. declarou inúmeras vezes a
Eutychio Leal a sua oposição ao trabalho dos médicos, por considerar primeiramente “injusta
a sequestração” e depois por deduzir que quanto mais tempo se mantinha em internamento,
mais o procuravam “fazê-lo perder a razão”. Assim, responsabilizou a suposta loucura à
reclusão na instituição e enxergava os psiquiatras como os seus “algozes”, protagonizando
desse modo uma série de revoltas e chegando a agredir um profissional “dando-lhe uma
bofetada”. Embora tenha sido construída a imagem do sujeito irritadiço com tal episódio,
acabou por ser caracterizado pelo diretor como um alienado de “relativa normalidade em seus
atos”, contudo, marcado pelo “mutismo”, por ter se reservado por muito tempo desde os
primeiros dias no internamento e porque dificilmente falava “espontaneamente”, somente
“quando solicitado”.153
Talvez o silêncio se caracterizasse como uma estratégia do indivíduo, alternativa
eficiente contra as investidas do tratamento médico. Nesse sentido, ações abruptas como
revoltas ou agressões a funcionários tornavam-se raras e na maioria das vezes impulsivas, isso
porque o ambiente se pautava na ideia da disciplina e para o seu funcionamento havia a
necessidade da associação da autoridade ao médico. Tais características são bem retratadas
por Michel Foucault quando afirmou a natureza da ordem institucional e citou determinado
episódio relatado na obra de Samuel Tuke em um asilo inglês no século XIX. Nesta ocasião,
um sujeito classificado como maníaco tentou atingir outro companheiro com uma pedra, mas
foi imediatamente impedido a partir do tom de voz “resoluto” do intendente, que caminhava

152
A anarquia passou a ser considerada um problema emergencial para as nações mundiais após a
Conferência Internacional pela Defesa Social contra os Anarquistas, em novembro 1898. Nesse
período, se tornou também sinônimo de crime e desordem através das ideias de cientistas como
Emmanuel Régis, que buscou enquadrá-los na posição de degenerados. Como bem aponta Avelino, no
Brasil Rui Barbosa definiu os atos anarquistas como “monstruosidade”, sugerindo assim a
hospitalização dos que seguiam e agiam em torno desta ideologia. Ver: AVELINO, Nildo. Le
criminelfin-de-siècle: psiquiatrização da anarquia no século XIX. AURORA: Revista de arte, mídia e
política (NEAMP), Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais, PUC-SP, SP, n.7, p.
126-143, 2010. DOI: 10.23925/1982-6672. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/index.php/aurora/article/view/3909. Acesso em: 28 de junho de 2021.
153
GAZETA Médica da Bahia Vol. XLIVI, n° 1, julho de 1913. p.4.
86

no jardim e presenciou a cena. Ele recuou na ação e gradualmente soltou o objeto, validando a
autoridade do funcionário na instituição.154
Embora o silêncio de P. pudesse se caracterizar como uma forma de resistência, para
os médicos ele se configurou como um sintoma, enquanto a desconfiança, seguida das reações
impulsivas, foi interligada à ideia de paranoia em decorrência do abuso no consumo de álcool
na vida pré-reclusão.
Por mais que os indivíduos se sustentassem em estratégias como o silêncio, essa
sugere mais uma alternativa momentânea para dificultar o diagnóstico do médico, se livrar de
castigos ou evitar o prolongamento do internamento, o que não exclui a possibilidade dele ter
apresentado algum transtorno mental. Desse modo, apesar de ter noção do tempo e espaço, é
preciso compreendermos primeiramente os motivos que levaram a ser considerado louco. O
primeiro ponto que atraiu a atenção do diretor foi o uso deliberado de bebidas alcoólicas ainda
na fase da infância, visto que P. começou a frequentar tavernas entre os dez e doze anos de
idade, hábito que se desenvolveria na vida adulta quando se tornou negociante e esteve
constantemente ao lado dos marinheiros nos “navios ingleses” atracados na cidade. Segundo o
médico, o homem lhe contava as histórias de boemia com prazer e confessava que após a tão
pleiteada alta providenciaria algum dinheiro para gastá-lo “na taverna mais próxima”.155
Para o diretor, P. apresentava sérias alucinações e a mais preocupante era a de
“ouvido”, no qual acredita ouvir a “voz do espírito” que funcionava como espécie de guia, lhe
sugerindo atos “bons e maus”. Na sua concepção, as vozes foram fundamentais para o
desenvolvimento de delírios persecutórios, marcados principalmente pela ideia de que
anarquistas tramavam planos para atentar contra a “sua liberdade” e quem não concordasse
com suas concepções estavam automaticamente compactuando com o lado rival. Por não
acreditarem nas suas palavras, os médicos e outros pacientes se transformaram em inimigos,
motivos que o fizeram garantir que os remédios dados no asilo tinham “fim de estragar sua
mentalidade, de torná-lo verdadeiramente maluco”.156
É possível que P. estivesse em parte certo e que na verdade o isolamento do restante
do mundo piorasse a condições dos alienados, mas a sua concepção pouco importava naquele
ambiente e qualquer reação seria minuciosamente analisada pelos psiquiatras. Outro problema
identificado por Eutychio Leal era o “delírio de grandeza”, afinal, o interno disse possuir “oito
contos de reis” guardados no banco fruto do seu trabalho enquanto negociante. Entretanto, o

154
FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 531.
155
GAZETA Médica da Bahia Vol. XLIVI, n° 1, julho de 1913. p. 5-6.
156
GAZETA Médica da Bahia Vol. XLIVI, n° 1, julho de 1913. p. 7.
87

diretor duvidada de tais informações pois acreditava que os alienados só conseguiam enxergar
a partir de dois prismas diferentes, o “hipertrofiado” ou o “mesquinho”, sendo que ambos os
impediam de discernir os “fatos tais como eles são de verdade”. Nesta lógica, o costume do
indivíduo em adentrar os estabelecimentos públicos para “anunciar-se P.A.S, rei do Brasil”,
também se configurava como parte do delírio.157
No diagnóstico, o diretor se desvinculou das teorias anteriores acerca da paranoia e se
aproximou da ideia de classificação das doenças mentais desenvolvidas por Emil Kraepelin,
afirmando que P. estava acometido por uma “síndrome paranoide”. Diferentemente da
paranoia, que os indivíduos apresentavam “deficiência dos processos de críticas”, o delírio
não tinha sustentação alguma em “base real”, tornando-o alicerçado em “ilusões e mais
frequentemente de alucinações”, desse modo, a ciência não conseguia identificar “origem
própria” para o transtorno, podendo ele ter se desenvolvido em quaisquer “degenerados,
débeis de espírito, imbecis, dementes precoces, paralíticos gerais, alcoólatras etc.”. Assim,
tais delírios provavelmente se originaram e se agravaram pelo alcoolismo. 158
A pobreza e a mendicância, por serem consideradas no período como mazelas sociais,
estavam associadas aos vícios e as autoridades viam uma única solução para a resolução de
tais problemas: a reclusão. Apesar de não conseguirmos acesso ao exame de sanidade mental
de Aprígio, o seu perfil colaborou possivelmente para o diagnóstico de degeneração, assim
como ocorreu com P.A.S. e outros personagens capturados por apresentarem personalidades
desviantes, representando, portanto, ameaça à ordem. Decerto, eles viveram experiências
únicas e talvez condições diferenciadas, mas compartilharam do mesmo ambiente segregador,
através de estigmas semelhantes. Contudo, alguns indivíduos se favoreceram da legislação
direcionada aos alienados por meio de privilégios, fossem eles sociais ou de classe.

157
GAZETA Médica da Bahia Vol. XLIVI, n° 1, julho de 1913. p. 6-8.
158
GAZETA Médica da Bahia Vol. XLIVI, n° 1, julho de 1913. p. 10-11.
88

2.2.O assassínio da Rua do Caquende

Em 28 de março de 1914, outro episódio marcou a população do Distrito de Nazaré.


Tratava-se do assassinato de D. Eponina Pires de Carvalho Navarro nas primeiras horas da
manhã, após o seu marido, o engenheiro Joaquim Pereira Navarro de Andrade, lhe deflagrar
um tiro no peito enquanto amamentava Eulália, filha caçula do casal. O ocorrido foi
apresentado sob a alcunha de “Os Crimes Sensacionais” no periódico Gazeta de Notícias:
Sociedade Anonyma.159
Dedicados à abordagem atrativa ao grande público, os repórteres optaram por uma
narrativa semelhante aos romances policiais de comum circulação no final do século XIX. Em
busca de maiores informações sobre o casal e os motivos que culminaram no crime, os
editores se articularam imediatamente quando souberam ainda pela manhã do ocorrido,
assunto comentado “em todas as rodas” da cidade. A procura do aclamado furo jornalístico,
ao final da manhã a casa n° 97, da rua do Caquende estava cercada por repórteres, o que
certamente aumentou a presença de curiosos.
O periódico dividiu a matéria em sete eixos, de modo a sintetizar as informações do
assassinato a uma linguagem mais acessível. No primeiro deles, intitulado “como se deu o
crime”, elucidou detalhes minuciosos, repletos de suposições acerca dos procedimentos
utilizados por Joaquim. Gradualmente apresentou o indivíduo, tratando de sinalizar a sua
ascendência, pois era filho de Luiz Thomaz da Cunha Navarro de Andrade, também
engenheiro, o que significa o pertencimento desta família aos segmentos dominantes desta
sociedade.
Luiz se tornou peça fundamental nas horas antecedentes ao assassinato, pois percebeu
a agitação do filho, que caminhava ainda cedo “pelo corredor de sua residência”. Segundo o
jornal, Joaquim estava em observação pela família, por ter apresentado anteriormente
“sintomas de excitação nervosa” e possibilidade de suicídio. Desconfiado, o pai o convidou
para o embarque do seu colega engenheiro, o Sr. Cunha Maciel, para o Rio de Janeiro, mas
com a resposta negativa, saiu após o café da manhã. Sua ausência se tornou um dos
balizadores do crime que, ao que tudo indica, foi premeditado.
Com a saída de Luiz, Joaquim subiu para o quarto localizado no sótão da residência
onde a sua esposa dormia com o bebê e ao abrir a porta deflagrou um tiro que atingiu o peito
esquerdo de Eponina. Os gritos da vítima, o som estampido do disparo, os prantos de Eulália

159
"Os crimes sensacionaes", Gazeta de Notícias: Sociedade Anonyma. 28.03.1914. p.2.
89

atraíram a atenção dos familiares e funcionários presentes na casa, que imediatamente se


deslocaram ao último andar para prestar socorro. Ao chegarem, se depararam com um homem
“calmo” que “contemplava o desgraçado ato”, enquanto a mulher agonizava nos seus últimos
suspiros de vida. 160
Anteriormente, o casal morava em Maceió, onde Joaquim teria ascendido ao cargo de
engenheiro dos telégrafos. Contudo, no mês anterior ao assassinato necessitaram retornar a
Salvador pois o indivíduo estava de “licença para tratamento de saúde”, além de não possuir
recursos suficientes para manter a sua família, o que o levou a recorrer ao pai. Logo, não era
por acaso que a ação tenha sido calculada para o momento de ausência paterna, uma vez que
os valores desta sociedade giravam em torno da instituição familiar, marcada pela relação de
respeito e obediência dos filhos para com os pais.161 Por mais que fosse adulto e profissional
qualificado em uma empresa importante, o fato de não ter condições financeiras suficientes
para manter a família que construiu pode ter fragilizado sua saúde emocional.
Segundo a notícia, o indivíduo justificou a ação a Aurélio Velloso, delegado da 2°
circunscrição, como tentativa de manutenção da sua honra, pois alegava que ela havia sido
“ultrajada” por traições da mulher. Entretanto, a versão não teve consistência para as
autoridades pois o sujeito já apresentava históricos de “estado de supraexcitação nervosa” e a
própria família afirmou que sua esposa era “senhora de raras virtudes e excelentes qualidade
de caráter”.
Embora não houvesse qualquer menção na lei que justificasse o assassinato do
conjugue em caso de adultério, o art. 279 do Código Penal de 1890 contribuía para a
assimetria nas relações entre homens e mulheres. Nela, era prevista a prisão celular de um a
três anos para as mulheres adulteras e por mais raros que fossem, o mesmo artigo indicava
punições aos maridos que mantivessem financeiramente, ou não, amantes fora do casamento.
Tal condenação poderia ser revogada em caso de “perdão de qualquer dos conjugues, ou a
reconciliação”.162
Ao longo do processo crime não foram registradas ações judiciais de Joaquim contra
Eponina, talvez por não possuir provas contra a esposa ou mesmo para preservar a sua
imagem, já que ambos pertenciam a uma família com algum poder aquisitivo. Tudo indica

160
Idem.
161
Ver: SANGLARD, Gisele. Entre os salões e o laboratório: Guilherme Guinle, a saúde e a ciência
no Rio de Janeiro (1920-1940). Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2008. p.21.
162
BRASIL, Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, 11 de outubro de 1890. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D847.htm.
90

que a “reconciliação” tenha se limitado ao âmbito privado, antes da decisão do homem de


prosseguir com o assassinato de sua esposa.
Independentemente de ter ocorrido adultério ou não, o casamento de quinze anos
terminou de forma trágica, coma subtração da vida de uma mulher, que deixou oito filhos
órfãos, enquanto o homem foi preso e encaminhado ao quartel do regimento policial. Sob a
possibilidade de transtorno mental, se iniciou o longo inquérito com diversos personagens
envolvidos, dentre eles, os policiais em primeiro plano, responsáveis pela coleta de provas e o
confronto de informações entre as testemunhas. Em seguida, o saber médico entrou em cena
para avaliar se o indivíduo possuía ou não algum tipo de alienação.
Na tentativa de coletar o máximo de informações sobre o episódio, Aurélio Velloso
proferiu uma série de questionamentos a Joaquim, de modo a compreender os principais
aspectos relacionados ao crime. Perguntou “como se deu o fato da morte da sua esposa Dona
Eponina Pires de Carvalho Navarro de Andrade?”, o indivíduo prontamente traçou o histórico
no qual associava o crime aos problemas conjugais. Disse que a tensão entre ambos vinha de
“longa data”, desde que moravam em Ilhéus, quando tomou conhecimento sobre boatos da
traição de sua esposa com Dr. Arthur Lavigne, médico e conhecido da família. Suspeitava-se,
inclusive, que ele fosse pai de um dos filhos do casal. Os rumores o levaram a se mudar para o
Rio de Janeiro, onde trabalhou como engenheiro da Repartição dos Telégrafos. Segundo
relato, esses também foram os motivos de chegar “doente” para trabalhar em território
carioca, assim como não poupou palavras ao se definir como “desmoralizadíssimo” pelo
ocorrido.163
Em meio às acusações de adultério e ao surgimento de uma doença que pouco seria
explicada na fase inicial do processo crime, Joaquim se transferiu novamente à Bahia, mas
desta vez o trabalho lhe levaria à cidade de Cachoeira. Ante aos novos ares do recôncavo,
quem sabe chegou a pensar que a harmonia conjugal também retornaria? Contudo, a tensão se
intensificou quando “presumiu” o envolvimento entre Eponina e Ramiro Pimentel. Como o
primeiro, o segundo suposto amante foi descoberto através de boatos de pessoas que “davam a
entender” a existência do relacionamento extraconjugal, o que o levou ao encontro do
indivíduo para o questioná-lo, resultando então em uma luta corporal entre ambos. Na sua
concepção, a partir deste momento tornou-se “público e notório na cidade de Cachoeira” as
promessas do “amante” para lhe mandar assassinar.164

163
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 6-7.
164
Idem.
91

Embora citados, os supostos amantes sequer foram convocados para prestar


testemunho no auto, tornando a narrativa centrada nos questionamentos da autoridade policial
e as respostas de Joaquim. Durante o seu discurso, é possível perceber que a voz de Eponina
foi desvalidada, visto que para saber a verdade, o marido não procurou escutá-la, mas sim aos
boatos populares. Em um ato que significou demonstração de virilidade, o homem se
direcionou aos supostos amantes para uma comunicação extremamente violenta, própria do
papel masculino construído ao longo do século XIX. Na vida privada, o silêncio feminino
deveria imperar e ações violentas eram geralmente justificadas e validadas sob o argumento
de manutenção da ordem no lar.165
Ameaçado de morte após o conflito, se mudou com a família novamente para fora do
estado, desta vez para Alagoas. Nesse período, nasceu outra criança, que segundo Joaquim,
indubitavelmente continha “traços fisionômicos” semelhantes a Ramiro, motivo pelo qual
pensou na possibilidade de assassinara sua esposa. Residindo na cidade de Alagoas, o conflito
do casal se intensificou, e a expressão “luta” utilizada pelo escrivão nos salta a atenção,
embora não houvesse maiores informações se ele a agrediu durante esse meio tempo. No que
tange ao relacionamento, ambos sequer “coabitavam” juntos pós-nascimento do filho,
optando assim por se separarem de cômodos.166
Justificado pelo princípio da honra, o assassinato era fruto de valores provenientes da
Bahia no século XIX, fomentados através da ideia de família enquanto estrutura cível, mas
sobretudo moral e atrelada ao costume religioso. Certamente Joaquim e Eponina herdaram
resquícios de tradições voltadas para o matrimônio nas bases da Igreja Católica. Segundo
Kátia Mattoso, naquele período se configuravam como motivos válidos para a dissolução dos
casamentos:

[...] se, nos doze primeiros meses de vida comum, os cônjuges optassem por
entrar num convento; se tivesse havido, por parte de um dos cônjuges,
“fornicação espiritual por heresia e apostasia”; se ocorressem sevícias
graves; enfim, se fosse comprovado adultério praticado por um dos esposos
(se os dois cometessem adultério, a Igreja não admitia a separação, pois um
caso compensava o outro). 167

165
PERROT, Michelle. Os silêncios do corpo da mulher. IN: MATOS, Maria Izilda Santos de;
SOIHET, Rachel (orgs.). O corpo feminino em debate. São Paulo: Editora UNESP, 2003. p. 18-19.
166
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 7-8.
167
MATTOSO, Kátia. Bahia, século XIX: uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1992. p.133.
92

Apesar da laicização do Estado, o catolicismo ainda era a religião oficial e muitos dos
habitantes, principalmente das altas camadas sociais, ainda seguiam tais tradições religiosas.
A anulação do casamento não era tarefa fácil, pois deveria se encaixar nas condições da Igreja
Católica. Segundo Ana Vitória Sampaio Rocha, mesmo com o advento republicano, o
divórcio não era interesse das pautas políticas que àquele momento seguiam discursos de
defesa da ordem e da moralidade sustentada no símbolo familiar. Mesmo que garantido
através do código civil de 1890, o direito ao divórcio era permitido desde que existissem
motivações para tal e o pedido estava limitado exclusivamente aos maridos.168
Como foi constatado, as mudanças em relação ao divórcio pouco se modificaram nos
anos que Joaquim e Eponina entraram em conflito e mesmo após o suposto adultério, ambos
se mantiveram em união, talvez porque o pedido não tenha partido dele. Possivelmente existia
o interesse do indivíduo na manutenção das aparências da instituição familiar, do mesmo
modo que mesmo havendo interesse da mulher, ela legalmente não podia pedir o divórcio. Ou
seja, a relação entre ambos se ancorava no campo da tradição, influenciada por preceitos
predominantemente patriarcais herdados do século anterior e o “divórcio”, nesse caso, ocorreu
somente de forma simbólica e no âmbito da vida privada.
A concepção de honra pairava no imaginário social, e mesmo o questionamento do
delegado nos autos sugere certa anuência acerca dos métodos que supostamente evitariam o
adultério. Uma das perguntas do inquérito consistiu em saber se após as acusações em
Cachoeira “a sua senhora procedeu mal” na cidade de Maceió e se Joaquim “fez acompanhar
da mesma” nos locais onde ela frequentava. Segundo o indivíduo, não houve problemas, pois,
a descoberta ainda na Bahia permitiu maior vantagem em território alagoano, onde pôde
“estar muito prevenido e ter tomado precauções”. 169
As precauções não foram ditas, mas imagina-se que tenha sido o isolamento ou o uso
da violência como forma de repreensão. O seu perfil violento pode ser identificado ao longo
do processo e o próprio personagem revela que a fuga da cidade de Cachoeira não se deu
somente devido ao conflito entre ele e Ramiro, mas pela tensão na relação com outros
moradores da região. Apesar de também não ter mencionado os motivos da perseguição,

168
Como sugere a autora, as revisões do código ocorridas em 1901 e 1916 não modificaram o direito
de pedido de divórcio para a população feminina. Ver: ROCHA, Ana Vitória Sampaio Castanheira.
Amor, Ordem e Progresso: Casamento e divórcio como desafios à laicidade do Estado (1847-1916).
Brasília: Universidade de Brasília, 2014. p. 74-77.
169
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 7.
93

defendeu a necessidade de adquirir a arma utilizada no crime ao fugir do recôncavo para fins
de proteção contra “seus inimigos políticos”.170
Embora tenha relatado os poucos recursos financeiros, que o levaram a retornar à
residência paterna em Salvador, tais desafetos demonstram o respaldo social da sua família no
interior da Bahia, privilégio garantido provavelmente por suas relações parentais, que o
levaram a ocupar o cargo público na Repartição dos Telégrafos. O conflito pelo poder se
constituiu como a tônica do cenário interiorano e protagonizado por disputas intra-
oligárquicas na Primeira República, questão que, inclusive, prejudicou o desempenho
favorável de estados como a Bahia em âmbito nacional.171
Apesar do “desconsolo” diante das autoridades policiais e se dizer “arrependido” pelo
crime cometido, o engenheiro não escondia a satisfação “por ter desagravado a sua honra”.
Ou seja, o arrependimento se tornava quase que insignificante na sua narrativa e a indiferença
nas respostas dificilmente nos levaria a uma conclusão permanente se o remorso estava
relacionado à subtração da vida de sua companheira ou das consequências negativas que o
assassinato lhe resultaria. Parecia também pouco se importar com o posicionamento de
Eponina que, segundo Joaquim, “negava o fato incessantemente” quando os boatos vieram à
tona.172
Não há como mensurar em quais níveis se deram os ânimos entre os dois nas
discussões no âmbito privado, pois o sujeito pouco discorre no auto sobre a conversa. Assim,
o apoio sobre a literatura, nos fornece novamente o mínimo de suporte para a reconstrução de
uma discussão matrimonial. Em Dom Casmurro, publicado em 1899, Machado de Assis
buscou desenvolver o drama na relação entre Bentinho e Capitu. Sob a narrativa do homem,
os conflitos internos acerca do adultério da sua companheira se tornam ponto crucial da trama,
dos quais propositalmente nos declina muitas vezes a suspeitarmos junto ao personagem.
Uma passagem específica da obra nos salta à atenção. Ao ter assistido à peça teatral
Otelo, Bentinho decidiu pelo suicídio, através da ingestão de veneno diluído no café, mas em
meio a conflitos internos estendidos entre a madrugada e a manhã, achou por bem cometer o
ato após a saída de Ezequiel e Capitu para a missa. Foi quando a criança adentrou no seu
escritório a chamá-lo de “papai”, o que o fez desistir momentaneamente. De repente, no breve

170
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 8.
171
VISCARDI, Claudia. Teatro das Oligarquias: Uma revisão da “política do café com leite”. 2. ed.
Belo Horizonte: Fino Traço, 2019. p. 44.
172
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 9.
94

capítulo intitulado como “segundo impulso”, oferecera a bebida ao seu filho e no momento de
tensão desistiu do ato criminoso e exclamou para Ezequiel que não era o seu pai, sem
perceber a chegada de Capitu à porta. Se iniciou dali uma breve discussão em que o homem
acusou a companheira do adultério e indagou sobre a paternidade da criança. Após certa
indignação da personagem, ela respondera de forma surpreendente com um “riso” que nem
mesmo o narrador conseguia transcrever, acompanhado do “tom juntamente irônico e
melancólico” ao reiterar os ciúmes do protagonista.173
Tomando como base a literatura e ao associarmos a história dos personagens de
Machado de Assis aos aqui estudados, prevalece um questionamento: Será que Eponina traiu
Joaquim?
Dificilmente teríamos as respostas para tal pergunta, afinal, como em Dom Casmurro,
o relato de Joaquim também é pouco confiável.174Ele se centra na posição de um personagem
em defensa de sua honra e está inserido numa sociedade cujos valores privilegiavam a figura
masculina, mesmo que alguns personagens que conviviam diariamente com o casal negassem
a suposta relação extraconjugal.
Ainda que não houvesse provas concretas acerca do adultério, o personagem
continuava a insistir no ocorrido, provavelmente no intuito de se resguardar juridicamente em
relação ao seu ato. Segundo Sueann Caulfield, a defesa da honra era um assunto amplamente
discutido entre os juristas brasileiros, visto que o ato também podia ser justificado como
legitima defesa em uma sociedade que a honra era considerada fundamental na vida humana.
Desse modo, muitos casos configurados como crimes passionais, protagonizados por casais e
com o final trágico para as esposas tendiam a ser amenizados na justiça, pois eram analisadas
sob a perspectiva de uma reação humanitária sem o controle do indivíduo. 175
Como o protagonista da obra de Machado de Assis, o engenheiro se achou no direito
de inquirir a esposa por possuir a posição de mantenedor da casa, relação de poder que
lograva a figura feminina para a função de reprodutora e cuidadora do lar. A mínima suspeita
que quebrasse essa linha poderia ocasionar em consequências trágicas para a mulher, fato
ocorrido a partir da criação da ideia de adultério. Nesse momento, a questão deixou o âmbito
173
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Dom Casmurro. São Paulo: Editora Ática, 1999. p. 170-
175.
174
Na obra Machado de Assis Historiador, Sidney Chalhoub apontou para a possibilidade de traição
por parte de Capitu. Para o autor, a construção proposital do romancista levava a ideia de que a
“traição estava na natureza” da personagem, visto que ela compreendia o funcionamento da lógica
senhorial e através da sua astúcia empreendia ações a seu favor. CHALHOUB, Sidney. Machado de
Assis historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 62-83.
175
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro
(1918-1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2000.p. 83-85.
95

privado e se direcionou para o público através da ação influenciada pelos discursos e boatos
reforçados por pessoas que o cercavam. Portanto, o uxoricídio foi justificado pela manutenção
da sua integridade masculina.
Com o fim da inquirição a Joaquim, foram acionadas outras pessoas que pudessem
auxiliar na compreensão sobre como se deu o crime. Ao todo cinco testemunhas prestaram
depoimentos durante o caminhar do processo. A primeira, Maria Carolina dos Santos, de
sessenta e seis anos, era natural do Rio Grande do Sul e cuidava das crianças e da casa dos
Navarro de Andrade. Perguntada sobre o assassinato, relatou que antes do disparo acabara de
descer do sótão com duas das crianças que lá dormiam para alimentá-las e ao ouvir o estrondo
procurou por Luiz Navarro, mas não o havia encontrado. Ao retornar ao local avistou Joaquim
descendo as escadas e o perguntou sobre o som e o indivíduo afirmou ter matado Eponina. 176
Quando perguntada se presenciou qualquer tipo de “discórdia” e a frequência que o
casal protagonizava conflitos, respondeu que teria visto algumas discussões entre os dois, mas
que após os eventos ocorridos em Alagoas sequer se cumprimentavam. Como forma de
isenção ou não, Maria Carolina alegava não saber os reais motivos das tensões entre Eponina
e Joaquim, visto que pouco teria os visitado. O que ela dizia saber era do adultério, mas não se
prolongou sobre o assunto. Disse somente que em duas visitas percebeu a mudança de
comportamento de ambos, mas que não sabia se o “indiferentismo” teria ocorrido após a
suposta traição.
O foco das autoridades estava relacionado não somente ao assassinato em si, mas
também à aquisição da arma. A funcionária da residência alegou que “Tonico”, irmão do
indiciado, havia outrora retirado uma pistola da posse de Joaquim, com o objetivo de prevenir
suposto suicídio ou o assassinato de Eponina. A menção sobre suicidar-se estabeleceu novos
direcionamentos para o caso, visto que os policiais questionaram especificamente acerca do
estado de saúde do engenheiro. Deste modo, perguntaram à testemunha se ele havia praticado
ações anteriores ao assassinato que sugerissem algum transtorno mental e apesar de ter dito
perceber o semblante de tristeza incomum no indivíduo cerca de três dias antes do assassinato,
respondeu que “o indiciado nada tinha que lhe pudesse atestar enfermidade mental”. 177
Ao final da inquirição a Maria Carolina, foi convocado a depor Manoel Barreto, de
trinta anos, repórter e residente da Rua Direita da Saúde, localizada no Distrito de Nazaré. A
primeira pergunta se deu de maneira padrão, sobre o conhecimento da testemunha acerca do
176
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 10-11.
177
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 12-13.
96

crime. O homem alegou que soube do assassinato a partir do “pânico” estabelecido entre os
transeuntes aglomerados em frente à residência da família Navarro de Andrade. Em meio à
narrativa alegou conhecer há “muito tempo” o engenheiro e transpareceu ter com ele uma
relação de mínima proximidade desde quando ambos residiam na cidade Ilhéus. 178
A proximidade com os Navarro de Andrade impulsionou o delegado a solicitar que
Manoel emitisse um “conceito” sobre a família. Ele, por sua vez, em um gesto de respeito
não pestanejou em enaltecer que ela era “merecedora de toda a consideração”. A partir de
então, levantou dúvidas sobre a alegação de Joaquim sobre a possibilidade da sua esposa ter
se envolvido com o doutor Lavigne, pois o repórter “nunca viu” o médico na casa do
indiciado, mas também disse não querer saber se o adultério era “mentira ou verdade” na
época que residiam na mesma cidade.
Ao contrário de como decorreu no primeiro testemunho que o engenheiro nada
contestou ao final, no segundo, solicitou a palavra para corrigir um ponto citado por Manoel.
Contra-argumentou sobre a sua relação com o doutor Lavigne, ao passo que dizia que na
verdade o médico era considerado como seu “compadre e amigo íntimo” e reiterou a sua
frequência constante na fazenda. Aqui, a fala do engenheiro confirma o interesse dos Navarro
de Andrade em criar uma rede de relações no interior onde viviam e a manutenção da
hegemonia local através do contato entre famílias.
Sem maiores protestos o inquérito continuou com a terceira testemunha, Maria José de
Oliveira, de vinte e oito anos, que trabalhava como engomadeira. O documento não menciona
com precisão a sua residência nem a cor da depoente, mas sugere que poderia morar junto à
família Navarro de Andrade.179 Mesmo sem a informação, é possível deduzirmos que ela se
encaixasse no perfil variado de trabalhadoras envolvidas no serviço doméstico na cidade de
Salvador. Como aponta Marina Leão de Aquino Barreto, os ofícios fortemente associados à
cor e a funções atreladas ao trabalho doméstico, como engomadeiras, lavadeiras, amas de leite
e cozinheiras, eram exercidas majoritariamente por mulheres negras ou mestiças. 180
Considerando a convivência entre Maria José de Oliveira e a família, esperava-se que
talvez por ela presenciar a dinâmica da vida privada do casal, fosse a testemunha que mais

178
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 27-28.
179
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 27.
180
Ver: BARRETO, M. L. de A. Gênero e raça no trabalho doméstico livre em Salvador em fins do
século XIX: o surgimento de uma classe fatalmente segmentada. Revista Mundos do Trabalho,
Florianópolis, v. 10, n. 20, p. 81-102, 2019. p. 81-102.
97

contribuiria para responder sobre o suposto adultério de Eponina. Entretanto, a engomadeira


também pareceu não querer arriscar ou envolver-se no assunto, mesmo tendo ficado
“nervosa” com o assassinato fatídico. Talvez temesse a perda do emprego ou houvesse
alguma orientação anterior dos advogados para não se posicionar. O certo é que a sua fala foi
breve, limitou-se, inclusive, em iniciá-la esclarecendo “que nada sabe ou ouviu em relação ao
fato”, pois no momento do acontecimento “estava na cozinha” e quando ouviu o “estampido
do tiro” buscou informações do que poderia ter acontecido, mas o indiciado respondeu:
“nada”.181
Ao fim do breve testemunho, entrou em cena Edgard de Miranda, de trinta e um anos
de idade, inspetor dos telégrafos, residente da Barra, um dos bairros nobres de Salvador.
Quando perguntado o que sabia sobre o assassinato, disse que só o divulgado popularmente
acercado modo como se deu o crime e o motivo alegado por Joaquim. Em relação à última
questão, esclareceu que no período que morou em Cachoeira passou um tempo hospedado na
casa dos Navarro. Com isso, disse ser “inexato” qualquer boato sobre o adultério e que não
percebeu nada, “ainda de longe”, que “pudesse atingir a honra” de Eponina.182
A dúvida ainda pairava no ar e nenhuma das testemunhas, até então, afirmaram ou
negaram o que era o principal motivo do assassinato. Para se intensificar os silêncios, Edgard
sequer finalizou o seu testemunho, respondendo somente a primeira pergunta, pois a
diligência foi interrompida a pedido do engenheiro. Segundo o escrivão, neste momento se
podia ver um Joaquim “muito nervoso”, que se dizia “com fome”, motivos que o fizeram
desejar conversar com o Chefe de Polícia, pois considerava estar sofrendo um
“constrangimento ilegal”. 183
Segundo Aurélio Velloso, a diligência sofreu interrupção porque a quinta testemunha
se retirou da delegacia “pelo adiantado da hora”.184 Mesmo sem transparecer durante a
declaração, o chefe de polícia parecia ter acatado o pedido do engenheiro, afinal, não se sabe
como teria sido o teor da conversa entre os dois e se houve interferências externas. Após o
ocorrido, o encontro foi remarcado para dois dias depois, tempo o suficiente para que a defesa
pensasse em novas estratégias.

181
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 28-30.
182
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 30-31.
183
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80. p. 30-31.
184
Idem.
98

No dia primeiro de abril, o engenheiro Carlos Nuno de Barros Pereira, de quarenta


anos e residente do distrito de Nazaré, foi convocado a depor. Quando perguntado sobre o que
sabia sobre o assassinato, admitiu ser do seu costume acordar apenas depois das “oito”, por
esse motivo, tomou conhecimento sobre o acontecimento mais tarde, “por volta de nove
horas”. Entretanto, apareceu na residência dos Navarro as “dez horas”. Em relação ao ato,
adquiriu informações somente por ser “amigo” da família e por ter conhecido Joaquim desde
o período da faculdade. Ele não parecia estar presente para difamar o amigo, pelo contrário, o
classificou primeiramente como de “índole mansa e tolerante”, antes de adentrar em histórias
que as outras quatro testemunhas não discorreram. Carlos Nuno preferiu seguir outro
caminho, pois pela primeira vez fundamentou a hipótese de loucura, além de ressaltar as
mudanças do indivíduo desde a sua chegada à capital. Em uma das ocasiões, Joaquim teria lhe
dito que cogitava o suicido “para se poupar do desgosto de assassinar a quem o perseguia”. 185
Três fatos centrais o levaram a cogitar a possibilidade de loucura. O primeiro estava
ligado a uma tentativa de suicídio no Arsenal da Marinha, quando Joaquim se deslocou até o
local e atirou-se na água. No episódio, os marinheiros conseguiram o resgate e o mantiveram
sob observação no vapor até o momento do desembarque. Segundo o relato, os oficiais
presenciaram um sujeito em choque, que se comunicava através de gestos corporais que muito
se assemelhava ao ato de implorar, ajoelhado de mãos juntas e olhos fechados. Na segunda
ocasião, ainda quando estudante, o engenheiro caiu gravemente, sendo dado como “morto”.
Ao acordar, precisou passar por tratamento à base de “sedativos” devido ao impacto da queda
e a perda excessiva de sangue. No último fato, alegou ter o sujeito queimado os “dois dedos
indicadores” propositalmente e sem demonstrar nenhum tipo de reação.186
Para ele, há tempos Joaquim apresentava uma saúde mental abalada, pois certa vez,
quando visitou a família Navarro em Alagoas, mais ou menos trinta dias antes do assassinato,
alegou que o indivíduo sequer o reconheceu quando lhe dirigiu a palavra, fator que o levou a
constatar certo “estado de perturbação mental” e mesmo não sendo profissional de saúde,
relacionou a situação com a queda no período da infância.
É de se destacar que apesar da medicina acadêmica ter se constituído como saber
oficial, autorizado para discorrer sobre a saúde e a doença e a loucura apresentar
características definidas no imaginário social, o relato de Carlos Nuno sugeriu concepções
generalizadoras sobre a doença. O seu discurso reflete o exclusivismo do saber médico na
185
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80. p. 32-33.
186
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80. p. 33-34.
99

prática da classificação nosológica da patologia, no qual por mais que as pessoas ainda
possuíssem a capacidade de identificar a loucura, cabia à psiquiatria a explicação científica
das causas e a indicação da terapêutica adequada.187 Talvez a narrativa dos casos também
tivesse o intuito de convencimento das autoridades a proceder com exame de sanidade mental,
visto que se buscou construir a figura estigmatizada do sujeito anormal e desprovido da razão.
Com o fim de todos os testemunhos, era a vez do delegado da 1ª Circunscrição da
polícia publicar o parecer final. À medida que Aurélio Velloso se empenhava em proferir as
definições da diligência para enviá-los à promotoria, a tese de tentativa da interferência
externa nas investigações se confirma. Em primeiro ponto, enalteceu as virtudes de Eponina e
a partir dos relatos ouvidos contrariou a versão de adultério. Segundo ele,

D. Eponina era uma senhora distintíssima que pelo elevado dos seus
sentimentos homem algum seria capaz de manifestar-lhe sentimentos outros
que não os de admiração e respeito por suas virtudes; mas ninguém ignora
que tem em terra pequenina ainda as mais santas relações quando de
intimidade e frequência, dão lugar a comentários, não raras vezes
desagradáveis, que, atuando sobre um cérebro doentio, podem determinar
desenlaces da natureza do que constitui objeto do presente processo. D.
Eponina foi difamada em Ilhéus, seu marido a princípio não acreditou no que
lhe atribuíam, mas depois talvez, quando já doente, tomou por base de sua
perseguição a D. Eponina àquelas informações e de bom esposo que era,
tornou-se insólito e aborrecido, acabando por ser uxoricida.188

Aurélio Velloso confirmou, portanto, que o adultério não passou de boato em Ilhéus e
ressaltou a difamação de Eponina. Entretanto, enquadrou Joaquim como “bom esposo” e
atribuiu a mudança de natureza a transformações ocasionadas por uma possível doença devido
aos rumores. A partir disto, crime e loucura caminharam juntos ao longo do processo. Mas,
seria Joaquim Pereira Navarro um alienado?
Segundo o delegado e os oficiais da 1ª Circunscrição, que acompanharam o caso desde
o início na residência dos Navarro de Andrade, havia dúvidas se o indivíduo era irresponsável
pelos seus atos. Como sugeriram as primeiras quatro testemunhas, ele nunca aparentou
nenhum tipo de alienação mental.

187
O historiador britânico Roy Porter cita que com o domínio sobre o espaço terapêutico asilar, o
crescimento do número de médicos especialistas e o desenvolvimento da neurologia, a psiquiatria
precisou se justificar na sociedade. Para isso, se apoiou na classificação das doenças e a partir de
teorias como a degenerescência. O seu interesse partiu para as diversas questões sociais e dos
costumes, vistas sob a perspectiva da anormalidade. PORTER, Roy. Cambridge: história da
medicina. Rio de Janeiro, RJ: Revinter, 2008. p. 261-262
188
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80. p. 36.
100

Dito isso, tudo indica que a defesa apostou em estratégias jurídicas para livrar o cliente
da prisão. A primeira delas foi a implantação da ideia de loucura por meio de Carlos Nuno,
esse último testemunho modificou significantemente os rumos do caso. A outra, representa a
articulação dos advogados, quando solicitaram o “exame de sanidade mental na pessoa do
delinquente” antes do indivíduo deixar a casa e chegar à sala de depoimentos para a
diligência. 189
Na lista de questionamentos a serem observados pelos médicos no exame de sanidade
mental, foram sugeridos os seguintes itens:

1°) sofre o indiciado de monomania? ; 2°) É ele um perseguido perseguidor?


; 3°) Tem ele perturbações da vontade? ; 4°) Tem ele obsessões e impulsões?
; 5°) É delirante crônico? ; 6°) É desumano? ; 7°) É louco? ; 8°) Tem
intervalos lúcidos?; 10°) Qual a enfermidade ou enfermidades que o
caracterizam? ; 11°) Achou-se o delinquente em estado de completa privação
de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime?190

O último item apontado por Aurélio Velloso está estritamente associado ao artigo 27
do Código Penal brasileiro de 1890 e tinha o objetivo de mensurara culpabilidade do
indiciado ou justificar determinado delito cometido por algum indivíduo que apresentasse
sinais de alienação. Segundo o texto da lei, seriam isentos de responsabilidade criminal os
“que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de
cometer o crime”.191
Para o delegado, esse não era o caso de Joaquim, porém, por causa da brecha
encontrada na lei e possivelmente pela influência da família Navarro de Andrade, precisou
ceder ao requerimento, prosseguindo com o pedido de exame de sanidade mental. Mas antes
disto, alertou:

Nenhuma das modalidades de perturbação mental acima indicados, dirime a


responsabilidade do delinquente, uma vez não provado que o fato se deu na
eminencia de um acesso, com perda dos sentidos e de inteligência, assim
pensa esta delegacia; e se o indiciado praticou o crime, "campus mentis", isto
é, em seu juízo, como se vê do auto de perguntas que o mesmo respondeu e
do depoimento da 1° testemunha, na parte em que essa lhe pergunta "o que
fez o senhor?" e ele responde "aqui estou para criar os filhos", e o mais que
se segue do mesmo depoimento, parece que essa delegacia quando nada

189
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80. p. 36-37.
190
Idem.
191
BRASIL, Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, 11 de outubro de 1890. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D847.htm.
101

deveria ter requisitado de prisão preventiva do delinquente quando o não


pudesse prender. Entretanto, ainda agora não o faz, devido à natureza do
exame de sanidade mental que lhe foi requerido, e consequente garantia para
o juízo criminal, com a reclusão do indiciado em estabelecimento apropriado
para o requerido exame [...]192

Portanto, apesar do delegado não acreditar na possibilidade de alienação, ainda existia


a lei a sua frente que precisava ser cumprida, para que se concluísse se de fato Joaquim sofria
ou não de algum transtorno mental.
Com isso, não se quer afirmar a ausência de conflitos entre as autoridades jurídicas e
científicas em meio ao processo de legitimação do saber médico. Pelo contrário, os embates
permeavam espaços próprios a tais discussões e da mesma maneira que geraram divergências,
também provocaram alianças entre ambos os saberes. Isso se deu porque a psiquiatria através
da lei de assistência médico-legal ganhou autonomia fundamental para atribuir a si não
somente o direito da terapêutica, mas “a todos os assuntos relacionados à alienação
mental”.193
Em tom de desabafo, o delegado também explicou a difusão de notícias sobre o fato de
não ter efetuado a “prisão em flagrante” do sujeito. O periódico, que não teve o nome
divulgado durante o parecer, alegou que Aurélio Velloso estava impedido de proceder com a
captura pois a ação “excedia as suas atribuições”, visto que havia grande probabilidade de já
haverem “despachado a um pedido de exame de sanidade mental” antes da sua chegada ao
local do crime.194 Assim, o jornal introduziu debate delicado em suas páginas, algo que de
algum modo atingiu a integridade do delegado enquanto autoridade. Afinal, como o delegado
nada fez para impedir um esquema fortemente planejado que ocorreu bem diante dos seus
olhos?
Aurélio Velloso não silenciou diante das acusações e mesmo com as pressões
relacionadas ao exame de sanidade mental optou por se defender e fazer algumas
considerações acerca do ocorrido. Para isso, primeiramente levantou o questionamento:
“Como lavrar auto de prisão que ninguém efetuou?” Em seguida, disse que quando chegou só
“viu confusão, pesar e aflição pessoa alguma indiciou ou pediu a prisão do criminoso”. Ou
seja, até a chegada do delegado ao local, ninguém prendeu Joaquim, ação incomum no

192
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80. p. 36-37.
193
ENGEL, Magali Gouveia. Os delírios da Razão: Médicos, loucos e hospícios (Rio de Janeiro,
1830-1930). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001. p.71
194
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80. p. 37-38.
102

procedimento policial. A “confusão” mencionada está possivelmente associada não somente à


multidão de curiosos do lado de fora da residência, mas a sequer saber de fato quem era o
envolvido no crime, sendo necessário que perguntasse “quem ele era” aos presentes. Esses,
responderam apontando “para a sala de jantar”, onde relatou ter visto uma aglomeração de
pessoas em torno de Joaquim e outra pessoa, uma senhora aparentemente mais velha. Tratava-
se da mãe, personagem que até o momento sequer tinha sido citada.195
Pouco se sabe sobre a mãe de Joaquim, visto as poucas menções a sua pessoa. Do
mesmo modo, as fontes que discutem sobre o crime sequer apresentaram registros do seu
nome. Provavelmente, tal exclusão não tenha ocorrido por acaso, pois, como já dito, algumas
mulheres pertencentes às classes dominantes tinham papeis sociais diferenciados em relação
às mulheres pobres. 196
Talvez esse seja o caso da mãe de Joaquim, que apenas surgiu com certa relevância no
momento da chegada das forças policiais para a captura do seu filho, descrito da seguinte
maneira pelo delegado:

a dita senhora erguendo-se de súbito da cadeira que ocupava com os braços


alevantados, com os olhos congestionados, banhado em lagrimas, parecendo
querer interpor-se a autoridade e ao dito homem, bradou, "é meu filho", "este
homem é meu filho, não ofenda a ele, ele é inocente, nada fez". O delegado
teve que curvar-se reverente; para confortar aquela mãe aflita e fê-la sentar-
se; e, erguendo-se de novo, fitou o homem que a acariciava. Era Joaquim
Navarro o uxoricida que insistia para que sua mãe o perdoasse do crime
cometido.197

A sua fala retrata características marcantes da figura feminina na sociedade. Até então
se conhecia somente Luiz, representado como patriarca, mantenedor e quem sabe conselheiro.
Afinal, foi ele quem permitiu o retorno do filho ao lar. Mas a mãe surgiu sob outro papel, o de
genitora e protetora, pois foi ela quem reivindicou a inocência do filho. Ela está inserida em

195
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80. p. 38.
196
Nesta dinâmica social, a articulação feminina e as suas funções podiam se distinguir de acordo com
o grupo social a que pertenciam. Segundo Alberto Heráclito Ferreira Filho, as mulheres da elite
tinham a prática de fiscalizar eventualmente as atividades na cozinha, diferentemente das pertencentes
as camadas populares que além de precisar se envolver no trabalho como forma de sobrevivência,
experimentavam rotinas mais intensas a beira do fogão. Ver: FERREIRA FILHO. A. H. Quem
Pariu e bateu, que balance! Mundos femininos, maternidade e pobreza. Salvador, 1890-1940,
Salvador: CEB, 2003.p.54.
197
Idem.
103

preceitos e projeções que associavam as mulheres das classes médias e altas à vocação
materna, bem como a responsabilidade pela educação e o cuidado dos familiares.198
Em oposição à preocupação da mãe, o sujeito parecia tranquilo e ciente das
consequências do ato. Nas palavras de Aurélio Velloso, ao tentar transmitir algum tipo de
tranquilidade para os presentes na sala, o engenheiro disse: “não se incomode eu mesmo
quero ir, preciso dizer o que fiz e justificar-me”.199 Tal reação gerou estranheza ao delegado
quando soube das alegações de insanidade mental por parte da defesa. De acordo com a sua
concepção:

[...] Joaquim Navarro estava em seu juízo perfeito; trazia a fisionomia de um


homem ciente e consciente do ato que praticara; a um insignificante sinal de
cabeça que lhe fez o delegado ao retirar-se para a sala de visitas da mesma
casa, onde mandara compor o seu juízo. Joaquim Navarro, compreendendo o
acompanhou [...]200

As ações do engenheiro nada remetiam a transtorno mental, assim, ele não podia ser
declarado como isento de responsabilidade pelo crime, como sugeria o Código Penal quando
determinado indivíduo apresentava indícios de alienação. Ao final da sua consideração, o
delegado alertou que “ele é responsável por haver cometido o crime em um intervalo de luz e
espírito”.201
Como se pôde perceber, nem mesmo as considerações de Aurélio Velloso impediram
o prosseguimento do exame de sanidade mental, ademais, a 1ª Circunscrição não tinha
estrutura e organização para tal. A solução encontrada não poderia ser outro senão
encaminhá-lo para o Asilo São João de Deus, que, como vimos na primeira parte, havia
adquirido o status de instituição responsável não somente pela terapêutica dos alienados, mas
o único com recursos científicos para identificar a doença e isolar alienados do convívio
social.
Cerca de um mês após o ingresso de Joaquim tido como “louco” no asilo, o promotor,
Clóvis Spinola designou os peritos, marcou data e local para dar seguimento ao exame de
sanidade mental. Em tempo, reiterou a importância da resposta psiquiátrica aos
questionamentos organizados pelos juristas, a fim de desenvolver conclusões sobre o estado

198
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: A utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista
(Brasil: 1890-1930). 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014. p. 108-110.
199
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80. p. 38.
200
Idem.
201
Idem.
104

de saúde do indivíduo. Sobre ele, apontou que aguardava o retorno da perícia porque “no
estado atual, é impossível ao indiciado assistir à formação de culpa”.202
Infelizmente os autos não nos possibilitam compreender os motivos pelos quais
Joaquim não conseguiu assistir à etapa da “formação de culpa”, fase em que os juristas
apresentam as provas recolhidas para prosseguir com o julgamento. Diante desse cenário
podemos imaginar duas possibilidades que explicam a ausência. A primeira consiste nos
protocolos próprios a realidade do isolamento, onde o interno indiciado precisava cumprir o
tempo sugerido para que se defina o diagnóstico da doença.203 A outra pode estar ligada à
interferência da defesa nas ações do personagem, tendo alegado a impossibilidade emocional
e cognitiva do personagem de presenciar o processo judicial, talvez para resguardá-lo.
Em ofício encaminhado ao Juiz Preparador da 1ª Circunscrição policial, Luiz Navarro
solicitou no dia 29 de maio de 1914 que agilizassem na designação dos peritos médicos para o
exame de sanidade mental. O pai do engenheiro se antecipou ao fim da diligência e as
instruções do Ministério Público que sequer ainda havia falado sobre o caso. Como
questionamentos, solicitou que os médicos adicionassem os seguintes itens:

a) O eng. Joaquim Navarro de Andrade é um alienado?


b) No caso afirmativo, de quando data aproximadamente a afecção mental?
c) Como se traduz em clínica psiquiátrica o estado mental do eng. Joaquim
Navarro de Andrade?
d) Quais são os caracteres psicológicos do seu delírio?
e) Os atos racionais do examinado estão essencialmente subordinados à sua
condição mental?
f) Que deduções prognósticas se podem fazer de sua afecção mental?
g) No conceito da medicina psiquiátrica forense que responsabilidade se
pode atribuir ao eng. Joaquim Navarro de Andrade? 204

O teor das perguntas demonstra mínimo conhecimento de pontos específicos


relacionados ao saber médico, cujo objetivo era evitar a detenção de Joaquim na prisão em
meio a outros criminosos. Tal hipótese se fundamenta quando analisamos a fundo o item “g”,

202
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80. p. 40-41.
203
Bruna Ismerin Santos afirma que antes de serem internados em definitivo no Asilo São João de
Deus, os alienados passavam por algumas burocracias, dentre elas, a observação médica e os exames
de sanidade mental que tinham caráter provisório. A partir da análise documental, constatamos que
alguns indivíduos poderiam aguardar a decisão judicial e a designação de peritos por longos períodos.
Ver: SANTOS, Bruna Ismerín Silva. Loucura em família: Interdição judicial e o mundo privado da
loucura, Salvador-Bahia (1889-1930). Salvador: UFBA, 2015. p. 94-95.
204
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80. p. 41-42.
105

que visava afirmar o princípio da imputabilidade. Caso considerado de fato um alienado, seria
destituído de responsabilidade, como apontava o Código Penal de 1890.
Após deferido o pedido, foram designados dois médicos para trabalhar como peritos
na elaboração do exame. Eram eles: Antônio de Prado Valladares, professor da Faculdade de
Medicina e médico-legista do Estado, e Eutychio Leal, diretor do Asilo São João de Deus. De
formato padrão, os médicos subdividiram o relatório em quatro tópicos: a anamnese, o status
psíquico e somático, considerações gerais e conclusões diagnósticas e a resposta aos quesitos.
A anamnese era marcada por um “balanço genealógico”, que se buscava, a partir de
informações relacionadas ao histórico familiar, crimes e hábitos incomuns associados ao
quadro de transtorno mental. Também eram analisadas as fases da vida do paciente, com
enfoque na identificação do desenvolvimento de doenças na infância; mudanças do corpo e
iniciação a sexualidade na adolescência; e as características principais das relações sociais,
que poderiam estar vinculadas tanto à esfera do público quanto do privado. Inclusive, era
nesta fase que se considerava os possíveis vícios apresentados durante a trajetória de vida dos
indivíduos.205
Primeiramente, os médicos buscaram indícios de alienação na família, onde afirmaram
terem “integra saúde física e mental”, mesmo com os três casos de transtornos mentais
identificados. O primeiro estava associado ao tio de Joaquim, que “finou-se no Hospício
Nacional de Alienados” por decorrência de um “edema crônico”. O segundo dizia respeito à
irmã classificada como “histérica com perturbações mutais”, também internada e
diagnosticada como “demente precoce”. O terceiro caso, era de um irmão que sofria de
“neurastenia”. 206
Na tentativa de compreender as origens da doença, os psiquiatras se basearam nas
teorias da degenerescência que explicavam os sintomas de alienação através do princípio da
hereditariedade. Desenvolvida por Bénédict Augustin Morel, em meados do século XIX, a
degeneração poderia se encaixar em diversos contextos, mas sobretudo se sustentava na ideia
de herança, ou seja, se determinada família fosse acometida por algum transtorno mental, a
tendência era que as próximas gerações também a desenvolvessem. Ela podia surgir de
formas variáveis sejam elas “passageiras ou crônicas se as suas causas forem efêmeras ou

205
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1986. p.126.
206
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 48.
106

permanentes”, além de “congênitas ou adquiridas; completas ou incompletas; curáveis ou


incuráveis”.207
Sem sintomas que pudessem relacionar as causas à infância, o fato de maior relevância
consistiu em quando o sujeito “caiu do bonde” e sofreu uma contusão na cabeça ao visitar o
“santuário do Bonfim”. Após a queda, o encaminharam para casa ainda desacordado e,
segundo os peritos, em “estado de inconsciência e coma”. A contusão na cabeça foi
considerada fator determinante para os delírios posteriores da vida adulta e para o assassinato
de Eponina.
Os médicos também não identificaram no indivíduo “anomalias de caráter”, pois
mesmo que um parente tenha reportado “tendências megalomaníacas” do engenheiro, quando
por vezes citou o interesse em “grandes fortunas e de posições de destaque na atividade social
ou política”. Situação diferente de outros casos, nos quais tais aspirações se tornaram
sintomas de alienação, eles ignoraram o relato, explicando que “sonhos da infância, mesmo
que desacordem francamente com as possibilidades do meio e do tempo, não costumam ser
pressagio de alienação na idade adulta”. 208
Por pertencer a um grupo social de prestígio e ter cursado ensino superior, para os
médicos baianos, os sintomas não se adequavam ao seu perfil. E ao tomarmos como base as
concepções teóricas que norteavam o pensamento do diretor do asilo naquele momento, que
também foi designado para ser um dos peritos responsáveis pela análise do caso de Joaquim,
não nos surpreenderia se definisse tal critério como fundamental para dissociá-lo da ideia de
degeneração, afinal, os indivíduos enquadrados neste perfil viviam condições de pobreza.209
Aos 21 anos de idade, Joaquim se casou com Eponina e ambos mantiveram a união
durante quinze anos, até o assassinato. Segundo relatos, o casal vivia uma “vida aceitável”,
sem registros de “acidentes”, “contratempos” e “anormalidades”. A partir de 1910, as
características e hábitos se transformaram na vida privada quando um negócio ao lado dos
amigos correu de forma desastrosa, embora não tenha sido dito os motivos do fracasso, a não
ser a questão da “deslealdade” de algum dos envolvidos. Após tais fatos, o paciente entrou em
profunda decepção e “entristeceu-se profundamente”, ocorrendo desta forma o início do que
classificaram como “extravagancias delirantes e consequentes ações destemperadas”.

207
CAPONI, Sandra. Loucos e degenerados: Uma genealogia da psiquiatria ampliada. Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 2012. p. 86.
208
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 49.
209
Sobre as ideias de degeneração difundidas por Emil Kraepelin que influenciaram os médicos
brasileiros, ver: MUÑOZ, Pedro Felipe Neves de. Degeneração atípica: uma incursão ao arquivo de
Elza. Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz: Rio de Janeiro, 2010. p. 70-72.
107

A despeito de considerarem que de fato as perdas pecuniárias coincidiram


simultaneamente com as decepções no círculo social, os peritos ressaltaram a importância em
apontar a impossibilidade no desenvolvimento de alienação mental por motivos de “amizade
traída”, pois se tratava de um “cérebro” classificado como “inteiramente válido”. Para eles,
tais motivações só poderiam impactar a partir do momento que essas eventualidades fossem
“circunstância precipitadora de um desmantelo psiquismo, que certas forças coercitivas da
inteligência ávida vinham equilibrando”.210
Com tal afirmativa, foi necessário maior implementação de pesquisa acerca do perfil
do então estudado engenheiro. Desse modo, os peritos não se limitaram apenas a observação
do indivíduo no Asilo São João de Deus, foram além, e adquiriram relatórios de passagem
anterior em outra casa de saúde no Rio de Janeiro. Dentre os examinadores na instituição
carioca, esteve responsável pelo seu caso o médico baiano Juliano Moreira, nomeado diretor
do Hospício Nacional dos Alienados em 1903. Na observação identificou que:

[...]continua agitação por dias e noites igualados numa vigília inconsciente,


revoas delirantes de nascente alucinatória sem rebuços, gestos e maneiras
estereotipadas de expressão religiosa (sempre a rezar, a ajoelhar-se a benzer-
se), quando não eram tentativas de suicídio; frustradas por efeito de assídua
enfermagem fiscalizadora.211

Como mencionamos na primeira parte desta dissertação, Juliano Moreira teve um


papel fundamental para o desenvolvimento da psiquiatria no Brasil e chegou a refutar a
relação entre as doenças mentais ao fator racial e climático. A base teórica dos escritos
produzidos na segunda fase da sua vida profissional e acadêmica era influenciada pelo
organicismo kraepeliano, cuja ideia central se concentrava na “produção de uma síntese entre
a etiologia moral e física, tomando-se o determinismo físico-orgânico como englobante de
uma provável etiologia moral”. 212
Desse modo, como o trecho de Juliano Moreira transcrito no exame de sanidade
mental de Joaquim indica, ele se preocupou na sua análise muito mais na construção de um
perfil nosológico, descrevendo assim ações do paciente que lhe levava a compreender o caso
estudado.

210
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 49-50.
211
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 53.
212
Ver: VENANCIO, Ana Teresa A Doença mental, raça e sexualidade nas teorias psiquiátricas de
Juliano Moreira. Physis: Revista de Saúde Coletiva [online]. 2004, v. 14, n. 2.p. 283-305.
108

Dentre os discorridos sintomas durante a análise, o suicídio possivelmente era uma


preocupação para os familiares e médicos baianos. Entretanto, a compreensão deste fenômeno
demorou a ser investigada cientificamente na Bahia. Segundo Daiane Santos de Souza, a
primeira tese sobre a temática foi escrita por Antônio Sarmento no ano de 1919, sob a
influência de discussões voltadas para a religiosidade e espiritualidade do século XIX. Nesse
trabalho de conclusão da graduação em medicina, ele indagou a possibilidade do suicídio se
constituir como crime, por acreditar que se determinado indivíduo tivesse a capacidade
praticar delitos contra si, teria total capacidade para proceder com qualquer outro cidadão. 213
Por ter apresentado alguma melhora, o engenheiro recebeu alta na casa de saúde,
retornando assim à cidade de Cachoeira, na Bahia. Contudo, a retomada a vida social não
significou melhora, visto que os delírios persecutórios se tornavam cada vez mais comuns e se
deslocavam para a vida privada, com as crises de ciúmes contra a Eponina, e pública, a partir
das desavenças com colegas de trabalho e na política. Em uma delas, fugiu de casa correndo,
saiu de Cachoeira e foi localizado na cidade de Maragogipe.214
Ao adentrar no quadro psicológico, os peritos se depararam com um cenário de
estabilidade, pois não havia indício de alterações. Pelo contrário, no que denominaram como
orientação “auto psíquica”, Joaquim possuía total noção de quem era, de tempo e de espaço.
Contudo, no que diz respeito à afetividade, apontaram para uma personalidade egocêntrica, ou
seja, ele não possuía qualquer “interesse pelos seus, pelos que lhe são diretamente pertinentes
como os filhos”, recorrendo aos seus pais, amigos e parentes para questões de interesse
próprio.215
No diagnóstico, enfatizaram os delírios persecutórios, havendo espaço também para o
elemento principal que impulsionou o crime: os ciúmes. Definiram, portanto, a existência de
dois grupos distintos, os “ciumentos de amor” e os de “loucura”. Diferentemente dos últimos,
os primeiros são considerados com níveis elevados de normalidade e menos propícios a se
entregarem as paixões. Desse modo, afirmaram que:

Jamais o ciumento de amor, o ciumento normal, quando se lança, no fastígio


da paixão, à supressão de ser querido por querê-lo só para si, jamais tal
ciumento deixa de agitar-se, na perplexidade que não oculta, entre a

213
SOUZA, Daiane Santos de. “Os vencidos na vida”: discursos sobre o suicídio na cidade de
Salvador na primeira metade do século XX. Alagoinhas: UNEB, 2018. p.26
214
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 55.
215
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 57-58.
109

consciência da legitimidade de violência ultimada e o arrependimento de não


ter poupado a quem fugira a exclusividade de seu amor.216

Ao afirmarem a anormalidade do seu ciúme, o diagnóstico final se configurou a partir


da psiquiatria moderna. Para os peritos, ele sofria de “delírio condenado em torno das ideias
persecutórias”, incurável e de caráter “crônico, sistematizado e progressivo, de base
alucinatória”. Para chegar a essa conclusão, fixaram-se no intermédio de duas concepções
teóricas: a francesa, sustentada nos estudos de Valentin Magnan e a alemã, atravessada pela
classificação das doenças mentais, elaborada por Emil Kraepelin. Para eles, as duas
contemplavam resultados positivos para a compreensão do caso. Se optassem pela primeira
linha, explicariam o diagnóstico como um “delírio crônico”, enquanto na segunda, uma
“parafrenia sistemática”.217
No espaço destinado aos questionamentos judiciais acerca do quadro clínico do
engenheiro, responderam que ele era um alienado, por isso, não podia pagar pelo crime na
cadeia, em meio a criminosos comuns. Segundo os peritos, ele não era responsável pois os
“atos violentos praticados pelo examinado estão na mais clara dependência de suas
alucinações e de suas cogitações delirantes”.218
Livre da prisão e fora dos holofotes da imprensa, os rastros sobre Joaquim Pereira
Navarro de Andrade têm seu fim tanto nos periódicos quanto no processo crime de maneira
favorável ao indivíduo, ao menos em comparação a outros alienados que também cometeram
crimes. Até o momento que identificamos fontes o envolvendo, temos conhecimento que se
transferiu para o Hospício Nacional dos Alienados do Rio de Janeiro, anos após a justiça ter
proferido a sentença final.
Nos Annaes da Câmara dos Deputados no ano de 1915, o seu pai recorreu a uma
autorização de licença de um ano das atividades nos Telégrafos, o que indica que neste
período ainda era interno do Asilo São João de Deus. O requerimento dizia o seguinte:

O Dr. Luiz Thomaz da Cunha Navarro de Andrade solicita do Congresso


Nacional um ano de licença, com ordenado, para seu filho e curatelado, o
engenheiro Joaquim Pereira Navarro de Andrade, inspector de terceira classe
da Repartição Geral dos Telégrafos, o qual se acha interdito, por sofrer de

216
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 64-65.
217
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 66-67.
218
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80, p. 68.
110

Afeição mental e internado no Hospício de S. João de Deus, na cidade da


Bahia.
Alega que o dito seu filho, não dispondo de outros recursos senão os
vencimentos do cargo, tem oito filhos menores órfãos de mãe.
O requerimento, encaminhado pelo Ministério da Viação e Obras Públicas,
vem acompanhado de três certidões que provam ter o sobredito funcionário
gozado do prazo máximo das licenças que lhe podiam ser concedidas
administrativamente, ex-vi da lei n. 2.756, de 10 de janeiro de 1913, de
laudo de inspeção de saúde, opinando precisar ele de um ano ou talvez, mais,
de tratamento, de atestado do diretor do Hospício, acima referido, afirmando
achar-se o doente internado naquele estabelecimento e de certidão do termo
de curatela assignado pelo peticionário.
O vencimento de um inspector de 3° classe da Repartição Geral dos
Telégrafos é 6:000$000.
A comissão de Petições e Poderes, tendo em vista as condições especiais em
que se acha o aludido funcionário [...]219

Como se pôde constatar, enquanto funcionário público, o indivíduo ainda possuía o


direito de receber seus vencimentos, por estar em tratamento de saúde, condição que se
modificaria caso fosse encaminhado para a prisão. Nesse sentido, o exame de sanidade mental
realizado pelos peritos durante a diligência permitiu a concessão salarial.
Após repetitivas renovações de pedidos, Joaquim se aposentou no ano de 1929220,
sempre sobre a curatela do seu pai, que faleceu em março de 1934. Após a morte de Luiz
Thomaz, passou pela curatela de dois genros. O primeiro foi Antônio Pereira Espinheira,
marido de Waldomyra, primogênita que no período do assassinato tinha doze anos. Ele
solicitou ao juiz da Vara de Órfãos, Menores e Ausentes a responsabilidade de assumir o
papel de curador do sogro. No requerimento, justificou o pedido “para tratar dos interesses do
interditado”, informando que o indivíduo estava sob tratamento no Hospital dos Alienados.
Em razão da morte de Antônio de tuberculose, em 1937, a curatela passou a ser
responsabilidade de Luiz Gonzalez Martins. 221
Apesar da fonte não ter indicado qual das filhas era a esposa de Luiz Gonzalez, as
possibilidades apontam para as outras três filhas: Hildette, Aydée ou até mesmo Eulália que
contaria nesse período com vinte e três anos. Dos oito filhos gerados no matrimonio com
Eponina, quatro eram mulheres e quatros homens, nesse sentido, era natural que os últimos
tivessem assumido a curatela após a morte do avô, o que não ocorreu. Tal responsabilidade foi

219
"Autoriza a conceder a Joaquim Pereira Navarro de Andrade um anno de licença, com ordenado",
Annaes da Câmara dos Deputados, sessões de 21 a 31 de agosto de 1915, vol. X, Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1917.
220
"Echos, O Tempo", O Imparcial (RJ), 06.07.1920. p.2.
221
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal de Justiça. Série: Homicídios, Seção: Judiciária. Estante
193, Caixa: 80. p. 70-78.
111

assumida por genros, talvez pelo assassinato ter culminado no afastamento entre Joaquim e os
filhos.
Também não foi possível identificar através da fonte se foram permitidas saídas
periódicas para o tratamento em residência, ambiente que, a depender do caso, era
considerado positivo para a melhora do paciente. Outro aspecto que não pôde ser identificado
era se algum dia o indivíduo retornou à vida comum, afinal, os últimos documentos deixados
no processo crime estão ligados a questões burocráticas de curatela, o que indica que ele
passou juridicamente o resto dos dias sob tratamento, pois como os médicos indicaram, o seu
caso era irreversível.
A sua trajetória, portanto, é marcada por variados elementos que o cercam e que
interferem diretamente na decisão pela interdição. O caso analisado está amplamente
associado a discussões relacionadas ao aparato jurídico, a relacionamentos abusivos, ao
universo privado, ao desenvolvimento científico e aos privilégios ligados à questão de classe.
A experiência vivida por Joaquim Pereira Navarro reforça a ideia de que nem todos os
indivíduos gozaram dos mesmos privilégios no que concerne aos aparatos legais, com
critérios desiguais para os distintos grupos sociais. Mas como já vimos e veremos a seguir,
nem todos alienados estavam à mercê dos mecanismos do sistema e desenvolveram formas de
resistência silenciosas.

2.3. O Roubo da Casa Ferraz

A aproximadamente oito e meia da noite do dia 26 de janeiro de 1913, um roubo


surpreendeu os moradores da Rua Chile, distrito da Sé, na cidade do Salvador. Tratava-se da
Casa Ferraz, joalheria do proprietário Plínio Ferraz. Tudo indicava que a ação foi organizada
dias antes pelos criminosos e eles utilizaram métodos incomuns para adentrar na loja. Ao
chegarem ao local, as autoridades policiais identificaram “vestígios de violência” na estrutura
do prédio, quando encontraram “arrombado o assoalho do 1° andar”, onde funcionava o
escritório do cirurgião dentista Paulo de Moraes.222
Após a denúncia, a polícia foi acionada e imediatamente partiu para o local. Depois de
isolá-lo tentaram compreender como se deu o crime. Na análise pericial havia uma
preocupação em traçar os elementos principais a partir da organização de informações, ou
seja, se buscou saber quem esteve no local, se havia seguranças na loja ou se os criminosos

222
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 2.
112

deixaram algum vestígio que indicasse possíveis autorias. Para responder a esses
questionamentos, profissionais especializados iniciaram o auto de “exame de corpo e delito”
no assoalho, considerada uma ferramenta importante para a polícia no caminhar do processo
investigativo.
Por se tratar de um arrombamento, perguntas surgiram a partir da análise do local
como por exemplo se “houve violência para essa entrada”, se o “orifício aberto” dava
passagem a uma pessoa e quais os instrumentos usados para o arrombamento.223 A intenção
inicial se direcionava às possibilidades, ao passo que era necessário compreender como os
sujeitos operaram, para em seguida concluir de que modo conseguiram adentrar no
estabelecimento, que estava trancado e roubar pertences sem sequer arrombar a porta frontal.
Várias suspeitas certamente circundaram o pensamento dos policiais, mas uma delas talvez
tenha sido a mais latente: a de que o roubo não ocorreu por acaso, tivera sido tramado por
alguém que conhecia o local e provavelmente calculou qual seria o dia e o horário ideais.
Ao se depararem com o assoalho arrombado no dia 28 de janeiro, confirmaram a
violência no procedimento da invasão, assim como concluíram que “uma pessoa de
compleição” pequena poderia facilmente passar pelo buraco, desde que o “diâmetro
anteroposterior do tórax não excedesse a largura de um dos raios” e tivesse o auxílio de
cordas para descer do primeiro andar para o térreo, local onde funcionava a joalheria. A
decisão mais assertiva para a conclusão do roubo, já que o próprio exame constatou a
tentativa fracassada de arrombamento das vitrines laterais da loja, que apenas deixaram
mossas causadas pelos “instrumentos de ferro” utilizados.224 Como indicam as fotografias
abaixo:

223
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 9.
224
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 12.
113

Figura 13: Local de acesso dos bandidos ao interior da Casa Ferraz.

Fonte: APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante
14, Caixa: 483. p. 81.

Figura 14: Ferramentas encontradas no primeiro andar da joalheria.

Fonte: APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante
14, Caixa: 483. p. 84.
114

Figura 15: Outras ferramentas encontradas no primeiro andar.

Fonte: APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante
14, Caixa: 483. p. 83.

Figura 16: Caixas de joias vazias deixadas após a fuga.

Fonte: APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante
14, Caixa: 483. p. 82.
115

A partir das informações dos autos e das fotografias no processo crime, é possível
compreender o enfoque e os procedimentos policiais para tentar solucionar o caso, visto que
os registros tinham como objetivo reconstruir minuciosamente os procedimentos utilizados
pelos bandidos na noite do crime, além de coletar provas suficientes a serem confrontadas no
questionamento das testemunhas e suspeitos.
O avanço das ciências criminais ao final do século XIX certamente possibilitou a
implantação de métodos mais eficientes na análise pericial. Na Bahia, apesar da sugestão de
implantação de um espaço dedicado ao procedimento da medicina-legal nas repartições
policiais por parte de Nina Rodrigues, ainda no início do século XX, o serviço só passou a
funcionar de fato após a regulamentação e sob a denominação de Gabinete de Identificação e
Estatística, no governo de J.J Seabra, em 1912. Nele, os procedimentos tidos como modernos
para aquele período se tornaram métodos para a solução dos crimes, como o sistema de
identificação Vucetich, a implantação da fotografia nos procedimentos criminais e a
antropometria. 225
Diante da divulgação do exame e dos resultados prévios, o passo seguinte das
autoridades policiais consistia na convocação dos funcionários do prédio, pois como se tratava
de um edifício comercial, se imaginava que os criminosos provavelmente estiveram presentes
anteriormente para o reconhecimento do local e dos melhores horários para proceder com o
ato. Neste momento inicial, os maiores suspeitos eram os homens que trabalhavam na
segurança do estabelecimento.
O primeiro intimado, Justino Bispo de Oliveira, de dezenove anos, se apresentou para
depor no dia vinte e oito janeiro. Ele trabalhava para Plínio Ferraz e não sabia nem “ler nem
escrever”. Perguntado pelo delegado Francisco de Paula Castro Lima o que sabia sobre o
ocorrido, respondeu que saiu da sua casa situada na Rua Chile às cinco e meia da manhã e se
deslocou em direção a do patrão no distrito da Vitória, chegando ao local, iniciou a jornada de
trabalho até as sete e meia da noite e depois foi a loja. Lá, não encontrou o vigia João
Archanjo de Oliveira e se deparou com o arrombamento, motivo que o fez comunicar o
ocorrido urgentemente ao patrão e à polícia.226
Em seguida, João Archanjo de Oliveira, o segundo intimado, respondeu aos autos de
perguntas organizados pelos policiais. Ele tinha vinte anos de idade e residia na mesma casa
do seu patrão, Plínio Ferraz, e como Justino, não sabia ler nem escrever. O delegado repetiu a
225
COSTA, Iraneidson Santos. A Bahia já deu régua e compasso: o saber médico-legal e a questão
racial na Bahia, 1890-1940. Salvador: UFBA, 1997. p. 152-153.
226
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 14-15.
116

pergunta ao indivíduo, que respondeu que no dia do roubo pediu a autorização do patrão para
visitar a irmã, Cândida, na Travessa de Roma e ao retornar ao distrito da Vitória lá
permaneceu até as oito horas da noite, horário que geralmente trabalhava na vigília da
joalheria. Chegando ao local, Justino o esperava, foi quando tomou conhecimento sobre o
arrombamento do assoalho e do roubo, a partir disto, saiu para pedir reforço a polícia. Na
tentativa de se defender de possíveis enganos, João alegou que ninguém exceto ele e Pedro de
Lima Bispo, funcionário de Paulo de Moraes, possuíam as chaves da porta de entrada do
prédio. Afirmou que se alguém deveria ser atribuído ao crime, era quem frequentava o
consultório do primeiro andar, tendo ele em outras oportunidades encontrado “um formão,
uma alavanca de ferro e uma torquês escondidos dentro de um caixão coberto com um tapete
no gabinete dentário”. Após àquele dia, o dentista tentou inúmeras vezes retirá-lo da função
na loja, chegando a lhe associar como autor do furto de um “fundido e lâmpadas elétricas”. 227
O terceiro intimado, Pedro Bispo de Lima, tinha quinze anos de idade, trabalhava no
gabinete do dentista Paulo de Moraes e diferentemente dos dois últimos, sabia “ler e
escrever”. Sobre o arrombamento, relatou que tomou conhecimento apenas quando chegou na
segunda pela manhã para trabalhar e avistou o local cercado por policiais. Perguntado o que
fazia no dia anterior, disse ter ido limpar o gabinete, saindo às dez horas da manhã e após o
serviço, devolveu as chaves na casa do patrão. Na última pergunta, o delegado desejava saber
se o garoto presenciou alguma situação ou suspeitava de alguma pessoa que costumava
frequentar o gabinete. O intimado disse que em certa ocasião um homem que se dizia
negociante “em fazendas” visitou o consultório e ele o flagrou “olhando muito para as
chaves”, contudo, não sabia informar o seu nome e muito menos onde residia. A partir deste
momento as possibilidades deslocaram a polícia para um indivíduo externo, que embora não
exercesse funções no prédio, tinha total conhecimento da rotina.228
Dois aspectos são relevantes sobre a intimação dos funcionários. A primeira está
ligada ao perfil de suspeição dos indivíduos, que apesar de conhecidos dos seus patrões, na
perspectiva das autoridades não podiam estar excluídos da possibilidade de envolvimento no
crime. É significativo que dois dos três intimados se encaixassem no alto índice de
analfabetismo característico da sociedade soteropolitana durante as primeiras décadas do XX,
além disso, os resquícios da escravidão nas relações de trabalho no pós-abolição também
parecem ser nítidos mesmo após quase trinta anos das medidas elaboradas pela Câmara
227
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 15-17.
228
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 17-18.
117

Municipal em dezembro de 1886, que na ocasião, buscaram regulamentar o serviço


doméstico, sob o interesse de favorecer as famílias abastadas e impedir a ociosidade dos
libertos no processo de substituição da mão-de-obra escrava pela livre. No texto, constava que
os criados que abandonassem o serviço dos seus patrões estariam sujeitos a multas ou prisões,
sendo permitida a desvinculação apenas quando ocorresse a “falta pontual de pagamento e
maus tratos”.229 Possivelmente os funcionários mantiveram vínculos empregatícios pelo fato
de familiares terem estabelecido anteriormente relações de trabalho com seus patrões.
Outro aspecto é o perfil das relações de trabalho na sociedade baiana, no qual não
havia definição por idade, fator que nos é apresentado quando Pedro de Lima Bispo afirmou
realizara limpeza do escritório, o que devia ocorrer constantemente. Segundo Aldrin
Castellucci, a utilização da mão-de-obra infantil era uma prática relativamente comum na
Bahia, pois além de pouco custosa, era também de maior facilidade no controle e obediência
em comparação aos trabalhadores adultos. Os menores se envolviam geralmente em trabalhos
de pouca exigência em termos de qualificação e na maioria das vezes doavam a sua força em
troca da “aprendizagem de um ofício pouco qualificado, da comida, do alojamento e das
roupas”.230
Apesar de não haver nenhuma referência ao perfil racial dos indivíduos nos autos de
perguntas, é provável que eles fossem pessoas negras ou pardas. Perfil de suspeição esse que
estava inserido na lógica das chamadas “classes perigosas”231 fomentada ainda aos finais do
século XIX. Ou seja, na perspectiva das autoridades, talvez os três intimados fossem os
principais suspeitos do crime primeiramente por se encaixarem na configuração de perfil
social e racial considerada naquele período de maior predisposição ao crime, e por último, por
conhecerem as fragilidades na segurança do local.
No dia 7 de março, novas informações deslocaram as autoridades a supostas vendas de
relógios roubados na Rua da Alfandega, distrito da Conceição da Praia. Naquele local o
comerciante Emílio Schlang suspeitou da procedência de objetos e imediatamente os associou
aos que foram roubados na Casa Ferraz. Rapidamente o quebra-cabeças cercado por mistérios

229
FRAGA, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-
1910). 2° ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p.327-328.
230
CASTELLUCCI, Aldrin Armstrong. Industriais e operários baianos numa conjuntura de crise
(1914-1921). Salvador: FIEB, 2004. p.133-134.
231
A ideia de suspeição estava amplamente ligada a ideia de classes perigosas, conceito que esteve no
período associado aos grupos de indivíduos pobres e negros do Brasil pós-abolicionista. Nesse sentido,
na concepção dos grupos dominantes, a pobreza estava associada aos vícios e à proliferação de
doenças e por isso tinham maior probabilidade de produzir malfeitores. CHALHOUB, Sidney. Cidade
Febril: Cortiços e epidemias na corte imperial. 2° ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p. 23-
27.
118

ganhava a forma esperada, e as testemunhas preencheram as lacunas para a solução do caso.


Assim, relataram que o estudante de odontologia Arnóbio Marques Monteiro foi visto com o
“negociante” Pedro da Silva Rego, tentando a venda dos objetos em locais diferentes,
primeiro na Loja Schlang, depois na Pastelaria Primavera, localizada na Rua do Colégio. 232
Convocados para depor sobre as alegações, os suspeitos precisaram explicar os
motivos pelos quais portavam um número elevado de joias e a urgência na tentativa de venda.
A finalidade das autoridades era cruzar informações e descobrir se de fato os objetos estavam
associados ao delito na Casa Ferraz. Seriam eles os verdadeiros autores do roubo?
O intimado a depor no mesmo dia da denúncia foi Arnóbio Marques Monteiro, de
vinte anos, filho do professor Leonidio Marques Monteiro e que residia nas Portas do Carmo,
distrito da Sé. Os oficiais não titubearam em efetuar perguntas diretas sobre a presença do
estudante de odontologia na tarde do dia anterior para a venda de um “relógio de ouro, de
marca "Invicta", e também garras de anel de platina” na loja de Emílio Schlang.
Ele confirmou que esteve no local na tentativa de vender o objeto, contudo, alegou que
o dono do estabelecimento disse possuir “em sua casa grande sortimento de relógio”. Já a
garra de platina despertou o interesse do proprietário da loja, mas antes, a solicitou para a
averiguação sobre a sua originalidade, a encaminhando aos funcionários da Casa Ferraz.233
Após o retorno e constatada a legitimidade do produto, Schlang alegou que pagaria
“quatro mil reis por grama”. O valor foi imediatamente recusado por Arnóbio, que declinou
nas negociações pois estava autorizado a vendê-la para o suposto dono por “sete mil reis a
grama”. Sem conseguir concretizar a venda, foi ao encontro de Pedro da Silva Rego no intuito
de devolvê-las, mas, segundo o estudante, ocorreu uma conversa entre ambos ao subirem a
Ladeira da Montanha, ocorrendo assim a divisão das joias para que continuassem a venda. Se
desvencilhar da garra de platina ainda era responsabilidade de Arnóbio, entretanto, desta vez a
havia um comprador: o negociante romeno Jacob Grenffeld. Segundo o estudante de
odontologia, a venda se concretizou no valor final de “trinta e cinco mil reis”, quantia
entregue imediatamente ao dono dos objetos.234
Os valores apresentados indicam que a venda de joias era um negócio promissor na
cidade de Salvador, onde estrangeiros tinham o comércio como principal fonte de renda.
Outro ponto relevante é a divisão do trabalho e as relações sociais e econômicas que a

232
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 5.
233
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 23-24.
234
Idem.
119

comercialização desse tipo de produto gerava. É de se notar a existência de ofícios


especializados em averiguar a legitimidade das joias, e quando não se tinham funcionários
qualificados para tal função, a terceirização de outras lojas podia ser uma alternativa eficiente
para que se evitasse ser enganado por falsificadores.
Tal delito era relativamente comum nas primeiras décadas do século XX, afinal, com a
expansão da vida urbana, do comércio e o desenvolvimento dos meios de transportes
ferroviários e marítimos, algumas práticas ilegais também se intensificaram. Nesse sentido, é
de se considerar que nem sempre os delitos se configuravam como crimes de sangue, segundo
Diego Galeano, havia também os criminosos profissionais que se articulavam através de
atividades clandestinas e agiam de maneira astuta, modificando a aparência ou se mudando
para outros países quando identificados pela polícia.235
A chegada de estrangeiros no Brasil se deu de maneira intensa em meados do século
XIX e na Bahia o processo não foi diferente, apesar de menor fluxo em relação a outros
estados da federação. Neste período, a imigração de grupos sociais de diversas
nacionalidades, sobretudo do continente europeu, marcou o fluxo imigratório e a adesão
principalmente de italianos na construção da estrada de ferro da Bahia. 236
Ao nos voltarmos para o século XX, é perceptível a participação de imigrantes no
testemunho da diligência, como é o caso de Jacob e de outros espanhóis. A presença destes na
cidade demonstra a diversidade cultural na capital, bem como a ocupação de estrangeiros no
comércio. Considerando o fato de Salvador ser uma cidade portuária, com o fluxo intenso de
pessoas e mercadorias, é possível que a tramitação clandestina de diversos produtos tenha
sido uma atividade comum entre baianos e estrangeiros durante a primeiras décadas do século
XX. O comércio de joias, em que negociantes e proprietários se articulavam, era composto
por redes complexas de relações também passíveis de ilegalidades.
A relação construída entre Pedro e Arnóbio não chegava a ser uma amizade duradoura.
Segundo o estudante, eles se conheceram cerca de dois anos antes ao roubo por intermédio do
seu tio, um dentista a quem o negociante era “amigo íntimo há muitos anos”. Classificou a
relação como de “camaradagem”, na qual a confiança dispensava a indagação da procedência
dos objetos, mas que, para ele, havia certa vantagem nas vendas e no silêncio, visto o
recebimento de recompensas em dinheiro e até mesmo presenteado com um relógio de prata

235
GALEANO, Diego. Criminosos viajantes: circulações transnacionais entre Rio de Janeiro e
Buenos Aires (1890-1930). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2016. p. 40-44.
236
SOUZA, Robério S. Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos
na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2015.
p. 76-79.
120

ao conseguir empenhar “quatro relógios de ouro”, que ao final do processo lhes renderam
“cento e sessenta mil reis” no Monte do Socorro. Mas em meio a essa relação existia certo
cuidado por parte de Pedro quanto à procedência dos seus produtos e ele geralmente
recomendava a Arnóbio que “não procurasse saber onde era a mina”.237
Cada vez mais o negociante era o principal suspeito do roubo da Casa Ferraz, isso
porque o estudante de odontologia concedeu informações preciosas sobre quem eram as
pessoas que Pedro costumava ter contato, bem como os locais que costumava visitar durante o
seu ofício e a frequência. Assim, foi revelado que ele era “frequentador assíduo” do gabinete
dentário de José Paulo de Moraes, que funcionava no primeiro andar do prédio que há cerca
de um mês havia sido invadido, tendo os pertences subtraídos.238
Ao fim do depoimento de Arnóbio, Pedro da Silva Rego se apresentou na sala para
responder à inquirição. Ele tinha vinte e nove anos, era pardo, residia em Madragoa, distrito
Penha e se declarou comerciante. Quando perguntado se entregou ao estudante de odontologia
“um relógio de ouro de marca Invicta, uma garra de anel de platina, três garras de anel de
ouro” prontamente negou, disse também não ter recebido nenhum pagamento relacionado ao
objeto vendido a Jacob Grenffeld e que ele descobriu o nome “exato” do estudante de
odontologia somente naquele momento, visto que o conheceu enquanto bebia em certa
ocasião, se deparando com ele em encontros de “mera casualidade”.239
O delegado direcionou perguntas principalmente à questão das joias e aos encontros
com Arnóbio para tratar de negociações relacionadas a vendas, mas obteve sucessivas
negações como resposta sem a preocupação de que as testemunhas tivessem alegado o
contrário. Desse modo, os últimos questionamentos pretendiam identificar inconsistências nos
relatos coletados, por isso, as autoridades tentaram compreender qual a natureza das suas
relações com José Paulo Moraes, proprietário da clínica dentária arrombada, Joaquim
Marques Monteiro, tio de Arnóbio, que trabalhava no mesmo gabinete situado na Rua Chile, e
por último, Sabino Fiuza apresentado no processo crime como cirurgião-dentista.
Embora tivesse dito não ter qualquer relação de amizade com Arnóbio, mas que já o
teria visto no gabinete do seu tio, Joaquim, a quem mantinha as “mais intimas relações de
amizade”, afirmou manter relações de amizade com Paulo Moraes, desde o colégio” e a
proximidade “cultivada” entre os dois se estendia ao âmbito familiar. Enquanto a Sabino

237
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 24-26.
238
Idem.
239
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 27-28.
121

Fiuza, dizia o conhecer apenas por ele prestar “assistência” ao seu amigo de infância
periodicamente no consultório.240
Depois de inquirir Pedro, o delegado da 1ª Circunscrição ouviu as testemunhas
Valentim Senra Paz, Deolindo Vidal Barral, Marcellino Nogueira Garrido, Cesinio Patrício
Ribeiro de Campos, a fim de confrontar os relatos das testemunhas que presenciaram as
negociações. Era comum a presença dos suspeitos na sala de testemunhos e ao final da fala,
eles tinham o direito de questionar ou não o que tivera sido dito.
O primeiro deles, Valentim, tinha vinte anos, espanhol, e se autodeclarou “empregado
de comércio” na Pastelaria Primavera, local onde presenciou algumas das negociações.
Convocado a depor por presenciar as negociações e efetuar uma das compras, afirmou que os
relógios confiscados pertenciam a Pedro. Quando perguntado se não suspeitou da
“procedência de tais objetos” prontamente respondeu que “se houvesse alguma desconfiança,
essas transações não seriam feitas”, afinal, eles eram velhos conhecidos e “tinham o hábito de
transigir com a casa por muitas vezes”. Ao final, Arnóbio nada contestou sobre o depoimento,
ao contrário de Pedro que alegou haver inverdades no discurso pois os relógios não eram
seus. 241
Deolindo tinha vinte anos e era espanhol, mas trabalhava no restaurante Recreio
Bahiano. Apesar de proferir breve depoimento, sem fornecer maiores informações sobre as
negociações das joias, indicou inconsistências no discurso de Pedro, quando se tratava da
relação de camaradagem que este tinha com Arnóbio. Embora não se recordasse o dia exato,
afirmou que o negociante e o estudante de odontologia almoçaram juntos no restaurante às
vésperas da intimação.242
A terceira testemunha, Marcellino Nogueira Garrido, tinha vinte anos e era de origem
espanhola como os outros dois. Funcionário da Pastelaria Primavera, ele confirmou o
depoimento do colega Valentim, alegando que os objetos de fato foram negociados pelos
indivíduos no estabelecimento, sendo trazidos e entregues ao chefe de polícia após as
intimações. Como a primeira testemunha, ele não suspeitou em momento algum da

240
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 29-30.
241
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 33-35.
242
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 35-36.
122

procedência dos relógios pelo mesmo motivo. Relato novamente negado por Pedro, que dizia
contestar “por ser tudo falso”.243
O quarto e último depoimento deste dia foi produzido a partir das respostas do
proprietário do Hotel Avenida, Cesinio Patrício Ribeiro de Campos, de quarenta e seis anos.
O seu estabelecimento se situava na Rua do Tesouro, defronte da Caixa Econômica, onde
Arnóbio empenhou parte das joias. O objetivo da polícia era constatar a frequência dos
indivíduos naquela região. De fato, a testemunha avistou Pedro parado na frente do hotel
durante tempo considerável na quarta-feira anterior à intimação, conseguindo o identificá-lo
com clareza e, em razão de o conhecer “perfeitamente”, o cumprimentou “quando saiu e
quando voltou”. Novamente o indiciado negou, tendo alegado que sequer “veio à cidade” no
dia supracitado.244
À medida que as testemunhas auxiliaram a polícia com as informações necessárias, o
processo ganhou direcionamento para uma possível resolução. Jornais como o Gazeta de
Notícias: Sociedade Anonyma noticiaram o caso em doze edições e o acompanharam desde o
anúncio dos suspeitos até as decisões jurídicas, tentando influenciara opinião pública através
da sua linha narrativa acessível aos consumidores. O órgão de imprensa participou ativamente
como palco de debates acerca do roubo, dos suspeitos e na divulgação das recompensas a
quem contribuísse na descoberta dos envolvidos durante as fases iniciais do crime.
As sucessivas negativas geraram inconsistências no discurso, algo questionado
somente quando Arnóbio admitiu ter empenhado joias e as testemunhas entregaram
informações preciosas que provavelmente incriminavam o negociante. Quando o Gazeta de
Notícias teve conhecimento dos depoimentos não hesitou em publicar no dia dez de março
daquele ano trechos do processo em primeira mão. Como constatado por Boris Fausto no seu
estudo sobre o crime, os periódicos participavam ativamente nos processos investigativos,
pois além de noticiarem o caso, influenciavam na formação de culpa dos potenciais
criminosos por meio da linguagem sensacionalista.245

243
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 36-37.
244
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 37-38.
245
Ao narrar o processo de busca pelos envolvidos no crime do restaurante chinês, Boris Fausto se
deparou com periódicos que traziam adjetivos pejorativos diversos ligados aos suspeitos nos subtítulos
das notícias publicadas. Assim, essas fontes reforçavam e apontavam a culpa de indivíduos antes
mesmo do processo de julgamento, além de associarem o ato a determinadas grupos sociais. Ver:
FAUSTO, Boris. O Crime do Restaurante Chinês: carnaval, futebol, e justiça na São Paulo dos anos
30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 30-38.
123

Apesar dos crimes apresentarem diferenças relativas ao modo, ao local e ao período,


ambos ilustram a preocupação da imprensa com a captura de criminosos e com as medidas de
segurança, fundamentais para a proteção das classes dominantes. Iniciava-se, portanto, uma
longa batalha para a construção da culpa e nela estavam envolvidos as autoridades, a
imprensa, as testemunhas, a vítima e o próprio acusado.
A primeira publicação do periódico após os testemunhos centrava-se na exaltação do
trabalho dos policiais, precisamente no trabalho do chefe de polícia Álvaro Cova, que
segundo os repórteres ouviu os envolvidos “até as 4 horas da madrugada de sábado”. Mas o
enfoque se dirigiu às constantes negações de Pedro, cujas testemunhas já haviam esclarecido
para quem ele frequentemente vendia e quais eram os procedimentos de costume. Segundo o
órgão, negou “perfeitamente” até o conhecimento da língua francesa “que os seus íntimos”
diziam ele conhecer.246
O silêncio de certo modo favoreceu Pedro durante a diligência e permitiu que, junto ao
seu advogado, Carlos Ribeiro, procedesse com o pedido de habeas corpus na tentativa de
anular o pedido de prisão preventiva. De fato, Pedro da Silva Rego não era o tipo comum que
a polícia local costumava lidar e o conhecimento da língua francesa em uma cidade como
Salvador que possuía altos índices de analfabetismo 247 o deslocavam para outra posição na
lógica desta sociedade.
Contudo, cada vez mais o confronto entre discursos o colocava na posição de potencial
culpado e os ânimos na sala de testemunhas tenderam a fervilhar os debates entre os
envolvidos, principalmente quando se apresentaram para depor Júlia Maria da Silva e José
Paulo de Moraes.
O relato de Júlia era fundamental para que os policiais conhecessem o perfil pessoal
do indivíduo, pois ela o conhecia possivelmente mais do que qualquer outro companheiro de
negociações. Tinha trinta e cinco anos de idade, casada, filha de “país incógnitos”, trabalhava
como doméstica e residia na Travessa Dois de Julho, em Itapagipe, quando não dormia na
casa de Pedro, o “seu amásio”. A relação duradoura, de “três a quatro anos” segundo a
mulher, não foi em momento algum negada, mesmo se tratando de tema delicado nessa
sociedade. Contudo, pouco cedeu em termos de informações, talvez para não o prejudicar
ainda mais no decorrer das diligências e construiu uma figura contrária ao que as outras
testemunhas criaram. A frustração possivelmente pairou na sala de interrogatório, pois ela
246
“Pedro tudo nega -uma phrase que compromette- "habeas corpus"- prisão”, Gazeta de notícias:
Sociedade Anonyma. 10.03.1913 p.2.
247
SAMPAIO, Consuelo Novaes. Os partidos políticos da Bahia na Primeira República: uma
política de acomodação. Salvador, Editora da Universidade Federal da Bahia, 1998. p. 40.
124

pouco contribuiu para esclarecer o que os policiais desejavam saber. Júlia disse não conhecer
os amigos de Pedro, em virtude de não costumar sair, muito menos ele os levava em sua casa,
inclusive, alegou que as suas saídas à noite eram escassas, somente uma “vez ou outra”.248
Mas os depoimentos que contiveram os relatos mais notáveis para o que as autoridades
esperavam foram dados por José Paulo de Moraes, que no primeiro auto de perguntas veio em
defesa de Pedro da Silva Rego e no segundo entregou provas que aproximavam o indivíduo
da acusação do roubo da Casa Ferraz. Como já dito, ele era proprietário da clínica
odontológica situada acima da joalheria. Tinha vinte e seis anos, era solteiro e residia próximo
ao trabalho, na rua dos Capitães, Distrito da Sé. Perguntado a quem podia atribuir o roubo das
joias, disse que só poderia ser responsável um “gatuno que ali tivesse penetrado, violando o
seu gabinete”, embora admitisse a frequência de Pedro no local, e que a noite João da Silva
Rego “ali lecionava línguas”. Como se pôde constatar, o gabinete era utilizado para outros
serviços e a chave ficava na posse de outras pessoas, o que pode ter facilitado a invasão. Mas
de modo algum José Paulo de Moraes associou o crime ao negociante, ao contrário, lhes
rasgou elogios afirmando que só se podia fazer dele “juízo favorável”, pois o considerava um
“rapaz inteligente” e que o conhecia “desde o colégio” e jamais teve conhecimento “de algum
fato que viesse em desabono do seu caráter”.249
A despeito de não o associar ao crime nos autos, ele admitiu o quanto a companhia do
indivíduo era incomoda para seus familiares que chegaram a tentar intervir na amizade,
possivelmente devido a estigmas relacionados à raça.250 José Paulo finalizou o questionário
com uma informação que intensificava as suspeitas. Na penúltima pergunta, o chefe de polícia
o perguntou se percebeu qualquer “sobressalto” nas ações do negociante, ele disse que não,
embora tivesse admitido ter notado a “escassez da frequência de Pedro da Silva Rego no seu
gabinete depois do roubo”.251

248
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 39-40.
249
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 42-44.
250
Ambos viveram a infância no final do século XIX, quando o Brasil vivia mudanças político-sociais
diversas, sobretudo a partir de discussões acerca da raça em que teorias evolucionistas e deterministas
pairavam sobre o imaginário social. Desse modo, os pais de José Paulo provavelmente foram
influenciados por tais ideias que relegavam negros e mestiços à condição de “más companhias”.
Segundo Santos, os adeptos do darwinismo social tinham uma visão mais pessimista do futuro
nacional, pois condenavam o país ao fracasso, enquanto os evolucionistas defendiam a possibilidade
da melhora racial por meio dos “futuros cruzamentos”. Ver: SANTOS, Raquel Pinheiro dos. Manoel
Bonfim e Juliano Moreira: Aproximações e oposições ao racismo científico na Primeira República.
São Gonçalo: UERJ, 2014. p. 67-68.
251
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 43-44.
125

Quando convocado para o segundo auto de perguntas, José Paulo de Moraes tendeu a
colaborar com as autoridades, levando consigo a fechadura da porta do gabinete, prova que
podia conter algum vestígio para identificação de impressões digitais. Àquela altura todos os
meios serviam de auxílio para consolidar a acusação. Porém, neste dia a diligência foi
interrompida por solicitação de Pedro, que estava segundo o chefe de polícia, “bastante
incomodado e por seu estado enfermo”.252
Apesar de não especificada a enfermidade no processo crime, o jornal Gazeta de
Notícias apontou para a possibilidade de alienação mental de Pedro em uma publicação dois
dias depois da interrupção do inquérito. Na coluna do dia doze de março de 1913, citou
acontecimentos que não foram registrados pelo escrivão. Mencionaram que durante a seção o
negociante teve um “acesso nervoso” e a partir disto direcionou uma série de ofensas ao seu
amigo de infância na sala de interrogatório, e por esse motivo as autoridades decidiram pela
suspensão e remarcação.253
O caso da Casa Ferraz ganhava gradualmente tons finais de dramaticidade dos dois
lados. O primeiro, contendo Pedro, que tentava conseguir o habeas corpus junto ao seu
advogado, enquanto o polo oposto buscava encaminhá-lo a julgamento e incriminá-lo o mais
rápido possível pelo roubo. Ao continuar a narrativa do inquérito, o Gazeta de Notícias
apresentou a coluna subintitulada de “As fitas de Pedro”, onde expunha diálogos do sujeito
durante a diligência. Segundo o periódico, ao fim dos depoimentos em tom de ironia ele disse
que se o então chefe de polícia “mandasse-lhe dar um banho morno, muitas coisas lhe diria”,
continuou a provocação alegando que todo homem “tem uma túnica”, se a de Covas era de
suposto aliado da lei, a dele era “a de ladrão”. E não parou por aí, na concepção do periódico,
o intimado insistia “a se fingir de maluco” as suas ações. De mesmo modo, tentou desviar a
atenção da diligência citando obras como o Catecismo Positivista de Augusto Comte,
publicado em 1852, em seguida, provocou Isaac Jorge Franco, o advogado representante da
Casa Ferraz, o perguntando se havia lido as Mentiras Convencionais da Nossa Civilização, de
Max Nordau. A fala de Pedro teve fim quando foi encaminhado à prisão dos Aflitos.254
Como já mencionamos, Pedro da Silva Rego não era um criminoso comum, se é que
podemos defini-lo desta forma. Através do intrigante episódio do roubo da Casa Ferraz, nos

252
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 66-67.
253
"Descoberta de importante roubo, o caso complica-se, continuam as diligências", Gazeta de
Notícias, 12.03.1913, p.2.
254
“Descoberta de importante roubo, continuação de inquérito, as fitas do Pedro Rego”, Gazeta de
Notícias: Sociedade Anonyma. 13.03.1913. p.2.
126

deparamos com características peculiares no seu modo de agir, o domínio literário, as relações
pessoais. O domínio da língua estrangeira e da literatura positivista o logrou a outra posição
social, talvez a de pertencente a uma classe média, lhe permitindo boa orientação educacional
e o conhecimento da legislação que regia os direitos republicanos.
A citação das obras positivistas durante a diligência demonstra o mínimo
conhecimento do negociante acerca de linhas intelectuais do Brasil republicano. Inclusive,
segundo José Murilo de Carvalho, no final do século XIX os intelectuais positivistas reagiram
com euforia ao processo de implantação do modelo republicano, adquirindo assim maior
popularidade entre os civis e militares, ainda que existissem divergências de concepções no
interior da sua própria base. 255
E a partir de uma publicação na Gazeta de Notícias do dia quinze de março, se
constata a ligação de Pedro com o exército, onde foi oficial da 1° Infantaria do Rio de Janeiro.
Os repórteres pesquisaram sobre a sua vida e se depararam com um acontecimento anterior, o
que possibilitou a sustentação de boatos relacionados à alienação. Apesar de não ser dito ao
certo quanto tempo serviu, talvez a sua enfermidade tenha impactado no seu egresso. Segundo
as fontes do periódico, quando foi aluno da escola militar do Rio de Janeiro, ele “bateu com as
polainas na face” do seu superior, agressão que provavelmente lhe renderia uma pena interna
no quartel, se ele não se fingisse “como maluco” para “fustar castigo”. Devido a este
acontecimento, foi encaminhado ao Hospício Nacional dos Alienados, mas após concluído o
exame de sanidade, ficou provado “que não sofria de alienação mental”. 256
Sabendo que poderia utilizar esse fato do passado a favor do seu cliente, Carlos
Ribeiro recorreu ao pedido de um novo exame de sanidade mental, desta vez em outro
contexto temporal e sob a observação dos médicos baianos ligados ao Asilo São João de
Deus.
Compreender os motivos que levaram Pedro a agredir o seu superior é uma tarefa
complicada, contudo, o encaminhamento ao hospital soteropolitano aponta uma das
possibilidades. Durante o processo de anamnese, relatou aos médicos parte da experiência no
exército e registrou tentativas de abuso sexual por parte dos companheiros de batalhão.
Segundo o relato, “propostas desonestas de perversão sexual” e “distinções que recebia e por
ser nortista” o fizeram reagir violentamente contra as inúmeras “brincadeiras” de mau gosto
naquele ambiente. Em lapsos de raiva, ofendeu os colegas e agrediu os superiores fisicamente,
255
CARVALHO, José Murilo. Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987. 24-25.
256
“Descoberta de importante roubo, Pedro Rego está soffrendo das faculdades mentaes?”, Gazeta de
notícias, 15.03.1913. p.3.
127

que durante o exame definiu como “exagero” da sua parte, entretanto, para ele representava a
reação necessária em meio à hostilidade.257
Por ser uma instituição hierárquica pautada nos preceitos da ordem, os castigos no
exército se tornavam a estratégia considerada pelos superiores como a mais eficiente para
disciplinar os militares de baixa patente. No seu estudo sobre os marinheiros revoltosos na
Revolta da Chibata, ocorrida em 22 de novembro de 1910, Álvaro Pereira do Nascimento
apontou que a carreira militar foi uma alternativa de vida para muitos homens descendentes
de cativos no pós-abolição. Nela, os indivíduos possuíam garantias como “oportunidades de
moradia, alimentação, soldo, viagens para conhecer o mundo, alguma especialização
profissional e estabilidade na atividade durante 6 a 15 anos”. Entretanto, era também nesse
ambiente que os indivíduos negros conviviam com os castigos corporais e até violências
sexuais. 258
Talvez a indisciplina de Pedro, a sua desconfiança dos companheiros e expertise
característica estivessem mais ligadas à experiência negativa no exército do que associada à
sua personalidade. Os excessos de controle, as injustiças, humilhações e preconceitos
regionais compunham a tônica do quartel, onde a violência era a reação de diversas pessoas,
que como ele buscaram melhores oportunidades de ascensão social na carreira militar ou em
diversos outros ofícios fora do estado que nasceram. A experiência negativa se relacionava às
perspectivas vigentes na segunda metade do século XIX que diferenciavam a população do
Norte e do Sul através das concepções teóricas de base naturalista, criando desta maneira
estereótipos contra os nortistas, seja por questões raciais ou pelo clima tropical onde
viviam. 259
Logo, tudo indica que os estereótipos relacionados aos nortistas continuaram a
influenciar a população carioca nas primeiras décadas do século XX, quando o negociante
serviu na 1ª Infantaria do Rio de Janeiro. É possível que o periódico também construiu sua
própria personificação do sujeito “malandro” que articulou estratégias para simular a loucura
para fugir do castigo, sem que se mencionasse os reais motivos para o indivíduo agredir o
superior.

257
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483.p. 190-191.
258
NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. "Sou escravo de oficiais da Marinha": a grande revolta da
marujada negra por direitos no período pós-abolição (Rio de Janeiro, 1880-1910). Revista Brasileira
de História [online]. 2016, v. 36, n. 72. p. 160-162.
259
Ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do nordeste e outras artes. 5°
ed. São Paulo: Cortez, 2011.p. 70-71.
128

Ao retornarmos ao processo crime, é importante não desconsiderarmos as estratégias


utilizadas pelo indivíduo e as testemunhas inquiridas. Quais motivos levaram José Paulo de
Moraes, Júlia Maria da Silva e o próprio Pedro da Silva Rego a dissimular as suas respostas
perante a temível figura da autoridade policial, mesmo havendo o confronto de informações a
partir de afirmativas contrárias?
Os indivíduos, enquanto sujeitos ativos no processo histórico, participam da dinâmica
social de variadas maneiras e na maioria das vezes as suas articulações podem ser
identificadas através de múltiplas ações humanas e em favor dos seus próprios interesses. Para
tal, a resistência à ordem nem sempre precisava se configurar por meio do conflito, assim,
devemos considerar os silêncios estratégicos, as negações diante do inquisidor, assim como
ocorrera no caso de Pedro.
A confiança na negação diante de cenários adversos pode ser constatada nas suas
relações interpessoais, questão relevante quando constatamos a influência deste sobre as
pessoas no seu entorno, com o objetivo de empenhar as joias no Monte do Socorro. Fazia
parte do modus operandi deste indivíduo envolver outros indivíduos nas ações, talvez para
dificultar a sua identificação, caso houvesse alguma operação policial.
Além de Arnóbio, uma mulher denominada Eugenia Guerra é apresentada pelo Gazeta
de Notícias e talvez as evidências por ela apresentadas tenham modificado os rumos da
investigação. Segundo o periódico, quando convocada a depor, apresentou duas cautelas no
valor de trezentos e dez mil réis referentes a joias que o indivíduo havia lhe entregue sob a
justificativa de pertencerem “a sua família”. O quadro do indivíduo piorou neste dia quando
foi divulgado o parecer do diretor do Serviço de Identificação da Polícia, Pedro Mello, que
concluiu que as impressões digitais recolhidas nas vitrines da Casa Ferraz lhe pertenciam. O
testemunho e o resultado fizeram Álvaro Covas apelar para a reversão do pedido de habeas
corpus solicitado ao Tribunal de Apelação dias antes.260
Em prisão preventiva, os funcionários da Repartição da Polícia do Estado da Bahia
registraram na ficha individual informações relacionadas ao perfil físico, localização da
residência, emprego e a fotografia do sujeito. Categorização influenciada pelas orientações do
sistema Vucetich no Brasil. 261 Como é indicado nas imagens e tabela abaixo:

260
“Descoberta de importante roubo, as impressões do dedo mínimo de Pedro Rego, uma mulher que
empenha joias”, Gazeta de Notícias: Sociedade Anonyma. 16.03.1913. p2.
261
Sobre o sistema Vucetich e os primeiros passos de sua implantação no Brasil, ver: CORRÊA,
Mariza. As ilusões da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. 2° ed. Bragança
Paulista: Editora da Universidade São Francisco. 2001. p. 204-206.
129

Figura 17: Fotografia de Pedro da Silva Rego registrada pela Repartição Policial do Estado
da Bahia

Fonte: APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante
14, Caixa: 483. p. 80.

Figura 18: Digitais que compunham o dossiê de Pedro da Silva Rego

Fonte: APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante
14, Caixa: 483. p. 93.
130

Quadro 1- Ficha contendo informações pessoais sobre Pedro Da Silva Rego.

Nome: Pedro da Silva Rego


Idade: 29 anos Nascido em 15 de junho de 1883
Estado civil: Solteiro Nacionalidade: Brasileiro Natural deste estado(capital)
Pai: João da Silva Rego Mãe: D. Leocadia da Silva Rego
Profissão: comerciante Residência: Madragôa (Itapagipe) Instrução: Elementar
Notas Cor: parda Cabelos: pretos Sobrancelhas: pretas
cromáticas Barba: fechada Bigode: preto Olhos: cast. médios
Identificado em 8 de março de 1913 Estatura: 1m. 61,7
Cicatrizes e sinais mais importantes: Rosto pequeno noevos preto e saliente, no centro da
região mala direita

Ao confrontarmos as informações registradas na ficha policial, no exame de sanidade


mental e a fotografia, notamos diferentes formas de apresentá-lo. Enquanto o primeiro
apresenta-o como “pardo”, no exame de sanidade mental os médicos o declararam como
“mestiço”. Talvez as descrições distintas estivessem associadas à tentativa de branqueamento
da população negra na cidade do Salvador no pós-abolição, em um período que os grupos
dominantes soteropolitanos tentaram implementar mecanismos que forjavam os costumes
considerados por eles corretos, ao mesmo tempo que proibiram representações do passado
escravista ou da cultura africana.262
Esta indefinição pode ser explicada também pelas orientações científicas do período,
no qual a sustentação estava influenciada por linhas teóricas como o determinismo biológico e
a eugenia. No intuito de purificar as raças no Brasil intelectuais eugenistas, seguindo o
princípio da hereditariedade, defendiam que o cruzamento envolvendo indivíduos de etnia
branca resultariam na predominância de gerações racialmente superiores. Segundo André
Motta,

[...] o tipo brasileiro eugênico revelado pela sua força, robustez, lucidez,
clarividência, intuição, senso de realidade, imaginação, inventividade,
originalidade, autodomínio, coragem, ambição, perseverança e energia
moral, em sua, um complexo de qualidades enfeixadas num único conceito

262
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.199-200.
131

de prestígio social. Tipos puros significariam, pois, indivíduos bem-gerados,


bem-nascidos, equilibrados em sua arquitetura física, como em sua
constituição psíquica e moral. Nesse sentido, avaliavam que o homem do Sul
do Brasil já se encontraria em plena fase de arianização, devido às constantes
correntes imigratórias dos melhores povos europeus, que se encaminhariam
para essa parte do Brasil, como São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio
Grande do Sul e Rio de Janeiro. Nas regiões Norte e Nordeste, como foi
indicado, os habitantes estariam patinando em sua formação racial. 263

Assim, no caso de Pedro, como havia ocorrido com boa parte dos segmentos populares
pertencentes às regiões Norte e Nordeste e estavam em condições semelhantes, era o alvo das
políticas públicas e higienistas que visavam o progresso nacional através do branqueamento
racial. Contudo, a classificação de “mestiço” ainda o levava à condição de degenerado, um
dos critérios que para os cientistas culminavam na alienação mental.
É possível também que o respaldo proveniente do comércio de joias, as relações
estabelecidas com as esferas de prestígio social e o fato de ter servido nas forças armadas
possam o ter logrado a outra posição nos critérios de classificação das autoridades policiais.
Contudo, cabia à ciência a conclusão de para onde Pedro seria encaminhado, mas para isso, a
justiça determinou a necessidade do exame de sanidade mental, solicitado anteriormente por
Carlos Ribeiro.
Pedro da Silva Rego ingressou no Asilo São João de Deus no dia 31 de março de
1913, com isso, esteve à disposição da instituição para a observação e a constatação de
existência ou não de alienação mental. 264 Juvenal Alves da Silva, o então juiz de direito da 1ª
Circunscrição criminal de Salvador nomeou três médicos para proceder ao exame, Eutychio
Leal, diretor do hospício, Oscar Freire de Carvalho e Mario Carvalho da Silva Leal, ambos
professores da Faculdade de Medicina da Bahia, sendo o primeiro de Medicina Legal e o
segundo de Clínica Psiquiátrica. Como no caso de Joaquim analisado anteriormente, o exame
tinha o intuito de comprovar se o negociante deveria ou não ser responsabilizado pelos seus
atos.
Em primeiro momento enfatizaram o isolamento do sujeito, explicando que ele não
obteve “nenhuma relação com as demais dependências” e nem com outros pacientes enquanto
esteve internado na instituição. O seu único contato tivera sido com os membros da comissão
organizada para fins de examiná-lo, funcionários e periodicamente a visita dos parentes, que
segundo os peritos, ocorreram na presença de pessoas de “inteira confiança”. Também

263
MOTA, André. Quem é bom já nasce feito: sanitarismo e eugenia no Brasil. Rio de Janeiro:
DP&A, 2003. p. 55.
264
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 93.
132

reforçaram as vigílias “dia e noite” e enfatizaram que Pedro estava cercado “do conforto
compatível com as condições materiais do estabelecimento”.265
Por ter sido uma solicitação jurídica e não um serviço particular houve preocupação
dos peritos em salientar as dificuldades, que se direcionaram à análise em curto período, à
localização e ao acesso ao asilo, fatores que poderiam impactar no resultado do exame. As
explicações neste documento tinham o intuito de evitar a perda de prestígio individual dos
peritos, em caso de contestações, mas sobretudo o próprio respaldo da instituição.
Como discutido na primeira parte desta dissertação, a superlotação foi um dos
problemas no Asilo São João de Deus desde a sua fundação, mas sob a posse do Estado e
direção de Eutychio Leal, as perspectivas eram de ampliação da capacidade física. Apelidada
como “fase áurea” da instituição, se pensava a melhoria do serviço não somente na questão
terapêutica, com o saber médico em prática, mas sobretudo na ampliação do espaço físico, o
que de fato ocorreu a partir da construção do pavilhão Kraeppelin e a autorização do Charcot,
entre os anos de 1913 e 1914.266 Contudo, as medidas não impediram a continuidade dos
problemas relacionados à acomodação dos alienados, inclusive, citados pelo governador na
Mensagem enviada à Assembleia Geral Legislativa de 1915. J. J. Seabra alertou em seu
relatório para as preocupações em torno da superlotação e apontou também para o aumento do
índice de internamentos, que partiu de “192” em dezembro de 1913para o ingresso de mais
“139” pacientes no ano seguinte.267
Inserido neste cálculo, Pedro viveu certamente os resquícios do processo de transição
administrativa, tanto no que concerne à questão do espaço físico, quanto o relacionado à
terapêutica. O primeiro desses indícios se situa na tentativa de rompimento com a concepção
de simulação do transtorno mental, construída anteriormente pelas autoridades e por
repórteres durante a diligência. E os médicos declararam que o indivíduo sequer “encenou
uma perturbação mental perfeitamente definida”. Em contrapartida, visto a sua personalidade
de “astúcia agudíssima” e por ser considerado um “simulador de gênio”, admitiram também
as “exageradas” performances bem “ensaiadas de crises”, que incontestavelmente pareciam

265
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 184-185.
266
Ver: JACOBINA, Ronaldo Ribeiro. A prática psiquiátrica na Bahia (1874-1947): Estudo
histórico do Asilo São João de Deus/Hospital Juliano Moreira. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo
Cruz, Escola Nacional de Saúde. Doutorado em Saúde Pública, 2001. p. 215-216.
267
Ver: SEABRA, José Joaquim. Mensagem apresentada à Assembleia Geral Legislativa do Estado da
Bahia na 1° Sessão Ordinária da 13° Legislatura pelo Dr. J.J Seabra, governador do estado Bahia:
Seção de Obras da Revista do Brasil. 1915.p. 83-84.
133

ter sido arquitetadas com o intuito de simular um “desequilíbrio mental” para lhe tirar a
responsabilidade sobre o roubo.268
Talvez o personagem fosse um desafio ainda não vivenciado pela psiquiatria na Bahia,
visto a insegurança nas afirmações. Sob o tom de cautela o discurso médico entrou em
contradição quando negou as possibilidades de simulação e em seguida reafirmou as
habilidades de encenação do sujeito, que segundo os peritos tentou ludibriar as autoridades
sobre a sua sanidade. Alienado ou não, Pedro conseguiu atingir o que parece ter sido o seu
objetivo principal, que era escapar do encaminhamento ao complexo prisional, ainda que
fosse encaminhado para outra instituição estruturada em bases disciplinares. O mais provável
era que a imputabilidade fosse o seu foco. 269
Não se deve desconsiderar as suas escolhas e ações, principalmente quando
informações no exame remetem a experiências dos tempos de militar. Segundo o jornal, o
indivíduo soube que se fingir de louco poderia lhe auxiliar a escapar do castigo no quartel, da
mesma maneira que na diligência empreendeu estratégias favoráveis para o encaminhamento
ao asilo e não à prisão. Isso ocorreu porque a loucura esteve inserida no cotidiano das cidades
brasileiras a partir da primeira década do século XX270 e Pedro provavelmente introjetou
aspectos atrelados a esta dinâmica, facilitando a escolha pela encenação pois àquele seria o
modo mais eficiente de obter a liberdade.
Como bem apontou E. P. Thompson nos estudos sobre a cultura popular inglesa,
alguns indivíduos participaram ativamente da dinâmica social a partir de ações complexas e
variadas. Certas articulações constatam a atividade dos segmentos populares frente a
normativas estabelecidas por grupos hegemônicos, um exemplo disto pode ser identificado na
venda de esposas.271 Embora nem sempre aceitos, alguns alienados também se mostraram

268
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 185-186.
269
No código Penal da República os alienados eram considerados imputáveis, ou seja, os seus atos não
podiam ser considerados como crimes e por isso não eram considerados, portanto, não deveriam ir
para o presídio e sim para um hospital específico para a sua terapêutica. Ver: PERES, M. F. T. e
NERY FILHO, A. A doença mental no direito penal brasileiro: inimputabilidade, irresponsabilidade,
periculosidade e medida de segurança. História, Ciências, Saúde Manguinhos, Rio de Janeiro, vol.
9. p. 335-55, maio-ago. 2002. p. 338-339.
270
Através do discurso psiquiátrico e a legislação destinada aos alienados em 1903, se introduziram
novas perspectivas em relação ao alienando, os diferenciando juridicamente dos criminosos. Ver:
SANTOS, Bruna Ismerín Silva. Aos loucos, os alienistas: médicos, família e justiça em Salvador
(1874-1912). Salvador, 2009. p.85-86.
271
E. P. Thompson identificou relações complexas na venda de esposas, em que, a partir de registros
documentais, algumas mulheres consentiram a participação no ritual, desde que a negociação fosse
destinada ao seu amante. De aspecto quase que teatral e na presença de testemunhas, casais desfaziam
os seus casamentos em local público e na maioria das vezes através de vendas pré-estabelecidas, o que
134

ativos na sociedade soteropolitana e podiam se favorecer dependendo das decisões


empreendidas. Decerto nem todos agiam da mesma maneira. A hostilidade das ruas e o árduo
cotidiano asilar poderiam gerar múltiplas consequências para a vida desses sujeitos,
entretanto, o caso de Pedro da Silva Rego e outros indivíduos surpreendem por
desmitificarem a disciplinarização ao agirem de maneira oposta.
Para chegar à conclusão do diagnóstico, os peritos reuniram informações de fontes
diversas, em que tanto o indivíduo, quanto seu pai e as observações médicas dos dois
hospitais de saúde mental colaboraram para o resultado. A primeira questão apresentada se
situou na fase da anamnese em que se pautaram na concepção de hereditariedade. Por
intermédio dos relatos familiar, se constatou que a irritabilidade, tal como a inteligência, eram
uma herança genética do avô paterno, dada as semelhanças presentes na característica de suas
ações.
A trajetória do antepassado do personagem é lembrada com respeito, apesar de não ser
citado o seu nome. Talvez fosse conhecido dos peritos, visto que operou como “médico e
professor de filosofia” no século XIX. Contudo, o “exagerado orgulho do seu valor” levou-lhe
a um fim da vida trágico, já que foi diagnosticado em uma viagem à Europa com “aneurisma
da crossa da aorta” devido ao costume de mascar fumo. Ao descobrir a doença, saiu do
consultório, caminhou em direção a um café e consumiu “alguns copos de cerveja”, algo
considerado incomum aos seus hábitos. Segundo os médicos, ele parecia estar dedicado a
piorar a sua condição de saúde, mantendo práticas contrárias as sugeridas, escolhas que o
levaram a óbito um ano depois da consulta.272
Em linha de raciocínio semelhante, um tio paterno demonstrou sinais de desequilíbrio
mental. Operava no ofício de médico clínico em São Paulo, mas era tido como “excêntrico e
confiante em seu valor pessoal”, personalidade que se refletiu em dificuldades pessoais, mais
precisamente na busca da “esposa ideal”. Quando finalmente se casou, o matrimonio foi
interrompido pela trágica morte da mulher no parto, o que lhe levou à depressão e a ter uma
vida “desordenada”. Numa das crises, tentou suicídio por ingestão de substância tóxica, mas
foi impedido por familiares. Os anos seguiram e casou-se novamente, mas nunca conseguiu
superar a perda da esposa e por vezes se declarava “viúvo inconsolável”, desejando que a
segunda “partilhasse inteiramente da imensa saudade que o possuía”. O mistério da morte

indica a atividade dessas mulheres no processo histórico em que estavam inseridas. Ver:
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998. p. 344-348.
272
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 185-186.
135

deste parente de Pedro se consolidou pela duplicidade dos relatos familiares aos peritos, pois
uns alegaram a “inanição” pela tentativa de suicídio como causa mortis, outros “gangrena” no
pós-operatório, ocasionado por um tumor na perna.273
A mãe e o pai de Pedro também não escaparam à observação dos médicos. A primeira
tinha 47 anos de idade, descrita como “magra”, “franzina” e “excessivamente nervosa” ao
ponto de levantarem a possibilidade de ser histérica, principalmente quando surgiram relatos
do consumo “diário de cerveja” no período de gestação. Enquanto ao segundo, tinha 59 anos
de idade, e ao contrário a figura materna teve poucas considerações sobre a sua pessoa, foi
descrito somente como indivíduo de “temperamento acentuadamente nervoso” e “com alguns
tiques”, características que ainda assim eram relevantes para o embasamento esperado pela
psiquiatria àquele momento.274
Seguindo as linhas teóricas da proclamada psiquiatria moderna, os médicos baianos
analisaram o caso de Pedro levando em consideração a questão da hereditariedade. Para eles,
existia a possibilidade da transmissão através da mãe, que tivera apresentado sintomas de
“histeria” e por ser acostumada ao consumo de álcool. Aqui, portanto, o fator não se limita
apenas ao indivíduo, mas às ações e costumes da árvore genealógica que o gerou. Tal
concepção de herança seguia os estudos de Kraepelin que, seguindo a ideia lamarckiana
definiu que as patologias mentais exógenas, poderiam desenvolver uma loucura endógena em
determinado indivíduo.275 Ou seja, para os médicos que executaram com o exame de sanidade
mental, o consumo de álcool da mãe durante a gestação em união com a personalidade
nervosa do pai culminou nos desvios do filho, gerando assim um degenerado.
Outro aspecto importante na fase da anamnese estava relacionado à compreensão do
processo de infância e os primeiros vestígios de predominância da alienação mental.
Diferentemente de Joaquim, apresentado no tópico anterior, Pedro não teve a mesma sorte
quanto aos critérios relacionados ao meio familiar, possivelmente por pertencerem a classes
sociais e raças distintas. Para os médicos, os pais de Pedro acumularam erros na criação, com
uma “dedicação mal pensada de excessivos carinhos” que resultaram no domínio do indivíduo
aos seus pais, sempre preocupados em “atender-lhe aos menores desejos”. 276

273
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 187-188.
274
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 188.
275
CAPONI, Sandra. Loucos e degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada. Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 2012. p.151-153.
276
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 188-189.
136

O olhar voltado para a criação dos pais se adequa ao campo pelo qual a psiquiatria
expandiu-se a partir de finais do século XIX. O seu interesse não mais se destinava
exclusivamente ao ambiente asilar e à terapêutica voltada ao indivíduo com o transtorno
mental, mas para todo os âmbitos que pudessem disciplinar o indivíduo, se possível nas
primeiras fases da infância. Para tal, a assistência se ampliou ao ambiente externo, para
instituições sociais como a família, de modo a aplicar medidas preventivas aos considerados
doentes em potencial. 277
Nesse sentido, a anamnese se preocupava em abordar a fase de transição do sujeito de
adolescência para a vida adulta, que, em seu caso, encontra relevância no alistamento no
exército, seguido do episódio de agressão ao superior e o encaminhamento ao Hospício
Nacional dos Alienados. Para os médicos baianos, apesar de divergente, a análise dos
psiquiatras da instituição carioca era importante no que consistia a reconstrução do quadro
clínico do paciente. Ele ingressou no hospício no dia dezesseis de maio de 1902, quando tinha
dezenove anos, mas segundo o próprio indivíduo, ninguém “o observou, nem examinou,
durante 15 dias” e ali permaneceu internado até setembro do mesmo ano. Ainda assim, se
concluiu no prontuário que o seu diagnóstico era “estado de angústia, incoordenação de
ideias, vago delírio persecutório, alucinações auditivas, exaltação dos reflexos e confusão
mental”278
Na instituição carioca, certamente se deparou com um ambiente modificado após a
direção de Teixeira Brandão, médico que buscou transformar a perspectiva caritativa da
instituição asilar no Rio de Janeiro, tornando-a não só um local de terapêutica que
possibilitava a remoção do alienado do convívio social, mas uma via de retorno financeiro por
meio das internações. Não obstante, no mesmo ano que o sujeito ingressou, Juliano Moreira
foi convidado a dirigir o hospital, mas a sua posse ocorreu somente no ano seguinte quando
propôs terapêuticas mais humanizadas e denunciou os problemas relacionados à superlotação
dos internos.279 Essa perspectiva precária pode justificar o espaço de tempo de quinze dias,
entre o início da internação e a realização dos exames.
O diagnóstico feito pelos médicos do Hospício Nacional dos Alienados no primeiro
exame de sanidade mental se direcionou a compreender a loucura de Pedro sob as

277
PORTOCARRERO, Vera. Arquivos da loucura: Juliano Moreira e a descontinuidade histórica da
psiquiatria. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002. p. 107-109.
278
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p.191-192.
279
ALVES, Lourence Cristine. O Hospício Nacional de Alienados: Terapêutica ou higiene social?
FIOCRUZ: Rio de Janeiro, 2010. p.44-46.
137

perspectivas francesas e alemães. Segundo Ana Teresa Venâncio, as duas vertentes teóricas
eram as que mais predominavam entre os psiquiatras no Brasil, sendo a primeira seguida por
Teixeira Brandão e a segunda estudada por Juliano Moreira a partir do ano de 1900. 280
Tomando como base as observações dos cariocas, os médicos baianos dedicaram parte
do exame de sanidade para explicitar as concepções obtidas no convívio com o indivíduo. A
princípio ele foi descrito como observador, “perfeitamente orientado no tempo e no espaço”,
possuía memória “prodigiosa” e “agudíssimo sentido cronológico”, o que lhe auxiliava a
lembrar de diversos eventos ocorridos na sua vida pessoal. Inclusive, enquanto interno do
asilo, disse reconhecer um colega dos peritos, o médico Eduardo Moraes, que embora não
tivesse indicado a ocasião, o conheceu de vista outrora. Entretanto, isso não o impediu de
afirmar imediatamente que bastava ver qualquer pessoa uma única vez “para que sua
fisionomia não se apague mais da memória”. Mas mesmo diante de tantas qualidades, os
peritos identificaram certa digressão ao longo do discurso, esquecimento de nomes, datas e
excessiva irritação “indomável, exagerada, desproporcional” ao lhe fugir determinado fato da
memória.281
Embora estivesse em constante observação, no asilo soteropolitano não apresentou
nenhum dos elementos descritos pelos médicos que o acompanharam no Rio de Janeiro,
tampouco indícios de crise. A única situação presenciada se deu em um episódio de atrito
entre ele e outro interno no hospício, descrito como sendo “oriundo de exagero e vícios de
interpretação” da parte de Pedro. Nos primeiros dias o que classificaram como delírio
persecutório tinha na figura do chefe de polícia o principal protagonista, no qual as constantes
ameaças de atirar água ao seu rosto para que colaborasse com as investigações durante a
diligência marcaram parte do relato.282
É importante nos atentarmos às minúcias da fonte e à contradição das palavras de
quem a produz. Percebe-se certa inconsistência no relato médico à medida que alegaram
inicialmente a exclusiva interação da equipe do asilo com Pedro e o mínimo contato deste
com a população asilar. Como vimos, o indivíduo conviveu com outros alienados durante a
interdição, possivelmente pela alta demanda e as limitações do espaço físico da instituição.

280
VENÂNCIO, Ana Teresa A. Os Alienados Segundo Henrique Roxo: Ciência Psiquiátrica No Brasil
No Início Do Século XX. Culturas Psi, v. 0, p. 19-44, 2012. p. 38.
281
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483.p. 194-195.
282
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483.p. 196.
138

Sobre o que definiram como “cultura mental”, o personagem obteve bom desempenho
e não sofreu alterações nos tempos de internação. Inclusive, ele se interessava por obras
filosóficas, conhecimento que o permitiu utilizar citações de Augusto Comte e Max Nordau
durante a diligência. Como já dito, talvez o contato tivesse a ver com a ala positivista nos
tempos de exército ou simplesmente pela convivência no período da infância com o seu avô
que era professor de filosofia. Independente das duas possibilidades, o sujeito manteve na
idade adulta o contato com textos que acreditou de algum modo puderem lhe favorecer.
Mas para os médicos, do mesmo modo que Pedro tinha bom desempenho intelectual,
também tinha alta capacidade de construir mentiras. Uma delas esteve ligada à preocupação
familiar em relação ao paciente após ele ter por vezes tentado suicídio, mas sem sucesso pois
sempre alguém impedia o ato. A pauta surgiu também durante a observação, quando ele
defendeu “com entusiasmo” a subtração da própria vida, pois, para ele, esse era “o único meio
salvador para o homem que, como ele, não se adapta, ao clima histórico em que nasceu”.
Entretanto, os peritos compreenderam essas ideias como ameaças, em virtude de
considerarem “manifestações da sua muito evidente preocupação de ser o centro da atenção
geral” causada pela mitomania. Ou seja, a necessidade compulsiva de mentir em relação a
diversas questões e em variadas circunstâncias. 283
Como se pôde ver, o ideário em relação à morte surge de formas distintas entre os
envolvidos. Pedro não se considerava pertencente à realidade onde estava inserido e achava
que a subtração da vida poderia ser a solução, talvez porque não estivesse disposto a
modificar a sua conduta em detrimento dos padrões estabelecidos. A reação dos parentes de
preocupação e impedimento da ação talvez esteja associada ao que Philippe Ariés concluiu
como o fim da soberania do homem sobre a própria vida e morte, para o seu lugar a
instituição familiar atribuiu para si a sua responsabilidade, ressignificando valores e
interferindo diretamente em ambas.284 Contudo, se os familiares o viam como suicida em
potencial, o discurso médico excluiu essa probabilidade por associá-lo ao perfil de sujeito
simulador, se respaldando através de classificações científicas.
No entanto, amigos e conhecidos confrontaram perspectivas negativas sobre a sua
personalidade, construídas por autoridades policiais, por repórteres e pelos médicos. Dois
episódios apresentados no decorrer do exame de sanidade mental nos levam a outra
concepção sobre as suas relações interpessoais e ideologias que acreditava. Em ambos não
283
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483.p. 198.
284
ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2012. p. 220-222.
139

ficam claros o período e local, mas provavelmente a primeira se passou nos tempos do
exército. Lá, em certa ocasião, ele recebeu botas novas diferentemente de um companheiro.
Segundo o relato, ele doou as botas adquiridas e passou a utilizar as velhas. Na segunda
ocasião, foi abordado por um desconhecido, possivelmente em situação de rua, que lhe contou
uma “história triste de miséria” e mesmo com pouco dinheiro em mãos efetuou a doação.
Segundo os médicos, o altruísmo de Pedro demonstrava uma espécie de ação filantrópica, e,
por consequência, geravam a ausência da compreensão do que classificaram como “instinto
de propriedade”.285
Nota-se que Pedro rejeitou as ideias projetadas pelos grupos dominantes desta
sociedade, que se sustentavam sobretudo no discurso da ordem na incansável busca pelo
progresso. O indivíduo, portanto, não se adaptou a lógica que norteava o pensamento dos
médicos e das autoridades políticas daquele contexto e se estendia a variados âmbitos,
influenciando, inclusive, nas relações de trabalho no pós-abolição. Como apontou, Robério
Souza, tal organização era marcada por um viés disciplinador e tendeu a orientar os
trabalhadores aos princípios da ordem e principalmente através da obediência nas indústrias e
ferrovias, prevendo punições aos que não cooperassem com a hierarquia estabelecida.286
Com um perfil de degeneração construído, os peritos fizeram como na diligência e
pressionaram o indivíduo no intuito de que ele revelasse e admitisse a sua participação no
crime, papel desempenhado quem sabe sob orientação dos juízes. Todavia, como os policiais
da 1° circunscrição, a equipe responsável pelo exame não conseguiu coletar nada acerca do
arrombamento da Casa Ferraz. Pelo contrário, todas as estratégias foram empreendidas pelo
indivíduo para dissociá-lo do crime ou desviar as atenções da investigação. Algumas delas
soaram como gracejos, visto que quando não mudava de assunto, insinuava diversos culpados
diferentes ou criava “personagens misteriosos” para confundir os interrogadores.287
Assim como não houve admissão de culpa em relação ao roubo, não existiram indícios
de crises durante a observação, diferentemente dos apontados no dossiê médico carioca de
anos anteriores. Quais critérios utilizados para manter o indivíduo interditado no asilo? Se
existisse algum tipo de alienação, qual era?

285
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483.p. 200-201.
286
SOUZA, R. S. Organização e disciplina do trabalho ferroviário baiano no pós-abolição. Revista
Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 2, n. 3, p. 76-98, 2010.
287
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 201-202.
140

Em primeiro plano, a psiquiatria se sustentou, como em outros casos do período, nas


bases da chamada psiquiatria moderna. O indivíduo e a sua relação com o meio, pessoal ou
social, se tornavam critérios para definir o tipo de alienação e a necessidade da interdição. A
despeito de não ter admitido ou indicado o autor do roubo, ele não julgava como “imorais os
atos criminosos” ocorridos na noite do dia 26 de janeiro, pelo contrário, o defendia e
justificava-o, segundo relatos, “com valentia”. Para os peritos, ele era um “inadaptado” ao
modelo de sociedade planejado pelos segmentos dominantes, como provavelmente outros
alienados.288
A sustentação do discurso médico se pautou nas ações e pensamentos que
transgrediam ou desviavam a ordem. Entretanto, Pedro insistia em deixar transparecer o seu
desejo no que chamou de “reforma social”. Para ele, isso significava sonhar por:

[...] uma sociedade melhor, sem os enganos e as traições pequenas de cada


hora, sem as injustiças dolorosas da fortuna, em que a solidariedade se
firmasse não nas injunções do interesse de conservação, se não nos próprios
impulsos do amor e do bem. Não compreende a mentira: diz ele, detesta a
simulação[...].289

Não há como saber se neste momento estava novamente utilizando artifícios para
ludibriar os peritos e para ser diagnosticado com alguma doença mental, mas tudo indica que
enxergava a possibilidade de mudanças em uma sociedade desigual para os segmentos
populares.
Como se afastaram da ideia de simulação, mergulharam na busca da explicação das
ações e pensamentos de Pedro através do campo científico. Assim, a maioria das suas
concepções era influenciada por elementos do meio de convivência, do cotidiano e da
hereditariedade. Desse modo, o paciente foi primeiramente considerado:

[...] filho de uma união consanguínea que somou antecedentes mórbidos


pesados relativos ao sistema nervoso, aumentando, exagerando os vícios e
defeitos nervosos dos seus pais, união realizada em disparidade excessiva de
idade, o que já de si implica necessariamente também um elemento de
anomalia pessoal que é preciso ter em linha de conta, Pedro da Silva Rego
devia trazer forçosamente uma pesadíssima tara psicopática [...].290

288
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483.p. 202.
289
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 204.
290
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 207.
141

Para eles, a união genética entre duas pessoas consideradas problemáticas influenciou
a construção do caráter do indivíduo, com consequências de ordem biológica, que consistiam
no desenvolvimento de “dentição acidentada, convulsões, era uma criança doentia, triste, de
humor desigual, franzina”. Somava-se a isso os fatores de caráter sempre associadas aos
vícios, primeiramente no consumo de álcool ainda nos primeiros anos de vida,
especificamente “garrafas de vinho do porto”, depois a responsabilidade dos pais, que
segundo os peritos empreenderam uma “educação defeituosa, afeiçoada de uma imensa
admiração carinhosa”. A conclusão científica foi unânime: degeneração.291
Os médicos baianos buscaram, portanto, explicar a alienação do indivíduo a partir de
concepções produzidas por outros psiquiatras estrangeiros, de modo a ponderar acerca da
questão da imputabilidade. Assim, no exame de sanidade mental de Pedro, os peritos
dialogaram com autores como Emmanuel Régis, Eugênio Tanzi, Cesare Lombroso, Emil
Kraepelin, Valentin Magnan, Sante De Sanctis292, entre outros. Ao acionarem tais médicos
estrangeiros, buscaram legitimar o campo do saber psiquiátrico baiano, embora isso não
significasse a ausência de produções e o desenvolvimento de perspectivas no âmbito regional.
No intuito de explicar a alienação do indivíduo, analisaram aspectos diversos acerca
das características físicas e psicológicas. Sobre o intelecto, reconheceram a facilidade de
“imaginação, de invenção e de expressão”. Contudo, consideraram a sua incapacidade em
exercer “julgamento” de atos comuns da vida humana, questão que inclusive o impedia de
estabelecer continuidade nas “produções intelectuais” e no exercício de profissões “abaixo de
sua capacidade”.293 Ou seja, enquanto degenerado superior ele estava estagnado, ao passo que
não utilizava as suas qualidades para o seu próprio desenvolvimento profissional ou pessoal,
do mesmo modo que não se adaptava as necessidades do meio social no qual estava inserido.
Na fusão entre as observações adquiridas a partir do breve contato com o indivíduo e
os apontamentos produzidos anteriormente por outros médicos, os peritos concluíram que a

291
Idem.
292
Durante o exame, os peritos citaram recorrentemente o médico italiano no intuito de defender o tipo
de degeneração de Pedro, o que evidencia cruzamento de ideias entre a psiquiatria e a medicina-legal.
Talvez a participação de Oscar Freire como perito tenha influenciado na decisão, visto que os médicos
baianos seguiam majoritariamente linhas teóricas francesas e alemãs. Outro fator determinante pode
ter sido o fato de Sante De Sanctis e Enrico Morselli terem produzido uma obra biográfica sobre o
bandido Giuseppe Musolino no ano de 1903. Nas primeiras páginas, ambos dedicaram homenagem a
Cesare Lombroso. Ver: MORSELLI, E.; DE SANCTIS, S. Biografia di um bandito: Giuseppe
Musolino Di Fronte Alla Psichiatria e dalla sociologia. Milano: Fratelli Treves Editori, 1903. p.11.
293
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483.p. 208.
142

degeneração psíquica de Pedro estava em níveis avançados, visto ter apresentado


“inadaptabilidade ao meio social” e por ter transparecido as “suas tendências sinceras de
reagir contra ele”. Para eles, a sua moral era “verdadeiramente mórbida” e nem mesmo a sua
alta capacidade inteligível poderia modificar o quadro, pois os problemas se situavam nos
seus acentuados “defeitos de caráter”.294
Portanto, o perfil de Pedro se encaixava nos estigmas relacionados ao sujeito
inadaptado às condutas tidas como corretas para o modelo de progresso. Debate relacionado à
lógica determinista, no qual a ideia de degenerescência estaria relacionada ao fator racial e os
médicos, sob a concepção de prevenção, estabeleceram parâmetros que buscavam definir que
o sujeito saudável era aquele que equilibrava o físico e psíquico para “transformá-lo em um
cidadão civilizado e de caráter.”295
Entretanto, mesmo sendo inadaptável à sociedade e diagnosticado com degeneração
superior, concluíram que ele não era “um inimputável”. Para a ciência, Pedro estava no meio
termo das concepções, ora não podia ser encaixado numa classificação do alienado incapaz de
controlar as suas ações, ora não deveria ser comparado a um sujeito saudável. Afinal, ele não
parecia compreender a justiça de modo semelhante àquela implantada para a manutenção da
ordem social. Defendiam que:

[...] a sua consciência sofre os desvios provenientes da sua anormalidade


afetiva e sua vontade se deforma na medida destas alterações seria absurdo
atribuir-lhe a absoluta imputabilidade como a um indivíduo inteiramente
normal ou àquelas cujas perturbações psíquicas constitucionais não são tão
fundas e definidas. Afigura-se bem negar-lhe por completo a imputabilidade
criminal.296

Desse modo, no parecer à justiça, ficou definido que a maioria dos seus atos foram
influenciados pela anormalidade do estado mental e a resposta dos quesitos um e três,
solicitados pelo advogado, nos saltam a atenção. No primeiro, Carlos Ribeiro buscava
compreender a partir da perspectiva científica, se o seu cliente, um “degenerado psíquico”, era
capaz de ser o “senhor da sua vontade”. Os médicos responderam que era necessário ocorrer
um caso concreto para que concluíssem com maior certeza, pois a ação variava de acordo com

294
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483.p. 211.
295
FACCHINETTI, Cristiana. O brasileiro e seu louco: Notas preliminares para uma análise de
diagnósticos. IN: Nascimento, Dilene Raimundo do; CARVALHO, Diana Maul de (orgs.). Uma
história brasileira das doenças. Brasília: Paralelo 15, 2004. p. 300.
296
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483.p. 214.
143

o tipo de degeneração, uma vez que diferentes “graus, formas e manifestações” poderiam
gerar consequências distintas. No terceiro, responderam sobre a imputação criminal reiterando
que essa questão deveria “sofrer atenuantes pelo menos no estado em que ele se achava”
quando examinado, ou seja, ainda havia possibilidade da redução penal. 297
O exame de sanidade foi datado e enviado à justiça no dia 15 de setembro de 1913,
quase seis meses após o encaminhamento do indivíduo ao asilo. É provável que ele tenha
ficado internado por tempo o suficiente para compreender a configuração do sistema asilar, os
seus problemas estruturais, além de ter convivido diariamente com outros pacientes, médicos
e enfermeiros, experiência fundamental para planejar a fuga do hospital no dia 21 de setembro
do mesmo ano, seis dias após a conclusão médica.
Talvez Pedro soubesse das fragilidades dos hospitais psiquiátricos em comparação à
prisão, visto a breve passagem na instituição carioca no início do século XX. Mas quais as
diferenças, sendo que ambas as instituições tinham como intuito a reclusão de sujeitos
inadaptados a sociedade? A implantação das prisões na Bahia decorreu durante a segunda
metade do século XIX, influenciada pelo modelo norte-americano e acompanhada da
ideologia modernista que se segue nos primeiros anos do XX. Segundo Claudia Trindade, o
Barão de São Lourenço, presidente da província no período, implantou, em 1871, um projeto
de implementação da segurança com o armamento de guardas. Da mesma maneira, ele
sugeriu a expansão do Corpo Policial que tivera àquele momento aumento de “doze para
trinta” guardas.298 Desse modo, esses números simbolizam um processo incipiente da
remodelação deste serviço e estima-se que provavelmente se expandiram consideravelmente
nos anos seguintes, possivelmente pelo aumento de crimes na cidade. A superpopulação
carcerária pode ter sido outro fator para a ampliação do quadro, pois o então governador da
Bahia José Joaquim Seabra (1912-1916) registrou, em 1915, “283 reclusos” na penitenciária
soteropolitana ao final do ano de 1914.299
Ao considerarmos os números citados, é preciso compreendermos as possibilidades de
Pedro naquele momento, pois embora tivesse sido considerado alienado, talvez tivesse
soubesse que na penitenciária se depararia com maior rigor em relação ao Asilo São João de
Deus, o que justifica as simulações como forma de escapar da experiência na prisão. Quando

297
APEB, Processo Crime. Núcleo: Tribunal da Relação. Série: Furto, Seção: Judiciária. Estante 14,
Caixa: 483. p. 215.
298
TRINDADE, Claudia. Ser preso na Bahia no século XIX. Salvador: Universidade Federal da
Bahia, 2012. p. 52.
299
SEABRA, José Joaquim. Mensagem apresentada à Assembleia Geral Legislativa do Estado da
Bahia na 1° Sessão Ordinária da 13° Legislatura pelo Dr. J.J Seabra, governador do estado Bahia:
Seção de Obras da Revista do Brasil. 1915. p. 85.
144

recorremos ao regulamento do hospital, publicado no periódico Gazeta de Notícias:


Sociedade Anonyma, percebemos a limitação da estrutura asilar para fins de segurança. De
acordo com o art. 2° do decreto de 1912, a quantidade de funcionários se configurava em
torno de uma organização composta por quatro médicos além do diretor, um inspector, chefe
dos enfermeiros, cinco enfermeiros uma inspectora, chefe das enfermeiras e cinco guardas.300
O reduzido número de guardas não conseguiu conter a fuga de Pedro, tampouco ser
efetivo nas buscas em torno da região do Distrito de Brotas sem o apoio externo de forças
policiais, pois ele só foi localizado “em sua residência em Itapagipe”. Sua fuga talvez tenha
sido efetivada com a ajuda de outrem, devido à considerável distância da instituição em
relação ao local onde morava e à facilidade do sujeito em se relacionar com as pessoas.
Contudo, ele foi rapidamente localizado, capturado pelos policiais e reencaminhado ao Asilo
São João de Deus “em virtude de se achar enfermo”301
Quinze dias após a fuga, o mesmo periódico publicou breve nota noticiando que dois
indivíduos recorram ao Tribunal de Apelação. Um deles era Pedro. Essas seriam as últimas
palavras do periódico sobre o roubo da Casa Ferraz e o acusado. Não se sabe o seu destino,
mas na última sessão foi determinado algo surpreendente para as circunstâncias do ocorrido.
Nem mesmo as fugas ou as ditas simulações de loucura modificaram o resultado de um
intenso embate com múltiplos envolvidos, pois ao final lhe foi concedido o habeas corpus.302
No fim, o personagem conseguiu o que mais aspirava desde o início do processo: a
liberdade. Sem a consistência necessária para mantê-lo em reclusão, as autoridades não
conseguiram o ponto chave que era a admissão da culpa por parte do indivíduo. Mesmo com
os testemunhos e as provas apresentadas através dos mais “modernos” meios introduzidos
àquele período, eles ainda eram incipientes e não puderam responder ao questionamento se
Pedro era ou não culpado dos crimes que lhe foram atribuídos. Os documentos indicam
perspectivas tendenciosas, produzidas por autoridades empenhadas em ações emergenciais e
na busca por culpados.
Cercada de impasses, a perícia médica também não conseguiu responder com exatidão
aos principais aspectos pelos quais tivera sido acionada. Afinal, Pedro era de fato um
alienado? Se sim, estava fadado até o fim da vida à insanidade? Era curável? Se cometeu o
delito, estava consciente das suas consequências? Tais perguntas dificilmente serão
respondidas pelos médicos ou pelas autoridades policiais e jurídicas envolvidas no caso. O
300
"Secretaria do Estado, Decreto N. 1160 de 28 de agosto de 1912", Gazeta de Notícias: Sociedade
Anonyma, 09.10.1912, p.3.
301
“Asylo S. João de Deus”, Gazeta de Notícias: Sociedade Anonyma, 09.10.1912. p.3.
302
“Tribunal de Apellação”, Gazeta de Notícias: Sociedade Anonyma, 09.10.1913. p.1.
145

que nos resta são os intrigantes fragmentos de parte de uma vida, que muitas vezes gerarão
dúvidas ou se manterão escusas até o surgimento de novos vestígios. As desordens das suas
palavras se aliam às ações de caráter subversivo e incomuns para o que se identificava como
padrões cotidianos da população soteropolitana na Primeira República. Ao fim da sua
instigante trajetória, Pedro da Silva Rego nos deixa interrogações, mas responde com maestria
à afirmativa de que nem todos os sujeitos tidos como alienados se submeteram aos aparatos
hegemônicos desta sociedade.
146

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com as transformações políticas, culturais e sociais na transição da última década do


século XIX para as primeiras do século XX, novas concepções foram incorporadas no saber
da especialidade psiquiátrica. Embora os médicos estivessem em constante movimentação no
intuito de galgarem espaços de maior reconhecimento na sociedade, não se pode dizer que
essa era uma ciência homogênea. Nota-se, portanto, que a produção relacionada à psiquiatria
na Bahia estava em fase de desenvolvimento, ainda que incipiente.
O decreto de 1903, que reorganizava a assistência aos alienados, representou uma
espécie de vitória da psiquiatria naquele contexto pois tentava legitimar o seu saber, do
mesmo modo que tentou se isolar da assistência prestada pela Santa Casa de Misericórdia. Em
meio aos conflitos e discordâncias acerca da administração da irmandade, Eutychio Leal se
tornou diretor do Asilo São João de Deus em 1911 e se manteve no cargo no ano seguinte,
quando o Estado assumiu a instituição.
Quanto ao norteamento teórico dos médicos na Bahia, diversas concepções
circundaram o meio acadêmico e serviram tentar legitimar a psiquiatria nesta sociedade
através da idealização do saber científico. Como vimos ao longo da dissertação, teorias como
a degeneração serviram como sustentáculo na produção dos diagnósticos traçados pelos
médicos baianos, tendo impactado sobretudo nos ofícios prestados pelos alienados negros e
pobres pertencentes à categoria de indigentes no asilo.
Nas trajetórias aqui apresentadas, os fatores raciais também geraram resultados
distintos nos exames de sanidade mental aplicados pelos médicos baianos nos personagens.
Enquanto Joaquim Navarro, declarado como um homem branco e que possuía uma formação
em engenharia havia sido diagnosticado com delírio persecutório, Pedro da Silva Rego,
negociante negro que supostamente participou do roubo da joalheira Casa Ferraz, recebeu o
diagnóstico de degeneração superior.
O primeiro indivíduo esteve longe de ser associado a um degenerado, pois pertencia a
uma família de classe média na sociedade baiana. Ele usufruiu, inclusive, dos privilégios de
sua posição social para recorrer à legislação no intuito de justificar o seu crime. Embora o
delegado e outros personagens envolvidos na sua trajetória desacreditassem na possibilidade
de insanidade, os familiares se articularam através do advogado para que fosse realizado o
exame de sanidade mental e a justiça lhe considerasse inimputável. Como consequência, ele
foi impedido de ser encaminhado a um complexo prisional e continuou a receber os seus
proventos enquanto servidor público na Repartição dos Telégrafos.
147

No caso de Pedro, percebemos semelhanças na tentativa de ser considerado


inimputável, entretanto, o processo teve maiores complicações. A sua loucura foi traçada a
partir do seu perfil racial e se agravou através de uma série de ações consideradas desconexas.
Nem mesmo o conhecimento diferenciado da teoria positivista o afastou de ser considerado
degenerado e embora não tivesse admitido a participação no roubo, ele em momento algum
não deixou de ser responsabilizado pelo crime. Inclusive, os peritos haviam se articulado para
coletar a confissão no exame, mas não obtiveram sucesso. Diferentemente de Joaquim, o
negociante não conseguiu a imputabilidade pelo fato de ser negro e, portanto, “um
degenerado”.
Como mencionamos ao longo desta dissertação, a degeneração estava ligada
diretamente à questão racial e social, visto que a maior parte dos indivíduos classificados
como tal ou se constituíam como indivíduos negros e pardos ou pertenciam às camadas
pobres da sociedade. Assim, a criminalidade ou doenças como o alcoolismo eram fenômenos
que tinham as suas causas sustentadas na ideia de hereditariedade e constantemente
relacionadas a grupos específicos no pós-abolição.
Dentre os dois casos citados acima, ainda se diverge o de Aprígio e que está associado
à questão da desigualdade social. Em meio ao envolvimento em um conflito por não ter
condições de arcar com os custos do aluguel, o alferes se mostrou para a população local
como um sujeito irritadiço e perigoso à ordem quando desobedeceu ao mandado judicial e
retornou à residência onde morava. Curiosamente o indivíduo nunca deixou o Distrito de
Nazaré, vivendo em situação de rua na mesma região até sofrer a interdição um ano depois
dos acontecimentos acima tratados.
As trajetórias aqui apresentadas enfatizam as distinções acerca das medidas e a
formulação dos diagnósticos médicos, em que fatores como a classe e a raça se tornavam
determinantes durante a análise médica. Dessa maneira, a construção do quadro patológico e o
tratamento de Joaquim enquanto homem branco e pertencente às consideradas camadas
médias da sociedade, diferia do aplicado a Pedro e a Aprígio, já que para a medicina os
marcadores sociais e raciais os levavam diretamente à posição de degenerados.
Em contrapartida, é também nas trajetórias dos três homens mencionados que
identificamos a agência de alguns alienados nesta sociedade. No caso do engenheiro, o maior
sustentáculo teria sido a influência da família e a possibilidade em recorrer através da lei para
que não se responsabilizasse pelos seus atos e fosse encaminhado a um asilo e não a uma
prisão. Em relação a Aprígio, ele soube o momento adequado de resistir à decisão judicial e
retornar à residência, a fim de evitar o despejo e consequentemente a experiência nas ruas. No
148

que diz respeito a Pedro, percebe-se que ele detinha noções acerca da legislação e a utilizou
em prol dos seus próprios interesses, decidindo por simular uma doença mental para ser
encaminhado a uma instituição com maior facilidade para a sua fuga.
Embora se configurassem de maneiras distintas, as experiências mencionadas
demonstram a complexidade das relações internas e externas ao ambiente asilar, onde se pode
afirmar que nem todos os alienados estavam à mercê das instituições e dos seus aparatos
disciplinares. Alguns desses indivíduos como Pedro e Joaquim buscaram benefícios próprios
nas brechas deixadas pela legislação, levando a pensarmos sobre a ideia de legitimidade do
saber médico baiano nas primeiras décadas do período republicano. Ainda que pareçam
despretensiosas, na maioria das vezes as suas ações silenciosas surgiram como alternativas de
resistência em uma sociedade excludente.
149

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