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Universidade do Estado da Bahia – UNEB

Departamento de Educação – Campus II / Alagoinhas


Programa de Pós-Graduação em História

Bruna Meyer Pereira

O ator e os seus múltiplos:


a trajetória de Antonio Mário dos Santos e o circuito
cultural em Alagoinhas (1961 - 1987)

Alagoinhas, março de 2022


2

Bruna Meyer Pereira

O ator e os seus múltiplos:


a trajetória de Antonio Mário dos Santos e o circuito
cultural em Alagoinhas (1961 - 1987)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História da Universidade do Estado
da Bahia – Campus II como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestra em História.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Santos Silva

Banca examinadora:

__________________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Santos Silva (Orientador) – UNEB Campus II

__________________________________________________________________
Prof. Dr. Raimundo Nonato Pereira Moreira – UNEB Campus II

__________________________________________________________________
Prof. Dr. Antônio Maurício Freitas Brito (integrante externo) – UFBA

Alagoinhas, março de 2022


3

Ficha Catalográfica

Sistema de Bibliotecas da UNEB

Biblioteca Carlos Drummond de Andrade – Campus II

Rosana Cristina de Souza Barretto

Bibliotecária – CRB 5/902

P436a Pereira, Bruna Meyer.

O ator e os seus múltiplos: a trajetória de Antonio Mário dos Santos


e o circuito cultural em Alagoinhas (1961-1987)./ Bruna Meyer Pereira
– Alagoinhas, 2022.

164f.;Il.

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia.


Departamento de Educação. Mestrado em História.

Orientador: Prof.º Drº Paulo Santos Silva

1. Santos, Antonio Mário dos, 1922-2002. 2. Cultura – Alagoinhas


(BA). 3. Teatro – Alagoinhas (BA). I. Silva, Paulo Santos. II. Universidade
do Estado da Bahia. Departamento de Educação. III. Título.

CDD: 306.484098142
4

“Mesmo sem te ver


Acho até que estou indo bem
Só apareço por assim dizer
Ou quando convém aparecer...
...ou quando quero [...]
Quero que saibas que me lembro
Queria até que pudesses me ver
És parte ainda do que me faz forte
Pra ser honesto, só um pouquinho infeliz...
Mas tudo bem! [...]
É de ti que não me esquecerei...”
(Giz – Legião Urbana)

É à tua memória, painho, para quem dedico esse título de mestra.


5

Agradecimentos

É simbólico pontuar que este trabalho marca o fim de um ciclo de 11 anos na UNEB.
Toda a minha formação, também política, é resultado de minhas vivências dentro da
universidade: nas salas de aula, corredores, entre vínculos afetivos e construções com o
movimento estudantil. Sou grata aos meus Orixás e Pretos Velhos que conduziram meu Ori
em todas as escolhas que fiz. Principalmente, na finalização desse mestrado. Sem eles, como
eu sobreviveria à pandemia?
Se não fosse pela proteção orixá, como seria possível seguir produzindo depois de
perder meu pai, em pleno processo? Painho, Ailton Pereira, assistiu aos primeiros passos da
escrita deste trabalho, chorou na apresentação do meu TCC, e contribuiu com o “subtexto”
desta dissertação, quando me contava sobre suas aventuras no Cine Capitólio e no Ginásio de
Alagoinhas. Minha vontade de pesquisar sobre essa história também traz a nostalgia do
período que vivi através desses “causos” contados por ele, desde minha infância. Hoje, sei que
ele sente, de lá do Orum, seu orgulho por mim.
Não só a religião me deu sustento. Mainha que tantas vezes se sentou de meu lado
para ouvir as leituras dos capítulos e discutí-los, acolheu meus choros e também puxou minha
orelha dizendo para eu ser mais objetiva “adianta logo isso menina, vira mestra logo!”. Meu
irmão, Ailton Bruno, outro suporte que me acolheu do seu jeito capricorniano, é meu lado
racional. Agradeço por sua vida e por nossa irmandade. Ao meu padrinho José Augusto, por
valorizar minha profissão, isso me dá forças e alegria para continuar. Agradeço também a um
lindo presente que a pandemia me deu. Presente que eu já tinha há 11 anos, e que virou meu
amor. Obrigada, Leitão, pelas horas a fio me escutando falar de Antonio Mario, por me ajudar
a refletir sobre a pesquisa, e desanuviar meus estresses.
Ao meu orientador Paulo Silva, meu profundo agradecimento! E como eu aprendi a
ser mais objetiva contigo, terei que resumir meu grande apreço em poucas linhas... Paulo
acompanhou, desde o início, a minha trajetória na UNEB e me nutriu de metodologia, teoria,
mas principalmente de poesia! Você, meu caro, é uma pessoa que sabe viver a vida!
Obrigada, sobretudo, por valorizar minha instância artística, por me estimular na academia e
também nas artes, e por todas as vezes que eu achei que não daria conta, você me dizer: “Vai
dançar, Bruna! Dance, depois volte ao texto!”
Obrigada, minha amiga-irmã, Suellen, por nossas conversas de bruxa, os chazinhos
para todo tipo de dor, por me abrir as cartas de tarot, e por me sequestrar quando eu precisava
6

me afastar desta pesquisa para lembrar também de viver um pouco! Minha amiga Gilmara,
referência na vida acadêmica e na dança! Obrigada por abrir meus olhos sobre tantas coisas,
durante a escrita, que eu não consegui enxergar sozinha, amiga! À minha irmã de axé, Aline
Najara, pela força que me deu para seguir na pesquisa, principalmente me dando colo durante
meu luto.
A todos os querides colegas do mestrado, por tornarem a sala o meu lugar feliz!
Especialmente, Mariana, Luis, Samir, Igor e Aline; pela ajuda mútua, pelas resenhas, pelo
acolhimento, e pelas “farrinhas”...! Ao meu amigo ator Dominique Faislon: por esse carinho
em acreditar na minha pesquisa, por sua visão de ator sobre meu trabalho! A James, por
compartilhar comigo sua pesquisa sobre Albertina Rodrigues. Sigo agradecendo a Ed Assis e
Eliana Batista por terem “me apresentado” a Antonio Mario em 2017. Sou grata a todos os
depoentes, sobretudo aos novos entrevistados que conheci em 2020: a Chicão (e a Paulo Dias
por fazer a ponte entre mim e ele), Iraci Gama e Antonio Cursino. Permanecem meus
agradecimentos especiais a Lívia Santarém e Dona Nélia, pessoas muito queridas e generosas,
com quem acabei construindo um vínculo além da pesquisa.
Muito obrigada, professora Maria do Socorro Carvalho, pelas considerações
indispensáveis na minha banca de qualificação. A “forma” desse texto foi inspirada em suas
orientações. Sou uma fã! Obrigada, professor Maurício Brito, pelo olhar cuidadoso sobre essa
história que desenvolvo e por aceitar compor minha banca de defesa. Igualmente, agradeço ao
professor Raimundo Nonato por, desde o princípio, me incentivar com entusiasmo, me ceder
fontes raras e estimar meu trabalho.
Agradeço ainda a Rita e João Reginaldo do IBGE, por me cederem fontes importantes
sobre a chegada de Antonio Mario a Alagoinhas. Obrigada Thiago Machado, por me dar de
presente seu livro autoral Pelas Ruas da Cidade: O golpe de 1964 e o cotidiano de Salvador.
À FAPESB por ser símbolo de resistência em tempos de ataques à pesquisa científica
e à universidade pública. O apoio financeiro oportunizou a realização de um antigo sonho:
dedicar um tempo somente ao estudo sem precisar me desdobrar com um trabalho paralelo,
tão somente para me manter.
Por fim, a mim. Eu tenho um orgulho danado de quem me tornei.
7

Resumo

Discute a trajetória de Antonio Mário dos Santos (1922 - 2002), com foco em suas
contribuições para a resistência teatral, artística e intelectual de Alagoinhas e o circuito
cultural na cidade entre 1961 e 1987. Como sujeito de múltiplas facetas, Antonio Mário
promoveu transformações exercendo ações dentro e fora das artes: além de funcionário do
IBGE, foi professor, poeta, pesquisador inclinado ao ofício de historiador diletante e elaborou
escritos sobre a história de Alagoinhas. Dirigiu dois grupos teatrais, o Dias Gomes (1964) e o
Natureza (1970) diante dos quais se pode perceber certas mudanças em sua atuação. Ao longo
de suas experiências na cidade, o quadro sociocultural se transformou com a instalação da
Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas (FFPA, 1972), o que proporcionou sua
participação em projetos que potencializaram as pesquisa sobre o município, e contribuíram
para construir uma imagem de intelectual enjagado com as questões patrimoniais. Pode-se
compreender Antonio Mário como ator social que propunha condições de acesso aos bens
culturais e que se punha, sobretudo, como “narrador” da cidade. Esta dissertação foi elaborada
a partir de fontes memorialísticas, jornais, documentos pessoais do personagem – dentre eles,
fotografias, anotações e roteiros das peças trabalhadas – além de panfletos, programas e
documentos oficiais que verificam as atividades culturais no município, no período proposto.

Palavras-chaves: História. Cultura. Teatro. Alagoinhas. Antonio Mário.


8

Abstract

It discusses the trajectory of Antonio Mário dos Santos (1922 - 2002), focusing on his
contributions to the theatrical, artistic and intellectual resistance in Alagoinhas and the
cultural circuit in the city between 1961 and 1987. As a subject of multiple facets, Antonio
Mário promoted transformations by exercising actions inside and outside the arts: besides
being an employee of the Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE), he was a
teacher, poet, researcher inclined to the practice of dilettante historian and wrote about the
history of Alagoinhas. He directed two theater groups, Dias Gomes (1964) and Natureza
(1970), in which one can notice certain changes in his performance. Throughout his
experiences in the city, the sociocultural picture was transformed with the establishment of
the Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas (FFPA, 1972), which enabled his
participation in projects that enhanced research on the municipality, and contributed to build
an image of an intellectual enagaged with patrimonial issues. Antonio Mário can be
understood as a social actor who proposed conditions of access to cultural assets and, above
all, as a "narrator" of the city. This dissertation was based on memorial sources, newspapers,
personal documents of the character - among them, photographs, notes and scripts of the plays
- as well as flyers, programs and official documents that verify the cultural activities in the
city, in the proposed period.

Keywords: History. Culture. Theater. Alagoinhas. Antonio Mário.


9

Sumário

Introdução, 12
Capítulo I: O personagem e os cenários, 27

1. Nasce o ator Antonio Mário dos Santos, 27

2. Alagoinhas: um diálogo com Antonio Mário sobre a “mise-en-scéne” na década de 1960,


39

3. Cenas socioculturais da cidade, 48

Capítulo II: Estreia um diretor de teatro: o personagem que constrói um cenário, 60

1. O Grupo Teatral Dias Gomes, 60

2. O Grupo Natureza: mesmos métodos, novas possibilidades, 78

3. O teatro infantil e outras experiências, 88

Capítulo III: O personagem no cenário do circuito cultural em Alagoinhas, 102

1. A FFPA sobe ao palco, Antonio Mário contracena, 102

2. A “comunidade” invade a arte e a arte invade a Faculdade, 116

3. As “deixas” de Antonio Mário nas cenas do Movimento Cultural de Alagoinhas, 135

4. Considerações finais, 151

5. Arquivos e Fontes, 154

6. Bibliografia Consultada, 156

7. Anexos, 162
10

Lista de abreviaturas e siglas

AABB - Associação Atlética do Banco do Brasil

ACRA - Associação Cultural e Recreativa de Alagoinhas

AI-5 - Ato Institucional nº 5

ALADA - Academia de Letras e Artes de Alagoinhas

ALB - Núcleo da Associação de Literatura do Brasil

ASIR - Assessoria de Segurança e Informações Regionais

CASCA - Casa da Cultura de Alagoinhas

CCA - Centro de Cultura de Alagoinhas

CEC - Conselho Estadual de Cultura

CENDOMA - Centro de Documentação e Memória de Alagoinhas

CILNB - Centro Integrado Luiz Navarro de Brito

COVID - 19 - (Co)rona (Vi)rus (D)isease 2019

CSSS - Colégio Santíssimo Sacramento

DEOPS - Departamento Estadual de Ordem Política e Social

DESAP - Departamento de Ensino Superior e Aperfeiçoamento de Pessoal

DOPS - Departamento de Ordem Política e Social

ETUFBA - Escola de Teatro da UFBA

FFPA - Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas

FIGAM - Fundação Iraci Gama

FUNCEB - Fundação Cultural do Estado da Bahia

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística


11

IPAC - Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia

IPEA - Índice de População Economicamente Ativa

ISEB - Instituto Superior de Estudos Brasileiros

MCP - Movimento de Cultura Popular

MEC - Ministério da Educação

MNU - Movimento Negro Unificado

MNUA - Movimento Negro Unificado de Alagoinhas

MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabetização

PCB - Partido Comunista Brasileiro

PCBR - Partido Comunista Brasileiro Revolucionário

PEA - População Economicamente Ativa

SEPLAN - Secretaria de Planejamento da Presidência da Republica

TBC - Teatro Brasileiro de Comédia

TCC - Trabalho de Conclusão de Curso

TEN - Teatro Experimental do Negro

UFBA - Universidade Federal da Bahia

UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro

UMESA - União Municipal dos Estudantes de Alagoinhas

UNEB - Universidade do Estado da Bahia

USAID - United States Agency for International Development


12

Introdução

Ao buscar vestígios sobre a história do teatro em Alagoinhas, Antonio Mário dos


Santos surgiu como possibilidade de pesquisa em 2017, durante a graduação, como trabalho
de finalização do curso de Licenciatura em História. No entanto, por ser um “personagem”
que ainda não foi pesquisado em perspectiva historiográfica, um TCC não deu conta de
contemplá-lo em seus múltiplos aspectos, ou seja, para além do que as produções com teatro
lhe possibilitaram, de modo que ficou muito o que explorar nos arquivos.
Novas fontes se apresentaram sobre o sujeito como tema de estudo. Além dele,
descortinou-se na pesquisa todo um circuito cultural na cidade, nas décadas de 1970 e 1980,
onde o personagem deixou suas marcas, fosse inserindo-se, construindo ou transformando o
cenário. Com isso, surgiram novos problemas de pesquisa, e a investigação foi levada adiante
para a presente dissertação. Antonio Mário permaneceu protagonista e a cidade de Alagoinhas
surgiu como espaço de suas ações.
Esse trabalho, portanto, analisa a trajetória de Antonio Mário dos Santos (1922 -
2002), com foco em suas contribuições para a resistência teatral, artística e intelectual de
Alagoinhas e o circuito cultural que emergia na cidade no período. Antonio Mário nasceu a 8
de maio de 1922, no bairro do Matatu, em Salvador. Tinha uma característica física
específica: mancava de uma perna, pois convivia com um reumatismo congênito herdado de
seu pai. Por vezes, precisava usar bengala para se equilibrar. Aos 34 anos de idade, homem
negro, pai de família e funcionário do IBGE, ingressou no curso de interpretação teatral pela
Escola de Teatro da UFBA (em 1956, ano de sua instalação).1 Em 1961, o IBGE o transferiu
para Alagoinhas.2
Na cidade, a trajetória de Antonio Mário se desdobra por um cenário cultural que se
manteve ao longo do período de repressão contra o teatro e demais expressões artísticas.
Assim, o indivíduo é analisado também como vetor para compreender como esse circuito
artístico se constituiu: os cinemas, os grupos de teatro que dirigiu, os festivais, projetos
promovidos pela Faculdade de Formação de Professores (FFPA) e pela Casa da Cultura de
Alagoinhas (CASCA) e a luta pela fundação do Centro de Cultura de Alagoinhas.

1
Documento em que Antonio Mário solicita expedição de seus “respectivos diplomas e títulos” à Universidade
Federa da Bahia – UFBA/Departamento de Teatro da Escola de Música e Artes Cênicas da UFBA, em 23 de
julho de 1969. Pasta “Antônio Mário” - CENDOMA/FIGAM.
2
Declaração cedida pelo IBGE no dia 1 de outubro de 2020. Acervo pessoal da autora.
13

Desse modo, a perspectiva biográfica que norteia a narrativa toma como referência os
fatos cruciais em sua vida como diretor teatral e articulador cultural na cidade. A intenção,
portanto, é perceber o teatro como um núcleo que se expandiu e gerou ramificações na
trajetória, formando seu fator “múltiplo”: além de funcionário público e ator, tornou-se diretor
teatral, poeta, professor de escolas da rede pública e privada, participou do Grupo Pró-
Memória onde realizou atividades de pesquisa e projetos sobre a história de Alagoinhas em
parceria com a FFPA, além de sua contribuição ativa no movimento cultural na cidade.
No ano em que Antonio Mário chegou, em 1961, a urbe vivia um cenário de
desenvolvimento da economia: o crescimento acelerado da população, a produção de laranja
que lhe conferiu o epíteto de “terra das laranjas”, a chegada da Petrobrás com a descoberta de
poços de petróleo na região e o crescimento do comércio cujo destaque revelou-lhe como
cidade central.3 Dentre as características referentes à qualidade de vida, os aspectos
educacionais também se expandiram. Em proporção inversa, Alagoinhas dispunha de poucos
dispositivos culturais, dentre eles, o Cine Teatro Popular, único que possuía estrutura para
teatro no período. Os cinemas consistiam em uma das principais atividades de entretenimento
da cidade, mas não sobreviveram após 1980.
Diante do cenário incipiente para o teatro, Antonio Mário montou o primeiro grupo
que dirigiu, o Dias Gomes (1964), onde desenvolveu seus métodos de interpretação e pôde
por em prática o que aprendeu na escola de teatro da UFBA. Foi formado inicialmente pelos
alunos da 1º turma do curso de contabilidade do Ginásio de Alagoinhas. Ainda na década de
1960, montou dois espetáculos com o grupo, ambos cujos textos significaram um marco no
gênero da comédia de costumes no Brasil.
Quando o Dias Gomes se dissolveu, no final da década de 1960, apresentou-se uma
nova fase do teatro de Antonio Mário caracterizada pela escolha de peças cujos autores
representam, igualmente, uma nova fase do teatro no Brasil, autores que atravessaram a
formação do que convencionou-se chamar, entre os estudiosos, “teatro novo”. Com o novo
grupo chamado Natureza, Antonio Mário montou peças de Dias Gomes, Plínio Marcos,
Oduvaldo Viana Filho e seu trabalho também foi permeado por montagens infantis como a
realização de “O Pequeno Príncipe” num festival de encerramento do MOBRAL, e “O Rapto
das Laranjinhas”, uma analogia ao clássico de Maria Clara Machado, O Rapto das
Cebolinhas.

3
Tais dados serão esmiuçados no segundo tópico do primeiro capítulo.
14

A maturação da trajetória como diretor e a mudança do grupo desencadearam, nessa


pesquisa, o questionamento sobre o que significa a escolha por esses novos autores. Tal
reflexão também se estende ao cenário cultural da urbe que, de semelhante forma, ganhou
consistência entre as décadas de 1970 e 1980. Paralelamente às atividades do novo grupo, o
Natureza, Alagoinhas recebia sua primeira instituição de ensino superior: a Faculdade de
Formação de Professores de Alagoinhas – FFPA, em 1972. Foi através dela que o movimento
cultural ganhou substância e se fortaleceu por meio das edições anuais do Encontro Cultural
de Alagoinhas. A partir da integração entre universidade, artistas e “comunidade”,4 o
movimento cultural atrelava-se ao movimento estudantil, à luta pela preservação e patrimônio
histórico da cidade, e às reivindicações do Centro de Cultura de Alagoinhas.
Interessado pela história local, Antonio Mário desenvolveu pesquisas sobre a cidade
através do Grupo Pró-Memória (1980). O acesso a esses dados e o acúmulo de experiências
que vinha lastreando pelo trabalho no IBGE lhe permitiu escrever um compilado de textos em
que criou representações da cidade sobre suas instâncias políticas, educacionais, culturais e
sociais, datados entre 1985 e 1989. Essa fonte foi cedida por uma das filhas de Antonio
Mário, Lívia Santarém. Ao longo da investigação, ela e outros entrevistados afirmaram que
havia um trabalho original e completo, uma espécie de “monografia” sobre o município de
Alagoinhas que intencionava tornar-se livro (pelas mãos do próprio Antonio Mário, em vida,
e pelo desejo de entes após a sua morte).5 Segundo conta, antes de falecer, o diretor havia
pedido a um amigo que cuidasse de seus pertences, com tudo que dizia respeito a entrevistas
em jornais, livros e outros documentos. Houve um incidente no depósito onde tudo ficava
guardado, o que fez com que as caixas com tais materiais se perdessem, impossibilitando,
assim, a busca, inclusive, pelo documento original em questão.6 O que se tem de fontes, aqui,
infelizmente, é o que restou. No mais, o compilado de textos pode ter sido base da pesquisa
para sua “monografia”, ou um possível rascunho do original e, portanto, contempla questões
relacionadas a observar a escrita do personagem, o conteúdo de seus textos, inclusive, seu
contato com uma investigação que se propunha dentro dos marcos de um “fazer
historiográfico” diletante.

4
Termo aqui utilizado entre aspas pois alude à forma como os documentos e panfletos sobre os festivais se
referiam sobre Alagoinhas.
5
Lívia Santarém, Iraci Gama e José Olívio, de acordo com as entrevistas realizadas, sabiam da existência desse
material.
6
A informação sobre o incidente foi cedida por Lívia Santarém, ao rememorar o momento em que tentara
recuperar os pertences do pai após sua morte. Depoimento cedido por Lívia Santarém à autora, em 17 de abril de
2020.
15

Pensando na perspectiva do início da trajetória de Antonio Mário em Alagoinhas e os


desdobramentos em torno dos vínculos com o município, considerados importantes para esse
trabalho, o recorte temporal contempla o ano em que Antonio Mário chega à cidade, 1961, e
segue até 1987, pois grande parte das fontes encontradas, peças de teatro, textos, produção
junto à FFPA, convergem para esse ano limite. O fim do marco, entretanto, não representa o
momento em que se encerraram, categoricamente, as ações artísticas e intelectuais do
personagem. Em 1990 havia indício de atividade do diretor junto ao Natureza, por exemplo.
Logo, as balizas temporais adotadas orientam a narrativa e não são fixas: elas podem se
“movimentar”, retrocedendo ou avançando no tempo, de acordo com as necessidades da
investigação.
Antonio Mário foi um professor, um poeta reconhecido pela comunidade, sem
registros de poemas produzidos, um diretor de teatro que também não deixou vestígios de
textos dramatúrgicos de autoria própria, e foi um historiador diletante cuja pesquisa fora
reconhecida em jornais na cidade, e pela manutenção de sua boa imagem, ingressou na
maçonaria. Como essa história se desenrola no período da ditadura militar, surge a
necessidade de refletir sobre o que conferiu a manutenção e a sobrevivência do seu teatro. Seu
múltiplo revela facetas de um indivíduo que, sobretudo, desejava permanecer fazendo teatro.
Mas como esse personagem negro sustentou tal motivação num período que se percebe
repleto de agruras para o meio artístico de modo geral? Como ocupou vários espaços na
cidade, e se envolveu com sua história a ponto de desenvolver uma pesquisa sobre ela?
Além de ter batizado o nome do primeiro grupo homônimo ao autor Dias Gomes,
autodeclarado subversivo, no ano do golpe, seguiu montando autores igualmente considerados
como tal, na década de 1980. Por isso, na primeira fase desta pesquisa, iluminou-se a
possibilidade de buscar fontes que verificassem a ação da censura e/ou da repressão contra o
diretor de teatro. Os relatos sobre a Fazendinha, centro clandestino de tortura na Bahia,
consistiram no único vestígio encontrado, e ainda assim, tal fonte não denunciou a presença
do sujeito dentre as vítimas. O período de pandemia mundial por conta da COVID – 19, entre
2020 e 2021, impôs alguns obstáculos à pesquisa. Um deles foi a impossibilidade de acesso
ao 4º Batalhão onde as fontes policiais poderiam ser diretamente obtidas. Além da situação de
crise sanitária, houve a dificuldade em formalizar um contato com os responsáveis pelo
arquivo lá presente, devido à hierarquia que rege o sistema.
O conceito de táticas e estratégias elaborado por Michel de Certeau contribuiu para
elucidar a possibilidade de que num regime político em que vigora o estado de exceção, os
artistas enquanto setor majoritariamente atingido, pode se apropriar de brechas para
16

sobreviver. Trazendo para o cenário de atuação de Antonio Mário, as táticas consistiam em


seu único “lugar de poder”. A composição social diversa dos grupos de teatro que montou e o
contato com pessoas de diferentes classes são fatores para se observar pari passu à sua
sociabilização com a classe dominante. Tais táticas possibilitaram a manutenção de uma
imagem não estigmatizada e a “publicização” de si próprio. Assim, na ausência de estratégias,
ou seja, de um lugar de poder em propensão elevada onde seria possível “gerir as relações
com uma exterioridade de alvos ou ameaças”,7 o que restava, portanto, era agir pelas brechas
do sistema, pois a capacidade de se reinventar era a base da sobrevivência para diversificar as
formas de resistência, e compreendê-la, sobretudo, como reexistência.
Este trabalho propõe contar história de Antonio Mário a partir de sua trajetória
artística. Compreende-se a noção de trajetória segundo Pierre Bourdieu, como uma “série de
posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente [...] num espaço que é ele próprio
um devir, estando sujeito a incessantes transformações” pois, “os acontecimentos biográficos
se definem como colocações e deslocamentos no espaço social[...]”.8 Na tentativa de dar
sentido a uma correlação de fatos justapostos de maneira não linear, “difíceis de serem
apreendidos porque surgem de modo incessantemente imprevisto, fora de propósito e
aleatório”, descortina-se um Antonio Mário que fortaleceu seu vínculo com o teatro à medida
em que construiu vínculos artísticos com a cidade. Nessa teia dos fatos, tanto Alagoinhas se
transforma por suas ações, quanto ele é transformado pelas relações e ações que construiu em
Alagoinhas.
O aporte teórico utilizado para sustentar o estudo do “personagem” em perspectiva
biográfica está fundamentado, além de Pierre Bourdieu, em Sabina Loriga, Benito Bisso
Schmitt e Vavy Pacheco Borges. Schimidt, sobretudo, inspirou esse trabalho em termos de
estética da narrativa, principalmente, na tessitura que une os pontos entre os vestígios e o
exercício da imaginação histórica.9 "A biografia constitui, com efeito, a passagem privilegiada
pela qual os questionamentos e as técnicas próprios à literatura se colocam para a
historiografia".10 Assim, a literatura, revela a beleza do texto e a liberdade da escrita, sem
perder de vista o horizonte do rigor historiográfico.
Para construir o sentido biográfico sobre a vida do indivíduo, o autor foi indispensável
para se levar em conta “os complexos processos de recriação do passado”. Assim, evitam-se

7
CERTEAU, Michel. Artes de Fazer. In.: A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 96.
8
BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In.: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaina (org.). Usos e
abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996, pp. 189-190.
9
SCHMIDT, Benito Bisso. Construindo biografias: Historiadores e jornalistas, aproximações e afastamentos.
In.: Estudos Históricos, Rio de Janeiro: FGV, vol. 10, nº 19, 1997, p.3-21.
10
LEVI apud Schmidt. In.: SCHMIDT, Benito Bisso. Idem, ibidem, p. 7.
17

os erros de uma biografia jornalística, que, segundo ele, não atende aos rigores metodológicos
para lidar com as fontes, equilibrar as “verdades históricas”, e articular o indivíduo e
sociedade, devidamente.11 Sigo, portanto, na perspectiva de uma narrativa que descreve os
acontecimentos, sem descuidar da análise; articula a vida pública e privada de Antonio Mário,
e busca compreendê-lo na medida em que representa um contexto social, pelo destaque que
obteve.
Certa projeção social do personagem em estudo se consolidou através da homenagem
que ele recebeu em 2017, ao ser inaugurada uma sala com seu nome no Centro de Cultura de
Alagoinhas; e da exposição permanente sobre sua vida na Fundação Iracy Gama. Em 2002,
recebeu o título post mortem de cidadão alagoinhense pelo seu ex-aluno e então vereador de
Alagoinhas, Pedro Marcelino.12 Apesar de não se tratar de uma pessoa totalmente
desconhecida pela sociedade alagoinhense, não pretendo desenvolver aqui a trajetória de um
“indivíduo-exemplo”, conforme Sabina Loriga, ou seja, o homem tomado como a
personificação das forças sociais, cujas ações devem ser enaltecidas para que sirvam de
exemplo na posteridade.13 Nesse mesmo caminho, procuro me afastar da perspectiva do
“herói” de Tomas Carlyle (1795 - 1881), no sentido de renunciar a si mesmo enquanto
indivíduo, e visar a universalidade antes de tudo.14
A discussão proposta por Loriga sobre tipos e métodos de lidar com o indivíduo, no
constructo de uma biografia, contribuiu para manter a escrita consciente sobre o que evitar
fazer nesse processo. Sobre o que fazer, a partir do caminho que a autora propõe,
compreende-se a biografia como campo que serve de reflexão para restituir as pluralidades do
passado e as diferentes vozes que podem cultivar a dimensão ética da história: “Recolher
pensamentos para povoar o passado”.15 Ou seja, a biografia ajuda a introduzir uma tensão
dramática no passado. Interessa, portanto, trazer a imagem do “grande diretor teatral” e
“exímio professor” – que todos os entrevistados, saudosamente, pintaram – para
problematizá-la. Consequentemente, discutir suas múltiplas identidades, destacar as
perspectivas fracionadas da vida, as incoerências do indivíduo e compreendê-lo levando em
conta a desconstrução da “ilusão biográfica”.16

11
Idem.
12
Título de Cidadão Alagoinhense post mortem concedido a Antonio Mário dos Santos pela Câmara de
Vereadores de Alagoinhas através do decreto 068/02, em 19 de dezembro de 2003.
13
O termo foi criado por Hippolyte Taine e discutido por Sabina Loriga. Ver: LORIGA, Sabina. O Limiar
biográfico. In.: O Pequeno x: da biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p. 17 – 47.
14
Idem. Ibidem.
15
Idem. Ibidem.
16
BOURDIEU, op. cit.
18

Não obstante aos caminhos que se deve evitar no fazer biográfico, Vavy Pacheco
Borges propõe um modus operandi para lidar com as dificuldades de trabalhar com a esfera
individual que dialoga também com a cidade. A relação entre o personagem e o cenário é
dialógica e vai se construindo na medida em que um dá a "deixa" para o outro no palco da
reconstituição histórica.
Pensando Alagoinhas como palco onde essa narrativa se constituiu sob o olhar de
Antonio Mário, e também como cenário de sua chegada, através do qual ele implementa
transformações mútuas, Sandra Jatahy Pesavento fundamenta a discussão. A partir de seus
estudos, a autora contribui com a análise sobre mudanças sofridas por cidades ao longo das
décadas de 1960 a 1980, tal qual a dinâmica sociocultural impingida por símbolos e urgências
da modernidade. Segundo ela, o historiador da cultura identifica os signos do passado em
forma de documentos (discursos ou imagens) e percebe como o desenvolvimento das cidades
modernas tendem a destruir as memórias.17 Essa reflexão também traz um contraponto a essa
relação, quando ajuda a pensar sobre as realizações do grupo de pesquisa Pró-Memória
coordenado por Antonio Mário, quando de seus projetos desenvolvidos para preservar esse
“velho” como valorização da memória da cidade.
Assim, surge a Alagoinhas de várias perspectivas: a da década de 1960 em pleno
desenvolvimento econômico, mas carente dos projetos culturais, e a cidade pós 1968, em que
esses projetos se desenvolvem e, junto à FFPA, conforma-se o movimento cultural.
Parafraseando José D’Assunção Barros, a escolha das fontes e a condução do método de
pesquisa e da narrativa também foram permeados por uma imagem tridimensional da cidade:
ora consciente de seu potencial de desenvolvimento, ora apresentando os percalços que as
mudanças causaram, ora lacunar e silenciada sobre suas produções culturais, em razoável
medida.18
Ao voltar o olhar para o passado, o historiador está elaborando uma representação a
partir do que já foi representado pela literatura, pela memória, pela imprensa, inclusive por
documentos oficiais. O conceito de “representação” de Roger Chartier cabe para compreender
os sentidos produzidos através do cruzamento de tais fontes, afinal, o real é uma “cadeia de
significados” e essa cadeia acontece por meio de olhares entrecruzados.19

17
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O Imaginário e a Cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio e Janeiro,
Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2002.
18
BARROS, José D’Assunção. Cidade e História. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p.46
19
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, nº 11 (5), p. 173-191,
1991.
19

Nesse ínterim, percebe-se uma cidade “construída” por Antonio Mário, em seus
escritos, cujas representações se cruzaram às de dois memorialistas locais, Salomão Barros e
Joanita da Cunha, em seus livros Vultos e Feitos do Município de Alagoinhas e Traços de
Ontem, respectivamente. Visões e informações trazidas por esses dois últimos também foram
problematizadas diante do cruzamento com outras fontes, possibilitando-se perceber que as
narrativas dominantes “querem ser senhoras da memória e do esquecimento”.20
Uma busca meticulosa para essa pesquisa sugere que até então não houve trabalhos
sobre teatro na cidade, inclusive isso consiste numa lacuna historiográfica acerca do tema nos
interiores da Bahia. Não obstante, alguns historiadores contribuíram para pensar o cenário de
desenvolvimento da década de 1960 em Alagoinhas, como Carlos Nássaro, Moises Leal e
Leila Carla Rodrigues. O trabalho de Jonatas Pereira também inspirou essa dissertação, a
nível de comparação e compreensão das diferentes formas de atuação e resistência de artistas
contra a repressão militar, uma vez que tem como tema de pesquisa uma mulher artista e
militante alagoinhense – Albertina Rodrigues – cuja atuação se desenrolou, assim como
Antonio Mário, durante a ditadura.
Pensar a cultura e seus processos identitários no Brasil surgiu como reflexão para
entender as transformações que o teatro estava vivendo na época e com qual arte Antonio
Mário estava em contato no período, tendo lhe permitido trazer seus conhecimentos em
Alagoinhas. Com isso, Renato Ortiz, em A Moderna Tradição abre a reflexão sobre como a
industrialização e modernização na economia influenciaram nas artes e na dinâmica
sociocultural, pensando a esfera baiana, e a emergência de um teatro novo e popular
alternativo ao teatrão bilheterista, questão que consequentemente se refletiu nas platéias e
públicos consumidores de cultura no Brasil.21
Em termos de Salvador - Bahia, Maria do Socorro S. de Carvalho segue nessa
perspectiva de contribuir para pensar a formação do panorama cultural moderno. Aborda as
artes cênicas de 1960 como fruto das transformações que se sucediam desde a década de
1950. Contribuiu largamente para pensar o cenário em que o personagem se constitui ator na
Escola de Teatro da UFBA e o papel desta enquanto meio de incentivo à ampliação dos
grupos em Salvador e catalisadora de uma nova dinâmica cultural na cidade.22

20
MONTENEGRO, Antonio Torres. História, metodologia, memória. São Paulo: Contexto, 2010, p. 109.
21
ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira: Cultura Brasileira e Indústria Cultural. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1989.
22
CARVALHO, Maria do Socorro S. de. Imagens de um tempo em movimento: cinema e cultura na Bahia nos
anos JK (1956 - 1961). Salvador: Edufba, 1999.
20

Nesse processo, Antonio Mário entrou em contato com atores da nova geração
artística do “teatro novo” e do cinema novo, a exemplo de Mário Gusmão (1928 - 1996),
Othon Bastos (1933), Geraldo Del Rey (1930 - 1993), Nilda Spencer (1923 - 2008) e Sonia
dos Humildes (1939 - 1980). Importante destacar que Antonio Mário fez parte da turma em
que se formaram os primeiros atores negros em Salvador, como o próprio Mário Gusmão e
Antonieta Bispo. Em 1957, junto com esses atores (exceto Gusmão), Antonio Mário
participou do espetáculo O Boi e o Burro a Caminho de Belém, texto escrito por Maria Clara
Machado (1921 - 2001), dirigido por Martin Gonçalves (1919 - 1973), então diretor da Escola
de Teatro.
A relevância da escola de teatro para lançar os primeiros atores negros por formação
na Bahia, inclusive para a televisão, e sendo Antonio Mário um ator negro incluído nessa
turma, pode ser refletida a partir da Linha do Tempo do Teatro Negro em Salvador, do diretor
e dramaturgo Marcio Meirelles. Os autores de teatro somaram, nessa pesquisa, com
perspectivas de diferentes áreas, dentre esses, dois críticos de teatro: Decio de Almeida Prado
e Paulo Francis. Jussilene Santana em sua dissertação de mestrado auxiliou nas reflexões
sobre a ETUFBA, os atores formados na primeira turma e a peça em que Antonio Mário
participou.
Outros autores contribuíram para dar voz à história de um teatro de resistência na
Bahia, e sua ligação com o Brasil. Raimundo Matos de Leão sugere um viés amplo sobre os
teóricos que inovaram o fazer teatral e como eles se relacionam com a historiografia. Sua
contribuição é mais específica no sentido de se debruçar sobre a situação do teatro na Bahia
entre 1967 e 1974. Logo, se propõe a contribuir para que se possa ir além da história “contada
sempre do ponto de vista dos acontecimentos que se dão no eixo Rio - São Paulo”.23 Acerca
da “revolução teatral” que acontece na virada de 1967 para 1968, Luiz Carlos Maciel (1938 -
2017) apresenta um painel nacional sobre a contracultura. Localiza o chamado Teatro Novo
num paralelo entre o cinema, a música e as artes plásticas, linguagens atravessadas pelo
movimento Tropicalista, também abordado pelas memórias do autor.24 Ambos também foram
essenciais para a compreensão da ação da censura e repressão sobre os artistas, e as formas de
re-existência possíveis dentro do panorama.
Sobre a compreensão geral do pano de fundo político no contexto de ditadura, Cristina
Costa também entrou na discussão com dados, fontes e diálogos acerca da ação da censura
23
LEÃO, Raimundo Matos. Transas na Cena em Transe: Teatro e Contracultura na Bahia. Salvador: Edufba,
2009, p.18.
24
MACIEL, Luiz Carlos. Geração em Transe: Memórias do Tempo do Tropicalismo. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1996.
21

sobre o teatro.25 Denis de Moraes ajudou a costurar o panorama macro, tecido pós 1970,
quando a esquerda brasileira se fragmentou por inúmeros motivos paralelos, fazendo com que
o ideal da revolução socialista fosse substituído por dúvidas e incertezas. 26 Vale ressaltar que
a pesquisa transcende a historiografia e dialoga diretamente com a bibliografia sobre o teatro,
de maneira a buscar possibilidades interdisciplinares. Desse modo, além dos dramaturgos e
críticos brasileiros já citados, alguns cânones do teatro mundial foram interpelados para
melhor compreender a formação proporcionada por Antonio Mário aos seus atores:
Constantin Stanislavisky (1863 - 1938), Richard Bolelavsky (1889 - 1937), Saint-Exupery
(1898 - 1956) e Anton Tchekhov (1860 - 1904).
Essa dissertação foi conduzida pela perspectiva de história cultural proposta por Roger
Chartier, na qual orienta repensar seus métodos a partir de aspectos imateriais que configura
como o conceito tanto de representação como de práticas.27 Segundo ele, a cultura deve ser
analisada através da “relação interativa” entre esses dois pólos. Tanto os objetos como
sujeitos produtores de cultura circulam entre ambos, que correspondem ao “modo de fazer e
modo de ver”. Assim, institui-se uma realidade social “dada a ler” por uma pluralidade de
sentidos. O conceito de representação, aqui, ajuda a refletir sobre como se dá tal apreensão do
mundo, através do teatro, por aquelas pessoas que vivenciaram os grupos dirigidos por
Antonio Mário. Inclusive, como essas representações se constituem no presente de modo a
construírem imagens sobre o sujeito como diretor.
Para reconstituir os passos de Antonio Mário nos espaços onde frequentou e as
representações elaboradas sobre ele, muitas lacunas surgiram e só puderam ser supridas por
depoimentos e entrevistas. Antonio Mário teve 4 casamentos, e, ao todo, 10 filhos. Lívia
Santarém é a 2ª filha do casamento com Nélia Santarém (3ª esposa) com quem conviveu
durante praticamente toda a trajetória aqui abordada. Consequentemente, por ter vivido com o
pai por mais tempo do que os filhos dos casamentos anteriores, isso conferiu a tal filha
segurança para autointitular-se “a biógrafa da família”.28 O exercício da memória também é
um encontro consigo mesma, pois identidades são frequentemente construídas e reconstruídas
diante da negociação entre as esferas individual e social. Quando ela institui a si própria a
imagem de “guardiã/mediadora da memória” cria uma imagem a partir da memória do pai,
logo, percebe-se que essa se constitui como “aquela que o conheceu tão bem” que qualquer

25
COSTA, Cristina. Censura em Cena. São Paulo: EDUSP, 2006.
26
DREIFUSS, René. In.: MORAES, Dênis de. A Esquerda e o Golpe de 64: Vinte e cinco anos depois, as
forças populares repensam seus mitos, sonhos e ilusões. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.
27
Inclui-se na definição tambem o conceito de apropriação, mas não foi explorada como as outras duas.
28
Em entrevista, Lívia revelou que se considera a “biografa da família”. Entrevista cedida por Lívia Santarém à
autora, em 10 de setembro de 2017.
22

informação de outro contemporâneo que passe por ela, sofrerá sua inflexão, de alguma
forma.29 Assim, pensando a partir de Michel Pollack, pode-se compreender a memória de
Antonio Mário constituída como “campo de disputa” quando Lívia Santarém traz algumas
informações que contrariam falas de outros contemporâneos.30
Importante ressaltar que Eclea Bosi traz para esse estudo a perspectiva da psicologia
social sobre memória individual e permeada pelas questões sociais coletivas.31 Bosi foi ainda
mais pertinente pelo seu estudo sobre “memórias de velhos” uma vez que os ex-alunos de
teatro de Antonio Mário, todos, atualmente (em 2021), têm idade superior a 60 anos. Isso
consiste num fator específico para se considerar quando comparado à memória de Livia
Santarem, nascida em 1965 e portanto, mais jovem. Os ex-atores, no entanto, têm uma relação
com a memória cujo exercício da lembrança se torna atividade de maior relevância.
Antonio Torres Montenegro trouxe aporte para todo o processo de elaboração, realização
e transcrição das entrevistas. Auxiliou também na lida com possíveis “armadilhas” da
memória, visto a constante presença de elementos subjetivos nos relatos dos depoentes.
Portanto, o autor somou-se aos demais na contribuição para atentar aos métodos que não
desconsideram a emoção, mas destacam, ao entrecruzar com as demais fontes, fatos que
interessam à construção da narrativa historiográfica.32
Nessa perspectiva, as fontes orais colhidas através de entrevistas com a sua filha, a ex-
esposa, atores dos antigos grupos e amigos também fazedores de cultura possibilitaram
construir a representação do “personagem” Antonio Mário e narrar sua trajetória pessoal e
artística. Todos os acontecimentos em sua vida, sem data específica, foram localizados no
tempo através de informações cruzadas entre as falas sobre as vivências dos entrevistados e
demais documentos analisados. Somente assim foi possível estabelecer nexos entre as datas
referentes à sua vida pública e particular, para calculá-las de forma aproximada.
As fontes documentais raras de caráter pessoal, as quais tive acesso através dos
arquivos de Lívia Santarém, trouxeram detalhes para reconstruir momentos da vida do
professor e analisar seus materiais de teatro: roteiros de peças, panfletos e programas dos
espetáculos realizados por ele, gratificações e convites para eventos culturais na cidade,
documentação de admissão e aposentadoria do IBGE, além de fotografias individuais, tanto
dele quanto de seus pais e da casa onde moravam em Salvador.

29
Considera-se a expressão “guardiã/mediadora da memória” guardadas as devidas proporções em que a
expressão foi elaborada. Ver: GOMES, Ângela de Castro. A guardiã da memória. Acervo - Revista do Arquivo
Nacional, Rio de Janeiro, v.9, nº 1/2, p.17-30, jan./dez. 1996, p. 5.
30
POLLAK, Michel. Memória e identidade pessoal. Estudos Históricos, Rio de Janeiro. vol. 5, nº. 10, 1992.
31
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo, SP: Editora Tao, 1979.
32
MONTENEGRO, op. cit.
23

Vale ressaltar que as fotografias estão aqui servindo para exprimir situações e contextos,
pois além de não ser possível identificar elementos para realizar uma análise profunda (como
autores das fotos), não houve intenção de fazer um estudo iconográfico para esse trabalho. O
foco limitou-se a questões à luz do que se tem em mãos. Além das fotografias pessoais que
Livia cedeu para a pesquisa, outras referentes a espetáculos, cerimônias, presença do
personagem na maçonaria, ou realizando pesquisas de campo, foram encontradas na Fundação
Iraci Gama (FIGAM) e contribuíram para que, operando no campo das possibilidades, ele
fosse compreendido como presente em diversos lugares sociais.
Outros documentos de ordem pessoal, artística e intelectual de Antonio Mário também
foram acessados na FIGAM, bem como arquivos sobre as atividades artístico-culturais
promovidas pela FFPA, entre as décadas de 1970 e 1980, que serviram para construir o
panorama em que a maior mobilização teatral de Antonio Mário se fez notar ao passo em que
se constituía o circuito cultural na cidade.
Os textos em que o personagem escreveu sobre a história de Alagoinhas desde a
formação do seu marco inicial em torno da Igreja Inacabada possibilitaram compreendê-lo no
universo intelectual da cidade. Usar o escrito de Antonio Mário não significa necessariamente
contar a história que ele conta, mas fazer sua narrativa presente e “dar-lhe” voz. Além do já
referido compilado, cujo original pode ter se perdido, foi cedida para essa investigação, por
meio de sua filha Lívia Santarém, uma pasta contendo textos de estudo sobre teatro,
adquiridos durante a formação da Escola de Teatro da UFBA, trabalhos desenvolvidos com a
FFPA e palestras para a Rosa Cruz. Outra fonte, igualmente rara, consiste num caderno de
anotações pessoais, remanescente dos materiais que se perderam, e que foi encontrado sob
posse do amigo de Antonio Mário, José Olívio Paranhos.
Dentre as fontes jornalísticas, o Alagoinhas Jornal, Jornal da Bahia e o Tribuna de
Alagoinhas foram as principais, todas também cedidas pela FIGAM. O Alagoinhas Jornal –
mais explorado neste trabalho, possibilitou a análise de outras informações sobre a sociedade
da época e a construção do panorama de Alagoinhas que se desenhava quando Antonio Mário
se mudou. Editado entre 1957 e 1970, foi fundado por Walter Altamirano Robatto Campos
(diretor) e Waldo José Robatto Campos (redator-chefe).33
A necessidade de incluir Alagoinhas num patamar de importância no contexto
nacional era frequentemente enaltecido pelo jornal. Vale ressaltar que o nacionalismo pré-

33
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 34.14 mar.1960, p. 3.
BARROS, Salomão Antonio. Vultos e feitos do Município de Alagoinhas. Salvador: Artes Gráficas e Ind.
LTDA, 1979, p. 297.
24

golpe se impunha como fator importante de manutenção da cidadania e medida protetiva


contra a “ameaça comunista”. Diante da simpatia que o jornal assume com o “movimento
revolucionário de 01 de abril de 1964”, não é difícil compreender a relação com a exaltação
desse sentimento.34 Diferente do Alagoinhas Jornal, o Jornal Tribuna de Alagoinhas
apresentava atividades artísticas como destaque nas matérias, notícias sobre a universidade e
movimentação cultural; no entanto, foi possível acessar somente duas edições, uma do ano de
sua fundação, 1978, outra de 1979.35
Apesar de ter tido acesso a somente uma matéria do Jornal da Bahia, para a qual
Antonio Mário cedeu uma entrevista, pude constatar o silêncio dos jornais sobre o movimento
artístico da cidade, através da análise comparativa entre ambos. O Jornal da Bahia destacou-
se em relação aos outros. Nele, os artistas da época disseminavam suas idéias e publicavam
sobre as últimas montagens teatrais e críticas culturais. Apesar de ser uma fonte sem data
específica, uma página avulsa do jornal Nova Chama, da década de 1980, foi utilizada para
analisar a repercussão da pesquisa realizada pelo professor, sobre Alagoinhas. Trata-se de um
informativo elaborado e veiculado pela empresa Copener Florestal (situada no município),
para o qual Antonio Mário cedeu uma entrevista sobre a história da cidade.
Foi possível verificar rastros de Antonio Mário no Movimento Brasileiro de
Alfabetização (MOBRAL) em atas de reuniões acerca da instalação do programa na cidade,
em 1970, além do panfleto sobre o festival de teatro que realizou nesse âmbito. Tais fontes se
encontram no Arquivo Público de Alagoinhas.
A plataforma virtual do Arquivo Nacional possibilitou encontrar fontes iconográficas e
documentos sobre a ação da censura em Alagoinhas, como um documento da Comissão da
Verdade sobre o caso da “Fazendinha" e um panfleto da União Municipal dos Estudantes de
Alagoinhas (UMESA), apreendido pela censura em 1987.
Os capítulos foram distribuídos contendo 3 tópicos em cada um. O tópico inicial do
primeiro capítulo apresenta o personagem em seu contato inicial como o teatro: a formação do
ator Antonio Mário dos Santos, sua atuação na Escola de Teatro da UFBA, além do panorama
sociocultural de Salvador. O segundo mostra como iniciou sua vida em terras alagoinhenses,
ao abordar o contexto sócio-político da urbe na década de 1960, e da sua atuação como
professor. O terceiro se ocupa da vida cultural da cidade que abrange aspectos como as festas
tradicionais de rua e clubes, além dos cinemas como fundamental entretenimento para a época

34
Alagoinhas Jornal, ano 4º, nº 82. 23 abr. 1964, p. 1.
35
A informação sobre o ano de fundação do Tribuna de Alagoinhas pode ser encontrada em BARROS, Salomão
op. cit., p. 297.
25

e os desdobramentos políticos em torno desses. Para a construção desses dois últimos tópicos
foram utilizadas, largamente, as edições do Alagoinhas Jornal, entre 1958 e 1961, além dos
próprios textos e anotações de Antonio Mário.
O segundo capítulo aborda os grupos de teatro formados pelo personagem – mudanças
em torno das permanências e rupturas, práticas e táticas relacionadas à manutenção dos
grupos. O primeiro tópico trata do grupo Dias Gomes, sua primeira atuação como diretor; o
segundo aborda uma nova fase do seu teatro com o grupo Natureza, no pós-1968; e o terceiro,
discute experiências com teatro infantil e o que isso pode ter significado para o diretor no
contexto. Trabalha, basicamente, com entrevistas e depoimentos de ex-participantes do grupo,
analisa os métodos de formação teatral utilizados pelo diretor a partir do livro de métodos que
o embasava, e todas as fontes relacionadas às produções teatrais: roteiros, programas,
panfletos e fotos das peças.
O terceiro capítulo aborda o circuito cultural que emerge com o ciclo de 1972 - 1987.
O primeiro tópico ocupa-se da relevância da FFPA para o movimento artístico e a atuação de
Antonio Mário nos projetos elaborados em parceria com a academia. O segundo tópico trata
das 4 edições dos Encontros de Cultura, e atividades culturais, reflexo da formação do
movimento cultural de Alagoinhas, âmbitos atravessados pela presença do protagonista dessa
história. O terceiro tópico traz Antonio Mário numa perspectiva de narrador sobre os
acontecimentos da década de 1980, o que dialoga com a atuação do movimento cultural e
estudantil de Alagoinhas. Refere-se às tensões sociais em torno da reivindicação dos artistas
da cidade pela inauguração do Centro de Cultura, no ciclo que compõe os últimos anos da
década de 1980 e conclui sobre a sobrevivência e manutenção desse circuito. Tomando como
centro organizador da narrativa os textos de Antonio Mário sobre arte, cultura e educação,
basilares para a construção do capítulo. Além desta, todo ele foi construído com fontes sobre
as programações dos eventos, documentos oficiais da universidade e do governo, além de
periódicos.
Vê-se que a lógica narrativa se constrói a partir da articulação entre Antonio Mário e a
cidade, assim como da cidade para o personagem. A vida pessoal o acompanha à medida que
elucida pontos focais para o texto. Por uma opção estilística, os termos de linguagem teatral
como “cenário”, “deixas”, “misencene”, “cenas”, “personagem”, foram incorporados aos
títulos e ao corpo do texto a fim de aproximar a história do gênero artístico e fazer referência
a tal. O tema, portanto, foi costurado dessa forma: o personagem que sai de um cenário, chega
em outro a partir de onde o movimenta e o transforma junto ao circuito no pós-1968. Esse
sujeito também observa esse cenário: trata-se, portanto, de uma dissertação cuja investigação
26

histórica gira em torno de um homem negro que se evidenciou através da arte numa cidade de
valores, estruturalmente, conservadores, em plena Ditadura Militar. Esse recorte de sua
trajetória artística e intelectual confundiu-se com um momento de transformações estruturais
para a esfera cultural em Alagoinhas.
27

Capítulo I

O personagem e os cenários

1. Nasce o ator Antonio Mário dos Santos

Para o início dessa história, é necessário um recuo a 1957, ano em que Antonio Mário
dos Santos estreava em sua primeira peça de teatro na Escola de Teatro da UFBA. O
espetáculo O Boi e o Burro a Caminho de Belém foi dirigido por Martin Gonçalves e
apresentada no Parque da Reitoria.36 A peça, escrita por Maria Clara Machado, conta a
história do nascimento do menino Jesus de forma sensível e inusitada, pela perspectiva de um
boi e um burro. Os dois amigos tentam desvendar o “mistério” desse nascimento com a
aparição da Estrela de Belém sobre o estábulo e acompanhando a movimentação de pastores,
anjos, saltimbancos, os três Reis Magos, Maria e José.37
O Boi foi representado pelo ator convidado Othon Bastos, e o Burro, pelo aluno da
turma, Carlos Petrovich.38 Antonio Mário interpretou o papel do rei Mago Baltazar, e foi
prestigiado pela sua amiga Nélia – um apoio moral para o ator em formação, que tinha três
filhos e uma esposa acometida por enfermidade em estado terminal.39 As crianças ficaram
órfãs de mãe ao final do mesmo ano, nas proximidades do Natal. Não foram encontrados
registros do dia exato em que a peça O Boi e o Burro a Caminho de Belém foi apresentada.
No entanto, considerando o subtema da “Farsa-mistério de Natal” é provável que tenha
acontecido próximo às comemorações natalinas. Ao que tudo indica, pode ter sido no dia da
sua primeira apresentação que Antonio Mário perdeu a primeira esposa.40

36
FRANCO, Aninha. O teatro na Bahia através da imprensa: séc XX. Salvador: FCJA; COFIC; FCEBA,
1994, p. 129.
37
Roteiro da peça O Boi e o Burro a Caminho de Belém de Maria Clara Machado. s/d. Arquivo pessoal de Lívia
Santarém.
38
SANTANA, Jussilene. Martim Gonçalves: uma escola de teatro contra a província. Salvador: Tese
(doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, 2011. Disponível em
<https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/32002/1/martim-goncalves-jussilene-santana-sf-dvv.pdf> Acesso em
21 de dezembro de 2020.
39
Entrevista cedida por Nélia Santarém à autora, em 10 de setembro de 2017.
40
A própria Nélia afirmou em entrevista que no dia em que a esposa dele faleceu, ele estava apresentando a peça
que ela foi assistir, e o viu no papel do rei mago Baltazar. Levando em conta o registro da participação de Mário
no espetáculo, as evidências do fato convergem para esse dia.
28

Do pai, o ator não recebeu o mesmo apoio que Nélia lhe dedicou. Narciso Simplício,
um homem negro, como seu filho, era empreiteiro da construção civil. Esperava que Antonio
Mário desse continuidade aos seus negócios. O pai não aceitou com facilidade a escolha do
filho pela formação artística, principalmente quando se leva em consideração a situação
familiar em que o ator se encontrava: uma esposa em estado de saúde terminal, de um
casamento que Simplício, inclusive, não aprovou. A primeira esposa de Antonio Mário era
filha da costureira da família, e tinha condição social diferente da que a família do Matatu
desfrutava.41
Antes de decidir se matricular na Escola de Teatro da UFBA, Antonio Mário havia
prestado concurso para o IBGE e, ao ser aprovado, foi transferido para Brumado com a esposa
e os dois filhos mais velhos, por volta do ano de 1954. Com o nascimento do terceiro filho,
Marco Antonio, em 1956, a esposa não resistiu aos primeiros sinais da doença. Diante do
quadro familiar, Antonio Mário foi transferido para Salvador a fim de obter tratamento
adequado para ela. E nesse retorno, o pai de Antonio Mário,

comovido, hospeda todo mundo naquela casa bonita, confortável do Matatu.


Então eu acho que meu pai, nesse momento percebe: ou eu faço meu teatro
agora, nesse momento, que ele está comovido, ou eu não faço nunca mais!
[...] Se ele faz esse teatro que o pai sempre odiou nesse momento, era o
momento dele ali. Até como uma válvula de escape para sair daquele drama
familiar. Porque você imagine, é sua esposa que está morrendo... é seu filho
que está nascendo que não vai ter mãe... foi aquele sonho de juventude que
você largou [...] E aí eu percebo [...] que aquele casamento com essa moça
que morreu de leucemia não foi por amor. Foi pra peitar meu avô. [...]
Porque quando você tem uma mulher morrendo de leucemia e você corre pra
fazer Faculdade de Teatro, isso não é normal.42

As informações obtidas para construir a narrativa da vida de Antonio Mário provêm


das lembranças evocadas tanto pela personagem “coadjuvante” desse enredo, Nélia Santarém,
como por sua filha, Lívia Santarém (a segunda dos três filhos que Nélia e Antonio Mário
tiveram). Ao reconstituir a trajetória de seu pai, sobre o período em que ele decidiu enveredar
pela vida artística, a narrativa da filha sugere uma imagem de um homem que enfrentou os
valores conservadores da família para seguir seu sonho. Ainda que, para isso, precisasse

41
Todas as informações no referido parágrafo foram cedidas por Lívia Santarém, a 2ª filha dos três filhos que
Antonio Mário teve com Nélia Santarém. Entrevista à autora no dia 10 de setembro de 2017. Vale ressaltar que
Antonio Mário casou-se quatro vezes, no entanto, eu só tive a oportunidade de conhecer as esposas do 3º e 4º
casamentos, apesar de que essa última não aceitou ceder entrevista. Sobre as outras companheiras, tive
conhecimento a partir dos relatos de Lívia Santarém e Nélia Santarém.
42
Entrevista cedida por Lívia Santarém à autora, em 10 de setembro de 2017.
29

sacrificar o luto pela esposa, para participar do primeiro espetáculo teatral. Assim, orientada,
sobretudo, pela memória do presente, constitui o ator em formação como num “percurso
orientado” em “deslocamento linear” em direção à realização do desejo de tornar-se ator.43
Para além das especulações sobre a personalidade do sujeito, interessa observar como, apesar
do “drama familiar”, a faculdade de Teatro possibilitou a Antonio Mário construir sua relação
com o novo teatro brasileiro em formação. Além disso, ele esteve ligado a uma Salvador cujo
cenário se localizava no processo de importantes transformações em seu contexto sócio-
cultural.
O Brasil de 1950 vivia um período de abertura política durante o governo
Juscelino Kubitschek (1956 - 1961) cujo desenvolvimentismo intencionava a modernização
técnica do país e a inovação cultural, em prol da superação da condição de nação
subdesenvolvida. Afinal, “um povo economicamente colonial ou dependente, também será
dependente e colonial do ponto de vista da cultura”.44 As manifestações culturais que
ocorriam em Salvador tanto contribuíam como refletiram esse Brasil dos anos 1950 e 1960.
Sob a gestão municipal de Heitor Dias (1959 – 1963), a capital vivia sua atmosfera intelectual
sintonizando-se ao novo ritmo na vida dos artistas, e a necessidade de modernização da arte
estava na ordem do dia. Em 1960, a cidade foi contemplada com o Museu de Arte Moderna,
construído sob a justificativa de promover uma revolução artística, o que já acontecia em
metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro.45
Importante pensar, de acordo com Renato Ortiz, que tal “revolução artística”, a nível
nacional, pode ser vista sob a ótica de “manifestações da burguesia na esfera cultural”.46
Segundo o autor, a inserção dos símbolos de modernização na sociedade brasileira, bem como
na baiana, dependia de uma expansão de massa e público consumidor. Como ambos ainda
eram incipientes, a necessidade da modernização emerge com um processo de
“interpenetração entre a esfera de produção restrita e ampliada”, o que configuram,
respectivamente, as esferas da “cultura erudita”, e da “cultura popular”. Isso sugere que a
relação entre ambas, não necessariamente, se constitui nesse processo como opostas. Como
fruto dessa complexidade, Renato Ortiz propõe pensar sobre o “signo de modernização”
nacional à luz do que viria a ser uma “mercantilização” ainda embrionária, e que buscava,

43
BOURDIEU, op. cit., p. 183.
44
CORBISIER apud CARVALHO. In.:CARVALHO, op. cit., p. 43.
45
CARVALHO, op. cit.
46
ORTIZ, op. cit., p. 66.
30

desde a década de 1940, penetração numa sociedade cuja formação capitalista engendrou-se
de forma tardia.
Nas fronteiras fluidas entre o erudito e o popular surgem movimentos alternativos à
formação de “massificação de opiniões” e de uma “indústria cultural”.47 Na década de 1960, a
contracultura, por exemplo, já delineava suas bases por meio dos movimentos de vanguarda,
que apesar de só se reivindicarem oficialmente como tal a partir de 1968, por causa da
influência dos movimentos estudantis na França, a Bahia saia à frente nesse processo,
influenciando o cinema, a música, o teatro, as artes em geral.48 A atmosfera tropicalista
pairava sobre o estado, tendo a Bossa Nova como sua inspiração e impulso para um
movimento originalmente baiano. Surge, assim, como necessidade de resgatar as raízes da
cultura brasileira ligando-as ao mundo, e de redescobrir o Brasil pelos próprios brasileiros.49
Nesse ínterim, a arte baiana passara a ser percebida dentro de sua autenticidade, consciente de
uma perspectiva que reivindicasse a essência da miscigenação brasileira.50 O Cinema Novo de
Glauber Rocha conferiu visibilidade de vanguarda à Bahia, e suas inovações atravessaram o
período do “Ciclo do Cinema Baiano” (1958 - 1962),51 ou seja, produção cinematográfica de
baixo custo que se contrapunha às superproduções hollywoodianas. Buscava-se, assim,
denunciar as contradições sócio-políticas brasileiras e incorporar o cotidiano das classes
menos favorecidas nos temas abordados. Inaugurava-se, com isso, o “cinema de autor” e com
identidade artística, em contraponto a uma cinematografia que, desde 1940, se afirmava tão
somente na exibição de uma “conquista tecnológica”, e expressão de sociedade
modernizada.52
A Escola de Teatro da UFBA esteve inserida nesse trânsito cultural, geográfica e
simbolicamente. Conforme destacou Luiz Carlos Maciel, ao recordar suas experiências:

Em nossas conversas, ele [Glauber Rocha] começou a me falar que a Bahia


seria o berço da nova cultura brasileira. Algo definitivo estava para
acontecer e aconteceria na Bahia. Não no Rio, muito menos em São Paulo: a
transformação sairia dali. [...] Gostava dessa palavra: novo, e a aplicava
como sendo demarcatória de um novo tempo para as artes brasileiras. O
novo teatro sairia da Escola de Teatro, que funcionava, por desígnio do
destino, em Salvador [...] A previsão de uma efervescência artística

47
Os termos entre aspas tambem são discutidos por Maria do Socorro S. de Carvalho em: CARVALHO, op. cit.,
p.50.
48
LEÃO, op. cit.
49
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
50
CARVALHO, op. cit.
51
Idem, ibidem, p. 25.
52
ORTIZ, op. cit., p. 70.
31

proveniente da Bahia ocorreu muito antes desta acontecer realmente com o


movimento da tropicália.53

Inaugurada em 1956, a implantação do campus da Universidade Federal da Bahia, no


Vale do Canela, articulou o deslocamento do antigo centro de Salvador em direção ao Campo
Grande. Segundo Maria do Socorro S. de Carvalho, os jornais do período noticiaram sobre o
então reitor Edgar Santos (1946 - 1961) como um incentivador da Universidade da Bahia, por
mobilizar o espírito universitário na cidade. Sua reitoria fez parte da atmosfera de renovação
geral da vida cultural baiana, tendo a UFBA como peça fundamental desse movimento.54
A “descoberta” do teatro experimental no cenário soteropolitano proporcionou
condições mais profissionais, menos amadoras. Não somente a inovação do
experimentalismo, mas a própria montagem de O Boi e o burro a Caminho de Belém
repercutiu na imprensa baiana que reconhecia a qualidade dos espetáculos desenvolvidos pela
Faculdade de Teatro, e contrapunha-se ao amadorismo característico das artes cênicas em
Salvador desde então.55 Sob direção de Martin Gonçalves (1956 - 1961), a Escola de Teatro
recebeu profissionais cênicos de várias partes do país, inclusive de outros países, dentre eles,
o “encenador”, profissão praticamente desconhecida pelo teatro brasileiro.56 As mudanças
ocorridas no bojo do teatro a partir da vinda de encenadores para o Brasil estão relacionadas
ao fato de o país entrar em contato direto com uma carga cultural produto do “espírito novo”
que o teatro internacional pós-guerra vivia. Segundo Mário de Moura, esse processo
reverberou no Brasil como um ressurgimento após uma fase em que a arte cênica havia
mergulhado na inércia.57 Uma das causas dessa inércia pode ser apontada como o advento e
difusão do cinema, principalmente nos países cuja tradição teatral não era consolidada,
havendo esvaziamento de público e arrefecimento de companhias e grupos.58 Esse
ressurgimento vivenciado pela ETUFBA possibilitou à nova formação de atores a relação
com o que estava sendo produzido no exterior.59

53
MACIEL, op. cit., p. 55.
54
CARVALHO, op. cit.
55
FRANCO, op. cit., p. 117.
56
O encenador tem função semelhante ao do diretor, no entanto, numa mesma produção teatral pode existir as
duas funções, uma vez que o diretor conduz todo o grupo, o encenador geralmente, sem necessariamente ter
vínculo com o grupo, é contratado para conduzir a peça. Ver: PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro
moderno: 1930 – 1980. São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
57
MOURA, Mário. In.: BOLELAVSKY, Richard. A Formação do Ator. Lisboa, Rio de Janeiro: 1956, p.10.
58
Idem, ibidem, p. 9.
59
CARVALHO, op. cit.
32

Consta num documento pessoal de Antonio Mário, que ele recebeu um curso de
Playwriters ministrado pelo teatrólogo americano Stanley Richard.60 Sua formação, portanto,
estava alinhada ao contexto nacional de revolução teatral, tornando-se a Bahia, nesse caso,
uma referência no processo, desconstruindo, assim, a idéia de que tal revolução tomou como
ponto de partida o eixo Rio-São Paulo, somente.61 Conta Lívia Santarém que, em suas
conversas com o pai, ele mencionava, frequentemente, sobre as aulas que tinha com o diretor
austro-húngaro Zbigniew Ziembiński, expoente da direção teatral moderna no Brasil.62 Vindo
ao país, fugido do nazismo na década de 1940, Ziembiński foi “trazido” por Brutus Pedreira
(1898 - 1964), crítico, tradutor e diretor teatral, para dirigir peças teatrais em seu grupo Os
Comediantes.63 No contexto nacional, esses dramaturgos importantes e profissionais
estrangeiros vinham somando-se à cena desde a década de 1940. Para Décio de Almeida
Prado, esse foi um motivo para considerar a década o ensaio do que viria a se tornar o teatro
em 1970, o desenlace do teatro moderno brasileiro.64
O ano de instalação da Escola de Teatro da UFBA (1956) também foi marcado pela
morte do “pai do teatro negro”, De Chocolate, ou João Candido Ferreira. 65 Nascido em
Salvador, foi o criador da Companhia Negra de Revistas no Rio de Janeiro, em 1926, a
primeira que envolvia a temática negra em seus roteiros.66 Trata-se, portanto, de uma
revolução no fazer teatral cujos indícios vinham se desenhando no Brasil desde os anos 1920.
A cultura de massas – lugar em que as influências se misturam, sejam advindas das
classes populares ou das classes dominantes – encontrou no teatro de revista um meio para se
expandir, evidenciando a pessoa negra na composição dessa “mistura”.67 Como já introduzido
anteriormente no diálogo sobre “interpenetração de cultura restrita e ampliada”, o conceito de

60
Não foram encontradas mais referências sobre Stanley Richard. Documento de solicitação para realização de
prova de concurso público, expedido pela Universidade Federa da Bahia – UFBA/Departamento de Teatro da
Escola de Música e Artes Cênicas da UFBA; em 23 de julho de 1969. Pasta “Antônio Mário” -
CENDOMA/FIGAM.
61
LEÃO, op. cit.
62
Depoimento cedido por Lívia Santarém à autora, em 17 de abril de 2020. Aliás, não somente Lívia, mas um
dos ex-atores do grupo de Teatro dirigido por Antonio Mário, Roque Lazaro, rememorou sobre a presença de
Ziembinski, constantemente, nas falas do diretor.
63
FRANCIS, Paulo. O afeto que se encerra: Memórias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
64
PRADO, op. cit.
65
De Chocolate assim foi chamado pela imprensa carioca, de acordo com Marcio Meirelles. Ver: MEIRELLES,
Marcio. Linha do Tempo do Teatro Negro na Bahia. 2010. Disponível em:
<https://www.academia.edu/6588338/LINHA_DO_TEMPO_DO_TEATRO_NEGRO_NA_BAHIA_tentativa_d
e_resgatar_a_hist%C3%B3ria_do_negro_no_teatro_baiano> Acesso em 3 e novembro de 2020, às 15horas.
66
Idem, ibidem.
67
O teatro de revista, segundo Decio de Almeida Prado, foi um gênero de comédia importado de Portugal e que
se disseminou no Brasil principalmente no início do século XX, conformando parte importante das atividades
teatrais do país, no período. Sobre a discussão em torno da cultura de massas, ver: GOMES, Tiago de Melo. Um
Espelho no Palco: Identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos 1920. Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 2004.
33

“cultura de massas” é passível de problematização, principalmente no tocante às


especificidades brasileiras. É importante questionar os sentidos que o conceito produz, diante
da vasta possibilidade de desdobramentos geradores. O que importa aqui é compreender a
“cultura de massas” – ainda que se trate de uma “massa” incipiente – na condição de campo
de “articulação de identidades e diferenças”. Ao fim e ao cabo, isso leva a refletir que os
signos relacionados à identidade nacional no período estavam atrelados às questões raciais
abordadas pela Companhia Negra de Revistas, onde o negro se reivindicava como agente e
sujeito no teatro, fosse atuando, produzindo ou dirigindo.68
Nessa perspectiva de marcos temporais em que esse teatro engendra suas inovações,
percebe-se que o “teatro novo” incorporou o resultado de um conjunto de transformações
inerentes à busca pela identidade nacional.69 O movimento de reinvenção dessa arte produzida
no país na década de 1950, impulsionou a inovação de técnicas e uma “linguagem mais
adequada ao público moderno”.70 Paralelamente a essa necessidade, surgia o Teatro Brasileiro
de Comédia (TBC), criado em 1940 (São Paulo), companhia que promoveu as renovações
teatrais da década de 1950 e trouxe em suas montagens preocupações mais exigentes com a
qualidade técnica cênica. A companhia ganhou destaque por apresentar textos clássicos da
dramaturgia estrangeira, tais quais O Pedido de Casamento, de Anton Tchekhov (Rússia) e
Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams (Estados Unidos).71
No entanto, somente de 1956 em diante as publicações de peças e textos estrangeiros,
finalmente, ganharam maior proporção na imprensa, conforme ressalta Mário Moura:

Não é de se admirar, portanto que seja muito incompleta a bibliografia


brasileira de teatro, pois quando a indústria editorial brasileira começou (no
período posterior a 1928, face às dificuldades de importação de livros até
então impressos em Portugal e em França, por incrível que pareça) o teatro
não tinha pujança o suficiente para repercutir no movimento editorial.72

A “espetacularização” do teatro também tem tênue ligação com as inovações


proporcionadas pelo TBC. Não somente no produto da cena, mas em relação ao cabedal de

68
Segundo Ortiz, o público brasileiro na década de 1970 ainda não havia “se transformado em massa”. (Ver:
ORTIZ, op. cit., p 102). Para Gomes, “os trabalhos que enfocam o mundo da cultura de massas da segunda
metade do século XX” dão “grande relevância antes à capacidade de colocar signos em circulação que às
dimensões ou ao gerenciamento do veículo estudado”. Interessa pensar, portanto, que na perspectiva desses
trabalhos do século XX, trazida por Gomes, independentemente dos signos da Companhia do Teatro Negro de
revista serem gerenciados pela lógica capitalista, eles estavam sendo circulados e atingiam um público negro
como se intencionava. Ver: GOMES, Tiago, op. cit., p. 33.
69
MACIEL, op. cit.
70
MOURA, Mário. In.: BOLELAVSKY, op. cit., p. 9.
71
LEÃO, op. cit.
72
MOURA, Mário. In.: BOLELAVSKY, op. cit., p. 10.
34

profissionais envolvidos nos bastidores, como cenógrafos, técnicos e figurinistas, além dos
encenadores estrangeiros.73 Assim, se “consolidou a ‘profissionalização do teatro nacional’”
que “‘recuperou boa parte do atraso’ em que nosso teatro se encontrava em matéria de
tendências do espetáculo, em relação a países de maior tradição teatral”.74
Esse trânsito de ideias entre produções brasileiras e textos estrangeiros ou direção
estrangeira e textos brasileiros abriu terreno para relações antropofágicas no cenário moderno
do teatro nacional. Entretanto, as superproduções do TBC não condiziam com uma nova
perspectiva de crítica social que surgia entre alguns participantes desse teatro. Com a crise do
capitalismo engendrada pela Grande Depressão de 1929, a União Soviética apresentando suas
“possibilidades de eficiência” e os reflexos da Revolução de 1930 no Brasil, era necessário
um teatro que correspondesse às “novas exigências artísticas” relacionadas ao engajamento
político.75 Desde lá, a arte cênica tentou escapar dos “limites estreitos das comédias de
costumes” que marcaram e sustentaram o teatro brasileiro da primeira metade do século XX,
mas não obteve tanto sucesso.76 Entretanto, só décadas mais tarde, um teatro para além da
costumeira comédia, começou a se estabelecer.
Com as dissidências do TBC, em 1952, formam-se o teatro Arena (São Paulo) e o
Teatro Oficina (Rio de Janeiro), exemplos do processo de popularização do teatro no período.
Não obstante incentivar jovens estudantes a (re)descobrirem a linguagem artística como
veículo de suas perspectivas libertárias, surgem os teatros nas escolas e universidades,
acessíveis a setores populares e à classe operária. O TBC, portanto, apesar de não ter sido
responsável pelas inovações ideológicas, foi básico para possibilitar a construção e
desconstrução do teatro nacional.77
Não se pode esquecer que o fenômeno de popularização e experimentalismo do teatro
tem um marco importante na criação do Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944 (Rio
de Janeiro), pelo artista plástico, teatrólogo, político e poeta, Abdias Nascimento (1914 -
2011). A falta de representatividade do negro no teatro não foi sanada, tão somente, pela
Companhia Negra de Revista no Rio de Janeiro na década de 1920. Com o passar das
décadas, atores brancos, recorrentemente, interpretavam o cotidiano e as vidas de pessoas
negras, inclusive com o reforço de estereótipos depreciativos e racistas. Diante disso, Abdias
73
Os três primeiros contratados pelo TBC foram: Adolfo Celi (italiano), Ruggero Jacobbi (italiano) e o já citado
Zbigniew Ziembinski (polonês). Ver: SANTANA, Jussilene. Impressões modernas/a má consciência teatral:
compreensão e debate sobre teatro na cobertura dos jornais a tarde e diário de notícias entre 1956 e 1961.
Salvador: Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, 2006, p. 28.
74
MICHALSKI apud SANTANA (Idem, ibidem, p. 28).
75
PRADO, op. cit.
76
Idem, ibidem, p. 14
77
CARVALHO, op. cit.
35

Nascimento destacou que “uma coisa é aquilo que o branco exprime como sentimentos e
dramas do negro; outra coisa é o seu até então oculto coração, isto é, o negro desde dentro. A
experiência de ser negro num mundo branco é algo intransferível”.78
A estratégia do TEN foi transgredir essa lógica: usar o teatro como instrumento de
alfabetização de pessoas negras e, consequentemente, de formação de atrizes e atores negros,
conscientes de sua condição racial e das questões sociais que lhe afligem. A iniciativa de
Nascimento foi recomeçar do zero com um novo teatro que investisse na pessoa negra não só
artisticamente, como também, cultural e intelectualmente. Propunha-se a criar um espaço para
causar no público as reflexões usurpadas por um teatro tradicional que disseminava uma
figura caricata da negritude.79
Percebe-se que não há uma linha do tempo com marcos fixos para definir uma
evolução do “teatro novo” no país. A pauta racial precisa ser compreendida como um dos
elementos a serem levados em conta na conformação desse teatro, pois, o racismo, “em
nenhum outro aspecto da vida brasileira revela tão ostensivamente sua impostura como no
teatro, na televisão e no sistema educativo, verdadeiros bastiões da discriminação racial à
moda brasileira”.80 Apesar das inovações de grupos grandes como o TBC, as transformações
sociais profundas viriam dos que estavam à margem da cena tradicional brasileira, como o
TEN, ou tantos outros com o mesmo objetivo de chamar atenção para o problema racial, cujas
histórias ainda não foram registradas. Dentre os que foram influenciados pelos objetivos do
TEN, o teatro Arena, fundado por Augusto Boal, sensível às questões raciais e dedicado à
causa operária, elaborou o método do Teatro do Oprimido, e propunha trazer ao palco esses
sujeitos marginalizados, seguindo o método de educar pelo teatro, política e artisticamente.81
Em 1957, o teatro Arena chegou a Salvador através de uma turnê e anunciava pelo
rádio as suas propostas, promovendo uma troca cultural entre os movimentos soteropolitanos
e o grupo.82 Um ano representativo se considerarmos, além da estreia de Antonio Mário no
teatro, a estreia de Glauber Rocha com as gravações de seu primeiro curta-metragem, “Pátio”,
tido como o marco inicial da Nouvelle Vague na Bahia.83 Ademais, os colegas de Antonio

78
O'NEILL apud NASCIMENTO, In.: NASCIMENTO, Abdias. Teatro experimental do negro: trajetória e
reflexões. Estudos Avançados. v.18 n.50 São Paulo Jan./abr. 2004. Disponível em
<https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100019> Acesso em 21 de
dezembro de 2020.
79
Idem, ibidem.
80
Idem, ibidem.
81
BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.
82
CARVALHO, op. cit., p. 55.
83
Atenta as discussões sobre origens da Nouvelle Vague, não pretendo empreender esse diálogo de forma
profunda, trago Glauber Rocha como o marco de acordo com afirmações de Carvalho e Maciel. Ver:
CARVALHO, op. cit.; MACIEL, op. cit.
36

Mário, da primeira turma da escola de teatro da UFBA, foram parte do desabrochar desse
movimento, diante das câmeras. Figuras como Othon Bastos, Sonia dos Humildes – essa, uma
das “principais atrizes do teatro nacional sem se afastar das ribaltas baianas” –,84 Geraldo Del
Rey e Mário Gusmão, protagonizaram filmes do próprio Glauber Rocha como Deus e o
Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967), O Dragão da Maldade contra o
Santo Guerreiro (1969) e A Idade da Terra (1980). Apesar de Antonio Mário não ter se
tornado ator de cinema, atuou no teatro com Sônia Robatto, Jurema Penna e Nilda Spencer.85
Vale ressaltar que, pela primeira vez o cinema brasileiro foi protagonizado por negras
e negros. Por outro lado, a presença desses personagens socialmente subalternizados nas telas
de cinema significava, para a opinião conservadora, a exposição das mazelas do Brasil, uma
afronta aos “bons costumes”.86 Diante dessa questão, ainda que pessoas negras continuassem
tendo sua existência preterida no cinema e nas artes cênicas, formar os primeiros atores
negros, na Bahia, que foram lançados ao cinema e à televisão, é um fato demarcatório para a
ETUFBA e para a memória do teatro negro em Salvador. Dentre esses atores, Antonieta
Bispo, Mário Gusmão e o próprio Antonio Mário dos Santos.87 Mário Gusmão, além de, mais
tarde, fazer carreira em telenovelas, foi o primeiro ator negro a receber um papel de destaque
no teatro baiano, ao representar o personagem “Manuel” – o próprio Jesus Cristo, em O Auto
da Compadecida, de Ariano Suassuna.88 A peça foi dirigida por Martim Gonçalves, em 1959,
ano de formação da primeira turma da Escola de Teatro da UFBA.89
Da parte de Antonio Mário, não há como afirmar se, de fato, o curso foi concluído
e/ou se ele participou da formatura. Nos registros que dizem respeito ao dia da cerimônia de
conclusão, ele não surgiu. Também não foram encontradas pistas de participações suas em
outros espetáculos produzidos pela ETUFBA. Provavelmente, essa ausência se justifique por
questões que viriam a tornar a sua vida pessoal conturbada, nesse ano de 1959.
Em 1958, aproximadamente, a amizade com Nélia havia se fortalecido. Apesar de
morarem no mesmo bairro e suas famílias serem próximas, foram oficialmente apresentados

84
LEÃO, op. cit., p. 197.
85
Nilda Spencer substituiu Martin Gonçalves na Escola de Teatro mais tarde, em 1962. Alguns desses atores da
turma não necessariamente faziam parte da ETUFBA; Otton Bastos, por exemplo, foi convidado a participar do
espetáculo em que Antonio Mário contracenou. Outros não chegaram a se formar, pois, deixaram a universidade
para compor uma turma de dissidentes da ETUFBA.Ver: SANTANA, op. cit.
86
Segundo Maria do Socorro S. de Carvalho, devido à presença significativa de pessoas negras nos roteiros, o
então presidente Café Filho (1954 - 1955) proibiu filmes do cinema novo que levassem, segundo ele, a
associação com conteúdo subversivo e comunista. Ver: CARVALHO, op. cit.
87
Jussilene de Santana traz, em sua tese de doutorado, um índice de fotografias, numa delas, indicava os alunos
da primeira turma a se formarem. Dentre eles, os que consegui identificar como negros foram Mário Gusmão e
Antonieta Bispo. Ver: SANTANA, op. cit., p. 18.
88
Idem, ibidem, p. 17.
89
MEIRELLES, op. cit.
37

pela irmã de Antonio Mário. A partir daí, Nélia passou a lhe indicar alunos para ele ministrar
aulas particulares em troca de algum dinheiro extra, até servir de intermediária para seu
ingresso no Instituto Baiano de Ensino como professor (escola em que ela trabalhava como
secretária).90 Com a aproximação, a amizade evoluiu para um namoro.91 Assumiram um
relacionamento amoroso, que, de acordo com a reconstituição memorialística de sua filha,
dessa vez, foi bem aceito pela família. No curso dos acontecimentos, Narciso Simplício havia
adoecido e estava acamado sob os cuidados de uma técnica de enfermagem, em sua casa.
Destaca-se aqui, a partir de Angela Chaves, que “a memória é seletiva e lacunar por
excelência, mas constrói um painel, impreciso talvez, porém revelador do real”.92 A sequência
de fatos relatados por Lívia Santarém pode não ser, exatamente, uma cadeia de relações de
causa e efeito, no entanto, o “real” é a reorganização dessa sequência que dá sentido à sua
narrativa.93 A memória apresenta-se como o fio condutor do “painel revelador”, trazendo o
desfecho que irá traçar novos caminhos na trajetória de Antonio Mário. Assim, segundo ela,
apesar do namoro ir bem e Simplício apostar nesse noivado, Antonio Mário fez a seguinte
revelação à sua noiva, Nélia:

Quando ela pensa que tá tudo bem... ‘poxa, to namorando um viúvo, a


família dele me aceita, os três filhos dele já me conhecem...’ quando ela
pensa que vai casar com ele, ela recebe uma bomba [...] Ele leva ela numa
sorveteria muito conhecida em Salvador, na Cubana, e diz assim: ‘hoje eu
briguei com Isaura’ Ela pergunta o porquê, e ele diz: ‘porque eu disse que
não ia casar com você. Porque eu vou casar com E.’ – E. é a técnica de
enfermagem que minha tia botou dentro de casa pra cuidar de meu avô – ‘E
por que você vai casar com E.?’ Ele diz: ‘porque ela tá grávida de mim’.
[...]94

Diante da situação, ele rompe com Nélia para casar-se com a técnica de enfermagem.
Nesse ínterim, Antonio Mário foi transferido novamente pelo IBGE, dessa vez, para Miguel
Calmon, uma cidade do interior da Bahia localizada a 360 km da capital. Ele e a segunda
esposa tiveram quatro filhos. Quando ela estava prestes a parir, ia para Salvador e depois do
nascimento do filho, voltava para Miguel Calmon.95 Provavelmente, nessas idas e vindas,
Antonio Mário tenha tentado acompanhar alguma aula da UFBA. Mas, decerto que a
mudança interferiu em sua relação com a universidade e prejudicou sua capacidade de
90
Depoimento de Lívia Santarém cedido à autora em 24 de setembro de 2020.
91
Entrevista cedida por Livia Santarém e Nélia Santarém à autora em 10 de setembro de 2017.
92
CHAVES, Angela. In.: LEÃO, op. cit., p. 9.
93
BOURDIEU, op. cit.
94
Entrevista cedida por Livia Santarém à autora em 10 de setembro de 2017.
95
Depoimento de Lívia Santarém cedido à autora em 24 de setembro de 2020.
38

conciliar o trabalho num órgão federal, com o desejo de concluir o curso. Por fim, a última
transferência do IBGE levou o ator para a cidade onde essa história se desenvolve. Dentre as
opções de lugares que lhe foram expostas, ele optou por Alagoinhas, e se mudou com a
segunda esposa para a cidade em 27 de julho de 1961.96
A construção dessa memória, tanto de Lívia quanto de Nélia, podem se mostrar a nível
consciente ou inconsciente, o que, segundo Michel Pollak, ocorre por meio de um verdadeiro
processo de reorganização. Assim, a memória da filha sobre a vida de Antonio Mário,
enquanto herdada de sua mãe, de outros familiares, ou inclusive do próprio pai, pode estar
relacionada a diversos sentimentos de identidade, “e constituem um ponto importante na
disputa pelos valores familiares, um ponto focal na vida das pessoas”.97
A relevância da “verdade” da narrativa de Lívia consiste em compreender o lugar que
o teatro tomou na vida de Antonio Mário, e sob quais condições em sua trajetória se deu esse
ingresso nas artes cênicas. Importante perceber também traços da personalidade do
personagem, uma vez que os dois casamentos seguidos foram marcados pela insatisfação do
pai, momento também atravessado pela realização de seu desejo de fazer teatro. O que pode
levar a pensar que existia predisposição a questionar o que era imposto.
O relato nos mostra também que o pensamento de Antonio Mário, mesmo diante da
situação apresentada em sua vida, em alguma medida, reflete essa geração de jovens artistas
na qual o indivíduo reivindica sua subjetividade. Ou seja, a juventude engajada e participativa
do decênio 1950 - 1960 passou a rejeitar os valores tradicionais, criando assim, seus próprios
valores. Como sublinha Edward Carr, a transformação social significava a transformação do
indivíduo, e a transformação do indivíduo se refletia, igualmente, no social.98 Mesmo porque,
com base em Carr, as ações do indivíduo, não produziram somente reflexo de suas ações
conscientes. Reverberaram de forma dialética, também, em outros setores da sociedade.
Ademais, sob tal atmosfera, o ator mudou-se de Salvador, uma cidade nuclear na
busca da identidade artística nacional do período. Ambiência soteropolitana movimentada por
cerca de 30 grupos cênicos, e que superava o amadorismo para criar uma nova “classe” de
atores por formação.99 Por fim, deixava a cidade que vivia o “transe” de um período marcado
por transformações aceleradas, em particular, nas artes em que os atores reclamam e assumem
seu protagonismo no fazer teatral. A universidade proporcionou a Antonio Mário sua

96
Entrevista cedida por Livia Santarém à autora em 10 de setembro de 2017. / Declaração cedida pelo IBGE no
dia 1 de outubro de 2020. Acervo pessoal da autora.
97
POLLAK, op. cit., p. 205.
98
CARR, Edward Hallet. O que é história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
99
FRANCO, op. cit., p. 105.
39

formação não somente enquanto ator, mas como multiplicador da arte. E poucos anos mais
tarde, os ventos anunciariam a chegada dessas inovações em Alagoinhas, tornando-se ele, um
mediador do processo.

2. Alagoinhas: um diálogo com Antonio Mário sobre a “mise-en-scéne” na década de


1960
Dentre todas as cidades para as quais o IBGE transferiu Antonio Mário, Alagoinhas
foi a que melhor lhe conveio, por ser próxima da capital, permitindo-lhe estar em contato com
a família e os filhos do primeiro casamento. Foi a cidade em que se estabeleceu e permaneceu
por tempo maior que as outras. Isso lhe possibilitou, por conta do trabalho com
recenseamento, desenvolver sua pesquisa sobre a história do município.
O trabalho com 51 páginas consiste num compilado de textos resultado de uma
pesquisa sobre a cidade em seus aspectos culturais, geográficos, sociais, econômicos. 100 São
datados entre 1986 e 1989, além de outro que data de 1991, ou seja, sem necessariamente
apresentarem ordem cronológica. Alguns textos foram publicados na Revista Tempo, sendo
que a única informação sobre ela refere-se a um enunciado em que Antonio Mário escreveu, a
próprio punho, em um de seus textos: “publicado na revista Tempo, nº 2 de maio de 1984”.
Na maioria dos outros textos que foram datilografados, os cabeçalhos indicavam o nome da
mesma revista. Além disso, há um documento, anexo a esse trabalho, em que o autor
parabeniza a publicação do “periódico Informativo do Serco” e agradece o fato de suas
pesquisas culminarem em material publicado na “cadeia publicitária do IBGE”. Ao que
parece, a revista poderia estar ligada ao informativo e circulado pela própria instituição. O
objetivo deste, segundo as palavras do próprio autor, era que seus escritos para a revista
ganhassem o público e ocupassem

o lugar que lhe é devido no processo basilar ibegeano de disseminação e


documentação do ilimitado acervo de informações de que tanto carece o
povo. Oxalá que em breve possa cair nas mãos sequiosas do ‘povão’, além
de indiretamente, pela maneira como vem expondo as matérias que enfoca,
se tornando um elemento de tão propalada transparência governamental. 101

100
A fonte se encontra no acervo pessoal de Lívia Santarém.
101
De acordo com o documento, Antonio Mário acabara de ser inserido na “cadeia publicitária do IBGE” através
do informativo. Documento encaminhado por Antonio Mário dos Santos para os editores do Informativo Serco
(IBGE - BA) – Salvador. 16 de janeiro de 1989. Arquivo Pessoal de Lívia Santarém.
40

De acordo com as condições da fonte, esse compilado provavelmente não chegou a ser
organizado para tornar-se livro. Percebe-se que seu tempo de escrita compreende a década de
1980, mas ele traz aspectos históricos da cidade, desde o momento de sua fundação até onde o
tempo de escrita coincide com o tempo de narrativa. Assim, nesse tópico, o personagem será
também um narrador sobre essa mise-en-scène na cidade,102 sobre a forma como seu
“cenário” estava disposto no período em que ele chegou. Acerca desse cenário, portanto,
Antonio Mário imprimiu seu olhar em perspectiva historiográfica, e será possível conhecê-lo
na condição de personagem que “observa” os fatos, e os registra/participa através da escrita.
O ano em que ele chegou a Alagoinhas decorreu de aspectos que marcaram uma fase
anterior na cidade. Assim, refletir sobre a década de 1960 é o meio aqui utilizado para
compreender como se delinearam os contornos dos anos e das décadas seguintes. Trata-se de
um momento de modernização urbana, desenvolvimento comercial e, principalmente,
acelerado crescimento demográfico. Em 1961, Antonio Mário somou-se a uma população de
74.455 habitantes (contando com a sede e aproximadamente 37 mil nos distritos).103 A cidade
atravessava um aumento populacional de 97%.104 Como funcionário do Instituto, foi
designado para o cargo de agente estatístico e fez parte dessa pesquisa dos dados, no
recenseamento da década de 1960.105 O Alagoinhas Jornal reforçava a campanha sobre o
censo, para conscientizar a população a contribuir com essa “operação de caráter
democrático”,106 trazendo vários anúncios distribuídos pelas páginas como: “ajude a fazer o
censo de 60”, “o censo mostrará Alagoinhas ao Brasil”.107 “Mostrar Alagoinhas ao Brasil”
tinha relação com inserir a cidade nas pesquisas sobre rede urbana, que reconheciam o
processo de urbanização e industrialização das cidades:

As pesquisas sobre rede urbana salientaram-se no Instituto a partir dos anos


de 1960. Desde então, avolumou-se a consciência de uma relação
importantíssima da geografia com o processo de
industrialização/urbanização, o que certamente aproximou o IBGE dos
principais núcleos de decisão em âmbito federal (intermediado quase sempre

102
Segundo o dicionário Oxford, mise-en-scène diz respeito à disposição de cenários no palco, em uma produção
teatral.
103
Alagoinhas jornal. Ano II, nº 44. 7 out. 1960, p. 1. Sobre a informação do quantitativo na sede e nos distritos,
ver: BARROS, Salomão, op. cit., p. 107.
104
MORAIS, Moisés Leal. Urbanização, trabalhadores e seus interlocutores no Legislativo Municipal, p. 35.
105
Depoimento cedido por Lívia Santarém à autora, em 24 de outubro de 2020.
106
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 37. 20 mai. 1960, p. 6.
107
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 35. 3 abr. 1960, pp. 2 e 4.
41

pelo IPEA): após 1964, a questão urbano-industrial (associada ao uso


sistemático de estatísticas) conheceu amplo destaque no Instituto.108

É possível reconhecer que o interesse do jornal, certamente, estava comprometido com


o propósito de demonstrar a importância do município para o país e atrair recursos do governo
estadual e/ou federal. Em 26 de agosto de 1961, por exemplo, o jornal noticiava,
orgulhosamente, sobre o decreto assinado pelo presidente Janio Quadros, nos termos do qual
Alagoinhas era beneficiada com verba destinada ao seu abastecimento de água.109 O problema
relacionado à água fora denunciado anteriormente, tendo em vista um telegrama enviado pelo
Alagoinhas Jornal, ao gabinete do Presidente Juscelino Kubitschek, em 1960, cobrando uma
solução. Nele, o subchefe da casa civil da presidência da república responsabilizava-se por
encaminhar o assunto para o “órgão competente para ser objeto de devido exame”. O jornal
vangloriou-se de ser um “representante da voz popular” e ter sido ouvido, trazendo a notícia
em sua manchete da edição de abril de 1960.110
Não obstante querer demarcar sua importância no cenário nacional, na Bahia,
Alagoinhas constituía-se como uma das principais cidades do agreste diante dos seguintes
aspectos: desde 1950, apresentava taxa de urbanização de 40,9%. O município expandiu suas
influências para territórios circunvizinhos à medida que desempenhou papel central em
relação às demais regiões, por concentrar maior número de estabelecimentos de comércio, o
que a caracterizava como cidade “media”.111 Isso fez com que ela competisse com outros
centros comerciais como Salvador, Aracaju e Feira de Santana. Outros aspectos contribuíram
para o caráter de entreposto comercial, como o fato de a cidade liderar o numero de agências
bancárias em relação à região e o comércio de atacado que se revelou como destaque no seu
desenvolvimento econômico. Em 1960, o número da População Economicamente Ativa
(PEA) na cidade era de 25.602, o maior dentre outras cidades como Irará, com 20.211 e
Serrinha, com 18.631.112 As principais atividades econômicas tornaram-se, junto ao comércio,
a indústria cerâmica e a extração de petróleo pela Petrobrás. Segundo Moises Leal, “A
presença da Petrobrás em Alagoinhas, a partir de 1959, é tomada como um importante fator

108
BOMFIM, Paulo Roberto de Albuquerque « Teoria e prática do planejamento regional no IBGE na década de
1960 » Terra Brasilis (Nova Série) Disponível em: <http://journals.openedition.org/terrabrasilis/1003 ; DOI :
https://doi.org/10.4000/terrabrasilis.1003> Acesso em 22 dezembro 2020.
109
Alagoinhas Jornal. Ano III, nº 52. 26 ago. 1961, p.1.
110
Alagoinhas Jornal, Ano II, nº 35. 3 abr. 1960, p.3.
111
MORAIS, op. cit.
112
Idem, ibidem.
42

de atração de fluxos migratórios e dinamização da economia local ao distribuir salários e


contribuir para a elevação do orçamento municipal através dos royalties”.113
O petróleo tornara-se um motivo de orgulho para seus conterrâneos, segundo o
Alagoinhas Jornal, a cidade “liderava o grupo de municípios que possue[sic] as maiores
reservas de óleo bruto recuperável existente no subsolo baiano”; uma vez que a Bahia era “o
principal estado possuidor de petróleo” à época, segundo o articulista.114
Entre 1940 e 1960 a produção de laranja consistiu numa das principais atividades
econômicas do município.115 Inclusive, as laranjas-umbigo chegaram a ser exportadas para a
Inglaterra o que contribuiu para conferir à cidade o titulo de maior produtora da Bahia.116
“Segundo Santos (1987),117 a laranja foi o elemento que instituiu a alcunha da cidade de
‘Terra das Laranjas’”,118 e ainda, Pórtico de Ouro, epíteto eternizado por memorialistas como
Joanita da Cunha. Conforme Carlos Nássaro, utilizando uma metáfora que se refere à cor das
laranjas locais: “[...] Joanita afirma com todas as letras que o ‘ouro’ produzido por Alagoinhas
era representado pelos laranjais e fez questão de ressaltar mais de uma vez que ‘os frutos
tinham uma coloração dourada’”. Na representação da autora, a laranja, entre 1940 e 1960,
caracterizou o período próspero da cidade, sua “idade do ouro”.119
Entretanto, a partir de 1960 à medida que a presença da Petrobrás representava o
avanço industrial na cidade, atividades que sustentavam, até então, sua economia,
atravessaram um período de “retração”. A cultura de laranja foi uma delas. Inclusive, como
reflexo do processo de urbanização, segundo Moises Leal, “Os pomares que havia em
chácaras situadas nas imediações da cidade passaram a dar lugar à ocupação residencial
naquele contexto de expansão urbana”.120
Apesar do período de recessão nas atividades de citricultura, os epítetos atribuídos à
cidade relacionados à laranja em seu período ápice, permaneceram, de modo que junto aos
outros aspectos que representaram o desenvolvimento econômico da cidade, foram essenciais
113
Idem, ibidem, p. 36.
114
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 38. 8 de jun. de 1960, p.1
115
MORAIS, op. cit., p.35.
116
SANTOS, Leila Carla Rodrigues dos. A Igreja Inacabada e a Estação Ferroviária: Memórias e
Monumentos em Alagoinhas-Bahia. Dissertação (Mestrado - Programa de Pós-Graduação em Cultura, Memória
e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus V). Santo Antônio de Jesus
– BA, 2010.
117
“A laranja representou 48,58% da produção agrícola da cidade, gerando recursos em torno de Cr$
12.000.000”. Ver: PAIXÃO, Carlos Nássaro Araújo. Traços da cidade de Alagoinhas: memória, política e
impasses da modernização (1930-1949). Dissertação (Mestrado - Programa de Pós-Graduação em Cultura,
Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus V), Santo
Antônio de Jesus – BA, 2009, p .51.
118
SANTOS, Leila Carla Rodrigues dos, op. cit.
119
PAIXÃO, op. cit.
120
MORAIS, op. cit. p. 26.
43

para definir sua identidade, nos anos vindouros. Por conta disso, a nova bandeira do
município, que permanece até os dias atuais (2021), foi elaborada em 1973, levando em conta
representações desses principais elementos: o petróleo, o cultivo e comércio da laranja, e as
engrenagens que representam o crescimento de empregos e indústrias. Em um texto de
Antonio Mário foi possível entender tal questão, onde ele avaliou o brasão da nova bandeira:

O segundo brasão, criado não sei por que [sic] se a municipalidade já


possuía um, é o instituído também oficialmente, pela Lei nº 524, de 15 de
outubro de 1973, sancionada pelo prefeito Judélio de Souza Carmo, quando
da sua primeira gestão, lei que entre outras providência[sic] cria o novo
brazão d’armas para Alagoinhas.121

Entretanto, segundo o autor, a cidade nem sempre foi representada em sua bandeira
pelo potencial econômico: “por razões inexplicadas, é o município de Alagoinhas ‘sui
generis’ em questão heráldica, pois sendo mais realistas que o rei, dá-se ao luxo de ostentar
três brazões”. Além do segundo, a urbe possuía mais dois: o primeiro, de 1916, mais simples,
porém teve como tema central a emancipação de Alagoinhas do município de Inhambupe.
Além disso, trazia uma frase que o sujeito observou ser tão atual e necessária ainda em seu
tempo:

“Moderaté Imonite, Honestíssimé Impendite Populus Felix Erit” de autoria,


segundo o escritor Salomão Barros, do vigário Afonso Maria Godinho, se
traduz: “governai com moderação, gastai com a maior honestidade e o povo
será feliz”. Sem dúvidas que esta seria uma oportuna mensagem a ser
enviada a alguns de nossos governantes de hoje!122

O terceiro – e não oficial – brasão foi associado às questões católicas. Segundo


Antonio Mário, foi elaborado em 1975 no bispado de D. José Felisberto Cornellis, para a
Diocese de Alagoinhas.123
A condição de “cidade média” também estava ligada à qualidade de vida. Para um
espaço urbano que se expandia com tal velocidade, necessidades básicas precisavam ser
supridas, como educação, saneamento básico, serviços de iluminação. Assim, na década em
questão, Alagoinhas dispunha da maior quantidade de domicílios ligados a rede geral de

121
Texto “Os três brazões d’armas de Algoinhas”, escrito por Antonio Mário. S/d. Acervo de Lívia Santarém.
122
Ibidem.
123
Ibidem.
44

esgoto (50), iluminação elétrica (3597) e rede de água (101) em relação aos outros
municípios.124
Apesar disso, tais serviços ainda não se apresentavam em larga escala nem
contemplavam a maioria dos bairros. Nas áreas onde os benefícios já existiam, ainda havia
irregularidades e falta no fornecimento. Recorrentemente, o jornal reivindicava melhoria na
distribuição e denunciava irregularidades. Ao criticar a prefeitura, afirmou que esta,
“comprimindo despesas está desligando as luzes da cidade às 4 da manhã [...]”. Ironicamente,
concluiu que “a energia só aparece na hora da matiné do Cine Azi”, até porque, o Cine Azi
pertencia ao prefeito da época, José Azi, aspecto que será discutido adiante.125
Como outro fator de desenvolvimento, vale ressaltar, aqui, a realidade de Alagoinhas
na década de 1960 em relação aos seus aspectos educacionais. Desde 1950 a cidade se
encontrava à frente dos municípios vizinhos nesse quesito: com 75 escolas primárias (66 delas
eram públicas) e 2 escolas de ensino ginasial.126 Entretanto, nem toda a população tinha
acesso equitativo, em especial ao ginásio que, no período, não era gratuito. A partir da década
de 1960, o quantitativo de escolas públicas aumentou, principalmente depois da instalação da
regional da Campanha Nacional do Ensino Gratuito, em 1º de maio de 1960, instituição que
fora reconhecida como de utilidade pública desde 1954 e funcionava através de conselhos
locais e estaduais. A campanha incentivou, no mesmo ano, a fundação de mais um ginásio na
cidade, e o primeiro público, o Educandário Alcindo de Camargo. Suas atividades se
iniciariam no ano seguinte, juntamente com os cursos Científico e Pedagógico. 127 O
Alagoinhas Jornal trouxe as “boas novas” do estímulo que, doravante, os filhos das famílias
menos abastadas usufruiriam:

O Ginásio cuja estrutura econômica terá por base o apoio de contribuições


mensais da população numa prova de solidariedade humana em favor dos
pais mais humildes que terão o prazer de verem seus filhos conquistarem as
luzes do saber ombro a ombro com os abastados sem o constrangimento da
dívida de um favor que no caso não existirá porquanto a Campanha Nacional
de Ensino Gratuito tem essa finalidade e, não poderia ser outra sua meta para
um pais carente de técnica como é o Brasil.128

No final da matéria, o jornal reivindicou do poder executivo responsabilidade em


manter o Colégio, através de auxílio financeiro. O Colégio Alcindo de Camargo assim fora

124
MORAIS, op. cit.
125
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 41. 29 ago. 1960, p. 4.
126
Dados encontrados em: MORAIS, op. cit., p. 29.
127
MORAIS, op. cit., p. 30 e BARROS, Salomão, op. cit., p. 154.
128
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 36. 23 abr. 1960, p.1.
45

denominado para homenagear o educador homônimo, o primeiro a fundar uma instituição de


ensino Pedagógico na cidade. Foi, portanto, uma alternativa e “esperança que surge para a
nossa mocidade tão carente de meios para a conclusão do curso do ensino médio”.129 Afinal,
investir na educação era um dos pontos cruciais para inserir a cidade no processo de
modernização dos anos de 1960.
O jornal anunciou, ainda no ano de 1960, sobre as subvenções federais que
contemplaram o setor educacional de Alagoinhas, tendo o Ginásio de Alagoinhas recebido 60
mil cruzeiros em auxílio governamental, e demais escolas, como a Fundação Lauro de Freitas
- Ginásio de Alagoinhas (C$ 180mil) e o Colégio Santíssimo Sacramento - CSSS (C$
345mil).130 Comentou sobre as “dotações federais para assistência aos menores” não
significarem caridade, mas uma obrigação do poder público, alertando ainda, para a
necessidade de ser fundado um ginásio estadual na cidade, e mais escolas públicas. Afinal,
ainda que houvesse tal participação do Ministério da Educação com subsídios financeiros para
a manutenção dos colégios, o que permitia a oferta de bolsas de estudo (como o CSSS
fornecia), os preços das mensalidades permaneciam inacessíveis para grande parte da
população, principalmente para os “trabalhadores de determinadas categorias profissionais,
como os operários em curtumes, ferroviários e servidores públicos municipais”.131
Antes disso, Alagoinhas só dispunha de dois estabelecimentos de ensino Ginasial, o
Colégio Santíssimo Sacramento e o Ginásio de Alagoinhas. Este último passou por vários
formatos em relação à sua razão social. Foi inaugurado em 1930, “com capital social e 200
ações nominativas”.132 Em 1941, foi assumido por Carlos Cunha e tomou o formato de
cooperativa, a “Cooperativa de Educação e Cultura Escola Normal e Ginásio de Alagoinhas”.
Em 1944, foi inaugurada sua sede própria, onde permaneceu. Em 1948, anexou-se a ele a
Escola Comercial, e a partir daí, a cooperativa foi desfeita.133 Alguns indícios demonstram
que em meados de 1950 tornou-se escola pública.134 Já em 1960, voltou a ser uma instituição

129
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 37. 20 mai. 1960, p. 6.
130
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 32. 02 fev. 1960, p. 5. Nenhuma outra referência sobre a Fundação Lauro de
Freitas foi encontrada, provavelmente era uma instituição particular.
131
MORAIS, op. cit., p. 21.
132
BARROS, Salomão, op. cit., p. 138.
133
Idem, Ibidem.
134
Fernando Meyer, ex-aluno do Ginásio de Alagoinhas, escreveu, em 2018, um livreto de memórias, chamado
Alagoinhas: Alguns recortes do anos 50 e 60, onde conta suas experiência no Ginásio. Segundo ele, “A única
escola existente em Alagoinhas para os rapazes, era o Ginásio de Alagoinhas, uma escola pública. Para as
meninas, cujas famílias pudessem arcar com uma escola particular, havia a dupla opção: estudar no Ginásio ou
no Colégio Santíssimo Sacramento”. O livreto está disponível nos arquivos do próprio Colégio Municipal de
Alagoinhas.
46

privada. Só a partir de 1995 passou a se chamar Colégio Municipal de Alagoinhas, sob


responsabilidade integral do município.
Além de seu trabalho do IBGE, Antonio Mário foi professor em escolas de ensino
regular e técnico em Alagoinhas. Lecionou disciplinas diversas como História, História da
Arte, Dicção, Relações Humanas, Educação Artística, História Econômica e Administrativa
do Brasil, História do Brasil e História Contemporânea.135 Sua função no instituto e o contato
com aspectos históricos da cidade, certamente, facilitou seu trabalho em escolas no município,
principalmente com a disciplina de História. Por sua vez, sua relação com esta também foi,
possivelmente, importante para a construção de seus escritos sobre a cidade, mais tarde.
Através dela, foi possível perceber qual o seu trato com as fontes, a pesquisa e os métodos do
fazer historiográfico. Ainda que não tivesse formação acadêmica nessa área (que pudesse ser
“comprovada”).
Num texto chamado “pontos controvertidos e curiosos da história de Alagoinhas”,
registra que

Das tarefas mais difíceis, hoje em dia, é aquela, sem dúvida, de registrar, dia
a dia, os acontecimentos da humanidade, isto é, registrar a história, quer seja
no âmbito mundial, seja entre os habitantes da mais reduzida comunidade.
Para isto é preciso que o estudioso e perquiridor dos fatos da sociedade
humana se valha dos postulados da ciência da história, agindo com o mais
cauteloso e sério critério na exposição dos seus enunciados. História é a
escola da vida, já definia o grego Heródoto, e nada mais complexo que a
própria vida.136

Apesar de apresentar características meramente descritivas, o texto desconstrói alguns


fatos curiosos já cristalizados ou velados pela história oficial da cidade. Dentre os quais,
questionava os limites geográficos que delimitavam seu território e os distritos vizinhos.
Refuta o ano de emancipação do município, 1852, através de dados que conferem a
autonomia somente ao ano de 1853:

O governo muncipal desavisadamente, comemorou no ano de 1977, com


sessão solene, no auditório do Colégio SS. Sacramento os 125 anos da
instalação o município, quando em verdade dever-se-ia te comemorado os
124; pois a data registrada na ata de instalação do 1º Conselho Municipal de

135
Decreto de nº 004/02 “que Concede Título de Cidadão Alagoinhense ao Sr. Antonio Mário”, 15 de setembro
de 2002. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
136
Texto “Pontos controvertidos e curiosos da história de Alagoinhas” escrito por Antonio Mário. 1987. Acervo
pessoal de Lívia Santarém.
47

Alagoinhas é a de 2 de julho de 1853. Logo Algoinhas está completando este


ano seus 134 anos de emancipação.137

Atento aos métodos, fez críticas a cronistas da história oficial da cidade que, segundo
ele, cometem os equívocos de não se comprometerem com os critérios básicos da
historiografia: “é assim que vários escribas e cronistas da história de Alagoinhas, por mais
abnegados que tenham sido, nem porisso[sic] deixam, de, às vezes, cometer equívocos e
incorreções”.138 Um desses cronistas que Antonio Mário refutou em tom jocoso em sua
escrita, foi Salomão Barros, no livro Vultos e Feitos do município de Alagoinhas, um escrito
minucioso sobre aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais da história da urbe cuja
narrativa se estende desde 1816 até 1979.139 Segundo Mário, Barros escreveu sobre a
misteriosa história do padre jesuíta fundador do “município de Santo Antonio das
Lagoinhas”.140 Como não dispunha de documento histórico que assegurasse a identidade do
padre, investigou sobre a veracidade de textos que confirmavam o paradeiro de seus possíveis
descendentes, já que, para ele, esse consistia num “ponto obscuro” que continuava a “desafiar
a argúcia e intelectualidade de quantos se teem lançado na quase[sic] aventura de escrever
sobre a história de Alagoinhas”.141 Ao analisar a versão sobre a história no livro de Barros,
percebeu que o autor tentou “desvendar o mistério”: o “mencionado sacerdote” se chamava
João Augusto Machado, do qual o diretor da Rádio Emissora de Alagoinhas, Célio Mendes
Machado teria descendência. Para Barros, o padre seria de ordem católica belga e “omitiu
sempre seu nome por ter dele provindo uma crescida descendência familiar (sic)”.142
O professor, tendo realizado buscas na Capela de Inhambupe, Arquivo do Estado,
Arquivo da Diocese de Salvador, e Biblioteca do Instituto Geográfico e Histórico, concluiu
que o mistério desvendado por Salomão Barros consistia mais numa conveniência pessoal do
que no compromisso com os “fatos históricos”. Conforme os vestígios, afirmou que “o padre
tenha sido um sacerdote carmelita da Missão de Massarandupió, em Santo Amaro do
Ipitanga”.143 Foi expulso da missão pelas perseguições do Marquês de Pombal aos clérigos,
por volta do século XVIII e, consequentemente, veio parar em terras alagoinhenses de forma

137
Ibidem. O texto, ao que parece, foi escrito em 1987, devido ao seguinte cálculo: ele toma como referência a
comemoração de 1977 para corrigir a idade de Alagoinhas de 125 para 124, e portanto, afirmar que naquele ano
(usando o tempo presente “está completando”), estaria, portanto, completando 134 anos.
138
Ibidem.
139
BARROS, Salomão, op. cit.
140
Primeiro nome da cidade segundo Antonio Mário. Texto “Pontos controvertidos e curiosos da história de
Alagoinhas” escrito por Antonio Mário. 1987. Acervo pessoal de Lívia Santarém.
141
Ibidem
142
Ibidem
143
Ibidem
48

anônima: “Coitado do caro Salomão, de boa fé acreditou piamente na balela do esperto


radialista e nem sequer desconfiou que pela coincidência dos sobrenomes, o Célio quis apenas
se passar como um descendente do suposto padre fundador”.144
A disputa pela memória da cidade perpassa a reflexão de Carlos Nássaro do
Nascimento sobre Alagoinhas, considerada como “[...] um campo de batalha, onde seus
diferentes grupos sociais estão a todo o momento criando e recriando imaginários sociais,
pelos quais percebem a cidade e tentam muitas vezes impor aos outros grupos sua concepção
de cidade”.145 Define-se, assim, a diferença entre memorialistas que construíram uma
Alagoinhas para a representação das classes dominantes na posteridade, e o objetivo de
Antonio Mário ao contar a história que outras pessoas só tiveram oportunidade de saber
através da oralidade passada de geração a geração.
De acordo com uma minibiografia num documento que o declara cidadão de
Alagoinhas, 1 ano após sua morte, registra-se suas marcas no Ginásio de Alagoinhas, Centro
Integrado Luiz Navarro de Brito, Colégio Alexander Fleming e Senhora Santana. 146 Não há
fontes oficiais que verifiquem sua passagem pelas escolas, exceto pelo Ginásio de
Alagoinhas, onde, nessa mesma década de 1960, nasceu o primeiro grupo de teatro dirigido
por ele, no curso de Contabilidade. Mas este é assunto para o próximo capítulo.

3. Cenas socioculturais da cidade

Alguns aspectos artísticos de Alagoinhas, na década de 1960, foram pontuados por


Antonio Mário num caderno pessoal de anotações denominado por ele como “Apontamentos
de Geografia”. Através dele, se percebe a existência de alguns locais de atividade culturais
como o “Centro Educativo-Cultural-Artístico-Literário da cidade de Alagoinhas
(CECALCA), em que, ao lado, havia uma data indicada com “+- 1959”, o que provavelmente
significa a data de fundação. Outro, chamado Centro Independente de Cultura (CIC), mas já
em 1966 e Clube Carnavalesco Filhos do Sol (sem data). As anotações encontram-se de forma
pontual, sem maiores descrições. Aparentemente, ele o utilizava para tomar nota sobre dados

144
Ibidem
145
PAIXÃO, Carlos Nássaro Araújo da. Narradores da cidade: Alagoinhas sob o olhar de Joanita da Cunha.
ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 08: Dobrando esquinas: (outros)
trabalhadores e a cidade. s/d.
146
MOÇÃO de nº 025/02 enviada à Câmara Municipal de Alagoinhas em 17 de dezembro de 2002 com o
objetivo de solicitar o título de cidadão alagoinhense post morten para Antonio Mário dos Santos. Arquivo
pessoal de Lívia Santarém.
49

relacionados ao trabalho no IBGE, pois anotações de outras naturezas também foram escritas,
tais quais pontos sobre fisiografia de Alagoinhas, economia, comércio, meios de comunicação
e “uma seção com fatos e notícias a pesquisar”.147
Não há evidência sobre tais centros nos registros jornalísticos da época, por outro lado,
o Alagoinhas Jornal anunciava, com freqüência, as atividades culturais organizadas pela
Associação Cultural e Recreativa de Alagoinhas (ACRA). Esta contemplava seus associados,
com os bailes temáticos, como o “Baile da Miss Simpatia” e constantes festas dançantes de
finais de semana. A ACRA também realizava festejos católicos, como a festa de Cosme e
Damião, uma das tradições da cidade, em que se organizava o simbólico caruru e o
divertimento ficava por conta da orquestra Os Turunas.148
As festividades de final de ano se iniciavam no Natal e seguiam até o dia dos Reis
Magos em janeiro do ano seguinte. Em dezembro, a “festa da cristandade”, organizada pela
prefeitura, anualmente, transformava as praças do centro da cidade em pontos de encontro e
diversão para as pessoas, “com barracas de comestíveis, bebidas e jogos de salão”.
Apresentações musicais aconteciam no Coreto da Praça J.J. Seabra, como o “terno pastoril
composto de crianças”, e a tradicional missa do galo era realizada nas Igrejas São Francisco,
Santo Antônio e no Santuário N. S. de Fátima. Esses foram os únicos fatos tidos como
“interessantes” pelo Alagoinhas Jornal que, nessa edição de fevereiro de 1960, não hesitou
em denunciar “o descaso do governo municipal” em não fornecer estrutura digna para os
cidadãos, sobretudo depois de receber patrocínio da Petrobrás para realizar a festa:149

O poder público que auxiliado pela Petrobrás deu apenas às festas uma
iluminação modesta e simples, nada fez que pudesse valer o sacrifício
daqueles que com dificuldades provenientes da difícil vida que
atravessamos, terem vindo ao local dos festejos. [...] Foi grande o descaso do
governo municipal...– grande e imperdoável – dado a maior festa da
cristandade, esta festa que com tanto zelo e carinho uma incontestável
tradição através dos séculos vem os alagoinhenses festejando com alegria e
amor. Nada de presépio... nada de árvore de natal... nada de missa campal...
símbolos de tradição de fé e bom gosto, mais[sic] o povo veio ao local dos
festejos, inadequado, exíguo, acanhado e sobretudo congestionado pelo
trânsito, mais o povo veio ao local dos festejos para não ver nada, mais veio.
Veio, não viu nada, voltou xingando muito o prefeito, mais cumpriu uma
obrigação de cidadão alagoinhense, tomou parte nos festejos de sua terra.150

147
Desses pontos, somente a seção sobre aspectos culturais apresenta mais informações. Todos os outros não
estão preenchidos. A fonte consiste num caderno de anotações o qual Antonio Mário nomeou na capa como
“Apontamentos de Geografia”. Foi, gentilmente, cedido à autora por José Olívio, tendo feito parte de seu acervo
pessoal, anteriormente.
148
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 42. 19 set. 1960, p.2.
149
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 32. 2 fev. 1960, p. 3.
150
Ibidem, p. 3.
50

Percebe-se que o jornal enaltecia os festejos cristãos como exercício, inclusive, de


cidadania alagoinhense, e aproveitava o ensejo para criticar um governo que apresentou
desrespeito a esse sentimento identitário. Em contrapartida, os símbolos nacionalistas que,
conforme o jornal, estão presentes na identidade alagoinhense, foram exaltados pelo Réveillon
que a ACRA proporcionou aos seus sócios e reforçados pela matéria ao descrever um cenário
do que fora considerado pelo articulista, “a festa mais bonita”: “com um verdadeiro luzeiro de
velinhas acesas distribuídas nas mesas e a iluminação do clube apagada a orquestra tocou o
hino nacional brasileiro com todos os presentes de pé, sendo este ato seguido do espoucar das
champanhas[...]”151 A Sociedade Vencedor Esporte Clube e o Dominó Esporte Clube também
ofereceram os Bailes de “Ano Bom” em que “grande número de sócios” comparecia com suas
famílias. A festa dos Reis Magos celebrava o mês de janeiro com as “matinês dançantes”,
como era de costume no clube ACRA, onde se reunia “a nata social de Alagoinhas”.152
No mês de fevereiro, os carnavais de rua e dos clubes consistiam no principal
divertimento da cidade. Em 1960, porém, Alagoinhas atravessou um processo de migração de
tradição carnavalesca, ao ser substituído o carnaval, pela micareta. A princípio, o Alagoinhas
Jornal não viu com bons olhos a decisão da gestão municipal: “Conforme é do conhecimento
do público, não houve este ano o nosso carnaval de rua, por isso mesmo nada, ou quase nada
temos a registrar nesse setor pois o nosso prefeito transformou em micareta o carnaval
alagoinhense [...].153 É compreensível pensar, de imediato, que a substituição do carnaval
tradicional por um “fora de época” causasse o estranhamento e inevitável esvaziamento
simbólico do mês de fevereiro.154 As vias públicas voltaram a ser palco democrático da folia
em abril do mesmo ano. As pessoas pareciam conformadas e animadas, pois a frustração pelo
carnaval de rua cancelado transformou-se no “sucesso, alegria e júbilo de contentamento e

151
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 32. 2 fev. 1960, p. 3.
152
A expressão foi definida pelo próprio Alagoinhas Jornal na edição do Ano II, nº 32. 2 fev. 1960, p. 3.
153
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 34. 14 mar. 1960, p.2.
154
Ou seja, ao invés de financiar os dois eventos carnavalescos, a prefeitura escolheu a micareta, em lugar do
carnaval de rua. Segundo Benoit Gaudin, o fato de o poder público de Alagoinhas decidir manter a micareta em
detrimento do carnaval na cidade, provavelmente se deve ao esvaziamento que os grandes carnavais de Salvador
causavam nas cidades do interior, principalmente as mais próximas da capital, como Alagoinhas, Feira de
Santana e Irará. Ver: GAUDIN, Benoit. Da mi-carême ao carnabeach: história da(s) micareta(s). Tempo
Social. vol.12 no.1 São Paulo. Mai 2000. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103
20702000000100004&script=sci_arttext> Acesso em 23 dez. 2020. Como os carnavais também tinham sua
importância comercial e turística, realizar a festa somente por tradição de data, e deixar de lado as questões
econômicas, poderia não ser uma opção prática. As micaretas rendiam lucros para o comércio da cidade através
das vendas de “artigos de folia” e fantasias, bem como para os clubes sociais que expandiam sua influência,
quanto para os hotéis que recebem foliões de outras cidades. Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 37. 20 mai. 1960, p.
4.
51

expansão popular” que foi a primeira micareta da cidade.155 Tendo conseguido aglomerar,
segundo o jornal, 20 mil pessoas – quase um terço da população algoinhense na época –
retomou o espírito do carnaval, tanto nas ruas com batucadas e trios elétricos, quanto nos
clubes de associados ou boates; sob cobertura dos serviços de Autofalantes de Alagoinhas e
da rádio Voz da Liberdade que cobriram o evento com quatro postos de observação nos locais
do circuito.156
Ainda de acordo com o Alagoinhas Jornal, podemos “ler a cidade” em sua vida
boêmia garantida pelas “casas de meretrizes”, à época, localizada no centro da cidade, rua
Conselheiro Moura, para onde o comércio convergia. O jornal registrava, constantemente,
denúncias dessas casas por serem o “ponto predileto de malandros e desocupados”.157
O destaque que o Alagoinhas jornal trazia para a ACRA se dava porque seu
presidente, Walter Campos (1927 - 2014), também era o fundador do jornal em questão. Este
não se debruçava tanto sobre os artistas da cidade, nem sobre atividades artísticas, além da
dinâmica cultural já mencionada; de modo geral, trazia, recorrentemente, denúncias, assuntos
políticos e esportivos além de colunas relacionadas à saúde, pois Walter Campos era,
sobretudo, dentista.
A única referência sobre artistas atuantes na década de 1960 encontra-se, justamente,
no referido caderno em que Antonio Mário destaca alguns nomes. Apesar de não ter sido
mencionado em nenhuma edição do Alagoinhas Jornal, o professor citou o nome de Waldo
Campos, irmão do diretor do jornal, como “personalidade da literatura” da cidade. Além dele,
Dr. Almir Barreira, Cel. Philadelpho Neves (um dos colunistas do Alagoinhas Jornal),
Antenor Azevedo Sacramento, Maria Feijó, Lourdes Bacelar e Benedito Propheta. Na
categoria “oratória”, destacou Lúcio Bento Cardoso, Cel Philadelpho Neves e João de Castro.
Dentre artistas plásticos, mencionou Almiro Conceição, Ivo Costa de Oliveira. Reconheceu a
existência das Filarmônicas “Euterpe Alagoinhense” e União Ceciliana e verificou atividade
dos seguintes conjuntos musicais: “Os Caciques”, “Os Noturnais” e Os Turunas, além do coro
sinfônico da Igreja Matriz. Mencionou nomes de cantores, dentre os quais, “Joana D’Arc”,
Almir Rego Dantas, Valdelice Santos Deusdeth e os musicistas José Batista da Purificação,
Profª. Ines Farani, Mestre Zezinho, Prof. Flávio, Prof. Djalma Matos.158

155
Ibidem.
156
Ibidem.
157
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 35. 3 abr. 1960, p. 3.
158
O sobrenome do professor Flavio está ilegível na anotação. Caderno de “Apontamento de Geografia” de
Antonio Mário. Acervo pessoal da autora.
52

A cidade pode ser lida como um texto, e os silenciamentos das fontes surgem como
possíveis subtextos a serem decifrados. A partir de uma leitura diacrônica, essa cidade
também é passível de ser compreendida como algo que foi escrito e reescrito pelos seus
habitantes, produzindo diversos sentidos, afinal, “a cidade é um grande texto que tece dentro
de si uma miríade de outros textos”.159 Portanto, o espaço citadino, na sua materialidade
imagética, delineia-se como um dos suportes da memória social da cidade. 160 Cabe aqui
decifrar quais são as “relações” geradas a partir de uma “multiplicidade de discursos”, sejam
eles escritos, reescritos, ou silenciados. 161
Com relação ao âmbito do teatro da década de 1960, foi possível notar tal
“silenciamento” em algumas fontes analisadas. Nenhuma produção de grupos teatrais ou de
espetáculos foi mencionada pelo Alagoinhas jornal. O livro de Salomão Barros traz uma
trajetória de grupos teatrais em tempos pregressos, em um breve capítulo o autor observou
que “todas as localidades em constante e progressivo desenvolvimento cultural têm seu
‘Grupo teatral’, isto vem ocorrendo em Alagoinhas desde 100 anos atrás, quando Antunes
Portátil deliciava as platéias com apresentações artístico-teatrais precisamente
preparadas[...]”.162 Esse grupo ganhou destaque em 1929, e em 1948, segundo ele, surgiu o
Gremio Dramático Joao Caetano. O Grêmio Dramático Santa Cruz, fundado em 1947, foi
dirigido por Marcel Boiron, e dele, o autor fez parte.
Ainda que o recorte temporal proposto por Barros tenha atravessado a década de 1960,
assim como o Alagoinhas Jornal, não fez referência a qualquer atividade realizada a essa
época, enquanto as produções teatrais de Antonio Mário já se desenvolviam na cidade. Uma
mostra disso é o seu próprio registro em caderno de apontamentos. No tópico “Situação
Social – Aspectos Culturais” mencionou o nome do seu próprio grupo, Dias Gomes. Além de
também mencionar o “grupo do Sr. Marcel” e outro, chamado Grupo de Teatro Petrobrás.163
Abrindo um breve e curioso parêntese, o grupo de teatro de Marcel Boiron surgiu em
três fontes diferentes sobre teatro em Alagoinhas. Além de Salomão Barros e Antonio Mário,
o Jornal da Bahia, edição de 1979, o mencionou, mas diferente de Barros, o tomou como o
primeiro grupo da cidade: “Buscando as raízes do teatro em Alagoinhas, presume-se que
tenha se iniciado na década de 30 através do Senhor Marcel Boiron, fundador do grupo

159
BARROS, op. cit., p. 45.
160
PESAVENTO, op. cit., p. 16.
161
BARROS, op. cit., p. 45.
162
BARROS, Salomão, op. cit., p. 167.
163
Caderno de “Apontamento de Geografia” de Antonio Mário. Acervo pessoal da autora.
53

Democrata”.164 Não se sabe se este continuou na ativa até 1960, pois, além de as fontes serem
vagas em relação ao período de existência, a única data referência que Antonio Mário utilizou
nas menções aos grupos, foi na frase “ver ‘Tribuna de Alagoinhas’ nº de setembro de
1965”.165 Isso não significa que os grupos foram, necessariamente, fundados nesse ano. 166
É possível que o professor tenha se referido ao fato de esses grupos terem sido citados
no jornal, visto que este se apresentou como periódico que, minimamente, se ocupava das
questões culturais na cidade, uma diferença em relação ao Alagoinhas jornal.
Talvez não seja difícil de assimilar o porquê de o teatro de Antonio Mário não ter
entrado na obra Barros. No texto, ele, explicitamente, faz críticas aos métodos do autor,
lançando mão de um tom sarcástico. Essa elucubração remete a Michel Pollak: “A fronteira
entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em nossos exemplos,
uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de
uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o
Estado desejam passar e impor”.167
O fato de Salomão Barros fazer recortes muito específicos em seu livro sobre qual
história iria registrar, mostra que ele se coloca como um “mensageiro” dessa trajetória de
Alagoinhas, para as gerações futuras. Não a história representante de grupos dominados, mas
aquela que enaltece a cidade a partir dos “vultos” “vistos de cima”, pertencentes às camadas
abastadas. Isso se aplica à fabricação da memória por meio da literatura e de jornais também.
Se Barros se propôs a falar sobre o teatro na cidade e citou somente o “francês Marcel
Boiron”, de 1930, talvez, por algum motivo, houve intenção em silenciar a produção do
professor. Não se sabe se houve querelas entre ambos os autores, mas o fato de Antonio
Mário, em seus escritos, se propor a questionar dados de uma “história oficial” da cidade,
mostrar posicionamentos frente à postura dos governantes, e no final, não ter publicado como
livro, sugere que, ao menos, o sentido em que ele caminhava não era o mesmo que o do
memorialista.
Diferente das atividades teatrais, os cinemas roubavam a cena cultural de Alagoinhas
na década de 1960. Quando o circo fazia expediente na cidade, podia gerar certa concorrência
e representar conflitos de interesses, como mostra a denúncia feita pelo jornal, sobre o
desentendimento entre prefeito José Azi e a direção do Circo Nerino:

164
Jornal da Bahia, 2 de jul. 1979.
165
Caderno de “Apontamento de Geografia” de Antonio Mário. Acervo pessoal da autora.
166
Ibidem.
167
POLLAK, Michel. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989,
p. 6.
54

A nossa população foi privada de assistir bons espetáculos circenses que nos
seriam oferecidos pelo renomado Circo Nerino em virtude dos entraves do
Sr. Prefeito às pretensões da direção daquela empresa que só encontra apoio
na concorrência que o circo faria, mesmo por poucos dias, ao Cine Azi de
propriedade do Prefeito. De futuro o Sr. Prefeito precisa considerar que os
interesse[sic] do povo são superiores aos seus interesses particulares.168

Apesar do tom decepcionado do articulista – o que não é uma surpresa quando se leva
em consideração as recorrentes críticas ao prefeito – não se pode afirmar com precisão se o
Circo não se instalou na cidade pelos motivos apresentados. O que pode se levar em conta, é
que quando os cinemas surgiam nas matérias, essas não assumiam o papel de anunciar seus
filmes, mas de denunciar questões de má estrutura e funcionamento; além de criticar,
constantemente, a administração do proprietário do Cine Azi. A despeito das querelas, faz
sentido entender a chegada do circo como concorrência ao cinema do prefeito, quando se
pensa uma cidade com opções de entretenimento pouco diversificadas.
O primeiro cinema inaugurado em Alagoinhas foi o Cine Teatro Popular, cuja
existência pode ser atestada desde o ano de 1912.169 Em 1960, apesar de não se poder afirmar
se permanecia ativo, o Alagoinhas Jornal alegou sua existência numa edição desse ano,
acerca de uma possível reforma. Numa coluna chamada “Não Está Certo” o jornal acusava “a
administração do município, sempre desleixada, haja visto[sic] o estado de sujeira que
apresenta a cidade, não toma as medidas que lhe compete atuando e multando os infratores
[...]” e finaliza mencionando que, “No antigo Cine Popular que está sendo reformado pelo Sr.
Prefeito, que é seu dono, o material de construção está empilhado em plena via pública”.170
Apesar de mencionar que o prefeito era dono do Cine Teatro Popular, fica a dúvida se, de
fato, isso procede, ou se tratou de um tipo de provocação irônica por parte do jornal. Até onde
demonstram as evidências, o Cine Teatro Popular foi propriedade de Benigno Valverde
Martins.171 O prefeito pode ter adquirido nesse período da década de 1960.

168
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 33. 22 fev. 1960, p.6.
169
No livro de Joanita da Cunha, o ano referente à sua inauguração é de 1930, mas uma matéria do Jornal
Correio de Alagoinhas afirma a existência desse cinema em 1912, refutando portanto, essa informação no livro
da autora. SANTOS, Joanita da Cunha. Traços de Ontem. Correio de Alagoinhas. 1 abr 1912, nº 361, ano VII,
p. 1.
170
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 40. 1 ago. 1960, p. 6.
171
Segundo Salomão Barros em 1979, seu ano de escrita, Benigno já era o proprietário (Ver: BARROS,
Salomão.op. cit., p. 265). Joanita da Cunha afirma que o primeiro proprietário foi João de Souza Caldeira (Ver:
SANTOS, Joanita da Cunha, op. cit. p. 43). E o Alagoinhas jornal, na edição de 24 de março de 1958, p.1,
afirmou que Benigno Valverde Martins ainda era seu dono.
55

Provavelmente, a tal reforma não foi adiante, no entanto, a arquitetura original se


aproximava do estilo neoclássico europeu, com janelas extensas e riqueza de detalhes na
decoração da fachada. O conjunto da obra estava em sintonia com os traçados urbanos e
casarios que se delineavam no processo de urbanização da cidade, do início do século XX.
Segundo Décio de Almeida Prado, era comum que, na década de 1930, a maioria das
salas de espetáculo fosse construída sob forma de Cine-Teatro “para atender tanto a uma
quanto a outra arte, e [localizava-se] no centro da cidade, para onde convergiam bondes”, o
trânsito de pessoas e mais tarde, os automóveis.172 No caso do Cine Teatro Popular de
Alagoinhas, Joanita da Cunha, no livro de memórias Traços de Ontem, descreve o cinema
como pequeno, mas de “palco razoável” onde nomes importantes do teatro brasileiro já
haviam se apresentado no início do século XX, tais quais Procópio Ferreira e Jaime Costa.173
A plateia contava com “lugares cativos” e alguns camarotes, seguindo o modelo dos Cine
Teatros europeus. A exibição dos filmes, entretanto, era comprometida por causa das
“máquinas ultrapassadas” que, segundo a autora, enguiçavam em pleno “espetáculo”.174
Apesar do progresso que o cinema representava para uma cidade do interior em
meados do século XX, os custos para manutenção eram caros, constantemente, faltava o
cuidado ideal para manter a estrutura, e, inclusive, atualizar suas instalações com o passar do
tempo, para que não caíssem na obsolescência.
O Cine Azi, mesmo diante de todo equipamento moderno semelhante aos que
possuíam o Cine Capri e Cine Guarani em Salvador, com a “enorme tela de projeção
cinemascope”,175 apresentava alguns problemas de funcionamento. Como evidencia uma
coluna do Alagoinhas Jornal, chamada “Carta à redação”, de 1958, um leitor anônimo
denunciava o serviço questionável oferecido pelo cinema, ainda que este tivesse representado
a expectativa de um entretenimento digno quando foi inaugurado no dia 29 de setembro de
1953, por José Azi.176 Entretanto, ao passo em que o leitor reconheceu alguns progressos com
a chegada do Cine Azi – projeção, as “dimensões do prédio”, quantidade de espetáculos –
demonstrou insatisfação quanto às salas sem climatização, “serviço sonoro incompleto”,
assentos insuficientes para os ingressos vendidos, filmes reprisados constantemente, inclusive,

172
PRADO, op. cit., p. 15.
173
SANTOS, Joanita da Cunha, op. cit., p. 43. Tanto Procópio Ferreira (1898 - 1979) quanto Jaime Costa (1897 -
1967) foram considerados por Décio de Almeida Prado como atores cômicos “de primeira linha”. Ver em
PRADO, op. cit., p. 21.
174
SANTOS, Joanita da Cunha, op. cit., p. 44.
175
A Tela de projeção cinemascope – tecnologia de filmagem e projeção – foi inaugurada no Cine Azi em 1956,
segundo o Jornal O Nordeste, ano VII, nº194. 31 jan. 1956, p.1.
176
Alagoinhas jornal. Ano I, nº 6. 24 mar. 1958, p. 1 e 4.
56

o próprio autor da matéria relata sobre um filme exibido de cabeça para baixo por “descuido
do operador”. E diante de todos os problemas, alegou a cobrança de preços exorbitantes pelas
sessões.177
O Cine Azi era alvo, também, das críticas dos jornalistas do Alagoinhas Jornal,
geralmente em tom irônico por irregularidades como “filmes impróprios”, exibidos nas
matinês de domingo.178 Provavelmente, as recorrentes críticas devem-se às questões políticas
relacionadas à eleição municipal daquele ano de 1958 em que o dono do cinema e o diretor do
jornal disputaram o poder executivo.179 Afinal, a carta-denúncia do leitor foi publicada na
mesma página em que um dos colaboradores do jornal, Hackel Meyer, escreveu uma matéria
em apoio à candidatura de Walter Campos, chamada “O Prefeito que Alagoinhas Precisa”, em
que apresentava o programa do candidato em prol das melhorias pela cidade. 180 Em outra
coluna, ao relatar sobre os tais “filmes impróprios” para menores de 18 anos, Meyer apelou:
“Zequinha Azi, proprietário do cine e um dos candidatos a prefeito, cabe-lhe tomar a
iniciativa de zelar pela juventude alagoinhense, porquanto se se tomar impossível fornecerá
assunto relevante aos seus adversários políticos na próxima campanha eleitoral”.181 Depois
que José Azi foi eleito, as críticas nas edições ao longo de 1960 e 1961 se estendiam para
além da administração do Cine Azi.182 De todo modo, vê-se que a questão principal não
girava em torno do cinema, mas como este se tornou um veículo utilizado para atingir o seu
alegado.
Além da exibição dos filmes, o palco do Cine Azi era cotado para outras atividades
alternativas, como convenções políticas, desfiles de moda, shows diversos e até
funcionamento da Rádio Emissora de Alagoinhas (95 FM, em 2021).183 Antonio Mário
deixou seus rastros nessa rádio, de acordo com um de seus responsáveis, à época, o radialista
Belmiro Deusdete.184 Segundo ele, o diretor teria feito parte da equipe da rádio como produtor
e apresentador do quadro “Hora da Criança”, no programa “Show da Cidade”, transmitido

177
Ibidem, p. 1.
178
Alagoinhas jornal. Ano II, nº 37. 20 mai. 1960, p. 5.
179
Alagoinhas jornal. Ano I, nº 6. 24 mar. 1958, p. 1.
180
Ibidem.
181
Ibidem, p.3.
182
José Azi tornou-se prefeito de Alagoinhas no mandato pelo PR, de 1959 a 1963. Ele também criou mais dois
cinemas, o Cine Alagoinhas e o Cine Capitólio, de acordo com FONTES, Maurílio. Morre ex-prefeito de
Alagoinhas José da Silva Azi. 10 nov. 2014. Site Alagoinhas Hoje. Disponível em:
https://www.alagoinhashoje.com/morre-ex-prefeito-de-alagoinhas-jose-da-silva-azi/. Acesso em 20 de dezembro
de 2020.
183
Alagoinhas jornal. Ano II, nº 40. 1 ago. 1960, p. 5.
184
Na primeira fase dessa pesquisa, durante a realização do TCC, ao buscar possíveis depoentes sobre a vida de
Antonio Mário, Belmiro Deusdete se dispôs a contribuir com o presente trabalho ao ceder um depoimento. Em
2021, foi novamente consultado e confirmou as informações presentes nos relatos.
57

entre os anos de 1965 e 1969.185 Isso foi tudo que Deusdete pôde discorrer sobre a
participação do diretor na rádio, “não temos maiores informações sobre a produção do quadro
e os nomes de professores, convidados e crianças que participavam. Ficava tudo a cargo de
Antonio Mário”.186 Apesar da falta de informações sobre o programa, há outra fonte que
indica a relação de Antonio Mário com o meio jornalístico no período: ele foi citado como um
dos fundadores do Jornal da Cidade, em 1968, provavelmente no mesmo período de
lançamento do quadro infantil.187
Apesar do breve depoimento sobre o protagonista dessa história, Deusdete trouxe
outras informações relevantes acerca do Cine Azi.188 Segundo ele, o “Show da Cidade” foi
transmitido diretamente do cinema, antes de migrar para a ACRA em 1966. Era um programa
de auditório, apresentado aos domingos, e além do “Hora da Criança”, tinha mais três
quadros: “Calouros da Cidade”, “Talentos da Cidade” e “Calouros Nacionais”, sendo que esse
último fora apresentado por ele próprio. Por esses quadros passaram cantores alagoinhenses e
de todo o Brasil, dentre eles, Gilberto Gil, Riachão, Valdick Soriano, Altemar Dutra e outros
nomes. Além de radialista, Deusdete atuou como “promotor de shows”, ainda que “sem
patrocínio, ganhando ou perdendo na bilheteria”.189 Sobre uma dessas produções, contou:

O primeiro grande show da carreira de Agnaldo Timotéo, segundo ele, foi


realizado em Alagoinhas, em 1962. Contratado por Elias Sobrinho para
shows em Salvador e no seu programa na TV Itapoan, foi cedido para uma
apresentação em Alagoinhas e voltou entusiasmado com as 1.400 pessoas
que superlotaram o Cine Azi.190

Segundo Deusdete, em 1960 o mercado publicitário ainda não tinha força suficiente e,
consequentemente, “os custos de produção de espetáculos eram reduzidos”. Assim, os
cantores não cobravam cachês altos a ponto de ser inviável realizar uma produção de show
numa cidade como Alagoinhas, quesitos facilitavam a vinda desses artistas à cidade.191 O
relato é verossímil quando se estabelece uma relação com a proposição de Renato Ortiz: de

185
Belmiro Deusdete foi citado no livro de Salomão Barros como “colaborador da imprensa local”. Segundo
Deusdete, o programa encerrou sua transmissão em 1969. Ver: BARROS, Salomão, op. cit., p. 299.
186
Depoimento cedido por Belmiro Deusdete à autora em 10 de outubro de 2017.
187
Fundado em 4/4/1968, junto com Reinaldo da Silva Neves, citado no livro de Salomão Barros. BARROS,
Salomão, op. cit., p. 297.
188
Essa foi a única referência encontrada sobre a participação de Antonio Mário no quadro “A Hora da Criança”.
Depoimento cedido por Belmiro Deusdete à autora em 10 de outubro de 2017.
189
Ibidem.
190
Ibidem.
191
Informações baseadas no depoimento de Deusdete, cedido à autora em 10 de outubro de 2017.
58

fato, um “mercado publicitário” nacional ainda era incipiente e sequer figurava parte decisiva
da economia, justamente pelos fatores que caracterizavam o país como subdesenvolvido
industrial e economicamente.192
No processo de “reescrita do texto urbano”, o estilo neoclássico do cine Teatro
Popular deu espaço à inovação de construções modernas como a do Cine Azi. Esse é um
exemplo de uma nova configuração nos marcos da modernização da urbe que se delineava em
meados do século XX. Havendo indícios de que as existências de ambos os prédios foram
contemporâneas em 1960, ao compará-los, pode-se perceber a convivência da “materialidade
moderna” com a “materialidade herdada de tempos antigos”. O Cine Teatro Popular findou
seu tempo de vida na década de 1980.193 Apesar de as temporalidades terem sido sobrepostas,
a antiga não resistiu e foi “engolida” pelas urgências da modernidade/nova urbe, junto com a
memória do que, um dia, simbolizou o seu progresso cultural. Substituiu-se o velho pelo
novo, o que, segundo Sandra Jatahy Pesavento, dificulta a leitura do panorama citadino
daquele período, na contemporaneidade.194
Por fim, quem lia os jornais da década de 1960 em Alagoinhas e consumia a literatura
produzida pelos “vultos” alagoinhenses visualizava uma cidade cujos cidadãos médios tinham
motivos para se sentirem pertencentes.195 Todavia, a parte da “cidade silenciada” consiste
num “texto implícito” na leitura das fontes: nas entrelinhas dessa urbe, o serviço de saúde
pública não dispunha de recursos suficientes para atender à população carente, e, ao mesmo
tempo, aos moradores de cidades vizinhas. Uma urbe cujos trabalhadores de diversas
categorias, não gozavam dos serviços de saneamento e qualidade de vida, características essas
que conferiram à cidade o destaque mencionado anteriormente.196
Igualmente, nem todos tinham acesso aos filmes e espetáculos dos cinemas e shows,
sequer frequentavam as tardes dançantes dos bailes de clubes. Nem todos tiveram seus nomes
destacados em livros de memórias e jornais, sobre a arte que faziam e o que produziam.
Igualmente, a maioria não desfrutava de acesso igualitário à educação, à arte e ao
entretenimento cultural. Antonio Mário chegou a uma cidade cujo acesso aos bens culturais
era desigual, e com sua chegada, tornar-se-ia um facilitador desse processo. Se as fontes aqui
discutidas não mencionaram os grupos de teatro ativos na década de 1960, o diretor

192
ORTIZ, op. cit.
193
Essa é uma afirmação feita de acordo com o que as evidências apontam – sobre o Cine Popular estar em
reforma em 1960, mas em 1980 não ter sido reconhecido nas fontes que catalogaram cinemas. No entanto,
carece de maior verificação.
194
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O Imaginário e a Cidade.
195
Aqui, refiro-me a Joanita da Cunha e Salomão A. Barros.
196
MORAIS, op. cit., p. 41.
59

demonstrou o contrário: tanto havia movimentação teatral, como o grupo de teatro Dias
Gomes, era, de fato, uma escola de formação em pequena escala.
60

Capítulo II
Estreia um diretor de teatro:
o personagem que constrói um cenário

1. O Grupo Teatral Dias Gomes

A nova rotina de Antonio Mário em Alagoinhas foi adquirindo outros


desdobramentos. Trabalhava durante o dia no IBGE mas, a instituição não lhe oferecia
estabilidade financeira, por isso começou a lecionar no Ginásio de Alagoinhas em período
noturno como atividade extra para sobreviver na nova cidade e sustentar a família. Foi o
ingresso no colégio que permitiu a formação do primeiro grupo de teatro que dirigiu.197
Nesse processo de mudança, o fluxo dos acontecimentos na sua esfera pessoal,
novamente, tinha se transformado. Quando ele se mudou para Alagoinhas, ainda estava
casado com sua segunda esposa; tempos depois, ambos se divorciaram e ele reencontrou
Nélia, em uma de suas idas a Salvador para visitar os filhos. Em 1962, aproximadamente, eles
decidiram reatar e oficializar o antigo relacionamento interrompido pelas circunstâncias já
citadas. Mas, como Nélia ainda estava morando em Salvador, se mudou com os filhos,
definitivamente, somente por volta de 1968 para morar com Antonio Mário:198 “Ela tomou
coragem, botou a gente na frente e foi embora. Quando ela chegou, e isso eu me lembro
mesmo, eu com uns quatro pra cinco anos, me lembro dela batendo gemada de noite para
quando ele chegasse do colégio ele tomar”.199
Essa memória produzida por Lívia emerge do lugar de filha presente na rotina diária
do pai, cujo vínculo foi fortalecido num cotidiano em que os outros filhos dos outros

197
Não se sabe exatamente o ano que ele começou a ensinar no Ginásio de Alagoinhas, se já em 1961, ou se um
tempo após sua chegada. Em conversa com a diretora do Colégio Municipal de Alagoinhas (antigo Ginásio de
Alagoinhas), em 2020, os documentos relacionados à contratação de professores na década de 1960 estavam
inacessíveis devido à reforma e reorganização burocrática da instituição. Dentre os ex-alunos e ex-atores/atrizes
do grupo de teatro Dias Gomes foi possível entrevistar uma das participantes, Ray Creuza (1943). Ela conta que
conheceu o professor no ano em que lhe ensinou a disciplina de História no próprio Ginásio, e quando ela tinha
17 anos, ou seja, em 1961. Quando ele lhe fez o convite para participar do grupo de teatro, ela lembra que fazia o
curso de Contabilidade no ensino técnico do Ginásio, e já tinha 21 anos, o que seria, de acordo com os cálculos
aproximados, em 1964.
198
Depoimento cedido por Livia Santarém à autora em 17 de abril de 2020.
199
Ibidem.
61

casamentos não viveram integralmente, por morarem em outras cidades.200 O fato de sua
infância coincidir com o momento de formação do Dias Gomes faz com que sua lembrança
seja, portanto, marcada pela imagem não somente sobre o Antonio Mário pai, cuja saúde
estava debilitada por causa das jornadas de trabalho, pelo hábito de “fumar muito”, o que
justificava os cuidados de Nélia Santarém em “bater gemada para ele se recuperar”. Mas
também, a imagem do Antonio Mário diretor “sendo fabricada” de dentro de casa, uma faceta
do indivíduo “diluída” inconscientemente em si, na condição de filha;201 ou nas palavras
escritas pelo próprio, o diretor de “jovens idealistas”

discentes dos 2º ano técnico, do ginásio de Alagoinhas que, ávidos de saber e


de cultura, escolheram em boa hora, a bela quão difícil arte tálmica que
imortalizou Moliére, Shakespeare, Brecht, Gil Vicente, Anchieta a tantos
outros luminares da cênica internacional vêm esses jovens no titânico
esforço de reavivar o teatro nessa terra de tão carinhosas recordações.202

Mesmo sem pistas suficientes que possam afirmar a data ou ano exato em que o grupo
teatral se iniciou, é sabido que, segundo as anotações do próprio Antonio Mário, em 1965 o
grupo já existia.203 Mas, se for levado em conta duas informações semelhantes em dois
relatos, a atividade do Dias Gomes se estendeu durante a década de 1960, nos períodos pré e
pós-golpe de 1964.204 Ray Creuza, uma das duas ex-atrizes do grupo a qual foi possível
entrevistar para esse trabalho, buscou na memória o ano de 1964 como marco para lembrar se
as atividades do grupo já vinham acontecendo. E recordou “Eu acho que deve ter sido mais ou
menos isso mesmo... porque logo depois, quando a gente já estava com as nossas coisas de
teatro bem assim comentadas, foi quando estourou a revolução de 1964”.205
O relato da outra ex-atriz do grupo entrevistada, Iraci Gama, também incorreu nesse
sentido, sobre o grupo já existir, tomando como referência o golpe de 1964 e o início das
aulas no curso de Contabilidade, aquele ano, para balizar as lembranças: “[...] o grupo teatral
Dias Gomes nasce em 1964 e nasce logo no início das aulas, e a gente vai se preparando. [...]

200
Antonio Mário permaneceu com Nélia Santarém até, aproximadamente, a década de 1990. Depois, passou a
viver com outra companheira.
201
GOMES, Ângela de Castro, op. cit.
202
Texto retirado do programa de apresentação da peça Irene de Pedro Bloch realizada pelo grupo Dias Gomes
na década de 1960. Documento avulso. s/d. Pasta “Antonio Mário”, CENDOMA/FIGAM.
203
Caderno de “Apontamento de Geografia” de Antonio Mário. Acervo pessoal da autora.
204
Ray Creuza e Iraci Gama foram as únicas ex-atrizes do Dias Gomes que encontrei disponíveis para ceder
entrevista. / Dentre esses indícios sobre datas, um banner da exposição na FIGAM, cujo patrono é Antonio
Mário dos Santos, alega a existência do grupo desde a “década de 1960”, sem, contudo, especificar o ano.
205
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
62

a censura bateu no Dias Gomes porque em 64 vem o golpe, logo no final do mês de março.
Então a gente mal tinha começado as aulas [...].”206
Um indício sobre o que pode ter sido a primeira “aparição pública” do grupo são dois
termos, escritos por Antonio Mário, que surgem no já mencionado panfleto da peça Irene:
“reavivar” e “estreia”. O programa é aberto com a seguinte frase: “Caro espectador, você
assistirá à estreia do grupo teatral Dias Gomes”. Comparando ao programa de outro
espetáculo realizado pelo grupo, Bicho do Mato, o panfleto é apresentado com: “Caro
espectador, você assistirá ao Grupo Teatral Dias Gomes”.207 Já que os programas não trazem
datas, talvez o termo “estreia” signifique, de fato, a estreia do grupo, não somente do
espetáculo. “Reavivar”, em “reavivar o teatro nessa terra de tão carinhosas recordações”
também remete a restituir a vida do que um dia já existiu, ou seja: se, em Alagoinhas, as
atividades teatrais sofreram uma fase de hiato, estariam, doravante, retornando à ativa com o
Dias Gomes. Assim, poderia ter sido Irene o primeiro espetáculo do grupo, e Bicho do Mato
montado depois. Não obstante, são especulações motivadas pelas lacunas das fontes e todavia,
somente algumas considerações diante de tantas outras que podem ser levadas em conta.
Sabe-se que o diretor permitia a entrada de jovens no grupo, mesmo que
frequentassem por poucos meses. Outros permaneceram por anos, como a própria Ray
Creuza. Somando-se experiências efêmeras e duradouras, o grupo era grande e além dos
estudantes, havia alguns participantes mais velhos também. Esse era um privilégio que outras
escolas não ofereciam, se pensarmos pela perspectiva de que o teatro não fazia parte do
currículo escolar, e sequer existia uma disciplina obrigatória de ensino de arte na década de
1960.208 A ideia foi livre iniciativa de Antonio Mário, e acolhida pelos alunos. Como o
próprio diretor afirmou no texto de apresentação, “a bela quão difícil arte tálmica” fora
“escolhida em boa hora” pelos “jovens idealistas”.209
Provavelmente, o trânsito entre instituição particular e privada que o Ginásio
atravessou entre as décadas de 1950 e 1970, permitiu certa heterogeneidade de segmentos
sociais em seu alunado. Consequentemente, o grupo de teatro também era diverso, pois

206
Entrevista cedida por Iraci Gama à autora, em 25 de maio de 2021.
207
Programa da peça Bicho do Mato do autor Luiz Iglesias. Realizada pelo grupo Dias Gomes na década de 1960.
Documento avulso. s/d. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
208
Na Lei de diretrizes e Bases de 1961 a arte aparece meramente como uma atividade complementar. Ver:
CORRÊA, Cíntia Chung Marques. Atitudes e valores no ensino da arte: após a Lei nº 4.024/61 até a atual Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9.394/96. EccoS – Revista Científica, São Paulo, v. 9, n. 1, p.
97-113, jan./jun. 2007. Disponível em: <https://www.redalyc.org/pdf/715/71590106.pdf.> Acesso em 21 de
dezembro de 2020.
209
Texto retirado do programa de apresentação da peça Irene do autor Pedro Bloch realizada pelo grupo Dias
Gomes na década de 1960. Documento avulso. s/d. Pasta “Antonio Mário”, CENDOMA/FIGAM.
63

incluía-se a possibilidade de estudantes de outras instituições participarem, além dos


“discentes do 2º ano técnico do Ginásio de Alagoinhas”.210 No momento em que Antonio
Mário integrou-se ao Ginásio, certamente, ainda era uma instituição particular.211
Para além do estudo, frequentar o grupo e fazer teatro também funcionavam como um
espaço de sociabilidade, amizade e trocas de experiências pessoais. Segundo Creuza, muitos
participantes que consolidaram um namoro no grupo, casaram entre si. A ex-atriz relata que
seus pais confiavam no professor Antonio Mário e por isso permitia a participação no grupo,
inclusive, assistiam aos espetáculos realizados. Entretanto, seguir os passos do diretor, mudar
para Salvador e fazer Escola de Teatro da UFBA não era permitido para ela, apesar de sua
maioridade.212
Ou seja, para os familiares dos atores, talvez o Dias Gomes, como atividade
extracurricular na escola, não passasse de reuniões inofensivas, que não desembocariam,
necessariamente, em formações de carreiras artísticas. Até porque tratava-se de um grupo
amador. Os estudantes não tinham a atividade teatral como meio de sobrevivência, e o grupo
não possuía recursos para manter salários em folhas de pagamento. Mas, para além da questão
financeira que define o “amadorismo”, Antonio Mário concordava com outra designação,
elaborada pelo diretor francês Jean Vilar (1912 - 1971), e que foi mencionada por ele no texto
de apresentação do programa da peça Irene:

“não há amadores, não há profissionais: há aqueles que sabem distrair um


público das suas aflições e dos seus desgostos. Amadores ou profissionais,
precisamos seduzir, precisamos comover, esta é a exigência do teatro, e por
que razão o dom de comover não seria um privilégio dos que têm pouca
técnica, mas que têm coração? Por que seria uma propriedade dos que têm
muita técnica e pouco coração?”213

Levando em consideração a qualidade técnica que o diretor prezava,


independentemente de ser um grupo amador, de acordo com o relato que Ray Creuza, cada
ator se responsabilizava por providenciar a indumentária de seus personagens e Antonio

210
Programa de apresentação da peça Irene realizada pelo grupo Dias Gomes na década de 1960. Documento
avulso. s/d. Pasta “Antonio Mário”, CENDOMA/FIGAM.
211
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
212
Ibidem.
213
Programa de apresentação da peça Irene realizada pelo grupo Dias Gomes na década de 1960. Documento
avulso. s/d. Pasta “Antonio Mário”, CENDOMA/FIGAM. Jean Vilar (1912 – 1971) foi um ator e diretor francês,
influente na o advento do teatro contemporâneo do século XX.
64

Mário fazia a costumeira “vistoria” de diretor nos dias de ensaio geral. 214 Já os panfletos das
peças demonstram que, ao menos o conceito do figurino em cada montagem, ficava ao cargo
de uma pessoa específica do grupo. Isso também acontecia com as funções de contra-regra,
cenografia, sonoplastia, iluminação, maquinista e eletricista.215 Dessa forma, isso mostra que
o teatro que Antonio Mário ensinava não estava restrito ao aprendizado sobre interpretação,
mas compreender como se desenvolviam os estágios de produção de um espetáculo.
Os mais diversos assuntos sobre a história do teatro e estilos de estrutura cênica
também compunham a dinâmica de ensino do diretor. Por mais que esse grupo de teatro
consistisse em atividades independentes do ensino regular, o diretor incentivava a leitura de
textos teatrais, para “re-alfabetizar” através do teatro, pois textos dramáticos exigiam uma
leitura específica. Tratava-se de uma proposta em que Antonio Mário propunha ir além do
currículo formal. Ray Creuza associou essa experiência como um “retirar das máscaras”, em
que se levava o teatro para as várias instâncias da vida, e vice-versa.216 Formava-se, portanto,
uma escola dentro da escola, uma escola em pequena escala. Esse movimento de formação de
grupos de teatro dentro das escolas e universidades não foi inaugurado por Antonio Mário,
nem somente por Alagoinhas; propagou-se nacionalmente. Os anos de 1960 foram férteis para
a descoberta do teatro por jovens estudantes, grupos, inclusive, acessíveis a setores populares
e à classe operária.217 Segundo Carvalho, esse período de “preparação para o teatro político e
engajado” predominou nos “conturbados e inovadores anos de 1960”.218 Nesse sentido, a
participação popular pintava um quadro inovador, onde, concordando com Gianfrancesco
Guarnieri (1934 - 2006), “a arte nacional precisava de menos profissionalismo”, referindo-se
ao fato de que os não profissionais também precisavam fazer teatro.219
Para o próprio Antonio Mário, Guarniere foi um nome importante na cena do teatro
moderno brasileiro, tanto este quanto Dias Gomes, mencionados anos mais tarde pelo diretor,
em entrevista cedida aos alunos da Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas,
cuja pergunta fora: “Para você, qual o principal expoente da cultura modernista no Brasil,
dentro da área teatral?” À qual ele respondeu:

Indicar um nome seria cometer uma crassa injustiça aos omitidos, pois são
tantos os autores teatrais que se têm revelado “monstros sagrados” dentro da

214
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
215
Programa de apresentação da peça Irene realizada pelo grupo Dias Gomes na década de 1960. Documento
avulso. s/d. Pasta “Antonio Mário”, CENDOMA/FIGAM.
216
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
217
CARVALHO, op. cit.
218
Idem, ibidem.
219
CARVALHO, op. cit., p. 147 / PRADO, op. cit., p. 38.
65

produção dramática brasileira. Entretanto, por questão de mais evidente


atuação, quando nada nos últimos tempos e por mera preferência pessoal,
ouso citar os nomes de Dias Gomes e Geanfrancesco Guarniere [sic].220

A entrevista foi cedida, provavelmente, após as atividades do Dias Gomes se


encerrarem.221 Mas, compreende-se o diálogo com um fazer teatral que, nacionalmente, se
reinventava e, sobretudo, a preferência por batizar o grupo com o nome do autor homônimo,
mesmo que na década de 1960 ainda não tenha montado peças deste (serão discutidos os
motivos no próximo tópico).
Vindo da Escola de Teatro da UFBA que propunha tal nacionalização como forma de
estar no centro das inovações brasileiras, o diretor proporcionou a Alagoinhas um diálogo de
transculturação a nível estadual/nacional.222 Sobretudo pela troca de experiências que
oportunizara aos alunos, quando convidava profissionais do teatro de Salvador para prestigiar
e/ou participar dos espetáculos que produzia em Alagoinhas.223 O “diálogo” com essas
referências também perpassa o método utilizado por Antonio Mário para transmitir aos seus
alunos a “tão difícil arte tálmica”, como ele mesmo mencionara. Tudo indica que tenha se
baseado no realismo stanislavskiano, método basilar para a primeira formação da Escola de
Teatro da UFBA. Consiste numa vertente do teatro moderno, elaborada pelo russo Constantin
Stanislavski. Os métodos desse teórico, professor de teatro e fundador do Teatro Popular de
Arte, atual Teatro de Moscou, revolucionou a forma de se fazer, dirigir e interpretar teatro no
Brasil. Ao se constituir diretor teatral, Antonio Mário não só deve ter seguido os
ensinamentos da universidade como pôde revisitá-los teoricamente, através do livro que
adquiriu em 1957, chamado A Formação do Ator de Richard Bolelavski, em que o método de
Stanislavski, é abordado.224 Bolelavski, ator polonês, diretor de cinema e professor, foi pupilo
de Stanislavski, e seu livro foi narrado e estruturado de forma semelhante à obra de seu

220
“Entrevista cedida por Antonio Mário dos Santos aos alunos da Faculdade de Formação de Professores de
Alagoinhas “visando oferecer subsídios para formulação de trabalho didático” A fonte foi encontrada
incompleta. Portanto, só se obteve acesso a uma página da entrevista. “– Documento sem data. Acervo pessoal
de Lívia Santarém.
221
O documento é avulso e foi encontrado sem data. Mas, ao tomar como referência 1972, ano da instalação da
primeira turma da Faculdade de Formação de Professores – FFPA, a entrevista ocorreu após e portanto, também
depois da desintegração do grupo de teatro, em fins de 1960.
222
O termo “transculturação” - trânsito, “troca” de culturas, movimento de idéias - foi cunhado por Raimundo
Matos de Leão. Ver: LEÃO, op. cit.
223
Isso pode ser notado tanto em relato por Ray Creuza, quanto no cartaz de um espetáculo de 1986, em que o
ator Ary Meirelles veio protagonizar a peça Corpo a Corpo que Mário montou (como veremos no próximo
tópico). Fonte: Cartaz da peça Corpo a Corpo de Oduvaldo Vianna Filho. s/d. Arquivo pessoal de Lívia
Santarém.
224
Um ex ator do grupo formado pós-Dias Gomes, herdou a obra, cedeu à autora, gentilmente, para servir, tanto
de fonte, como de referência bibliográfica para esse trabalho.
66

mestre: A Preparação do Ator.225 Em ambos, os métodos estão diluídos em uma história


narrada sob estilo romanesco, cujo personagem principal e narrador expõe suas experiências
ao vivenciar o teatro por essa perspectiva.
O método stanislavski primava por buscar o “realismo espiritual”, definido pelo autor
como a interpretação teatral norteada por sentimentos produzidos pelo próprio ator. As
técnicas de preparação desenvolvidas por Stanislavski conduziam o estímulo para esse
sentimento e como desenvolvê-lo na cena. Tornavam-se obsoletas, portanto, representações
que não enfatizavam a “verdade” dos sentimentos. “Representar verdadeiramente significa
estar certo, ser lógico, coerente, pensar, lutar, sentir e agir em uníssono com o papel”.226
Além das mencionadas evidências, algumas falas presentes no relato de Ray Creuza
acerca da metodologia de Antonio Mário ao ensinar sobre atuação, se encaixam com tal
vertente realista. E de acordo com alguns exercícios e laboratórios que ele realizava, foi
possível estabelecer uma conexão com a descrição do método por Stanislavski. Um exemplo,
foi quando a ex atriz disse que, num processo individual, trabalhava-se o “exterior” e o
“interior”. Ao usar o termo exterior, se referiu à indumentária e ao cenário; com “interior”,
aludiu às emoções, o que consistia numa busca real e individual do ator e dava “corpo” à
produção externa.227 Quando Antonio Mário reforçava esses quesitos nos ensaios, estava
munido do realismo stanislavskiano, pois “toda produção exterior é formal, fria e sem sentido,
quando não tem motivação interior”.228 Se a ex-atriz afirma essa experiência, aqui, há outro
indício de que o diretor não enveredou pelo “teatrão”, onde o “exterior” entretinha mais do
que o “interior”.
Não só se opunha a esse estilo, como o realismo consistia num método livre de
caricaturas ou personagens pré-concebidos pelo diretor. É curioso constatar que os dois
trabalhos de Antonio Mário no Dias Gomes foram peças imortalizadas por esse teatrão: Bicho
do Mato (escrita em 1945) e Irene (1951).229 Seus dramaturgos, Luiz Iglesias (1905 - 1963) e
Pedro Bloch (1914 - 2004), respectivamente, foram dois nomes importantes para a comédia
de costumes no Brasil, principal gênero teatral na primeira metade do século XX. Ambas as

225
BOLELAVSKY, op. cit.
226
STANISLAVSKI, Constantin. A Preparação Corporal do Ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1968, p. 43.
227
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
228
STANISLAVSKI, op. cit.
229
Bicho do Mato e Irene foram as duas únicas peças montadas por Antonio Mário com o grupo Dias Gomes,
cuja existência pôde ser atestada nesse trabalho.
67

peças, inclusive, tiveram sua importância na história do teatro brasileiro, por revelar grandes
atores de veia cômica no Brasil.230
Segundo Décio de Almeida Prado, o ator de comicidade tornou-se o centro do teatro
nacional nesse período. Este sustentava um certo personagem cômico em quaisquer que
fossem os espetáculos, a plateia sempre se acostumava com tal repetição e o ator tornava-se
“amado” pelo seu público, independentemente do texto dramatúrgico.231 Nas palavras do
jornalista e crítico de teatro, Paulo Francis, o ato de se repetir era próprio do “ator canastrão”,
ou seja, quem quase sempre “representava a si próprio”.232 Esse costume de “culto ao ator”
fora alimentado por um teatro que se pretendia na condição de divertimento do público,
entretenimento da burguesia e atividade comercial.233 O “vício” da tradição da comédia criou
atores que passaram a ser definidos por personagens caricatos: com isso, cenários luxuosos e
personalidades consagradas como Jaime Costa e Procópio Ferreira importavam mais do que a
mensagem da peça e a “verdade dos sentimentos” transparecida pelo ator no personagem;
afinal, o serviço que se vendia era a imagem, a comédia. Segundo Francis, tais atores, apesar
do “talento e presença”, “não se disciplinavam ao teatro moderno”. Essa foi a era do teatro
comercial no Brasil. Ou, nas palavras de Decio Prado, um teatro subserviente diante da
bilheteria, principalmente no período conseguinte à Segunda Guerra Mundial.234
Ao que tudo indica, a condução do diretor fundamentava-se em, ao invés de reproduzir
personagens caricatos, impulsionar o ator a buscar o seu próprio personagem cômico através
do método realista. Vejamos a aplicação de alguns desses métodos no espetáculo Bicho do
Mato, realizado em meados de 1960.235 Para Ray Creuza, foi o maior e mais marcante
trabalho do qual ela já fez parte no grupo, pois o elenco passou dois anos ensaiando e no dia
da estreia, que aconteceu no palco da Escola Frei Fidelis em Alagoinhas, 236 tiveram direito a
“casa cheia”.237
Tratava-se de uma comédia em três atos, onde a caipira Merencória, interpretada pela
própria ex-atriz, recebeu uma fortuna de parentes na cidade grande, e precisou ir buscá-la. Ao
chegar, ela e seu papagaio se depararam com uma realidade diferente da vida no campo.

230
PRADO, op. cit.
231
A questão relacionada ao teatro de comédia já foi discutida no tópico “Nasce o ator Antonio Mário dos
Santos”, no primeiro capítulo. Ver: PRADO, op. cit., p. 22.
232
FRANCIS, op. cit.
233
PRADO, op. cit., p. 22.
234
Idem, ibidem.
235
O programa da peça não especifica a data de quando foi apresentada. Segundo os relatos de Ray Creuza, a
apresentação aconteceu em meados da década de 1960.
236
À época, a escola se localizava na rua que, em 2021, correspondia à Rua da Usina em Alagoinhas.
237
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
68

Deslumbrada, se vê diante da necessidade de se adaptar à nova vida de rica e moradora da


capital.238 O elenco foi composto por seis personagens: Merencória, Genoveva (Guiomar
Vieira Melo), Paulina (Marilu Aguiar), Roberto (Jailton Silva), Severo (Antonio Reis Bossa)
e o empregado (Hamilton Santos). Contou com um assistente de direção (Teotônio José
Santos) e equipe técnica com contra-regra (José Marcelino), maquinista (José de Jesus),
eletricista (Euvaldo Brito), além de pessoal responsável por “guarda-roupa” (José Hamilton),
maquiagem (o próprio Antonio Mário), cenografia (Santa Bárbara Conceição), sonoplastia
(Rubens Santos) e iluminação (Ariovaldo Santos).239
Ray Creuza rememorou sua vivência através da personagem Merencória, como “uma
moça provinciana que [...] veio de Aracaju com uma gaiola de papagaio na mão, tudo que
falava o papagaio falava ‘Misericórdia!’”. 240 Pela fala do bicho, destaca-se o choque cultural
existente nessa experiência. Quais os estímulos que Antonio Mário transmitia para que a atriz
interpretasse Merencória dentro de suas próprias referências de vida? O processo de
construção de personagem, por mais que fosse conduzido pelo diretor, era algo individual.
Isso também consistia em uma busca de autoconhecimento, já que para o diretor, era
necessário “colocar o personagem dentro de si”,241 e se observar, dentro do próprio repertório
de gestual e estímulos emocionais. Ou seja, um exercício de observar a si próprio, e à vida
cotidiana. “Ele gostava muito que você criasse o seu personagem”, o comentário de Creuza
faz sentido quando se lê, em Stanislavski, que a tarefa de um ator “não é simplesmente
apresentar a vida exterior do personagem. Deve adaptar suas próprias qualidades humanas à
vida dessa outra pessoa, e nela verter, inteira, a sua própria alma”. 242 Portanto, tratando-se de
uma moça nascida e criada no interior, talvez não fosse tão difícil encontrar referências para a
personagem de origem semelhante.
A criação, entretanto, necessitava de treino técnico. No teatro, o corpo do ator precisa
ser preparado para seu gestual na ação dramática. Diferentemente do cinema, em que os
cortes de câmera focam em partes específicas que se escolhe enquadrar, o teatro não tem
enquadramento de cenas para se ver e ouvir com nitidez por meio de recursos tecnológicos. O
corpo do ator torna-se o seu principal instrumento, um recurso que deve ser utilizado
integralmente ao palco. Portanto, repetia-se nos ensaios, pois em cena, tudo seria vivido
238
IGLESIAS, Luiz. Bicho do Mato: Comédia em três atos. Rio de Janeiro: Livraria Editora Zelio Valverde,
1945.
239
Programa da peça Bicho do Mato do autor Luiz Iglesias. Realizada pelo grupo Dias Gomes na década de 1960.
Documento avulso. s/d. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
240
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
241
Fala de Antonio Mário dos Santos rememorada por Ray Creuza em entrevista cedida à autora, em 29 de
outubro de 2017.
242
STANISLAVSKI, op. cit., p. 43.
69

apenas uma vez. A repetição é um recurso utilizado não só para aperfeiçoar a técnica da
atuação, mas para acessar possibilidades de emoções que constituem o personagem na cena.
Pois a forma como se lida com as emoções reais consiste no diferencial da proposta do
realismo stanislaviskiano. Com o método denominado pelo autor russo de “memória das
emoções”, permite-se que a inspiração se renove no processo criativo, acessando emoções que
constituem a subjetividade do próprio ator. Trata-se de ter consciência de que a cena se repete,
e os mesmos sentimentos podem ser vividos, mas nunca da mesma forma, pois “o tempo é um
esplêndido filtro para os nossos sentimentos evocados. Além disto, é um grande artista. Ele
não só purifica mas também transmuda em poesia até mesmo as lembranças dolorosamente
realistas”.243
Quando Ray Creuza observou que Antonio Mário exigia que ela repetisse a cena
várias vezes, ele estaria investindo na repetição como recurso para a busca dos sentimentos
reais que emergissem à superfície e dessem consistência à personagem. Por isso, tanto Ray
Creuza quanto sua irmã, “Miné” – que na época do Dias Gomes era uma criança e sempre
acompanhava Creuza aos ensaios – afirmaram que ele era um “carrasco”: “Uma vez eu repeti
uma cena, por incrível que pareça, 26 vezes uma mesma cena! Mas não tava como ele
queria... ‘respire! Comece tudo de novo’. 244
Tal insistência do diretor pode ser fundamentada em Stanislavski a partir da seguinte
reflexão:

O ator deve estar repleto de sentimentos e deve, sobretudo sentir a coisa que
está registrando. Sentir uma determinada emoção não uma ou duas vezes
apenas, mas enquanto estuda o papel, em maior ou menor grau, todas as
vezes que o representar, quer se trate da primeira ou milésima vez.245

E ainda, com o reforço de Bolelaviski, “Escutar, olhar e sentir sinceramente não é


tudo. Deve fazer tudo isso de cem maneiras. [...]”246. De acordo com o realismo
stanislaviskiano, nenhum papel é novo, as emoções não são criadas a esmo, logo, as
referências emocionais estão todas dentro do ator, a nível consciente ou inconsciente. Ao
“burilar” as lembranças, Ray Creuza fez mais uma inferência sobre o que Antonio Mário dizia
com relação a interpretar os mais diversos tipos de papéis, como por exemplo, um bêbado. E

243
STANISLAVSKI, op. cit., p. 192.
244
“Miné”, Maria Minervina dos Santos estava presente no dia em que entrevistei Creuza. Aproveitando o ensejo,
colhi algumas informações com ela também, que seguem aos próximos capítulos.
245
STANISLAVSKI, op. cit., p. 42.
246
BOLELAVSKY, op. cit., p. 28.
70

tentando simular os trejeitos e a entonação de voz do diretor, como que para reconstituir sua
fala, disse: “‘Todos nós temos um ébrio [...] busque ele, bote ele pra fora’”.247
Não só de como Antonio Mário falava a ex-atriz se lembrou, vieram à memória
recordações de seus antigos colegas de cena e como reagiam ao método. Segundo ela,
Antonio Reis Bossa, que representou “Severo” no espetáculo Bicho do Mato,248 disse: “‘eu
não sei por que [...] meu laboratório perfeito é quando eu tô fazendo ruim! Ruim! Mau! Eu
boto tudo que é ruim meu pra fora, os tapas que levei quando era menino, boto tudo pra
fora’”. É interessante pensar esse relato quando relacionado às palavras de Stanislavski, ao
dizer que não se deve subestimar a importância desses sentimentos repetidos, sacados da
memória emocional, e que nos remetem a situações familiares na vida. “Pelo contrário, deve
dedicar-se inteiramente a eles, pois são o único meio pelo qual poderá exercer qualquer grau
de influência na inspiração”.249
Isto é, o teatro serviu como um espelho de si mesmo, uma possibilidade de trabalhar as
próprias emoções, reconhecendo-as. Uma mesma cena pode ser feita com o mesmo gestual
corporal, diversas vezes pelo mesmo ator. Um ator pode fazer papel de vilão sem
necessariamente ter cometido possíveis atrocidades, mas os sentimentos familiares que podem
ser associados à vilania, existiam em “Bossa”. Talvez por isso ele tenha vivido a verdade da
memória do sentimento. 250
Os relatos de Ray Creuza sugerem que “a memória é um cabedal infinito do qual só
registramos um fragmento”, conforme propõe Eclea Bosi.251 Torna-se importante para o
presente estudo no sentido de compreender como e em quais circunstâncias podemos ter
acesso a esse cabedal mnêmico: através das lembranças e recordações, aspectos que têm suas
peculiaridades no contexto de cada entrevista.
Essa lembrança estimulada está totalmente permeada pela percepção do presente, pois,
"é do presente que parte o chamado ao qual a lembrança responde’".252 Portanto, ao
perguntar-lhe e ao mostrar-lhe os panfletos das peças, foi dado o estímulo para que Ray
Creuza se lembrasse de sua época como aprendiz de atriz no Dias Gomes, o que não a isenta

247
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
248
Programa da peça Bicho do Mato do autor Luiz Iglesias. Realizada pelo grupo Dias Gomes na década de 1960.
Documento avulso. s/d. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
249
STANISLAVSKI, op. cit., p. 195.
250
Aqui, trata-se de uma passagem que Creuza trouxe ao tentar reconstituir a fala de “Bossa” sobre o assunto.
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
251
BOSI, op. cit., p. 3.
252
BERGSON apud BOSI In.: BOSI, op. cit., p. 10.
71

de ter misturado a experiências outras do decorrer de sua vida, fazendo com que a relação do
“corpo presente” com o passado interferisse “no processo ‘atual’ das representações”:253

Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-
se com as percepções imediatas, como também empurra, "desloca" estas
últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como
força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante,
oculta e invasora.254

Quando as respostas de Ray Creuza precisavam de dados mais consistentes sobre


datas, ao ver que não os tinha, ela própria se surpreendia ao recordar aspectos
complementares de sua vida pessoal que serviam como marcos para tentar se lembrar de certo
ano ou período. Assim, através da memória, ela “empurrava” e “deslocava” as percepções
imediatas até o passado “invadir” a sua consciência. Com isso, uma lembrança “puxava” a
outra, e mais relatos iam surgindo para além das perguntas. O que importou aqui, foi,
parafraseando Bosi, compreender como esse passado foi conservado em sua memória sob a
forma da lembrança.255
Dentre as ex-atrizes que foram encontradas para entrevista, quem encenou a outra peça
realizada, Irene, foi Iraci Gama, participante, que se reivindicou, inclusive, “ativa” na
formação do grupo.256 A montagem seguiu o mesmo roteiro de organização de Bicho do
Mato: programa impresso e distribuído para o público, no qual constou elenco e o trabalho de
bastidores. Cada um ocupando uma ou mais funções diferentes. A diferença é que, além do
panfleto e do depoimento de Iraci Gama, existem fotografias como fontes.
Entre os dois espetáculos dirigidos por Antonio Mário, o ator Jailton Silva participou
do elenco dos dois, com papel de “Gentil”, em Irene, e de “Roberto”, em Bicho do Mato. Em
ambos, o diretor teve o mesmo assistente: Teotonio Jose dos Santos. Santa Barbara Conceição
e Ariovaldo Santos também participaram dos dois. No entanto, esse último surgiu com nomes
artísticos diferentes no programa de Irene: “Ariovaldo Santos” na iluminação e “Ari A.
Santos” na sonoplastia.257 Essa era uma prática comum nos grupos que, por vezes, usavam o
mesmo profissional para exercer as duas funções, por ser qualificado em ambas. E para evitar
repetir o nome, mudava. Antonio Mário surgiu várias vezes nos panfletos como “Mário
Santos”, às vezes na função de maquiador ou narrador.

253
Idem, ibidem, p. 9.
254
Idem, ibidem, p. 9.
255
Idem, ibidem.
256
Entrevista cedida por Iraci Gama à autora, em 25 de maio de 2021.
257
Programa de apresentação da peça Irene realizada pelo grupo Dias Gomes na década de 1960. Documento
avulso. s/d. Pasta “Antonio Mário”, CENDOMA/FIGAM.
72

O conhecimento sobre maquiagem cênica pode ser atestado num texto elaborado pelo
próprio diretor, chamado “Instruções para Maquiagem – por Antonio Mário”. Neste, é
possível entender a técnica utilizada, especificamente para personagem de mulher jovem e
pontuou os seguintes tópicos: base, olhos (alongamento, aumento e sombreado), pálpebras
salientes, pálpebras fundas, sombrancelhas, maçãs do rosto, pó facial e lábios.258 Percebe-se
que nas imagens individuais dos personagens jovens, ele optou somente por uma base, exceto
a vilã “Margot”, interpretada por Dalva Costa, em que arqueou o desenho da sombrancelha
para reforçar a expressão característica (Imagem 4 à esquerda). Nos personagens idosos
procurou realçar as linhas de expressões, uma vez que foram vividos por atores jovens (Iraci
Gama tinha cerca de 20 anos à época – Ver imagens 1 e 2).
A trama consiste numa comédia de costumes, dividida em 3 atos, em que a
protagonista Irene precisa lidar com questões relacionadas à sua adolescência e à sua
família.259 O elenco teve 6 pessoas, tendo sido “Irene” representada pela atriz Marinalva
Costa.260 A indumentária remetia à moda da década de 1950, tempo de escrita dramatúrgica
de Bloch e momento em que Irene foi apresentada pela primeira vez no teatro nacional.261
Pode ter sido, inclusive, improvisada ou emprestada pelas famílias dos integrantes do grupo.

258
Ao que parece, o texto tinha mais páginas, mas devem ter se perdido com o tempo, restando somente o tópico
“Maquiagem para mulher jovem”. Texto escrio por Antonio Mário e intitulado “Instruções para Maquiagem”.
Sem data. Acervo pessoal de Lívia Santarém.
259
BLOCH, Pedro. Irene: Comédia em três atos / Coleção de Peças Selecionadas (2ª edição). Rio de Janeiro:
Editora Talmagráfica, 1953.
260
Não foi possível adquirir informações sobre as outras pessoas citadas que fizeram parte do grupo. Alguns já
faleceram, outros mudaram de cidade e não seguiram carreira. Outros não foram reconhecidos pelos
entrevistados com quem tive contato.
261
Especificamente, a estreia de Irene aconteceu pela primeira vez em 18 de junho de 1951. BLOCH, op. cit.
73

Imagem 1: Iraci Gama (“Vovó Deolinda”). Imagem 2: Carlos Simões (“Rocha”). S/d.
S/d. Autor desconhecido. Autor desconhecido. CENDOMA/FIGAM.
CENDOMA/FIGAM.

Imagem 3: (Ator/personagem não Imagem 4: Da esquerda para direita, Dalva Costa (“Margot”) e
identificado). S/d. Autor Marinalva Costa (“Irene”). S/d. Autor desconhecido.
desconhecido. CENDOMA/FIGAM. CENDOMA/FIGAM.

Exceto os citados, todos os outros que compuseram a montagem de Irene,


aparentemente, eram diferentes do corpo de participantes do outro espetáculo, o que denota
rotatividade de pessoal, proporcionada por uma quantidade considerável de pessoas ativas. A
única função que surgiu em Irene e não em Bicho do Mato foi a de “paisagista”. Isso porque o
cenário do espetáculo contou com a pintura de uma paisagem da cidade de Alagoinhas para
74

representar a vista de uma janela (Imagem 5).262 De acordo com as fotografias, Antonio Mário
seguiu a ambiência familiar do roteiro original, reconstituindo uma sala de estar onde as cenas
se passaram. Assim, além da janela representada por um protótipo de madeira, a pintura da
paisagem e uma cortina, outros elementos compunham o cenário, como algumas poltronas,
uma mesinha e um abajur. Proposta cênica simples e estética fiel à realidade.263

Imagem 5: Cenário da
peça Irene e corpo
técnico: da esquerda
para direita – José
Santa Bárbara
Conceição, Rubens
Soares, Antonio Mário,
Teotônio José dos
Santos, Ariovaldo
Santos, Claudemir
Rosário. S/d. Autor
desconhecido. Banner
sobre exposição da vida
de Antonio Mário,
exposto no
CENDOMA/FIGAM.

Imagem 6: “Vovó
Deolinda” e “Rocha” em
cena.
S/d. Autor desconhecido.
CENDOMA/FIGAM.

262
Imagem fotográfica do espetáculo Irene (década de 1960). Banner da exposição permanente em homenagem a
Antonio Mário exposto na FIGAM.
263
Ibidem.
75

Imagem 7: “Irene” e personagem (não identificado) em cena.


S/d. Autor desconhecido. CENDOMA/FIGAM.

Imagem 8: “Irene”, “Margot” e “Vovó


Deolinda” em cena. Autor desconhecido.
CENDOMA/FIGAM.

Imagem 9: “Irene” e personagem (não identificado) em cena


S/d. Autor desconhecido. CENDOMA/FIGAM.

Com relação aos locais de ensaio, o diretor precisava improvisar, por não dispor de um
local fixo. Havia cachês quando os espetáculos recebiam financiamento de alguns
estabelecimentos comerciais e a arrecadação de bilheteria rendia algum dinheiro para os
atores, mesmo não sendo muito. De todo modo, havia a preocupação em não onerar os
espetáculos, pois os próprios alunos e o diretor arcavam com a produção para cobrir os gastos
que eventuais ajudas de custo não cobriam.264 Ao rememorar essa experiência, Ray Creuza
contou sobre como conseguiam recursos: “Um dava pra aqui, outro dava pra ali, às vezes ele

264
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
76

[Antonio Mário] conseguia alguma coisa assim com alguns amigos... mas era pouca coisa, era
pouca coisa mesmo”.265
Esse “um dava para aqui, outro dava para ali” pode ser associado aos patrocínios que o
grupo recebia a cada espetáculo. Nos panfletos elaborados pelo diretor, em ambos que
verificam a existência e atividades do grupo, ao fundo há uma relação com os nomes dos
apoiadores. No panfleto de Bicho do Mato destacam-se os agradecimentos à Prefeitura
Municipal, União das Voluntárias de Alagoinhas, Rádio Emissora de Alagoinhas, Grã- Fotos,
Armazém Zizi, F. Publicidade, Armarinho S. João, Guaraci Kànzog, Cia. Telefônica
Municipal, João Batista & Filho, A Suprema Móveis e Casa Eliane.266 Em Irene houve apoio
da Prefeitura de Alagoinhas, Rádio Emissora de Alagoinhas, Organpublic, Suprema Móveis e
o próprio colégio Ginásio de Alagoinhas.267
A relação com casas comerciais na cidade provavelmente se desenvolveu com sua
participação da Associação de Comerciários de Alagoinhas em 1962. A partir de então, criou
alguns vínculos que desembocariam em apoios para os grupos, quaisquer que fossem.268 A
Rádio Emissora, como mencionado no último capítulo, foi onde ele apresentou um programa
infantil no final da década de 1960. Seu fundador, Frei Fidélis, era um dos amigos de Antonio
Mário e contribuía para a realização dos espetáculos (além de ser o dono da escola onde a
peça foi apresentada).269
Em suma, o que significou, para esses jovens estudantes o contato com os métodos de
Antonio Mário na sua escola do fazer teatral? “Tirar as máscaras”, como definiu Creuza, se
desnudar frente à arte cênica, quando, de volta ao cotidiano, seria necessário vestí-las
novamente. No teatro era possível expor e reconhecer suas verdades, como citou “Bossa”,
anteriormente. As máscaras que se usam no dia-a-dia da vida serviam somente para disfarçar
esses sentimentos reais escondidos nas instâncias mentais do ator.
Que significado tinha para o público que prestigiava os trabalhos? Provavelmente, o que o
diretor esperou que se consumasse na relação ator-público, ao transcrever a fala de Jean
Poquelin Moliére no panfleto de Bicho do Mato: “Creio que o dever e a finalidade da comédia

265
Ibidem.
266
Programa da peça Bicho do Mato do autor Luiz Iglesias. Realizada pelo grupo Dias Gomes na década de
1960. Documento avulso. s/d. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
267
Programa de apresentação da peça Irene realizada pelo grupo Dias Gomes na década de 1960. Documento
avulso. s/d. Pasta “Antonio Mário”, CENDOMA/FIGAM.
268
Imagem fotográfica de reunião na Associação dos Comerciários de Alagoinhas, 1962. Acervo pessoal de
Lívia Santarém.
269
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017. Segundo Barros, a Rádio Emissora foi
fundada pelo Frei em 1954, rádio onde Antonio Mário apresentou o programa Hora da Criança (como já
mencionado anteriormente). Ver: BARROS, Salomão, op. cit., p. 264.
77

é divertir os homens, corrigindo-os. Acreditei que, como autor, devia atacar os vícios de meu
século”.270 As comédias representadas pelo Dias Gomes intencionaram divertir, fazer rir da
própria condição humana. Porém, corrigindo e atingindo o público, fosse através dos conflitos
na trama, das características psicológicas dos personagens, ou da verdade representada na
ação dramática de cada ator e atriz, depois de meses cultivando-as nos laboratórios de criação.
O grupo encerrou suas atividades, provavelmente no final de 1960, pois em 1970 surgiu
outra fase do teatro de Antonio Mário: nova formação, novo nome, outros participantes.
Houve uma desintegração espontânea por conta de participantes que concluíram a escola, se
casaram e formaram suas famílias ou mudaram de cidade. De acordo com as palavras de Ray
Creuza, eles “não tinham o teatro como uma meta financeira em suas vidas”.271
Diante da experiência de rememorar, a intenção da interlocutora é, sobretudo, perceber o
que ficou de mais relevante na lembrança das entrevistadas.272 Lidar com as recordações de
Ray Creuza, não consistiu em reafirmar categoricamente o personagem Antonio Mário como
um diretor de teatro cujo comportamento encerrava-se no perfeccionismo e assertividade. Até
porque os resultados dessa “assertividade” foram precisados por uma memória já misturada
com outras lembranças de outros tempos que insistem em emergir à sua superfície, permeados
pela nostalgia da lembrança de um professor querido. Não é possível dominar a consciência
do passado por completo.273 Mas foi dessa forma que as ações do sujeito reverberaram na
memória da ex-atriz. Assim, foi possível reconstituir o tipo de diretor-professor que Antonio
Mário foi em sua vida, através do aprendizado que ficou para ela.
Por outro lado, há as lembranças de Lívia Santarém: a diferença de idade em
comparação a Creuza configura uma relação diferente diante das percepções imediatas. Além
disso, ela representa outro grau de relação com o personagem, o que constitui a memória
familiar. Portanto, não se deve excluir a possibilidade de que, sua recordação de hoje não se
remete somente ao que ela viveu, mas também tem influência das histórias que o próprio
Antonio Mário pode ter lhe contado sobre esse período, em outro momento da vida da filha.
Além dele, sua própria mãe, Nélia Santarém, compartilha dessas suas lembranças no lugar de
uma esposa encarregada do trabalho doméstico, na condição do ser mulher no século XX.
Esposa de um homem de vida ativa fora de casa, que além dos trabalhos que o asseguravam
“provedor da família” escolhia utilizar aquele que seria seu tempo de descanso para a

270
MOLIÉRE apud SANTOS In.: Programa da peça Bicho do Mato do autor Luiz Iglesias. Realizada pelo grupo
Dias Gomes na década de 1960. Documento avulso. s/d. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
271
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017, p 26.
272
BOSI, op. cit.
273
Idem, ibidem.
78

manutenção do desejo de fazer teatro, o que não rendia seu sustento financeiro. E o custo
desse desejo era que a mulher se mantivesse em casa sob circunstância de “dona do lar”.
Diante desse modus vivendi, o sujeito parecia viver no conforto do privilégio masculino que
significava fazer e manter suas escolhas.
Por fim, os processos da memória não visam consolidar imagens determinantes do
indivíduo com uma “personalidade coerente e estável; ações sem inércia e decisões sem
incerteza”.274 A despeito de uma “percepção pura” dos fatos, ou embebida pela nostalgia dos
tempos de atriz, ou de filha ainda criança; independentemente da beleza dos momentos que se
sobrepunham a possíveis experiências relacionadas a dificuldades, tristeza, decepção,
ausência: todo tipo de experiência faz parte do processo de rememoração. Desse modo, o uso
da memória está para além da busca de uma verdade legítima sobre os relatos, dias exatos dos
espetáculos, ou datas exatas em que Dona Nélia batia gemada para Antonio Mário recuperar a
saúde. É através desses discursos que se pode compreender como o diretor foi nutrindo,
gradativamente um vínculo maior com a cidade, pelo fato de não ter novamente sido
transferido pelo IBGE, e por tudo que produziu em Alagoinhas referente a teatro, pesquisa
histórica, grupos culturais e festivais. Por essa perspectiva da trajetória do personagem,
descortina-se uma década de 1960 diferente do que apontaram outras fontes em seus aspectos
culturais, pois teve sua centelha de um movimento proporcionado pelo teatro na cidade. E a
centelha acendeu e fez ascender um movimento que perdurou ao longo das décadas de 1970 e
1980 em Alagoinhas.

2. O grupo Natureza: mesmos métodos, novas possibilidades

Como já discutido, o Dias Gomes foi se desintegrando de forma espontânea, e a


formação de um novo grupo também se deu de forma orgânica, no início da década de 1970 -
pouco tempo depois do fim do anterior. Assim, consideram-se tais mudanças no teatro do
diretor a partir, também, de marcos temporais, sendo a primeira fase até 1968, e a segunda
depois de 1968.
O Grupo Natureza foi batizado com esse nome neutro, possivelmente, para não
levantar suspeitas dos militares, após o endurecimento do Regime com o AI-5 (1968), já que

274
LEVI apud BORGES. In.: BORGES, Vavy, Pacheco. Grandezas e misérias da biografia. In: PINSKY, Carla
(org). Fontes históricas. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 2001, p. 203 – 233.
79

Dias Gomes foi um autor perseguido pela ditadura, e como já é sabido, Antonio Mário
apresentou seu favoritismo ao dramaturgo. Segundo Iraci Gama, o diretor “foi chamado” para
mudar o nome do grupo. Não soube dizer se houve um chamado oficial da polícia ou
departamento de censura, mas que esse chamado provocou um hiato nas atividades: “nós
ficamos um tempo sem poder nos manifestar, não havia possibilidade de participação, o
trabalho foi interrompido e porque ele tinha sido chamado à atenção. Mas o que mais chamou
a atenção, exatamente dessas autoridades militares foi o fato de o nome do grupo ser Dias
Gomes”.275
De fato, os registros de atuação do grupo apresentam datas espaçadas no tempo, o que
também não significa que não possa ter havido apresentações, sobre as quais não se tem
indícios. Ao menos no final da década, o Jornal da Bahia destacou um saldo de atividades
considerável e uma fase próspera desse teatro como sugere o trecho da matéria:

Grupos de teatro, artistas plásticos premiados, fotografia, cinema apresentam


hoje uma fase de desenvolvimento otimista quando a simples vontade de
criar, supera dificuldades técnicas e econômicas. Mas esta é uma faceta
tradicional que se insere no sacrifício do artista que, antes de tudo, quer levar
cada vez mais ao povo, sua arte. Esta pode ser uma síntese do pensamento
do professor Antonio Mário dos Santos, criador, diretor artístico do grupo
teatral “Natureza”, que aos poucos está se estruturando, se transformando
numa verdadeira escola de teatro. [...] Antonio Mário desenvolve atividades
múltiplas como professor, funcionário do IBGE, mas é, no momento,
possivelmente o maior incentivador do movimento teatral em Alagoinhas.276

A “verdadeira escola de teatro” era composta por “cerca de 32 pessoas entre


estudantes e operários” que se reuniam “com a assiduidade possível, na maioria das vezes na
Casa do Encontro – centro comunitário – onde são realizados ensaios e aulas”.277 Percebe-se
que as características principais do diretor, na condução do grupo, permaneceram: quantidade
razoável de participantes, indivíduos de idades diversas, vindos de camadas sociais diversas e
com a responsabilidade de participação em ensaios e aulas sob a mesma condição de grupo
amador. A metodologia baseada nos laboratórios ao ar livre permaneceu, inclusive, também
se manteve a mesma postura rigorosa em relação ao realismo stanislavskiano e a busca pela
verdade do sentimento do ator.

275
Entrevista cedida por Iraci Gama à autora, em 25 de maio de 2021.
276
Jornal da Bahia, 2 de jul. 1979 (fonte original danificada, não consta número da página, edição e ano).
277
Ibidem.
80

Diferente do grupo Dias Gomes sobre o qual foi possível verificar os panfletos
impressos de espetáculos, nem todos os roteiros de peças do Natureza tiveram seus
respectivos panfletos como indicação de que aconteceram. Foi ouvido um ex-participante do
Natureza, Roque Lazaro, além dos relatos de Creuza, sobre suas participações esporádicas no
grupo.278 Assim, as informações dessas entrevistas foram entrecruzadas com outras fontes,
mesmo sendo elas escassas, como roteiros datilografados e cartazes, alguns deles, inclusive,
não datados. O centro da discussão, portanto, segue na perspectiva das peças terem sido
trabalhadas e/ou ensaiadas, ainda que não necessariamente montadas, pois, com o trabalho e o
gasto para datilografar um texto completo de teatro, é improvável não terem sido utilizados de
alguma forma. Logo, o argumento girará em torno dos autores trazidos por Antonio Mário
nessa nova fase, para entender a natureza das discussões e o que podem ter significado em
certos contextos históricos. Quais as rupturas e permanências nas escolhas dos textos por
Antonio Mário? O que esses autores simbolizaram no período?
O diretor que havia montado as comédias clássicas que construíram os signos do
“teatrão brasileiro”, não rompeu necessariamente com o gênero. Nessa nova fase ele manteve
opção por Pedro Bloch com Morre um Gato na China, e dentre os roteiros analisados também
surgiu Quem Casa Quer Casa, de Luís Carlos Martins Pena, considerado o pai da comédia de
costumes no Brasil.279 Morre um Gato na China, por exemplo, é uma comédia de costumes
narrada em três atos. Trata da vida de um casal já desgastado pelo cotidiano: Liana, uma
romancista que abre mão de seu sonho de ser uma escritora famosa para sustentar a casa e o
marido; Gastão, mal-sucedido na vida e desempregado, tendo empobrecido por causa de sua
necessidade interior de ajudar os outros.280 Roque Lázaro disse que ela foi “ensaiada
exaustivamente” e ao rememorar sobre o processo de construção de seu personagem, Gastão,
citou as indicações que Antônio Mário lhe fazia: “Ele dizia ‘... Roque você tem que tirar o
máximo disso aqui. Está pouco... você pode ir muito além disso aí. Vá pra casa, vá buscar seu
Gastão. Ainda não chegou’”.281
A mudança se apresentou quando essas comédias abriram passagem para outros
autores que marcaram, também, uma nova fase do teatro no Brasil, dentre eles: Navalha na
Carne de Plínio Marcos, Corpo a Corpo de Oduvaldo Viana Filho e O Pagador de Promessas
de Dias Gomes. Esses autores escolhidos por Antonio Mário fazem parte de uma geração de

278
Roque Lázaro foi o único integrante do Natureza que consegui localizar. Outros faleceram ou não consegui
contatar.
279
Os roteiros das peças citadas foram as únicas referências de fonte, e não estão datados.
280
Roteiro da peça Morre um Gato na China de Pedro Block. S/d. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
281
Entrevista cedida por Roque Lázaro à autora em 28 de outubro de 2017.
81

dramaturgos no Brasil responsável por “nacionalizar” as produções teatrais: Dias Gomes,


Oduvaldo Vianna Filho (“Vianninha”), Plínio Marcos e Maria Clara Machado (dos textos
infantis) marcaram o período de maior produção na dramaturgia nacional durante a ditadura
militar, tendo em vista as preferências pelos textos estrangeiros que permaneceram por anos
como base do “Teatrão” brasileiro. Identificam-se pelo engajamento político nas artes e pela
influência mútua que vivenciaram durante o período de efusão do teatro.
Já se fez menção aqui à entrevista em que Antonio Mário falava sobre seus autores
referenciais no teatro. Nessa mesma fonte ele exprime sua opinião acerca do panorama do
teatro nacional moderno, incluindo-se à temática, a necessidade de libertação de um
“colonialismo cultural” (como definido na pergunta da entrevista). Ao ser questionado sobre
como o Teatro Moderno contribuiu para a cultura brasileira, respondeu que o fez

pela libertação das influências estrangeiras, principalmente do teatro


italiano e francês, vindo criar uma nacionalista dramaturgia com o
surgimento de teatrólogos comprometidos na produção da “coisa nossa” tal
como Joracy Camargo precursor do teatro social “Deus Lhe Pague” e a
sequência de tantos outros autores que deram continuidade a essa mesma
linha verde e amarela em nosso teatro, como por exemplo Antonio Calado
“Pedro Mico”, Ariano Suassuna “O Auto da Compadecida” e tantos
outros.282

A “linha verde e amarela” de que fala, e a menção feita a tais peças, logo em seguida,
refere-se a um tipo específico de teatro, o que passara a se libertar dos ditames “Teatrão”,
bilheterista e elitista. Deus Lhe Pague é uma comédia carregada de crítica social que trata das
condições de precariedade impingidas pelo capitalismo ascendente. “Pedro Mico”, além da
abordagem social, é uma peça que denuncia a discriminação racial e, consequentemente, o
abismo social entre as raças no país. Ariano Suassuna segue na mesma perspectiva do teatro e
de uma linguagem artística genuinamente brasileira, inclusive também buscada pelo próprio
Dias Gomes. Ou seja, o que Antonio Mário deixou evidente, foi de seu reconhecimento sobre
o chamado “teatro novo” tratado desde o início desse texto, a partir do qual matiza-se o
engajamento social e racial .
Reconheceu um “teatro reivindicatório e de “nova concepção estética” a partir de
nomes como Oswald de Andrade e Nelson Rodrigues, autores que, em sua visão, são basilares
282
Entrevista cedida por Antonio Mário dos Santos aos alunos da Faculdade de Formação de Professores de
Alagoinhas “visando oferecer subsídios para formulação de trabalho didático” – Documento sem data. Acervo
pessoal de Lívia Santarém.
82

na concepção “modernista” no que tange ao debate sobre a realidade brasileira.283 E como


mais um indício de suas ressalvas sobre a dependência nacional da cultura colonial, afirmou:

Em princípio, não sou dos que acreditam já tenha a nossa cultura se


desvencilhado do rasgo do colonialismo, isto é, das imposições danosas do
estrangeiro em nosso desenvolvimento cultural, da alienação intelectual dos
nossos costumes, haja vista a luta com que nos hemos combatido a respeito
da nossa música. Todavia, deante dos fatos e vários fatos que propugnaram
por uma mudança de rumos na concepção estética e variante a dialética em
todo o setor artístico brasileiro, inclusive no teatro, não podemos deixar de
resaltar o movimento revolucionário modernista de 1922 – A Semana de
Arte Moderna[...].284

Na perspectiva de “nacionalizar” o teatro, estabelece-se uma relação, com outro grupo


teatral do município, chamado Meninos da Terra, cujo período de atividade aconteceu em
paralelo ao Natureza, tendo ambos participado dos Encontros de Cultura de Alagoinhas. O
grupo montou o espetáculo “O Próximo” de Terrence Macnally (dirigido por Antonio
Barreto). Justificou a escolha da peça estrangeira, demonstrando preocupação com a
importância de se valorizar peças brasileiras:

O grupo Meninos da Terra não se propõe a montar peças estrangeiras. A


nossa preocupação é mostrar ao público trabalhos que venham sensibilizar a
todos. Por isso é que estamos montando uma comédia importada e logo após
começaremos com trabalhos nacionais. Terrence Macnally brinca com os
personagens que se tornam a própria personalidade do autor. O propósito do
autor é fazer a plateia rir e dentro desse sorrir despertar o homem para a
realidade que o cerca.285

Um olhar atento ao que foi discutido linhas atrás sobre os panfletos do Dias Gomes,
ilumina a semelhança do texto de Antonio Barreto com os dizeres de Antonio Mário, quando
este demonstrava como intencionava atingir o público ao trabalhar comédias – não só fazer
rir, mas reforçar a função social de educar, fazendo rir.

283
Entrevista cedida por Antonio Mário dos Santos aos alunos da Faculdade de Formação de Professores de
Alagoinhas “visando oferecer subsídios para formulação de trabalho didático” – Documento sem data. Acervo
pessoal de Lívia Santarém.
284
Ibidem.
285
Programação referente ao III Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso de 25.10.1980, exposto
na sala Iracy Gama - CENDOMA/FIGAM.
83

Ao que parece, Antonio Mário tendia a preferir textos que pudessem atrair a plateia
pelo riso, ainda que trouxessem enredo denso. Sua nova fase com o Natureza, das antigas
comédias, enveredou pelo caminho do teatro de crítica social, mesmo mantendo o apelo pelo
risível. Em 1982 ele trabalhou Navalha na Carne (1967) de Plínio Marcos (1935-1999).286
Conta a trama de uma relação abertamente violenta entre Vado, um cafetão, e Neusa Suely,
uma prostituta. O enredo tem ato único e gira em torno do roubo de um dinheiro que Suely
havia deixado para Vado. E através de ameaças, diálogo repleto de palavrões e agressões
contra a mulher, Vado acusa Suely de tê-lo enganado. Em determinado momento outro
personagem entra em cena, Veludo, um homossexual a quem Vado e Neusa Suely desferem
injúrias como “bicha”, “veado”, e depois de ameaçá-lo – Vado com socos e Neusa com uma
navalha – descobrem que foi ele quem roubou o dinheiro. E assim a trama segue com cenas
de violência física, menção a maconha, linguagem abertamente obscena.287 Em suma, três
personagens com fortes características psicológicas, presos num quarto de hotel de quinta
categoria, expondo suas vidas miseráveis e vulneráveis ao absurdo das relações humanas.
Tomando como referência o roteiro, ao que parece, não houve qualquer modificação ou
censura de falas no texto. Estava intacto, sem nenhum risco ou anotação.
Corpo a Corpo (1970), de Oduvaldo Vianna Filho, o “Vianninha”, faz parte de um
momento em que as produções do autor ganharam caráter mais profundo com personagens
psicologicamente densos:

Neste sentido “Corpo a corpo” não é uma experiência formal nova. É


tradicional. Mas a sensação de ir descamando a realidade, de ir tirando
pedaços e pedaços de sua superfície para chegar mais e mais até a sua
intimidade, seus núcleos, foi o meu propósito. A tonteira da razão. O nunca
acabar de relações que dão ao indivíduo, tiram-lhe a razão, formam novas
sínteses, desbordam de novo. Uma sanfona de Luís Gonzaga, esticando,
tocando, tocando sempre.288

A peça em questão, originalmente, conta com dois atores: Vivaqua, um publicitário


frustrado por não ser cineasta, e por ironia do destino, acaba de ser demitido, e sua noiva
Suely que aparece nas primeiras cenas somente. O conflito e drama interior, mencionado no

286
Roteiro da peça Navalha na Carne de Plínio Marcos (material datilografado por Antonio Mário em 01
outubro de 1982). Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
286
Entrevista cedida por Roque Lázaro à autora em 28 de outubro de 2017.
287
MARCOS, Plínio. Navalha na Carne (peça em um ato). Disponível em:
http://joinville.ifsc.edu.br/~luciana.cesconetto/Textos%20teatrais/Pl%C3%ADnio%20Marcos/PL%C3%8DNIO
%20MARCOS%20-%20Navalha%20na%20carne.pdf. Acesso em 01 ago 2021.
288
ARAÚJO, Sandra Rodart. Corpo a Corpo (1970) de Oduvaldo Vianna Filho: do texto dramático à
encenação do Grupo Tapa de São Paulo (1995). Dissertação [mestrado] Universidade Federal de Uberlândia,
Programa de Pós-graduação em História. Uberlândia – MG, 2006, p. 26.
84

trecho acima pelo próprio autor, constroem o personagem principal, por estar ele, inserido
numa sociedade de consumo, e perceber o que se tornou diante de tal condição. Assim, a
trama se desenvolve sob a “descamação da realidade”. Antonio Mário transformou a peça em
monólogo e como o cartaz anunciava o nome do ator soteropolitano Ary Meirelles,
provavelmente ele o representou.289
Como o roteiro de Corpo a Corpo estava incorporado aos seus respectivos
documentos de descrição dos materiais cenográficos, foi possível acessar a lista meticulosa
com tudo que ia ao palco, inclusive um roteiro específico para o iluminador e outro para o
sonoplasta. O espetáculo aparenta ter sido completo por conta dos detalhes calculados a nível
profissional. Custos com propaganda, bilheteria, material elétrico, de carpintaria, direitos
autorais da dramaturgia, cachê para o elenco, e demais funções técnicas, tudo o que cabe a
uma montagem criteriosa foi planejado pelo diretor.290 Se tomarmos como referência o ano
em que ele se aposentou pelo IBGE, 1984, no ano de produção da peça (1986) poderia ele ter
disposto de tempo maior para produzir um espetáculo dessa proporção.291
Finalmente, a discussão chega a Dias Gomes (1922-1999). O autor contribuiu
largamente para evitar que a produção dramatúrgica não cessasse após do golpe de 1964,
traduzindo mais de 500 textos de teatro, o que foi facilitado pelo processo de ter aprendido
muitas línguas.292 Assumidamente subversivo, teve, grande parte de sua produção proibida
pela censura, devido ao conteúdo ser considerado marxista.293 Sua dramaturgia se insere nos
marcos do teatro popular, que valoriza aspectos da miscigenação brasileira, da diversidade
cultural, religiosa e ideológica. Na busca pela identidade de um teatro “genuinamente”
brasileiro, Dias Gomes tornou-se indispensável para a afirmação de uma cultura nacional
antropofágica, ou seja, que “devora” os valores e legados de todas as suas raízes, negando o
nacionalismo ufanista promovido pelo ISEB. Esses aspectos, visivelmente, nortearam a
escolha do nome Dias Gomes para o primeiro grupo montado por Antonio Mário e seus
alunos do curso técnico: um teatro acessível que incorporasse à sua ação a valorização da
“cultura popular”.

289
Cartaz referente à apresentação do espetáculo Corpo a Corpo (Oduvaldo Vianna Filho)/ direção de Antonio
Mário dos Santos. s/d. Arquivo Pessoal de Lívia Santarém.
290
Montagem da peça Corpo a Corpo de Oduvaldo Vianna Filho. s/d. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
291
Documente referente à aposentadoria de Antonio Mário, 1984. Acervo pessoal de Livia Santarém.
292
SANTOS, Priscila Godinho Martins dos. O Pagador de Promessas em movimento: a trajetória da obra de
Dias Gomes dos palcos ao cinema (1959-1969). Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia.
Departamento de Educação. Mestrado em História. Alagoinhas, 2019, p. 39.
293
Idem, ibidem, p. 44.
85

O Pagador de Promessas, dirigida pelo diretor já com o grupo Natureza, na década de


1970, conta a história de Zé do Burro que, ao fazer uma promessa para Iansã, orixá do
Candomblé, se vê na obrigação de levar uma cruz do interior do sertão baiano à Igreja de
Santa Bárbara, em Salvador. Ao concluir sua jornada, é impedido pelo padre católico da
Igreja. O texto faz referências ao momento político de 1960 e o choque cultural entre o meio
rural e o urbano, ao trazer a personagem da repórter anunciando que a situação de Zé do
Burro não passava de um ato de protesto messiânico pela Reforma Agrária. O desenrolar da
trama culmina com a morte do protagonista sem que ele concluísse seu objetivo.294
Ao associar Iansã do Candomblé a Santa Bárbara do Catolicismo, o autor revela os
elementos de miscigenação e aculturação presentes na trajetória histórica de setores
brasileiros marginalizados. Zé do Burro é a personificação da fé e ingenuidade do homem
sertanejo retratado na peça. Como representação da cultura subalternizada, é “engolido” pela
cultura hegemônica ao entrar em contato com ela na capital. No entanto, na cena final, através
de um conceito antropofágico, os personagens subalternizados interpretados pelos capoeiristas
“devoram” simbolicamente a cultura hegemônica ao conseguir fazer a cruz entrar na Igreja
carregando o corpo de Zé do Burro.
Roque Lázaro participou do espetáculo com o papel do “Bonitão”, o gigolô que
conquistou a esposa de Zé do Burro. Segundo ele, um dos trabalhos mais bonitos do
Natureza. Pode ter sido espetáculo referência para o grupo, uma vez que foi mencionado com
semelhante entusiasmo pelo Jornal da Bahia: “[...] o grupo já montou peças de Tchecov a
Dias Gomes, como ‘O Pagador de Promessas’ apresentada em Praça pública para uma plateia
inicialmente curiosa formada por moradores de bairros, que terminou aplaudindo
calorosamente”.295
O final de 1970 e início de 1980 foi um momento político propício para montar os
espetáculos que fugiam do âmbito das comédias “inofensivas” e que foram proibidas pelos
aparatos de repressão na década de 1960, em outros estados. Principalmente considerando o
fato de que depois de 1966 foi criada a Acessoria de Segurança e Informações Regionais
(ASIR), estratégia que fez com que o braço da censura chegasse de forma mais eficiente aos
estados e suas cidades. Assim, peças de teatro e demais materiais apreendidos deveriam “ser

294
GOMES, Dias. O Pagador de Promessas. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
295
Jornal da Bahia, 2 de jul. 1979.
86

encaminhados ao DOPS, através de suas sedes estaduais, os DEOPS, que, resistindo ao


tempo, mantinham-se atuantes na defesa da ordem pública”.296
A ação da censura se arrefecia, mas se mantinha. Em Alagoinhas, por exemplo, Roque
Lázaro relatou que, até 1985, Antonio Mário mandava as peças para serem aprovadas. No
entanto, nenhuma foi censurada, ainda que o órgão existisse, a ação já estava enfraquecida.
Desde 1978, o departamento de Censura contava até então com 3 censores somente, em cada
um dos Estados, sendo 42 ao todo, em Brasília.297
Se desde 1975 já se falava em “distensão lenta e gradual”, tornava-se uma
“ginástica”,298 que se apresentava como contraditória diante de uma “nova onda de
endurecimento” configurada por duas vertentes: “repressão” e “negociação lenta”. Enquanto o
presidente determinara o fim da censura prévia nos jornais, por outro lado, a caça aos
comunistas tornou-se “cirúrgica”.299 Nesse ano de 1975, Alagoinhas se tornaria sede do único
centro de tortura clandestino da Bahia – A “Fazendinha”,300 assim chamada por ser localizada
no meio de um matagal na BR, consistia num galpão aberto onde os militantes do PCBR eram
levados de diversas localidades – principalmente de Salvador – para serem torturados através
da “Operação Radar”. Criada sob o governo Geisel, tinha o objetivo de desarticular o PCB e
prender seus militantes. Na cidade, as sessões de tortura foram comandadas pelo coronel
Carlos Alberto Brilhante Ulstra (1932 - 2015) – que também era chefe da operação – e se
apresentava como “Dr. Luiz Antônio”, além de contar com a presença de Sergio Fleury.301

296
COSTA, op. cit, pp.198-199. Duas das peças de Plínio Marcos, por exemplo, só foram liberadas depois de
1980, Barrela e Abajur Lilás, espetáculos que, como Navalha na Carne, também traziam temas sociais sensíveis
como violência, gênero e sexualidade. O autor que até então havia sido proibido de exercer suas atividades
artísticas profissionais, inclusive como comentarista esportivo e ator, não aceitou o “voto de desagravo” do
Conselho Superior de Censura, no momento da liberação de suas peças: “A censura existe e continua existindo.
Não foi alterada nenhuma vírgula da Lei de Censura e a qualquer momento a censura da ditadura pode retirar do
palco algum trabalho já encenado”.Fala de Plínio Marcos (Ver: COSTA, op. cit., p. 203).
297
FRANCO, op. cit., p. 201.
298
Termo “ginástica” foi utilizado na matéria “Colégio Eleitoral, Vergonha Nacional” pelo jornal do Comitê
Político Unificado - Boletim Especial (Salvador), fev. 1984, p. 2.
299
Segundo Pugliese em depoimento, “a guerra foi cirúrgica; ‘pega os melhores quadros do partido comunista e
mata’”. Série Conhecer para não Esquecer – Ivan Pugliese.2019. 1 vídeo (2’12”). Publicado pelo Portal
Multimídia – IRDEB / Site do Governo Federal. Disponível em: http://www.irdeb.ba.gov.br/26-
docs/media/view/6507 Acesso em 01 ago 2021.
300
Em 2014, ano de produção da fonte da comissão da verdade, a Fazendinha ficava na BA- 096. Atualmente, é
provável que a BR tenha mudado de nome.
301
Segundo depoimento de Marco Antonio, ex-dirigente do PCB, na Bahia, para a comissão da Verdade, o
Coronel Ulstra falou, ironicamente, para ele e os demais presos: “‘olha, vocês são comunistas, vocês são
patriotas equivocados, respeito vocês, é meu trabalho... Eu fui inclusive treinado pela KGB’. Com ironia e
sarcasmo. ‘Todas as técnicas que utilizei com vocês, eu aprendi na Rússia, com a KGB’. Tripudiando da gente.
‘É... mas eu quero o seguinte: certamente, lá na frente, vocês vão ser soltos, quem sabe a gente vai se encontrar e
se isso acontecer, eu não quero que vocês saiam da calçada e nem se desviem, venham falar comigo. Porque,
quem sabe a gente vai tomar uma cerveja junto, um café, junto. Eu tô fazendo meu trabalho, respeito vocês’”.
Site do Arquivo Nacional. Comissão da Verdade -
BR_RJANRIO_CNV_0_CVE_00092_001004_2014_37. 16 de maio de 2014. Disponível em:
87

Entre 1975 e 1978 não há registro de produções de Antonio Mário além de O Pagador
de Promessas. Não se sabe se suas atividades foram interrompidas, por causa da condição em
que Alagoinhas se encontrava. A cidade que amargava sob a recente atividade de repressão na
Fazendinha, servia de palco para a prisão da atriz alagoinhense Albertina Rodrigues detida
pela ditadura em 1977. Assim como Antonio Mário, Albertina também foi aluna da “escola de
teatro da Universidade Federal da Bahia”.302 Ela representa outra perspectiva da atuação de
artistas no período, pois era, abertamente, militante política, tendo participado do movimento
estudantil nacional (foi tesoureira do Diretório Acadêmico da UFRJ) e da luta armada entre as
décadas 1960 e 1970.303 Albertina R. ingressou na Academia de Letras e Artes de Alagoinhas
(ALADA), por sua atividade no teatro, ocupando a cadeira nº 26, anteriormente pertencente
ao já mencionado ator e diretor Marcel Boiron.304
Antes de ser presa, a artista e militante havia se exilado na Espanha por estar
ameaçada no Brasil, sendo que aqui havia um pedido de prisão “em aberto desde sua saída”
do país. Foi presa próximo ao hospital Dantas Bião e “conduzida ao exército no quartel de
Amaralina”.305 Albertina foi uma mulher cuja vida, tanto pessoal, quanto político-artística foi
marcada por comportamentos que destoavam da moral social burguesa. Sua trajetória se
entrecruza com a de Antonio Mário na medida em que ambos dividiram o mesmo cenário de
produção artística, onde os órgãos de repressão eram atuantes. Entretanto, ao passo em que
Albertina era presa pela ditadura, Antonio Mário dirigiu a montagem de um espetáculo como
O Pagador de Promessas, e fora noticiado pelo Jornal da Bahia, em 1979, como peça
“calorosamente aplaudida” por um público que foi se formando espontaneamente. 306 Ou seja,
não houve aparente interferência de uma censura moral ou política ao espetáculo. As formas
de existência e resistência de cada um desses artistas refletiam objetivos e táticas de
sobrevivência diferentes diante da ditadura. Se Albertina se punha contra as instituições do
estado, Antonio Mário fazia parte desses âmbitos para se integrar.
Não obstante, as peças dirigidas por Antonio Mário antes e após o hiato que coincide
com o ano da Fazendinha, foram infantis como O Pequeno Príncipe em 1970, O Boi e o

<http://sian.an.gov.br/sianex/consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodReferencia_id=13
19579&v_aba=1> Acesso em 3 de novembro de 2020, às 12horas.
302
A trajetória de Albertina Rodrigues foi analisada em dissertação de mestrado por Jontas Pereira. Ver: SILVA,
Jonatas Pereira da. A arte de resistir/(re)existir: marcas no corpo e subjetividades na trajetória de Albertina
Rodrigues Costa (1964-1978). Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-graduação da Universidade Federal da
Bahia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2019, p. 21.
303
Das produções sobre artistas na cidade, a dissertação sobre Albertina Rodrigues traz a nível de comparação,
apesar de o trabalho focar mais nas atividades políticas dela, e menos no âmbito artístico. (Idem, ibidem).
304
Idem, ibidem, p.53.
305
Idem, ibidem.
306
Jornal da Bahia, 2 de jul. 1979.
88

Burro a Caminho de Belém, em 1974, e O Vestido de Estrela Flor em 1978. Portanto,


observando esse panorama geral dos espetáculos produzidos nessa nova fase teatral, a
associação das escolhas ao período em que foram montadas não deve ter acontecido
inconsequentemente. Em especial, optar pelo gênero infantil pode ter sido oportuno e por isso,
merece uma discussão específica.

3. O teatro infantil e outras experiências

O Pequeno Príncipe (adaptação para o teatro) pode ter sido a peça que inaugurou a
experiência do diretor com teatro infantil, conforme apontam as fontes.307 Foi montada em
1970 para ser apresentada no Festival de Encerramento da Campanha de Alfabetização de
Adultos e contou também com outro espetáculo dirigido por ele, O Pedido de Casamento, de
Anton Tchecov. Em 1970, o diretor ainda estava em fase de transição entre o fim do Dias
Gomes e a formação do Natureza, portanto, não necessariamente a equipe foi composta por
atores remanescentes de um ou aspirantes do outro. O que se sabe é que na ficha técnica
foram incluídos monitores e coordenadores do Movimento Brasileiro de Alfabetização -
MOBRAL.308
De modo geral, no programa do Festival podem ser encontradas as descrições “A
EQUIPE oferece a todos os Monitores e Coordenadores do curso - O Pedido de Casamento -”
e na outra página “Os Monitores e Coordenadores ofertam a todos os componentes da
EQUIPE - O Pequeno Príncipe-”. Essa equipe pode ter sido formada pelos próprios membros
do curso de Alfabetização de Adultos, e, ao que parece, com intento de ser apresentada uns
para os outros, não necessariamente voltada apenas ao público infantil.
Pessoas presentes tanto em tal “Equipe” quanto na “monitoria” compuseram
subcomissões do MOBRAL – Alagoinhas, que foi oficialmente instalado no mesmo mês do
Festival, em 24 de agosto de 1970. Tendo como presidente, o prefeito da época, Antonio

307
O uso da nomenclatura “teatro infantil” refere-se a um teatro voltado para o público infantil. Apesar de abrir
margem para a compreensão de que o elenco foi composto por crianças, já se sabe que assim não o foi com O
Pequeno Príncipe. Pois, não há indícios de que Antonio Mário escalonou crianças para quaisquer dessas
montagens infantis.
308
Nacionalmente, o MOBRAL foi criado através da Lei Nº 5.379 de 15 de dezembro de 1967 ainda em fase
inicial. Começou a se desenvolver somente na década de 1970, atuando inicialmente em trinta e duas cidades e
se expandindo a partir de setembro do mesmo ano. CUNHA, Luís Antônio. Movimento Brasileiro de
Alfabetização (MOBRAL). S/d. Site FGV CPDOC. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/movimento-brasileiro-de-alfabetizacao-mobral.
Acesso em: 6 fev. De 2022.
89

Figueiredo Carneiro (1967 - 1971), o coordenador e também, juiz da vara civil, José Justino
Teles, era responsável pela Equipe de Promoção Humana, esta que promoveu o Festival.309
Célio Machado (diretor da Radio Emissora), que foi responsável pelo som no espetáculo,
compôs a subcomissão de propaganda e motivação do MOBRAL.310 Um ano depois,
Deusdeth Matias que participou da equipe técnica do Festival em “controle”, também compôs
a mesma subcomissão dirigida por Machado.311 Dentre esses novos membros definidos,
Antonio Mário foi nomeado como parte da subcomissão de Levantamento, tendo como Chefe
o seu colega agente do IBGE, Luiz Gonzaga de Oliveira Brito.312 Cabia-lhe, portanto, fazer o
levantamento das entidades de treinamento profissional existentes.313
Antonio Mário não deve ter se comprometido integralmente ao MOBRAL, para além
do festival que ele dirigiu, pois os cursos da área de trabalho tiveram carga horária de 60 e 80
horas.314 Na década de 1970 ele trabalhava ainda no IBGE, e desenvolvia atividades extras.
Além disso, sua assinatura só consta em uma ata de reunião, a de posse da nova comissão em
12 de abril 1971.315
Voltando ao referido, a peça O Pedido de Casamento abriu o evento. Ao fim, houve
um intervalo, e em seguida, apresentação de O Pequeno Príncipe. Com tradução de Dom
Marcos Barbosa e sonoplastia com músicas de Beethoven, foi uma adaptação da obra de Saint
Exupery, para dramaturgia, feita pelo próprio Antonio Mário.316 Antoine Saint Exupery (1900
- 1944), além de escritor era também aviador, poeta, e humanista, características que
influenciaram fortemente na trama filosófica de O Pequeno Príncipe, um clássico da literatura
francesa. Exilado nos Estados Unidos, conseguiu publicar a primeira edição em 1943 no país.
Em 31 de julho de 1944, desapareceu numa missão sobre a França, e somente um ano depois,

309
Ata de reunião sobre o Mobral – Alagoinhas, p. 6. 7 de abril de 1971. Pasta: “Mobral”. Arquivo Público de
Alagoinhas/Alagoinhas – BA.
310
Essa figura já foi citada no primeiro capítulo – o possível descendente do padre fundador de Alagoinhas,
história que foi desmistificada por Antonio Mário em sua monografia. Ambos, agora, encontravam-se atuando
no mesmo espetáculo.
311
Subcomissão de propaganda e motivação: Chefe - Getúlio Machado/ Membros: Célio Machado (Diretor da
Rádio Emissora de Alagoinhas), Reinaldo Neves, Deusdeth Matias / Ata referente à formação de subcomissões
do Mobral – Alagoinhas, p. 13. 7 de abril de 1971. Pasta: “Mobral”. Arquivo Público de Alagoinhas/Alagoinhas
– BA.
312
Ata de reunião sobre o Mobral – Alagoinhas, p. 6. 7 de abril de 1971. Pasta: “Mobral”. Arquivo Público de
Alagoinhas/Alagoinhas – BA.
313
Documento referente à caracterização dos cursos oferecidos pelo MOBRAL – Alagoinhas, p. 2. s/d. Pasta:
“Mobral”. Arquivo Público de Alagoinhas/Alagoinhas – BA
314
Documento referente à caracterização dos cursos oferecidos pelo MOBRAL – Alagoinhas, (número da página
danificado). s/d. Pasta: “Mobral”. Arquivo Público de Alagoinhas/Alagoinhas – BA.
315
Ata de reunião sobre o Mobral – Alagoinhas, p. 7. 12 de abril 1971. Pasta: “Mobral”. Arquivo Público de
Alagoinhas/Alagoinhas – BA.
316
Panfleto avulso distribuído na época referente ao Festival de Encerramento da Campanha de Alfabetização de
Adultos. Direção de Antonio Mário dos Santos, 1970. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
90

o livro finalmente foi publicado em seu país de origem.317 Deixou com o conto o alerta aos
leitores, de que a história deveria ser “levada a sério”. A fábula repleta de alegorias sobre as
relações humanas e a necessidade de busca de sentido na produção dessas relações, conta a
história de um Príncipe viajante que encontra diversos seres em sua jornada, dentre eles, uma
raposa que o ensina sobre o ato de cativar. De modo geral, os animais do conto podem ser
vistos como seres oprimidos que “preservam a sabedoria dos laços sociais”, e nesse contato, o
príncipe, que é uma criança, aprende sobre amor, amizade, tempo e perdas.318
Cabe refletir sobre o meio e o momento em que a fábula foi adaptada por Antonio
Mário em Alagoinhas. O MOBRAL foi implantado em substituição ao método de
alfabetização Paulo Freire, este interrompido pelo governo militar imediatamente em 1964,
devido à premissa de conscientização nele contida. Antes, em 1963, Paulo Freire havia sido
encarregado pelo “governo federal para desenvolver o Programa Nacional de Alfabetismo e
elaborar um Plano Nacional de Alfabetização, pois seu trabalho educativo, nascido no âmbito
do Movimento de Cultura Popular – MCP, em 1961 (Recife), vinha ganhando projeção desde
a criação em 1960”.319 Assim, o braço forte dos governos ditatoriais a partir de 1970, ano que
foi fundado O MOBRAL em Alagoinhas, estreitou ainda mais o controle pela educação. Esta
passou a ser gerida através do Plano Nacional de Desenvolvimento, e portanto, decidida no
âmbito da secretaria de Planejamento da Presidência da República, o que desconsiderou a
participação dos educadores no Ministério da Educação.320
Foi constituído, portanto, como um sistema de alfabetização de adultos cuja proposta
fora usurpada do método Paulo Freire, mas com perspectiva oposta. No método Paulo Freire
visava-se o “existenciar-se’ a partir da palavra, um processo de afabetização como meio de
libertação das amarras sociais e históricas, fazendo com o que o indivíduo tomasse
consciência e autonomia de seu processo histórico e, em coletivo, transformasse sua realidade.
O Movimento deturpou a concepção libertária através de uma educação tecnicista cujo tempo
que se valorizava era o tempo da máquina, sob o pretexto de que seus objetivos configuravam
a formação de “um homem moderno”. O texto de treinamento para profissionais do curso foi

317
SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O Pequeno Príncipe. Rio de Janeiro: Agir, 2009.
318
ALVEZ, Giovanni; SOUZA, Luciene Maria de. Trabalho e Amor: Uma leitura sócio-ontológica de O
Pequeno Príncipe, de Antoine Saint-Exupery. Plural, Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
USP, São Paulo, nº 14, 2007, pp. 103-118, p. 109.
319
BELUZO, Maira Ferreira; TONIOSSO, José Pedro. O Mobral e a alfabetização de adultos: considerações
históricas. Artigo científico publicado em Cadernos de Educação: Ensino e Sociedade: São Paulo, 2015.
320
Planos Nacionais de Desenvolvimento – PNDs - atravessaram os 3 últimos governos ditatoriais no Brasil. O 1º
PND, passou a ser gerido entre 1972 e 1974, durante o governo Médici; o 2º entre 1975 e 1979, durante o
governo Geisel; e o 3º entre 1980 e 1984, durante o governo Figueiredo. Ver: Retrospectiva Histórica da
Alfabetização de Adultos no país (material de formação direcionado aos professores do MOBRAL -
Alagoinhas), p. 15. Pasta: “Mobral”. Arquivo Público de Alagoinhas/Alagoinhas – BA.
91

explícito: “a população do ponto de vista econômico pode ser considerada como fator de
produção essencial ao processo de desenvolvimento”.321
É interessante pensar que a história do Pequeno Príncipe propõe uma reflexão oposta
a essa lógica do MOBRAL. Portanto, enquanto este visa à formação do “homem total”
essencial na perspectiva econômica, mercadológica, em que seu próprio tempo deve também
funcionar em torno do capital; o “homem-total”, na perspectiva de Saint Exupery, encontra
sentido quando pode ir além das “relações fetichizadas e abstratas” produzidas pelo
capitalismo. A fábula nos propõe valorizar o tempo de vida, e não deixá-lo ser esgotado pelo
tempo do capital, pois é através dele que se pode “cativar” e produzir tais sociabilidades: “a
captura do tempo de vida do capital compromete a produção do amor como valor primordial
da sociabilidade”.322 Ou seja: o capital suga o nosso tempo de vida, também esse que deveria
ser dedicado ao tempo do cuidar, o tempo do amor.
Aqui, chegamos a um ponto de encontro entre Saint Exupery e a proposta do método
Paulo Freire, ambos propõem a emancipação do sujeito diante de seu processo de reificação
frente ao capitalismo. Ao passo que, na perspectiva paulofreireana, o amor é tido como
“objeto” indispensável na relação ensino aprendizagem, Saint Exupery, propõe esse amor,
uma categoria ontológica do ser, como “objeto” de libertação do “homem total”, portanto,
como via de emancipação do próprio capital.323
A relação entre os personagens da raposa e do Pequeno Príncipe, segundo Alves e
Souza, consiste numa analogia à relação hierárquica opressor-oprimido, uma vez que a
Raposa representa o ser oprimido, por ser caçada pelo ser humano, e o Príncipe, um ser
humano pertencente à categoria dos que caçam, e que são portanto, os opressores. Apesar
disso, o fato de o Príncipe ser criança e não um caçador adulto deixa, na narrativa, uma fresta
de esperança para a humanidade.324 Se há possibilidade de a Raposa ser cativada por uma
criança humana, há libertação desta relação hierárquica. Diante disso, a produção de amor e o
ato de cativar promovidos pela libertação dessa hierarquia, instituem a “sociabilidade plena do

321
Treinamento GIS – Maio de 1976” – documento de formação direcionado aos profissionais do MOBRAL –
Alagoinhas, p. 1. 1976. Pasta: “Mobral”. Arquivo Público de Alagoinhas/Alagoinhas – BA.
322
ALVEZ; SOUZA, Op. cit., p.11.
323
“Saint Exupery sugere que na sociedade do capital, a criação de laços interpessoais e a produção do amor,
como sugerimos acima, podem ser um nexo de resistência à modernização persistente. A raposa diz: ‘Serás para
mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...’ Estamos diante de uma perspectiva contingente de
resistência pessoal à voracidade da abstratividade mercantil que penetra na esfera das relações sociais,
fetichizando relações humanas e dissolvendo a singularidade pessoal e a subjetividade das pessoas”. (Idem,
ibidem) p.11.
324
Idem, ibidem.
92

ser no interior do sistema do capital”.325 O amor torna-se, portanto, um ato subversivo diante
da vida.
Na peça, a raposa foi representada por Maria das Graças, outra irmã de Ray Creuza e
que fez parte do grupo Natureza junto com Miné.326 Ao trabalhar determinados temas de certa
profundidade, bem como textos que exigem densidade dos personagens a serem construídos, é
possível imaginar as referências que Antonio Mário utilizou na condução do elenco para a
montagem das duas peças. Não é difícil pensar que a representação de ambas atribuíssem um
significado contrário aos anseios do MOBRAL. Uma peça infantil que cumpriu o papel de
sensibilizar o espectador para o despertar de um ser humano que reflete sobre sua condição
diante do mercado. Ou seja, uma possibilidade de questionar sobre esse novo ser em formação
diante da sociedade modernizada e industrializada, e quais valores ele deveria cultivar para
subverter a lógica de sociabilidade “fetichizada” pelo capital.
Em 1978, o diretor montou a fábula O Vestido de Estrela Flor (Maria Lúcia Amaral),
também com o grupo, e foi apresentada no 1º Encontro Cultural de Alagoinhas (como será
visto no próximo capítulo).327 Nesta, Roque Lázaro que apareceu no panfleto com o nome
artístico “Temogin Laine”, representou o personagem “Sino de Ouro (A Brisa). Como
sempre, o diretor registrou sua mensagem sobre o espetáculo no programa:

“Como se o hábito ainda fizesse o monge, é que nós, que nos dizemos gente,
fazemos de VESTIDOS a única ponte para alcançar as culminâncias – para
ser ESTRÊLA – despresando[sic] a sibgeleza [sic] e a simplicidade que nos
fará, cada vez mais, uma FLÔR.” Esta é a mensagem que Maria Lúcia
Amaral nos manda através de desempenho dos Bichinhos, das Flores e da
Brisa de sua encantadora peça Teatral.328

Além dessas, foi identificado um roteiro de O Boi e o Burro a Caminho de Belém, de


Maria Clara Machado, com provável data de 1974. Apesar de não se saber, ao certo, se foi

325
Idem, ibidem, p. 12.
326
Panfleto avulso distribuído na época referente ao Festival de Encerramento da Campanha de Alfabetização de
Adultos. Direção de Antonio Mário dos Santos, 1970. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
327
Maria Lucia Amaral foi escritora, jornalista e teatróloga. Ver: MARQUES, José Reinaldo. Entrevista – Maria
Lúcia Amaral – Uma vida dedicada a infância. 21 dez. 2007. Site Associação Brasileira de Imprensa
Disponivel em: http://www.abi.org.br/entrevista-maria-lucia-amaral/ Acesso em 4 fev de 2022.
328
No elenco – além de Roque Lázaro: Mayra Paz como Estrêla-Flor (a Rosa); H. Sá Barreto como Cri-Cri (O
Grilo); Fany Sena como Contente (A Margarida) e Havery Stivs como Tujura (A Abelha). Na ficha técnica:
Antonio Mário na direção, Marcos Jorge como Contra-regra; Suzane Brito em “Guarda-roupa feminino”; Sidney
Oliveira em “Guarda-roupa Masculino”; Yone Maya em Maquilagem; Lando Júnior na Iluminação; Balbino na
Sonoplastia. Programação referente ao I Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso,1978, exposto
na sala Iracy Gama - CENDOMA/FIGAM.
93

apresentada, houve ensaios, dos quais Roque Lázaro, junto com o Natureza, participou. É
interessante pensar que o O Boi e o Burro a Caminho de Belém,329 primeiro espetáculo em
que Antonio Mário atuou durante sua formação na Escola de Teatro da UFBA, viria a ser
revisitado por ele 18 anos depois (1974), em Alagoinhas.330 Essa foi, inclusive, uma peça,
recorrentemente montada no âmbito do teatro infantil nordestino na década de 1970, tendo em
vista o que a autora representou, historicamente, para o gênero em questão.
Maria Clara Machado (1921-2001), dramaturga de textos infantis fundou o Teatro
Tablado junto com Martin Gonçalves em 1948.331 Nome importante num período em que a
produção de textos teatrais voltados para o público infantil era escassa. As peças de Machado
fugiam à concepção de um teatro “abobalhado”, pelo fato de ser voltado ao público infantil.
Aliás, essa era uma questão levada em conta por alguns críticos, especificamente sobre a
difusão do gênero no nordeste. Segundo o crítico pernambucano, Valdi Coutinho, teatro para
crianças não deve ser compreendido nem realizado como forma de entretenimento gratuito. É
necessário que não se subestime sua importância, e que haja um “processo dialético entre
espetáculo e criança dentro da evolução espontânea do jogo dramático”. Do contrário, esse
“entretenimento gratuito” de cunho comercial, se torna meramente “show infantil” ou ainda
segue a linha do “falso didatismo” com estilo “tradicional de aulinha”, enredos com valores
maniqueístas, subestimando a capacidade da criança se colocar “diante de um conflito”.332 A
função intrínseca do teatro é provocar o estímulo emocional, isso precisa ser considerado
mesmo sendo o espectador, uma criança.
Em Salvador, críticos e colunistas de jornal compartilham da mesma queixa sobre esse
teatro cuja função se esvazia na plástica do espetáculo, e que se torna, tão somente, comercial.
Segundo Aninha Franco,

a partir dos anos 60, o gênero tornou-se uma fórmula infalível de fabricar-se
dinheiro. Os espetáculos eram feitos com intuito de produzir fundos para
montagens adultas ou para obter-se lucro sem muito trabalho. Textos
imbecilizantes, temas obsoletos, cenários e figurinos luxuosos, direções

329
Roteiro da peça O Boi e o Burro a Caminho de Belém Maria Clara Machado (material datilografado por
Antonio Mário). s/d. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
330
Essa data foi confirmada por Lívia em entrevista cedida à autora em 10 de setembro de 2017.
331
CARVALHO, op. cit.
332
Reflexão do crítico Valdi Coutinho publicada no Diário de Pernambuco – 21 de julho de 1979 com o Título
“Teatro infantil: o equívoco do rótulo”. A crítica está direcionada à situação do teatro infantil de Pernambuco,
mas pode ser pensada, de modo geral, para a situação da Bahia em se tratando das transformações da década de
1970. FERRAZ, Leidson. Teatro para Crianças no Recife – 60 Anos de História no Século XX. Vol. 1.
Recife: Edição do Autor, 2016, p. 195.
94

pouco criativas e elencos desequilibrados eram o expedientes utilizados pela


maioria dos grupos envolvidos com a linguagem há anos.333

É necessário perceber que o gênero ainda estava se estabelecendo, na Bahia, nesse


período. O teatro para crianças ainda engatinhava para consolidar-se como um gênero que
cumprisse sua missão e formasse plateia. Unindo todas essas questões ao contexto político em
que as proibições cerceavam o poder criativo dos artistas, a década de 1970 apresentou-se
como momento difícil para o setor, de modo geral. Inclusive pela política de grandes teatros,
que para se manter, precisavam investir no recurso do “bilheterismo”. 334 A questão sobre o
teatro infantil também pode ser vista como parte de um processo que acontecia com o teatro
de modo geral, resultado desse retraimento nas atividades artísticas. 335 Aninha Franco
observa:

Sem dúvidas, o departamento de censura arruinou o teatro brasileiro durante


esses anos, esvaziando-o de bons textos e de boas propostas. Em 1975,
artistas e produtores teatrais já estavam trabalhando com textos liberados
anteriormente, com besteiróis invetáveis ou com velhos clássicos de
dramaturgia universal destituídos de periculosidade. Escrever pra que então?
Em matéria imediatamente posterior ao incidente de Ringue, a Tribuna da
Bahia registrou o veto a 400 obras dramatúrgicas entre 1968 – 1975, no país,
numa média assombrosa de 50 textos por ano.336

Teria Antonio Mário, na década de 1970, se apegado a esses “velhos clássicos de


dramaturgia universal destituídos de periculosidade”, ao montar O Pedido de Casamento, ou
textos infantis, aparentemente inocentes, e por isso, “invetáveis”? Seria esse um movimento
de se proteger e proteger o grupo com cautela para que não “fosse chamado” a responder em
situação mais grave? Ou seria comodismo imposto pelos “Anos de Chumbo”?
De fato, na cena soteropolitana, o pós AI-5 provocou um certo comodismo,
movimento que pôde ser notado em outras capitais, e esse período de recessão pode ser
compreendido como tentativas do teatro se adaptar ao movimento de “castração artística”
cada vez mais latente. Mas como todo processo dialético de movimentos artísticos, o teatro se

333
FRANCO, op. cit., p. 220.
334
As montagens em Salvador, por exemplo, num espaço como o Teatro Castro Alves, desvalorizavam
produções locais ao servirem a “espetáculos visitantes de pouca qualidade, aos grupos folclóricos no período do
fluxo turístico e ao teatro infantil comercial”, sob a gestão d José Caria, em 1975. (Idem, ibidem, p. 220).
335
Idem, ibidem, p. 220.
336
O espetáculo Rigue (Ariovaldo Matos, Sostrates Gentil) foi proibido à véspera da estréia, e sem critérios
artísticos. “Sostrates, Carlos Borges e Ariovaldo Matos, entre outros, manifestaram-se contra o Departamento de
Censura e o governo Geisel, que prometia a abertura cassando políticos e vetando obras de arte” (Idem, ibidem,
p.222).
95

reinventa em diversos aspectos. Através do “pensar rizomático”, como propõe Raimundo


Matos de Leão, é possível se considerar todas as nuances contraditórias ou convergentes do
processo teatral, ao invés de afirmar o maniqueísmo comodismo versus resistência, quando o
teatro se expressava como prisma de possibilidades.337
Aproveitar-se da profusão do teatro infantil para gerar lucros esvazia sua função
intrínseca. Mas se, por um lado, havia o uso do teatro infantil como recurso fácil de
arrecadação de bilheteria e por isso os textos acabavam caindo num comodismo, por outro
lado – pensando pelo “prisma de possibilidades” – o gênero teve outro significado em grupos
ou teatros menores e numa cidade do interior: permitiu a reexistência do teatro e foi
responsável por manter as produções vivas, para que elas não estancassem de vez. O fato de o
teatro infantil ser subestimado, em alguma medida, pela censura, permitia que os grupos se
apropriassem para transmitir mensagens através de subterfúgios para além do texto
tradicional, como o conceito do espetáculo, a cenografia, a atuação dos atores, a poética como
um todo.338
Talvez tomado por essa necessidade geral de tentar se readaptar para sobreviver,
Antonio Mário tenha investido nesses primeiros anos da década de 1970 em montagens
infantis, ou nos “velhos clássicos de dramaturgia universal destituídos de periculosidade”
como O Pedido de Casamento, no MOBRAL.339 No caso do grupo Natureza, não cabe
associar à perspectiva “bilheterista”, pois o que era gerado de bilheteria era compartilhado
com os atores, e não havia “acúmulo”.340 Dentre as peças citadas, as que não foram gratuitas e
abertas ao público como no Encontro Cultural, não arrecadavam cachês altos para os atores.
Isso não somente nos espetáculos infantis, mas em todas as peças realizadas pelo diretor desde
o grupo Dias Gomes, foi uma característica que se manteve. Assim, dificilmente haveria
montagens num formato de “show infantil”, ou seja, de “entretenimento gratuito”, aqui já
discutido. Pois em nenhuma das peças perdeu-se o caráter de reflexão e crítica social que de
alguma forma ele conseguia trazer imbuídas nas montagens.
O Pedido de Casamento pode ter sido um “clássico invetável”, mas é uma peça que
tem seu quinhão de reflexão, o que merece ser levado em conta, num breve parêntese: como
marco do teatro moderno no século XX, Tchekhov representou a inovação teatral muito

337
LEÃO, op. cit.
338
Idem, Ibidem.
339
Ademais, o teatro infantil teve destaque nas edições dos Encontros de Cultura, visto que a maior parte das
peças apresentadas pelos grupos, de acordo com seus enredos, foram direcionadas ao público infantil: além de
“O Vestido de Estrela Flor”, “Chapeuzinho Vermelho”, “Estórias Contadas”, e “O Gato Malhado e a Andorinha
Sinhá”.
340
Entrevista cedida por Roque Lázaro à autora em 28 de outubro de 2017.
96

utilizada para as primeiras aplicações do método de Stanislavski. O teatro moderno, ou “teatro


de protesto” é assim caracterizado pelo teatrólogo Americano Robert Brustein devido à marca
em comum cujos dramaturgos modernos carregam em seus textos: os conflitos individuais
marcados pela revolta. Cita oito dos mais importantes autores para a nova geração do teatro,
dentre eles, Tchekhov e Berthold Brecht, duas figuras às quais Antonio Mário, em seus
ensaios, fazia referência:341 O “conceito de protesto” não tange apenas a uma ideologia
política, “significa inconformismo do indivíduo com o meio ambiente e consigo próprio”.342
Tchekhov, entretanto, seguiu um movimento peculiar na caracterização dessa revolta.
Escrevia de forma que sua intenção e julgamento dos personagens não transpareciam na
dramaturgia. A subjetividade do texto deve ser uma carga tão somente vivenciada pelo
leitor.343 Traduzida por Vitor Morinov, escrita em 1889 O Pedido de Casamento é uma
comédia de costumes que conta a história de um pai em busca de casamento para sua filha
adulta, com um caçador, vizinho da família. A trama toma rumos imprevisíveis através de
situações irônicas e risíveis. Essa seria, de acordo com Brustein, a “superfície” do teatro de
Tchekhov. As pequenas tragédias individuais que ocorrem ao longo da peça são frutos da
densidade psicológica dos personagens, que suscitam, de forma quase imperceptível, a
incongruência dos conflitos humanos. E ainda que não se atingisse o público diretamente,
atingia aos atores que precisavam mergulhar nessas camadas interpretativas.344
Retornando às montagens infantis de Antonio Mário, houve uma analogia feita por ele
em uma adaptação teatral pela qual se pode refletir acerca do papel que o teatro infantil
poderia cumprir. Entretanto, esse evento ocorreu não mais em 1970, mas por volta da década
de 1980. O artista Luiz Ramos foi solicitado por Antonio Mário para produzir o cenário de
uma peça que ele montaria, chamada O Rapto das Laranjinhas. De acordo com seu relato
memorialístico, o diretor fez uma adaptação da original, escrita por Maria Clara Machado,
chamada O Rapto das Cebolinhas. A alusão deve-se à já mencionada característica identitária
da cidade: a “Terra das Laranjas”.345

341
Entrevista cedida por Roque Lázaro à autora em 28 de outubro de 2017. Os próprios panfletos das peças do
Dias Gomes traziam essas menções.
342
FRANCIS, op. cit., p. 9.
343
“É certo que à superfície, a arte de Checov [sic] não promete qualquer evidência sobre suas inclinações
rebeldes. Um arranjo aparentemente arbitrário de paisagens, pormenores de caracterização dos personagens,
diálogos despretensiosos, silêncios, mutações de ritmo e pendor poético, eis a superfície que constitui a tentativa
mais convincente de verossimilhança dramática de todo o teatro moderno; [...] Por baixo, existem abismos de
teatralidade, fervor moral e revolta; e entre a superfície e esse substrato há uma constante tensão irônica”. Ver:
BRUSTEIN, Robert. O Teatro de Protesto. São Paulo: Zahar Editores, 1967, p. 156.
344
Idem, ibidem.
345
Entrevista cedida por Luiz Ramos à autora, em 29 de julho de 2017.
97

Na década de 1930 o poder local desenvolveu uma proposta de incentivo à produção


de laranjas, chegando a oferecer premiação para os que atingissem certa cota de produção na
cidade. Por conta disso, os fazendeiros foram os principais beneficiados por essa riqueza
gerada.346 Antes da urbanização com seus processos de ocupação residencial invadirem as
áreas, anteriormente periféricas, os sítio e chácaras da cidade eram tomados de plantações de
laranjas principalmente na região de Alagoinhas Velha.347 E, simbolicamente, de forma
inconsciente ou não, a peça O Roubo das Laranjinhas fora apresentada nesse bairro,
precisamente, no jardim da praça, próximo à Igreja Inacabada. Como a ambiência original do
enredo se passava na horta de uma fazenda, conta Luiz Ramos que Antonio Mário havia
aproveitado a paisagem natural para constituir parte da cenografia.348
A trama da peça original acontece em torno do misterioso rapto de cebolinhas na
fazenda de um coronel, o único detentor dessa “espécie preciosa” no Brasil. Seus netos e os
animais da fazenda, ao suspeitarem de um falso detetive que se coloca como amigo do avô, o
Camaleão Alface, tentam ajudar a desmascará-lo. No fim das contas, ele que é o ladrão de
hortas, e tentou pôr a culpa no cão-de-guarda do Coronel para se safar. O médico do avô
alerta que ao invés de ser preso, o Camaleão precisa de um tratamento para cuidar o coração
“viciado em ruindade”.349
Apesar de não haver registros físicos sobre a montagem de Antonio Mário, Ramos que
testemunhou a realização, identificou essa escolha como uma contextualização das relações
sociais na cidade. Visto que os coronéis monopolizaram por muito tempo a produção e
comercialização de laranjas no município, é possível estabelecer essa conexão. Além disso, o
diretor pôde tratar sobre temas e valores como ganância e mentira, a coragem e esperteza das
crianças, e a esperança de que um “coração ruim” sempre pode ser curado.
Ao que tudo indica, essa foi a primeira adaptação em que Antonio Mário modificou,
de alguma forma, um texto original. Não foram encontrados textos dramatúrgicos de autoria
do próprio diretor ou de qualquer outro participante do grupo, mas de acordo com o Jornal da
Bahia, “Um aspecto interessante do trabalho do grupo ‘Natureza’, é que a maioria dos textos
representados é assinada pelos seus componentes, entre os quais o próprio Antonio Mário,

346
PAIXÃO, op. cit., p. 59.
347
“[...]as laranjeiras carregavam tanto que era preciso colocar escoras. [...] Nos quintais das residências, nos
jardins, em qualquer lugar onde houvesse um pedacinho de chão, havia uma laranjeira” SANTOS, Joanita da
Cunha, op. cit., p. 29.
348
Entrevista cedida por Luiz Ramos à autora, em 29 de julho de 2017.
349
Fato interessante é que, após o sucesso de O Rapto das Cebolinhas, Maria Clara Machado escreveu a
continuação da trama, chamada “A Volta do Camaleão Alface”, e marcou a estréia do ator José Wilker no teatro,
que à época era um adolescente. A peça foi apresentada pelo grupo Teatro de Cultura Popular, em Recife na
década de 1960. FERRAZ, op. cit., p. 104.
98

cujo trabalho exigente e meticuloso, garante o sucesso da equipe.” Dentre esses textos, a
matéria mencionou a peça “O Bom, O Mau e O Feio” que teria sido escrita pelo componente
do grupo chamado Altevir Esteves e estava sendo ensaiada naquele momento.350 Se o jornal
trouxe a informação de que “a maioria dos textos é assinada pelos seus componentes”, revela-
se que, além das peças discutidas aqui, houve mais montagens cujas fontes não se sabe da
existência.
Mas, sobre o trabalho “exigente e meticuloso”, reafirma-se em falas recorrentes dos
depoentes sobre o quanto o diretor era rígido na disciplina. Segundo justificativa do próprio
Antonio Mário, ele procurava “na medida do possível, conscientizar o pessoal da necessidade
de mantermos um grupo coeso, que embora formado por amadores, adquira uma estrutura
profissional”.351
A “rigidez” no teatro, entretanto, não parecia ser um comportamento que lhe definia
como um diretor sisudo. Ele próprio brincou com esse rigor, revelando uma faceta
descontraída de sua persona, ao escrever um texto chamado “Os melhores de 1986”.352 No
escrito de 1987, salpicado de ironias e anedotas, os atores de cinema não escaparam de suas
observações “rigorosas” e cômicas sobre as premiações do “59º Festival da Academia
Americana de Cinema”, ou seja, o “tão cubiçado[sic] Oscar”.353 E já iniciou o texto
observando que nesse ano, a Academia estava “mais pródiga e mais benigna que a meningite
do João Sayade, foi estatueta distribuída a torto e a direita, só faltou a Academia premiar com
o seu Oscar os melhores bilheteiros, porteiro e pirilampo de cinema, no ano passado”.354
Ironizou e alfinetou o fato de o personagem Kojak (Ted Savalla) abrir o espetáculo cantando e
dançando, e ter sido aplaudido, “não estou dizendo que a coisa este ano estava mole!”.
Sugeriu inclusive que o ator Paul Newman, que após sete indicações sem sucesso, só
conseguiu o Oscar esse ano, pois “Tinha que ser agora ou nunca, a senhora Academia estava
tão boazinha!”.355 Ainda sob o espírito dessa “generosidade desmedida” da Academia,
comentou sobre a premiação de Marlen Master que atuou pela primeira vez como atriz e tinha
deficiência auditiva: “Ora, dona Academia é preciso dar uma vez aos deficientes”. E concluiu
que a atriz “interpretou o papel principal feminino no filme O Silêncio, é obvio”.356

350
Jornal da Bahia, 2 de jul. 1979.
351
Fala de Antonio Mário em entrevista ao Jornal da Bahia, ed. 2 de jul. 1979.
352
Texto “Os Melhores de 1986”, escrito por Antonio Mário. 1987. Acervo de Lívia Santarém.
353
Ibidem.
354
Ibidem.
355
Ibidem.
356
Ibidem.
99

Comentários ácidos à parte, vê-se que o trabalho “meticuloso” de Antonio Mário,


definido pelo Jornal da Bahia, não se descola das intempéries enfrentadas para manter as
atividades teatrais: lidar com uma gama de artistas amadores, as jornadas triplas de trabalho
(antes de se aposentar), as dificuldades de se fazer teatro no interior a Bahia numa conjuntura
em que se estreitavam as rédeas do fazer artístico. Foi nos “Anos de Chumbo” que repensou
novas possibilidades para manter esse teatro após o fim do Dias Gomes com a ciência de que
o público compreendia o que talvez a censura não compreendesse. Parafraseando o próprio
Dias Gomes, “o teatro é a única arte [...] que usa a criatura humana como meio de expressão”.
Assim, “esse caráter de ato político-social da representação teatral, ato que se realiza naquele
momento e com a participação do publico não pode ser esquecido, se quisermos entender por
que coube ao teatro um papel destacado na luta contra o status quo implantado em abril de
64”.357 Não que isso corrobore qualquer intenção do diretor em driblar uma censura de que
não se tem indício que ele enfrentou. Mas, tratando-se de recepção de plateia, em suas
produções, o relato cedido por José Olívio, poeta que fora seu amigo, pode elucidar o modo
de pensar de Antonio Mário: “[...]ele disse que o teatro era um meio de comunicação mais
rápido de criticar o governo, o sistema. Porque um livro demanda tempo, a música demanda
tempo, e o teatro não, o teatro é imediato, é instantâneo”.358 Assim, se uma pintura se eterniza
numa tela, o teatro se eterniza na reflexão que o espectador carrega consigo.
Nesse quesito, pode-se atribuir às montagens infantis “inofensivas” uma forma de “se
resguardar” frente à censura, sem perder a possibilidade de reflexão, o que não significaria,
necessariamente, comodismo ou conformismo. Pode-se pensar também, que a escolha dos
espetáculos e autores aqui discutidos significaram táticas de re-existência num movimento
menos premeditado do que oportunizado pelas mudanças de conjuntura. O fato é que Antonio
Mário não se expunha em posicionamentos comprometedores, pois investia nessas reflexões
por meio de um movimento interno, em torno do “indivíduo”. Essa compreensão se torna
abrangente pensando pela perspectiva que Raimundo Matos de Leão traz, ao afirmar que, de
1970 em diante, há uma “metamorfose” na cena teatral, onde a individualidade é o fator
principal a se defender contra o regime, diferente da década de 1960, em que impera a crença
de transformação mundial por meio de ideologias revolucionárias que incitassem a
coletividade.359

357
GOMES apud PARANHOS, Katia R.(org.) História, Teatro e Política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012,
p. 137.
358
Entrevista cedida por José Olívio à autora, em 15 de junho de 2017.
359
LEÃO, op. cit., p. 18.
100

Quando se pensa que o fato de ser negro é um agravante a se levar em conta na


repressão, esse pode ser mais um motivo ao preferir não enfrentar abertamente a ditadura.
Não há indícios de que Antonio Mário se autodeclarou negro de alguma forma ou sofreu
discriminação racial em algum nível. No entanto, isso não significa que ele tenha se livrado,
integralmente, de qualquer situação de racismo. Suas táticas de sobrevivência consistiam em
se manter dentro das estruturas, inclusive para garantir influência, e ser reconhecido como
uma figura importante por movimentar o cenário cultural na cidade, proporcionar educação e
formação aos jovens. São ações pautadas em movimento de cautela, percepção, e mudança
sutil. Mas, por se impor sobre vários meios, destacando-se, foi um homem negro cuja
condição racial pode não ter sido associada aos estigmas racistas. Inclusive, em sua certidão
de óbito ele é definido como “homem branco”, e isso recorrentemente acontecia quando se
relacionava o status social do indivíduo à definição de “cor branca”.360
É indispensável considerar que tanto o Dias Gomes como o Natureza foram grupos
socialmente diversos e, por isso racialmente heterogêneos. Um recorte dessa realidade pode
ser visto pela fotografia da peça Irene em Dias Gomes. Logo, reforça-se que a formação e
vivências dos artistas brancos eram diferentes das vivências dos artistas negros, ainda que
tecnicamente ocupassem os mesmos lugares na equipe. Roque Lázaro homem negro, por
exemplo, diferente de Ray Creuza, vinha de outra realidade, nascido em família menos
favorecida, tornou-se órfão ainda adolescente e encarou a necessidade de deixar a escola por
um tempo para sustentar os irmãos. Ele encontrou no teatro novas perspectivas para sua vida,
e afirmou que a convivência com Antonio Mário lhe fez enxergar a realidade como uma fuga
da vida comum, para as possibilidades que a arte proporciona.361 O arcabouço literário e
intelectual que a formação teatral lhe proporcionou, assim como outros trabalhadores que
compuseram o grupo, não seria, da mesma forma, possibilitado pela escola pública. Roque
continuou atuando ao longo de sua vida, e refletiu sobre a relevância do teatro em sua
trajetória, enquanto exercia uma função “extremamente embrutecedora” num trabalho formal
como policial militar. Assim, o ofício amador no teatro significava uma “válvula de escape”,
para que, segundo ele, não se transformasse completamente num “bruto”.362
O fato de Antonio Mário ocupar uma posição social que agregava importância, status e
intelectualidade pode tê-lo “embranquecido” socialmente falando. Já para os atores negros do
grupo, como Roque Lázaro, um teatro democrático apresentava-se como possibilidade de

360
Cópia da certidão de óbito de Antonio Mário dos Santos. Alagoinhas, 17 de dezembro de 2002. Pasta
“Antonio Mário” – CENDOMA/FIGAM.
361
Entrevista cedida por Roque Lázaro à autora em 28 de outubro de 2017.
362
Ibidem.
101

criar representatividade, e nivelar as oportunidades de acesso à erudição, à formação teatral


como meio de mudar sua situação social. E enquanto figura que criava representatividade para
outros negros, causava um movimento importante a partir da sua condição racial.
Por fim, interessa mais perceber nuances em que Antonio Mário se mostrou tático do
que enquadrar seu teatro dentro de quaisquer movimentos transgressores ou conservadores,
por comodismo ou ação direta. Sobretudo, perceber o que parece ter configurado seu desejo:
manter o teatro vivo, um teatro desobrigado de discursos abertamente ideológicos contra a
ditadura, e sobrevivido à margem dos olhares da censura. Ou seja, a extensão de sua
experiência artística em Alagoinhas pode ser vista, talvez, como continuidade e compensação
pelo que não foi possível de vivenciar em Salvador, por causa dos percalços que se
apresentaram durante o curso na Escola de Teatro da UFBA. Pelo diretor que se tornou e
pelas representações/representatividades que criou, construiu um cenário do teatro em
Alagoinhas cujo período de vida resistiu por toda a ditadura militar, confiante de que a
“atividade teatral em Alagoinhas tem futuro promissor, ‘embora dentro de uma evolução
homeopática’”.363 E nessa evolução “homeopática” e também fragmentada por vários hiatos,
assistiu o nascimento de um circuito artístico-cultural na cidade, em paralelo às suas
atividades.

363
Segundo o próprio Antonio Mário (citado pelo Jornal da Bahia, 2 de jul. 1979).
102

Capítulo III

O personagem no cenário do circuito cultural em Alagoinhas

1. A FFPA sobe ao palco, Antonio Mário contracena

No início de 1970, não só Antonio Mário viveu mudanças em seu grupo de teatro. O
cenário sociocultural da urbe mudou e trouxe novas possibilidades e oportunidades para
jovens e professores, pois a Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas (FFPA)
entrou em cena no palco da cidade. Surge aqui um novo panorama que terá responsabilidade
na afirmação, resistência, e manutenção do setor artístico e das suas manifestações culturais.
Junto com ela, Antonio Mário “contracenou” em projetos como o Pró Memória, o Clube de
Cinema, outras atividades intelectuais para além do âmbito institucional e os Encontros de
Cultura que serão tratados no próximo tópico.
Antes da FFPA, a dinâmica cultural da cidade manteve itinerário semelhante à de
1960: permaneciam as festas dos clubes, os tradicionais eventos da cidade, como a festa da
mocidade,364 festas e procissões católicas, os festejos juninos e as micaretas de rua. Pelo
exercício de nacionalismo a cidade se organizava para o desfile da Independência do Brasil e
para o aniversário da cidade em 2 de julho, que coincide com a data de independência da
Bahia. Conforme o documento de Levantamento Cultural, o conjunto de festejos costumeiros
da cidade, catalogados até 1978, eram os mesmos que aconteciam em 1960, e que puderam
ser identificados em edições do Alagoinhas Jornal da década, como discutido no primeiro
capítulo. Pela tradição, eram celebrados com música, samba de roda, maculelê, rodas de
capoeira e os trios elétricos que eram demandados para além das micaretas.
Os jornais ainda noticiavam sobre a “sociedade” de Alagoinhas e seus cidadãos
realizando os frequentes eventos e bailes de debutantes nos clubes da cidade. Outro clube
surgia, a sede da Associação Atlética do Banco do Brasil - AABB, e estava com inauguração
prevista para fevereiro de 1979.365 Em se tratando de clubes, o Alagoinhas Jornal manteve

364
Festa realizada em “largo” com samba de roda, capoeira e duração de 8 dias. Além de conjuntos musicais e
show de calouros, haviam jogos e brincadeiras como “corridas de sacos, de ovo, quebra-potes e etc.” Documento
de levantamento cultural em Alagoinhas realizado pela FFPA. S/d (de acordo com Iraci Gama, de 1978), seção
“Festas”. Pasta “Projetos Culturais”- CENDOMA/FIGAM.
365
“A Associação Atlética Banco do Brasil, que além dos funcionários deste estabelecimento bancário, congrega
pessoas da sociedade local, em número reduzido, deu início na semana passada, às obras de conclusão da sede
[...] A verba necessária para a conclusão dos trabalhos será de mais de CR$ 1,2 milhões, já se encontrando em
103

seu foco em promover a ACRA, com seus bailes dançantes e festejos de final de ano, e
doravante, não teria mais motivos para reclamar da circulação de bêbados, malandros e
desocupados no centro da urbe, pois a “zona” onde eles transitavam, localizada “no coração
da cidade”, foi impelida a mudar para uma rua distante do centro, entre fins da década de
1960 e início de 1970.366
Sobre os cinemas e suas transformações ao longo do tempo, em 1978, os problemas que já
se apresentavam na década anterior, se agravavam, segundo o Jornal Tribuna de Alagoinhas:

Voltamos a fazer um apelo a[sic] gerência do nosso único cinema. Não se


admite esta casa de espetáculos continue de tão baixo nível. Além de uma
grande reforma no seu prédio, aconselhamos também que a programação
seja urgentemente reformulada. É uma tristeza!367

Em 1970, foi constatado num documento chamado “Monografia sobre Alagoinhas”


elaborada pelo IBGE em 17 de agosto de 1970, somente a existência do Cine Azi e do Cine
Alagoinhas. Em 1978, o documento de Levantamento Cultural reconheceu a existência
também do Cine Alagoinhas e do Cine Capitólio, entretanto, não mais do Cine Azi. O
Capitólio era o único em atividade naquele ano, e mantinha o entretenimento da cidade
exibindo 180 filmes por ano, equipamento com bitola de 35 mm, área de 630m², 1300 lugares,
e localizado na praça Graciliano de Freitas.368 O Cine Alagoinhas tinha estrutura menor, com
420 m², 532 lugares, localizado à rua Conselheiro Franco369, mas estava “fechado” e “em
restauração”.
Salomão Barros, afirmou em seu livro Vultos e Feitos que “atualmente conta a Cidade
com dois bem organizados Cinemas, ou seja: ‘Cine Azi’ e ‘Cine Capitólio’”. Com
“atualmente” ele se refere ao seu tempo de escrita, 1979.370 Se levamos em conta essa

poder do clube, sendo destinada pela Direção Geral do Banco do Brasil, através de seu programa de ajuda às
associações de funcionários”. Jornal Tribuna de Alagoinhas. Ano I. nº 5. 11 nov. 1978, p. 9.
366
De acordo com o livro de memórias de Pedro Marcelino, a zona: “Estava dando lugar à reestruturação do
centro de Alagoinhas, nos governos de Murilo e Carneirinho. O Mercado da Carne em ruínas, pensões em franca
decadência e prostitutas pobres e abandonadas circulando pela área. A gente atravessava o local, pela noite,
mortos de curiosidade. O que estava brilhando mesmo era o Alecrim, área para onde foi transferido o “Baixo
Meretrício”. Ver: MARCELINO, Pedro. Alagoinhas – O que a memória guarda. Alagoinhas: FIGAM Editora,
2015, p. 43.
367
Coluna Enfoque Social, Jornal Tribuna de Alagoinhas. Ano I. nº 5. 11 nov. 1978 p.4
368
Documento de levantamento cultural em Alagoinhas realizado pela FFPA. S/d (de acordo com Iraci Gama, de
1978). Pasta “Projetos Culturais”- CENDOMA/FIGAM.
369
Ibidem.
370
Barros registrou em seu livro que a cidade, além do Cine Teatro Popular, fora contemplada com o Cine Ideal
e o Cine Alagoinhas, mas não mencionou datas de funcionamento. Ver: BARROS, Salomão, op. cit., p. 265.
104

consideração de Barros, provavelmente, em 1979 o Cine Azi pode ter retornado às atividades.
Observa-se também que, a localização deste, no documento do IBGE em 1970 é exatamente a
mesma que o documento de levantamento cultural aponta o Cine Capitólio, em 1978:371 praça
Graciliano de Freitas.
Se o jornal mencionou, em 1978, um “único cinema” na cidade e que precisava de
reforma e programação “reformulada” – provavelmente referindo-se aos filmes “impróprios”
– pode ter aludido ao Cine Capitólio, único em atividade no momento. Entretanto, não o
descreveu da mesma perspectiva de Barros, que afirmou estar em “funcionamento regular,
apresentando selecionados e atraentes programas, satisfazendo bem aos admiradores da
‘tela’”.372 Em 2021, os cinemas citados não existiam mais: os que não foram demolidos,
cedendo espaço a outros prédios, tiveram suas estruturas reaproveitadas para outro
empreendimento. O prédio onde funcionava o Cine Capitólio, por exemplo, foi cedido à
Igreja Universal. O Cine Alagoinhas, que fora instalado à rua Conselheiro Franco, tornou-se
num prédio comercial.
Em movimento inverso aos cinemas que entravam em processo de depreciação na
cidade, desde 1968 é possível reconhecer um movimento de expansão em toda rede de
educação, inclusive no ensino técnico, na formação de magistério e no ensino básico. Nesse
ano foi criada a Fundação Educacional Cidade de Alagoinhas, visando ampliar a “cultura
técnico-profissional” e consolidar “um padrão inédito de ensino, dentro dos mais atualizados
sistemas pedagógicos vigentes, contendo um estilizado Curso Primário Fundamental”.373
No mesmo ano, em 14 de fevereiro, foi criada a Escola Lúcio Bento Cardoso pelo
Lyons Clube de Alagoinhas. Recebeu auxílio financeiro do “Governo Americano”, como
aponta Salomão Barros, cujos donativos foram entregues pelo próprio Consul dos Estados
Unidos.374 No dia anterior, inaugurava-se a Escola Aurea Ribeiro Cravo, com a presença do
governador Luiz Viana Filho e o filho da homenageada, Mário da Silva Cravo.375 Marcou
esse dia também, a inauguração de mais um Ginásio, o Ginásio Estadual de Orientação para o

371
Monografia sobre o Município de Alagoinhas. Ministério de Planejamento e Coordenação Geral – Fundação
IBGE. Serviço Gráfico da Fundação IBGE, 1970. disponível no link:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/113/col_mono_n480_alagoinhas_2ed.pdf Acesso em 20 de
dezembro de 2020.
372
BARROS, Salomão, op. cit., p. 265.
373
Teve como responsáveis as professoras Haydée Lima de Amorim, Bernadeth Carvalho de Alencar, Newton
Farani, José Ferreira Ramos e Orlando Pinheiro de Morais. (Idem, ibidem, p. 146).
374
Idem, ibidem, p. 156.
375
Segundo Salomão Barros, Mário da Silva Cravo foi “ex-prefeito do município e figura conceituada na região”
e pai do artista plástico Mário Cravo Junior (1923 – 2018), “internacionalmente consagrado”. Este último fez
parte da primeira geração de artistas plásticos modernistas da Bahia; e era avô de Mário Cravo Neto, também
artista e fotógrafo. (Idem, ibidem, pp. 156 e 161).
105

Trabalho, recebendo, igualmente, a presença do Governador, Luis Viana Filho (1967 - 1971)
e do Secretário de Educação Luiz Augusto Navarro de Britto.376
O Lyons Clube também se fazia presente em outras atividades de cunho escolar, a
exemplo, da promoção do Festival Estudantil Alagoinhense da Música Popular Brasileira.377
Em 31 de outubro de 1968, dois meses antes de o Ato Institucional nº 5 ser decretado pelo
presidente Costa e Silva realizavam-se os preparativos para as apresentações de estudantes
músicos compositores de MPB. Tanto as inscrições como informações estariam disponíveis
no local de trabalho de Antonio Mário, na Agência Local de Estatística, provavelmente, ele
esteve envolvido, pois também era professor, ou inclusive, sugeriu disponibilizar a agência
para essa demanda.378
O Centro Integrado Luiz Navarro de Brito (CILNB) que como dito na abertura desse
capítulo, comemorava seus 10 anos em 1978, foi oficializado pelo Decreto-Lei nº 21.924 de
27 de junho de 1969, sob direção do professor Jurandy Cardoso.379 Estabelecimentos de
ensino de 1º e 2º graus apresentaram fluxo considerável de 6 mil alunos em média. 380 Nessa
mesma perspectiva, em 1975 foi implantada a Escola Polivalente de Alagoinhas sob
responsabilidade do secretário de Educação Kleber Pacheco, escola que tinha capacidade para
800 alunos e funcionava em 2 turnos. Consecutivamente, outras instituições públicas foram
criadas, como o Complexo Educacional Magalhães Neto, Escola Maria José Bastos e Escola
Municipal Miguel Santos Fontes (essa no distrito de Boa União).381
A expansão na área educacional, principalmente as instituições estaduais, estava
vinculada às elaborações do Plano Estadual de Cultura, pelo Conselho Estadual de Cultura –
CEC. Em 1970, A Secretaria de Cultura, era conjugada com a de Educação, e apesar de o
CEC se ocupar somente da esfera cultural, há um ítem referente ao plano de educação
“Ensino Superior e Cultura” sobre os quais versam metas, dentre elas, de fortalecimento de
instituições públicas e privadas, “extensão da ação dos órgãos educacionais culturais,

376
Idem, ibidem, p. 156.
377
O Clube foi descrito por Salomão Barros como “sempre empenhado nas realizações que enobrecem uma
coletividade” (Idem, ibidem, p. 156).
378
Panfleto de convocação ao Festival de MPB dos estudantes secundaristas. Pasta “Projetos Culturais” -
CENDOMA/FIGAM.
379
BARROS, Salomão, op.cit. Vale ressaltar que com o AI-5, “o governo de Luís Viana Filho passou a viver sob
um cerco de intimidações que levaram a ações extremas como a exoneração de Luís Navarro de Brito, então
Secretário de Educação e Cultura e aumento do controle sobre as ações do próprio estado”. UCHÔA, Sara.
Políticas Culturais na Bahia (1964 – 1987), p. 7. Disponível em:
http://www.cult.ufba.br/arquivos/politicas_culturais_1964_1987_.pdf Acesso em 30 jul 2021.
380
BARROS, Salomão op. cit., p. 146.
381
Idem, ibidem, p. 146.
106

artísticos e intelectuais a todas as regiões do Estado”, “estímulo à produção cultural, científica


e literária” e “ampla utilização dos veículos da cultura e da educação.” 382
Nesse caso, pelo que rege a cartilha do CEC, o incentivo de produção cultural deveria
ser mola-propulsora das instituições de educação. No tocante ao exercício de “funções
consultivas e normativas sobre as Artes, Ciências e Letras e o Patrimônio Histórico, Artístico
e Cultural,” o CEC previa uma Câmara específica para esse âmbito.383 Com isso, promovia a
“defesa de conservação do patrimônio histórico e artístico nacional, estadual e municipal”.
Importante ressaltar que, desde o golpe de 1964, a Bahia vinha sofrendo significativa evasão
dos artistas baianos para o sudeste, o que causou a falta de dinamismo no campo artístico do
estado e afetou os “equipamentos culturais” como museus, teatros e bibliotecas que sofreram
certa estagnação diante da falta de políticas culturais bem gerenciadas para cada uma dessas
áreas. Com as definições do CEC, esperava-se que, em tese, os municípios tivessem maior
visibilidade e atenção do estado sobre suas produções culturais, no que concernem às suas
peculiaridades.
Com a instalação da FFPA em Alagoinhas, a produção cultural e preservação do
patrimônio histórico da cidade ganharam novos contornos. Unindo o conhecimento histórico
sobre a cidade que havia adquirido em anos de trabalho no IBGE e dialogando em parceria
com o espaço acadêmico, Antonio Mário encontrou a oportunidade de expandir e direcionar
suas pesquisas sobre Alagoinhas no grupo Pró-Memoria, pois, fruto dessa experiência, o
diretor produziu seu trabalho investigativo e imprimiu seus posicionamentos intelectuais.
Antes de falar sobre o grupo, tratemos da chegada da FFPA à cidade, em 1969. Aos
cuidados do Governo do Estado e do professor Luiz Augusto Navarro de Brito, de imediato,
funcionou como autarquia pela Lei Estadual nº 2741 de 11 de novembro de 1969 e foi
autorizada pelo Decreto Federal nº 62218 de 11 de fevereiro de 1971. 384 A instituição ficou
sob responsabilidade compartilhada entre o governo do estado e município: enquanto o
primeiro cuidava das despesas relacionadas ao corpo docente, a segunda instância assumiu o
pessoal administrativo contratado,385 sob a gestão no prefeito Antonio Carneiro (1967 –
1971).
Nas palavras da primeira diretora da instituição, a professora. Denise Maria Gurgel
Lavallée, os primórdios da FFPA fizeram parte de um “amplo movimento de expansão do

382
UCHÔA, op. cit.
383
Cujo regimento foi provado em 1968, durante o governo de Luiz Viana Filho, e formulava a política cultural
do Estado. (Idem, ibidem, p. 5).
384
BARROS, Salomão, op. cit., p. 146.
385
Idem, ibidem, p. 146.
107

ensino superior que caracterizou a década de 70 na Bahia. O governo pretendia capacitar


professores que pudessem atuar nos chamados ‘ginásios’ daquela época, nos ‘Centros
Integrados’, o que consequentemente, faria voltar a atenção para a educação do interior.386 O
curso pioneiro foi Letras com Francês, para o qual foi realizado o primeiro vestibular da
Faculdade, entre 3 e 4 de janeiro de 1972.387
O grupo Pró-Memória surgiu 8 anos depois da faculdade, em 1980, a partir de uma
proposta de Josilton Tonn em trabalhar com a memória da cidade. Como o primeiro projeto
de pesquisa sobre Alagoinhas, tinha “interesse específico pela preservação e pesquisa
histórica da cidade”, pela luta em prol do seu patrimônio artístico-cultural, material e
imaterial. Sendo Antonio Mário o “orientador” do grupo, este foi composto por pessoas da
comunidade acadêmica, mas não só. Foram elas: Antonio José Dantas Fontes, Antonio Jutaí
Dias, Antonio Lenine, Iraci Gama Santa Luzia, Josilton Tomm e Zalvira Vilas-Boas
Conceição.388
Dentre os maiores objetivos do grupo estava lutar pela preservação e tombamento de
prédios históricos, e monumentos, como a Igreja Inacabada, e a Estação São Francisco.
Reivindicava também um local específico onde os artistas pudessem desenvolver suas
atividades, nascendo portanto, no seio do grupo, um sonho que se arrastaria sendo alimentado
por anos entre os artistas: um Centro Cultural para Alagoinhas.389
O grupo também realizou eventos como uma exposição de fotografias, em 1978,
chamada Memória da Cidade, cujo tema tratava das casas comerciais e residenciais e seus
elementos característicos, como a arquitetura e a época. Além disso, as pesquisas
desenvolvidas por Antonio Mário envolviam trabalho de campo, escavações, buscas em
arquivos e descoberta de vestígios arqueológicos como o primeiro cemitério da cidade.390
Uma fotografia de 1996 sugere o professor em atividade, identificando recursos hídricos de
Alagoinhas no Jorro do bairro Miguel Velho, para um Projeto da professora Nélia Gonçalves

386
LAVALLÉE, Denise Maria Gurgel. Denise Maria Gurgel Lavallée. Entrevista cedida a Celeste Buisine
Pires Ribeiro. Revista BABEL: Revista Eletrônica de Línguas e Literaturas Estrangeiras - ISSN: 2238-5754
- n.02, jan/jun 2012.
387
Segundo a diretora, os professores responsáveis pela aplicação das provas foram todos indicados e
selecionados pelo Conselho Estadual de Educação, foram eles: (a própria) Denise Maria Gurgel Lavallée
(Língua e Literatura Francesas), Antônio Curcino da Silva (Literatura Brasileira - este aparecerá novamente
nesse trabalho em outros momentos, por ter contribuído com um depoimento sobre sua amizade com Antonio
Mário e sua participação nas atividades culturais da cidade.), Dilma Evangelista da Silva (Língua Portuguesa e
Linguística), Pe. Edson Barauna (Língua Latina), Nicéa Nascimento Maia (Psicologia), Pedro Sancho da Silva
(Estudo de Problemas Brasileiros – Organização sociopolítica do Brasil). (Idem, ibidem).
388
Ofício encaminhado à coordenadora do Centro de Cultura de Alagoinhas, Jocelita Correa, em 13 de fevereiro
de 2008, como resposta à solicitação do histórico deste. Documento exposto na sala Iracy Gama -
CENDOMA/FIGAM.
389
Ibidem.
390
Como será discutido mais adiante nesse mesmo tópico.
108

do Curso de Biologia da FFPA. No referido ano, ele tinha 74 anos. Está em pé, diante de duas
crianças que parecem brincar no jorro. Aparentemente está sem muletas, o que significa que a
situação com o reumatismo poderia estar estabilizada.

Imagem 10: Antonio Mário no Jorro do bairro Miguel Velho – Alagoinhas, 1996.
Autor desconhecido. Banner de exposição sobre a vida de Antonio Mário.
CENDOMA/FIGAM.

Em relatório de atividades em 1980 e 1981, a FFPA elaborou um documento que


atesta a realização do projeto de pesquisa “Memória de Alagoinhas”, sob responsabilidade do
setor de pesquisa e extensão da FFPA, com patrocínio do Departamento de Ensino superior e
aperfeiçoamento de pessoal – Desap (documento de janeiro de 1981). Antonio Mário assinou
como componente da equipe.391
A relação com a universidade e seus professores também possibilitou a participação
num Clube de Cinema e Fotografia, formado em 1979 e sobre o qual se tem informações
escassas. Além de Mário, também compunham o clube: Aloisio Rodrigues, Edmundo Valerio,
Nelson Amaral e Nipu Fulco Caldas. 392

391
“Relatório de atividades referentes ao projeto de Pesquisa ‘Memória de Alagoinhas’”, 1981. Documento
exposto em banner na sala Iracy Gama/FIGAM - CENDOMA/FIGAM.
392
Dentre esses, o documento de Levantamento e dinamização cultural do governo estadual, na seção
“fotógrafos”, mencionou somente Nipu Fulco Caldas. No entanto, reconheceu-se a presença do trabalho
fotográfico de Aluísio Rodrigues no 2º Salão de Artes Plásticas (1979) e na III Mostra do III Encontro de Cultura
(1980), ano em que o clube entrou no programa como “participação especial”. Banner exposto sobre o
lançamento do Clube de Cinema e Fotografia de Alagoinhas. FIGAM/CENDOMA./ Doc de levantamento
cultural do gov. do estado. Programa do 2º Salão de Artes Plásticas./ Programa da III Mostra do III Encontro
Cultural de Alagoinhas. CENDOMA – FIGAM.
109

Não há indícios explícitos de que Antonio Mário trabalhou, diretamente, como


fotógrafo. Parte-se do pressuposto de que tenha dialogado com a fotografia por ter
manifestado seu desejo de roteirizar e produzir um filme em Super-8 sobre alguns aspectos da
História de Alagoinhas, além de suas, já mencionadas, críticas sobre cinema.393 Antonio
Cursino, professor de Letras na FFPA, também participou das atividades do Clube, apesar de
não ter seu nome registrado no documento que lista os seus membros. Segundo Cursino, ele e
Antonio Mário “entrelaçaram” uma amizade duradoura.394
A fala de Cursino trata de uma memória reconstruída pelo tempo, o que consiste
sempre em uma atualização marcada pela emoção. Segundo ele, tal amizade fora anterior à
formação do Clube e, em 1970, pelos laços fortalecidos entre as duas famílias, cogitaram a
possibilidade de ambos apadrinharem os filhos um do outro que nasceriam com 6 meses de
diferença. Antonio Mário apadrinharia Roberto, filho de Cursino, e Cursino apadrinharia
Sérvio, apelidado de “Chopp, 70” por Antonio Mário, o que segundo Lívia Santarém, foi uma
brincadeira em menção à nova cerveja que havia acabado de ser lançada na década de
1970.395 Ainda que possa parecer “ilusão biográfica”, esse registro memorialístico aponta para
o plano das experiências cotidianas entre Antonio Mário e o seu entorno. É interessante
também pensar que Cursino, além de professor da FFPA, também era Comandante da 1ª Cia
de Policiamento Ostensivo, o que reforça a ideia sobre as relações construídas por Antonio
Mário se configurarem em diversos meios, o que lhe permitia, possivelmente, certa abertura
para transitar em alguns espaços de poder, de segmentos sociais distintos.396
Cursino, em depoimento, ao se lembrar sobre as atividades do Clube, relatou que o
grupo discutia cinema, projetava filmes e não somente entre os componentes, mas por vezes,
exibia para a “comunidade” e “tudo isso sob direção do grupo da faculdade”. Relatou sobre a
exibição do filme O Encouraçado Potemkim na praça rui Barbosa.397 O interessante a se
pensar é que Cursino participou de uma atividade que normalmente seria considerada

393
Sobre os documentos que mostram sua inclinação para o cinema, refiro-me, respectivamente, à entrevista
cedida por ele no Jornal Nova Chama (s/d), e à Monografia sobre a história de Alagoinhas escrita por ele. Jornal
Nova Chama. Documento avulso, década de 1980, p. 6.
394
Depoimento cedido por Antonio Cursino à autora, em 17 de junho de 2020.
395
Sérvio foi o filho caçula de Antonio Mário e Nélia Santarém. Segundo relato de Lívia, “Ele só colocava
nomes históricos nos filhos. E somos 10. Somos 3 do 1º casamento, 4 do 2º e 3 do 3º que é o meu caso. Desses
10, apenas 1 é falecido, que é o mais velho, o primogênito, ele faleceu aos 40 anos, de infarto. Mas todos têm
nomes históricos”. Entrevista cedida por Lívia Santarém à autora, em 10 de setembro de 2017.
396
Segundo Salomão Barros, Antonio Cursino da Silva era comandante da “1ª Cia de Policiamento Ostensivo
(Policiamento de Trânsito e o Pelotão de Policiamento Ostensivo, mais a Rádio Patrulha e o Pelotão de
Guardas)”. BARROS, Salomão, op. cit., p. 217.
397
Cursino não disse a época em que o filme foi exibido, mas tomando como referência o ano de formação do
Clube de Cinema, deve ter sido entre 1979 e 1980.
110

repreensível pela censura – a exibição de um filme considerado subversivo.398 Não houve


proibição, sob sua responsabilidade e, inclusive, ele se lembra que havia situações em que não
sabia como conseguia “passar ileso”:

[...] na época eu era um capitão que trabalhava lá no Batalhão e convivia


com isso. Era professor da faculdade, convivia com os professores, fazia
teatro, fazia pregação nas igrejas do interior aí, todas na linha da teologia da
libertação, aí você me pergunta: “como você conseguiu conviver com tudo
isso?” Eu digo “porque eu sou um ator, porque dei sorte...” Mas na verdade
sempre vivi essa problemática e passei ileso[...].399

Não só esse filme, como Jango e Quilombo, ambos também exibidos pelo Clube de
Cinema na IV edição do festival, eram produções de conteúdo apreensível pela censura e não
enfrentaram problemas prévios que impedissem sua apresentação, pois, ao menos o programa
foi veiculado em panfleto à sociedade. Inclusive, há um recorte de cena de O Encouraçado
Potemkim no filme Jango. O documentário que havia sido lançado nesse mesmo ano de 1984
endossa a narrativa de “golpe militar”, colocando à prova a ideia de “Revolução democrática
de 1964” autodefinida por seus autores.400
Sobre o filme que Antonio Mário pensou em desenvolver, ele expôs esse projeto em
entrevista ao jornal Nova Chama. Veiculado pela empresa privada e instalada em Alagoinhas,
COPENER, a fonte que indica a matéria não tem data, mas como define Antonio Mário já
enquanto chefe do IBGE, e tendo ele assumido a chefia em 1982, e em 1984 se aposentou,
fica a possibilidade de ter sido feita a entrevista nesse intervalo de tempo.401 O periódico não
mencionou sua atuação na cultura nem com o grupo Natureza, mas enalteceu seu trabalho
com a pesquisa sobre a história de Alagoinhas, o que é visível no uso de expressões como
“grande pesquisador” e por definí-lo categoricamente como “historiador”, “título” o qual o

398
O filme O Encouraçado Potemkim foi uma representação da revolta de Kronstadt, acontecida em 1921,
durante a gestão leninista da União Soviética. Segundo Arlindo Machado, Eisenstein, diretor do filme,
estabeleceu uma relação de algoz e admirado pelos governos soviéticos, tanto o leninista, quanto o stalinista. O
enredo dá destaque à coletividade operária compreendendo-a como centro dos processos históricos, e poderia,
facilmente, ser barrado devido ao conteúdo subversivo e incitações ao “caos” e à revolução. Ver: MACHADO,
Arlindo. Sergei M. Eisenstein. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982.
399
Depoimento cedido por Antonio Cursino à autora, em 17 de junho de 2020.
400
JANGO. Direção de Silvio Tendler. 1984, cor , 117 min. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=SaU6pIBv9f4&ab_channel=NaTelinha acesso em 01 ago 2021.
401
A página da fonte, da forma como foi encontrada, não apresenta data. Jornal Nova Chama. Documento avulso,
década de 1980, p. 6.
111

professor recusou com “modéstia”, segundo o articulista da matéria. Preferiu autodefinir-se


somente como “historiador curioso”. A ele, foi dedicada uma página de entrevista.402
Em meio ao diálogo, o professor revelou seu desejo de “rodar um filme” como
resultado de suas pesquisas acerca da história sobre da cidade:

Amante da boa prosa, conversa calma de quem muito viu e viveu, o


professor aproveita a “deixa” sobre história e lendas, e conta que ainda
conheceu o antigo portão de ferro que ficava na entrada do cemitério
próximo das ruínas, o primeiro da vila. “Iamos fazer um filme super-8 sobre
alguns aspectos da cidade. Descobrimos o cemitério cercado pelo mato,
quase encoberto. Ainda existiam algumas lápides. Vimos até que uma
senhora, que mora em Alagoinhas, é descendente direta de uma dessas
pessoas enterradas lá. Mandamos limpar tudo e marcamos a filmagem para o
dia imediato, de manhã. Quando chegamos, o portão tinha sumido.
Carregaram, eu acredito, para fundir, pois o portão era de ferro.”403

Outros vestígios sobre tal filme que seria rodado, não foram encontrados, o que indica
que, provavelmente, não saiu do plano das idéias. Por outro lado, uma questão que pode ser
verificada em um de seus textos foi reiterada por Antonio Mário: a validade sobre as histórias
que rondam a fundação da cidade e de seu marco zero, a Igreja Antiga de Alagoinhas Velha.
De acordo com sua fala para o jornal, tais crendices e lendas não tinham compromisso com a
“verdade histórica”:404

As pessoas gostam muito de sonhar. Por exemplo, na pesquisa de campo que


fiz sobre as ruínas, encontrei indicações de que os adobes foram ligados com
óleo de baleia, o que não é verdade. Eles foram, sim, argamassados com
sangue de boi, sangue fresco, para dar liga à massa. Acho que a confusão
surgiu, porque os operários que trabalharam lá recebiam, como era de praxe,
antigamente, parte de seus salários em óleo de baleia, utilizado nos
candeeiros. Este costume era geral naquele tempo.405

Diferente dos textos sobre a história de Alagoinhas em que o professor especificou os


arquivos onde buscou fontes para sua pesquisa, a entrevista não se aprofunda sobre seus
métodos.406 No entanto, Antonio Mário aproveitou e reivindicou, na matéria em questão, o
tombamento das ruínas, antes que elas desabassem e não restassem mais resquícios do marco
inicial de Alagoinhas. Somente mais tarde (em 1984), o grupo Pró Memória desenvolveria o
projeto para tal.

402
Jornal Nova Chama. Documento avulso, década de 1980, p. 6.
403
Ibidem.
404
Ibidem.
405
Ibidem.
406
Ponto já discutido no segundo tópico do primeiro capítulo desse trabalho.
112

Além de “grande pesquisador”, o jornal o evocou como “Figura tradicional da cidade”,


“professor da Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas e Chefe do Escritório
Regional do IBGE”.407 A única pista encontrada sobre seu trabalho na FFPA, fora o vínculo
com o Pró-Memória, revela uma atuação como “Professor Assistente” nas disciplinas de
“Dição e Empostação da Voz” e “Laboratório de Expressão Oral e Escrita”, no curso de
Letras, entre 1986 e 1987 (ao que sugere a fonte). A professora regente era Maria do Socorro
da Rocha, e a apostila traz tudo que o Antonio Mário abordava nos grupos de teatro, sobre o
corpo do ator e as técnicas para fazer ser ouvido até a última fileira do público. A fonte é um
material de apoio com 6 apostilas sobre a temática de Dicção vocal e expressividade: desde
teoria sobre “O homem e a comunicação”, “Dicção”, “Fisiologia da língua”, até exercícios
para respiração, relaxamento muscular e fonética.408
Através dessas apostilas desenvolvidas por ele, é possível “materializar” a imagem do
diretor cujos métodos e trejeitos Ray Creuza descreveu, como discutido anteriormente no 2º
capítulo.409 O grupo Dias Gomes existiu na década de 1960 e a apostila foi elaborada 2
décadas mais tarde. Mas como a referência bibliográfica trazia textos da Escola de Teatro da
UFBA, toda experiência que adquiriu não só no curso de interpretação, mas como diretor de
teatro, foi basilar para a elaboração desse material, conforme se depreende do trecho abaixo:

A medida que o homem evolui e com ele todo o processo científico e


artístico, apesar e no que pese as grandes e modernas descobertas no campo
da tecnologia, no que tange à comunicação entre as criaturas, nunca foi,
como agora, tão necessário o emprego, cada vez mais acentuado, da voz
humana. Daí o grande número de atividades profissionais e artísticas que
carecem de empenho da voz [...] para perfeito desempenho dessas
atividades, como é óbvio, é preciso que a pessoa comunicante possua uma
voz clara, límpida, forte e audível.410

Quando Ray Creuza rememorou os exercícios de preparação vocal no Dias Gomes, em


entrevista, fez um gesto simulando o ato de Antonio Mário ir ao fundo da sala de ensaio, pôr a
mão na orelha para ver se estava escutando a voz dos atores, “Aí está o que ele chamava

407
Jornal Nova Chama. Documento avulso, década de 1980, p. 6.
408
Apostilas de Antonio Mário elaboradas para as disciplinas de “Laboratório de Expressão Oral e Escrita” e
“Dicção e Impostação da Voz” o curso de Letras da FFPA, 1986 e 1987. Acervo pessoal de Lívia Santarém.
409
O material, provavelmente foi elaborado por Antonio Mário, e tinha como referencias bibliográficas apostilas
da Escola de Teatro da UFBA.
410
“Apostila Nº 01 - O Homem e a voz”. Disciplina Laboratório de Expressão Oral e Escrita”, curso de Letras da
FFPA, 1986. Acervo pessoal de Lívia Santarém, p.1.
113

assim ‘Imposte a voz. Mas tem que chegar aqui até mim com toda a clareza do que você está
falando’”.411
Levando em consideração os laboratórios feitos nos grupos, referentes à repetição,
preparação corporal e memória do sentimento, o cuidado com a voz perpassava também o ato
de se observar. Pois, utilizando a citação do professor “a voz é a expressão da personalidade.
‘Fala para que eu te veja’, frase antiqüíssima, (de Sócrates) exprime bem o que quero
dizer”.412 Alguns exercícios selhantes aos que eram feitos no Dias Gomes, foram sugeridos
para essa disciplina, a fim de se perceber como o estado dos músculos reflete no gestual do
ator: “Não é uma prova suficiente de que a tensão muscular prejudica a sensação emocional
interna?”.413 Em suma, com essa fonte é possível “enxergar” através da atuação do sujeito a
representação criada pela memória da ex-atriz, do lugar de quem vivenciou a aplicação do
método. Além de compreender sua influência pelo teatro realista stanislaviskiano sendo
aplicada na sala de aula para alunos do curso de Letras da FFPA.
Pode-se “ver”, sobretudo, o homem de oratória sobre o qual todos se referiam ao
evocar sua memória, e o que motivou o Nova Chama a considerá-lo “figura tradicional da
cidade”, na década de 1980. Logo, nota-se sua presença em momentos como a posse de Iraci
Gama na diretoria da FFPA, em 3 de dezembro de 1993. Na imagem 11, diante do microfone,
no auditório da FFPA, Antonio Mário discussa em homenagem à professora e quem fora, na
década de 1960, sua atriz do Dias Gomes.

411
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
412
“Apostila Nº 02 – Relaxamento Muscular”. Disciplina Laboratório de Expressão Oral e Escrita”, curso de
Letras da FFPA, 1987. Acervo pessoal de Lívia Santarém, p. 1.
413
Ibidem, p.3.
114

Imagem 11: Antonio Mário em discurso na posse de


Iraci Gama como diretora da FFPA. 1993. Autor
desconhecido. CENDOMA/FIGAM.

Imagem 12: Antonio Mário dos Santos caminhando em direção a cumprimentar a


mesa, na posse de Iraci Gama para a diretoria da FFPA. Da esquerda para a direita:
Prof. Joaquim Mendes (Reitor da UNEB), Jaibes Freitas (Vice diretor da FFPA), Iraci
Gama, Profª. Marinalva Costa (representou Irene na peça dirigida por Antonio Mário, e
no momento estava como chefe do Departamento de Educação). 1993. Autor
desconhecido. CENDOMA/FIGAM.
115

Desse modo, descortina-se no personagem um vínculo de pertencimento à cidade, na


medida em que ele era solicitado para discorrer sobre a história do município, discursar em
eventos cerimoniosos ou deixar suas marcas em produções de outrem. Por essa perspectiva,
prefaciou, em 1985, o livro “Álbum poético de Alagoinhas” do poeta e, à época, estudante de
Letras da FFPA, José Olívio Paranhos. De imediato se percebe a escrita de um português
rebuscado, com longos períodos, e termos românticos, sem o tom jocoso presente em outros
textos. Exalta, em 2 parágrafos, a produção de Olívio por carregar, segundo ele, não só um
livro mas

“um ‘adoremus’” com as mais pungentes e sentidas orações gratulatórias à


sua terra-mãe querida, ou se nos dá, de coração aberto e chamejante como só
os puros e inspirados soem fazer, as partituras da lira poética onde com
mestria e inteligência dedilha as mães suaves canções em louvor a
ALAGOINHAS menina, moça, matrona, mênade, sílfide, ninfa, a misteriosa
musa dos seus sonhos.414

Mais tarde, a pesquisa compilada na monografia de Antonio Mário serviu de fonte


para a escrita de outro livro de José Olívio, chamado História da Freguesia de Santo Antonio
das Lagoinhas, um poema em 47 versos e onde se comemora os 150 anos de emancipação do
município.415 A última estrofe homenageia, postumamente, o professor, uma vez que no ano
de escrita do livro, Antonio Mário já havia falecido:

Parabéns Alagoinhas!
Parabéns, nossos vigários!
Salve o nosso professor:
O Saudoso Antonio Mário
Que a história alagoinhense
Colocou num relicário416

Em paralelo às atividades com o grupo Natureza, Antonio Mário pôde difundir seu
trabalho como intelectual e articulador cultural, agora oportunizado pelo meio universitário.
Nesse processo, cabe compreender a FFPA como ponto de encontro de movimentos que
envolveram, também, outros personagens do meio artístico, de fora da universidade. Portanto,

414
SANTOS, Antonio Mário dos. Prefácio in: OLÍVIO, José. Álbum Poético de Alagoinhas. Gráfica Editora
Oliveira Indústria e Comércio LTDA: Alagoinhas – Bahia, 1984.
415
Infelizmente, a “Monografia reformulada e ampliada por Antonio Mário dos Santos” (como se refere o
próprio José Olívio) e que ele utilizou como fonte bibliográfica, não foi encontrada, como já discutido na
introdução desse trabalho.
416
OLÍVIO, José. História da Freguesia de Santo Antônio das Lagoinhas. Da Ordem Brasileira dos Poetas da
Literatura de Cordel: Alagoinhas – Bahia, 2003.
116

assim como o diretor “se expandira” enquanto sujeito múltiplo, essa narrativa se expande e
abre as cortinas para outros artistas que constituíram a formação dessa integração entre vários
gêneros artísticos, o que mobilizou o público espontâneo reunindo universidade, artistas e
cidade num festival cultural que a cidade ainda não havia vivenciado.

2. A “comunidade” invade a arte e a arte invade a Faculdade

Num sábado de 19 de agosto de 1978, às 8 horas da manhã, as ruas e praças de


Alagoinhas viravam palco para o “Bando Anunciador”, que, desfilando pela cidade com seus
espetáculos itinerantes, anunciava à população sobre o evento que viria acontecer nos
próximos 8 dias. Era a 1ª Amostra de Artes de Alagoinhas, que reunia os “valores da
comunidade”, num festival de Artes plásticas, dança, música, teatro, literatura, cinema,
fotografia e folclore”, além de artesanato, campeonato de capoeira, comidas e bebidas típicas.
O evento foi idealizado, planejado e concebido pelos professores e alunos da Faculdade de
Formação de Professores de Alagoinhas, que, em conjunto com os artistas da cidade, visava
“mostrar o trabalho criativo dos membros de nossa comunidade, divulgando as produções
artísticas e valorizando a nossa Cultura”. 417
Como primeiro festival de artes integradas e de “grande porte” realizado pela FFPA, a
intenção era a troca de experiências entre artistas e a cidade, diante da necessidade de “sentir,
construir, participar fazendo arte, que dignifica e mostra a essência do Homem inserido em
sua História”.418 Numa matéria do jornal Tribuna de Alagoinhas, a articulista convencionou
denominar o festival, também, como “Semana de Arte Alagoinhense” projeto resultante de
“três exaustivos meses em que um grupo atuanto[sic] e idealista programou minuciosamente
até chegar à fase de execução”.419
E assim o evento ocorreu ao longo da semana de forma itinerante. Depois da abertura
anunciada no sábado, houve no domingo do dia 20 de agosto exibição de Capoeira no Tênis
Clube pela manhã, à tarde o público seguiu para prestigiar outra apresentação na Praça
Graciliano de Freitas e à noite oficializou-se a abertura da Exposição de Artes Plásticas,

417
Programação referente ao I Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso, 1978, exposto na sala
Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM, p.1.
418
Ibidem, p.3.
419
Jornal Tribuna de Alagoinhas. Ano I. nº 5. 11 nov. 1978, p. 6
117

artesanato e literatura no Auditório da Faculdade.420 Os outros dias da semana seguiram com a


mesma dinâmica de programação, nem sempre com agenda em todos os turnos e em espaços
diversificados, na perspectiva de aproximar o público das produções artísticas, em pontos
estratégicos da cidade. A praça Rui Barbosa era um desses espaços, pois havia se tornado área
de convergência do fluxo de pessoas. E apesar de, no início do século XX, o comércio ter
sofrido o processo de transferência para o “novo centro”, deixando o antigo no bairro de
Alagoinhas Velha, a escolha desse bairro para a realização de peças tinha valor simbólico, por
ele abrigar a Igreja Inacabada que consiste no marco zero da história da cidade.421
Foi assim que no sábado do dia 26, Antonio Mário inaugurou a praça da Igreja
Inacabada no festival, como “palco” para o espetáculo teatral O Vestido de Estrela Flor, sob
sua direção. Fora a primeira apresentação do sábado do dia 26. Antes, na tarde de quinta-feira
(24), o grupo de teatro Gearte já havia se apresentado nessa mesma praça com a peça
Chapeuzinho Vermelho.422 Depois do grupo Natureza, o festival seguiu para o auditório do
CSSS, onde se apresentou o grupo teatral D’ Fato com o espetáculo Fundamentos da
Vivência, à noite. Nesse dia, além do teatro, houve festejos com barracas de comidas e
bebidas típicas, na Praça Pedro Dórea (Alagoinhas Velha) em que a população aproveitou
noite adentro, ao som de violeiros, repentistas, emboladas, cordéis, música caipira e seresta.423
Outra via pública que serviu como palco artístico foi a já citada praça Graciliano de
Freitas, próxima ao Cine Capitólio e à Prefeitura Municipal. Na terça-feira do festival – dia 22
– ela foi ocupada pelo espetáculo folclórico com Bumba-Meu-Boi, seguido de Dança do
Caboclo, Flores do Velho, Rum de Iansã, Samba de Roda e Terno de Reis com queima de
lapinha.424 Depois das praças, as amostragens migravam geralmente para os auditórios da
FFPA, do Colégio Santíssimo Sacramento (CSSS) ou do CILNB. Assim o foi, por exemplo,
nos festejos de quinta-feira; após a peça em praça pública, o itinerário seguiu para a FFPA
com apresentação de poesia de cordel, e 2 horas depois, houve o show de cantores no
auditório do CSSS. Vale ressaltar a proximidade dos dois locais: a FFPA se localizava onde
em 2021 corresponde à Biblioteca Municipal Maria Feijó, e fica numa avenida próxima à rua

420
Programação referente ao I Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso,1978, exposto na sala
Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM, p.1.
421
Ibidem.
422
Ibidem.
423
Ibidem.
424
Percebe-se a diversidade de manifestações populares conformadas no que o panfleto definiu como
“espetáculo folclórico”. Dança de caboclo, Flores do Velho e Rum de Iansã, por exemplo, são expressões de
cantigas e batuques cuja referência vem das religiões de matrizes africanas. O Terno de Reis com a queima da
lapinha faz parte da tradição religiosa católica, trazida pelos jesuítas para o Brasil, uma representação simbólica
sobre o nascimento do Menino Jesus na manjedoura e a visita dos três reis magos.
118

do CSSS. Assim, o público tinha mais chances de apreciar ambas as apresentações e evitar se
dispersar entre um espetáculo e outro.
Havia amostras que exigiam equipamentos apropriados, e, portanto, era viável
aproveitar a estrutura dos auditórios. Como foi o caso do segundo dia do festival – noite do
dia 21 de agosto – em que se realizou uma projeção de filmes, documentários e slide com
temas relacionados a fotografia, na FFPA.425 Nesse mesmo dia, outro espaço ocupado pelas
amostragens de arte foi o CILNB, que recebeu em seu auditório o Teatro de Fantoches Pic-
Nic com a peça Estórias Contadas.426
Os auditórios também eram cotados para os shows musicais como na noite de quarta-
feira, em que o auditório do CSSS recebeu corais e na sexta em que este se manteve ocupado
por uma apresentação de dança. Entretanto, o encerramento do festival teve espetáculo de
música fora da estrutura dos auditórios, ao ar livre. Nesse dia de domingo, houve a
“participação especial” Conjunto de Sopro da Universidade UFBA sob a regência de
professor Schwebel, na praça Rui Barbosa.427
O fato de Alagoinhas ainda não possuir um teatro ou um palco adequado para esses
grandes espetáculos, fazia com que os auditórios da cidade tivessem de ser analisados pelos
técnicos e coreógrafos responsáveis pela montagem, para fazer as devidas adaptações. 428 No
período, os auditórios da FFPA, do CSSS e do CILNB eram os únicos em funcionamento.
Havia outro chamado Cid Bastos, localizado no convento S. Francisco, com 300 lugares e
área de 200m², mas encontrava-se fechado, em estado precário de conservação. O auditório da
FFPA era o maior, com 1000 poltronas distribuídas em 739m². Apesar de ser tido como
“especialidade apropriada” e servindo para 20 espetáculos, em média, por ano, o estado de
conservação não era “bom” como o dos outros dois. O do CSSS, por sua vez, também possuía
1000 lugares, mas organizados em menor espaço, 616m²; tinha “caráter particular”,
encontrava-se em “bom estado de conservação”, “especialidade apropriada”, e recebia 50
espetáculos por ano – número maior em relação ao da FFPA. Essa mesma quantidade de
eventos tinha o auditório Pedro Sancho, no CILNB. Esse, no entanto, tinha a menor área,

425
Mesmos participantes do Clube de Cinema e Fotografia, mas o nome do clube não apareceu.
426
Programação referente ao I Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso,1978, exposto na sala
Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM.
427
Ibidem.
428
Como foi discutido no 1º capitulo, Alagoinhas possuiu o Cine Teatro Popular cuja estrutura contava com um
palco com estrutura para realização de espetáculos diversos. No entanto, no referido ano de 1978, o Cine Popular
já havia sido demolido. Segundo o documento de levantamento cultural, em 1980 somente a estrutura do Cine
Capitólio e a do Cine Alagoinhas existiam.
119

120m², com 240 poltronas, mas estava em “bom estado de conservação”, e “especialidade
apropriada”.429
A semana da I Amostra de Arte aconteceu em agosto, mas os esforços vinham se
desdobrando desde maio. Os artistas se encontravam em reuniões semanais, visando um ponto
de convergência em meio a “universos de idéias, acertos e desencontros”, conflitos comuns
diante de uma heterogeneidade artística.430 Esse “universo” dos bastidores que não “chegava
ao conhecimento do público” incluía, principalmente, questões de produção. Na cidade, os
responsáveis pela produção ainda lidavam com questões básicas como reservas limitadas de
hotéis e falta de infraestrutura turística em Alagoinhas. 431 O volume de artistas e produtores
que chegavam a Alagoinhas com a realização de cada espetáculo parecia ser uma demanda
extraordinária para a cidade.432 Ao fim e ao cabo, a diretora da FFPA e articulista da matéria,
Denise Gurgel, apesar dos pesares apresentados, reconheceu o saldo positivo que a Amostra
trouxe ao público alagoinhense e aos artistas que puderam, sobretudo, levar suas produções às
plateias da capital. O sucesso foi, portanto, coletivo. Fora a primeira vivência com um festival
do nível, que possibilitou à comunidade o prestígio e a oportunidade de “viver uma
experiência nova, aparentemente de resultados imprevisíveis, mas que se revelou, acima de
tudo, gratificante”.433
Para poder realizar, possivelmente, um balanço do que foi a 1ª Amostra de Arte, a
FFPA fez uma pesquisa através de questionário distribuído entre vários setores da sociedade.
Na matéria do Tribuna de Alagoinhas afirmava-se que a iniciativa seria tão interessante para a
comissão organizadora, quanto para a própria “comunidade” que “participou ativamente de tal
movimento cultural, deichando[sic] claro, portanto, o sucesso já garantido da próxima
Semana de Arte”.434 No entanto, apesar das expectativas do jornal, no ano seguinte a

429
Todos esses dados sobre auditórios podem ser encontrados no documento de levantamento cultural em
Alagoinhas realizado pela FFPA. S/d (de acordo com Iraci Gama, de 1978), seção “Festas”. Pasta “Projetos
Culturais”- CENDOMA/FIGAM.
430
Jornal Tribuna de Alagoinhas. Ano I. nº 5. 11 nov. 1978, p. 6.
431
“Idêntica preocupação ocorre com relação aos restaurantes onde são feitas as refeições dos artistas; não há
muitas opções, se considerarmos o número elevado de músicos ou bailarinos, o que exige instalações mais
amplas. Mobilizam-se igualmente carregadores extras para o recebimento dos volumes que acompanham em
caminhão à parte, os artistas, instrumentos musicais, sistemas de som e iluminação, cerca de trinta caixotes com
sapatilhas, chapéus e fantasias completas” (Ibidem).
432
De acordo com o levantamento de dados de Salomão Barros, em seu tempo de escrita (1979) a cidade tinha o
Roma Hotel e o Hotel Bahia, sendo os mais recentes, o Hotel Denwer e o Continental. O autor fala, de forma
genérica, sobre a existência de hotéis menores e “várias pensões”, além de, nesse período, haver os planos de
instalação de um “grande Hotel”. No distrito de Alagoinhas Velha, projeto do grupo paranaense Turinvest Hotéis
Turismo Segundo Barros, O nome seria “Hotel das Laranjeiras” e ocuparia uma área de 40mil m², tendo sido
doado pela prefeitura municipal de Alagoinhas. Foram investidos por ela 5 milhões de cruzeiros na primeira
etapa, e prometia ser o melhor do litoral norte do Estado à época. BARROS, Salomão, op. cit., p. 269.
433
Ibidem.
434
Ibidem, p. 8
120

programação do evento foi reduzida e a proposta modificada: em 1 de dezembro de 1979 a


FFPA realizou o 2º Salão de Artes Plásticas, “abstraindo do “caráter anterior de Festival,
tornando-se mais específico por abranger somente as artes plásticas”, ou seja, pintura,
escultura, cerâmica, gravuras, fotografias e instalações.435
Com a nova proposta para 1979, levantou-se uma questão norteadora sobre a temática do
evento, o dilema do artista entre produzir em sua liberdade criativa ou atender às expectativas
de um mercado.436 Foi possível acessar essa reflexão no texto de apresentação da proposta do
festival, redigido pela artista plástica Rita Moraes. Em sua perspectiva, há que respeitar a
liberdade do artista, e sua “necessidade interior” o que não significa negligenciar a
comunicação com o interlocutor, pois ela conclui o texto destacando que o artista não deve
deixar de admitir sua “função social e educativa”.437 A real preocupação estava nos “tempos
hodiernos” onde se vê “essa afobação, em que a maioria, artistas e marchands, visam efeitos
rápidos para lucros imediatos.438 Além de anunciar a proposta da amostra, ela sugeriu aos
artistas de Alagoinhas que se reunissem com mais frequência para dialogar sobre questões
intrínsecas a esse setor.439
Esse dilema do artista que também envolve a necessidade de se inserir no mercado para
garantir seu sustento motivou reflexões numa coluna do Jornal da Bahia, edição de 1979. A
matéria sobre arte e cultura em Alagoinhas deu voz a alguns artistas plásticos da cidade que
trouxeram seu ponto de vista. Dentre eles, Luiz Ramos, definido pelo jornal como “jovem
pintor alagoinhense, autor de diversos trabalhos em óleo, guache e aquarelas, tendo, inclusive,
trabalhos expostos atualmente em Angola”.440 De acordo com o pensamento de Luiz Ramos, a
criação do artista está submetida ao mercado à medida que as pessoas se preocupam em
“adquirir obras de consumo, mais para efeito decorativo, ‘quando o mais importante é a arte
que fale do tempo’”.441

435
Provavelmente foi inspirado no I Encontro Profissional de Artistas Plásticos Profissionais e no I Seminário
Nacional de Artes Cênicas, eventos nacionais que fizeram parte de uma grade dinâmica de atividades culturais
em 1979, no Brasil. UCHÔA, op. cit. / Documento referente à programação do 2º Salão de Artes Plásticas de
Alagoinhas, 1979. Documento Avulso, exposto na sala Iraci Gama, CENDOMA/FIGAM.
436
Documento referente à programação do 2º Salão de Artes Plásticas de Alagoinhas, 1979. Documento Avulso,
exposto na sala Iraci Gama, CENDOMA/FIGAM.
437
Sobre a autora do texto, Rita Maria Moraes, não foram encontradas mais informações além do fato de ter
participado do 2º Salão de Artes Plásticas.
438
Texto de Apresentação. Documento referente à programação do 2º Salão de Artes Plásticas de Alagoinhas,
1979. Documento Avulso, exposto na sala Iraci Gama, CENDOMA/FIGAM.
439
Texto de Apresentação Documento referente à programação do Salão de Artes Plásticas de Alagoinhas, 1979.
Documento Avulso, exposto na sala Iraci Gama, CENDOMA/FIGAM.
440
Jornal da Bahia, 2 de jul. 1979.
441
Ibidem.
121

Outro pintor que contribuiu para a reflexão na matéria foi Anthonio Lins, artista que se
definiu ao jornal como “autodidata”, tendo realizado, à época, varias exposições e com uma
produção de 15 trabalhos por mês, em média, além de produzir, em tempo livre, arte com
serigrafia e artesanato com couro. “Saio com meus quadros embaixo dos braços e tenho que
vendê-los, às vezes até por bem menos do seu valor. Só não posso voltar para casa com
eles”.442 Além das questões levantadas, a falta de estrutura adequada para os artistas, na
cidade, parecia ser o problema mais urgente a sanar. Litho Silva, artista plástico, reivindicava
condições dignas diante da falta de estímulo com a qual o setor lidava, visto que “verdadeiros
artistas da cerâmica estão deixando de produzir obras de arte para construir tijolos”.443 Vale
ressaltar que não só os artistas plásticos reivindicavam “estrutura básica” para manutenção do
fazer artístico.444 Era preciso lutar por um espaço que agregasse todos os trabalhadores de
arte. Por isso a ideia de um Centro Cultura já povoava o imaginário e as perspectivas da
classe.445
Desde o 1º festival em 1978 havia se deflagrado vínculos entre artistas de diversos
gêneros diante da possibilidade da produção e construção conjunta. O artista Anthonio Lins,
por exemplo, construiu uma amizade com Antonio Mário e do fruto desta, pintou um quadro
em que estão representados os dois amigos na porta do prédio onde Antonio Mário passou a
morar em 1989 (ano de produção da obra): “eu sempre conversava com o professor Antonio
Mário e nossa amizade era mútua: ele me admirava como artista e eu o admirava como uma
pessoa inteligentíssima”.446 No quadro (Imagem 13), Anthonio Lins está à direita, vestido de
branco, e Antonio Mário, um pouco mais baixo em estatura, aparece à esquerda. Ao fundo, a
representação da vista da entrado do bairro Alto do Capinam. O “professor”– como o artista
plástico lhe chama – foi presenteado com a obra.

442
Ibidem.
443
Ibidem.
444
Ibidem.
445
Em 1980 nasceu, oficialmente, a ideia de transformar Igreja Velha inacabada em Centro de Cultura. Banner
de exposição da Figam sobre o nascimento do “Grupo de Pesquisa Pró-memória de Alagoinhas”.
CENDOMA/FIGAM.
446
O prédio ficava no Alto do Capinãn, entrada da Praça Kennedy. Depoimento cedido por Anthonio Lins à
autora, em 5 de outubro de 2021.
122

Imagem 13: Pintura produzida por Anthonio Lins, representando Antonio Mário à esquerda e
o próprio autor da obra, à direita. LINS, Antonio. (Sem Título). Alagoinhas, 1989.

De modo geral, esse vínculo entre os artistas também tinham se fortalecido pela atividade
geradora da ideia do festival: o Levantamento Cadastral dos artistas de Alagoinhas. A
atividade fora solicitada pela Fundação Cultural do Estado da Bahia para a FFPA, e tinha
intuito de elaborar um documento em torno de um estudo sobre os artistas da terra.447 E como
Iraci Gama, à época, era professora do curso de Letras da FFPA, e tinha contato com os
artistas não somente da universidade, mas os que não tinham esse vínculo, foi incumbida de
coordenar o projeto.448 A professora relatou, em entrevista, que depois de os artistas serem
informados sobre o cadastro, houve um movimento de expectativa na cidade. E que,
somando-se ao advento da “distensão” do regime militar, os ânimos no meio artístico se
mobilizaram para “ver algo diferente acontecer”.449
Podemos considerar, portanto, que por mais que a mola mestra para realização dos
festivais tivesse sido o projeto de reconhecimento cadastral dos artistas da terra, a necessidade
desse “conhecimento da realidade social” já surgia no seio de um movimento cultural
incipiente, engajado com literatura, artes plásticas, música, teatro, expressões populares e

447
Entrevista cedida por Iraci Gama à autora, em 25 de maio de 2021.
448
Ofício encaminhado à coordenadora do Centro de Cultura de Alagoinhas, Jocelita Correa, em 13 de fevereiro
de 2008, como resposta à solicitação do histórico deste. Documento exposto na sala Iracy Gama -
CENDOMA/FIGAM.
449
Entrevista cedida por Iraci Gama à autora, em 25 de maio de 2021. Esse percurso – programa da Funceb,
cadastros dos artistas, festival que culmina na “decoberta desses artistas” – se repete em várias fontes diferentes
além do discurso de Iraci.
123

folclóricas. Por isso nasceu o primeiro Encontro em 1978 que, inicialmente, foi chamado de
“Amostra de Artes de Alagoinhas”, mas depois, foi oficialmente nomeado como Encontro de
Cultura de Alagoinhas. A mudança do nome contemplou a ideia de unir não só vários gêneros
artísticos, mas manifestações da cultura popular que construíram a identidade de Alagoinhas,
seus distritos e do litoral norte e agreste baiano.
Esse caráter amplo de festival foi resgatado no 3º Encontro Cultural de Alagoinhas,
realizado entre 23 de outubro até 2 de novembro de 1980, com a programação completa.450
Abriram-se os trabalhos com o Bando Anunciador no primeiro dia – uma quinta-feira – sendo
que nesse ano, o Bando saiu da praça Santa Isabel, e foi até a Praça Rui Barbosa apresentando
o início das festividades pelas ruas da cidade. A programação itinerante e gratuita com
apresentações na rua, para incentivar a participação do público espontâneo, tornou-se uma
característica de todas as vindouras edições dos Encontros Culturais de Alagoinhas.
É nessa III edição do festival que Antonio Mário se revela, nessa narrativa, enquanto
poeta. No Salão de Literatura, promovido no dia 24 de outubro da programação, ele
interpretou duas poesias no recital, chamadas “Mucama” e “Revolução II”. 451 Ambas não
aparecerem com os nomes dos respectivos autores. Os indícios levam a crer que “Mucama”
seja de autoria do poeta modernista Raul Bopp.452 Ao que parece, não recitou poesia de sua
autoria, bem como não foram encontrados poemas escritos por ele. No documento de
Levantamento cultural ele também não foi indicado nessa categoria específica, mas em 9 de
junho de 1979 (um ano antes do festival em questão), recebeu o título de Cidadão da Poesia
concedido pela Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel, “pelos relevantes
serviços prestados à Poesia Popular falada, cantada e escrita em nosso País”, nos dizeres
exatos do “diploma”.453
O Salão de Literatura uniu apresentações de poetas e repentistas e nesse dia aconteceu
a já mencionada Exposição “Memória de Alagoinhas” projeto ligado ao Pró-Memória, do

450
Programação referente ao III Encontro de Cultura de Alagoinhas – Exposição de poesias. Documento avulso,
1980, exposto na sala Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM.
451
Programação referente ao 3º Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso, 1980, exposto na sala
Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM.
452
Além de Antonio Mário, três amigos, que, inclusive, cederam entrevistas e depoimentos para esse trabalho,
participaram: Luis Ramos interpretou dois poemas no recital: “Incerteza”, de sua autoria, e “Menino Livre”,
escrito por Antonio Barreto, um dos poetas expositores. José Olívio apareceu somente na relação de poemas
expostos, não tendo recitado. E Antonio Cursino Interpretou o poema “Operário em Construção” de Vinicius de
Moraes. - Programação referente ao 3º Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso,1980, exposto na
sala Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM.
453
A ordem foi fundada em 6 de novembro de 1976. No ano de expedição do diploma sua sede era situada
provisoriamente na Rua Alvarenga Peixoto, no bairro da Liberdade em Salvador. Informações extraídas do
Documento expedido pela Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel – Salvador, 9 de junho de 1979.
Pasta “Antonio Mário dos Santos” - CENDOMA/FIGAM.
124

qual Antonio Mário participou integrando a equipe.454 Ao que parece, a noite da literatura se
tornou tradição nos festivais seguintes, visto que na 4ª edição ela retornou, articulada com o
Salão de Poesias, composto por recital, cordéis e lançamento de livros.455 Assim, é
interessante perceber tais matizes abrangidos pelo festival: o encontro entre a poesia dos
acadêmicos e a poética do povo; o cordel e o repente embalados pelo resgate e reconstituição
da memória da cidade.
Após a noite literária, foi a vez dos artistas plásticos desfrutarem de sua noite de
exposição com a “Mostra de Artes Plásticas do III Encontro Cultural de Alagoinhas”,
realizada na noite de domingo do dia 26 de outubro. Dessa vez, o artista que elaborou o texto
de apresentação da mostra foi Josilton Tomm, e reforçou as reflexões levantadas na
Exposição do ano anterior, referente à liberdade criativa do artista e seus desdobramentos
diante de um mercado nos moldes capitalistas.456 Dentre os apelos do artista que convergem
nas falas de Rita Moraes, Anthonio Lins e Luiz Ramos, vê-se a mesma reivindicação já
exposta anteriormente por Litho Silva, acerca de um local que fornecesse estrutura adequada
para o setor:

Bem, o que podia acontecer nessa região do meio agreste, que faz parte de
um todo?... Uma total precariedade do ensino da instituição arte; uma falta
lamentável de um Centro de Cultura onde todas as pessoas sensíveis teriam
uma fonte de pesquisa adequada, espaço para desenvolver experiências e
mostrar projeto e resultados de trabalhos, elaborados conscientemente, no
vasto campo da arte e ciência, e, em sua aplicação em benefício,
principalmente da nossa comunidade.457

Ainda que, para ele, a mostra de arte continuasse “como as anteriores, tímida e
limitada o que diz respeito a conjuntos de trabalhos numa linguagem contemporânea atual”,
ressaltava sobre a importância de artistas comparecerem para debater sobre as questões que
lhe afligem.458
Vale ressaltar que, em 1982, 2 anos após o 3º festival, Antonio Mário havia feito uma
cirurgia que consistia em por uma prótese de platina na perna, por conta do reumatismo. A

454
Há uma possível relação com a criação, no governo Geisel Em 1979, da Fundação Nacional Pró – Memória
(Pró-Memória), com objetivos semelhantes. Ver: UCHÔA, op. cit.
455
A Noite da Literatura foi realizada no dia 24 de novembro de 1984. Banner sobre o Grupo Pró-Memória.
Exposição permanente em homenagem a Antonio Mário – FIGAM/ Programação do 4º Encontro Cultural de
Alagoinhas. 1984, Cendoma – FIGAM.
456
Programa de apresentação referente à III Mostra de artes plásticas do III Encontro Cultural de Alagoinhas.
Documento avulso, 1980, exposto na sala Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM.
457
Josilton Tomm – Ibidem.
458
Ibidem.
125

prótese teria vida útil de 20 anos. Isso significa que, aos 80 anos, ele estaria impossibilitado
de realizar outra cirurgia para o implante de nova prótese, devido à idade. Ele estava ciente,
portanto, de que chegando a tal idade o problema se agravaria, e com o processo viria a perda
gradativa da possibilidade de andar.459
Nesse intervalo de tempo não houve festival. Depois de 3 anos, a comissão
organizadora decidiu reunir os artistas dos diversos segmentos “para um trabalho
conjunto”.460 A intenção, portanto, era fortalecer o movimento e pressionar os governos, tanto
o municipal, como o estadual, nos trâmites para que a construção do desejado Centro de
Cultura fosse concebida, e alegando tal importância, conseguir patrocínio para realizar o 4º
Encontro de Cultura.
Formalizou-se, portanto, uma discussão no “Debate sobre o Centro de Cultura”, na
noite de 19 de novembro de 1984, no qual participaram o prefeito de Alagoinhas, Judélio
Carmo (1983- 1988), além de representantes da Fundação Cultural do Estado da Bahia e do
grupo Pró-Memória. Nessa mesma noite aconteceu o debate sobre os projetos desse último. A
discussão giraria em torno do pedido de “tombamento do curtume da família Meyer, [...] da
ruína de Alagoinhas Velha, bem como da Estação Férrea de São Francisco”.461 O pedido foi
recebido pela Fundação do Patrimônio Histórico da Bahia, que enviou técnicos à cidade para
discutirem com os integrantes do grupo Pró-Memória, responsáveis por mostrar os lugares a
eles. Dessa forma, o debate que aconteceu trouxe as informações ao público sobre tais
encaminhamentos. Apesar de já ter sido atestada a presença de Antonio Mário à frente do
grupo, nessa noite os coordenadores (provavelmente do debate) foram Iracy Gama e Antonio
Fontes.462
Ao longo dos anos de festivais descortinou-se um caráter diretamente engajado na
programação. Inclusive, a consciência de que o setor artístico estava crescendo e se
estabelecendo, possibilitou a incorporação de atividades de formação, tanto voltadas para a
comunidade acadêmica como para um público mais generalizado. No 3º Encontro de Cultura,
houve oficinas de teatro na FFPA, aula pública sobre essas oficinas no auditório do CSSS e
Seminário de Cultura no mesmo colégio.

459
Em seus últimos momentos de vida, Antonio Mário estava acamado, acometido pelo reumatismo. No atestado
de óbito, destacam-se uma série de enfermidades como insuficiência respiratória, infecção respiratória,
septecemia, infcção urinária, distúrbio de coagulação, doença pulmonar. Cópia da certidão de óbito de Antonio
Mário dos Santos. Alagoinhas, 17 de dezembro de 2002. Pasta “Antonio Mário” – CENDOMA/FIGAM.
460
Projeto referente ao IV Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso, 1984, exposto na sala Iraci
Gama - CENDOMA/FIGAM.
461
Ibidem.
462
Ibidem, p.3.
126

No 4º Encontro de Cultura, os objetivos reforçaram esse engajamento e a interação


social: “Divulgar os trabalhos dos artistas locais e regionais; promover integração entre os
vários setores da comunidade interessada na arte; discutir problemas culturais da região, no
campo educacional, artístico ou social”.463 E para selar esse estreitamento de relações entre
artistas e “comunidade” e oportunizar ao público uma vivência artística em que ele fosse
protagonista, criou-se o momento “Revelação do dia – intervalo na programação, mantido
‘em aberto’, diariamente, para quem quisesse demonstrar uma aptidão ainda não revelada”,
sugestão do artista cênico e poeta, Lázaro Zacariades.464
Tal “engajamento” também possibilitou o acesso da população à leitura com a
presença de um “carro-biblioteca” por dois dias na praça rui Barbosa. Além disso, o festival
realizou outra edição da oficina “Arteação”, que também aconteceu no III Encontro, voltada
para o público infantil (em homenagem ao Dia da Criança), envolvendo atividades como
pintura, escultura, teatro, música, dentre outras. No IV Encontro, a culminância aconteceu no
último dia do festival (domingo) com direito a pintura de muros de casas (mediante permissão
dos donos) e venda do livro infantil Sinfonia do Bosque de Geraldo Chaves.465
Nessa edição de 1984, Antonio Mário participou, na sexta-feira à noite (dia 23 de
novembro), do debate “A Arte Pop da Década de 1960 para cá” e “as artes e os artistas
plásticos em Alagoinhas”, juntamente com Luis Ramos. Quem fez a mediação foram os
artistas Décio Torres e Rita Moraes.466 Outro tema incluído nessa edição, e de interesse geral
para os cidadãos de Alagoinhas, foi tratado no debate A Saúde como Elemento de Cultura:
coordenado por Iraci Gama Santa Luzia, Luis Ramos e o Diretório Acadêmico da FFPA.467
Foram agregados à programação debates que intencionaram contemplar os novos
cursos instituídos na FFPA, como o curso de Ciências que chegou em 1979.468 Assim, foi
organizado em 21 de novembro de 1984 (na FFPA) o simpósio “Situação da terra em
Alagoinhas: cultivo, clima, plantio, flora, fauna”. No dia seguinte, houve o “Seminário:
situação dos cursos de Estudos Sociais e Ciências”, além da Sessão de instalação do Núcleo
da Associação de Literatura do Brasil – ALB e do Departamento de educação na FFPA.469 A
expansão de departamentos na faculdade criava necessidade de crescer espacialmente

463
Ibidem, p.2.
464
Ibidem.
465
O evento ocorreu no domingo do dia 25 de novembro, na Praça Rui Barbosa. Ibidem, p.3.
466
Ibidem, p.4.
467
Teve como expositores Augusto Moncorvo com o tema “Os segredos da Medicina Oriental” que aconteceu na
FFPA às 20hs do dia 21, na quarta-feira. Ibidem, p.4.
468
Tribuna de Alagoinhas. Ano I. Nº 10. 20 jan. 1979, p. 3.
469
Projeto referente ao IV Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso, 1984, exposto na sala Iraci
Gama - CENDOMA/FIGAM.
127

também. As discussões sobre a instituição perpassavam a possibilidade de ser incorporada a


um Campus Universitário da Universidade do Estado da Bahia - UNEB, em Alagoinhas. Foi
elaborada uma “comissão pró-area do campus da FFPA” que coordenou as discussões sobre a
Planta do campus universitário na cidade.470
Se por um lado o 3º e o 4º encontro foram ricos em oficinas de teatro e dança, houve
poucos espetáculos teatrais. Inclusive, nem no 3º, nem no 4º encontro o grupo Natureza de
Antonio Mário apresentou espetáculo, pelo menos de acordo com a programação consultada.
No 3º Encontro, a única peça foi O Próximo, do grupo Meninos da Terra, no auditório da
FFPA, na noite do dia 25 de outubro. No 4º Encontro teve teatro no primeiro e no último dia:
em 17 de novembro, houve dois “espetáculos satíricos” – um coordenado pelo grupo Nuclator
e outro por Lazaro Zacaríades, ambos no auditório da FFPA; no dia 25 de novembro, foi
apresentada, também na FFPA, O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá (autoria de Jorge
Amado), dirigida por Decio Torres.
A tradição dos festivais se manteve sempre na perspectiva de apresentar
heterogeneidade artística. Apresentações de dança coordenadas pela professora Dinalma;
espetáculos musicais do grupo Poetas do Povo, e demais apresentações musicais visando
“artistas que apresentarão seus números de qualquer ritmo, mas procurando mostrar
composições criadas pelos integrantes do espetáculo”.471 A Retreta Militar também era
tradição anual – com a Euterpe Alagoinhas, e no IV encontro, se apresentou na praça Rui
Barbosa sob coordenação do Pró-Memória.472 A 4ª edição do Festival também possibilitou o
Relançamento do Clube de Cinema e Fotografia no dia 22 de novembro, em noite de projeção
de cinema em vídeo cassete e debate na FFPA.473
Pode-se considerar a escolha do mês de novembro para a realização do 4º festival,
como estratégica: a edição ocorreu entre 17 e 25 de novembro de 1984, envolvendo o
simbólico dia 20 - Dia da Consciência Negra. Houve, portanto, uma programação completa
sobre o tema concentrada no dia 20. Abriu-se o evento com o Simpósio “o Negro do Brasil/ O
Negro em Alagoinhas”,474 discussão que sugere alinhamento com as principais pautas
reivindicadas pelo MNU Brasil/ Bahia, como o reconhecimento e valorização das identidades
negras. Na programação da atividade, surgiram os seguintes nomes como realizadores do
debate: Ialmar Viana, Ires Muller, Zalvira Conceição, Nelson Amaral – professores da FFPA;

470
Ibidem, p. 5.
471
Ibidem.
472
Ibidem.
473
Ibidem.
474
Ibidem.
128

Antonio Fontes – advogado, membro do Pró-Memoria e que também contribuía com


consultoria jurídica para o grupo; e Augusto Moncorvo – Bacharel em Letras.475 Além dessas,
a exibição do filme Quilombo, na FFPA, abriu as possibilidades para se discutir como a
identidade negra, e elementos míticos de sua religiosidade, cultura e etnias se apresentam
como representatividade. Encerrou o dia com a “noite da consciência negra”, trazendo a
tradicional capoeira, os costumeiros samba de roda e maculelê, e apresentação de dança afro
“com instrumentos específicos”. É importante considerar que essa temática surgiu somente no
festival de 1984.476 Com base na análise dos programas, nos anos anteriores, as pautas raciais
não atravessaram a programação, no que concerne a atividades formativas e para além das
expressões culturais de influência afro-brasileira.
A programação do dia da Consciência Negra foi organizada pelo Movimento Negro
Unificado de Alagoinhas (M.N.U.A) criado em 1978.477 Os nomes dos responsáveis pela
coordenação do movimento que surgiram no documento, foram “Chiquito” e Nadson Ornelas.
Chiquito, à época um jovem negro de 24 anos, assim chamado pelos camaradas de
movimento, é Francisco José Santos Alves. Com o tempo passou a ser conhecido
popularmente como “Chicão”. Foi possível realizar uma entrevista com ele e saber da
participação de Antonio Mário no movimento, se havia algum nível de envolvimento.
Entretanto, além das fontes não atestarem sua participação, Chicão também relatou que o
diretor não aderiu ao movimento.478
Parafraseando Luiz Carlos Maciel, sob o olhar de hoje, voltado para trás, a impressão
que se tem é de que a cidade “parecia ferver”.479 Podemos perceber, no entanto, que esse
processo de efervescência cultural não se deu de forma passiva, como se a chegada da
universidade, automaticamente, fizesse surgir os festivais e as produções artísticas
amadurecessem. O período foi propício, com a unificação de lutas entre estudantes, artistas e
trabalhadores, além dos sindicatos que retornavam à legalidade. Havendo inserção na

475
A título de representatividade, entre esses nomes, somente Augusto Moncorvo e Antonio Fontes poderiam ser
consideradas pessoas negras. O jornalista e escritor Paulo Dias também endossou isso; sendo que foi
contemporâneo a esses dois. Numa coluna do site News inFoco, menciona sua relação com Moncorvo. Ver:
https://newsinfoco.com.br/inicio/2019/12/01/a-historia-e-a-cultura-de-alagoinhas-que-vi-e-vivi-por-paulo-dias/.
Acesso em: 30 julh 2021.
476
Ao menos não esteve presente na programação.
477
Programação referente ao IV Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso, 1984, exposto na sala
Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM. Sobre a criação do MNUA – banner referente aos acontecimentos de 1978 –
exposto na FIGAM.
478
Entrevista cedida por Francisco José Santos Alves, “Chicão”, à autora em 4 de maio de 2021.
479
A frase original é “Com o olhar de hoje, voltado para trás, a impressão que se tem é de que o Brasil parecia
ferver.” Ver: MACIEL, op. cit., p. 10.
129

faculdade, esses movimentos agregados foram cruciais para o diálogo e articulação entre
“grande público” e meio universitário.
Tanto o festival quanto o documento a partir do qual se germinou sua ideia –
Levantamento Cultural – fizeram parte do programa de Dinamização Cultural, sob
responsabilidade da Secretaria de Educação e Cultura em convênio com a Fundação Cultural
do Estado.480 O objetivo do programa de Dinamização era promover “um intercâmbio entre
valores artísticos da capital e do interior levando esses últimos a outros palcos e trazendo a
Alagoinhas atrações consagradas do Teatro Castro Alves”.481 Nessa perspectiva de
“interiorização da arte”, o programa não se resumiu somente à produção da 1ª Amostra de
Artes. Passado 1 mês após o 1º Encontro, a cidade foi contemplada com o retorno do
Conjunto de Sopro da UFBA e a participação do Ballet Brasileiro da Bahia, numa tarde de
programação musical, realizada no auditório do CSSS.482 Em seguida, o show de dança ficou
por conta dos trinta componentes do Ballet, tendo se apresentado no salão da FFPA. Todas as
atrações “de alto nível” foram inteiramente gratuitas ao público.483
Além dos festivais, a FUNCEB também produzia oficinas de formação artística na FFPA.
O jornal Tribuna de Alagoinhas anunciou em 1978, sobre um curso fornecido por Manuel
Lopes Pontes, ator que foi colega de Antonio Mário na turma de teatro da ETUFBA, tendo
participado com ele da peça O Boi e o Burro a Caminho de Belém. O curso de Montagem e
Produção de Espetáculo fez parte do projeto de Integração de Entidades de Ensino Superior e
Comunidade, “abrangendo as faculdades e Universidades vinculadas à Secretaria Estadual de
Educação”. Este, por sua vez, foi desenvolvido pela Fundação Cultural do Estado e pelo
Departamento de Ensino Superior. Foi realizado na FFPA.484
Além disso, uma Oficina chamada Chapéu de Palha foi fornecida por Jurema Pena, outra
ex-colega de turma de Antonio Mário. Realizada entre 8 a 29 de abril de 1985, todas as aulas
aconteceram no auditório da FFPA.485 Como material de apoio, ofereceu-se uma apostila

480
Consistia num dos 3 órgãos específicos para questões culturais no Estado, sendo os outros dois, o Conselho
Estadual de Cultura, responsável por formar política cultural do Estado e aprovar o Plano Estadual de Cultura; e
o Instituto do Patrimônio Histórico e Cultural, responsável pela preservação do patrimônio cultural nas cidades
baianas. / A FUNCEB foi criada no ano de fundação da FFPA, em 1972, apesar de seu funcionamento só ser
efetivado em 1974. UCHÔA, op. cit.
481
Jornal Tribuna de Alagoinhas. Ano I. nº 5. 11 nov. 1978, p. 6.
482
Segundo o Jornal, foram “trinta figurantes sob a regência do maestro Schewebel” que “executaram um
repertório que variou de Vila-Lobos a trilhas sonoras de sucessos cinematográficos: My fair Lady, The last time
Y [sic] saw Paris, e outros” - Jornal Tribuna de Alagoinhas. Ano I. nº 5. 11 nov. 1978, p. 6.
483
Segundo o Jornal Tribuna de Alagoinhas, o grupo, reconhecido internacionalmente, já havia se apresentado
na Argentina, México e estava com show marcado nos Estados Unidos (Ibidem).
484
Ibidem, p. 3.
485
Foi patrocinada pela Fundação Cultural e pela Prefeitura da cidade, com responsabilidades divididas.
Solicitação de financiamento para o projeto Chapéu de Palha, assinada por Iraci Gama Santa Luzia e enviada ao
130

sobre a “História do Teatro”. É interessante trazer alguns pontos para serem discutidos sobre
essa história, pois diz respeito ao conteúdo com o qual os artistas em formação entravam em
contato. Foi organizado por Jurema Pena, e tratou-se de um resumo do livro O Que é Teatro,
de Fernando Peixoto.486 O texto mostra a necessidade desse teatro se tornar popular e
acessível às massas, e quando acessível, ser transformado num meio de educar politicamente
o público. A trajetória do texto se encerra com a fase do teatro pós AI-5, até os “dias atuais”
que consistem na década de 1980. Traz Augusto Boal com o teatro do oprimido – já discutido
aqui no 1º capítulo, inclusive figura cujos métodos foram utilizados por Antonio Mário – com
a definição de que o Teatro do Oprimido “deve devolver os meios de produção teatral ao
povo”, seguindo um movimento nacional na busca por um teatro vinculado aos bairros,
487
sindicatos, igrejas, etc. Conclui, portanto, que do AI-5 até 1980, a resistência cultural é
marca desse teatro, apesar “de confusa, contraditória, dilacerante [...] Enfim, um teatro
institucional em crise, buscando alternativas, mas que não se isenta de suas
responsabilidades”.488
Na busca desse teatro engajado com a “interiorização”, e com a proposta não somente
teórica, mas prática, de proporcionar a artistas e não artistas, a vivência do cotidiano popular
da cidade através do teatro, intencionou-se devolver os “meios de produção teatral” ao povo,
parafraseando Boal. Pois, como resultado da oficina, houve pesquisa e representação desse
“povo” sobre a vida na Feira do Pau, “em respeito à memória da cidade”, culminando num
espetáculo teatral que se chamou “Aspectos culturais de Alagoinhas”.489 Da prefeitura,
solicitou-se o apoio material, como a hospedagem de Aricelma Monteiro (técnica em
Assuntos Culturais), e as despesas com aula pública, relacionadas ao som, materiais para
cenário e fotografias da culminância do projeto. À época, os recursos foram solicitados em
ofício ao prefeito Judélio Carmo, por Iraci Gama.490
Como visto, o poder local disponibilizava apoio para as atividades artísticas. As
montagens do Dias Gomes e do Natureza contavam com apoio da prefeitura municipal – o

prefeito de Alagoinhas, Judélio de Souza Carmo. Alagoinhas: 20 de maio de 1985. Documento exposto na sala
Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM.
486
PEIXOTO, Fernando. Teatro e Questão. São Paulo: Editora Hucitec, 1989.
487
Apostila sobre a história do teatro. Responsável: Jurema Penna./Projeto Chapéu de Palha. Governo do Estado
da Bahia/Secretaria de Educação e Cultura/Fundação Cultural do Estado da Bahia – Divisão de Teatro. s/d, p. 10.
Pasta “Teatro” - CENDOMA/FIGAM, p. 9.
488
Ibidem, p. 10.
489
Banner sobre o nascimento do projeto Chapéu de Palha, documento avulso, exposto na sala Iraci Gama.
Alagoinhas: 20 de maio de 1985 - CENDOMA/FIGAM.
490
Solicitação de financiamento para o projeto Chapéu de Palha, assinada por Iraci Gama Santa Luzia e enviada
ao prefeito de Alagoinhas, Judélio de Souza Carmo. Alagoinhas: 20 de maio de 1985. Documento exposto na
sala Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM.
131

que poderia ser desde apoio financeiro, até disponibilização de espaço para ensaios. Mas era
necessária constante intervenção dos artistas e fazedores de cultura para a conquista desse
apoio nos festivais e atividades como a Oficina Chapéu de Palha (1985) e o “Projeto
Alagoinhas 85”. No primeiro festival, em matéria no Tribuna de Alagoinhas a diretora Denise
Maria Gurgel reconhecia que era demasiadamente custoso “promover cultura em outros
municípios”.491 O apoio financeiro do estado e município não cobria todos os gastos
necessários para o público ter acesso gratuito aos espetáculos. Na edição de 1978, se
desprendeu em média Cr$ 20.000 a Cr$ 40.000 com o custeio do deslocamento de cada
atração, da capital ao interior. Os custos com telefonemas para os acertos entre a FUNCEB e a
Secretaria também eram altos. Como mostra o “exemplo prático” no Jornal, durante o mês do
evento foram gastos 6mil cruzeiros em ligações interurbanas, “quatro vezes mais que a
mensalidade normal”.492
Já em 1979, ano da Amostra de Artes Plásticas, dentre as secretarias em Alagoinhas, a
Secretaria de Educação e Cultura teve o 2º maior orçamento aprovado para o ano (Cr$
8.018.000,00), perdendo só para a Secretaria de Serviços Urbanos (Cr$ 16.735.000,00).493
Mas, como o subsídio era destinado às duas esferas, pelo fato de a secretaria ser única, não há
evidências de quanto desse orçamento foi destinado para gerir somente as atividades culturais
desse ano. Além disso, os eventos tinham apoio também do comércio de Alagoinhas. 494 No
IV festival, em 1984, foram solicitados ao prefeito Judélio Carmo (1983 - 1988) 950 mil
cruzeiros, ao todo, para custear as atividades.495 Para se ter uma ideia dos valores na época, o
salário mínimo em novembro de 1984 era de Cr$ 166.560,00.496 Mas, a quantia solicitada
para suprir os custos de 9 dias de festival (com programação totalmente gratuita) ainda era
uma “previsão simplória”. O documento destacou que, mesmo trabalhando “dentro das
possibilidades” e “ procurando utilizar materiais simples que não impliquem em despesas”,
“sempre é indispensável alguns recursos financeiros para certas atividades”.497
À medida que as edições dos festivais empenhavam mais discussões que envolviam
artistas, poder público e população, mais transpareciam as expectativas desses artistas sobre

491
Jornal Tribuna de Alagoinhas. Ano I. nº 5. 11 nov. 1978, p. 6.
492
Ibidem.
493
Ibidem.
494
Movimento que acontece desde a década de 1960 com o Grupo Dias Gomes – Programa de apresentação da
peça Irene realizada pelo grupo Dias Gomes na década de 1960. Documento avulso. s/d. Pasta “Antonio Mário”,
CENDOMA/FIGAM.
495
Projeto referente ao 4º Encontro Cultural de Alagoinhas. Documento avulso, 1984, Cendoma – FIGAM.
496
Decreto nº 90301, de 1984. Site AUDTEC – Gestão Contábil. Disponível em:
https://audtecgestao.com.br/capa.asp?infoid=1336 acesso em 01 ago 2021.
497
Projeto referente ao 4º Encontro Cultural de Alagoinhas. Documento avulso, 1984, Cendoma – FIGAM.
132

possíveis incentivos, junto com a movimentação cultural despontada. Incentivos que


poderiam ser alimentados sobretudo pelas perspectivas de abertura política sobre as quais já
se discutiam desde 1978. A questão é: quais aspectos configuram a manutenção e
sobrevivência desses eventos culturais?
O cenário político das eleições no poder legislativo estadual parecia positivo quanto à
redemocratização política. No contexto municipal, o Jornal Tribuna de Alagoinhas reconhecia
que “Este é um momento decisivo para o processo político por que atravessava a nação. Fala-
se em abertura política, reformas, embora lentas e graduais, anistia, revogação do AI-5, entre
outros temas antes nunca discutidos”.498 Percebe-se que 1978 foi um ano significativo nos
processos de mudanças sociais e políticas.
Em todos os eventos, edições do festival ou oficinas aqui discutidos, nenhum,
aparentemente foi riscado do programa devido à proibição prévia. Além do mais, nesse
trabalho não foi possível contar com fontes que verificassem o comportamento de órgãos de
censura na cidade, para além dos relatos de repressão na Fazendinha. É difícil, portanto,
concluir sobre comportamentos repressivos da polícia contra os artistas nos anos de
endurecimento do regime pós AI-5 em Alagoinhas. Podemos pensar que, realizar esses
festivais abertos somente 6 anos após a inauguração da universidade, no simbólico ano de
1978, parece ter significado um o aproveitamento de um momento propício para a produção
dos festivais. Se por um lado, os artistas promoviam um movimento cultural que tinha certo
apoio do governo, por outro lado, a estratégia dos governos da esfera estadual e nacional era
mantê-los sob controle. Nesse movimento em que o governo nacional fazia sua “ginástica”
disfarçada de “reabertura lenta e gradual” os artistas negociavam brechas no âmbito da
cultura.499
Na área da cultura, Geisel criou mecanismos de controle do setor artístico através de
políticas culturais e expansão dos órgãos específicos para cultura, na “busca de um
equacionamento da cultura adequado ao regime político que se procurava consolidar”.500

498
A matéria gira em torno das eleições para deputado estadual (poder legislativo). Esperava-se eleger ao menos
2, através dos 30mil eleitores em Alagoinhas. Em entrevista na coluna “Os candidatos da cidade e as eleições”,
os dois candidatos que tiveram voz no jornal foram José Azevedo (MDB) e Jairo Azi (ARENA). Jornal Tribuna
de Alagoinhas. Ano I. nº 5. 11 nov. 1978, p. 2.
499
SILVA, Denise Pereira. João Augusto e o Teatro Livre da Bahia: Artistas, intelectuais e o Estado na Bahia
nos anos 1970. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011. Disponível
em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300804084_ARQUIVO_artigoanpuhusp2011.pdf
Acesso em 1 de ago 2021, p. 4.
500
A ideia de ampliar a ação do governo nos organismos culturais gerou novos campos de atuação, consolidados
na implantação do CONCINE (Conselho Nacional de Cinema), reformulação da EMBRAFILME (Empresa
Brasileira de Filmes), expansão da ação do SNT (Serviço Nacional do Teatro) e criação da FUNARTE
(Fundação Nacional de Arte). MICELLI apud SILVA (Idem, ibidem, p. 4).
133

Considerando a afirmação de Roberto Schwarz, em que mesmo numa “ditadura da direita


há(via) relativa hegemonia cultural de esquerda no país”,501 os estratagemas usados para
aproximá-los das vistas do governo não aconteceu somente a nível federal, mas estadual
também. Tratava-se, de uma negociação: por um lado, a busca do governo pelo “apoio” social
dos intelectuais e artistas, e por outro, as táticas desses intelectuais ao usarem o estado para
“facilitar a ação política”.502
A discussão sobre “não se vender ao sistema” – que foi tema dos artistas de Alagoinhas
nos festivais e mostras de artes plásticas – foi recorrentemente pensada pelos artistas baianos
que entravam nesse sistema. No dilema entre assumir cargos de importância e não “se vender”
para uma “indústria cultural” (que, não por acaso, era a intenção do governo), a tática de
alguns desses artistas tornou-se assumir as diretrizes dos órgãos do governo, mas utilizando
dessa plataforma também como brecha pra ação de resistência.
Jurema Pena, por exemplo, assumiu cargos na Secretaria de Cultura do Estado da
Bahia, na Secretaria Municipal de Educação e na Fundação Cultural do Estado da Bahia
(FUNCEB). Foi através desses cargos que propôs e desenvolveu projetos que visaram
impulsionar e democratizar as artes cênicas no interior da Bahia, inclusive o que vimos
paginas atrás, Projeto Chapéu de Palha.503 A discussão de conteúdos provocativos na
Oficina, mostra que uma arte combativa continuava existindo, mesmo dentro das malhas do
sistema. No entanto, o governo mantinha o controle, pois quanto menos liberdade artística se
tinha, mais apoio se conquistava, e vice-versa.504
Na esfera estadual, a intenção do governo em ampliar seu interesse na cultura se deu
também por mobilizar o turismo e vender a imagem de uma Bahia de cultura e costumes
peculiares, desde 1973, durante o primeiro governo de Antonio Carlos Magalhães (1971 -
1975).505 Na perspectiva do governo, cultura e turismo estavam intimamente relacionadas
como potencial econômico, em prol do advento de uma incipiente, mas, visível “indústria
cultural” na Bahia: para isso, a cultura estava sendo gerida sob a ótica de impulsionar um

501
SCHWARZ apud SILVA (Idem, ibidem, p. 5).
502
Denise Pereira Silva afirma que na década de 1970 existiu um movimento por parte do Estado, de “tentativa
de cooptação dos intelectuais” (SILVA, Idem, ibidem, p. 7).
503
O projeto Comeia também fez parte dessa dinamização. Tanto ele quanto o Chapéu de Palha foram realizados
entre 1983 e 1986. Ver: BORGES, Rosa; ALMEIDA, Isabela Santos de. A correspondência nos Acervos de João
Augusto e Jurema Pena. Revista Digital do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da
Universidade Estadual de Feira de Santana Feira de Santana, v. 10, n. 1, 2019
http://periodicos.uefs.br/index.php/leguaEmeia, Disponível em HTTP://dx.doi.org/10.13102/lm.v10il.3658
Acesso em 1 ago 2021, p 4.
504
UCHÔA, op. cit., p. 2.
505
“Como setores produtivos prioritários foram considerados o agrícola, o de mineração e o turismo [...]. A
expansão e melhoramento [...] dos serviços de turismo que representam, aliás, destinações ecológicas, históricas
e culturais” Relatório de Governo, 1973, p. 13 (Idem, ibidem, p. 11).
134

“grupo criador”, oferecendo “oportunidades de criação e fruição cultural” e gerar “recursos


humanos na área da cultura”.506 Nessa lógica, se incentivaria e expandiria um “grupo
consumidor”. Assim, o caminho para o surgimento de uma “indústria cultural” viria, a longo
prazo, para desenvolver os padrões culturais da “comunidade”.507
Em Alagoinhas, a expansão desse grupo consumidor pode ser percebida pelo incentivo à
literatura através de serviços de “Carros bibliotecas” em todos os festivais da cidade, e
fomento à publicação de livros infantis por autores alagoinhenses.508 A formação de público
para artes cênicas também recebeu atenção através dos projetos “‘Teatro Escola I e II’;
difusão do teatro no interior através de palestras e aulas com o projeto ‘Interiorização do
Teatro’, Teatro nas Fábricas, Teatro em Praça Pública e Popularização do Teatro”. O Serviço
de Difusão Cultural ficou responsável pelo “Grupo Criador”, promoveu cursos e conferências
enfocando momentos do teatro na Bahia, pesquisas sobre bailes pastoris e sobre o cordel.509
À parte disso, todos os próximos governos estaduais baianos ao longo da ditadura
apresentaram diretrizes semelhantes quanto ao “controle” dos artistas por meio de incentivos
financeiros e fomento para apoio à cultura. O sucessor de ACM, Roberto Santos (1975 -
1979) fez algumas implementações no Conselho Estadual de Cultura, que passou a ficar
responsável pela criação de uma câmara específica para cuidar do Patrimônio Histórico e
Cultural, pelo tombamento sobre bens culturais e por medidas de amparo, valorização e
difusão da cultura, instituindo prêmios por atividades culturais. Ações que chegaram a
Alagoinhas no 4º Encontro Cultural, quando por meio dessa política, o IPAC através da
Fundação do Patrimônio Histórico da Bahia esteve na cidade para dialogar com a população
sobre o tombamento da Igreja Inacabada e a construção do Centro de Cultura.510
Foi possível notar o papel que a Funceb teve por trás de todos os eventos culturais aqui
mencionados. Como proposta de voltar os olhos para o interior do Estado, representou grande
parte dos eventos culturais em Alagoinhas nos anos que seguem a 1978.511 As oficinas

506
“Nessa época, a relação entre cultura e turismo, que foi concretizada anos depois com a criação da Secretaria
de Cultura e Turismo na Bahia, dava os passos iniciais.” (Idem, ibidem, p. 11).
507
Diretrizes para a Ação Governamental, 1975. (Idem, ibidem, p. 5).
508
Idem, ibidem, p. 12.
509
Idem, ibidem, p. 13.
510
Programação referente ao IV Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso, 1984, exposto na sala
Iracy Gama - CENDOMA/FIGAM.
511
“Inicialmente a Fundação possuía a Diretoria Executiva e o Conselho Deliberativo, além delas foram
incorporadas à sua estrutura as bibliotecas, os museus e o Teatro Castro Alves. O primeiro diretor-executivo da
Fundação, de 22 de janeiro a 16 de junho de 1974, foi o professor Ramakrishna Bagavan dos Santos. No governo
de Roberto Santos, entre 1975 e 1978, foram criados o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC), a
Fundação Cultural e o Conselho Estadual de Cultura.” “Em 1978 foi aprovada a lei nº 3.660 atribuindo à
Fundação o poder de tombar bens culturais em nível estadual, passo indispensável para a atuação do órgão.”
UCHÔA, op. cit., p. 9. / SILVA, op. cit., p. 6.
135

trazidas, a vinda da orquestra sinfônica, o projeto de levantamento e catalogação cultural em


Alagoinhas, consolidaram as diretrizes de “dinamização e criação de cultura”,
“desenvolvimento das artes” e “difusão cultural”.512 Os Encontros de Cultura consolidavam-
se assim como uma marca cultural anual da cidade.513 No mesmo documento em que se
especificavam as atividades desse evento, programavam-se os primeiros passos para o festival
em 1985, e viria em hora propícia por ser, esse, o ano da Criação do Ministério da Cultura.514
Que a instrumentalização da cultura na FFPA foi possibilitada pela FUNCEB, é
perceptível. Mas Antonio Mário apontou alguns problemas em relação à Fundação. Depois de
aposentado pelo IBGE, ele se dedicou à sua escrita sobre a história de Alagoinhas através da
qual foi possível ter acesso a reflexões, principalmente, sobre como a cultura era gerida e
conduzida no processo de intensificação do movimento cultural da cidade.

3. As “deixas” de Antonio Mário nas cenas do Movimento Cultural de Alagoinhas

A “deixa”, no teatro, significa “tocar para a vez do outro”. Por isso, as “deixas” de
Antonio Mário no movimento cultural, aqui, são representadas pelos seus posicionamentos
através da escrita, em textos que ele escreveu nesse período pós Festival de 1984. 515 Nesse
momento, o movimento cultural crescia e se somava à mobilização dos estudantes
secundaristas. Assim, acirravam-se suas reivindicações ao governo (tanto municipal, quanto
estadual) por maior atenção às necessidades dos artistas. Antonio Mário se insere nesse
cenário, trazendo suas “deixas”, nesse/sobre o contexto, e a partir das quais notam-se outras
opiniões reflexivas e incisivas do diretor, não só sobre arte, cultura, mas sobre educação e
suas respectivas questões políticas.
Foi possível perceber no decorrer desse trabalho que Antonio Mário não tinha postura
combativa diante dos governos militares. Prezava pela sua integração estratégica em diversos
meios, instituições e movimentos que não tinham relação com enfrentamentos e mantinha
relações com pessoas de âmbitos os mais diversos. Inclusive, pela manutenção de suas boas
referências sociais, a partir de 1980 ingressou na maçonaria, tendo sido obreiro da Loja

512
Resolução de 1972. MELO apud SILVA. In.: SILVA, op. cit.
513
Até a atualidade, ano de 2020, o evento permanece com os mesmo objetivos e mesmo formato, sendo
chamado de Semana de Arte do Litoral Norte e Agreste Baiano – Alagoinhas, realizado anualmente e com
temáticas variadas.
514
UCHÔA, op. cit., p. 4.
515
Compilado de textos que foram escritos e (alguns) publicados na Revista Tempo do IBGE e que estão
compilados no material aqui já mencionado, sobre Alagoinhas.
136

Maçônica Caridade e Sigilo de Alagoinhas.516 Entre 1980 e 1990 dedicou-se à sociedade


participando de atividades relacionadas, como a palestra que ministrou na Loja Maçônica
Fraternidade Catuense da cidade de Catu em 04 de julho de 1987, e a que proferiu no Capítulo
Rosa Cruz em Alagoinhas.517
Assim como o teatro de Antonio Mário pós-1980 refletiu escolhas e construções não mais
“inofensivas”, seus textos escritos em meados da década de 1980 denotam um movimento de
não neutralidade diante do contexto político-social.
Para falar sobre mudanças no âmbito cultural do Estado, ele faz uma trajetória histórica
sobre “grandes acontecimentos” no país, em que o município de Alagoinhas “jamais se fez
omisso”. Dentre eles, destaca a Guerra do Paraguai (1864); Proclamação da República (1889);
Guerra de Canudos (1895); Revolução Tenentista (1930); Segunda Guerra Mundial (1944) e o
golpe militar. É interessante investir algumas linhas sobre o “golpe”, apesar de o diretor não
ter se demorado na discussão do tema. Quando mencionou o fato histórico, disse que
“Alagoinhas figurava na cabeça da lista dos pólos subversivos da Bahia, nos arquivos da 6ª
RM.” Diante disso, se ele, de fato, teve acesso a esses arquivos, não é impossível considerar
que a relação com um comandante da Polícia Militar, Cursino, lhe conferisse uma brecha para
facilitar suas buscas. De todo modo, o uso do termo “golpe”, endossa uma narrativa não-
conservadora, e leva-se a entender que “pólo subversivo” significa fazer jus a uma posição de
enfrentamento contra as consequências do golpe e seus desdobramentos.
Como era recorrente em seus textos, ele, brevemente, introduziu com essas questões, para
adentrar em um assunto adjacente: a indicação de um alagoinhense à presidência da
FUNCEB, ou seja, Alagoinhas permanece presente, não se fazendo omissa diante das
mudanças nem políticas, nem no âmbito cultural do estado. Antes de discutir esse ponto,
faremos um gancho com uma problemática constante nos textos do diretor: os espaços de
cultura do estado e da cidade. Como visto, o 4º Encontro de Cultura foi especial por se ver
“tomar corpo o sonho iniciado em 1980: a construção do Centro de Cultura”. 518 No projeto
elaborado por Iraci Gama, a prefeitura havia destinado a área para construção e a Fundação já

516
O banner da exposição sobre a vida de Antonio Mário, presente na FIGAM afirma que ele chegou ao cargo de
venerável. Mas essa informação não pôde ser verificada na própria Loja Maçônica por ter estado fechada, devido
às intempéries do momento pandêmico de 2021. A loja foi Fundada em 5 de outubro de 1922.
517
As fontes referentes às palestras são, respectivamente: fotografia impressa no banner da exposição sobre a
vida de Antonio Mário, CENDOMA/FIGAM. Autor da foto, desconhecido. Acompanha a seguinte legenda:
“Antonio Mário realizando palestra na Loja Maçônica Fraternidade Catuense na cidade de Catu em 4.07.1987”.
Texto referente à “Palestra pública proferida pelo autor no Capítulo Rosa Cruz de Alagoinhas” escrito por
Antonio Mário, 1991. Acervo pessoal de Lívia Santarém.
518
Programação referente ao IV Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso, 1984, exposto na sala
Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM.
137

havia entrado com a verba, mas, desde 1980, “nada de concreto se realizou nesses 4 anos”. 519
Havia uma dose de otimismo sobre algo que, apesar de aparentemente encaminhado, ainda
não estava efetivado. De fato, mesmo com a atmosfera positiva de comemoração que
envolveu o festival, o Centro ainda levaria mais alguns anos para ser, enfim, inaugurado.
Essa dificuldade de acesso a aparelhos de cultura que fornecessem estrutura digna aos
artistas motivou um texto escrito por Antonio Mário. Chamado “Direita Vamos Ver” no
artigo Alagoinhas Presente nas Mudanças (que provavelmente foi publicado na revista
Tempo), ele lamentou o fato de a cidade não acompanhar o ritmo de outras do interior como
Feira de Santana “a apenas 108 quilômetros de Salvador [...] com uma vida artístico-cultural
invejável”. Outra cidade também mencionada fora Ilhéus, que ainda dispunha de seu teatro
histórico, o Teatro Municipal (Cine Teatro Ilhéus, inaugurado em 1932) e que se
assemelhava, em estrutura, ao Cine Teatro Popular em Alagoinhas, que, depois de muita
espera por restauração, no ano de escrita de Antonio Mário, já havia sido demolido.
Em tom visivelmente indignado:

Ah, Ilhéus, com seu Teatro Municipal onde, há poucos dias, companhia
Teatral formada dos mais expressivos valores do teatro nacional apresentou
a peça de Lauro Cesar Muniz – que nós daqui da nossa cidadezinha só
conhecemos de nome por causa das novelas de televisão, lembramos a
recente “Roda de Fogo” – a peça em referência é “Direita Volver”, trazendo
no elenco nada menos que Mauro Mendonça, Rosamaria Murtinho, Ana
Maria Nascimento e Silva, Élcio Romar, Eliana Martins e Álvaro Gomes,
sob direção de Roberto Frota. Alagoinhenses, se quiserem ver a peça é só
darem a volta à direita e irem ao Tetro Maria Bethania neste princípio de
mês, pois para cá ela não virá. Que pretensão!520

Através da observação de Antonio Mário em 1987, pode-se concluir que Alagoinhas


permanecia uma cidade em que se fazia teatro, sem ainda ter um teatro propriamente dito. Em
sentido inversamente proporcional à expansão dos aparelhos de cultura, a participação de
grupos teatrais na cidade cresceu desde o primeiro festival em 1978, diferente do saldo de
grupos da década de 1960, por exemplo. Do que se percebe da programação das atividades
desde 1978, foram cinco grupos atuantes, contando com o Natureza: Grupo de Teatro Gearte,
Teatro de Fantoches Pic Nic, D’Fato, Nuclator e Meninos da Terra. Além desses, houve dois

519
No projeto tinham discriminado, a justificativa, objetivos, programação do evento e cotação de valores para
solicitar patrocínio. Ibidem.
520
Texto “Direita Vamos Ver”, escrito por Antonio Mário, publicado na Revista Tempo, nº 2, maio de 1986.
Acervo pessoal de Lívia Santarém.
138

que, ao que parece, não participaram dos festivais mencionados, mas surgiram depois, como o
Verluzir, de 1985, que tinha como um de seus dirigentes Pitágoras Fernandes; e o Grupo e
Teatro Infantil Retrato, surgido em 1986 e dirigido por Josenice Miranda da Cruz.521
O grupo Meninos da Terra, por exemplo, em 10 de novembro de 1980, praticamente 1
mês depois de participar do 3º Festival com o espetáculo “O Próximo”, já buscava discutir
os “trâmites legais para que o grupo adquira personalidade jurídica” e consequentemente,
obter benefícios, como receber “dotações orçamentárias” 522. Pelo fato de o grupo ser dirigido
e ter como secretário o advogado Antonio Torres, esses “trâmites” devem ter sido facilitados,
visto que foi ele quem orientou sobre todo o processo.523 A dinâmica proporcionada pelos
festivais influenciou diretamente no impulsionamento da cena teatral na cidade ao longo dos
anos.
Como mencionado, a luta dos artistas foi tomando corpo em conjunto com a mobilização
estudantil na cidade. Grêmios escolares, como o grêmio do Polivante, formado nesse ano de
1984, eram representados pela União Municipal dos Estudantes Secundaristas de Alagoinhas
– UMESA. A justificativa da formação da união se dá por resgatar “a imagem dos
secundaristas de Alagoinhas, sempre presentes à movimentação da comunidade”, ou seja,
agregava-se à cultura pela consciência de que as demandas estudantis também deveriam estar
ligadas às demais pautas sociais, fora dos muros das escolas. Reivindicava uma atuação ativa
nas novas elaborações do Ministério da Educação e Cultura e dentre os outros objetivos, ou
seja, reivindicar-se protagonista nesse processo. “De um modo geral, nas escolas brasileiras,
os alunos se sentem alheios ao seu próprio local de aprendizagem, pois não participam da vida
escolar, não têm espaço para discutir, não tem liberdade, enfim”.524
A cultura, pela projeção que tomava na cidade, tornava-se pauta de reivindicação dos
estudantes, principalmente quando se tratando da expectativa criada em torno da inauguração
do Centro de Cultura. Por volta de 1985 o Grêmio do Colégio Dínamo se referiu aos
processos no âmbito cultural como uma “preguiça administrativa” que “reina” na cidade,

521
Documento encaminhado pelos Organizadores do Projeto Cultural de Alagoinhas/85 aos dirigentes da
COPENER Alagoinhas, solicitando recebimento de quantia (financiamento). 24 out. 1985. / Convite do Grupo
Retrato para o 2º ano de existência (sem destinatário). 1987. Ambos os documentos se encontram na Pasta de
Teatro - CENDOMA/FIGAM.
522
Ata de reunião do grupo de teatro “Meninos da Terra”. 10 de novembro de 1980. Pasta “Teatro”.
CENDOMA/FIGAM.
523
Dentre os presentes na reunião, estavam: Roque Paulo Correia de Souza (presidente), Antonio Barreto
(secretário); Graça Maria Ferreira Sacramento (tesoureira); Francisco José Santos Alves, “Chicão”; Jorge Pereira
de Oliveira, Edson Reis, Antonio Jose Dantas Fontes Filho; Iraci Gama Santa Luzia, Tereza Maria Barreto
Paolilo – com ausência justificada de Aluisio Rodrigues. Ata de reunião do grupo de teatro “Meninos da Terra”.
10 de novembro de 1980. Pasta “Teatro”. CENDOMA/FIGAM.
524
Panfleto da UMESA. Sem data (de acordo com cálculos aproximados, de, aproximadamente, 1985). Pasta
“Projetos Culturais” - CENDOMA/FIGAM.
139

“Afinal, para não fugir à regra nacional, a cultura em Alagoinhas está relegada a um plano pra
lá de secundário”.525 O que se pode observar do posicionamento dos artistas sobre o Centro de
Cultura é que o crescimento e engajamento da classe era acompanhado pelo governo às duras
penas, tanto da esfera municipal, quanto da estadual. E por isso, o informativo finalizou o
texto convocando todos os estudantes alagoinhenses e artistas a “fazer algo em prol da nossa
cultura” pois “embora na visão de alguns, haja perspectivas de melhores dias para a cultura
alagoinhense, precisamos injetar-lhe uma vitamina de ânimo através dos nossos próprios
esforços”. 526
O descaso era também percebido e denunciado pelos estudantes sobre a esfera
educacional, quando da tratativa do poder local na indicação de profissionais da Cultura e
Educação, considerados por eles como “sistema injusto de escolha de cargos”:

Não respeitando a indicação da União municipal dos Estudantes


Secundaristas de Alagoinhas (UMESA), bem como da Associação dos
Professores de Alagoinhas (ASPA), para ocupar o cargo de superintendente
da SUREC-3 – Superintendencia Regional da Educação e Cultura – que seria
dado a Sra. Iraci Gama, pessoa destacada pelo trabalho que desenvolve na
área, o Deputado Filadelfo Neto, numa atitude antidemocrática, apoiou e
conseguiu nomear sua irmã, Sra Célia Paolilo.527

Do horizonte da classe, Antonio Mário falava sobre os profissionais que amargavam


com baixos salários em 1987 e condições desproporcionais aos lucros gerados pelas escolas
particulares. Além dos professores, outras categorias também se prejudicavam com a
disparidade entre os salários e a “disparada escandalosa dos preços, até os da cesta básica”. A
situação justifica, em perspectiva, as paralisações de atividades

as mais vitais no pais, dentre outras, portuários, marítimos, bancários,


metalúrgicos, servidores públicos, médicos residentes e mais recentemente
os professores universitários que apesar da categoria ter vencido a luta pela
isonomia salarial, não tiveram ainda êxito, entretanto, nas suas outras

525
Informativo do Grêmio Livre Sintonia veiculado pelo movimento estudantil organizado de Alagoinhas. s/d.
Pasta “Projetos Culturais” - CENDOMA/FIGAM.
526
Ibidem.
527
Ibidem.
140

reivindicações. Param também os professores de rede particular e até os


mestres – escola do ensino municipal de Camaçari.528

O maior motivo da denúncia de Antonio Mário se dá pelo fato de os proprietários das


escolas faltarem com os ordenados dos professores mesmo depois de receberem
“ajustamentos após a vigência do plano Cruzado I” beneficiados com percentual de 35% mais
15% e ainda assim,

percentual muito mais elevado, como se verifica em nossa cidade, a pacata e


em tudo conformada Alagoinhas, em que o colégio que menos aumentou a
mensalidade para o 1º semestre de 1987, o fez na base mínima de 186%, o
que vale dizer que esse mesmo colégio que tem uma capacidade física de 24
salas de aula em funcionamento em 3 turnos diários com um efetivo de
nunca menos e 40 alunos por sala, arrecada mensalmente a bagatela de Cz$
1.036.800,00 no semestre. 529

Por esses motivos, se colocou abertamente em apoio às greves desses professores que,
em sua maioria, não ganha sequer um salário mínimo por mês, numa escola isenta de
impostos e instalada em prédio próprio, com um “corpo docente que não atinge a duas dúzias
de mestres” e concluiu: “Lucros também assim, é demais também”.530 A Alagoinhas sob a
representação escrita de Antonio Mário era a cidade que, diante de grandes acontecimentos,
“jamais se fez omissa”, mas, sob outros aspectos, era a cidade “pacata e em tudo
conformada”.
A questão relacionada à indicação antidemocrática para cargos públicos foi tema que
se apresentou algumas vezes nos informativos do movimento estudantil e nos textos de
Antonio Mário. Da perspectiva dos estudantes representados pela UMESA, a questão
relacionada às indicações injustas poderia ser sanada de forma mais democrática aderindo às
eleições diretas pra diretores desde o 1º até o 3º grau. Dentre os outros objetivos propostos,
incluíam-se “Ensino Público gratuito e 13% para a educação”.531 Sobre as eleições diretas
para diretores, Antonio Mário discorreu sua opinião acerca do assunto. Mas, na direção

528
Texto “O ensino faz parede”, escrito por Antonio Mário, publicado na Revista Tempo, nº 2, maio de 1986.
Acervo pessoal de Lívia Santarém.
529
Ibidem.
530
Ibidem.
531
Panfleto da UMESA. Sem data (de acordo com cálculos aproximados, de, aproximadamente, 1985). Pasta
“Projetos Culturais” - CENDOMA/FIGAM.
141

contrária da palavra de ordem do movimento estudantil, ele apontou uma possível


problemática relacionada a essa questão. Julgou ser atitude de “mudancistas”, ou seja, fazer a
mudança pela mudança, sem fundamento. Pois, segundo sua reflexão, apesar de ser uma via
democrática de nomeação, por acabar com o “abusivo método dos diretores clientelistas,
pistolonados”, por vezes “incapazes e maus administradores”,

é preciso não esquecer que a escola é uma unidade técnica, no máximo, uma
empresa de prestação de serviço educacional, nunca jamais uma célula
política, é preciso igualmente admitir que o diretor e/ou vice, no caso da
escola publica, é um servidor público, um funcionário do Estado e como tal
um ocupante de cargo de confiança.532

Ou seja, se tal incapacidade também poderia ser característica daqueles eleitos por
eleições diretas, em sua opinião, o que dificultaria o modo em lidar com um coordenador dito
“incapaz, inoperante ou mesmo corrupto” seria uma falta de “hierarquia funcional”: “Onde
[fica] a obediência devida ao titular da pasta da Educação? Que condições legais terá o
secretário da Educação para demitir do cargo o diretor que se venha mostrar incapaz,
inoperante, ou mesmo corrupto?”. E finaliza frisando que a qualificação do profissional é
indispensável e tão importante quanto a forma como a pessoa foi nomeada, pois de nada
adianta mudar o método se as mesmas incapacidades se repetissem nos próximos nomeados:
“o certo é demití-los, mas substituí-los por outros iguais ou piores – com licença da má
palavra – é crassa burrice”.533
Ao introduzir o problema das Diretas já Para Diretores, justificou as questões relacionadas
a certas mudanças na área da educação, alertando que

a educação é um problema seríssimo, ou melhor é o maior problema de


qualquer nação que se prese[sic]. É publico e notório que um pais é tanto
maior e progressista quanto mais for sua educação. Daí ser preciso pensar
não só 3 vezes, mas 30 vezes três antes de manifestar qualquer ideia
referente a mudanças na educação.534

532
Texto “Diretas já para Diretores”, escrito por Antonio Mário, publicado na Revista Tempo, nº 2, maio de
1986. Acervo pessoal de Lívia Santarém.
533
Texto “Diretas já para Diretores”, escrito por Antonio Mário, publicado na Revista Tempo, nº 2, maio de
1986. Acervo pessoal de Lívia Santarém.
534
Ibidem.
142

Nessa passagem, destilou uma breve reflexão sobre outra mudança no seio do próprio
sistema de ensino:

Claro que não vou defender a intocabilidade do nosso atual sistema


educacional, é certo que a nossa mania de tudo americanizar, ou melhor,
yankizar em nosso pais, levou a nossa educação ao desastre dos termos do
frist[sic] and second degree” com a nunca bem entendida – até pelos
técnicos – Lei de Diretrizes e Bases que transformou o sistema educacional
acadêmico de base francesa em profissionalizante [...].535

O que levou a “educação ao desastre”, portanto, diz respeito ao acordo entre o MEC e a
United States Agency for International Development (USAID) que pretendia aproximar o
Brasil dos Estados Unidos em torno de uma “colaboração técnica” pela educação. Por ser um
fruto e consolidação da influência norte-americana sobre a educação brasileira, críticos do
acordo ressaltaram o fato de que essa “cópia dos modelos norte-americanos” causava a
“subordinação do ensino aos interesses imediatos da produção, a ênfase na técnica em
detrimento das humanidades e a eliminação da gratuidade nas universidades oficiais”. 536 Foi
praticamente sobre isso que Antonio Mário se referiu ao dizer que não se atingiu o esperado
com tal profissionalização técnica, esta que, em tese, proporcionaria “mão-de-obra
especializada”. Segundo ele, eis o resultado: nem o fez, nem possibilitou ao alunado o acesso
ao “eruditismo” proporcionado pelo sistema francês. 537
Percebe-se a crítica voltada para as conseqüências do sistema educacional na ditadura,
mas ele não se direcionou, abertamente, ao governo, diferente do movimento estudantil que
desde 1985 se punha contra as contradições na educação, “herança do golpe de 1964”:

Com o golpe de 1964, se implantou, em nosso país, um regime escolar de


dominação representado pelas mudanças de legislação que alterou o sistema
de ensino, os currículos, transformou os grêmios livres e independentes em
centros cívicos de onde desapareceu a discussão política.538

535
Ibidem.
536
CUNHA, Luís Antônio. Acordo Mec-Usaid. S/d. Site FGV CPDOC. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/acordo-mec-usaid Acesso em: 4 fev. De 2022.
537
Texto “Diretas já para Diretores”, escrito por Antonio Mário, publicado na Revista Tempo, nº 2, maio de
1986. Acervo pessoal de Lívia Santarém.
538
Panfleto da UMESA. Sem data (de acordo com cálculos aproximados, de, aproximadamente, 1985). Pasta
“Projetos Culturais” - CENDOMA/FIGAM.
143

No mesmo ano em que Antonio Mário tecia suas críticas ao sistema de ensino, sem
criticar abertamente a ditadura, a UMESA, num panfleto de manifestação pró-eleições diretas
para presidente – Diretas 88 – abertamente se autodeclarava “presente nas lutas pelo avanço
da sociedade e pela liberdade do povo operário em geral” e mantinha a luta por uma educação
pública gratuita. O movimento aconteceu do dia 7 de setembro, contou com participação
artística de uma banda de rock chamada “AI-5” e foi coordenado por Hugo Leonardo,
presidente do centro cívico do Colégio Dínamo. O líder do movimento era Joildo de Jesus
Andrade.539
Percebe-se que os argumentos de Antonio Mário não incitavam mobilizações, não
consistiam numa escrita de agitação: ele trazia situações pontuais, tecia a crítica e, ainda que
com linguagem irônica, justificava-as com o argumento de sugerir reflexões para solução da
situação apresentada. Retoma-se, por exemplo, o texto “Alagoinhas presente nas mudanças”
introduzido no início desse tópico. Atento aos cargos para assumir os aparelhos de cultura do
estado, Antonio Mário observou que os que seriam nomeados a gerir o Centro de Cultura de
Alagoinhas, seguindo um “figurino à moda antiga”, seriam “’afilhados’” de “senhores
parlamentares”.540 E como de costume nas conclusões de seus textos, encerra com um apelo
jocoso: “que sejam esses os indicados tudo bem. Mas pelo amor de Deus, que sejam eles
capazes, e mais que isso, sejam entendidos no que toque à cultura e arte e que estejam
entrosados no meio artístico e cultural local”.541
Mas quando da nomeação de um “alagoinhense”,542 artista, e, portanto, entendedor da área
cultural, para presidente provisório da FUNCEB – Jose Carlos Capinã – demonstrou certo
entusiasmo, ainda que a instituição não tenha lhe causado mesmo efeito: “esperamos que o
menino-prodígio tenha coração bastante para acolher, sem esmorecimentos, as ‘paixões’ que
lhe esperam no espinhoso cargo, haja visto[sic] o débito de Cz$ 23 milhões, herança dos
gestores de antes”.543 Talvez ao saber das problemáticas relacionadas à FUNCEB, como
“débitos com a caixa econômica, atrasos no pagamento dos funcionários e ainda os
recalcitrantes ‘grupos de cupins’ assim chamados aqueles autores e elaborados dos desmandos

539
Documento da Polícia Militar informando sobre a aprensão do panfleto da UMESA, sobre manifestação pró
eleição direta para presidente da República. 5 out 1987. Arquivo Nacional. Comissão da Verdade. Disponível
em: <https://sian.an.gov.br/sianex/consulta/login.asp> Acesso em: 31 jan. 2021.
540
Texto “Alagoinhas presente nas mudanças”, escrito por Antonio Mário, 1987. Acervo pessoal de Lívia
Santarém.
541
Ibidem.
542
Antonio Mario o considerou alagoinhense, apesar de o artista ter nascido na cidade de Esplanada-BA.
543
Texto “Alagoinhas presente nas mudanças”, escrito por Antonio Mário, 1987. Acervo pessoal de Lívia
Santarém.
144

e desvios na Fundação Cultural”,544 não tenha se surpreendido com a demora nos processos
para construção e inauguração do CCA.
Ademais, permanecer à espera de um aparelho apropriado e funcionando devidamente
levou os artistas a tomarem providências quanto a um local de encontro e produção constante.
Em 10 de outubro de 1985, artistas, professores e estudantes da FFPA fundaram a Casa da
Cultura de Alagoinhas (CASCA), resultado da consolidação do Movimento Cultural de
Alagoinhas. A entidade era composta por presidência, no nome de Iraci Gama, vice-
presidência com Antonio José Dantas Fontes Filho e outros 10 cargos de vice-presidência:
sob “a responsabilidade de coordenação de atividades até então realizadas pelo esforço
pessoal de alguns poucos abnegados”.545 E apesar de no compilado de textos de Antonio
Mário, ele não fazer menção à Casca, ocupou o cargo de vice-presidente de Teatro. No dia da
inauguração, o grupo de Teatro Verluzir apresentou o espetáculo “Torturas de um Coração ou
Em Boca Fechada não Entra. Mosquito!” de Ariano Suassuna e dirigido pelo próprio grupo,
sob supervisão de Lazaro Zacariades, na FFPA.546 Em 1986, funcionava em sede provisória
no bairro Praça Kennedy, 282-A. Para comemorar a instalação no local, a festa foi
programada para acontecer no dia 26 de abril de 1986, com atividades musicais e “projeção
do filme produzido sobre as atividades de encerramento do Projeto Cultural Alagoinhas 85.547
Os próprios estudantes do grêmio perceberam a importância da CASCA para manter os
artistas num vínculo pelas atividades culturais:

um espaço cultural foi fundado, por força de um grupo de artistas; a casa da


cultura de Alagoinhas (CASCA), que pelo fato de funcionar regularmente,
torna-se o inverso do Centro Cultural de Alagoinhas. [...] Apesar de ser o
mesmo uma obra de construção civil primorosa e de um grande e bom
espaço físico, até agora não demonstrou para que foi construído. O Centro de
Cultura praticamente não funciona e muitos até nem sabem localizá-lo numa
cidade geograficamente pequena.548

544
Ibidem.
545
Documento veiculado com propósito de oficializar o estabelecimento da Casa da Cultura de Alagoinhas e
divulgar os empossados responsáveis pela entidade. Datado de fevereiro de 1986. Exposto na sala Iracy Gama -
CENDOMA/FIGAM.
546
Programa de apresentação da peça “Torturas de um Coração ou Em Boca Fechada não Entra Mosquito!” de
Ariano Suassuna, realizada pelo grupo Verluzir em 29 e 30 de nov. de 1985. Documento avulso. s/d. Pasta
“Teatro”, CENDOMA/FIGAM.
547
Convite da Casa da Cultura de Alagoinhas (sem destinatário) para a sua festa de instalação. Documento
exposto em banner na sala Iracy Gama - CENDOMA/FIGAM.
548
Informativo do Grêmio Livre Sintonia veiculado pelo movimento estudantil organizado de Alagoinhas. s/d.
Pasta “Projetos Culturais” - CENDOMA/FIGAM.
145

A CASCA atravessou e foi atravessada por todo processo de luta pelo CCA. Apesar de ser
essencial para articular os artistas e estudantes nesse objetivo em prol do interesse pelo centro
de cultura como “patrimônio da cidade”, não serviu passivamente como um espaço provisório
que seria substituído pelo CCA automaticamente.549 Foi reinaugurada em 1993, quando esse
já estava efetivamente funcionando. Apesar das expectativas, manteve-se ativa no
mencionado espaço por apenas mais um ano, tendo sido desativada em 1994.550
Da CASCA germinaram eventos, movimentos e outros projetos de expansão de aparatos
culturais na cidade, como a Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer em 1988, – “órgão oficial
da prefeitura para se responsabilizar pelas questões culturais do município”–; Criação da Sala
de leitura “como núcleo de reativação da Biblioteca Pública Municipal” (1987), e o projeto
Alagoinhas 85.551
Depois de muitos obstáculos relacionados a burocracias, ou como sugerem as fontes aqui
citadas, “estagnação da cultura”, “cultura em estado de preguiça”, a luta pelo Centro de
Cultura deu resultados efetivos e os artistas em 1984 viram os primeiros sinais de que
finalmente seria construído, com o projeto que havia sido elaborado por Litho Silva.552 Nesse
ano, a ideia ainda girava em torno de construir um centro na Igreja Inacabada de Alagoinhas
Velha. Portanto, Foi enviado ao governador Antonio Carlos Magalhães a ideia desse projeto
com um abaixo-assinado da “comunidade”, solicitando o tombamento da Igreja Inacabada e
restauração para implantar o Centro lá, além de medidas de preservação de outras estruturas,
como casa e acervo do curtume Santo Antonio desativado desde 1957, a capela do distrito de
Boa União (construída em 1854).553
A resposta do governo chegou aos artistas de Alagoinhas, confirmando o financiamento
para a construção do Centro de Cultura, aprovado pela Secretaria de Planejamento da
Presidência da Republica - SEPLAN

[...] da ordem de Cr$5,7 bilhoes para a construção de seis centros de cultura


nas cidades de Irabuna, Juazeiro, Porto Seguro, Valença, Vitória da
Conquista e Alagoinhas. O coordenador do projeto economista Antonio
Passos, disse que a implantação dos centros em seis grandes regiões
facilitará os esforços da Fundação Cultural no sentido de planejar executar e

549
Ofício encaminhado à coordenadora do Centro de Cultura de Alagoinhas, Jocelita Correa, em 13 de fevereiro
de 2008, como resposta à solicitação do histórico deste. Documento exposto na sala Iracy Gama -
CENDOMA/FIGAM, p.2.
550
Ibidem.
551
Ibidem, p.2.
552
Ibidem.
553
Ibidem, p.2.
146

intensificar a política cultural no âmbito estadual, possibilitando uma efetiva


participação do órgão no atendimento a demanda de serviços culturais.554

As obras seriam, entretanto, iniciadas, somente após a “assinatura do contrato entre o


órgão financiador e o governo do estado”.555 Desde já, a prefeitura se apropriava da notícia,
no informativo da cidade, para reafirmar certo protagonismo nos métodos para realização do
sonhado projeto:

o trabalho principal do Centro de Cultura será o de detectar as manifestações


espontâneas da região e fornecer meios que venham a estimular essas
realizações envolvendo no processo segmentos mais amplos da comunidade
com a consciência de que o processo da produção é tão importante quanto o
produto final. Jornal do Município – órgão de comunicação da prefeitura de
Alagoinhas na gestão de Miguel Fontes.556

Nesse processo, já havia sido superada a ideia de transformar a Igreja Inacabada em


centro, mas ainda se esperançava que o CCA fosse instalado no bairro de Alagoinhas Velha.
Não só pela sua simbologia histórica, mas pela facilidade de acesso do local, dimensões
compatíveis com o programa do centro e existência de equipamentos urbanos. Esse projeto foi
elaborado por uma equipe da FUNCEB, composta por Antonio Passos, Silvo Robatto (filho
da terra), Ana Cristina Cunha, Ligia Matta e Machado.557
O recurso estava definido, o local estabelecido e o projeto pronto. No entanto, surge
outro percalço: o novo local definido já estava visado para a construção do Hotel dos
Laranjais. Inclusive, as outras cidades que seriam contempladas também pelo mesmo espaço,
já tinham “o processo adiantado” enquanto Alagoinhas, “berço da proposição que foi
assumida pelo governo, ainda não possuía seu espaço estabelecido”.558 O processo voltou a
caminhar lentamente, quando em 1985, os coordenadores da Casa da Cultura decidiram
sugerir outro local, não mais no bairro histórico, mas com valor simbólico semelhante, por
integrar-se ao lado do antigo Matadouro Municipal. Como a área pertencia à prefeitura, fora
solicitada ao prefeito Judélio Carmo a doação do terreno, cuja resposta foi positiva. Na

554
Ibidem, p.3.
555
Ibidem, p.2.
556
Ibidem, p.2.
557
Segundo as análises da prefeitura junto a Funceb (Ibidem, p.3).
558
Ibidem, p.3
147

finalização do projeto Alagoinhas 85, o grupo Pro-Memória elaborou novo abaixo assinado
sugerindo ao estado, o novo local para a construção.559
Finalmente, 1 ano depois, ela se inicia. Construído pela Interurb e Fundação Cultural,
distinguia-se dos outros centros por estar ao lado de outro patrimônio histórico que também
recebia financiamento para restauração – o Matadouro, “obra de característica neoclássica que
contrasta e embeleza ainda mais o conjunto de equipamentos destinados à cultura
alagoinhense” uma vez que o projeto arquitetônico do centro segue a estética moderna.560
Através da CASCA, elaborou-se um documento solicitando o nome de Antonio Fontes,
vice-presidente da entidade, para diretor do Centro Cultural de Alagoinhas.561 Ao que parece,
a princípio o pedido foi negado, priorizando-se interesses políticos por parte do governo
situação. No documento, expuseram-se as vantagens em nomear Antonio fontes, inclusive por
ter sido vereador em 1973 e, segundo o documento, “proferia discursos contundentes no
combate à ditadura em então”, o que leva a crer que esse poderia ser um critério considerado
pela gestão atual. Diretor do grupo de teatro Verluzir, e advogado, Antonio Fontes também
atuou ao lado de Antonio Mário no Pró-Memória, nos recitais de poesia dos encontros
culturais, mas, em um caminho diferente do diretor, Fontes foi membro fundador e atuante do
MNUA.
A reivindicação do nome de Fontes para diretor do Centro pode ter mobilizado o texto
“Alagoinhas presente nas mudanças” de Antonio Mário, em que ele fez um comentário
irônico sobre os “afilhados” que tomariam posse do centro sem qualquer qualificação para
tal.562 Pois, além de ambos os documentos serem de 1987, diante da fala do político que
negou o pedido dos artistas, “‘vou ficar com o centro de cultura para Alfredinho porque ele
desde que aqui chegou me acompanha no trabalho político’”, vê-se que a indicação não
respeitava o critério de ser qualificado para o cargo. A “resposta” proferida pelos artistas do
movimento, diante dessa situação foi: “Quer dizer: a competência e o respeito pela
comunidade não contam? Isso é triste e nós protestamos”.563

559
Ibidem, p.3
560
Ibidem, p.3. Segundo o banner exposto na sala iraci Gama na FIGAM, o Matadouro foi restaurado em 1987
pela Secretaria de Cultura do Estado da Bahia para receber o Memorial da Cidade.
561
Documento elaborado pela “comunidade de artistas de Alagoinhas” para o Govenador Waldir Pires,
solicitando a nomeação de Antonio Fontes para diretoria do Centro de Cultura de Alagoinhas. 23 de março de
1987. Exposto em banner na sala Iraci Gama – CENDOMA/FIGAM.
562
Texto “Alagoinhas presente nas mudanças”, escrito por Antonio Mário, 1987. Acervo pessoal de Lívia
Santarém.
563
Documento avulso elaborado pela Casa da Cultura de Alagoinhas. 10/11 de abril de 1987. “Pasta Produção
Cultural” - CENDOMA/FIGAM.
148

Em 1987, já com diretor nomeado, aparentemente, nada faltava para que o Centro de
Cultura fosse inaugurado. Alagoinhas, por fim, teria uma estrutura própria, sobretudo, “para
apresentação de espetáculos cênicos”, ou seja, o teatro que Antonio Mário, linhas atrás,
lamentou não haver. No entanto, ao recapitular a narrativa, vê-se que essa queixa do diretor
foi feita em 1987, e a construção do Centro de Cultura iniciou em 1986. Isso significa que,
mesmo depois de construído, houve outro hiato. Pelo menos é o que observa o próprio
Antonio Mário ao denunciar que havia “seissentos centros de cultura espalhados, inacabados e
abandonados pelo interior do Estado, num eloqüente atestado da malversação do dinheiro
público”. 564
Dentre esses, 7 que foram construídos com financiamento da Caixa Econômica
Federal, nas cidades de

Itabuna (Jorge Amado), Feira de Santana (Amélio Amorim), Conquista


(Camilo de Jesus Lima), Porto Seguro (sem nome) e Alagoinhas (sem nome)
quase todos inacabados e os dois últimos não inaugurados. Todavia com os
seus diretores, assessores [sic] e funcionários nomeados e recebendo os seus
respectivos vencimentos. 565

Ou seja, mais burocracias surgiam à vista. O sonho ainda não estava efetivado.
De acordo com o documento sobre o histórico do centro de cultura, o jornal Interurb
assumiu que faltava dinheiro para conclusão das obras.

Segundo o arquiteto Silvio Robatto, da FCEBa [...] os recursos fornecidos


pela Caixa Econômica Federal, através do Fundo de Assistência Social,
foram insuficientes para a conclusão das obras. Isso porque houve uma
defasagem entre os índices da ORTN e da construção civil. Antes mesmo da
conclusão da obra civil de alguns dos centros, apesar do ajuste quase perfeito
entre o orçamento e o custo da obra, foi detectado que os recursos não
seriam suficientes para cobrir também as etapas de urbanização e
equipamento. Robatto diz que houve então toda uma política de comum
acordo, de se construir e depois se negociar essa segunda etapa[...]”.566

Uma solução imediata seria solicitar recursos da prefeitura o que, segundo Olivia
Barradas, não era justo, pois essas prefeituras já passavam por maiores dificuldades com
564
Texto “Alagoinhas presente nas mudanças”, escrito por Antonio Mário, 1987. Acervo pessoal de Lívia
Santarém.
565
Ibidem.
566
Ofício encaminhado à coordenadora do Centro de Cultura de Alagoinhas, Jocelita Correa, em 13 de fevereiro
de 2008, como resposta à solicitação do histórico deste. Documento exposto na sala Iracy Gama -
CENDOMA/FIGAM, p.3.
149

orçamento. Por fim, no mesmo ano em que Antonio Mário escrevia, aparentemente,
desesperançoso, meses depois a inauguração aconteceu.567
É interessante compreender como a necessidade de um espaço para os artistas foi
mobilizada e agregada ao resgate da memória e história da cidade: ao se reconhecer que
constituir o Centro na “ruína” da Igreja Inacabada não “se preservaria ruína – intenção maior
do Grupo [Pró-Memória]”, a ideia foi deixada de lado. Desse modo, naquele ano os artistas
comemoraram duas conquistas: um espaço específico destinado o Centro, e o projeto da
preservação de patrimônios históricos da cidade como a Igreja Antiga e o Matadouro.568
O Centro de Cultura foi um símbolo físico resultante do movimento cultural da cidade. E
Antonio Mário “deu suas deixas” nesse cenário, inserido e mergulhado através de suas
observações, da escrita e das pesquisas que empreendeu. O circuito cultural nascido na década
de 1970 conformou um cenário social e político de transformações irreversíveis para a cidade.
O que se percebe é a integração entre a produção da capital e dos interiores, as possibilidades
de vivência artística não só para alunos da FFPA, mas para a cidade. Esse movimento em que
o público que assiste torna-se público que produz, gerou novos artistas no município,
incentivados pelos festivais, pelo projeto de levantamento cadastral, pelas oficinas e
formações alternativas. E esse crescimento de artistas gerou demanda para a expansão de
dispositivos culturais na cidade.
Após o horizonte de reabertura se delinear, as políticas culturais se configuraram, por um
lado, como estratégia de controle do que se produzia e do que ia público. Mas, ainda assim,
foram inegáveis os ganhos relacionados à formação de plateia e incentivo à produção cultural.
Foi possível perceber também como as políticas públicas para cultura estavam chegando a
Alagoinhas, e como o movimento dos artistas foi, ao longo dos anos, sendo progressivamente
atravessado por questões políticas como a luta do Movimento Negro Unificado refletida num
movimento próprio na cidade, os seminários de discussão sobre arte e mercado capitalista, a
luta do movimento estudantil da década de 1980 que também se incorporou à luta dos artistas.
A história da Alagoinhas que pulsa nesse circuito tanto foi, traduzindo em termos teatrais,

567
Em texto escrito por Antonio Mário ele menciona o governo de Waldir Pires que aconteceu de 1987 a 1989, se
referindo ao seu tempo atual. Então, ele estava falando em 1987, dizendo que o CCA ainda não tinha sido
inaugurado, mesmo com todos os funcionários já trabalhando. Entretanto, num documento sobre o histórico do
CCA, a data de inauguração consta como 1986, com o “6” riscado à mão sobre outro numero que provavelmente
era “7”. Não se sabe se foi erro, ou algum interesse em afirmar que foi, efetivamente, inaugurado, 1 ano antes.
568
O tombamento da Igreja só foi decretado mais tarde, em 2011, pela lei municipal nº 2101/2011. Ver:
ALAGOINHAS. Lei nº 2101/2011 de fevereiro de 2016. Dispõe sobre o tombamento da igreja inacabada de
Alagoinhas velha, pelo seu valor histórico e cultural, e dá outras providências. Disponível em:
<https://leismunicipais.com.br/a1/ba/a/alagoinhas/lei-ordinaria/2011/210/2101/lei-ordinaria-n-2101-2011-
dispoe-sobre-o-tombamento-da-igreja-inacabada-de-alagoinhas-velha-pelo-seu-valor-historico-e-cultural-e-da-
outras-providencias > Acesso em 1 fev 2022.
150

interpretada e representada por Antonio Mário, quanto captada por ele num olhar por meio do
qual cultura, política e sociedade se encontram em perspectiva historiográfica. É com essa
multiplicidade de sentidos e representações que se pode identificar na figura de Antonio
Mário, um sujeito que construiu teias em lugares táticos na formação do circuito cultural em
Alagoinhas.
151

Considerações Finais

O auditório aplaudiu a canção


E eu cantei novamente
Fique de olho na vida
O sinal vai abrir
O auditório aplaudiu
Mas cuidado com a porta da frente
Dona Maria de Lourdes
Não espere por mim

Que eu estou no paradeiro


Dessa gente
Quem morreu, quem teve medo
Quem ficou?
Eu estou no bar do Auzílio ou na igreja
E onde quer que eu esteja
Eu não estou
Sérgio Sampaio, Dona Maria de Lourdes, 1973.

O ator e funcionário público Antonio Mário tornou-se diretor teatral, professor


articulador cultural e uma espécie de representante/orador sobre a cultura e memória de
Alagoinhas. Isso pode ser compreendido como uma imagem que ele criou para si próprio, um
legado que ele tinha consciência de que deixaria. Seguindo seus passos por onde produziu, e
observando através dos escritos que deixou, era não só um entusiasta da história de
Alagoinhas, mas também de um teatro popular brasileiro, um personagem atento à
necessidade de perceber e multiplicar o que havia de genuíno numa cultura baiana e nacional.
O fator múltiplo de Antonio Mário é um caminho repleto de bifurcações as quais, no fim das
contas, se cruzam: o teatro e o trabalho no IBGE estão interligados, assim como o
professorado, a produção intelectual, as pesquisas, o engajamento na valorização do
patrimônio histórico e cultural da cidade, e a maçonaria.
A memória sobre Antonio Mário, compartilhada entre todos que foram entrevistados
para o presente trabalho, corrobora tal múltiplo. Na imprensa também ficou conhecido por
diversas facetas: o intelectual, o professor, o diretor de teatro, o historiador diletante – foi aqui
que ele construiu seu nome de “figura, talvez, mais importante no cenário de teatro em
Alagoinhas”.569 Sua história em Salvador foi o prelúdio para o desenvolvimento de uma
trajetória na cidade, que ele vivenciou, se inseriu, transformou, construiu pragmaticamente e
literalmente.

569
Jornal da Bahia, 2 de jul. 1979.
152

Pode ter gerado diversos desafetos, mas, da perspectiva de quem trabalha na boa
manutenção de sua imagem, não deixou rastros negativos sobre si, o que nos remete ao trecho
da música, “Fique de olho na vida/ O sinal vai abrir”.570 Há uma convergência dessa “boa
imagem” entre os contemporâneos e que já fora cristalizada como o “baluarte da cultura”. Tal
representação, no entanto, não está dissociada de um romantismo ligado à chamada
“efervescência cultural” dos anos 1980 por meio do qual os depoentes contemporâneos se
referiram. Pois não se deve desconsiderar que é das incoerências do indivíduo que suscitam as
mudanças sociais.571
Entretanto, abordando outro sentido para as “incoerências”, talvez fiquem as dúvidas
sobre o porquê de um homem negro, que se apresentava minimamente engajado com a
sociedade, não ter se posicionado nos anos de militância do MNUA. Talvez porque, mais do
que um cidadão não negro, estava “no paradeiro dessa gente”. Fica também a reflexão sobre
as incoerências do homem de comportamento libertário nas artes, mas para que existisse o seu
“fator múltiplo” fora de casa, consequentemente, existiam as esposas com quem ele esteve ao
longo dessa trajetória, dentro de casa, na manutenção do lar.
Mas é a narrativa que constrói o sentido para a história de uma vida, e as incoerências
nem sempre precisam sem sanadas, resolvidas, como quem resolve uma questão matemática.
Do horizonte de quem coleta, “manuseia” e constrói narrativas com os dados, a analogia
sugerida pelo quadro pintado por Anthonio Lins – além da música de Sérgio Sampaio – é bem
vinda nessa análise, pois nele, Antonio Mário caminha do ponto mais alto do município, o
Alto do Capinã, como personagem que se propôs a observar a cidade em perspectiva
panorâmica, assim que aqui chegou.
“Observou” as transformações dessa urbe, desde o ano crucial de seu
desenvolvimento, na década de 1960. Mas não de forma passiva, nela se inseriu e criou um
vínculo que lhe rendeu o titulo de cidadão alagoinhense, uma exposição permanente na
Fundação Iraci Gama, sobre sua vida, uma sala no Centro de Cultura de Alagoinhas,
inaugurada em 2017 e que leva seu nome. Inseriu-se no cenário construindo vínculos em
diversos meios – inclusive num meio liberal como a maçonaria – construiu um cenário no
teatro que perduraria por todo o período da ditadura, consideradas as devidas proporções em
seus hiatos, e diante de outro cenário, aquele cuja repressão impunha suas ordens. Portanto,

570
SAMPAIO, Sérgio; Dona Maria de Lourdes. In: SAMPAIO, Sérgio. Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua.
Rio de Janeiro: Philips, 1973. 1 CD. Faixa 9.
571
Parafraseando Giovani Levi com a frase: “para todo indivíduo existe também uma considerável margem de
liberdade que se origina precisamente das incoerências dos confins sociais e que suscita a mudança social”.
LEVI, Giovanni. Usos da biografia, 2006. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de M. (Orgs.). Usos e
abusos da história oral. Rio de janeiro: FGV, 1996, p.167-182, p. 182.
153

estava no “bar do Auzílio” mas também “na igreja”, ou seja, entre a maçonaria e o
catolicismo (pelas amizades com padres), entre as “comédias inofensivas” de Pedro Bloch e
os espetáculos “subvsersivos” de Dias Gomes e Plínio Marcos. Não estava no movimento
negro, mas “montou” autores de um teatro de protesto. Até onde ia o seu protesto? Até onde
ele parecia dizer “O auditório aplaudiu / Mas cuidado com a porta da frente”.
Conscientemente ou não, saiu ileso, talvez, mas com táticas difíceis de ler – porém
possíveis de acessar nas entrelinhas dos seus textos, em suas “deixas” e práticas. “No jogo
político das desigualdades, era preciso saber jogar no campo de possibilidades de luta traçado
pelo adversário e, indiretamente, ir ganhando-lhe espaço”.572 Ele registrou suas impressões
sobre a história do cenário, com visão historiográfica. Passeia pelas ruas desse cenário já
atravessado por toda essa história, enquanto sujeito “escorregadio”: Não era o homem
“exemplar”, nem tinha comportamento previsível. Criava caminhos para não se indispor, mas
demonstrava certa indisposição, na escrita. Difícil de ser tomado, categoricamente, como
“uma coisa” ou “outra”. E os vestígios que deixou, onde deixou e como deixou, mostram que
estava em quase todos os lugares, mas “onde quer que eu esteja, eu não estou”. Para os
estudiosos de sujeitos como Antonio Mário, permanece, na dúvida metódica, sempre um
gosto de “Não espere por mim”.
Por fim, como a pintura do já mencionado quadro, “caminha” disseminando o múltiplo
que lhe constituiu, na cidade onde se estabeleceu diante de todas as transformações que o
cenário viveu e as que ele viveu no cenário. As cortinas do espetáculo continuaram abertas
por mais uma década, pois registram-se produções suas, de teatro, até meados de 1990.573
Quando no início do novo milênio, em 2002, tal qual vida que imita a arte, encerra-se o
último ato com a morte do personagem.

572
LOPES, Beatriz. Tudo Preto: diálogos e assimilações no teatro de revista. Revista Intercâmbio dos
Congressos Internacionais de Humanidades, Brasília, n. 6, p. 519-528, Ano 2016, p.09.
573
Convite da Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer de Alagoinhas destinado ao Grupo Natureza para a
participação no 8º Encontro de Cultura. 10 de nov. de 1990. Acervo pessoal de Lívia Santarém.
154

Arquivos e Fontes

Arquivo pessoal de Lívia Santarém. Salvador - BA.


Arquivo pessoal de José Olívio. Alagoinhas - BA.
Arquivo pessoal de Roque Lázaro. Alagoinhas - BA.
Acervo “Mobral”. Arquivo Público de Alagoinhas/Alagoinhas – BA.
Acervo “Antonio Mário”. CENDOMA/FIGAM. Alagoinhas - BA.
Acervo “Teatro”. CENDOMA/FIGAM. Alagoinhas - BA.
Acervo jornais. CENDOMA/FIGAM. Alagoinhas - BA.
Acervo digitalizado do CENDOMA/FIGAM. (Jornais). Alagoinhas - BA.
Acervo Colégio Municipal de Alagoinhas. Alagoinhas - BA
Plataforma digital do Arquivo Nacional.

Jornais
Comitê Político Unificado - Boletim Especial (Salvador), 1984.
Informativo do Grêmio Livre Sintonia, s/d.
Alagoinhas Jornal, 1958-1964.
Tribuna de Alagoinhas, 1978-1979.
Jornal da Bahia, 1979.
Jornal O Nordeste, 1956.
Nova Chama, s/d.

Entrevistas

ALVES, Francisco José Santos. Francisco José Santos Alves, “Chicão” (depoimento,
2021). Entrevista cedida a Bruna Meyer. Alagoinhas, BA, 4 mai. 2021.
CURSINO, Antonio. Antonio Cursino (depoimento, 2020). Depoimento cedido a Bruna Meyer.
Alagoinhas, BA, 17 jun. 2020.
DEUSDETE, Belmiro. Belmiro Deusdete (depoimento, 2017). Depoimento cedido a Bruna
Meyer. Alagoinhas, BA, 10 out. 2017.
GAMA, Iraci. Iraci Gama (depoimento, 2021). Entrevista cedida a Bruna Meyer.
Alagoinhas, BA, 25 mai. 2021.
LÁZARO, Roque. Roque Lázaro (depoimento, 2017). Entrevista cedida a Bruna Meyer.
Alagoinhas, BA, 28 out. 2017.
155

LINS, Antonio. Anthonio Lins (depoimento 2021). Depoimento cedido a Bruna Meyer.
Alagoinhas, BA,5 out. 2021.
OLÍVIO, José. José Olívio (depoimento, 2017). Entrevista cedida a Bruna Meyer. Alagoinhas,
BA, 15 de jun. 2017.
RAMOS, Luiz. Luiz Ramos (depoimento, 2017). Entrevista cedida a Bruna Meyer.
Alagoinhas, BA, 29 de jul. 2017.
SANTARÉM, Lívia. Lívia Santarém (depoimento, 2017). Entrevista cedida a Bruna Meyer.
Alagoinhas, BA, 6 set. 2017.
SANTARÉM, Lívia. Lívia Santarém (depoimento, 2017). Depoimento cedido a Bruna
Meyer. Alagoinhas, BA, 10 set. 2017.
SANTARÉM, Lívia. Lívia Santarém (depoimento, 2020). Depoimento cedido a Bruna
Meyer. Alagoinhas, BA, 17 abr. 2020.
SANTARÉM, Lívia. Lívia Santarém (depoimento, 2020). Depoimento cedido a Bruna
Meyer. Alagoinhas, BA, 24 set. 2020.
SANTARÉM, Lívia. Lívia Santarém (depoimento, 2020). Depoimento cedido a Bruna
Meyer. Alagoinhas, BA, 24 out. 2020.
SANTARÉM, Nélia. Nélia Santarém (depoimento, 2017). Entrevista cedida a Bruna Meyer.
Alagoinhas, BA, 10 set. 2017.
SANTOS, Maria Minervina dos. Maria Minervina dos Santos, “Miné” (depoimento,
2017). Entrevista cedida a Bruna Meyer. Alagoinhas, BA, 29 out. 2017.
SANTOS, Raimunda Creuza dos. Raimunda Creuza dos Santos, “Ray Creuza”
(depoimento, 2017). Entrevista cedida a Bruna Meyer. Alagoinhas, BA, 29 out. 2017.
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Anexos

Figura 2: Cine Theatro Popular. Fonte: Traços de Ontem.


In: SANTOS, Joanita da Cunha Belo Horizonte:
Figura 1: CINE AZI - Autor desconhecido. Graphilivros Editores, 1987, p. 43. Não há registros do autor
s/d. fonte IBGE - da foto, nem em quais circunstâncias foi tirada.
httpsclimaonline.com.bralagoinhas-
bafotopraca-doutor-graciliano-freitas-cine-
alagoinhas. Acesso em 11 mar 2022.

Figura 4: Antonio Mário em discurso no auditório


Figura 3: Antonio Mário dos Santos.
do Colégio Santíssimo Sacramento, em 03 de
Fotografia dedicada à 3ª esposa, Nélia
dezembro de 1983. Arquivo pessoal de Lívia
Santarém em 14 de maio de 1958. Acervo
Santarém.
pessoal de Lívia Santarém.
163

Figura 5: Antonio Mário na Agência do IBGE, em 10 de outubro


de 1980. CENDOMA/FIGAM.

Figura 6: Panfleto referente ao programa da peça


Irene realizada na década de 1960, pelo grupo Dias
Gomes. Acervo “Antonio Mário”.
CENDOMA/FIGAM.

Figura 8: Ruínas da casa onde Antonio Mário cresceu –


Figura 7: Cartaz da peça Corpo a Corpo realizada em Rua Raul Leite, nº 8, Matatu, Salvador. Fotografia
1986. Arquivo Pessoal de Lívia Santarém. produzida por Lívia Santarém, 2020.
164

Figura 9: Antonio Mário na Loja Maçônica Caridade e


Sigilo de Alagoinhas. Autor desconhecido, s/d. Banner
sobre exposição da vida de Antonio Mário, exposto no
CENDOMA/FIGAM.

Figura 30: Antonio Mário e Iraci Gama em momento de


descontração, num bar, em viagem para atividades do Grupo
Pró Memória. Autor desconhecido, 1996. Acervo “Antonio
Mário”. CENDOMA/FIGAM.

Figura 21: Capa do livro A Formação do


Figura 11: Assinatura de Antonio Mário no
ator, de Richard Bolelavsky, adquirido por
verso da capa do livro A Formação do ator.
Antonio Mário em 01 de julho de 1957.
Arquivo pessoal de Roque Lázaro.

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