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Banca examinadora:
__________________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Santos Silva (Orientador) – UNEB Campus II
__________________________________________________________________
Prof. Dr. Raimundo Nonato Pereira Moreira – UNEB Campus II
__________________________________________________________________
Prof. Dr. Antônio Maurício Freitas Brito (integrante externo) – UFBA
Ficha Catalográfica
164f.;Il.
CDD: 306.484098142
4
Agradecimentos
É simbólico pontuar que este trabalho marca o fim de um ciclo de 11 anos na UNEB.
Toda a minha formação, também política, é resultado de minhas vivências dentro da
universidade: nas salas de aula, corredores, entre vínculos afetivos e construções com o
movimento estudantil. Sou grata aos meus Orixás e Pretos Velhos que conduziram meu Ori
em todas as escolhas que fiz. Principalmente, na finalização desse mestrado. Sem eles, como
eu sobreviveria à pandemia?
Se não fosse pela proteção orixá, como seria possível seguir produzindo depois de
perder meu pai, em pleno processo? Painho, Ailton Pereira, assistiu aos primeiros passos da
escrita deste trabalho, chorou na apresentação do meu TCC, e contribuiu com o “subtexto”
desta dissertação, quando me contava sobre suas aventuras no Cine Capitólio e no Ginásio de
Alagoinhas. Minha vontade de pesquisar sobre essa história também traz a nostalgia do
período que vivi através desses “causos” contados por ele, desde minha infância. Hoje, sei que
ele sente, de lá do Orum, seu orgulho por mim.
Não só a religião me deu sustento. Mainha que tantas vezes se sentou de meu lado
para ouvir as leituras dos capítulos e discutí-los, acolheu meus choros e também puxou minha
orelha dizendo para eu ser mais objetiva “adianta logo isso menina, vira mestra logo!”. Meu
irmão, Ailton Bruno, outro suporte que me acolheu do seu jeito capricorniano, é meu lado
racional. Agradeço por sua vida e por nossa irmandade. Ao meu padrinho José Augusto, por
valorizar minha profissão, isso me dá forças e alegria para continuar. Agradeço também a um
lindo presente que a pandemia me deu. Presente que eu já tinha há 11 anos, e que virou meu
amor. Obrigada, Leitão, pelas horas a fio me escutando falar de Antonio Mario, por me ajudar
a refletir sobre a pesquisa, e desanuviar meus estresses.
Ao meu orientador Paulo Silva, meu profundo agradecimento! E como eu aprendi a
ser mais objetiva contigo, terei que resumir meu grande apreço em poucas linhas... Paulo
acompanhou, desde o início, a minha trajetória na UNEB e me nutriu de metodologia, teoria,
mas principalmente de poesia! Você, meu caro, é uma pessoa que sabe viver a vida!
Obrigada, sobretudo, por valorizar minha instância artística, por me estimular na academia e
também nas artes, e por todas as vezes que eu achei que não daria conta, você me dizer: “Vai
dançar, Bruna! Dance, depois volte ao texto!”
Obrigada, minha amiga-irmã, Suellen, por nossas conversas de bruxa, os chazinhos
para todo tipo de dor, por me abrir as cartas de tarot, e por me sequestrar quando eu precisava
6
me afastar desta pesquisa para lembrar também de viver um pouco! Minha amiga Gilmara,
referência na vida acadêmica e na dança! Obrigada por abrir meus olhos sobre tantas coisas,
durante a escrita, que eu não consegui enxergar sozinha, amiga! À minha irmã de axé, Aline
Najara, pela força que me deu para seguir na pesquisa, principalmente me dando colo durante
meu luto.
A todos os querides colegas do mestrado, por tornarem a sala o meu lugar feliz!
Especialmente, Mariana, Luis, Samir, Igor e Aline; pela ajuda mútua, pelas resenhas, pelo
acolhimento, e pelas “farrinhas”...! Ao meu amigo ator Dominique Faislon: por esse carinho
em acreditar na minha pesquisa, por sua visão de ator sobre meu trabalho! A James, por
compartilhar comigo sua pesquisa sobre Albertina Rodrigues. Sigo agradecendo a Ed Assis e
Eliana Batista por terem “me apresentado” a Antonio Mario em 2017. Sou grata a todos os
depoentes, sobretudo aos novos entrevistados que conheci em 2020: a Chicão (e a Paulo Dias
por fazer a ponte entre mim e ele), Iraci Gama e Antonio Cursino. Permanecem meus
agradecimentos especiais a Lívia Santarém e Dona Nélia, pessoas muito queridas e generosas,
com quem acabei construindo um vínculo além da pesquisa.
Muito obrigada, professora Maria do Socorro Carvalho, pelas considerações
indispensáveis na minha banca de qualificação. A “forma” desse texto foi inspirada em suas
orientações. Sou uma fã! Obrigada, professor Maurício Brito, pelo olhar cuidadoso sobre essa
história que desenvolvo e por aceitar compor minha banca de defesa. Igualmente, agradeço ao
professor Raimundo Nonato por, desde o princípio, me incentivar com entusiasmo, me ceder
fontes raras e estimar meu trabalho.
Agradeço ainda a Rita e João Reginaldo do IBGE, por me cederem fontes importantes
sobre a chegada de Antonio Mario a Alagoinhas. Obrigada Thiago Machado, por me dar de
presente seu livro autoral Pelas Ruas da Cidade: O golpe de 1964 e o cotidiano de Salvador.
À FAPESB por ser símbolo de resistência em tempos de ataques à pesquisa científica
e à universidade pública. O apoio financeiro oportunizou a realização de um antigo sonho:
dedicar um tempo somente ao estudo sem precisar me desdobrar com um trabalho paralelo,
tão somente para me manter.
Por fim, a mim. Eu tenho um orgulho danado de quem me tornei.
7
Resumo
Discute a trajetória de Antonio Mário dos Santos (1922 - 2002), com foco em suas
contribuições para a resistência teatral, artística e intelectual de Alagoinhas e o circuito
cultural na cidade entre 1961 e 1987. Como sujeito de múltiplas facetas, Antonio Mário
promoveu transformações exercendo ações dentro e fora das artes: além de funcionário do
IBGE, foi professor, poeta, pesquisador inclinado ao ofício de historiador diletante e elaborou
escritos sobre a história de Alagoinhas. Dirigiu dois grupos teatrais, o Dias Gomes (1964) e o
Natureza (1970) diante dos quais se pode perceber certas mudanças em sua atuação. Ao longo
de suas experiências na cidade, o quadro sociocultural se transformou com a instalação da
Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas (FFPA, 1972), o que proporcionou sua
participação em projetos que potencializaram as pesquisa sobre o município, e contribuíram
para construir uma imagem de intelectual enjagado com as questões patrimoniais. Pode-se
compreender Antonio Mário como ator social que propunha condições de acesso aos bens
culturais e que se punha, sobretudo, como “narrador” da cidade. Esta dissertação foi elaborada
a partir de fontes memorialísticas, jornais, documentos pessoais do personagem – dentre eles,
fotografias, anotações e roteiros das peças trabalhadas – além de panfletos, programas e
documentos oficiais que verificam as atividades culturais no município, no período proposto.
Abstract
It discusses the trajectory of Antonio Mário dos Santos (1922 - 2002), focusing on his
contributions to the theatrical, artistic and intellectual resistance in Alagoinhas and the
cultural circuit in the city between 1961 and 1987. As a subject of multiple facets, Antonio
Mário promoted transformations by exercising actions inside and outside the arts: besides
being an employee of the Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE), he was a
teacher, poet, researcher inclined to the practice of dilettante historian and wrote about the
history of Alagoinhas. He directed two theater groups, Dias Gomes (1964) and Natureza
(1970), in which one can notice certain changes in his performance. Throughout his
experiences in the city, the sociocultural picture was transformed with the establishment of
the Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas (FFPA, 1972), which enabled his
participation in projects that enhanced research on the municipality, and contributed to build
an image of an intellectual enagaged with patrimonial issues. Antonio Mário can be
understood as a social actor who proposed conditions of access to cultural assets and, above
all, as a "narrator" of the city. This dissertation was based on memorial sources, newspapers,
personal documents of the character - among them, photographs, notes and scripts of the plays
- as well as flyers, programs and official documents that verify the cultural activities in the
city, in the proposed period.
Sumário
Introdução, 12
Capítulo I: O personagem e os cenários, 27
7. Anexos, 162
10
Introdução
1
Documento em que Antonio Mário solicita expedição de seus “respectivos diplomas e títulos” à Universidade
Federa da Bahia – UFBA/Departamento de Teatro da Escola de Música e Artes Cênicas da UFBA, em 23 de
julho de 1969. Pasta “Antônio Mário” - CENDOMA/FIGAM.
2
Declaração cedida pelo IBGE no dia 1 de outubro de 2020. Acervo pessoal da autora.
13
Desse modo, a perspectiva biográfica que norteia a narrativa toma como referência os
fatos cruciais em sua vida como diretor teatral e articulador cultural na cidade. A intenção,
portanto, é perceber o teatro como um núcleo que se expandiu e gerou ramificações na
trajetória, formando seu fator “múltiplo”: além de funcionário público e ator, tornou-se diretor
teatral, poeta, professor de escolas da rede pública e privada, participou do Grupo Pró-
Memória onde realizou atividades de pesquisa e projetos sobre a história de Alagoinhas em
parceria com a FFPA, além de sua contribuição ativa no movimento cultural na cidade.
No ano em que Antonio Mário chegou, em 1961, a urbe vivia um cenário de
desenvolvimento da economia: o crescimento acelerado da população, a produção de laranja
que lhe conferiu o epíteto de “terra das laranjas”, a chegada da Petrobrás com a descoberta de
poços de petróleo na região e o crescimento do comércio cujo destaque revelou-lhe como
cidade central.3 Dentre as características referentes à qualidade de vida, os aspectos
educacionais também se expandiram. Em proporção inversa, Alagoinhas dispunha de poucos
dispositivos culturais, dentre eles, o Cine Teatro Popular, único que possuía estrutura para
teatro no período. Os cinemas consistiam em uma das principais atividades de entretenimento
da cidade, mas não sobreviveram após 1980.
Diante do cenário incipiente para o teatro, Antonio Mário montou o primeiro grupo
que dirigiu, o Dias Gomes (1964), onde desenvolveu seus métodos de interpretação e pôde
por em prática o que aprendeu na escola de teatro da UFBA. Foi formado inicialmente pelos
alunos da 1º turma do curso de contabilidade do Ginásio de Alagoinhas. Ainda na década de
1960, montou dois espetáculos com o grupo, ambos cujos textos significaram um marco no
gênero da comédia de costumes no Brasil.
Quando o Dias Gomes se dissolveu, no final da década de 1960, apresentou-se uma
nova fase do teatro de Antonio Mário caracterizada pela escolha de peças cujos autores
representam, igualmente, uma nova fase do teatro no Brasil, autores que atravessaram a
formação do que convencionou-se chamar, entre os estudiosos, “teatro novo”. Com o novo
grupo chamado Natureza, Antonio Mário montou peças de Dias Gomes, Plínio Marcos,
Oduvaldo Viana Filho e seu trabalho também foi permeado por montagens infantis como a
realização de “O Pequeno Príncipe” num festival de encerramento do MOBRAL, e “O Rapto
das Laranjinhas”, uma analogia ao clássico de Maria Clara Machado, O Rapto das
Cebolinhas.
3
Tais dados serão esmiuçados no segundo tópico do primeiro capítulo.
14
4
Termo aqui utilizado entre aspas pois alude à forma como os documentos e panfletos sobre os festivais se
referiam sobre Alagoinhas.
5
Lívia Santarém, Iraci Gama e José Olívio, de acordo com as entrevistas realizadas, sabiam da existência desse
material.
6
A informação sobre o incidente foi cedida por Lívia Santarém, ao rememorar o momento em que tentara
recuperar os pertences do pai após sua morte. Depoimento cedido por Lívia Santarém à autora, em 17 de abril de
2020.
15
7
CERTEAU, Michel. Artes de Fazer. In.: A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 96.
8
BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In.: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaina (org.). Usos e
abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996, pp. 189-190.
9
SCHMIDT, Benito Bisso. Construindo biografias: Historiadores e jornalistas, aproximações e afastamentos.
In.: Estudos Históricos, Rio de Janeiro: FGV, vol. 10, nº 19, 1997, p.3-21.
10
LEVI apud Schmidt. In.: SCHMIDT, Benito Bisso. Idem, ibidem, p. 7.
17
os erros de uma biografia jornalística, que, segundo ele, não atende aos rigores metodológicos
para lidar com as fontes, equilibrar as “verdades históricas”, e articular o indivíduo e
sociedade, devidamente.11 Sigo, portanto, na perspectiva de uma narrativa que descreve os
acontecimentos, sem descuidar da análise; articula a vida pública e privada de Antonio Mário,
e busca compreendê-lo na medida em que representa um contexto social, pelo destaque que
obteve.
Certa projeção social do personagem em estudo se consolidou através da homenagem
que ele recebeu em 2017, ao ser inaugurada uma sala com seu nome no Centro de Cultura de
Alagoinhas; e da exposição permanente sobre sua vida na Fundação Iracy Gama. Em 2002,
recebeu o título post mortem de cidadão alagoinhense pelo seu ex-aluno e então vereador de
Alagoinhas, Pedro Marcelino.12 Apesar de não se tratar de uma pessoa totalmente
desconhecida pela sociedade alagoinhense, não pretendo desenvolver aqui a trajetória de um
“indivíduo-exemplo”, conforme Sabina Loriga, ou seja, o homem tomado como a
personificação das forças sociais, cujas ações devem ser enaltecidas para que sirvam de
exemplo na posteridade.13 Nesse mesmo caminho, procuro me afastar da perspectiva do
“herói” de Tomas Carlyle (1795 - 1881), no sentido de renunciar a si mesmo enquanto
indivíduo, e visar a universalidade antes de tudo.14
A discussão proposta por Loriga sobre tipos e métodos de lidar com o indivíduo, no
constructo de uma biografia, contribuiu para manter a escrita consciente sobre o que evitar
fazer nesse processo. Sobre o que fazer, a partir do caminho que a autora propõe,
compreende-se a biografia como campo que serve de reflexão para restituir as pluralidades do
passado e as diferentes vozes que podem cultivar a dimensão ética da história: “Recolher
pensamentos para povoar o passado”.15 Ou seja, a biografia ajuda a introduzir uma tensão
dramática no passado. Interessa, portanto, trazer a imagem do “grande diretor teatral” e
“exímio professor” – que todos os entrevistados, saudosamente, pintaram – para
problematizá-la. Consequentemente, discutir suas múltiplas identidades, destacar as
perspectivas fracionadas da vida, as incoerências do indivíduo e compreendê-lo levando em
conta a desconstrução da “ilusão biográfica”.16
11
Idem.
12
Título de Cidadão Alagoinhense post mortem concedido a Antonio Mário dos Santos pela Câmara de
Vereadores de Alagoinhas através do decreto 068/02, em 19 de dezembro de 2003.
13
O termo foi criado por Hippolyte Taine e discutido por Sabina Loriga. Ver: LORIGA, Sabina. O Limiar
biográfico. In.: O Pequeno x: da biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p. 17 – 47.
14
Idem. Ibidem.
15
Idem. Ibidem.
16
BOURDIEU, op. cit.
18
Não obstante aos caminhos que se deve evitar no fazer biográfico, Vavy Pacheco
Borges propõe um modus operandi para lidar com as dificuldades de trabalhar com a esfera
individual que dialoga também com a cidade. A relação entre o personagem e o cenário é
dialógica e vai se construindo na medida em que um dá a "deixa" para o outro no palco da
reconstituição histórica.
Pensando Alagoinhas como palco onde essa narrativa se constituiu sob o olhar de
Antonio Mário, e também como cenário de sua chegada, através do qual ele implementa
transformações mútuas, Sandra Jatahy Pesavento fundamenta a discussão. A partir de seus
estudos, a autora contribui com a análise sobre mudanças sofridas por cidades ao longo das
décadas de 1960 a 1980, tal qual a dinâmica sociocultural impingida por símbolos e urgências
da modernidade. Segundo ela, o historiador da cultura identifica os signos do passado em
forma de documentos (discursos ou imagens) e percebe como o desenvolvimento das cidades
modernas tendem a destruir as memórias.17 Essa reflexão também traz um contraponto a essa
relação, quando ajuda a pensar sobre as realizações do grupo de pesquisa Pró-Memória
coordenado por Antonio Mário, quando de seus projetos desenvolvidos para preservar esse
“velho” como valorização da memória da cidade.
Assim, surge a Alagoinhas de várias perspectivas: a da década de 1960 em pleno
desenvolvimento econômico, mas carente dos projetos culturais, e a cidade pós 1968, em que
esses projetos se desenvolvem e, junto à FFPA, conforma-se o movimento cultural.
Parafraseando José D’Assunção Barros, a escolha das fontes e a condução do método de
pesquisa e da narrativa também foram permeados por uma imagem tridimensional da cidade:
ora consciente de seu potencial de desenvolvimento, ora apresentando os percalços que as
mudanças causaram, ora lacunar e silenciada sobre suas produções culturais, em razoável
medida.18
Ao voltar o olhar para o passado, o historiador está elaborando uma representação a
partir do que já foi representado pela literatura, pela memória, pela imprensa, inclusive por
documentos oficiais. O conceito de “representação” de Roger Chartier cabe para compreender
os sentidos produzidos através do cruzamento de tais fontes, afinal, o real é uma “cadeia de
significados” e essa cadeia acontece por meio de olhares entrecruzados.19
17
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O Imaginário e a Cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio e Janeiro,
Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2002.
18
BARROS, José D’Assunção. Cidade e História. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p.46
19
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, nº 11 (5), p. 173-191,
1991.
19
Nesse ínterim, percebe-se uma cidade “construída” por Antonio Mário, em seus
escritos, cujas representações se cruzaram às de dois memorialistas locais, Salomão Barros e
Joanita da Cunha, em seus livros Vultos e Feitos do Município de Alagoinhas e Traços de
Ontem, respectivamente. Visões e informações trazidas por esses dois últimos também foram
problematizadas diante do cruzamento com outras fontes, possibilitando-se perceber que as
narrativas dominantes “querem ser senhoras da memória e do esquecimento”.20
Uma busca meticulosa para essa pesquisa sugere que até então não houve trabalhos
sobre teatro na cidade, inclusive isso consiste numa lacuna historiográfica acerca do tema nos
interiores da Bahia. Não obstante, alguns historiadores contribuíram para pensar o cenário de
desenvolvimento da década de 1960 em Alagoinhas, como Carlos Nássaro, Moises Leal e
Leila Carla Rodrigues. O trabalho de Jonatas Pereira também inspirou essa dissertação, a
nível de comparação e compreensão das diferentes formas de atuação e resistência de artistas
contra a repressão militar, uma vez que tem como tema de pesquisa uma mulher artista e
militante alagoinhense – Albertina Rodrigues – cuja atuação se desenrolou, assim como
Antonio Mário, durante a ditadura.
Pensar a cultura e seus processos identitários no Brasil surgiu como reflexão para
entender as transformações que o teatro estava vivendo na época e com qual arte Antonio
Mário estava em contato no período, tendo lhe permitido trazer seus conhecimentos em
Alagoinhas. Com isso, Renato Ortiz, em A Moderna Tradição abre a reflexão sobre como a
industrialização e modernização na economia influenciaram nas artes e na dinâmica
sociocultural, pensando a esfera baiana, e a emergência de um teatro novo e popular
alternativo ao teatrão bilheterista, questão que consequentemente se refletiu nas platéias e
públicos consumidores de cultura no Brasil.21
Em termos de Salvador - Bahia, Maria do Socorro S. de Carvalho segue nessa
perspectiva de contribuir para pensar a formação do panorama cultural moderno. Aborda as
artes cênicas de 1960 como fruto das transformações que se sucediam desde a década de
1950. Contribuiu largamente para pensar o cenário em que o personagem se constitui ator na
Escola de Teatro da UFBA e o papel desta enquanto meio de incentivo à ampliação dos
grupos em Salvador e catalisadora de uma nova dinâmica cultural na cidade.22
20
MONTENEGRO, Antonio Torres. História, metodologia, memória. São Paulo: Contexto, 2010, p. 109.
21
ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira: Cultura Brasileira e Indústria Cultural. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1989.
22
CARVALHO, Maria do Socorro S. de. Imagens de um tempo em movimento: cinema e cultura na Bahia nos
anos JK (1956 - 1961). Salvador: Edufba, 1999.
20
Nesse processo, Antonio Mário entrou em contato com atores da nova geração
artística do “teatro novo” e do cinema novo, a exemplo de Mário Gusmão (1928 - 1996),
Othon Bastos (1933), Geraldo Del Rey (1930 - 1993), Nilda Spencer (1923 - 2008) e Sonia
dos Humildes (1939 - 1980). Importante destacar que Antonio Mário fez parte da turma em
que se formaram os primeiros atores negros em Salvador, como o próprio Mário Gusmão e
Antonieta Bispo. Em 1957, junto com esses atores (exceto Gusmão), Antonio Mário
participou do espetáculo O Boi e o Burro a Caminho de Belém, texto escrito por Maria Clara
Machado (1921 - 2001), dirigido por Martin Gonçalves (1919 - 1973), então diretor da Escola
de Teatro.
A relevância da escola de teatro para lançar os primeiros atores negros por formação
na Bahia, inclusive para a televisão, e sendo Antonio Mário um ator negro incluído nessa
turma, pode ser refletida a partir da Linha do Tempo do Teatro Negro em Salvador, do diretor
e dramaturgo Marcio Meirelles. Os autores de teatro somaram, nessa pesquisa, com
perspectivas de diferentes áreas, dentre esses, dois críticos de teatro: Decio de Almeida Prado
e Paulo Francis. Jussilene Santana em sua dissertação de mestrado auxiliou nas reflexões
sobre a ETUFBA, os atores formados na primeira turma e a peça em que Antonio Mário
participou.
Outros autores contribuíram para dar voz à história de um teatro de resistência na
Bahia, e sua ligação com o Brasil. Raimundo Matos de Leão sugere um viés amplo sobre os
teóricos que inovaram o fazer teatral e como eles se relacionam com a historiografia. Sua
contribuição é mais específica no sentido de se debruçar sobre a situação do teatro na Bahia
entre 1967 e 1974. Logo, se propõe a contribuir para que se possa ir além da história “contada
sempre do ponto de vista dos acontecimentos que se dão no eixo Rio - São Paulo”.23 Acerca
da “revolução teatral” que acontece na virada de 1967 para 1968, Luiz Carlos Maciel (1938 -
2017) apresenta um painel nacional sobre a contracultura. Localiza o chamado Teatro Novo
num paralelo entre o cinema, a música e as artes plásticas, linguagens atravessadas pelo
movimento Tropicalista, também abordado pelas memórias do autor.24 Ambos também foram
essenciais para a compreensão da ação da censura e repressão sobre os artistas, e as formas de
re-existência possíveis dentro do panorama.
Sobre a compreensão geral do pano de fundo político no contexto de ditadura, Cristina
Costa também entrou na discussão com dados, fontes e diálogos acerca da ação da censura
23
LEÃO, Raimundo Matos. Transas na Cena em Transe: Teatro e Contracultura na Bahia. Salvador: Edufba,
2009, p.18.
24
MACIEL, Luiz Carlos. Geração em Transe: Memórias do Tempo do Tropicalismo. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1996.
21
sobre o teatro.25 Denis de Moraes ajudou a costurar o panorama macro, tecido pós 1970,
quando a esquerda brasileira se fragmentou por inúmeros motivos paralelos, fazendo com que
o ideal da revolução socialista fosse substituído por dúvidas e incertezas. 26 Vale ressaltar que
a pesquisa transcende a historiografia e dialoga diretamente com a bibliografia sobre o teatro,
de maneira a buscar possibilidades interdisciplinares. Desse modo, além dos dramaturgos e
críticos brasileiros já citados, alguns cânones do teatro mundial foram interpelados para
melhor compreender a formação proporcionada por Antonio Mário aos seus atores:
Constantin Stanislavisky (1863 - 1938), Richard Bolelavsky (1889 - 1937), Saint-Exupery
(1898 - 1956) e Anton Tchekhov (1860 - 1904).
Essa dissertação foi conduzida pela perspectiva de história cultural proposta por Roger
Chartier, na qual orienta repensar seus métodos a partir de aspectos imateriais que configura
como o conceito tanto de representação como de práticas.27 Segundo ele, a cultura deve ser
analisada através da “relação interativa” entre esses dois pólos. Tanto os objetos como
sujeitos produtores de cultura circulam entre ambos, que correspondem ao “modo de fazer e
modo de ver”. Assim, institui-se uma realidade social “dada a ler” por uma pluralidade de
sentidos. O conceito de representação, aqui, ajuda a refletir sobre como se dá tal apreensão do
mundo, através do teatro, por aquelas pessoas que vivenciaram os grupos dirigidos por
Antonio Mário. Inclusive, como essas representações se constituem no presente de modo a
construírem imagens sobre o sujeito como diretor.
Para reconstituir os passos de Antonio Mário nos espaços onde frequentou e as
representações elaboradas sobre ele, muitas lacunas surgiram e só puderam ser supridas por
depoimentos e entrevistas. Antonio Mário teve 4 casamentos, e, ao todo, 10 filhos. Lívia
Santarém é a 2ª filha do casamento com Nélia Santarém (3ª esposa) com quem conviveu
durante praticamente toda a trajetória aqui abordada. Consequentemente, por ter vivido com o
pai por mais tempo do que os filhos dos casamentos anteriores, isso conferiu a tal filha
segurança para autointitular-se “a biógrafa da família”.28 O exercício da memória também é
um encontro consigo mesma, pois identidades são frequentemente construídas e reconstruídas
diante da negociação entre as esferas individual e social. Quando ela institui a si própria a
imagem de “guardiã/mediadora da memória” cria uma imagem a partir da memória do pai,
logo, percebe-se que essa se constitui como “aquela que o conheceu tão bem” que qualquer
25
COSTA, Cristina. Censura em Cena. São Paulo: EDUSP, 2006.
26
DREIFUSS, René. In.: MORAES, Dênis de. A Esquerda e o Golpe de 64: Vinte e cinco anos depois, as
forças populares repensam seus mitos, sonhos e ilusões. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.
27
Inclui-se na definição tambem o conceito de apropriação, mas não foi explorada como as outras duas.
28
Em entrevista, Lívia revelou que se considera a “biografa da família”. Entrevista cedida por Lívia Santarém à
autora, em 10 de setembro de 2017.
22
informação de outro contemporâneo que passe por ela, sofrerá sua inflexão, de alguma
forma.29 Assim, pensando a partir de Michel Pollack, pode-se compreender a memória de
Antonio Mário constituída como “campo de disputa” quando Lívia Santarém traz algumas
informações que contrariam falas de outros contemporâneos.30
Importante ressaltar que Eclea Bosi traz para esse estudo a perspectiva da psicologia
social sobre memória individual e permeada pelas questões sociais coletivas.31 Bosi foi ainda
mais pertinente pelo seu estudo sobre “memórias de velhos” uma vez que os ex-alunos de
teatro de Antonio Mário, todos, atualmente (em 2021), têm idade superior a 60 anos. Isso
consiste num fator específico para se considerar quando comparado à memória de Livia
Santarem, nascida em 1965 e portanto, mais jovem. Os ex-atores, no entanto, têm uma relação
com a memória cujo exercício da lembrança se torna atividade de maior relevância.
Antonio Torres Montenegro trouxe aporte para todo o processo de elaboração, realização
e transcrição das entrevistas. Auxiliou também na lida com possíveis “armadilhas” da
memória, visto a constante presença de elementos subjetivos nos relatos dos depoentes.
Portanto, o autor somou-se aos demais na contribuição para atentar aos métodos que não
desconsideram a emoção, mas destacam, ao entrecruzar com as demais fontes, fatos que
interessam à construção da narrativa historiográfica.32
Nessa perspectiva, as fontes orais colhidas através de entrevistas com a sua filha, a ex-
esposa, atores dos antigos grupos e amigos também fazedores de cultura possibilitaram
construir a representação do “personagem” Antonio Mário e narrar sua trajetória pessoal e
artística. Todos os acontecimentos em sua vida, sem data específica, foram localizados no
tempo através de informações cruzadas entre as falas sobre as vivências dos entrevistados e
demais documentos analisados. Somente assim foi possível estabelecer nexos entre as datas
referentes à sua vida pública e particular, para calculá-las de forma aproximada.
As fontes documentais raras de caráter pessoal, as quais tive acesso através dos
arquivos de Lívia Santarém, trouxeram detalhes para reconstruir momentos da vida do
professor e analisar seus materiais de teatro: roteiros de peças, panfletos e programas dos
espetáculos realizados por ele, gratificações e convites para eventos culturais na cidade,
documentação de admissão e aposentadoria do IBGE, além de fotografias individuais, tanto
dele quanto de seus pais e da casa onde moravam em Salvador.
29
Considera-se a expressão “guardiã/mediadora da memória” guardadas as devidas proporções em que a
expressão foi elaborada. Ver: GOMES, Ângela de Castro. A guardiã da memória. Acervo - Revista do Arquivo
Nacional, Rio de Janeiro, v.9, nº 1/2, p.17-30, jan./dez. 1996, p. 5.
30
POLLAK, Michel. Memória e identidade pessoal. Estudos Históricos, Rio de Janeiro. vol. 5, nº. 10, 1992.
31
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo, SP: Editora Tao, 1979.
32
MONTENEGRO, op. cit.
23
Vale ressaltar que as fotografias estão aqui servindo para exprimir situações e contextos,
pois além de não ser possível identificar elementos para realizar uma análise profunda (como
autores das fotos), não houve intenção de fazer um estudo iconográfico para esse trabalho. O
foco limitou-se a questões à luz do que se tem em mãos. Além das fotografias pessoais que
Livia cedeu para a pesquisa, outras referentes a espetáculos, cerimônias, presença do
personagem na maçonaria, ou realizando pesquisas de campo, foram encontradas na Fundação
Iraci Gama (FIGAM) e contribuíram para que, operando no campo das possibilidades, ele
fosse compreendido como presente em diversos lugares sociais.
Outros documentos de ordem pessoal, artística e intelectual de Antonio Mário também
foram acessados na FIGAM, bem como arquivos sobre as atividades artístico-culturais
promovidas pela FFPA, entre as décadas de 1970 e 1980, que serviram para construir o
panorama em que a maior mobilização teatral de Antonio Mário se fez notar ao passo em que
se constituía o circuito cultural na cidade.
Os textos em que o personagem escreveu sobre a história de Alagoinhas desde a
formação do seu marco inicial em torno da Igreja Inacabada possibilitaram compreendê-lo no
universo intelectual da cidade. Usar o escrito de Antonio Mário não significa necessariamente
contar a história que ele conta, mas fazer sua narrativa presente e “dar-lhe” voz. Além do já
referido compilado, cujo original pode ter se perdido, foi cedida para essa investigação, por
meio de sua filha Lívia Santarém, uma pasta contendo textos de estudo sobre teatro,
adquiridos durante a formação da Escola de Teatro da UFBA, trabalhos desenvolvidos com a
FFPA e palestras para a Rosa Cruz. Outra fonte, igualmente rara, consiste num caderno de
anotações pessoais, remanescente dos materiais que se perderam, e que foi encontrado sob
posse do amigo de Antonio Mário, José Olívio Paranhos.
Dentre as fontes jornalísticas, o Alagoinhas Jornal, Jornal da Bahia e o Tribuna de
Alagoinhas foram as principais, todas também cedidas pela FIGAM. O Alagoinhas Jornal –
mais explorado neste trabalho, possibilitou a análise de outras informações sobre a sociedade
da época e a construção do panorama de Alagoinhas que se desenhava quando Antonio Mário
se mudou. Editado entre 1957 e 1970, foi fundado por Walter Altamirano Robatto Campos
(diretor) e Waldo José Robatto Campos (redator-chefe).33
A necessidade de incluir Alagoinhas num patamar de importância no contexto
nacional era frequentemente enaltecido pelo jornal. Vale ressaltar que o nacionalismo pré-
33
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 34.14 mar.1960, p. 3.
BARROS, Salomão Antonio. Vultos e feitos do Município de Alagoinhas. Salvador: Artes Gráficas e Ind.
LTDA, 1979, p. 297.
24
34
Alagoinhas Jornal, ano 4º, nº 82. 23 abr. 1964, p. 1.
35
A informação sobre o ano de fundação do Tribuna de Alagoinhas pode ser encontrada em BARROS, Salomão
op. cit., p. 297.
25
e os desdobramentos políticos em torno desses. Para a construção desses dois últimos tópicos
foram utilizadas, largamente, as edições do Alagoinhas Jornal, entre 1958 e 1961, além dos
próprios textos e anotações de Antonio Mário.
O segundo capítulo aborda os grupos de teatro formados pelo personagem – mudanças
em torno das permanências e rupturas, práticas e táticas relacionadas à manutenção dos
grupos. O primeiro tópico trata do grupo Dias Gomes, sua primeira atuação como diretor; o
segundo aborda uma nova fase do seu teatro com o grupo Natureza, no pós-1968; e o terceiro,
discute experiências com teatro infantil e o que isso pode ter significado para o diretor no
contexto. Trabalha, basicamente, com entrevistas e depoimentos de ex-participantes do grupo,
analisa os métodos de formação teatral utilizados pelo diretor a partir do livro de métodos que
o embasava, e todas as fontes relacionadas às produções teatrais: roteiros, programas,
panfletos e fotos das peças.
O terceiro capítulo aborda o circuito cultural que emerge com o ciclo de 1972 - 1987.
O primeiro tópico ocupa-se da relevância da FFPA para o movimento artístico e a atuação de
Antonio Mário nos projetos elaborados em parceria com a academia. O segundo tópico trata
das 4 edições dos Encontros de Cultura, e atividades culturais, reflexo da formação do
movimento cultural de Alagoinhas, âmbitos atravessados pela presença do protagonista dessa
história. O terceiro tópico traz Antonio Mário numa perspectiva de narrador sobre os
acontecimentos da década de 1980, o que dialoga com a atuação do movimento cultural e
estudantil de Alagoinhas. Refere-se às tensões sociais em torno da reivindicação dos artistas
da cidade pela inauguração do Centro de Cultura, no ciclo que compõe os últimos anos da
década de 1980 e conclui sobre a sobrevivência e manutenção desse circuito. Tomando como
centro organizador da narrativa os textos de Antonio Mário sobre arte, cultura e educação,
basilares para a construção do capítulo. Além desta, todo ele foi construído com fontes sobre
as programações dos eventos, documentos oficiais da universidade e do governo, além de
periódicos.
Vê-se que a lógica narrativa se constrói a partir da articulação entre Antonio Mário e a
cidade, assim como da cidade para o personagem. A vida pessoal o acompanha à medida que
elucida pontos focais para o texto. Por uma opção estilística, os termos de linguagem teatral
como “cenário”, “deixas”, “misencene”, “cenas”, “personagem”, foram incorporados aos
títulos e ao corpo do texto a fim de aproximar a história do gênero artístico e fazer referência
a tal. O tema, portanto, foi costurado dessa forma: o personagem que sai de um cenário, chega
em outro a partir de onde o movimenta e o transforma junto ao circuito no pós-1968. Esse
sujeito também observa esse cenário: trata-se, portanto, de uma dissertação cuja investigação
26
histórica gira em torno de um homem negro que se evidenciou através da arte numa cidade de
valores, estruturalmente, conservadores, em plena Ditadura Militar. Esse recorte de sua
trajetória artística e intelectual confundiu-se com um momento de transformações estruturais
para a esfera cultural em Alagoinhas.
27
Capítulo I
O personagem e os cenários
Para o início dessa história, é necessário um recuo a 1957, ano em que Antonio Mário
dos Santos estreava em sua primeira peça de teatro na Escola de Teatro da UFBA. O
espetáculo O Boi e o Burro a Caminho de Belém foi dirigido por Martin Gonçalves e
apresentada no Parque da Reitoria.36 A peça, escrita por Maria Clara Machado, conta a
história do nascimento do menino Jesus de forma sensível e inusitada, pela perspectiva de um
boi e um burro. Os dois amigos tentam desvendar o “mistério” desse nascimento com a
aparição da Estrela de Belém sobre o estábulo e acompanhando a movimentação de pastores,
anjos, saltimbancos, os três Reis Magos, Maria e José.37
O Boi foi representado pelo ator convidado Othon Bastos, e o Burro, pelo aluno da
turma, Carlos Petrovich.38 Antonio Mário interpretou o papel do rei Mago Baltazar, e foi
prestigiado pela sua amiga Nélia – um apoio moral para o ator em formação, que tinha três
filhos e uma esposa acometida por enfermidade em estado terminal.39 As crianças ficaram
órfãs de mãe ao final do mesmo ano, nas proximidades do Natal. Não foram encontrados
registros do dia exato em que a peça O Boi e o Burro a Caminho de Belém foi apresentada.
No entanto, considerando o subtema da “Farsa-mistério de Natal” é provável que tenha
acontecido próximo às comemorações natalinas. Ao que tudo indica, pode ter sido no dia da
sua primeira apresentação que Antonio Mário perdeu a primeira esposa.40
36
FRANCO, Aninha. O teatro na Bahia através da imprensa: séc XX. Salvador: FCJA; COFIC; FCEBA,
1994, p. 129.
37
Roteiro da peça O Boi e o Burro a Caminho de Belém de Maria Clara Machado. s/d. Arquivo pessoal de Lívia
Santarém.
38
SANTANA, Jussilene. Martim Gonçalves: uma escola de teatro contra a província. Salvador: Tese
(doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, 2011. Disponível em
<https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/32002/1/martim-goncalves-jussilene-santana-sf-dvv.pdf> Acesso em
21 de dezembro de 2020.
39
Entrevista cedida por Nélia Santarém à autora, em 10 de setembro de 2017.
40
A própria Nélia afirmou em entrevista que no dia em que a esposa dele faleceu, ele estava apresentando a peça
que ela foi assistir, e o viu no papel do rei mago Baltazar. Levando em conta o registro da participação de Mário
no espetáculo, as evidências do fato convergem para esse dia.
28
Do pai, o ator não recebeu o mesmo apoio que Nélia lhe dedicou. Narciso Simplício,
um homem negro, como seu filho, era empreiteiro da construção civil. Esperava que Antonio
Mário desse continuidade aos seus negócios. O pai não aceitou com facilidade a escolha do
filho pela formação artística, principalmente quando se leva em consideração a situação
familiar em que o ator se encontrava: uma esposa em estado de saúde terminal, de um
casamento que Simplício, inclusive, não aprovou. A primeira esposa de Antonio Mário era
filha da costureira da família, e tinha condição social diferente da que a família do Matatu
desfrutava.41
Antes de decidir se matricular na Escola de Teatro da UFBA, Antonio Mário havia
prestado concurso para o IBGE e, ao ser aprovado, foi transferido para Brumado com a esposa
e os dois filhos mais velhos, por volta do ano de 1954. Com o nascimento do terceiro filho,
Marco Antonio, em 1956, a esposa não resistiu aos primeiros sinais da doença. Diante do
quadro familiar, Antonio Mário foi transferido para Salvador a fim de obter tratamento
adequado para ela. E nesse retorno, o pai de Antonio Mário,
41
Todas as informações no referido parágrafo foram cedidas por Lívia Santarém, a 2ª filha dos três filhos que
Antonio Mário teve com Nélia Santarém. Entrevista à autora no dia 10 de setembro de 2017. Vale ressaltar que
Antonio Mário casou-se quatro vezes, no entanto, eu só tive a oportunidade de conhecer as esposas do 3º e 4º
casamentos, apesar de que essa última não aceitou ceder entrevista. Sobre as outras companheiras, tive
conhecimento a partir dos relatos de Lívia Santarém e Nélia Santarém.
42
Entrevista cedida por Lívia Santarém à autora, em 10 de setembro de 2017.
29
sacrificar o luto pela esposa, para participar do primeiro espetáculo teatral. Assim, orientada,
sobretudo, pela memória do presente, constitui o ator em formação como num “percurso
orientado” em “deslocamento linear” em direção à realização do desejo de tornar-se ator.43
Para além das especulações sobre a personalidade do sujeito, interessa observar como, apesar
do “drama familiar”, a faculdade de Teatro possibilitou a Antonio Mário construir sua relação
com o novo teatro brasileiro em formação. Além disso, ele esteve ligado a uma Salvador cujo
cenário se localizava no processo de importantes transformações em seu contexto sócio-
cultural.
O Brasil de 1950 vivia um período de abertura política durante o governo
Juscelino Kubitschek (1956 - 1961) cujo desenvolvimentismo intencionava a modernização
técnica do país e a inovação cultural, em prol da superação da condição de nação
subdesenvolvida. Afinal, “um povo economicamente colonial ou dependente, também será
dependente e colonial do ponto de vista da cultura”.44 As manifestações culturais que
ocorriam em Salvador tanto contribuíam como refletiram esse Brasil dos anos 1950 e 1960.
Sob a gestão municipal de Heitor Dias (1959 – 1963), a capital vivia sua atmosfera intelectual
sintonizando-se ao novo ritmo na vida dos artistas, e a necessidade de modernização da arte
estava na ordem do dia. Em 1960, a cidade foi contemplada com o Museu de Arte Moderna,
construído sob a justificativa de promover uma revolução artística, o que já acontecia em
metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro.45
Importante pensar, de acordo com Renato Ortiz, que tal “revolução artística”, a nível
nacional, pode ser vista sob a ótica de “manifestações da burguesia na esfera cultural”.46
Segundo o autor, a inserção dos símbolos de modernização na sociedade brasileira, bem como
na baiana, dependia de uma expansão de massa e público consumidor. Como ambos ainda
eram incipientes, a necessidade da modernização emerge com um processo de
“interpenetração entre a esfera de produção restrita e ampliada”, o que configuram,
respectivamente, as esferas da “cultura erudita”, e da “cultura popular”. Isso sugere que a
relação entre ambas, não necessariamente, se constitui nesse processo como opostas. Como
fruto dessa complexidade, Renato Ortiz propõe pensar sobre o “signo de modernização”
nacional à luz do que viria a ser uma “mercantilização” ainda embrionária, e que buscava,
43
BOURDIEU, op. cit., p. 183.
44
CORBISIER apud CARVALHO. In.:CARVALHO, op. cit., p. 43.
45
CARVALHO, op. cit.
46
ORTIZ, op. cit., p. 66.
30
desde a década de 1940, penetração numa sociedade cuja formação capitalista engendrou-se
de forma tardia.
Nas fronteiras fluidas entre o erudito e o popular surgem movimentos alternativos à
formação de “massificação de opiniões” e de uma “indústria cultural”.47 Na década de 1960, a
contracultura, por exemplo, já delineava suas bases por meio dos movimentos de vanguarda,
que apesar de só se reivindicarem oficialmente como tal a partir de 1968, por causa da
influência dos movimentos estudantis na França, a Bahia saia à frente nesse processo,
influenciando o cinema, a música, o teatro, as artes em geral.48 A atmosfera tropicalista
pairava sobre o estado, tendo a Bossa Nova como sua inspiração e impulso para um
movimento originalmente baiano. Surge, assim, como necessidade de resgatar as raízes da
cultura brasileira ligando-as ao mundo, e de redescobrir o Brasil pelos próprios brasileiros.49
Nesse ínterim, a arte baiana passara a ser percebida dentro de sua autenticidade, consciente de
uma perspectiva que reivindicasse a essência da miscigenação brasileira.50 O Cinema Novo de
Glauber Rocha conferiu visibilidade de vanguarda à Bahia, e suas inovações atravessaram o
período do “Ciclo do Cinema Baiano” (1958 - 1962),51 ou seja, produção cinematográfica de
baixo custo que se contrapunha às superproduções hollywoodianas. Buscava-se, assim,
denunciar as contradições sócio-políticas brasileiras e incorporar o cotidiano das classes
menos favorecidas nos temas abordados. Inaugurava-se, com isso, o “cinema de autor” e com
identidade artística, em contraponto a uma cinematografia que, desde 1940, se afirmava tão
somente na exibição de uma “conquista tecnológica”, e expressão de sociedade
modernizada.52
A Escola de Teatro da UFBA esteve inserida nesse trânsito cultural, geográfica e
simbolicamente. Conforme destacou Luiz Carlos Maciel, ao recordar suas experiências:
47
Os termos entre aspas tambem são discutidos por Maria do Socorro S. de Carvalho em: CARVALHO, op. cit.,
p.50.
48
LEÃO, op. cit.
49
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
50
CARVALHO, op. cit.
51
Idem, ibidem, p. 25.
52
ORTIZ, op. cit., p. 70.
31
53
MACIEL, op. cit., p. 55.
54
CARVALHO, op. cit.
55
FRANCO, op. cit., p. 117.
56
O encenador tem função semelhante ao do diretor, no entanto, numa mesma produção teatral pode existir as
duas funções, uma vez que o diretor conduz todo o grupo, o encenador geralmente, sem necessariamente ter
vínculo com o grupo, é contratado para conduzir a peça. Ver: PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro
moderno: 1930 – 1980. São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
57
MOURA, Mário. In.: BOLELAVSKY, Richard. A Formação do Ator. Lisboa, Rio de Janeiro: 1956, p.10.
58
Idem, ibidem, p. 9.
59
CARVALHO, op. cit.
32
Consta num documento pessoal de Antonio Mário, que ele recebeu um curso de
Playwriters ministrado pelo teatrólogo americano Stanley Richard.60 Sua formação, portanto,
estava alinhada ao contexto nacional de revolução teatral, tornando-se a Bahia, nesse caso,
uma referência no processo, desconstruindo, assim, a idéia de que tal revolução tomou como
ponto de partida o eixo Rio-São Paulo, somente.61 Conta Lívia Santarém que, em suas
conversas com o pai, ele mencionava, frequentemente, sobre as aulas que tinha com o diretor
austro-húngaro Zbigniew Ziembiński, expoente da direção teatral moderna no Brasil.62 Vindo
ao país, fugido do nazismo na década de 1940, Ziembiński foi “trazido” por Brutus Pedreira
(1898 - 1964), crítico, tradutor e diretor teatral, para dirigir peças teatrais em seu grupo Os
Comediantes.63 No contexto nacional, esses dramaturgos importantes e profissionais
estrangeiros vinham somando-se à cena desde a década de 1940. Para Décio de Almeida
Prado, esse foi um motivo para considerar a década o ensaio do que viria a se tornar o teatro
em 1970, o desenlace do teatro moderno brasileiro.64
O ano de instalação da Escola de Teatro da UFBA (1956) também foi marcado pela
morte do “pai do teatro negro”, De Chocolate, ou João Candido Ferreira. 65 Nascido em
Salvador, foi o criador da Companhia Negra de Revistas no Rio de Janeiro, em 1926, a
primeira que envolvia a temática negra em seus roteiros.66 Trata-se, portanto, de uma
revolução no fazer teatral cujos indícios vinham se desenhando no Brasil desde os anos 1920.
A cultura de massas – lugar em que as influências se misturam, sejam advindas das
classes populares ou das classes dominantes – encontrou no teatro de revista um meio para se
expandir, evidenciando a pessoa negra na composição dessa “mistura”.67 Como já introduzido
anteriormente no diálogo sobre “interpenetração de cultura restrita e ampliada”, o conceito de
60
Não foram encontradas mais referências sobre Stanley Richard. Documento de solicitação para realização de
prova de concurso público, expedido pela Universidade Federa da Bahia – UFBA/Departamento de Teatro da
Escola de Música e Artes Cênicas da UFBA; em 23 de julho de 1969. Pasta “Antônio Mário” -
CENDOMA/FIGAM.
61
LEÃO, op. cit.
62
Depoimento cedido por Lívia Santarém à autora, em 17 de abril de 2020. Aliás, não somente Lívia, mas um
dos ex-atores do grupo de Teatro dirigido por Antonio Mário, Roque Lazaro, rememorou sobre a presença de
Ziembinski, constantemente, nas falas do diretor.
63
FRANCIS, Paulo. O afeto que se encerra: Memórias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
64
PRADO, op. cit.
65
De Chocolate assim foi chamado pela imprensa carioca, de acordo com Marcio Meirelles. Ver: MEIRELLES,
Marcio. Linha do Tempo do Teatro Negro na Bahia. 2010. Disponível em:
<https://www.academia.edu/6588338/LINHA_DO_TEMPO_DO_TEATRO_NEGRO_NA_BAHIA_tentativa_d
e_resgatar_a_hist%C3%B3ria_do_negro_no_teatro_baiano> Acesso em 3 e novembro de 2020, às 15horas.
66
Idem, ibidem.
67
O teatro de revista, segundo Decio de Almeida Prado, foi um gênero de comédia importado de Portugal e que
se disseminou no Brasil principalmente no início do século XX, conformando parte importante das atividades
teatrais do país, no período. Sobre a discussão em torno da cultura de massas, ver: GOMES, Tiago de Melo. Um
Espelho no Palco: Identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos 1920. Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 2004.
33
68
Segundo Ortiz, o público brasileiro na década de 1970 ainda não havia “se transformado em massa”. (Ver:
ORTIZ, op. cit., p 102). Para Gomes, “os trabalhos que enfocam o mundo da cultura de massas da segunda
metade do século XX” dão “grande relevância antes à capacidade de colocar signos em circulação que às
dimensões ou ao gerenciamento do veículo estudado”. Interessa pensar, portanto, que na perspectiva desses
trabalhos do século XX, trazida por Gomes, independentemente dos signos da Companhia do Teatro Negro de
revista serem gerenciados pela lógica capitalista, eles estavam sendo circulados e atingiam um público negro
como se intencionava. Ver: GOMES, Tiago, op. cit., p. 33.
69
MACIEL, op. cit.
70
MOURA, Mário. In.: BOLELAVSKY, op. cit., p. 9.
71
LEÃO, op. cit.
72
MOURA, Mário. In.: BOLELAVSKY, op. cit., p. 10.
34
profissionais envolvidos nos bastidores, como cenógrafos, técnicos e figurinistas, além dos
encenadores estrangeiros.73 Assim, se “consolidou a ‘profissionalização do teatro nacional’”
que “‘recuperou boa parte do atraso’ em que nosso teatro se encontrava em matéria de
tendências do espetáculo, em relação a países de maior tradição teatral”.74
Esse trânsito de ideias entre produções brasileiras e textos estrangeiros ou direção
estrangeira e textos brasileiros abriu terreno para relações antropofágicas no cenário moderno
do teatro nacional. Entretanto, as superproduções do TBC não condiziam com uma nova
perspectiva de crítica social que surgia entre alguns participantes desse teatro. Com a crise do
capitalismo engendrada pela Grande Depressão de 1929, a União Soviética apresentando suas
“possibilidades de eficiência” e os reflexos da Revolução de 1930 no Brasil, era necessário
um teatro que correspondesse às “novas exigências artísticas” relacionadas ao engajamento
político.75 Desde lá, a arte cênica tentou escapar dos “limites estreitos das comédias de
costumes” que marcaram e sustentaram o teatro brasileiro da primeira metade do século XX,
mas não obteve tanto sucesso.76 Entretanto, só décadas mais tarde, um teatro para além da
costumeira comédia, começou a se estabelecer.
Com as dissidências do TBC, em 1952, formam-se o teatro Arena (São Paulo) e o
Teatro Oficina (Rio de Janeiro), exemplos do processo de popularização do teatro no período.
Não obstante incentivar jovens estudantes a (re)descobrirem a linguagem artística como
veículo de suas perspectivas libertárias, surgem os teatros nas escolas e universidades,
acessíveis a setores populares e à classe operária. O TBC, portanto, apesar de não ter sido
responsável pelas inovações ideológicas, foi básico para possibilitar a construção e
desconstrução do teatro nacional.77
Não se pode esquecer que o fenômeno de popularização e experimentalismo do teatro
tem um marco importante na criação do Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944 (Rio
de Janeiro), pelo artista plástico, teatrólogo, político e poeta, Abdias Nascimento (1914 -
2011). A falta de representatividade do negro no teatro não foi sanada, tão somente, pela
Companhia Negra de Revista no Rio de Janeiro na década de 1920. Com o passar das
décadas, atores brancos, recorrentemente, interpretavam o cotidiano e as vidas de pessoas
negras, inclusive com o reforço de estereótipos depreciativos e racistas. Diante disso, Abdias
73
Os três primeiros contratados pelo TBC foram: Adolfo Celi (italiano), Ruggero Jacobbi (italiano) e o já citado
Zbigniew Ziembinski (polonês). Ver: SANTANA, Jussilene. Impressões modernas/a má consciência teatral:
compreensão e debate sobre teatro na cobertura dos jornais a tarde e diário de notícias entre 1956 e 1961.
Salvador: Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, 2006, p. 28.
74
MICHALSKI apud SANTANA (Idem, ibidem, p. 28).
75
PRADO, op. cit.
76
Idem, ibidem, p. 14
77
CARVALHO, op. cit.
35
Nascimento destacou que “uma coisa é aquilo que o branco exprime como sentimentos e
dramas do negro; outra coisa é o seu até então oculto coração, isto é, o negro desde dentro. A
experiência de ser negro num mundo branco é algo intransferível”.78
A estratégia do TEN foi transgredir essa lógica: usar o teatro como instrumento de
alfabetização de pessoas negras e, consequentemente, de formação de atrizes e atores negros,
conscientes de sua condição racial e das questões sociais que lhe afligem. A iniciativa de
Nascimento foi recomeçar do zero com um novo teatro que investisse na pessoa negra não só
artisticamente, como também, cultural e intelectualmente. Propunha-se a criar um espaço para
causar no público as reflexões usurpadas por um teatro tradicional que disseminava uma
figura caricata da negritude.79
Percebe-se que não há uma linha do tempo com marcos fixos para definir uma
evolução do “teatro novo” no país. A pauta racial precisa ser compreendida como um dos
elementos a serem levados em conta na conformação desse teatro, pois, o racismo, “em
nenhum outro aspecto da vida brasileira revela tão ostensivamente sua impostura como no
teatro, na televisão e no sistema educativo, verdadeiros bastiões da discriminação racial à
moda brasileira”.80 Apesar das inovações de grupos grandes como o TBC, as transformações
sociais profundas viriam dos que estavam à margem da cena tradicional brasileira, como o
TEN, ou tantos outros com o mesmo objetivo de chamar atenção para o problema racial, cujas
histórias ainda não foram registradas. Dentre os que foram influenciados pelos objetivos do
TEN, o teatro Arena, fundado por Augusto Boal, sensível às questões raciais e dedicado à
causa operária, elaborou o método do Teatro do Oprimido, e propunha trazer ao palco esses
sujeitos marginalizados, seguindo o método de educar pelo teatro, política e artisticamente.81
Em 1957, o teatro Arena chegou a Salvador através de uma turnê e anunciava pelo
rádio as suas propostas, promovendo uma troca cultural entre os movimentos soteropolitanos
e o grupo.82 Um ano representativo se considerarmos, além da estreia de Antonio Mário no
teatro, a estreia de Glauber Rocha com as gravações de seu primeiro curta-metragem, “Pátio”,
tido como o marco inicial da Nouvelle Vague na Bahia.83 Ademais, os colegas de Antonio
78
O'NEILL apud NASCIMENTO, In.: NASCIMENTO, Abdias. Teatro experimental do negro: trajetória e
reflexões. Estudos Avançados. v.18 n.50 São Paulo Jan./abr. 2004. Disponível em
<https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100019> Acesso em 21 de
dezembro de 2020.
79
Idem, ibidem.
80
Idem, ibidem.
81
BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.
82
CARVALHO, op. cit., p. 55.
83
Atenta as discussões sobre origens da Nouvelle Vague, não pretendo empreender esse diálogo de forma
profunda, trago Glauber Rocha como o marco de acordo com afirmações de Carvalho e Maciel. Ver:
CARVALHO, op. cit.; MACIEL, op. cit.
36
Mário, da primeira turma da escola de teatro da UFBA, foram parte do desabrochar desse
movimento, diante das câmeras. Figuras como Othon Bastos, Sonia dos Humildes – essa, uma
das “principais atrizes do teatro nacional sem se afastar das ribaltas baianas” –,84 Geraldo Del
Rey e Mário Gusmão, protagonizaram filmes do próprio Glauber Rocha como Deus e o
Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967), O Dragão da Maldade contra o
Santo Guerreiro (1969) e A Idade da Terra (1980). Apesar de Antonio Mário não ter se
tornado ator de cinema, atuou no teatro com Sônia Robatto, Jurema Penna e Nilda Spencer.85
Vale ressaltar que, pela primeira vez o cinema brasileiro foi protagonizado por negras
e negros. Por outro lado, a presença desses personagens socialmente subalternizados nas telas
de cinema significava, para a opinião conservadora, a exposição das mazelas do Brasil, uma
afronta aos “bons costumes”.86 Diante dessa questão, ainda que pessoas negras continuassem
tendo sua existência preterida no cinema e nas artes cênicas, formar os primeiros atores
negros, na Bahia, que foram lançados ao cinema e à televisão, é um fato demarcatório para a
ETUFBA e para a memória do teatro negro em Salvador. Dentre esses atores, Antonieta
Bispo, Mário Gusmão e o próprio Antonio Mário dos Santos.87 Mário Gusmão, além de, mais
tarde, fazer carreira em telenovelas, foi o primeiro ator negro a receber um papel de destaque
no teatro baiano, ao representar o personagem “Manuel” – o próprio Jesus Cristo, em O Auto
da Compadecida, de Ariano Suassuna.88 A peça foi dirigida por Martim Gonçalves, em 1959,
ano de formação da primeira turma da Escola de Teatro da UFBA.89
Da parte de Antonio Mário, não há como afirmar se, de fato, o curso foi concluído
e/ou se ele participou da formatura. Nos registros que dizem respeito ao dia da cerimônia de
conclusão, ele não surgiu. Também não foram encontradas pistas de participações suas em
outros espetáculos produzidos pela ETUFBA. Provavelmente, essa ausência se justifique por
questões que viriam a tornar a sua vida pessoal conturbada, nesse ano de 1959.
Em 1958, aproximadamente, a amizade com Nélia havia se fortalecido. Apesar de
morarem no mesmo bairro e suas famílias serem próximas, foram oficialmente apresentados
84
LEÃO, op. cit., p. 197.
85
Nilda Spencer substituiu Martin Gonçalves na Escola de Teatro mais tarde, em 1962. Alguns desses atores da
turma não necessariamente faziam parte da ETUFBA; Otton Bastos, por exemplo, foi convidado a participar do
espetáculo em que Antonio Mário contracenou. Outros não chegaram a se formar, pois, deixaram a universidade
para compor uma turma de dissidentes da ETUFBA.Ver: SANTANA, op. cit.
86
Segundo Maria do Socorro S. de Carvalho, devido à presença significativa de pessoas negras nos roteiros, o
então presidente Café Filho (1954 - 1955) proibiu filmes do cinema novo que levassem, segundo ele, a
associação com conteúdo subversivo e comunista. Ver: CARVALHO, op. cit.
87
Jussilene de Santana traz, em sua tese de doutorado, um índice de fotografias, numa delas, indicava os alunos
da primeira turma a se formarem. Dentre eles, os que consegui identificar como negros foram Mário Gusmão e
Antonieta Bispo. Ver: SANTANA, op. cit., p. 18.
88
Idem, ibidem, p. 17.
89
MEIRELLES, op. cit.
37
pela irmã de Antonio Mário. A partir daí, Nélia passou a lhe indicar alunos para ele ministrar
aulas particulares em troca de algum dinheiro extra, até servir de intermediária para seu
ingresso no Instituto Baiano de Ensino como professor (escola em que ela trabalhava como
secretária).90 Com a aproximação, a amizade evoluiu para um namoro.91 Assumiram um
relacionamento amoroso, que, de acordo com a reconstituição memorialística de sua filha,
dessa vez, foi bem aceito pela família. No curso dos acontecimentos, Narciso Simplício havia
adoecido e estava acamado sob os cuidados de uma técnica de enfermagem, em sua casa.
Destaca-se aqui, a partir de Angela Chaves, que “a memória é seletiva e lacunar por
excelência, mas constrói um painel, impreciso talvez, porém revelador do real”.92 A sequência
de fatos relatados por Lívia Santarém pode não ser, exatamente, uma cadeia de relações de
causa e efeito, no entanto, o “real” é a reorganização dessa sequência que dá sentido à sua
narrativa.93 A memória apresenta-se como o fio condutor do “painel revelador”, trazendo o
desfecho que irá traçar novos caminhos na trajetória de Antonio Mário. Assim, segundo ela,
apesar do namoro ir bem e Simplício apostar nesse noivado, Antonio Mário fez a seguinte
revelação à sua noiva, Nélia:
Diante da situação, ele rompe com Nélia para casar-se com a técnica de enfermagem.
Nesse ínterim, Antonio Mário foi transferido novamente pelo IBGE, dessa vez, para Miguel
Calmon, uma cidade do interior da Bahia localizada a 360 km da capital. Ele e a segunda
esposa tiveram quatro filhos. Quando ela estava prestes a parir, ia para Salvador e depois do
nascimento do filho, voltava para Miguel Calmon.95 Provavelmente, nessas idas e vindas,
Antonio Mário tenha tentado acompanhar alguma aula da UFBA. Mas, decerto que a
mudança interferiu em sua relação com a universidade e prejudicou sua capacidade de
90
Depoimento de Lívia Santarém cedido à autora em 24 de setembro de 2020.
91
Entrevista cedida por Livia Santarém e Nélia Santarém à autora em 10 de setembro de 2017.
92
CHAVES, Angela. In.: LEÃO, op. cit., p. 9.
93
BOURDIEU, op. cit.
94
Entrevista cedida por Livia Santarém à autora em 10 de setembro de 2017.
95
Depoimento de Lívia Santarém cedido à autora em 24 de setembro de 2020.
38
conciliar o trabalho num órgão federal, com o desejo de concluir o curso. Por fim, a última
transferência do IBGE levou o ator para a cidade onde essa história se desenvolve. Dentre as
opções de lugares que lhe foram expostas, ele optou por Alagoinhas, e se mudou com a
segunda esposa para a cidade em 27 de julho de 1961.96
A construção dessa memória, tanto de Lívia quanto de Nélia, podem se mostrar a nível
consciente ou inconsciente, o que, segundo Michel Pollak, ocorre por meio de um verdadeiro
processo de reorganização. Assim, a memória da filha sobre a vida de Antonio Mário,
enquanto herdada de sua mãe, de outros familiares, ou inclusive do próprio pai, pode estar
relacionada a diversos sentimentos de identidade, “e constituem um ponto importante na
disputa pelos valores familiares, um ponto focal na vida das pessoas”.97
A relevância da “verdade” da narrativa de Lívia consiste em compreender o lugar que
o teatro tomou na vida de Antonio Mário, e sob quais condições em sua trajetória se deu esse
ingresso nas artes cênicas. Importante perceber também traços da personalidade do
personagem, uma vez que os dois casamentos seguidos foram marcados pela insatisfação do
pai, momento também atravessado pela realização de seu desejo de fazer teatro. O que pode
levar a pensar que existia predisposição a questionar o que era imposto.
O relato nos mostra também que o pensamento de Antonio Mário, mesmo diante da
situação apresentada em sua vida, em alguma medida, reflete essa geração de jovens artistas
na qual o indivíduo reivindica sua subjetividade. Ou seja, a juventude engajada e participativa
do decênio 1950 - 1960 passou a rejeitar os valores tradicionais, criando assim, seus próprios
valores. Como sublinha Edward Carr, a transformação social significava a transformação do
indivíduo, e a transformação do indivíduo se refletia, igualmente, no social.98 Mesmo porque,
com base em Carr, as ações do indivíduo, não produziram somente reflexo de suas ações
conscientes. Reverberaram de forma dialética, também, em outros setores da sociedade.
Ademais, sob tal atmosfera, o ator mudou-se de Salvador, uma cidade nuclear na
busca da identidade artística nacional do período. Ambiência soteropolitana movimentada por
cerca de 30 grupos cênicos, e que superava o amadorismo para criar uma nova “classe” de
atores por formação.99 Por fim, deixava a cidade que vivia o “transe” de um período marcado
por transformações aceleradas, em particular, nas artes em que os atores reclamam e assumem
seu protagonismo no fazer teatral. A universidade proporcionou a Antonio Mário sua
96
Entrevista cedida por Livia Santarém à autora em 10 de setembro de 2017. / Declaração cedida pelo IBGE no
dia 1 de outubro de 2020. Acervo pessoal da autora.
97
POLLAK, op. cit., p. 205.
98
CARR, Edward Hallet. O que é história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
99
FRANCO, op. cit., p. 105.
39
formação não somente enquanto ator, mas como multiplicador da arte. E poucos anos mais
tarde, os ventos anunciariam a chegada dessas inovações em Alagoinhas, tornando-se ele, um
mediador do processo.
100
A fonte se encontra no acervo pessoal de Lívia Santarém.
101
De acordo com o documento, Antonio Mário acabara de ser inserido na “cadeia publicitária do IBGE” através
do informativo. Documento encaminhado por Antonio Mário dos Santos para os editores do Informativo Serco
(IBGE - BA) – Salvador. 16 de janeiro de 1989. Arquivo Pessoal de Lívia Santarém.
40
De acordo com as condições da fonte, esse compilado provavelmente não chegou a ser
organizado para tornar-se livro. Percebe-se que seu tempo de escrita compreende a década de
1980, mas ele traz aspectos históricos da cidade, desde o momento de sua fundação até onde o
tempo de escrita coincide com o tempo de narrativa. Assim, nesse tópico, o personagem será
também um narrador sobre essa mise-en-scène na cidade,102 sobre a forma como seu
“cenário” estava disposto no período em que ele chegou. Acerca desse cenário, portanto,
Antonio Mário imprimiu seu olhar em perspectiva historiográfica, e será possível conhecê-lo
na condição de personagem que “observa” os fatos, e os registra/participa através da escrita.
O ano em que ele chegou a Alagoinhas decorreu de aspectos que marcaram uma fase
anterior na cidade. Assim, refletir sobre a década de 1960 é o meio aqui utilizado para
compreender como se delinearam os contornos dos anos e das décadas seguintes. Trata-se de
um momento de modernização urbana, desenvolvimento comercial e, principalmente,
acelerado crescimento demográfico. Em 1961, Antonio Mário somou-se a uma população de
74.455 habitantes (contando com a sede e aproximadamente 37 mil nos distritos).103 A cidade
atravessava um aumento populacional de 97%.104 Como funcionário do Instituto, foi
designado para o cargo de agente estatístico e fez parte dessa pesquisa dos dados, no
recenseamento da década de 1960.105 O Alagoinhas Jornal reforçava a campanha sobre o
censo, para conscientizar a população a contribuir com essa “operação de caráter
democrático”,106 trazendo vários anúncios distribuídos pelas páginas como: “ajude a fazer o
censo de 60”, “o censo mostrará Alagoinhas ao Brasil”.107 “Mostrar Alagoinhas ao Brasil”
tinha relação com inserir a cidade nas pesquisas sobre rede urbana, que reconheciam o
processo de urbanização e industrialização das cidades:
102
Segundo o dicionário Oxford, mise-en-scène diz respeito à disposição de cenários no palco, em uma produção
teatral.
103
Alagoinhas jornal. Ano II, nº 44. 7 out. 1960, p. 1. Sobre a informação do quantitativo na sede e nos distritos,
ver: BARROS, Salomão, op. cit., p. 107.
104
MORAIS, Moisés Leal. Urbanização, trabalhadores e seus interlocutores no Legislativo Municipal, p. 35.
105
Depoimento cedido por Lívia Santarém à autora, em 24 de outubro de 2020.
106
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 37. 20 mai. 1960, p. 6.
107
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 35. 3 abr. 1960, pp. 2 e 4.
41
108
BOMFIM, Paulo Roberto de Albuquerque « Teoria e prática do planejamento regional no IBGE na década de
1960 » Terra Brasilis (Nova Série) Disponível em: <http://journals.openedition.org/terrabrasilis/1003 ; DOI :
https://doi.org/10.4000/terrabrasilis.1003> Acesso em 22 dezembro 2020.
109
Alagoinhas Jornal. Ano III, nº 52. 26 ago. 1961, p.1.
110
Alagoinhas Jornal, Ano II, nº 35. 3 abr. 1960, p.3.
111
MORAIS, op. cit.
112
Idem, ibidem.
42
para definir sua identidade, nos anos vindouros. Por conta disso, a nova bandeira do
município, que permanece até os dias atuais (2021), foi elaborada em 1973, levando em conta
representações desses principais elementos: o petróleo, o cultivo e comércio da laranja, e as
engrenagens que representam o crescimento de empregos e indústrias. Em um texto de
Antonio Mário foi possível entender tal questão, onde ele avaliou o brasão da nova bandeira:
Entretanto, segundo o autor, a cidade nem sempre foi representada em sua bandeira
pelo potencial econômico: “por razões inexplicadas, é o município de Alagoinhas ‘sui
generis’ em questão heráldica, pois sendo mais realistas que o rei, dá-se ao luxo de ostentar
três brazões”. Além do segundo, a urbe possuía mais dois: o primeiro, de 1916, mais simples,
porém teve como tema central a emancipação de Alagoinhas do município de Inhambupe.
Além disso, trazia uma frase que o sujeito observou ser tão atual e necessária ainda em seu
tempo:
121
Texto “Os três brazões d’armas de Algoinhas”, escrito por Antonio Mário. S/d. Acervo de Lívia Santarém.
122
Ibidem.
123
Ibidem.
44
esgoto (50), iluminação elétrica (3597) e rede de água (101) em relação aos outros
municípios.124
Apesar disso, tais serviços ainda não se apresentavam em larga escala nem
contemplavam a maioria dos bairros. Nas áreas onde os benefícios já existiam, ainda havia
irregularidades e falta no fornecimento. Recorrentemente, o jornal reivindicava melhoria na
distribuição e denunciava irregularidades. Ao criticar a prefeitura, afirmou que esta,
“comprimindo despesas está desligando as luzes da cidade às 4 da manhã [...]”. Ironicamente,
concluiu que “a energia só aparece na hora da matiné do Cine Azi”, até porque, o Cine Azi
pertencia ao prefeito da época, José Azi, aspecto que será discutido adiante.125
Como outro fator de desenvolvimento, vale ressaltar, aqui, a realidade de Alagoinhas
na década de 1960 em relação aos seus aspectos educacionais. Desde 1950 a cidade se
encontrava à frente dos municípios vizinhos nesse quesito: com 75 escolas primárias (66 delas
eram públicas) e 2 escolas de ensino ginasial.126 Entretanto, nem toda a população tinha
acesso equitativo, em especial ao ginásio que, no período, não era gratuito. A partir da década
de 1960, o quantitativo de escolas públicas aumentou, principalmente depois da instalação da
regional da Campanha Nacional do Ensino Gratuito, em 1º de maio de 1960, instituição que
fora reconhecida como de utilidade pública desde 1954 e funcionava através de conselhos
locais e estaduais. A campanha incentivou, no mesmo ano, a fundação de mais um ginásio na
cidade, e o primeiro público, o Educandário Alcindo de Camargo. Suas atividades se
iniciariam no ano seguinte, juntamente com os cursos Científico e Pedagógico. 127 O
Alagoinhas Jornal trouxe as “boas novas” do estímulo que, doravante, os filhos das famílias
menos abastadas usufruiriam:
124
MORAIS, op. cit.
125
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 41. 29 ago. 1960, p. 4.
126
Dados encontrados em: MORAIS, op. cit., p. 29.
127
MORAIS, op. cit., p. 30 e BARROS, Salomão, op. cit., p. 154.
128
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 36. 23 abr. 1960, p.1.
45
129
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 37. 20 mai. 1960, p. 6.
130
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 32. 02 fev. 1960, p. 5. Nenhuma outra referência sobre a Fundação Lauro de
Freitas foi encontrada, provavelmente era uma instituição particular.
131
MORAIS, op. cit., p. 21.
132
BARROS, Salomão, op. cit., p. 138.
133
Idem, Ibidem.
134
Fernando Meyer, ex-aluno do Ginásio de Alagoinhas, escreveu, em 2018, um livreto de memórias, chamado
Alagoinhas: Alguns recortes do anos 50 e 60, onde conta suas experiência no Ginásio. Segundo ele, “A única
escola existente em Alagoinhas para os rapazes, era o Ginásio de Alagoinhas, uma escola pública. Para as
meninas, cujas famílias pudessem arcar com uma escola particular, havia a dupla opção: estudar no Ginásio ou
no Colégio Santíssimo Sacramento”. O livreto está disponível nos arquivos do próprio Colégio Municipal de
Alagoinhas.
46
Das tarefas mais difíceis, hoje em dia, é aquela, sem dúvida, de registrar, dia
a dia, os acontecimentos da humanidade, isto é, registrar a história, quer seja
no âmbito mundial, seja entre os habitantes da mais reduzida comunidade.
Para isto é preciso que o estudioso e perquiridor dos fatos da sociedade
humana se valha dos postulados da ciência da história, agindo com o mais
cauteloso e sério critério na exposição dos seus enunciados. História é a
escola da vida, já definia o grego Heródoto, e nada mais complexo que a
própria vida.136
135
Decreto de nº 004/02 “que Concede Título de Cidadão Alagoinhense ao Sr. Antonio Mário”, 15 de setembro
de 2002. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
136
Texto “Pontos controvertidos e curiosos da história de Alagoinhas” escrito por Antonio Mário. 1987. Acervo
pessoal de Lívia Santarém.
47
Atento aos métodos, fez críticas a cronistas da história oficial da cidade que, segundo
ele, cometem os equívocos de não se comprometerem com os critérios básicos da
historiografia: “é assim que vários escribas e cronistas da história de Alagoinhas, por mais
abnegados que tenham sido, nem porisso[sic] deixam, de, às vezes, cometer equívocos e
incorreções”.138 Um desses cronistas que Antonio Mário refutou em tom jocoso em sua
escrita, foi Salomão Barros, no livro Vultos e Feitos do município de Alagoinhas, um escrito
minucioso sobre aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais da história da urbe cuja
narrativa se estende desde 1816 até 1979.139 Segundo Mário, Barros escreveu sobre a
misteriosa história do padre jesuíta fundador do “município de Santo Antonio das
Lagoinhas”.140 Como não dispunha de documento histórico que assegurasse a identidade do
padre, investigou sobre a veracidade de textos que confirmavam o paradeiro de seus possíveis
descendentes, já que, para ele, esse consistia num “ponto obscuro” que continuava a “desafiar
a argúcia e intelectualidade de quantos se teem lançado na quase[sic] aventura de escrever
sobre a história de Alagoinhas”.141 Ao analisar a versão sobre a história no livro de Barros,
percebeu que o autor tentou “desvendar o mistério”: o “mencionado sacerdote” se chamava
João Augusto Machado, do qual o diretor da Rádio Emissora de Alagoinhas, Célio Mendes
Machado teria descendência. Para Barros, o padre seria de ordem católica belga e “omitiu
sempre seu nome por ter dele provindo uma crescida descendência familiar (sic)”.142
O professor, tendo realizado buscas na Capela de Inhambupe, Arquivo do Estado,
Arquivo da Diocese de Salvador, e Biblioteca do Instituto Geográfico e Histórico, concluiu
que o mistério desvendado por Salomão Barros consistia mais numa conveniência pessoal do
que no compromisso com os “fatos históricos”. Conforme os vestígios, afirmou que “o padre
tenha sido um sacerdote carmelita da Missão de Massarandupió, em Santo Amaro do
Ipitanga”.143 Foi expulso da missão pelas perseguições do Marquês de Pombal aos clérigos,
por volta do século XVIII e, consequentemente, veio parar em terras alagoinhenses de forma
137
Ibidem. O texto, ao que parece, foi escrito em 1987, devido ao seguinte cálculo: ele toma como referência a
comemoração de 1977 para corrigir a idade de Alagoinhas de 125 para 124, e portanto, afirmar que naquele ano
(usando o tempo presente “está completando”), estaria, portanto, completando 134 anos.
138
Ibidem.
139
BARROS, Salomão, op. cit.
140
Primeiro nome da cidade segundo Antonio Mário. Texto “Pontos controvertidos e curiosos da história de
Alagoinhas” escrito por Antonio Mário. 1987. Acervo pessoal de Lívia Santarém.
141
Ibidem
142
Ibidem
143
Ibidem
48
144
Ibidem
145
PAIXÃO, Carlos Nássaro Araújo da. Narradores da cidade: Alagoinhas sob o olhar de Joanita da Cunha.
ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 08: Dobrando esquinas: (outros)
trabalhadores e a cidade. s/d.
146
MOÇÃO de nº 025/02 enviada à Câmara Municipal de Alagoinhas em 17 de dezembro de 2002 com o
objetivo de solicitar o título de cidadão alagoinhense post morten para Antonio Mário dos Santos. Arquivo
pessoal de Lívia Santarém.
49
relacionados ao trabalho no IBGE, pois anotações de outras naturezas também foram escritas,
tais quais pontos sobre fisiografia de Alagoinhas, economia, comércio, meios de comunicação
e “uma seção com fatos e notícias a pesquisar”.147
Não há evidência sobre tais centros nos registros jornalísticos da época, por outro lado,
o Alagoinhas Jornal anunciava, com freqüência, as atividades culturais organizadas pela
Associação Cultural e Recreativa de Alagoinhas (ACRA). Esta contemplava seus associados,
com os bailes temáticos, como o “Baile da Miss Simpatia” e constantes festas dançantes de
finais de semana. A ACRA também realizava festejos católicos, como a festa de Cosme e
Damião, uma das tradições da cidade, em que se organizava o simbólico caruru e o
divertimento ficava por conta da orquestra Os Turunas.148
As festividades de final de ano se iniciavam no Natal e seguiam até o dia dos Reis
Magos em janeiro do ano seguinte. Em dezembro, a “festa da cristandade”, organizada pela
prefeitura, anualmente, transformava as praças do centro da cidade em pontos de encontro e
diversão para as pessoas, “com barracas de comestíveis, bebidas e jogos de salão”.
Apresentações musicais aconteciam no Coreto da Praça J.J. Seabra, como o “terno pastoril
composto de crianças”, e a tradicional missa do galo era realizada nas Igrejas São Francisco,
Santo Antônio e no Santuário N. S. de Fátima. Esses foram os únicos fatos tidos como
“interessantes” pelo Alagoinhas Jornal que, nessa edição de fevereiro de 1960, não hesitou
em denunciar “o descaso do governo municipal” em não fornecer estrutura digna para os
cidadãos, sobretudo depois de receber patrocínio da Petrobrás para realizar a festa:149
O poder público que auxiliado pela Petrobrás deu apenas às festas uma
iluminação modesta e simples, nada fez que pudesse valer o sacrifício
daqueles que com dificuldades provenientes da difícil vida que
atravessamos, terem vindo ao local dos festejos. [...] Foi grande o descaso do
governo municipal...– grande e imperdoável – dado a maior festa da
cristandade, esta festa que com tanto zelo e carinho uma incontestável
tradição através dos séculos vem os alagoinhenses festejando com alegria e
amor. Nada de presépio... nada de árvore de natal... nada de missa campal...
símbolos de tradição de fé e bom gosto, mais[sic] o povo veio ao local dos
festejos, inadequado, exíguo, acanhado e sobretudo congestionado pelo
trânsito, mais o povo veio ao local dos festejos para não ver nada, mais veio.
Veio, não viu nada, voltou xingando muito o prefeito, mais cumpriu uma
obrigação de cidadão alagoinhense, tomou parte nos festejos de sua terra.150
147
Desses pontos, somente a seção sobre aspectos culturais apresenta mais informações. Todos os outros não
estão preenchidos. A fonte consiste num caderno de anotações o qual Antonio Mário nomeou na capa como
“Apontamentos de Geografia”. Foi, gentilmente, cedido à autora por José Olívio, tendo feito parte de seu acervo
pessoal, anteriormente.
148
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 42. 19 set. 1960, p.2.
149
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 32. 2 fev. 1960, p. 3.
150
Ibidem, p. 3.
50
151
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 32. 2 fev. 1960, p. 3.
152
A expressão foi definida pelo próprio Alagoinhas Jornal na edição do Ano II, nº 32. 2 fev. 1960, p. 3.
153
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 34. 14 mar. 1960, p.2.
154
Ou seja, ao invés de financiar os dois eventos carnavalescos, a prefeitura escolheu a micareta, em lugar do
carnaval de rua. Segundo Benoit Gaudin, o fato de o poder público de Alagoinhas decidir manter a micareta em
detrimento do carnaval na cidade, provavelmente se deve ao esvaziamento que os grandes carnavais de Salvador
causavam nas cidades do interior, principalmente as mais próximas da capital, como Alagoinhas, Feira de
Santana e Irará. Ver: GAUDIN, Benoit. Da mi-carême ao carnabeach: história da(s) micareta(s). Tempo
Social. vol.12 no.1 São Paulo. Mai 2000. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103
20702000000100004&script=sci_arttext> Acesso em 23 dez. 2020. Como os carnavais também tinham sua
importância comercial e turística, realizar a festa somente por tradição de data, e deixar de lado as questões
econômicas, poderia não ser uma opção prática. As micaretas rendiam lucros para o comércio da cidade através
das vendas de “artigos de folia” e fantasias, bem como para os clubes sociais que expandiam sua influência,
quanto para os hotéis que recebem foliões de outras cidades. Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 37. 20 mai. 1960, p.
4.
51
expansão popular” que foi a primeira micareta da cidade.155 Tendo conseguido aglomerar,
segundo o jornal, 20 mil pessoas – quase um terço da população algoinhense na época –
retomou o espírito do carnaval, tanto nas ruas com batucadas e trios elétricos, quanto nos
clubes de associados ou boates; sob cobertura dos serviços de Autofalantes de Alagoinhas e
da rádio Voz da Liberdade que cobriram o evento com quatro postos de observação nos locais
do circuito.156
Ainda de acordo com o Alagoinhas Jornal, podemos “ler a cidade” em sua vida
boêmia garantida pelas “casas de meretrizes”, à época, localizada no centro da cidade, rua
Conselheiro Moura, para onde o comércio convergia. O jornal registrava, constantemente,
denúncias dessas casas por serem o “ponto predileto de malandros e desocupados”.157
O destaque que o Alagoinhas jornal trazia para a ACRA se dava porque seu
presidente, Walter Campos (1927 - 2014), também era o fundador do jornal em questão. Este
não se debruçava tanto sobre os artistas da cidade, nem sobre atividades artísticas, além da
dinâmica cultural já mencionada; de modo geral, trazia, recorrentemente, denúncias, assuntos
políticos e esportivos além de colunas relacionadas à saúde, pois Walter Campos era,
sobretudo, dentista.
A única referência sobre artistas atuantes na década de 1960 encontra-se, justamente,
no referido caderno em que Antonio Mário destaca alguns nomes. Apesar de não ter sido
mencionado em nenhuma edição do Alagoinhas Jornal, o professor citou o nome de Waldo
Campos, irmão do diretor do jornal, como “personalidade da literatura” da cidade. Além dele,
Dr. Almir Barreira, Cel. Philadelpho Neves (um dos colunistas do Alagoinhas Jornal),
Antenor Azevedo Sacramento, Maria Feijó, Lourdes Bacelar e Benedito Propheta. Na
categoria “oratória”, destacou Lúcio Bento Cardoso, Cel Philadelpho Neves e João de Castro.
Dentre artistas plásticos, mencionou Almiro Conceição, Ivo Costa de Oliveira. Reconheceu a
existência das Filarmônicas “Euterpe Alagoinhense” e União Ceciliana e verificou atividade
dos seguintes conjuntos musicais: “Os Caciques”, “Os Noturnais” e Os Turunas, além do coro
sinfônico da Igreja Matriz. Mencionou nomes de cantores, dentre os quais, “Joana D’Arc”,
Almir Rego Dantas, Valdelice Santos Deusdeth e os musicistas José Batista da Purificação,
Profª. Ines Farani, Mestre Zezinho, Prof. Flávio, Prof. Djalma Matos.158
155
Ibidem.
156
Ibidem.
157
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 35. 3 abr. 1960, p. 3.
158
O sobrenome do professor Flavio está ilegível na anotação. Caderno de “Apontamento de Geografia” de
Antonio Mário. Acervo pessoal da autora.
52
A cidade pode ser lida como um texto, e os silenciamentos das fontes surgem como
possíveis subtextos a serem decifrados. A partir de uma leitura diacrônica, essa cidade
também é passível de ser compreendida como algo que foi escrito e reescrito pelos seus
habitantes, produzindo diversos sentidos, afinal, “a cidade é um grande texto que tece dentro
de si uma miríade de outros textos”.159 Portanto, o espaço citadino, na sua materialidade
imagética, delineia-se como um dos suportes da memória social da cidade. 160 Cabe aqui
decifrar quais são as “relações” geradas a partir de uma “multiplicidade de discursos”, sejam
eles escritos, reescritos, ou silenciados. 161
Com relação ao âmbito do teatro da década de 1960, foi possível notar tal
“silenciamento” em algumas fontes analisadas. Nenhuma produção de grupos teatrais ou de
espetáculos foi mencionada pelo Alagoinhas jornal. O livro de Salomão Barros traz uma
trajetória de grupos teatrais em tempos pregressos, em um breve capítulo o autor observou
que “todas as localidades em constante e progressivo desenvolvimento cultural têm seu
‘Grupo teatral’, isto vem ocorrendo em Alagoinhas desde 100 anos atrás, quando Antunes
Portátil deliciava as platéias com apresentações artístico-teatrais precisamente
preparadas[...]”.162 Esse grupo ganhou destaque em 1929, e em 1948, segundo ele, surgiu o
Gremio Dramático Joao Caetano. O Grêmio Dramático Santa Cruz, fundado em 1947, foi
dirigido por Marcel Boiron, e dele, o autor fez parte.
Ainda que o recorte temporal proposto por Barros tenha atravessado a década de 1960,
assim como o Alagoinhas Jornal, não fez referência a qualquer atividade realizada a essa
época, enquanto as produções teatrais de Antonio Mário já se desenvolviam na cidade. Uma
mostra disso é o seu próprio registro em caderno de apontamentos. No tópico “Situação
Social – Aspectos Culturais” mencionou o nome do seu próprio grupo, Dias Gomes. Além de
também mencionar o “grupo do Sr. Marcel” e outro, chamado Grupo de Teatro Petrobrás.163
Abrindo um breve e curioso parêntese, o grupo de teatro de Marcel Boiron surgiu em
três fontes diferentes sobre teatro em Alagoinhas. Além de Salomão Barros e Antonio Mário,
o Jornal da Bahia, edição de 1979, o mencionou, mas diferente de Barros, o tomou como o
primeiro grupo da cidade: “Buscando as raízes do teatro em Alagoinhas, presume-se que
tenha se iniciado na década de 30 através do Senhor Marcel Boiron, fundador do grupo
159
BARROS, op. cit., p. 45.
160
PESAVENTO, op. cit., p. 16.
161
BARROS, op. cit., p. 45.
162
BARROS, Salomão, op. cit., p. 167.
163
Caderno de “Apontamento de Geografia” de Antonio Mário. Acervo pessoal da autora.
53
Democrata”.164 Não se sabe se este continuou na ativa até 1960, pois, além de as fontes serem
vagas em relação ao período de existência, a única data referência que Antonio Mário utilizou
nas menções aos grupos, foi na frase “ver ‘Tribuna de Alagoinhas’ nº de setembro de
1965”.165 Isso não significa que os grupos foram, necessariamente, fundados nesse ano. 166
É possível que o professor tenha se referido ao fato de esses grupos terem sido citados
no jornal, visto que este se apresentou como periódico que, minimamente, se ocupava das
questões culturais na cidade, uma diferença em relação ao Alagoinhas jornal.
Talvez não seja difícil de assimilar o porquê de o teatro de Antonio Mário não ter
entrado na obra Barros. No texto, ele, explicitamente, faz críticas aos métodos do autor,
lançando mão de um tom sarcástico. Essa elucubração remete a Michel Pollak: “A fronteira
entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em nossos exemplos,
uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de
uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o
Estado desejam passar e impor”.167
O fato de Salomão Barros fazer recortes muito específicos em seu livro sobre qual
história iria registrar, mostra que ele se coloca como um “mensageiro” dessa trajetória de
Alagoinhas, para as gerações futuras. Não a história representante de grupos dominados, mas
aquela que enaltece a cidade a partir dos “vultos” “vistos de cima”, pertencentes às camadas
abastadas. Isso se aplica à fabricação da memória por meio da literatura e de jornais também.
Se Barros se propôs a falar sobre o teatro na cidade e citou somente o “francês Marcel
Boiron”, de 1930, talvez, por algum motivo, houve intenção em silenciar a produção do
professor. Não se sabe se houve querelas entre ambos os autores, mas o fato de Antonio
Mário, em seus escritos, se propor a questionar dados de uma “história oficial” da cidade,
mostrar posicionamentos frente à postura dos governantes, e no final, não ter publicado como
livro, sugere que, ao menos, o sentido em que ele caminhava não era o mesmo que o do
memorialista.
Diferente das atividades teatrais, os cinemas roubavam a cena cultural de Alagoinhas
na década de 1960. Quando o circo fazia expediente na cidade, podia gerar certa concorrência
e representar conflitos de interesses, como mostra a denúncia feita pelo jornal, sobre o
desentendimento entre prefeito José Azi e a direção do Circo Nerino:
164
Jornal da Bahia, 2 de jul. 1979.
165
Caderno de “Apontamento de Geografia” de Antonio Mário. Acervo pessoal da autora.
166
Ibidem.
167
POLLAK, Michel. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989,
p. 6.
54
A nossa população foi privada de assistir bons espetáculos circenses que nos
seriam oferecidos pelo renomado Circo Nerino em virtude dos entraves do
Sr. Prefeito às pretensões da direção daquela empresa que só encontra apoio
na concorrência que o circo faria, mesmo por poucos dias, ao Cine Azi de
propriedade do Prefeito. De futuro o Sr. Prefeito precisa considerar que os
interesse[sic] do povo são superiores aos seus interesses particulares.168
Apesar do tom decepcionado do articulista – o que não é uma surpresa quando se leva
em consideração as recorrentes críticas ao prefeito – não se pode afirmar com precisão se o
Circo não se instalou na cidade pelos motivos apresentados. O que pode se levar em conta, é
que quando os cinemas surgiam nas matérias, essas não assumiam o papel de anunciar seus
filmes, mas de denunciar questões de má estrutura e funcionamento; além de criticar,
constantemente, a administração do proprietário do Cine Azi. A despeito das querelas, faz
sentido entender a chegada do circo como concorrência ao cinema do prefeito, quando se
pensa uma cidade com opções de entretenimento pouco diversificadas.
O primeiro cinema inaugurado em Alagoinhas foi o Cine Teatro Popular, cuja
existência pode ser atestada desde o ano de 1912.169 Em 1960, apesar de não se poder afirmar
se permanecia ativo, o Alagoinhas Jornal alegou sua existência numa edição desse ano,
acerca de uma possível reforma. Numa coluna chamada “Não Está Certo” o jornal acusava “a
administração do município, sempre desleixada, haja visto[sic] o estado de sujeira que
apresenta a cidade, não toma as medidas que lhe compete atuando e multando os infratores
[...]” e finaliza mencionando que, “No antigo Cine Popular que está sendo reformado pelo Sr.
Prefeito, que é seu dono, o material de construção está empilhado em plena via pública”.170
Apesar de mencionar que o prefeito era dono do Cine Teatro Popular, fica a dúvida se, de
fato, isso procede, ou se tratou de um tipo de provocação irônica por parte do jornal. Até onde
demonstram as evidências, o Cine Teatro Popular foi propriedade de Benigno Valverde
Martins.171 O prefeito pode ter adquirido nesse período da década de 1960.
168
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 33. 22 fev. 1960, p.6.
169
No livro de Joanita da Cunha, o ano referente à sua inauguração é de 1930, mas uma matéria do Jornal
Correio de Alagoinhas afirma a existência desse cinema em 1912, refutando portanto, essa informação no livro
da autora. SANTOS, Joanita da Cunha. Traços de Ontem. Correio de Alagoinhas. 1 abr 1912, nº 361, ano VII,
p. 1.
170
Alagoinhas Jornal. Ano II, nº 40. 1 ago. 1960, p. 6.
171
Segundo Salomão Barros em 1979, seu ano de escrita, Benigno já era o proprietário (Ver: BARROS,
Salomão.op. cit., p. 265). Joanita da Cunha afirma que o primeiro proprietário foi João de Souza Caldeira (Ver:
SANTOS, Joanita da Cunha, op. cit. p. 43). E o Alagoinhas jornal, na edição de 24 de março de 1958, p.1,
afirmou que Benigno Valverde Martins ainda era seu dono.
55
172
PRADO, op. cit., p. 15.
173
SANTOS, Joanita da Cunha, op. cit., p. 43. Tanto Procópio Ferreira (1898 - 1979) quanto Jaime Costa (1897 -
1967) foram considerados por Décio de Almeida Prado como atores cômicos “de primeira linha”. Ver em
PRADO, op. cit., p. 21.
174
SANTOS, Joanita da Cunha, op. cit., p. 44.
175
A Tela de projeção cinemascope – tecnologia de filmagem e projeção – foi inaugurada no Cine Azi em 1956,
segundo o Jornal O Nordeste, ano VII, nº194. 31 jan. 1956, p.1.
176
Alagoinhas jornal. Ano I, nº 6. 24 mar. 1958, p. 1 e 4.
56
o próprio autor da matéria relata sobre um filme exibido de cabeça para baixo por “descuido
do operador”. E diante de todos os problemas, alegou a cobrança de preços exorbitantes pelas
sessões.177
O Cine Azi era alvo, também, das críticas dos jornalistas do Alagoinhas Jornal,
geralmente em tom irônico por irregularidades como “filmes impróprios”, exibidos nas
matinês de domingo.178 Provavelmente, as recorrentes críticas devem-se às questões políticas
relacionadas à eleição municipal daquele ano de 1958 em que o dono do cinema e o diretor do
jornal disputaram o poder executivo.179 Afinal, a carta-denúncia do leitor foi publicada na
mesma página em que um dos colaboradores do jornal, Hackel Meyer, escreveu uma matéria
em apoio à candidatura de Walter Campos, chamada “O Prefeito que Alagoinhas Precisa”, em
que apresentava o programa do candidato em prol das melhorias pela cidade. 180 Em outra
coluna, ao relatar sobre os tais “filmes impróprios” para menores de 18 anos, Meyer apelou:
“Zequinha Azi, proprietário do cine e um dos candidatos a prefeito, cabe-lhe tomar a
iniciativa de zelar pela juventude alagoinhense, porquanto se se tomar impossível fornecerá
assunto relevante aos seus adversários políticos na próxima campanha eleitoral”.181 Depois
que José Azi foi eleito, as críticas nas edições ao longo de 1960 e 1961 se estendiam para
além da administração do Cine Azi.182 De todo modo, vê-se que a questão principal não
girava em torno do cinema, mas como este se tornou um veículo utilizado para atingir o seu
alegado.
Além da exibição dos filmes, o palco do Cine Azi era cotado para outras atividades
alternativas, como convenções políticas, desfiles de moda, shows diversos e até
funcionamento da Rádio Emissora de Alagoinhas (95 FM, em 2021).183 Antonio Mário
deixou seus rastros nessa rádio, de acordo com um de seus responsáveis, à época, o radialista
Belmiro Deusdete.184 Segundo ele, o diretor teria feito parte da equipe da rádio como produtor
e apresentador do quadro “Hora da Criança”, no programa “Show da Cidade”, transmitido
177
Ibidem, p. 1.
178
Alagoinhas jornal. Ano II, nº 37. 20 mai. 1960, p. 5.
179
Alagoinhas jornal. Ano I, nº 6. 24 mar. 1958, p. 1.
180
Ibidem.
181
Ibidem, p.3.
182
José Azi tornou-se prefeito de Alagoinhas no mandato pelo PR, de 1959 a 1963. Ele também criou mais dois
cinemas, o Cine Alagoinhas e o Cine Capitólio, de acordo com FONTES, Maurílio. Morre ex-prefeito de
Alagoinhas José da Silva Azi. 10 nov. 2014. Site Alagoinhas Hoje. Disponível em:
https://www.alagoinhashoje.com/morre-ex-prefeito-de-alagoinhas-jose-da-silva-azi/. Acesso em 20 de dezembro
de 2020.
183
Alagoinhas jornal. Ano II, nº 40. 1 ago. 1960, p. 5.
184
Na primeira fase dessa pesquisa, durante a realização do TCC, ao buscar possíveis depoentes sobre a vida de
Antonio Mário, Belmiro Deusdete se dispôs a contribuir com o presente trabalho ao ceder um depoimento. Em
2021, foi novamente consultado e confirmou as informações presentes nos relatos.
57
entre os anos de 1965 e 1969.185 Isso foi tudo que Deusdete pôde discorrer sobre a
participação do diretor na rádio, “não temos maiores informações sobre a produção do quadro
e os nomes de professores, convidados e crianças que participavam. Ficava tudo a cargo de
Antonio Mário”.186 Apesar da falta de informações sobre o programa, há outra fonte que
indica a relação de Antonio Mário com o meio jornalístico no período: ele foi citado como um
dos fundadores do Jornal da Cidade, em 1968, provavelmente no mesmo período de
lançamento do quadro infantil.187
Apesar do breve depoimento sobre o protagonista dessa história, Deusdete trouxe
outras informações relevantes acerca do Cine Azi.188 Segundo ele, o “Show da Cidade” foi
transmitido diretamente do cinema, antes de migrar para a ACRA em 1966. Era um programa
de auditório, apresentado aos domingos, e além do “Hora da Criança”, tinha mais três
quadros: “Calouros da Cidade”, “Talentos da Cidade” e “Calouros Nacionais”, sendo que esse
último fora apresentado por ele próprio. Por esses quadros passaram cantores alagoinhenses e
de todo o Brasil, dentre eles, Gilberto Gil, Riachão, Valdick Soriano, Altemar Dutra e outros
nomes. Além de radialista, Deusdete atuou como “promotor de shows”, ainda que “sem
patrocínio, ganhando ou perdendo na bilheteria”.189 Sobre uma dessas produções, contou:
Segundo Deusdete, em 1960 o mercado publicitário ainda não tinha força suficiente e,
consequentemente, “os custos de produção de espetáculos eram reduzidos”. Assim, os
cantores não cobravam cachês altos a ponto de ser inviável realizar uma produção de show
numa cidade como Alagoinhas, quesitos facilitavam a vinda desses artistas à cidade.191 O
relato é verossímil quando se estabelece uma relação com a proposição de Renato Ortiz: de
185
Belmiro Deusdete foi citado no livro de Salomão Barros como “colaborador da imprensa local”. Segundo
Deusdete, o programa encerrou sua transmissão em 1969. Ver: BARROS, Salomão, op. cit., p. 299.
186
Depoimento cedido por Belmiro Deusdete à autora em 10 de outubro de 2017.
187
Fundado em 4/4/1968, junto com Reinaldo da Silva Neves, citado no livro de Salomão Barros. BARROS,
Salomão, op. cit., p. 297.
188
Essa foi a única referência encontrada sobre a participação de Antonio Mário no quadro “A Hora da Criança”.
Depoimento cedido por Belmiro Deusdete à autora em 10 de outubro de 2017.
189
Ibidem.
190
Ibidem.
191
Informações baseadas no depoimento de Deusdete, cedido à autora em 10 de outubro de 2017.
58
fato, um “mercado publicitário” nacional ainda era incipiente e sequer figurava parte decisiva
da economia, justamente pelos fatores que caracterizavam o país como subdesenvolvido
industrial e economicamente.192
No processo de “reescrita do texto urbano”, o estilo neoclássico do cine Teatro
Popular deu espaço à inovação de construções modernas como a do Cine Azi. Esse é um
exemplo de uma nova configuração nos marcos da modernização da urbe que se delineava em
meados do século XX. Havendo indícios de que as existências de ambos os prédios foram
contemporâneas em 1960, ao compará-los, pode-se perceber a convivência da “materialidade
moderna” com a “materialidade herdada de tempos antigos”. O Cine Teatro Popular findou
seu tempo de vida na década de 1980.193 Apesar de as temporalidades terem sido sobrepostas,
a antiga não resistiu e foi “engolida” pelas urgências da modernidade/nova urbe, junto com a
memória do que, um dia, simbolizou o seu progresso cultural. Substituiu-se o velho pelo
novo, o que, segundo Sandra Jatahy Pesavento, dificulta a leitura do panorama citadino
daquele período, na contemporaneidade.194
Por fim, quem lia os jornais da década de 1960 em Alagoinhas e consumia a literatura
produzida pelos “vultos” alagoinhenses visualizava uma cidade cujos cidadãos médios tinham
motivos para se sentirem pertencentes.195 Todavia, a parte da “cidade silenciada” consiste
num “texto implícito” na leitura das fontes: nas entrelinhas dessa urbe, o serviço de saúde
pública não dispunha de recursos suficientes para atender à população carente, e, ao mesmo
tempo, aos moradores de cidades vizinhas. Uma urbe cujos trabalhadores de diversas
categorias, não gozavam dos serviços de saneamento e qualidade de vida, características essas
que conferiram à cidade o destaque mencionado anteriormente.196
Igualmente, nem todos tinham acesso aos filmes e espetáculos dos cinemas e shows,
sequer frequentavam as tardes dançantes dos bailes de clubes. Nem todos tiveram seus nomes
destacados em livros de memórias e jornais, sobre a arte que faziam e o que produziam.
Igualmente, a maioria não desfrutava de acesso igualitário à educação, à arte e ao
entretenimento cultural. Antonio Mário chegou a uma cidade cujo acesso aos bens culturais
era desigual, e com sua chegada, tornar-se-ia um facilitador desse processo. Se as fontes aqui
discutidas não mencionaram os grupos de teatro ativos na década de 1960, o diretor
192
ORTIZ, op. cit.
193
Essa é uma afirmação feita de acordo com o que as evidências apontam – sobre o Cine Popular estar em
reforma em 1960, mas em 1980 não ter sido reconhecido nas fontes que catalogaram cinemas. No entanto,
carece de maior verificação.
194
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O Imaginário e a Cidade.
195
Aqui, refiro-me a Joanita da Cunha e Salomão A. Barros.
196
MORAIS, op. cit., p. 41.
59
demonstrou o contrário: tanto havia movimentação teatral, como o grupo de teatro Dias
Gomes, era, de fato, uma escola de formação em pequena escala.
60
Capítulo II
Estreia um diretor de teatro:
o personagem que constrói um cenário
197
Não se sabe exatamente o ano que ele começou a ensinar no Ginásio de Alagoinhas, se já em 1961, ou se um
tempo após sua chegada. Em conversa com a diretora do Colégio Municipal de Alagoinhas (antigo Ginásio de
Alagoinhas), em 2020, os documentos relacionados à contratação de professores na década de 1960 estavam
inacessíveis devido à reforma e reorganização burocrática da instituição. Dentre os ex-alunos e ex-atores/atrizes
do grupo de teatro Dias Gomes foi possível entrevistar uma das participantes, Ray Creuza (1943). Ela conta que
conheceu o professor no ano em que lhe ensinou a disciplina de História no próprio Ginásio, e quando ela tinha
17 anos, ou seja, em 1961. Quando ele lhe fez o convite para participar do grupo de teatro, ela lembra que fazia o
curso de Contabilidade no ensino técnico do Ginásio, e já tinha 21 anos, o que seria, de acordo com os cálculos
aproximados, em 1964.
198
Depoimento cedido por Livia Santarém à autora em 17 de abril de 2020.
199
Ibidem.
61
casamentos não viveram integralmente, por morarem em outras cidades.200 O fato de sua
infância coincidir com o momento de formação do Dias Gomes faz com que sua lembrança
seja, portanto, marcada pela imagem não somente sobre o Antonio Mário pai, cuja saúde
estava debilitada por causa das jornadas de trabalho, pelo hábito de “fumar muito”, o que
justificava os cuidados de Nélia Santarém em “bater gemada para ele se recuperar”. Mas
também, a imagem do Antonio Mário diretor “sendo fabricada” de dentro de casa, uma faceta
do indivíduo “diluída” inconscientemente em si, na condição de filha;201 ou nas palavras
escritas pelo próprio, o diretor de “jovens idealistas”
Mesmo sem pistas suficientes que possam afirmar a data ou ano exato em que o grupo
teatral se iniciou, é sabido que, segundo as anotações do próprio Antonio Mário, em 1965 o
grupo já existia.203 Mas, se for levado em conta duas informações semelhantes em dois
relatos, a atividade do Dias Gomes se estendeu durante a década de 1960, nos períodos pré e
pós-golpe de 1964.204 Ray Creuza, uma das duas ex-atrizes do grupo a qual foi possível
entrevistar para esse trabalho, buscou na memória o ano de 1964 como marco para lembrar se
as atividades do grupo já vinham acontecendo. E recordou “Eu acho que deve ter sido mais ou
menos isso mesmo... porque logo depois, quando a gente já estava com as nossas coisas de
teatro bem assim comentadas, foi quando estourou a revolução de 1964”.205
O relato da outra ex-atriz do grupo entrevistada, Iraci Gama, também incorreu nesse
sentido, sobre o grupo já existir, tomando como referência o golpe de 1964 e o início das
aulas no curso de Contabilidade, aquele ano, para balizar as lembranças: “[...] o grupo teatral
Dias Gomes nasce em 1964 e nasce logo no início das aulas, e a gente vai se preparando. [...]
200
Antonio Mário permaneceu com Nélia Santarém até, aproximadamente, a década de 1990. Depois, passou a
viver com outra companheira.
201
GOMES, Ângela de Castro, op. cit.
202
Texto retirado do programa de apresentação da peça Irene de Pedro Bloch realizada pelo grupo Dias Gomes
na década de 1960. Documento avulso. s/d. Pasta “Antonio Mário”, CENDOMA/FIGAM.
203
Caderno de “Apontamento de Geografia” de Antonio Mário. Acervo pessoal da autora.
204
Ray Creuza e Iraci Gama foram as únicas ex-atrizes do Dias Gomes que encontrei disponíveis para ceder
entrevista. / Dentre esses indícios sobre datas, um banner da exposição na FIGAM, cujo patrono é Antonio
Mário dos Santos, alega a existência do grupo desde a “década de 1960”, sem, contudo, especificar o ano.
205
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
62
a censura bateu no Dias Gomes porque em 64 vem o golpe, logo no final do mês de março.
Então a gente mal tinha começado as aulas [...].”206
Um indício sobre o que pode ter sido a primeira “aparição pública” do grupo são dois
termos, escritos por Antonio Mário, que surgem no já mencionado panfleto da peça Irene:
“reavivar” e “estreia”. O programa é aberto com a seguinte frase: “Caro espectador, você
assistirá à estreia do grupo teatral Dias Gomes”. Comparando ao programa de outro
espetáculo realizado pelo grupo, Bicho do Mato, o panfleto é apresentado com: “Caro
espectador, você assistirá ao Grupo Teatral Dias Gomes”.207 Já que os programas não trazem
datas, talvez o termo “estreia” signifique, de fato, a estreia do grupo, não somente do
espetáculo. “Reavivar”, em “reavivar o teatro nessa terra de tão carinhosas recordações”
também remete a restituir a vida do que um dia já existiu, ou seja: se, em Alagoinhas, as
atividades teatrais sofreram uma fase de hiato, estariam, doravante, retornando à ativa com o
Dias Gomes. Assim, poderia ter sido Irene o primeiro espetáculo do grupo, e Bicho do Mato
montado depois. Não obstante, são especulações motivadas pelas lacunas das fontes e todavia,
somente algumas considerações diante de tantas outras que podem ser levadas em conta.
Sabe-se que o diretor permitia a entrada de jovens no grupo, mesmo que
frequentassem por poucos meses. Outros permaneceram por anos, como a própria Ray
Creuza. Somando-se experiências efêmeras e duradouras, o grupo era grande e além dos
estudantes, havia alguns participantes mais velhos também. Esse era um privilégio que outras
escolas não ofereciam, se pensarmos pela perspectiva de que o teatro não fazia parte do
currículo escolar, e sequer existia uma disciplina obrigatória de ensino de arte na década de
1960.208 A ideia foi livre iniciativa de Antonio Mário, e acolhida pelos alunos. Como o
próprio diretor afirmou no texto de apresentação, “a bela quão difícil arte tálmica” fora
“escolhida em boa hora” pelos “jovens idealistas”.209
Provavelmente, o trânsito entre instituição particular e privada que o Ginásio
atravessou entre as décadas de 1950 e 1970, permitiu certa heterogeneidade de segmentos
sociais em seu alunado. Consequentemente, o grupo de teatro também era diverso, pois
206
Entrevista cedida por Iraci Gama à autora, em 25 de maio de 2021.
207
Programa da peça Bicho do Mato do autor Luiz Iglesias. Realizada pelo grupo Dias Gomes na década de 1960.
Documento avulso. s/d. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
208
Na Lei de diretrizes e Bases de 1961 a arte aparece meramente como uma atividade complementar. Ver:
CORRÊA, Cíntia Chung Marques. Atitudes e valores no ensino da arte: após a Lei nº 4.024/61 até a atual Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9.394/96. EccoS – Revista Científica, São Paulo, v. 9, n. 1, p.
97-113, jan./jun. 2007. Disponível em: <https://www.redalyc.org/pdf/715/71590106.pdf.> Acesso em 21 de
dezembro de 2020.
209
Texto retirado do programa de apresentação da peça Irene do autor Pedro Bloch realizada pelo grupo Dias
Gomes na década de 1960. Documento avulso. s/d. Pasta “Antonio Mário”, CENDOMA/FIGAM.
63
210
Programa de apresentação da peça Irene realizada pelo grupo Dias Gomes na década de 1960. Documento
avulso. s/d. Pasta “Antonio Mário”, CENDOMA/FIGAM.
211
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
212
Ibidem.
213
Programa de apresentação da peça Irene realizada pelo grupo Dias Gomes na década de 1960. Documento
avulso. s/d. Pasta “Antonio Mário”, CENDOMA/FIGAM. Jean Vilar (1912 – 1971) foi um ator e diretor francês,
influente na o advento do teatro contemporâneo do século XX.
64
Mário fazia a costumeira “vistoria” de diretor nos dias de ensaio geral. 214 Já os panfletos das
peças demonstram que, ao menos o conceito do figurino em cada montagem, ficava ao cargo
de uma pessoa específica do grupo. Isso também acontecia com as funções de contra-regra,
cenografia, sonoplastia, iluminação, maquinista e eletricista.215 Dessa forma, isso mostra que
o teatro que Antonio Mário ensinava não estava restrito ao aprendizado sobre interpretação,
mas compreender como se desenvolviam os estágios de produção de um espetáculo.
Os mais diversos assuntos sobre a história do teatro e estilos de estrutura cênica
também compunham a dinâmica de ensino do diretor. Por mais que esse grupo de teatro
consistisse em atividades independentes do ensino regular, o diretor incentivava a leitura de
textos teatrais, para “re-alfabetizar” através do teatro, pois textos dramáticos exigiam uma
leitura específica. Tratava-se de uma proposta em que Antonio Mário propunha ir além do
currículo formal. Ray Creuza associou essa experiência como um “retirar das máscaras”, em
que se levava o teatro para as várias instâncias da vida, e vice-versa.216 Formava-se, portanto,
uma escola dentro da escola, uma escola em pequena escala. Esse movimento de formação de
grupos de teatro dentro das escolas e universidades não foi inaugurado por Antonio Mário,
nem somente por Alagoinhas; propagou-se nacionalmente. Os anos de 1960 foram férteis para
a descoberta do teatro por jovens estudantes, grupos, inclusive, acessíveis a setores populares
e à classe operária.217 Segundo Carvalho, esse período de “preparação para o teatro político e
engajado” predominou nos “conturbados e inovadores anos de 1960”.218 Nesse sentido, a
participação popular pintava um quadro inovador, onde, concordando com Gianfrancesco
Guarnieri (1934 - 2006), “a arte nacional precisava de menos profissionalismo”, referindo-se
ao fato de que os não profissionais também precisavam fazer teatro.219
Para o próprio Antonio Mário, Guarniere foi um nome importante na cena do teatro
moderno brasileiro, tanto este quanto Dias Gomes, mencionados anos mais tarde pelo diretor,
em entrevista cedida aos alunos da Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas,
cuja pergunta fora: “Para você, qual o principal expoente da cultura modernista no Brasil,
dentro da área teatral?” À qual ele respondeu:
Indicar um nome seria cometer uma crassa injustiça aos omitidos, pois são
tantos os autores teatrais que se têm revelado “monstros sagrados” dentro da
214
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
215
Programa de apresentação da peça Irene realizada pelo grupo Dias Gomes na década de 1960. Documento
avulso. s/d. Pasta “Antonio Mário”, CENDOMA/FIGAM.
216
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
217
CARVALHO, op. cit.
218
Idem, ibidem.
219
CARVALHO, op. cit., p. 147 / PRADO, op. cit., p. 38.
65
220
“Entrevista cedida por Antonio Mário dos Santos aos alunos da Faculdade de Formação de Professores de
Alagoinhas “visando oferecer subsídios para formulação de trabalho didático” A fonte foi encontrada
incompleta. Portanto, só se obteve acesso a uma página da entrevista. “– Documento sem data. Acervo pessoal
de Lívia Santarém.
221
O documento é avulso e foi encontrado sem data. Mas, ao tomar como referência 1972, ano da instalação da
primeira turma da Faculdade de Formação de Professores – FFPA, a entrevista ocorreu após e portanto, também
depois da desintegração do grupo de teatro, em fins de 1960.
222
O termo “transculturação” - trânsito, “troca” de culturas, movimento de idéias - foi cunhado por Raimundo
Matos de Leão. Ver: LEÃO, op. cit.
223
Isso pode ser notado tanto em relato por Ray Creuza, quanto no cartaz de um espetáculo de 1986, em que o
ator Ary Meirelles veio protagonizar a peça Corpo a Corpo que Mário montou (como veremos no próximo
tópico). Fonte: Cartaz da peça Corpo a Corpo de Oduvaldo Vianna Filho. s/d. Arquivo pessoal de Lívia
Santarém.
224
Um ex ator do grupo formado pós-Dias Gomes, herdou a obra, cedeu à autora, gentilmente, para servir, tanto
de fonte, como de referência bibliográfica para esse trabalho.
66
225
BOLELAVSKY, op. cit.
226
STANISLAVSKI, Constantin. A Preparação Corporal do Ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1968, p. 43.
227
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
228
STANISLAVSKI, op. cit.
229
Bicho do Mato e Irene foram as duas únicas peças montadas por Antonio Mário com o grupo Dias Gomes,
cuja existência pôde ser atestada nesse trabalho.
67
peças, inclusive, tiveram sua importância na história do teatro brasileiro, por revelar grandes
atores de veia cômica no Brasil.230
Segundo Décio de Almeida Prado, o ator de comicidade tornou-se o centro do teatro
nacional nesse período. Este sustentava um certo personagem cômico em quaisquer que
fossem os espetáculos, a plateia sempre se acostumava com tal repetição e o ator tornava-se
“amado” pelo seu público, independentemente do texto dramatúrgico.231 Nas palavras do
jornalista e crítico de teatro, Paulo Francis, o ato de se repetir era próprio do “ator canastrão”,
ou seja, quem quase sempre “representava a si próprio”.232 Esse costume de “culto ao ator”
fora alimentado por um teatro que se pretendia na condição de divertimento do público,
entretenimento da burguesia e atividade comercial.233 O “vício” da tradição da comédia criou
atores que passaram a ser definidos por personagens caricatos: com isso, cenários luxuosos e
personalidades consagradas como Jaime Costa e Procópio Ferreira importavam mais do que a
mensagem da peça e a “verdade dos sentimentos” transparecida pelo ator no personagem;
afinal, o serviço que se vendia era a imagem, a comédia. Segundo Francis, tais atores, apesar
do “talento e presença”, “não se disciplinavam ao teatro moderno”. Essa foi a era do teatro
comercial no Brasil. Ou, nas palavras de Decio Prado, um teatro subserviente diante da
bilheteria, principalmente no período conseguinte à Segunda Guerra Mundial.234
Ao que tudo indica, a condução do diretor fundamentava-se em, ao invés de reproduzir
personagens caricatos, impulsionar o ator a buscar o seu próprio personagem cômico através
do método realista. Vejamos a aplicação de alguns desses métodos no espetáculo Bicho do
Mato, realizado em meados de 1960.235 Para Ray Creuza, foi o maior e mais marcante
trabalho do qual ela já fez parte no grupo, pois o elenco passou dois anos ensaiando e no dia
da estreia, que aconteceu no palco da Escola Frei Fidelis em Alagoinhas, 236 tiveram direito a
“casa cheia”.237
Tratava-se de uma comédia em três atos, onde a caipira Merencória, interpretada pela
própria ex-atriz, recebeu uma fortuna de parentes na cidade grande, e precisou ir buscá-la. Ao
chegar, ela e seu papagaio se depararam com uma realidade diferente da vida no campo.
230
PRADO, op. cit.
231
A questão relacionada ao teatro de comédia já foi discutida no tópico “Nasce o ator Antonio Mário dos
Santos”, no primeiro capítulo. Ver: PRADO, op. cit., p. 22.
232
FRANCIS, op. cit.
233
PRADO, op. cit., p. 22.
234
Idem, ibidem.
235
O programa da peça não especifica a data de quando foi apresentada. Segundo os relatos de Ray Creuza, a
apresentação aconteceu em meados da década de 1960.
236
À época, a escola se localizava na rua que, em 2021, correspondia à Rua da Usina em Alagoinhas.
237
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
68
apenas uma vez. A repetição é um recurso utilizado não só para aperfeiçoar a técnica da
atuação, mas para acessar possibilidades de emoções que constituem o personagem na cena.
Pois a forma como se lida com as emoções reais consiste no diferencial da proposta do
realismo stanislaviskiano. Com o método denominado pelo autor russo de “memória das
emoções”, permite-se que a inspiração se renove no processo criativo, acessando emoções que
constituem a subjetividade do próprio ator. Trata-se de ter consciência de que a cena se repete,
e os mesmos sentimentos podem ser vividos, mas nunca da mesma forma, pois “o tempo é um
esplêndido filtro para os nossos sentimentos evocados. Além disto, é um grande artista. Ele
não só purifica mas também transmuda em poesia até mesmo as lembranças dolorosamente
realistas”.243
Quando Ray Creuza observou que Antonio Mário exigia que ela repetisse a cena
várias vezes, ele estaria investindo na repetição como recurso para a busca dos sentimentos
reais que emergissem à superfície e dessem consistência à personagem. Por isso, tanto Ray
Creuza quanto sua irmã, “Miné” – que na época do Dias Gomes era uma criança e sempre
acompanhava Creuza aos ensaios – afirmaram que ele era um “carrasco”: “Uma vez eu repeti
uma cena, por incrível que pareça, 26 vezes uma mesma cena! Mas não tava como ele
queria... ‘respire! Comece tudo de novo’. 244
Tal insistência do diretor pode ser fundamentada em Stanislavski a partir da seguinte
reflexão:
O ator deve estar repleto de sentimentos e deve, sobretudo sentir a coisa que
está registrando. Sentir uma determinada emoção não uma ou duas vezes
apenas, mas enquanto estuda o papel, em maior ou menor grau, todas as
vezes que o representar, quer se trate da primeira ou milésima vez.245
243
STANISLAVSKI, op. cit., p. 192.
244
“Miné”, Maria Minervina dos Santos estava presente no dia em que entrevistei Creuza. Aproveitando o ensejo,
colhi algumas informações com ela também, que seguem aos próximos capítulos.
245
STANISLAVSKI, op. cit., p. 42.
246
BOLELAVSKY, op. cit., p. 28.
70
tentando simular os trejeitos e a entonação de voz do diretor, como que para reconstituir sua
fala, disse: “‘Todos nós temos um ébrio [...] busque ele, bote ele pra fora’”.247
Não só de como Antonio Mário falava a ex-atriz se lembrou, vieram à memória
recordações de seus antigos colegas de cena e como reagiam ao método. Segundo ela,
Antonio Reis Bossa, que representou “Severo” no espetáculo Bicho do Mato,248 disse: “‘eu
não sei por que [...] meu laboratório perfeito é quando eu tô fazendo ruim! Ruim! Mau! Eu
boto tudo que é ruim meu pra fora, os tapas que levei quando era menino, boto tudo pra
fora’”. É interessante pensar esse relato quando relacionado às palavras de Stanislavski, ao
dizer que não se deve subestimar a importância desses sentimentos repetidos, sacados da
memória emocional, e que nos remetem a situações familiares na vida. “Pelo contrário, deve
dedicar-se inteiramente a eles, pois são o único meio pelo qual poderá exercer qualquer grau
de influência na inspiração”.249
Isto é, o teatro serviu como um espelho de si mesmo, uma possibilidade de trabalhar as
próprias emoções, reconhecendo-as. Uma mesma cena pode ser feita com o mesmo gestual
corporal, diversas vezes pelo mesmo ator. Um ator pode fazer papel de vilão sem
necessariamente ter cometido possíveis atrocidades, mas os sentimentos familiares que podem
ser associados à vilania, existiam em “Bossa”. Talvez por isso ele tenha vivido a verdade da
memória do sentimento. 250
Os relatos de Ray Creuza sugerem que “a memória é um cabedal infinito do qual só
registramos um fragmento”, conforme propõe Eclea Bosi.251 Torna-se importante para o
presente estudo no sentido de compreender como e em quais circunstâncias podemos ter
acesso a esse cabedal mnêmico: através das lembranças e recordações, aspectos que têm suas
peculiaridades no contexto de cada entrevista.
Essa lembrança estimulada está totalmente permeada pela percepção do presente, pois,
"é do presente que parte o chamado ao qual a lembrança responde’".252 Portanto, ao
perguntar-lhe e ao mostrar-lhe os panfletos das peças, foi dado o estímulo para que Ray
Creuza se lembrasse de sua época como aprendiz de atriz no Dias Gomes, o que não a isenta
247
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
248
Programa da peça Bicho do Mato do autor Luiz Iglesias. Realizada pelo grupo Dias Gomes na década de 1960.
Documento avulso. s/d. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
249
STANISLAVSKI, op. cit., p. 195.
250
Aqui, trata-se de uma passagem que Creuza trouxe ao tentar reconstituir a fala de “Bossa” sobre o assunto.
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
251
BOSI, op. cit., p. 3.
252
BERGSON apud BOSI In.: BOSI, op. cit., p. 10.
71
de ter misturado a experiências outras do decorrer de sua vida, fazendo com que a relação do
“corpo presente” com o passado interferisse “no processo ‘atual’ das representações”:253
Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-
se com as percepções imediatas, como também empurra, "desloca" estas
últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como
força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante,
oculta e invasora.254
253
Idem, ibidem, p. 9.
254
Idem, ibidem, p. 9.
255
Idem, ibidem.
256
Entrevista cedida por Iraci Gama à autora, em 25 de maio de 2021.
257
Programa de apresentação da peça Irene realizada pelo grupo Dias Gomes na década de 1960. Documento
avulso. s/d. Pasta “Antonio Mário”, CENDOMA/FIGAM.
72
O conhecimento sobre maquiagem cênica pode ser atestado num texto elaborado pelo
próprio diretor, chamado “Instruções para Maquiagem – por Antonio Mário”. Neste, é
possível entender a técnica utilizada, especificamente para personagem de mulher jovem e
pontuou os seguintes tópicos: base, olhos (alongamento, aumento e sombreado), pálpebras
salientes, pálpebras fundas, sombrancelhas, maçãs do rosto, pó facial e lábios.258 Percebe-se
que nas imagens individuais dos personagens jovens, ele optou somente por uma base, exceto
a vilã “Margot”, interpretada por Dalva Costa, em que arqueou o desenho da sombrancelha
para reforçar a expressão característica (Imagem 4 à esquerda). Nos personagens idosos
procurou realçar as linhas de expressões, uma vez que foram vividos por atores jovens (Iraci
Gama tinha cerca de 20 anos à época – Ver imagens 1 e 2).
A trama consiste numa comédia de costumes, dividida em 3 atos, em que a
protagonista Irene precisa lidar com questões relacionadas à sua adolescência e à sua
família.259 O elenco teve 6 pessoas, tendo sido “Irene” representada pela atriz Marinalva
Costa.260 A indumentária remetia à moda da década de 1950, tempo de escrita dramatúrgica
de Bloch e momento em que Irene foi apresentada pela primeira vez no teatro nacional.261
Pode ter sido, inclusive, improvisada ou emprestada pelas famílias dos integrantes do grupo.
258
Ao que parece, o texto tinha mais páginas, mas devem ter se perdido com o tempo, restando somente o tópico
“Maquiagem para mulher jovem”. Texto escrio por Antonio Mário e intitulado “Instruções para Maquiagem”.
Sem data. Acervo pessoal de Lívia Santarém.
259
BLOCH, Pedro. Irene: Comédia em três atos / Coleção de Peças Selecionadas (2ª edição). Rio de Janeiro:
Editora Talmagráfica, 1953.
260
Não foi possível adquirir informações sobre as outras pessoas citadas que fizeram parte do grupo. Alguns já
faleceram, outros mudaram de cidade e não seguiram carreira. Outros não foram reconhecidos pelos
entrevistados com quem tive contato.
261
Especificamente, a estreia de Irene aconteceu pela primeira vez em 18 de junho de 1951. BLOCH, op. cit.
73
Imagem 1: Iraci Gama (“Vovó Deolinda”). Imagem 2: Carlos Simões (“Rocha”). S/d.
S/d. Autor desconhecido. Autor desconhecido. CENDOMA/FIGAM.
CENDOMA/FIGAM.
Imagem 3: (Ator/personagem não Imagem 4: Da esquerda para direita, Dalva Costa (“Margot”) e
identificado). S/d. Autor Marinalva Costa (“Irene”). S/d. Autor desconhecido.
desconhecido. CENDOMA/FIGAM. CENDOMA/FIGAM.
representar a vista de uma janela (Imagem 5).262 De acordo com as fotografias, Antonio Mário
seguiu a ambiência familiar do roteiro original, reconstituindo uma sala de estar onde as cenas
se passaram. Assim, além da janela representada por um protótipo de madeira, a pintura da
paisagem e uma cortina, outros elementos compunham o cenário, como algumas poltronas,
uma mesinha e um abajur. Proposta cênica simples e estética fiel à realidade.263
Imagem 5: Cenário da
peça Irene e corpo
técnico: da esquerda
para direita – José
Santa Bárbara
Conceição, Rubens
Soares, Antonio Mário,
Teotônio José dos
Santos, Ariovaldo
Santos, Claudemir
Rosário. S/d. Autor
desconhecido. Banner
sobre exposição da vida
de Antonio Mário,
exposto no
CENDOMA/FIGAM.
Imagem 6: “Vovó
Deolinda” e “Rocha” em
cena.
S/d. Autor desconhecido.
CENDOMA/FIGAM.
262
Imagem fotográfica do espetáculo Irene (década de 1960). Banner da exposição permanente em homenagem a
Antonio Mário exposto na FIGAM.
263
Ibidem.
75
Com relação aos locais de ensaio, o diretor precisava improvisar, por não dispor de um
local fixo. Havia cachês quando os espetáculos recebiam financiamento de alguns
estabelecimentos comerciais e a arrecadação de bilheteria rendia algum dinheiro para os
atores, mesmo não sendo muito. De todo modo, havia a preocupação em não onerar os
espetáculos, pois os próprios alunos e o diretor arcavam com a produção para cobrir os gastos
que eventuais ajudas de custo não cobriam.264 Ao rememorar essa experiência, Ray Creuza
contou sobre como conseguiam recursos: “Um dava pra aqui, outro dava pra ali, às vezes ele
264
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
76
[Antonio Mário] conseguia alguma coisa assim com alguns amigos... mas era pouca coisa, era
pouca coisa mesmo”.265
Esse “um dava para aqui, outro dava para ali” pode ser associado aos patrocínios que o
grupo recebia a cada espetáculo. Nos panfletos elaborados pelo diretor, em ambos que
verificam a existência e atividades do grupo, ao fundo há uma relação com os nomes dos
apoiadores. No panfleto de Bicho do Mato destacam-se os agradecimentos à Prefeitura
Municipal, União das Voluntárias de Alagoinhas, Rádio Emissora de Alagoinhas, Grã- Fotos,
Armazém Zizi, F. Publicidade, Armarinho S. João, Guaraci Kànzog, Cia. Telefônica
Municipal, João Batista & Filho, A Suprema Móveis e Casa Eliane.266 Em Irene houve apoio
da Prefeitura de Alagoinhas, Rádio Emissora de Alagoinhas, Organpublic, Suprema Móveis e
o próprio colégio Ginásio de Alagoinhas.267
A relação com casas comerciais na cidade provavelmente se desenvolveu com sua
participação da Associação de Comerciários de Alagoinhas em 1962. A partir de então, criou
alguns vínculos que desembocariam em apoios para os grupos, quaisquer que fossem.268 A
Rádio Emissora, como mencionado no último capítulo, foi onde ele apresentou um programa
infantil no final da década de 1960. Seu fundador, Frei Fidélis, era um dos amigos de Antonio
Mário e contribuía para a realização dos espetáculos (além de ser o dono da escola onde a
peça foi apresentada).269
Em suma, o que significou, para esses jovens estudantes o contato com os métodos de
Antonio Mário na sua escola do fazer teatral? “Tirar as máscaras”, como definiu Creuza, se
desnudar frente à arte cênica, quando, de volta ao cotidiano, seria necessário vestí-las
novamente. No teatro era possível expor e reconhecer suas verdades, como citou “Bossa”,
anteriormente. As máscaras que se usam no dia-a-dia da vida serviam somente para disfarçar
esses sentimentos reais escondidos nas instâncias mentais do ator.
Que significado tinha para o público que prestigiava os trabalhos? Provavelmente, o que o
diretor esperou que se consumasse na relação ator-público, ao transcrever a fala de Jean
Poquelin Moliére no panfleto de Bicho do Mato: “Creio que o dever e a finalidade da comédia
265
Ibidem.
266
Programa da peça Bicho do Mato do autor Luiz Iglesias. Realizada pelo grupo Dias Gomes na década de
1960. Documento avulso. s/d. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
267
Programa de apresentação da peça Irene realizada pelo grupo Dias Gomes na década de 1960. Documento
avulso. s/d. Pasta “Antonio Mário”, CENDOMA/FIGAM.
268
Imagem fotográfica de reunião na Associação dos Comerciários de Alagoinhas, 1962. Acervo pessoal de
Lívia Santarém.
269
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017. Segundo Barros, a Rádio Emissora foi
fundada pelo Frei em 1954, rádio onde Antonio Mário apresentou o programa Hora da Criança (como já
mencionado anteriormente). Ver: BARROS, Salomão, op. cit., p. 264.
77
é divertir os homens, corrigindo-os. Acreditei que, como autor, devia atacar os vícios de meu
século”.270 As comédias representadas pelo Dias Gomes intencionaram divertir, fazer rir da
própria condição humana. Porém, corrigindo e atingindo o público, fosse através dos conflitos
na trama, das características psicológicas dos personagens, ou da verdade representada na
ação dramática de cada ator e atriz, depois de meses cultivando-as nos laboratórios de criação.
O grupo encerrou suas atividades, provavelmente no final de 1960, pois em 1970 surgiu
outra fase do teatro de Antonio Mário: nova formação, novo nome, outros participantes.
Houve uma desintegração espontânea por conta de participantes que concluíram a escola, se
casaram e formaram suas famílias ou mudaram de cidade. De acordo com as palavras de Ray
Creuza, eles “não tinham o teatro como uma meta financeira em suas vidas”.271
Diante da experiência de rememorar, a intenção da interlocutora é, sobretudo, perceber o
que ficou de mais relevante na lembrança das entrevistadas.272 Lidar com as recordações de
Ray Creuza, não consistiu em reafirmar categoricamente o personagem Antonio Mário como
um diretor de teatro cujo comportamento encerrava-se no perfeccionismo e assertividade. Até
porque os resultados dessa “assertividade” foram precisados por uma memória já misturada
com outras lembranças de outros tempos que insistem em emergir à sua superfície, permeados
pela nostalgia da lembrança de um professor querido. Não é possível dominar a consciência
do passado por completo.273 Mas foi dessa forma que as ações do sujeito reverberaram na
memória da ex-atriz. Assim, foi possível reconstituir o tipo de diretor-professor que Antonio
Mário foi em sua vida, através do aprendizado que ficou para ela.
Por outro lado, há as lembranças de Lívia Santarém: a diferença de idade em
comparação a Creuza configura uma relação diferente diante das percepções imediatas. Além
disso, ela representa outro grau de relação com o personagem, o que constitui a memória
familiar. Portanto, não se deve excluir a possibilidade de que, sua recordação de hoje não se
remete somente ao que ela viveu, mas também tem influência das histórias que o próprio
Antonio Mário pode ter lhe contado sobre esse período, em outro momento da vida da filha.
Além dele, sua própria mãe, Nélia Santarém, compartilha dessas suas lembranças no lugar de
uma esposa encarregada do trabalho doméstico, na condição do ser mulher no século XX.
Esposa de um homem de vida ativa fora de casa, que além dos trabalhos que o asseguravam
“provedor da família” escolhia utilizar aquele que seria seu tempo de descanso para a
270
MOLIÉRE apud SANTOS In.: Programa da peça Bicho do Mato do autor Luiz Iglesias. Realizada pelo grupo
Dias Gomes na década de 1960. Documento avulso. s/d. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
271
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017, p 26.
272
BOSI, op. cit.
273
Idem, ibidem.
78
manutenção do desejo de fazer teatro, o que não rendia seu sustento financeiro. E o custo
desse desejo era que a mulher se mantivesse em casa sob circunstância de “dona do lar”.
Diante desse modus vivendi, o sujeito parecia viver no conforto do privilégio masculino que
significava fazer e manter suas escolhas.
Por fim, os processos da memória não visam consolidar imagens determinantes do
indivíduo com uma “personalidade coerente e estável; ações sem inércia e decisões sem
incerteza”.274 A despeito de uma “percepção pura” dos fatos, ou embebida pela nostalgia dos
tempos de atriz, ou de filha ainda criança; independentemente da beleza dos momentos que se
sobrepunham a possíveis experiências relacionadas a dificuldades, tristeza, decepção,
ausência: todo tipo de experiência faz parte do processo de rememoração. Desse modo, o uso
da memória está para além da busca de uma verdade legítima sobre os relatos, dias exatos dos
espetáculos, ou datas exatas em que Dona Nélia batia gemada para Antonio Mário recuperar a
saúde. É através desses discursos que se pode compreender como o diretor foi nutrindo,
gradativamente um vínculo maior com a cidade, pelo fato de não ter novamente sido
transferido pelo IBGE, e por tudo que produziu em Alagoinhas referente a teatro, pesquisa
histórica, grupos culturais e festivais. Por essa perspectiva da trajetória do personagem,
descortina-se uma década de 1960 diferente do que apontaram outras fontes em seus aspectos
culturais, pois teve sua centelha de um movimento proporcionado pelo teatro na cidade. E a
centelha acendeu e fez ascender um movimento que perdurou ao longo das décadas de 1970 e
1980 em Alagoinhas.
274
LEVI apud BORGES. In.: BORGES, Vavy, Pacheco. Grandezas e misérias da biografia. In: PINSKY, Carla
(org). Fontes históricas. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 2001, p. 203 – 233.
79
Dias Gomes foi um autor perseguido pela ditadura, e como já é sabido, Antonio Mário
apresentou seu favoritismo ao dramaturgo. Segundo Iraci Gama, o diretor “foi chamado” para
mudar o nome do grupo. Não soube dizer se houve um chamado oficial da polícia ou
departamento de censura, mas que esse chamado provocou um hiato nas atividades: “nós
ficamos um tempo sem poder nos manifestar, não havia possibilidade de participação, o
trabalho foi interrompido e porque ele tinha sido chamado à atenção. Mas o que mais chamou
a atenção, exatamente dessas autoridades militares foi o fato de o nome do grupo ser Dias
Gomes”.275
De fato, os registros de atuação do grupo apresentam datas espaçadas no tempo, o que
também não significa que não possa ter havido apresentações, sobre as quais não se tem
indícios. Ao menos no final da década, o Jornal da Bahia destacou um saldo de atividades
considerável e uma fase próspera desse teatro como sugere o trecho da matéria:
275
Entrevista cedida por Iraci Gama à autora, em 25 de maio de 2021.
276
Jornal da Bahia, 2 de jul. 1979 (fonte original danificada, não consta número da página, edição e ano).
277
Ibidem.
80
Diferente do grupo Dias Gomes sobre o qual foi possível verificar os panfletos
impressos de espetáculos, nem todos os roteiros de peças do Natureza tiveram seus
respectivos panfletos como indicação de que aconteceram. Foi ouvido um ex-participante do
Natureza, Roque Lazaro, além dos relatos de Creuza, sobre suas participações esporádicas no
grupo.278 Assim, as informações dessas entrevistas foram entrecruzadas com outras fontes,
mesmo sendo elas escassas, como roteiros datilografados e cartazes, alguns deles, inclusive,
não datados. O centro da discussão, portanto, segue na perspectiva das peças terem sido
trabalhadas e/ou ensaiadas, ainda que não necessariamente montadas, pois, com o trabalho e o
gasto para datilografar um texto completo de teatro, é improvável não terem sido utilizados de
alguma forma. Logo, o argumento girará em torno dos autores trazidos por Antonio Mário
nessa nova fase, para entender a natureza das discussões e o que podem ter significado em
certos contextos históricos. Quais as rupturas e permanências nas escolhas dos textos por
Antonio Mário? O que esses autores simbolizaram no período?
O diretor que havia montado as comédias clássicas que construíram os signos do
“teatrão brasileiro”, não rompeu necessariamente com o gênero. Nessa nova fase ele manteve
opção por Pedro Bloch com Morre um Gato na China, e dentre os roteiros analisados também
surgiu Quem Casa Quer Casa, de Luís Carlos Martins Pena, considerado o pai da comédia de
costumes no Brasil.279 Morre um Gato na China, por exemplo, é uma comédia de costumes
narrada em três atos. Trata da vida de um casal já desgastado pelo cotidiano: Liana, uma
romancista que abre mão de seu sonho de ser uma escritora famosa para sustentar a casa e o
marido; Gastão, mal-sucedido na vida e desempregado, tendo empobrecido por causa de sua
necessidade interior de ajudar os outros.280 Roque Lázaro disse que ela foi “ensaiada
exaustivamente” e ao rememorar sobre o processo de construção de seu personagem, Gastão,
citou as indicações que Antônio Mário lhe fazia: “Ele dizia ‘... Roque você tem que tirar o
máximo disso aqui. Está pouco... você pode ir muito além disso aí. Vá pra casa, vá buscar seu
Gastão. Ainda não chegou’”.281
A mudança se apresentou quando essas comédias abriram passagem para outros
autores que marcaram, também, uma nova fase do teatro no Brasil, dentre eles: Navalha na
Carne de Plínio Marcos, Corpo a Corpo de Oduvaldo Viana Filho e O Pagador de Promessas
de Dias Gomes. Esses autores escolhidos por Antonio Mário fazem parte de uma geração de
278
Roque Lázaro foi o único integrante do Natureza que consegui localizar. Outros faleceram ou não consegui
contatar.
279
Os roteiros das peças citadas foram as únicas referências de fonte, e não estão datados.
280
Roteiro da peça Morre um Gato na China de Pedro Block. S/d. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
281
Entrevista cedida por Roque Lázaro à autora em 28 de outubro de 2017.
81
A “linha verde e amarela” de que fala, e a menção feita a tais peças, logo em seguida,
refere-se a um tipo específico de teatro, o que passara a se libertar dos ditames “Teatrão”,
bilheterista e elitista. Deus Lhe Pague é uma comédia carregada de crítica social que trata das
condições de precariedade impingidas pelo capitalismo ascendente. “Pedro Mico”, além da
abordagem social, é uma peça que denuncia a discriminação racial e, consequentemente, o
abismo social entre as raças no país. Ariano Suassuna segue na mesma perspectiva do teatro e
de uma linguagem artística genuinamente brasileira, inclusive também buscada pelo próprio
Dias Gomes. Ou seja, o que Antonio Mário deixou evidente, foi de seu reconhecimento sobre
o chamado “teatro novo” tratado desde o início desse texto, a partir do qual matiza-se o
engajamento social e racial .
Reconheceu um “teatro reivindicatório e de “nova concepção estética” a partir de
nomes como Oswald de Andrade e Nelson Rodrigues, autores que, em sua visão, são basilares
282
Entrevista cedida por Antonio Mário dos Santos aos alunos da Faculdade de Formação de Professores de
Alagoinhas “visando oferecer subsídios para formulação de trabalho didático” – Documento sem data. Acervo
pessoal de Lívia Santarém.
82
Um olhar atento ao que foi discutido linhas atrás sobre os panfletos do Dias Gomes,
ilumina a semelhança do texto de Antonio Barreto com os dizeres de Antonio Mário, quando
este demonstrava como intencionava atingir o público ao trabalhar comédias – não só fazer
rir, mas reforçar a função social de educar, fazendo rir.
283
Entrevista cedida por Antonio Mário dos Santos aos alunos da Faculdade de Formação de Professores de
Alagoinhas “visando oferecer subsídios para formulação de trabalho didático” – Documento sem data. Acervo
pessoal de Lívia Santarém.
284
Ibidem.
285
Programação referente ao III Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso de 25.10.1980, exposto
na sala Iracy Gama - CENDOMA/FIGAM.
83
Ao que parece, Antonio Mário tendia a preferir textos que pudessem atrair a plateia
pelo riso, ainda que trouxessem enredo denso. Sua nova fase com o Natureza, das antigas
comédias, enveredou pelo caminho do teatro de crítica social, mesmo mantendo o apelo pelo
risível. Em 1982 ele trabalhou Navalha na Carne (1967) de Plínio Marcos (1935-1999).286
Conta a trama de uma relação abertamente violenta entre Vado, um cafetão, e Neusa Suely,
uma prostituta. O enredo tem ato único e gira em torno do roubo de um dinheiro que Suely
havia deixado para Vado. E através de ameaças, diálogo repleto de palavrões e agressões
contra a mulher, Vado acusa Suely de tê-lo enganado. Em determinado momento outro
personagem entra em cena, Veludo, um homossexual a quem Vado e Neusa Suely desferem
injúrias como “bicha”, “veado”, e depois de ameaçá-lo – Vado com socos e Neusa com uma
navalha – descobrem que foi ele quem roubou o dinheiro. E assim a trama segue com cenas
de violência física, menção a maconha, linguagem abertamente obscena.287 Em suma, três
personagens com fortes características psicológicas, presos num quarto de hotel de quinta
categoria, expondo suas vidas miseráveis e vulneráveis ao absurdo das relações humanas.
Tomando como referência o roteiro, ao que parece, não houve qualquer modificação ou
censura de falas no texto. Estava intacto, sem nenhum risco ou anotação.
Corpo a Corpo (1970), de Oduvaldo Vianna Filho, o “Vianninha”, faz parte de um
momento em que as produções do autor ganharam caráter mais profundo com personagens
psicologicamente densos:
286
Roteiro da peça Navalha na Carne de Plínio Marcos (material datilografado por Antonio Mário em 01
outubro de 1982). Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
286
Entrevista cedida por Roque Lázaro à autora em 28 de outubro de 2017.
287
MARCOS, Plínio. Navalha na Carne (peça em um ato). Disponível em:
http://joinville.ifsc.edu.br/~luciana.cesconetto/Textos%20teatrais/Pl%C3%ADnio%20Marcos/PL%C3%8DNIO
%20MARCOS%20-%20Navalha%20na%20carne.pdf. Acesso em 01 ago 2021.
288
ARAÚJO, Sandra Rodart. Corpo a Corpo (1970) de Oduvaldo Vianna Filho: do texto dramático à
encenação do Grupo Tapa de São Paulo (1995). Dissertação [mestrado] Universidade Federal de Uberlândia,
Programa de Pós-graduação em História. Uberlândia – MG, 2006, p. 26.
84
trecho acima pelo próprio autor, constroem o personagem principal, por estar ele, inserido
numa sociedade de consumo, e perceber o que se tornou diante de tal condição. Assim, a
trama se desenvolve sob a “descamação da realidade”. Antonio Mário transformou a peça em
monólogo e como o cartaz anunciava o nome do ator soteropolitano Ary Meirelles,
provavelmente ele o representou.289
Como o roteiro de Corpo a Corpo estava incorporado aos seus respectivos
documentos de descrição dos materiais cenográficos, foi possível acessar a lista meticulosa
com tudo que ia ao palco, inclusive um roteiro específico para o iluminador e outro para o
sonoplasta. O espetáculo aparenta ter sido completo por conta dos detalhes calculados a nível
profissional. Custos com propaganda, bilheteria, material elétrico, de carpintaria, direitos
autorais da dramaturgia, cachê para o elenco, e demais funções técnicas, tudo o que cabe a
uma montagem criteriosa foi planejado pelo diretor.290 Se tomarmos como referência o ano
em que ele se aposentou pelo IBGE, 1984, no ano de produção da peça (1986) poderia ele ter
disposto de tempo maior para produzir um espetáculo dessa proporção.291
Finalmente, a discussão chega a Dias Gomes (1922-1999). O autor contribuiu
largamente para evitar que a produção dramatúrgica não cessasse após do golpe de 1964,
traduzindo mais de 500 textos de teatro, o que foi facilitado pelo processo de ter aprendido
muitas línguas.292 Assumidamente subversivo, teve, grande parte de sua produção proibida
pela censura, devido ao conteúdo ser considerado marxista.293 Sua dramaturgia se insere nos
marcos do teatro popular, que valoriza aspectos da miscigenação brasileira, da diversidade
cultural, religiosa e ideológica. Na busca pela identidade de um teatro “genuinamente”
brasileiro, Dias Gomes tornou-se indispensável para a afirmação de uma cultura nacional
antropofágica, ou seja, que “devora” os valores e legados de todas as suas raízes, negando o
nacionalismo ufanista promovido pelo ISEB. Esses aspectos, visivelmente, nortearam a
escolha do nome Dias Gomes para o primeiro grupo montado por Antonio Mário e seus
alunos do curso técnico: um teatro acessível que incorporasse à sua ação a valorização da
“cultura popular”.
289
Cartaz referente à apresentação do espetáculo Corpo a Corpo (Oduvaldo Vianna Filho)/ direção de Antonio
Mário dos Santos. s/d. Arquivo Pessoal de Lívia Santarém.
290
Montagem da peça Corpo a Corpo de Oduvaldo Vianna Filho. s/d. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
291
Documente referente à aposentadoria de Antonio Mário, 1984. Acervo pessoal de Livia Santarém.
292
SANTOS, Priscila Godinho Martins dos. O Pagador de Promessas em movimento: a trajetória da obra de
Dias Gomes dos palcos ao cinema (1959-1969). Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia.
Departamento de Educação. Mestrado em História. Alagoinhas, 2019, p. 39.
293
Idem, ibidem, p. 44.
85
294
GOMES, Dias. O Pagador de Promessas. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
295
Jornal da Bahia, 2 de jul. 1979.
86
296
COSTA, op. cit, pp.198-199. Duas das peças de Plínio Marcos, por exemplo, só foram liberadas depois de
1980, Barrela e Abajur Lilás, espetáculos que, como Navalha na Carne, também traziam temas sociais sensíveis
como violência, gênero e sexualidade. O autor que até então havia sido proibido de exercer suas atividades
artísticas profissionais, inclusive como comentarista esportivo e ator, não aceitou o “voto de desagravo” do
Conselho Superior de Censura, no momento da liberação de suas peças: “A censura existe e continua existindo.
Não foi alterada nenhuma vírgula da Lei de Censura e a qualquer momento a censura da ditadura pode retirar do
palco algum trabalho já encenado”.Fala de Plínio Marcos (Ver: COSTA, op. cit., p. 203).
297
FRANCO, op. cit., p. 201.
298
Termo “ginástica” foi utilizado na matéria “Colégio Eleitoral, Vergonha Nacional” pelo jornal do Comitê
Político Unificado - Boletim Especial (Salvador), fev. 1984, p. 2.
299
Segundo Pugliese em depoimento, “a guerra foi cirúrgica; ‘pega os melhores quadros do partido comunista e
mata’”. Série Conhecer para não Esquecer – Ivan Pugliese.2019. 1 vídeo (2’12”). Publicado pelo Portal
Multimídia – IRDEB / Site do Governo Federal. Disponível em: http://www.irdeb.ba.gov.br/26-
docs/media/view/6507 Acesso em 01 ago 2021.
300
Em 2014, ano de produção da fonte da comissão da verdade, a Fazendinha ficava na BA- 096. Atualmente, é
provável que a BR tenha mudado de nome.
301
Segundo depoimento de Marco Antonio, ex-dirigente do PCB, na Bahia, para a comissão da Verdade, o
Coronel Ulstra falou, ironicamente, para ele e os demais presos: “‘olha, vocês são comunistas, vocês são
patriotas equivocados, respeito vocês, é meu trabalho... Eu fui inclusive treinado pela KGB’. Com ironia e
sarcasmo. ‘Todas as técnicas que utilizei com vocês, eu aprendi na Rússia, com a KGB’. Tripudiando da gente.
‘É... mas eu quero o seguinte: certamente, lá na frente, vocês vão ser soltos, quem sabe a gente vai se encontrar e
se isso acontecer, eu não quero que vocês saiam da calçada e nem se desviem, venham falar comigo. Porque,
quem sabe a gente vai tomar uma cerveja junto, um café, junto. Eu tô fazendo meu trabalho, respeito vocês’”.
Site do Arquivo Nacional. Comissão da Verdade -
BR_RJANRIO_CNV_0_CVE_00092_001004_2014_37. 16 de maio de 2014. Disponível em:
87
Entre 1975 e 1978 não há registro de produções de Antonio Mário além de O Pagador
de Promessas. Não se sabe se suas atividades foram interrompidas, por causa da condição em
que Alagoinhas se encontrava. A cidade que amargava sob a recente atividade de repressão na
Fazendinha, servia de palco para a prisão da atriz alagoinhense Albertina Rodrigues detida
pela ditadura em 1977. Assim como Antonio Mário, Albertina também foi aluna da “escola de
teatro da Universidade Federal da Bahia”.302 Ela representa outra perspectiva da atuação de
artistas no período, pois era, abertamente, militante política, tendo participado do movimento
estudantil nacional (foi tesoureira do Diretório Acadêmico da UFRJ) e da luta armada entre as
décadas 1960 e 1970.303 Albertina R. ingressou na Academia de Letras e Artes de Alagoinhas
(ALADA), por sua atividade no teatro, ocupando a cadeira nº 26, anteriormente pertencente
ao já mencionado ator e diretor Marcel Boiron.304
Antes de ser presa, a artista e militante havia se exilado na Espanha por estar
ameaçada no Brasil, sendo que aqui havia um pedido de prisão “em aberto desde sua saída”
do país. Foi presa próximo ao hospital Dantas Bião e “conduzida ao exército no quartel de
Amaralina”.305 Albertina foi uma mulher cuja vida, tanto pessoal, quanto político-artística foi
marcada por comportamentos que destoavam da moral social burguesa. Sua trajetória se
entrecruza com a de Antonio Mário na medida em que ambos dividiram o mesmo cenário de
produção artística, onde os órgãos de repressão eram atuantes. Entretanto, ao passo em que
Albertina era presa pela ditadura, Antonio Mário dirigiu a montagem de um espetáculo como
O Pagador de Promessas, e fora noticiado pelo Jornal da Bahia, em 1979, como peça
“calorosamente aplaudida” por um público que foi se formando espontaneamente. 306 Ou seja,
não houve aparente interferência de uma censura moral ou política ao espetáculo. As formas
de existência e resistência de cada um desses artistas refletiam objetivos e táticas de
sobrevivência diferentes diante da ditadura. Se Albertina se punha contra as instituições do
estado, Antonio Mário fazia parte desses âmbitos para se integrar.
Não obstante, as peças dirigidas por Antonio Mário antes e após o hiato que coincide
com o ano da Fazendinha, foram infantis como O Pequeno Príncipe em 1970, O Boi e o
<http://sian.an.gov.br/sianex/consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodReferencia_id=13
19579&v_aba=1> Acesso em 3 de novembro de 2020, às 12horas.
302
A trajetória de Albertina Rodrigues foi analisada em dissertação de mestrado por Jontas Pereira. Ver: SILVA,
Jonatas Pereira da. A arte de resistir/(re)existir: marcas no corpo e subjetividades na trajetória de Albertina
Rodrigues Costa (1964-1978). Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-graduação da Universidade Federal da
Bahia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2019, p. 21.
303
Das produções sobre artistas na cidade, a dissertação sobre Albertina Rodrigues traz a nível de comparação,
apesar de o trabalho focar mais nas atividades políticas dela, e menos no âmbito artístico. (Idem, ibidem).
304
Idem, ibidem, p.53.
305
Idem, ibidem.
306
Jornal da Bahia, 2 de jul. 1979.
88
O Pequeno Príncipe (adaptação para o teatro) pode ter sido a peça que inaugurou a
experiência do diretor com teatro infantil, conforme apontam as fontes.307 Foi montada em
1970 para ser apresentada no Festival de Encerramento da Campanha de Alfabetização de
Adultos e contou também com outro espetáculo dirigido por ele, O Pedido de Casamento, de
Anton Tchecov. Em 1970, o diretor ainda estava em fase de transição entre o fim do Dias
Gomes e a formação do Natureza, portanto, não necessariamente a equipe foi composta por
atores remanescentes de um ou aspirantes do outro. O que se sabe é que na ficha técnica
foram incluídos monitores e coordenadores do Movimento Brasileiro de Alfabetização -
MOBRAL.308
De modo geral, no programa do Festival podem ser encontradas as descrições “A
EQUIPE oferece a todos os Monitores e Coordenadores do curso - O Pedido de Casamento -”
e na outra página “Os Monitores e Coordenadores ofertam a todos os componentes da
EQUIPE - O Pequeno Príncipe-”. Essa equipe pode ter sido formada pelos próprios membros
do curso de Alfabetização de Adultos, e, ao que parece, com intento de ser apresentada uns
para os outros, não necessariamente voltada apenas ao público infantil.
Pessoas presentes tanto em tal “Equipe” quanto na “monitoria” compuseram
subcomissões do MOBRAL – Alagoinhas, que foi oficialmente instalado no mesmo mês do
Festival, em 24 de agosto de 1970. Tendo como presidente, o prefeito da época, Antonio
307
O uso da nomenclatura “teatro infantil” refere-se a um teatro voltado para o público infantil. Apesar de abrir
margem para a compreensão de que o elenco foi composto por crianças, já se sabe que assim não o foi com O
Pequeno Príncipe. Pois, não há indícios de que Antonio Mário escalonou crianças para quaisquer dessas
montagens infantis.
308
Nacionalmente, o MOBRAL foi criado através da Lei Nº 5.379 de 15 de dezembro de 1967 ainda em fase
inicial. Começou a se desenvolver somente na década de 1970, atuando inicialmente em trinta e duas cidades e
se expandindo a partir de setembro do mesmo ano. CUNHA, Luís Antônio. Movimento Brasileiro de
Alfabetização (MOBRAL). S/d. Site FGV CPDOC. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/movimento-brasileiro-de-alfabetizacao-mobral.
Acesso em: 6 fev. De 2022.
89
Figueiredo Carneiro (1967 - 1971), o coordenador e também, juiz da vara civil, José Justino
Teles, era responsável pela Equipe de Promoção Humana, esta que promoveu o Festival.309
Célio Machado (diretor da Radio Emissora), que foi responsável pelo som no espetáculo,
compôs a subcomissão de propaganda e motivação do MOBRAL.310 Um ano depois,
Deusdeth Matias que participou da equipe técnica do Festival em “controle”, também compôs
a mesma subcomissão dirigida por Machado.311 Dentre esses novos membros definidos,
Antonio Mário foi nomeado como parte da subcomissão de Levantamento, tendo como Chefe
o seu colega agente do IBGE, Luiz Gonzaga de Oliveira Brito.312 Cabia-lhe, portanto, fazer o
levantamento das entidades de treinamento profissional existentes.313
Antonio Mário não deve ter se comprometido integralmente ao MOBRAL, para além
do festival que ele dirigiu, pois os cursos da área de trabalho tiveram carga horária de 60 e 80
horas.314 Na década de 1970 ele trabalhava ainda no IBGE, e desenvolvia atividades extras.
Além disso, sua assinatura só consta em uma ata de reunião, a de posse da nova comissão em
12 de abril 1971.315
Voltando ao referido, a peça O Pedido de Casamento abriu o evento. Ao fim, houve
um intervalo, e em seguida, apresentação de O Pequeno Príncipe. Com tradução de Dom
Marcos Barbosa e sonoplastia com músicas de Beethoven, foi uma adaptação da obra de Saint
Exupery, para dramaturgia, feita pelo próprio Antonio Mário.316 Antoine Saint Exupery (1900
- 1944), além de escritor era também aviador, poeta, e humanista, características que
influenciaram fortemente na trama filosófica de O Pequeno Príncipe, um clássico da literatura
francesa. Exilado nos Estados Unidos, conseguiu publicar a primeira edição em 1943 no país.
Em 31 de julho de 1944, desapareceu numa missão sobre a França, e somente um ano depois,
309
Ata de reunião sobre o Mobral – Alagoinhas, p. 6. 7 de abril de 1971. Pasta: “Mobral”. Arquivo Público de
Alagoinhas/Alagoinhas – BA.
310
Essa figura já foi citada no primeiro capítulo – o possível descendente do padre fundador de Alagoinhas,
história que foi desmistificada por Antonio Mário em sua monografia. Ambos, agora, encontravam-se atuando
no mesmo espetáculo.
311
Subcomissão de propaganda e motivação: Chefe - Getúlio Machado/ Membros: Célio Machado (Diretor da
Rádio Emissora de Alagoinhas), Reinaldo Neves, Deusdeth Matias / Ata referente à formação de subcomissões
do Mobral – Alagoinhas, p. 13. 7 de abril de 1971. Pasta: “Mobral”. Arquivo Público de Alagoinhas/Alagoinhas
– BA.
312
Ata de reunião sobre o Mobral – Alagoinhas, p. 6. 7 de abril de 1971. Pasta: “Mobral”. Arquivo Público de
Alagoinhas/Alagoinhas – BA.
313
Documento referente à caracterização dos cursos oferecidos pelo MOBRAL – Alagoinhas, p. 2. s/d. Pasta:
“Mobral”. Arquivo Público de Alagoinhas/Alagoinhas – BA
314
Documento referente à caracterização dos cursos oferecidos pelo MOBRAL – Alagoinhas, (número da página
danificado). s/d. Pasta: “Mobral”. Arquivo Público de Alagoinhas/Alagoinhas – BA.
315
Ata de reunião sobre o Mobral – Alagoinhas, p. 7. 12 de abril 1971. Pasta: “Mobral”. Arquivo Público de
Alagoinhas/Alagoinhas – BA.
316
Panfleto avulso distribuído na época referente ao Festival de Encerramento da Campanha de Alfabetização de
Adultos. Direção de Antonio Mário dos Santos, 1970. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
90
o livro finalmente foi publicado em seu país de origem.317 Deixou com o conto o alerta aos
leitores, de que a história deveria ser “levada a sério”. A fábula repleta de alegorias sobre as
relações humanas e a necessidade de busca de sentido na produção dessas relações, conta a
história de um Príncipe viajante que encontra diversos seres em sua jornada, dentre eles, uma
raposa que o ensina sobre o ato de cativar. De modo geral, os animais do conto podem ser
vistos como seres oprimidos que “preservam a sabedoria dos laços sociais”, e nesse contato, o
príncipe, que é uma criança, aprende sobre amor, amizade, tempo e perdas.318
Cabe refletir sobre o meio e o momento em que a fábula foi adaptada por Antonio
Mário em Alagoinhas. O MOBRAL foi implantado em substituição ao método de
alfabetização Paulo Freire, este interrompido pelo governo militar imediatamente em 1964,
devido à premissa de conscientização nele contida. Antes, em 1963, Paulo Freire havia sido
encarregado pelo “governo federal para desenvolver o Programa Nacional de Alfabetismo e
elaborar um Plano Nacional de Alfabetização, pois seu trabalho educativo, nascido no âmbito
do Movimento de Cultura Popular – MCP, em 1961 (Recife), vinha ganhando projeção desde
a criação em 1960”.319 Assim, o braço forte dos governos ditatoriais a partir de 1970, ano que
foi fundado O MOBRAL em Alagoinhas, estreitou ainda mais o controle pela educação. Esta
passou a ser gerida através do Plano Nacional de Desenvolvimento, e portanto, decidida no
âmbito da secretaria de Planejamento da Presidência da República, o que desconsiderou a
participação dos educadores no Ministério da Educação.320
Foi constituído, portanto, como um sistema de alfabetização de adultos cuja proposta
fora usurpada do método Paulo Freire, mas com perspectiva oposta. No método Paulo Freire
visava-se o “existenciar-se’ a partir da palavra, um processo de afabetização como meio de
libertação das amarras sociais e históricas, fazendo com o que o indivíduo tomasse
consciência e autonomia de seu processo histórico e, em coletivo, transformasse sua realidade.
O Movimento deturpou a concepção libertária através de uma educação tecnicista cujo tempo
que se valorizava era o tempo da máquina, sob o pretexto de que seus objetivos configuravam
a formação de “um homem moderno”. O texto de treinamento para profissionais do curso foi
317
SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O Pequeno Príncipe. Rio de Janeiro: Agir, 2009.
318
ALVEZ, Giovanni; SOUZA, Luciene Maria de. Trabalho e Amor: Uma leitura sócio-ontológica de O
Pequeno Príncipe, de Antoine Saint-Exupery. Plural, Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
USP, São Paulo, nº 14, 2007, pp. 103-118, p. 109.
319
BELUZO, Maira Ferreira; TONIOSSO, José Pedro. O Mobral e a alfabetização de adultos: considerações
históricas. Artigo científico publicado em Cadernos de Educação: Ensino e Sociedade: São Paulo, 2015.
320
Planos Nacionais de Desenvolvimento – PNDs - atravessaram os 3 últimos governos ditatoriais no Brasil. O 1º
PND, passou a ser gerido entre 1972 e 1974, durante o governo Médici; o 2º entre 1975 e 1979, durante o
governo Geisel; e o 3º entre 1980 e 1984, durante o governo Figueiredo. Ver: Retrospectiva Histórica da
Alfabetização de Adultos no país (material de formação direcionado aos professores do MOBRAL -
Alagoinhas), p. 15. Pasta: “Mobral”. Arquivo Público de Alagoinhas/Alagoinhas – BA.
91
explícito: “a população do ponto de vista econômico pode ser considerada como fator de
produção essencial ao processo de desenvolvimento”.321
É interessante pensar que a história do Pequeno Príncipe propõe uma reflexão oposta
a essa lógica do MOBRAL. Portanto, enquanto este visa à formação do “homem total”
essencial na perspectiva econômica, mercadológica, em que seu próprio tempo deve também
funcionar em torno do capital; o “homem-total”, na perspectiva de Saint Exupery, encontra
sentido quando pode ir além das “relações fetichizadas e abstratas” produzidas pelo
capitalismo. A fábula nos propõe valorizar o tempo de vida, e não deixá-lo ser esgotado pelo
tempo do capital, pois é através dele que se pode “cativar” e produzir tais sociabilidades: “a
captura do tempo de vida do capital compromete a produção do amor como valor primordial
da sociabilidade”.322 Ou seja: o capital suga o nosso tempo de vida, também esse que deveria
ser dedicado ao tempo do cuidar, o tempo do amor.
Aqui, chegamos a um ponto de encontro entre Saint Exupery e a proposta do método
Paulo Freire, ambos propõem a emancipação do sujeito diante de seu processo de reificação
frente ao capitalismo. Ao passo que, na perspectiva paulofreireana, o amor é tido como
“objeto” indispensável na relação ensino aprendizagem, Saint Exupery, propõe esse amor,
uma categoria ontológica do ser, como “objeto” de libertação do “homem total”, portanto,
como via de emancipação do próprio capital.323
A relação entre os personagens da raposa e do Pequeno Príncipe, segundo Alves e
Souza, consiste numa analogia à relação hierárquica opressor-oprimido, uma vez que a
Raposa representa o ser oprimido, por ser caçada pelo ser humano, e o Príncipe, um ser
humano pertencente à categoria dos que caçam, e que são portanto, os opressores. Apesar
disso, o fato de o Príncipe ser criança e não um caçador adulto deixa, na narrativa, uma fresta
de esperança para a humanidade.324 Se há possibilidade de a Raposa ser cativada por uma
criança humana, há libertação desta relação hierárquica. Diante disso, a produção de amor e o
ato de cativar promovidos pela libertação dessa hierarquia, instituem a “sociabilidade plena do
321
Treinamento GIS – Maio de 1976” – documento de formação direcionado aos profissionais do MOBRAL –
Alagoinhas, p. 1. 1976. Pasta: “Mobral”. Arquivo Público de Alagoinhas/Alagoinhas – BA.
322
ALVEZ; SOUZA, Op. cit., p.11.
323
“Saint Exupery sugere que na sociedade do capital, a criação de laços interpessoais e a produção do amor,
como sugerimos acima, podem ser um nexo de resistência à modernização persistente. A raposa diz: ‘Serás para
mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...’ Estamos diante de uma perspectiva contingente de
resistência pessoal à voracidade da abstratividade mercantil que penetra na esfera das relações sociais,
fetichizando relações humanas e dissolvendo a singularidade pessoal e a subjetividade das pessoas”. (Idem,
ibidem) p.11.
324
Idem, ibidem.
92
ser no interior do sistema do capital”.325 O amor torna-se, portanto, um ato subversivo diante
da vida.
Na peça, a raposa foi representada por Maria das Graças, outra irmã de Ray Creuza e
que fez parte do grupo Natureza junto com Miné.326 Ao trabalhar determinados temas de certa
profundidade, bem como textos que exigem densidade dos personagens a serem construídos, é
possível imaginar as referências que Antonio Mário utilizou na condução do elenco para a
montagem das duas peças. Não é difícil pensar que a representação de ambas atribuíssem um
significado contrário aos anseios do MOBRAL. Uma peça infantil que cumpriu o papel de
sensibilizar o espectador para o despertar de um ser humano que reflete sobre sua condição
diante do mercado. Ou seja, uma possibilidade de questionar sobre esse novo ser em formação
diante da sociedade modernizada e industrializada, e quais valores ele deveria cultivar para
subverter a lógica de sociabilidade “fetichizada” pelo capital.
Em 1978, o diretor montou a fábula O Vestido de Estrela Flor (Maria Lúcia Amaral),
também com o grupo, e foi apresentada no 1º Encontro Cultural de Alagoinhas (como será
visto no próximo capítulo).327 Nesta, Roque Lázaro que apareceu no panfleto com o nome
artístico “Temogin Laine”, representou o personagem “Sino de Ouro (A Brisa). Como
sempre, o diretor registrou sua mensagem sobre o espetáculo no programa:
“Como se o hábito ainda fizesse o monge, é que nós, que nos dizemos gente,
fazemos de VESTIDOS a única ponte para alcançar as culminâncias – para
ser ESTRÊLA – despresando[sic] a sibgeleza [sic] e a simplicidade que nos
fará, cada vez mais, uma FLÔR.” Esta é a mensagem que Maria Lúcia
Amaral nos manda através de desempenho dos Bichinhos, das Flores e da
Brisa de sua encantadora peça Teatral.328
325
Idem, ibidem, p. 12.
326
Panfleto avulso distribuído na época referente ao Festival de Encerramento da Campanha de Alfabetização de
Adultos. Direção de Antonio Mário dos Santos, 1970. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
327
Maria Lucia Amaral foi escritora, jornalista e teatróloga. Ver: MARQUES, José Reinaldo. Entrevista – Maria
Lúcia Amaral – Uma vida dedicada a infância. 21 dez. 2007. Site Associação Brasileira de Imprensa
Disponivel em: http://www.abi.org.br/entrevista-maria-lucia-amaral/ Acesso em 4 fev de 2022.
328
No elenco – além de Roque Lázaro: Mayra Paz como Estrêla-Flor (a Rosa); H. Sá Barreto como Cri-Cri (O
Grilo); Fany Sena como Contente (A Margarida) e Havery Stivs como Tujura (A Abelha). Na ficha técnica:
Antonio Mário na direção, Marcos Jorge como Contra-regra; Suzane Brito em “Guarda-roupa feminino”; Sidney
Oliveira em “Guarda-roupa Masculino”; Yone Maya em Maquilagem; Lando Júnior na Iluminação; Balbino na
Sonoplastia. Programação referente ao I Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso,1978, exposto
na sala Iracy Gama - CENDOMA/FIGAM.
93
apresentada, houve ensaios, dos quais Roque Lázaro, junto com o Natureza, participou. É
interessante pensar que o O Boi e o Burro a Caminho de Belém,329 primeiro espetáculo em
que Antonio Mário atuou durante sua formação na Escola de Teatro da UFBA, viria a ser
revisitado por ele 18 anos depois (1974), em Alagoinhas.330 Essa foi, inclusive, uma peça,
recorrentemente montada no âmbito do teatro infantil nordestino na década de 1970, tendo em
vista o que a autora representou, historicamente, para o gênero em questão.
Maria Clara Machado (1921-2001), dramaturga de textos infantis fundou o Teatro
Tablado junto com Martin Gonçalves em 1948.331 Nome importante num período em que a
produção de textos teatrais voltados para o público infantil era escassa. As peças de Machado
fugiam à concepção de um teatro “abobalhado”, pelo fato de ser voltado ao público infantil.
Aliás, essa era uma questão levada em conta por alguns críticos, especificamente sobre a
difusão do gênero no nordeste. Segundo o crítico pernambucano, Valdi Coutinho, teatro para
crianças não deve ser compreendido nem realizado como forma de entretenimento gratuito. É
necessário que não se subestime sua importância, e que haja um “processo dialético entre
espetáculo e criança dentro da evolução espontânea do jogo dramático”. Do contrário, esse
“entretenimento gratuito” de cunho comercial, se torna meramente “show infantil” ou ainda
segue a linha do “falso didatismo” com estilo “tradicional de aulinha”, enredos com valores
maniqueístas, subestimando a capacidade da criança se colocar “diante de um conflito”.332 A
função intrínseca do teatro é provocar o estímulo emocional, isso precisa ser considerado
mesmo sendo o espectador, uma criança.
Em Salvador, críticos e colunistas de jornal compartilham da mesma queixa sobre esse
teatro cuja função se esvazia na plástica do espetáculo, e que se torna, tão somente, comercial.
Segundo Aninha Franco,
a partir dos anos 60, o gênero tornou-se uma fórmula infalível de fabricar-se
dinheiro. Os espetáculos eram feitos com intuito de produzir fundos para
montagens adultas ou para obter-se lucro sem muito trabalho. Textos
imbecilizantes, temas obsoletos, cenários e figurinos luxuosos, direções
329
Roteiro da peça O Boi e o Burro a Caminho de Belém Maria Clara Machado (material datilografado por
Antonio Mário). s/d. Arquivo pessoal de Lívia Santarém.
330
Essa data foi confirmada por Lívia em entrevista cedida à autora em 10 de setembro de 2017.
331
CARVALHO, op. cit.
332
Reflexão do crítico Valdi Coutinho publicada no Diário de Pernambuco – 21 de julho de 1979 com o Título
“Teatro infantil: o equívoco do rótulo”. A crítica está direcionada à situação do teatro infantil de Pernambuco,
mas pode ser pensada, de modo geral, para a situação da Bahia em se tratando das transformações da década de
1970. FERRAZ, Leidson. Teatro para Crianças no Recife – 60 Anos de História no Século XX. Vol. 1.
Recife: Edição do Autor, 2016, p. 195.
94
333
FRANCO, op. cit., p. 220.
334
As montagens em Salvador, por exemplo, num espaço como o Teatro Castro Alves, desvalorizavam
produções locais ao servirem a “espetáculos visitantes de pouca qualidade, aos grupos folclóricos no período do
fluxo turístico e ao teatro infantil comercial”, sob a gestão d José Caria, em 1975. (Idem, ibidem, p. 220).
335
Idem, ibidem, p. 220.
336
O espetáculo Rigue (Ariovaldo Matos, Sostrates Gentil) foi proibido à véspera da estréia, e sem critérios
artísticos. “Sostrates, Carlos Borges e Ariovaldo Matos, entre outros, manifestaram-se contra o Departamento de
Censura e o governo Geisel, que prometia a abertura cassando políticos e vetando obras de arte” (Idem, ibidem,
p.222).
95
337
LEÃO, op. cit.
338
Idem, Ibidem.
339
Ademais, o teatro infantil teve destaque nas edições dos Encontros de Cultura, visto que a maior parte das
peças apresentadas pelos grupos, de acordo com seus enredos, foram direcionadas ao público infantil: além de
“O Vestido de Estrela Flor”, “Chapeuzinho Vermelho”, “Estórias Contadas”, e “O Gato Malhado e a Andorinha
Sinhá”.
340
Entrevista cedida por Roque Lázaro à autora em 28 de outubro de 2017.
96
341
Entrevista cedida por Roque Lázaro à autora em 28 de outubro de 2017. Os próprios panfletos das peças do
Dias Gomes traziam essas menções.
342
FRANCIS, op. cit., p. 9.
343
“É certo que à superfície, a arte de Checov [sic] não promete qualquer evidência sobre suas inclinações
rebeldes. Um arranjo aparentemente arbitrário de paisagens, pormenores de caracterização dos personagens,
diálogos despretensiosos, silêncios, mutações de ritmo e pendor poético, eis a superfície que constitui a tentativa
mais convincente de verossimilhança dramática de todo o teatro moderno; [...] Por baixo, existem abismos de
teatralidade, fervor moral e revolta; e entre a superfície e esse substrato há uma constante tensão irônica”. Ver:
BRUSTEIN, Robert. O Teatro de Protesto. São Paulo: Zahar Editores, 1967, p. 156.
344
Idem, ibidem.
345
Entrevista cedida por Luiz Ramos à autora, em 29 de julho de 2017.
97
346
PAIXÃO, op. cit., p. 59.
347
“[...]as laranjeiras carregavam tanto que era preciso colocar escoras. [...] Nos quintais das residências, nos
jardins, em qualquer lugar onde houvesse um pedacinho de chão, havia uma laranjeira” SANTOS, Joanita da
Cunha, op. cit., p. 29.
348
Entrevista cedida por Luiz Ramos à autora, em 29 de julho de 2017.
349
Fato interessante é que, após o sucesso de O Rapto das Cebolinhas, Maria Clara Machado escreveu a
continuação da trama, chamada “A Volta do Camaleão Alface”, e marcou a estréia do ator José Wilker no teatro,
que à época era um adolescente. A peça foi apresentada pelo grupo Teatro de Cultura Popular, em Recife na
década de 1960. FERRAZ, op. cit., p. 104.
98
cujo trabalho exigente e meticuloso, garante o sucesso da equipe.” Dentre esses textos, a
matéria mencionou a peça “O Bom, O Mau e O Feio” que teria sido escrita pelo componente
do grupo chamado Altevir Esteves e estava sendo ensaiada naquele momento.350 Se o jornal
trouxe a informação de que “a maioria dos textos é assinada pelos seus componentes”, revela-
se que, além das peças discutidas aqui, houve mais montagens cujas fontes não se sabe da
existência.
Mas, sobre o trabalho “exigente e meticuloso”, reafirma-se em falas recorrentes dos
depoentes sobre o quanto o diretor era rígido na disciplina. Segundo justificativa do próprio
Antonio Mário, ele procurava “na medida do possível, conscientizar o pessoal da necessidade
de mantermos um grupo coeso, que embora formado por amadores, adquira uma estrutura
profissional”.351
A “rigidez” no teatro, entretanto, não parecia ser um comportamento que lhe definia
como um diretor sisudo. Ele próprio brincou com esse rigor, revelando uma faceta
descontraída de sua persona, ao escrever um texto chamado “Os melhores de 1986”.352 No
escrito de 1987, salpicado de ironias e anedotas, os atores de cinema não escaparam de suas
observações “rigorosas” e cômicas sobre as premiações do “59º Festival da Academia
Americana de Cinema”, ou seja, o “tão cubiçado[sic] Oscar”.353 E já iniciou o texto
observando que nesse ano, a Academia estava “mais pródiga e mais benigna que a meningite
do João Sayade, foi estatueta distribuída a torto e a direita, só faltou a Academia premiar com
o seu Oscar os melhores bilheteiros, porteiro e pirilampo de cinema, no ano passado”.354
Ironizou e alfinetou o fato de o personagem Kojak (Ted Savalla) abrir o espetáculo cantando e
dançando, e ter sido aplaudido, “não estou dizendo que a coisa este ano estava mole!”.
Sugeriu inclusive que o ator Paul Newman, que após sete indicações sem sucesso, só
conseguiu o Oscar esse ano, pois “Tinha que ser agora ou nunca, a senhora Academia estava
tão boazinha!”.355 Ainda sob o espírito dessa “generosidade desmedida” da Academia,
comentou sobre a premiação de Marlen Master que atuou pela primeira vez como atriz e tinha
deficiência auditiva: “Ora, dona Academia é preciso dar uma vez aos deficientes”. E concluiu
que a atriz “interpretou o papel principal feminino no filme O Silêncio, é obvio”.356
350
Jornal da Bahia, 2 de jul. 1979.
351
Fala de Antonio Mário em entrevista ao Jornal da Bahia, ed. 2 de jul. 1979.
352
Texto “Os Melhores de 1986”, escrito por Antonio Mário. 1987. Acervo de Lívia Santarém.
353
Ibidem.
354
Ibidem.
355
Ibidem.
356
Ibidem.
99
357
GOMES apud PARANHOS, Katia R.(org.) História, Teatro e Política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012,
p. 137.
358
Entrevista cedida por José Olívio à autora, em 15 de junho de 2017.
359
LEÃO, op. cit., p. 18.
100
360
Cópia da certidão de óbito de Antonio Mário dos Santos. Alagoinhas, 17 de dezembro de 2002. Pasta
“Antonio Mário” – CENDOMA/FIGAM.
361
Entrevista cedida por Roque Lázaro à autora em 28 de outubro de 2017.
362
Ibidem.
101
363
Segundo o próprio Antonio Mário (citado pelo Jornal da Bahia, 2 de jul. 1979).
102
Capítulo III
No início de 1970, não só Antonio Mário viveu mudanças em seu grupo de teatro. O
cenário sociocultural da urbe mudou e trouxe novas possibilidades e oportunidades para
jovens e professores, pois a Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas (FFPA)
entrou em cena no palco da cidade. Surge aqui um novo panorama que terá responsabilidade
na afirmação, resistência, e manutenção do setor artístico e das suas manifestações culturais.
Junto com ela, Antonio Mário “contracenou” em projetos como o Pró Memória, o Clube de
Cinema, outras atividades intelectuais para além do âmbito institucional e os Encontros de
Cultura que serão tratados no próximo tópico.
Antes da FFPA, a dinâmica cultural da cidade manteve itinerário semelhante à de
1960: permaneciam as festas dos clubes, os tradicionais eventos da cidade, como a festa da
mocidade,364 festas e procissões católicas, os festejos juninos e as micaretas de rua. Pelo
exercício de nacionalismo a cidade se organizava para o desfile da Independência do Brasil e
para o aniversário da cidade em 2 de julho, que coincide com a data de independência da
Bahia. Conforme o documento de Levantamento Cultural, o conjunto de festejos costumeiros
da cidade, catalogados até 1978, eram os mesmos que aconteciam em 1960, e que puderam
ser identificados em edições do Alagoinhas Jornal da década, como discutido no primeiro
capítulo. Pela tradição, eram celebrados com música, samba de roda, maculelê, rodas de
capoeira e os trios elétricos que eram demandados para além das micaretas.
Os jornais ainda noticiavam sobre a “sociedade” de Alagoinhas e seus cidadãos
realizando os frequentes eventos e bailes de debutantes nos clubes da cidade. Outro clube
surgia, a sede da Associação Atlética do Banco do Brasil - AABB, e estava com inauguração
prevista para fevereiro de 1979.365 Em se tratando de clubes, o Alagoinhas Jornal manteve
364
Festa realizada em “largo” com samba de roda, capoeira e duração de 8 dias. Além de conjuntos musicais e
show de calouros, haviam jogos e brincadeiras como “corridas de sacos, de ovo, quebra-potes e etc.” Documento
de levantamento cultural em Alagoinhas realizado pela FFPA. S/d (de acordo com Iraci Gama, de 1978), seção
“Festas”. Pasta “Projetos Culturais”- CENDOMA/FIGAM.
365
“A Associação Atlética Banco do Brasil, que além dos funcionários deste estabelecimento bancário, congrega
pessoas da sociedade local, em número reduzido, deu início na semana passada, às obras de conclusão da sede
[...] A verba necessária para a conclusão dos trabalhos será de mais de CR$ 1,2 milhões, já se encontrando em
103
seu foco em promover a ACRA, com seus bailes dançantes e festejos de final de ano, e
doravante, não teria mais motivos para reclamar da circulação de bêbados, malandros e
desocupados no centro da urbe, pois a “zona” onde eles transitavam, localizada “no coração
da cidade”, foi impelida a mudar para uma rua distante do centro, entre fins da década de
1960 e início de 1970.366
Sobre os cinemas e suas transformações ao longo do tempo, em 1978, os problemas que já
se apresentavam na década anterior, se agravavam, segundo o Jornal Tribuna de Alagoinhas:
poder do clube, sendo destinada pela Direção Geral do Banco do Brasil, através de seu programa de ajuda às
associações de funcionários”. Jornal Tribuna de Alagoinhas. Ano I. nº 5. 11 nov. 1978, p. 9.
366
De acordo com o livro de memórias de Pedro Marcelino, a zona: “Estava dando lugar à reestruturação do
centro de Alagoinhas, nos governos de Murilo e Carneirinho. O Mercado da Carne em ruínas, pensões em franca
decadência e prostitutas pobres e abandonadas circulando pela área. A gente atravessava o local, pela noite,
mortos de curiosidade. O que estava brilhando mesmo era o Alecrim, área para onde foi transferido o “Baixo
Meretrício”. Ver: MARCELINO, Pedro. Alagoinhas – O que a memória guarda. Alagoinhas: FIGAM Editora,
2015, p. 43.
367
Coluna Enfoque Social, Jornal Tribuna de Alagoinhas. Ano I. nº 5. 11 nov. 1978 p.4
368
Documento de levantamento cultural em Alagoinhas realizado pela FFPA. S/d (de acordo com Iraci Gama, de
1978). Pasta “Projetos Culturais”- CENDOMA/FIGAM.
369
Ibidem.
370
Barros registrou em seu livro que a cidade, além do Cine Teatro Popular, fora contemplada com o Cine Ideal
e o Cine Alagoinhas, mas não mencionou datas de funcionamento. Ver: BARROS, Salomão, op. cit., p. 265.
104
consideração de Barros, provavelmente, em 1979 o Cine Azi pode ter retornado às atividades.
Observa-se também que, a localização deste, no documento do IBGE em 1970 é exatamente a
mesma que o documento de levantamento cultural aponta o Cine Capitólio, em 1978:371 praça
Graciliano de Freitas.
Se o jornal mencionou, em 1978, um “único cinema” na cidade e que precisava de
reforma e programação “reformulada” – provavelmente referindo-se aos filmes “impróprios”
– pode ter aludido ao Cine Capitólio, único em atividade no momento. Entretanto, não o
descreveu da mesma perspectiva de Barros, que afirmou estar em “funcionamento regular,
apresentando selecionados e atraentes programas, satisfazendo bem aos admiradores da
‘tela’”.372 Em 2021, os cinemas citados não existiam mais: os que não foram demolidos,
cedendo espaço a outros prédios, tiveram suas estruturas reaproveitadas para outro
empreendimento. O prédio onde funcionava o Cine Capitólio, por exemplo, foi cedido à
Igreja Universal. O Cine Alagoinhas, que fora instalado à rua Conselheiro Franco, tornou-se
num prédio comercial.
Em movimento inverso aos cinemas que entravam em processo de depreciação na
cidade, desde 1968 é possível reconhecer um movimento de expansão em toda rede de
educação, inclusive no ensino técnico, na formação de magistério e no ensino básico. Nesse
ano foi criada a Fundação Educacional Cidade de Alagoinhas, visando ampliar a “cultura
técnico-profissional” e consolidar “um padrão inédito de ensino, dentro dos mais atualizados
sistemas pedagógicos vigentes, contendo um estilizado Curso Primário Fundamental”.373
No mesmo ano, em 14 de fevereiro, foi criada a Escola Lúcio Bento Cardoso pelo
Lyons Clube de Alagoinhas. Recebeu auxílio financeiro do “Governo Americano”, como
aponta Salomão Barros, cujos donativos foram entregues pelo próprio Consul dos Estados
Unidos.374 No dia anterior, inaugurava-se a Escola Aurea Ribeiro Cravo, com a presença do
governador Luiz Viana Filho e o filho da homenageada, Mário da Silva Cravo.375 Marcou
esse dia também, a inauguração de mais um Ginásio, o Ginásio Estadual de Orientação para o
371
Monografia sobre o Município de Alagoinhas. Ministério de Planejamento e Coordenação Geral – Fundação
IBGE. Serviço Gráfico da Fundação IBGE, 1970. disponível no link:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/113/col_mono_n480_alagoinhas_2ed.pdf Acesso em 20 de
dezembro de 2020.
372
BARROS, Salomão, op. cit., p. 265.
373
Teve como responsáveis as professoras Haydée Lima de Amorim, Bernadeth Carvalho de Alencar, Newton
Farani, José Ferreira Ramos e Orlando Pinheiro de Morais. (Idem, ibidem, p. 146).
374
Idem, ibidem, p. 156.
375
Segundo Salomão Barros, Mário da Silva Cravo foi “ex-prefeito do município e figura conceituada na região”
e pai do artista plástico Mário Cravo Junior (1923 – 2018), “internacionalmente consagrado”. Este último fez
parte da primeira geração de artistas plásticos modernistas da Bahia; e era avô de Mário Cravo Neto, também
artista e fotógrafo. (Idem, ibidem, pp. 156 e 161).
105
Trabalho, recebendo, igualmente, a presença do Governador, Luis Viana Filho (1967 - 1971)
e do Secretário de Educação Luiz Augusto Navarro de Britto.376
O Lyons Clube também se fazia presente em outras atividades de cunho escolar, a
exemplo, da promoção do Festival Estudantil Alagoinhense da Música Popular Brasileira.377
Em 31 de outubro de 1968, dois meses antes de o Ato Institucional nº 5 ser decretado pelo
presidente Costa e Silva realizavam-se os preparativos para as apresentações de estudantes
músicos compositores de MPB. Tanto as inscrições como informações estariam disponíveis
no local de trabalho de Antonio Mário, na Agência Local de Estatística, provavelmente, ele
esteve envolvido, pois também era professor, ou inclusive, sugeriu disponibilizar a agência
para essa demanda.378
O Centro Integrado Luiz Navarro de Brito (CILNB) que como dito na abertura desse
capítulo, comemorava seus 10 anos em 1978, foi oficializado pelo Decreto-Lei nº 21.924 de
27 de junho de 1969, sob direção do professor Jurandy Cardoso.379 Estabelecimentos de
ensino de 1º e 2º graus apresentaram fluxo considerável de 6 mil alunos em média. 380 Nessa
mesma perspectiva, em 1975 foi implantada a Escola Polivalente de Alagoinhas sob
responsabilidade do secretário de Educação Kleber Pacheco, escola que tinha capacidade para
800 alunos e funcionava em 2 turnos. Consecutivamente, outras instituições públicas foram
criadas, como o Complexo Educacional Magalhães Neto, Escola Maria José Bastos e Escola
Municipal Miguel Santos Fontes (essa no distrito de Boa União).381
A expansão na área educacional, principalmente as instituições estaduais, estava
vinculada às elaborações do Plano Estadual de Cultura, pelo Conselho Estadual de Cultura –
CEC. Em 1970, A Secretaria de Cultura, era conjugada com a de Educação, e apesar de o
CEC se ocupar somente da esfera cultural, há um ítem referente ao plano de educação
“Ensino Superior e Cultura” sobre os quais versam metas, dentre elas, de fortalecimento de
instituições públicas e privadas, “extensão da ação dos órgãos educacionais culturais,
376
Idem, ibidem, p. 156.
377
O Clube foi descrito por Salomão Barros como “sempre empenhado nas realizações que enobrecem uma
coletividade” (Idem, ibidem, p. 156).
378
Panfleto de convocação ao Festival de MPB dos estudantes secundaristas. Pasta “Projetos Culturais” -
CENDOMA/FIGAM.
379
BARROS, Salomão, op.cit. Vale ressaltar que com o AI-5, “o governo de Luís Viana Filho passou a viver sob
um cerco de intimidações que levaram a ações extremas como a exoneração de Luís Navarro de Brito, então
Secretário de Educação e Cultura e aumento do controle sobre as ações do próprio estado”. UCHÔA, Sara.
Políticas Culturais na Bahia (1964 – 1987), p. 7. Disponível em:
http://www.cult.ufba.br/arquivos/politicas_culturais_1964_1987_.pdf Acesso em 30 jul 2021.
380
BARROS, Salomão op. cit., p. 146.
381
Idem, ibidem, p. 146.
106
382
UCHÔA, op. cit.
383
Cujo regimento foi provado em 1968, durante o governo de Luiz Viana Filho, e formulava a política cultural
do Estado. (Idem, ibidem, p. 5).
384
BARROS, Salomão, op. cit., p. 146.
385
Idem, ibidem, p. 146.
107
386
LAVALLÉE, Denise Maria Gurgel. Denise Maria Gurgel Lavallée. Entrevista cedida a Celeste Buisine
Pires Ribeiro. Revista BABEL: Revista Eletrônica de Línguas e Literaturas Estrangeiras - ISSN: 2238-5754
- n.02, jan/jun 2012.
387
Segundo a diretora, os professores responsáveis pela aplicação das provas foram todos indicados e
selecionados pelo Conselho Estadual de Educação, foram eles: (a própria) Denise Maria Gurgel Lavallée
(Língua e Literatura Francesas), Antônio Curcino da Silva (Literatura Brasileira - este aparecerá novamente
nesse trabalho em outros momentos, por ter contribuído com um depoimento sobre sua amizade com Antonio
Mário e sua participação nas atividades culturais da cidade.), Dilma Evangelista da Silva (Língua Portuguesa e
Linguística), Pe. Edson Barauna (Língua Latina), Nicéa Nascimento Maia (Psicologia), Pedro Sancho da Silva
(Estudo de Problemas Brasileiros – Organização sociopolítica do Brasil). (Idem, ibidem).
388
Ofício encaminhado à coordenadora do Centro de Cultura de Alagoinhas, Jocelita Correa, em 13 de fevereiro
de 2008, como resposta à solicitação do histórico deste. Documento exposto na sala Iracy Gama -
CENDOMA/FIGAM.
389
Ibidem.
390
Como será discutido mais adiante nesse mesmo tópico.
108
do Curso de Biologia da FFPA. No referido ano, ele tinha 74 anos. Está em pé, diante de duas
crianças que parecem brincar no jorro. Aparentemente está sem muletas, o que significa que a
situação com o reumatismo poderia estar estabilizada.
Imagem 10: Antonio Mário no Jorro do bairro Miguel Velho – Alagoinhas, 1996.
Autor desconhecido. Banner de exposição sobre a vida de Antonio Mário.
CENDOMA/FIGAM.
391
“Relatório de atividades referentes ao projeto de Pesquisa ‘Memória de Alagoinhas’”, 1981. Documento
exposto em banner na sala Iracy Gama/FIGAM - CENDOMA/FIGAM.
392
Dentre esses, o documento de Levantamento e dinamização cultural do governo estadual, na seção
“fotógrafos”, mencionou somente Nipu Fulco Caldas. No entanto, reconheceu-se a presença do trabalho
fotográfico de Aluísio Rodrigues no 2º Salão de Artes Plásticas (1979) e na III Mostra do III Encontro de Cultura
(1980), ano em que o clube entrou no programa como “participação especial”. Banner exposto sobre o
lançamento do Clube de Cinema e Fotografia de Alagoinhas. FIGAM/CENDOMA./ Doc de levantamento
cultural do gov. do estado. Programa do 2º Salão de Artes Plásticas./ Programa da III Mostra do III Encontro
Cultural de Alagoinhas. CENDOMA – FIGAM.
109
393
Sobre os documentos que mostram sua inclinação para o cinema, refiro-me, respectivamente, à entrevista
cedida por ele no Jornal Nova Chama (s/d), e à Monografia sobre a história de Alagoinhas escrita por ele. Jornal
Nova Chama. Documento avulso, década de 1980, p. 6.
394
Depoimento cedido por Antonio Cursino à autora, em 17 de junho de 2020.
395
Sérvio foi o filho caçula de Antonio Mário e Nélia Santarém. Segundo relato de Lívia, “Ele só colocava
nomes históricos nos filhos. E somos 10. Somos 3 do 1º casamento, 4 do 2º e 3 do 3º que é o meu caso. Desses
10, apenas 1 é falecido, que é o mais velho, o primogênito, ele faleceu aos 40 anos, de infarto. Mas todos têm
nomes históricos”. Entrevista cedida por Lívia Santarém à autora, em 10 de setembro de 2017.
396
Segundo Salomão Barros, Antonio Cursino da Silva era comandante da “1ª Cia de Policiamento Ostensivo
(Policiamento de Trânsito e o Pelotão de Policiamento Ostensivo, mais a Rádio Patrulha e o Pelotão de
Guardas)”. BARROS, Salomão, op. cit., p. 217.
397
Cursino não disse a época em que o filme foi exibido, mas tomando como referência o ano de formação do
Clube de Cinema, deve ter sido entre 1979 e 1980.
110
Não só esse filme, como Jango e Quilombo, ambos também exibidos pelo Clube de
Cinema na IV edição do festival, eram produções de conteúdo apreensível pela censura e não
enfrentaram problemas prévios que impedissem sua apresentação, pois, ao menos o programa
foi veiculado em panfleto à sociedade. Inclusive, há um recorte de cena de O Encouraçado
Potemkim no filme Jango. O documentário que havia sido lançado nesse mesmo ano de 1984
endossa a narrativa de “golpe militar”, colocando à prova a ideia de “Revolução democrática
de 1964” autodefinida por seus autores.400
Sobre o filme que Antonio Mário pensou em desenvolver, ele expôs esse projeto em
entrevista ao jornal Nova Chama. Veiculado pela empresa privada e instalada em Alagoinhas,
COPENER, a fonte que indica a matéria não tem data, mas como define Antonio Mário já
enquanto chefe do IBGE, e tendo ele assumido a chefia em 1982, e em 1984 se aposentou,
fica a possibilidade de ter sido feita a entrevista nesse intervalo de tempo.401 O periódico não
mencionou sua atuação na cultura nem com o grupo Natureza, mas enalteceu seu trabalho
com a pesquisa sobre a história de Alagoinhas, o que é visível no uso de expressões como
“grande pesquisador” e por definí-lo categoricamente como “historiador”, “título” o qual o
398
O filme O Encouraçado Potemkim foi uma representação da revolta de Kronstadt, acontecida em 1921,
durante a gestão leninista da União Soviética. Segundo Arlindo Machado, Eisenstein, diretor do filme,
estabeleceu uma relação de algoz e admirado pelos governos soviéticos, tanto o leninista, quanto o stalinista. O
enredo dá destaque à coletividade operária compreendendo-a como centro dos processos históricos, e poderia,
facilmente, ser barrado devido ao conteúdo subversivo e incitações ao “caos” e à revolução. Ver: MACHADO,
Arlindo. Sergei M. Eisenstein. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982.
399
Depoimento cedido por Antonio Cursino à autora, em 17 de junho de 2020.
400
JANGO. Direção de Silvio Tendler. 1984, cor , 117 min. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=SaU6pIBv9f4&ab_channel=NaTelinha acesso em 01 ago 2021.
401
A página da fonte, da forma como foi encontrada, não apresenta data. Jornal Nova Chama. Documento avulso,
década de 1980, p. 6.
111
Outros vestígios sobre tal filme que seria rodado, não foram encontrados, o que indica
que, provavelmente, não saiu do plano das idéias. Por outro lado, uma questão que pode ser
verificada em um de seus textos foi reiterada por Antonio Mário: a validade sobre as histórias
que rondam a fundação da cidade e de seu marco zero, a Igreja Antiga de Alagoinhas Velha.
De acordo com sua fala para o jornal, tais crendices e lendas não tinham compromisso com a
“verdade histórica”:404
402
Jornal Nova Chama. Documento avulso, década de 1980, p. 6.
403
Ibidem.
404
Ibidem.
405
Ibidem.
406
Ponto já discutido no segundo tópico do primeiro capítulo desse trabalho.
112
407
Jornal Nova Chama. Documento avulso, década de 1980, p. 6.
408
Apostilas de Antonio Mário elaboradas para as disciplinas de “Laboratório de Expressão Oral e Escrita” e
“Dicção e Impostação da Voz” o curso de Letras da FFPA, 1986 e 1987. Acervo pessoal de Lívia Santarém.
409
O material, provavelmente foi elaborado por Antonio Mário, e tinha como referencias bibliográficas apostilas
da Escola de Teatro da UFBA.
410
“Apostila Nº 01 - O Homem e a voz”. Disciplina Laboratório de Expressão Oral e Escrita”, curso de Letras da
FFPA, 1986. Acervo pessoal de Lívia Santarém, p.1.
113
assim ‘Imposte a voz. Mas tem que chegar aqui até mim com toda a clareza do que você está
falando’”.411
Levando em consideração os laboratórios feitos nos grupos, referentes à repetição,
preparação corporal e memória do sentimento, o cuidado com a voz perpassava também o ato
de se observar. Pois, utilizando a citação do professor “a voz é a expressão da personalidade.
‘Fala para que eu te veja’, frase antiqüíssima, (de Sócrates) exprime bem o que quero
dizer”.412 Alguns exercícios selhantes aos que eram feitos no Dias Gomes, foram sugeridos
para essa disciplina, a fim de se perceber como o estado dos músculos reflete no gestual do
ator: “Não é uma prova suficiente de que a tensão muscular prejudica a sensação emocional
interna?”.413 Em suma, com essa fonte é possível “enxergar” através da atuação do sujeito a
representação criada pela memória da ex-atriz, do lugar de quem vivenciou a aplicação do
método. Além de compreender sua influência pelo teatro realista stanislaviskiano sendo
aplicada na sala de aula para alunos do curso de Letras da FFPA.
Pode-se “ver”, sobretudo, o homem de oratória sobre o qual todos se referiam ao
evocar sua memória, e o que motivou o Nova Chama a considerá-lo “figura tradicional da
cidade”, na década de 1980. Logo, nota-se sua presença em momentos como a posse de Iraci
Gama na diretoria da FFPA, em 3 de dezembro de 1993. Na imagem 11, diante do microfone,
no auditório da FFPA, Antonio Mário discussa em homenagem à professora e quem fora, na
década de 1960, sua atriz do Dias Gomes.
411
Entrevista cedida por Ray Creuza à autora, em 29 de outubro de 2017.
412
“Apostila Nº 02 – Relaxamento Muscular”. Disciplina Laboratório de Expressão Oral e Escrita”, curso de
Letras da FFPA, 1987. Acervo pessoal de Lívia Santarém, p. 1.
413
Ibidem, p.3.
114
Parabéns Alagoinhas!
Parabéns, nossos vigários!
Salve o nosso professor:
O Saudoso Antonio Mário
Que a história alagoinhense
Colocou num relicário416
Em paralelo às atividades com o grupo Natureza, Antonio Mário pôde difundir seu
trabalho como intelectual e articulador cultural, agora oportunizado pelo meio universitário.
Nesse processo, cabe compreender a FFPA como ponto de encontro de movimentos que
envolveram, também, outros personagens do meio artístico, de fora da universidade. Portanto,
414
SANTOS, Antonio Mário dos. Prefácio in: OLÍVIO, José. Álbum Poético de Alagoinhas. Gráfica Editora
Oliveira Indústria e Comércio LTDA: Alagoinhas – Bahia, 1984.
415
Infelizmente, a “Monografia reformulada e ampliada por Antonio Mário dos Santos” (como se refere o
próprio José Olívio) e que ele utilizou como fonte bibliográfica, não foi encontrada, como já discutido na
introdução desse trabalho.
416
OLÍVIO, José. História da Freguesia de Santo Antônio das Lagoinhas. Da Ordem Brasileira dos Poetas da
Literatura de Cordel: Alagoinhas – Bahia, 2003.
116
assim como o diretor “se expandira” enquanto sujeito múltiplo, essa narrativa se expande e
abre as cortinas para outros artistas que constituíram a formação dessa integração entre vários
gêneros artísticos, o que mobilizou o público espontâneo reunindo universidade, artistas e
cidade num festival cultural que a cidade ainda não havia vivenciado.
417
Programação referente ao I Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso, 1978, exposto na sala
Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM, p.1.
418
Ibidem, p.3.
419
Jornal Tribuna de Alagoinhas. Ano I. nº 5. 11 nov. 1978, p. 6
117
420
Programação referente ao I Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso,1978, exposto na sala
Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM, p.1.
421
Ibidem.
422
Ibidem.
423
Ibidem.
424
Percebe-se a diversidade de manifestações populares conformadas no que o panfleto definiu como
“espetáculo folclórico”. Dança de caboclo, Flores do Velho e Rum de Iansã, por exemplo, são expressões de
cantigas e batuques cuja referência vem das religiões de matrizes africanas. O Terno de Reis com a queima da
lapinha faz parte da tradição religiosa católica, trazida pelos jesuítas para o Brasil, uma representação simbólica
sobre o nascimento do Menino Jesus na manjedoura e a visita dos três reis magos.
118
do CSSS. Assim, o público tinha mais chances de apreciar ambas as apresentações e evitar se
dispersar entre um espetáculo e outro.
Havia amostras que exigiam equipamentos apropriados, e, portanto, era viável
aproveitar a estrutura dos auditórios. Como foi o caso do segundo dia do festival – noite do
dia 21 de agosto – em que se realizou uma projeção de filmes, documentários e slide com
temas relacionados a fotografia, na FFPA.425 Nesse mesmo dia, outro espaço ocupado pelas
amostragens de arte foi o CILNB, que recebeu em seu auditório o Teatro de Fantoches Pic-
Nic com a peça Estórias Contadas.426
Os auditórios também eram cotados para os shows musicais como na noite de quarta-
feira, em que o auditório do CSSS recebeu corais e na sexta em que este se manteve ocupado
por uma apresentação de dança. Entretanto, o encerramento do festival teve espetáculo de
música fora da estrutura dos auditórios, ao ar livre. Nesse dia de domingo, houve a
“participação especial” Conjunto de Sopro da Universidade UFBA sob a regência de
professor Schwebel, na praça Rui Barbosa.427
O fato de Alagoinhas ainda não possuir um teatro ou um palco adequado para esses
grandes espetáculos, fazia com que os auditórios da cidade tivessem de ser analisados pelos
técnicos e coreógrafos responsáveis pela montagem, para fazer as devidas adaptações. 428 No
período, os auditórios da FFPA, do CSSS e do CILNB eram os únicos em funcionamento.
Havia outro chamado Cid Bastos, localizado no convento S. Francisco, com 300 lugares e
área de 200m², mas encontrava-se fechado, em estado precário de conservação. O auditório da
FFPA era o maior, com 1000 poltronas distribuídas em 739m². Apesar de ser tido como
“especialidade apropriada” e servindo para 20 espetáculos, em média, por ano, o estado de
conservação não era “bom” como o dos outros dois. O do CSSS, por sua vez, também possuía
1000 lugares, mas organizados em menor espaço, 616m²; tinha “caráter particular”,
encontrava-se em “bom estado de conservação”, “especialidade apropriada”, e recebia 50
espetáculos por ano – número maior em relação ao da FFPA. Essa mesma quantidade de
eventos tinha o auditório Pedro Sancho, no CILNB. Esse, no entanto, tinha a menor área,
425
Mesmos participantes do Clube de Cinema e Fotografia, mas o nome do clube não apareceu.
426
Programação referente ao I Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso,1978, exposto na sala
Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM.
427
Ibidem.
428
Como foi discutido no 1º capitulo, Alagoinhas possuiu o Cine Teatro Popular cuja estrutura contava com um
palco com estrutura para realização de espetáculos diversos. No entanto, no referido ano de 1978, o Cine Popular
já havia sido demolido. Segundo o documento de levantamento cultural, em 1980 somente a estrutura do Cine
Capitólio e a do Cine Alagoinhas existiam.
119
120m², com 240 poltronas, mas estava em “bom estado de conservação”, e “especialidade
apropriada”.429
A semana da I Amostra de Arte aconteceu em agosto, mas os esforços vinham se
desdobrando desde maio. Os artistas se encontravam em reuniões semanais, visando um ponto
de convergência em meio a “universos de idéias, acertos e desencontros”, conflitos comuns
diante de uma heterogeneidade artística.430 Esse “universo” dos bastidores que não “chegava
ao conhecimento do público” incluía, principalmente, questões de produção. Na cidade, os
responsáveis pela produção ainda lidavam com questões básicas como reservas limitadas de
hotéis e falta de infraestrutura turística em Alagoinhas. 431 O volume de artistas e produtores
que chegavam a Alagoinhas com a realização de cada espetáculo parecia ser uma demanda
extraordinária para a cidade.432 Ao fim e ao cabo, a diretora da FFPA e articulista da matéria,
Denise Gurgel, apesar dos pesares apresentados, reconheceu o saldo positivo que a Amostra
trouxe ao público alagoinhense e aos artistas que puderam, sobretudo, levar suas produções às
plateias da capital. O sucesso foi, portanto, coletivo. Fora a primeira vivência com um festival
do nível, que possibilitou à comunidade o prestígio e a oportunidade de “viver uma
experiência nova, aparentemente de resultados imprevisíveis, mas que se revelou, acima de
tudo, gratificante”.433
Para poder realizar, possivelmente, um balanço do que foi a 1ª Amostra de Arte, a
FFPA fez uma pesquisa através de questionário distribuído entre vários setores da sociedade.
Na matéria do Tribuna de Alagoinhas afirmava-se que a iniciativa seria tão interessante para a
comissão organizadora, quanto para a própria “comunidade” que “participou ativamente de tal
movimento cultural, deichando[sic] claro, portanto, o sucesso já garantido da próxima
Semana de Arte”.434 No entanto, apesar das expectativas do jornal, no ano seguinte a
429
Todos esses dados sobre auditórios podem ser encontrados no documento de levantamento cultural em
Alagoinhas realizado pela FFPA. S/d (de acordo com Iraci Gama, de 1978), seção “Festas”. Pasta “Projetos
Culturais”- CENDOMA/FIGAM.
430
Jornal Tribuna de Alagoinhas. Ano I. nº 5. 11 nov. 1978, p. 6.
431
“Idêntica preocupação ocorre com relação aos restaurantes onde são feitas as refeições dos artistas; não há
muitas opções, se considerarmos o número elevado de músicos ou bailarinos, o que exige instalações mais
amplas. Mobilizam-se igualmente carregadores extras para o recebimento dos volumes que acompanham em
caminhão à parte, os artistas, instrumentos musicais, sistemas de som e iluminação, cerca de trinta caixotes com
sapatilhas, chapéus e fantasias completas” (Ibidem).
432
De acordo com o levantamento de dados de Salomão Barros, em seu tempo de escrita (1979) a cidade tinha o
Roma Hotel e o Hotel Bahia, sendo os mais recentes, o Hotel Denwer e o Continental. O autor fala, de forma
genérica, sobre a existência de hotéis menores e “várias pensões”, além de, nesse período, haver os planos de
instalação de um “grande Hotel”. No distrito de Alagoinhas Velha, projeto do grupo paranaense Turinvest Hotéis
Turismo Segundo Barros, O nome seria “Hotel das Laranjeiras” e ocuparia uma área de 40mil m², tendo sido
doado pela prefeitura municipal de Alagoinhas. Foram investidos por ela 5 milhões de cruzeiros na primeira
etapa, e prometia ser o melhor do litoral norte do Estado à época. BARROS, Salomão, op. cit., p. 269.
433
Ibidem.
434
Ibidem, p. 8
120
435
Provavelmente foi inspirado no I Encontro Profissional de Artistas Plásticos Profissionais e no I Seminário
Nacional de Artes Cênicas, eventos nacionais que fizeram parte de uma grade dinâmica de atividades culturais
em 1979, no Brasil. UCHÔA, op. cit. / Documento referente à programação do 2º Salão de Artes Plásticas de
Alagoinhas, 1979. Documento Avulso, exposto na sala Iraci Gama, CENDOMA/FIGAM.
436
Documento referente à programação do 2º Salão de Artes Plásticas de Alagoinhas, 1979. Documento Avulso,
exposto na sala Iraci Gama, CENDOMA/FIGAM.
437
Sobre a autora do texto, Rita Maria Moraes, não foram encontradas mais informações além do fato de ter
participado do 2º Salão de Artes Plásticas.
438
Texto de Apresentação. Documento referente à programação do 2º Salão de Artes Plásticas de Alagoinhas,
1979. Documento Avulso, exposto na sala Iraci Gama, CENDOMA/FIGAM.
439
Texto de Apresentação Documento referente à programação do Salão de Artes Plásticas de Alagoinhas, 1979.
Documento Avulso, exposto na sala Iraci Gama, CENDOMA/FIGAM.
440
Jornal da Bahia, 2 de jul. 1979.
441
Ibidem.
121
Outro pintor que contribuiu para a reflexão na matéria foi Anthonio Lins, artista que se
definiu ao jornal como “autodidata”, tendo realizado, à época, varias exposições e com uma
produção de 15 trabalhos por mês, em média, além de produzir, em tempo livre, arte com
serigrafia e artesanato com couro. “Saio com meus quadros embaixo dos braços e tenho que
vendê-los, às vezes até por bem menos do seu valor. Só não posso voltar para casa com
eles”.442 Além das questões levantadas, a falta de estrutura adequada para os artistas, na
cidade, parecia ser o problema mais urgente a sanar. Litho Silva, artista plástico, reivindicava
condições dignas diante da falta de estímulo com a qual o setor lidava, visto que “verdadeiros
artistas da cerâmica estão deixando de produzir obras de arte para construir tijolos”.443 Vale
ressaltar que não só os artistas plásticos reivindicavam “estrutura básica” para manutenção do
fazer artístico.444 Era preciso lutar por um espaço que agregasse todos os trabalhadores de
arte. Por isso a ideia de um Centro Cultura já povoava o imaginário e as perspectivas da
classe.445
Desde o 1º festival em 1978 havia se deflagrado vínculos entre artistas de diversos
gêneros diante da possibilidade da produção e construção conjunta. O artista Anthonio Lins,
por exemplo, construiu uma amizade com Antonio Mário e do fruto desta, pintou um quadro
em que estão representados os dois amigos na porta do prédio onde Antonio Mário passou a
morar em 1989 (ano de produção da obra): “eu sempre conversava com o professor Antonio
Mário e nossa amizade era mútua: ele me admirava como artista e eu o admirava como uma
pessoa inteligentíssima”.446 No quadro (Imagem 13), Anthonio Lins está à direita, vestido de
branco, e Antonio Mário, um pouco mais baixo em estatura, aparece à esquerda. Ao fundo, a
representação da vista da entrado do bairro Alto do Capinam. O “professor”– como o artista
plástico lhe chama – foi presenteado com a obra.
442
Ibidem.
443
Ibidem.
444
Ibidem.
445
Em 1980 nasceu, oficialmente, a ideia de transformar Igreja Velha inacabada em Centro de Cultura. Banner
de exposição da Figam sobre o nascimento do “Grupo de Pesquisa Pró-memória de Alagoinhas”.
CENDOMA/FIGAM.
446
O prédio ficava no Alto do Capinãn, entrada da Praça Kennedy. Depoimento cedido por Anthonio Lins à
autora, em 5 de outubro de 2021.
122
Imagem 13: Pintura produzida por Anthonio Lins, representando Antonio Mário à esquerda e
o próprio autor da obra, à direita. LINS, Antonio. (Sem Título). Alagoinhas, 1989.
De modo geral, esse vínculo entre os artistas também tinham se fortalecido pela atividade
geradora da ideia do festival: o Levantamento Cadastral dos artistas de Alagoinhas. A
atividade fora solicitada pela Fundação Cultural do Estado da Bahia para a FFPA, e tinha
intuito de elaborar um documento em torno de um estudo sobre os artistas da terra.447 E como
Iraci Gama, à época, era professora do curso de Letras da FFPA, e tinha contato com os
artistas não somente da universidade, mas os que não tinham esse vínculo, foi incumbida de
coordenar o projeto.448 A professora relatou, em entrevista, que depois de os artistas serem
informados sobre o cadastro, houve um movimento de expectativa na cidade. E que,
somando-se ao advento da “distensão” do regime militar, os ânimos no meio artístico se
mobilizaram para “ver algo diferente acontecer”.449
Podemos considerar, portanto, que por mais que a mola mestra para realização dos
festivais tivesse sido o projeto de reconhecimento cadastral dos artistas da terra, a necessidade
desse “conhecimento da realidade social” já surgia no seio de um movimento cultural
incipiente, engajado com literatura, artes plásticas, música, teatro, expressões populares e
447
Entrevista cedida por Iraci Gama à autora, em 25 de maio de 2021.
448
Ofício encaminhado à coordenadora do Centro de Cultura de Alagoinhas, Jocelita Correa, em 13 de fevereiro
de 2008, como resposta à solicitação do histórico deste. Documento exposto na sala Iracy Gama -
CENDOMA/FIGAM.
449
Entrevista cedida por Iraci Gama à autora, em 25 de maio de 2021. Esse percurso – programa da Funceb,
cadastros dos artistas, festival que culmina na “decoberta desses artistas” – se repete em várias fontes diferentes
além do discurso de Iraci.
123
folclóricas. Por isso nasceu o primeiro Encontro em 1978 que, inicialmente, foi chamado de
“Amostra de Artes de Alagoinhas”, mas depois, foi oficialmente nomeado como Encontro de
Cultura de Alagoinhas. A mudança do nome contemplou a ideia de unir não só vários gêneros
artísticos, mas manifestações da cultura popular que construíram a identidade de Alagoinhas,
seus distritos e do litoral norte e agreste baiano.
Esse caráter amplo de festival foi resgatado no 3º Encontro Cultural de Alagoinhas,
realizado entre 23 de outubro até 2 de novembro de 1980, com a programação completa.450
Abriram-se os trabalhos com o Bando Anunciador no primeiro dia – uma quinta-feira – sendo
que nesse ano, o Bando saiu da praça Santa Isabel, e foi até a Praça Rui Barbosa apresentando
o início das festividades pelas ruas da cidade. A programação itinerante e gratuita com
apresentações na rua, para incentivar a participação do público espontâneo, tornou-se uma
característica de todas as vindouras edições dos Encontros Culturais de Alagoinhas.
É nessa III edição do festival que Antonio Mário se revela, nessa narrativa, enquanto
poeta. No Salão de Literatura, promovido no dia 24 de outubro da programação, ele
interpretou duas poesias no recital, chamadas “Mucama” e “Revolução II”. 451 Ambas não
aparecerem com os nomes dos respectivos autores. Os indícios levam a crer que “Mucama”
seja de autoria do poeta modernista Raul Bopp.452 Ao que parece, não recitou poesia de sua
autoria, bem como não foram encontrados poemas escritos por ele. No documento de
Levantamento cultural ele também não foi indicado nessa categoria específica, mas em 9 de
junho de 1979 (um ano antes do festival em questão), recebeu o título de Cidadão da Poesia
concedido pela Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel, “pelos relevantes
serviços prestados à Poesia Popular falada, cantada e escrita em nosso País”, nos dizeres
exatos do “diploma”.453
O Salão de Literatura uniu apresentações de poetas e repentistas e nesse dia aconteceu
a já mencionada Exposição “Memória de Alagoinhas” projeto ligado ao Pró-Memória, do
450
Programação referente ao III Encontro de Cultura de Alagoinhas – Exposição de poesias. Documento avulso,
1980, exposto na sala Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM.
451
Programação referente ao 3º Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso, 1980, exposto na sala
Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM.
452
Além de Antonio Mário, três amigos, que, inclusive, cederam entrevistas e depoimentos para esse trabalho,
participaram: Luis Ramos interpretou dois poemas no recital: “Incerteza”, de sua autoria, e “Menino Livre”,
escrito por Antonio Barreto, um dos poetas expositores. José Olívio apareceu somente na relação de poemas
expostos, não tendo recitado. E Antonio Cursino Interpretou o poema “Operário em Construção” de Vinicius de
Moraes. - Programação referente ao 3º Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso,1980, exposto na
sala Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM.
453
A ordem foi fundada em 6 de novembro de 1976. No ano de expedição do diploma sua sede era situada
provisoriamente na Rua Alvarenga Peixoto, no bairro da Liberdade em Salvador. Informações extraídas do
Documento expedido pela Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel – Salvador, 9 de junho de 1979.
Pasta “Antonio Mário dos Santos” - CENDOMA/FIGAM.
124
qual Antonio Mário participou integrando a equipe.454 Ao que parece, a noite da literatura se
tornou tradição nos festivais seguintes, visto que na 4ª edição ela retornou, articulada com o
Salão de Poesias, composto por recital, cordéis e lançamento de livros.455 Assim, é
interessante perceber tais matizes abrangidos pelo festival: o encontro entre a poesia dos
acadêmicos e a poética do povo; o cordel e o repente embalados pelo resgate e reconstituição
da memória da cidade.
Após a noite literária, foi a vez dos artistas plásticos desfrutarem de sua noite de
exposição com a “Mostra de Artes Plásticas do III Encontro Cultural de Alagoinhas”,
realizada na noite de domingo do dia 26 de outubro. Dessa vez, o artista que elaborou o texto
de apresentação da mostra foi Josilton Tomm, e reforçou as reflexões levantadas na
Exposição do ano anterior, referente à liberdade criativa do artista e seus desdobramentos
diante de um mercado nos moldes capitalistas.456 Dentre os apelos do artista que convergem
nas falas de Rita Moraes, Anthonio Lins e Luiz Ramos, vê-se a mesma reivindicação já
exposta anteriormente por Litho Silva, acerca de um local que fornecesse estrutura adequada
para o setor:
Bem, o que podia acontecer nessa região do meio agreste, que faz parte de
um todo?... Uma total precariedade do ensino da instituição arte; uma falta
lamentável de um Centro de Cultura onde todas as pessoas sensíveis teriam
uma fonte de pesquisa adequada, espaço para desenvolver experiências e
mostrar projeto e resultados de trabalhos, elaborados conscientemente, no
vasto campo da arte e ciência, e, em sua aplicação em benefício,
principalmente da nossa comunidade.457
Ainda que, para ele, a mostra de arte continuasse “como as anteriores, tímida e
limitada o que diz respeito a conjuntos de trabalhos numa linguagem contemporânea atual”,
ressaltava sobre a importância de artistas comparecerem para debater sobre as questões que
lhe afligem.458
Vale ressaltar que, em 1982, 2 anos após o 3º festival, Antonio Mário havia feito uma
cirurgia que consistia em por uma prótese de platina na perna, por conta do reumatismo. A
454
Há uma possível relação com a criação, no governo Geisel Em 1979, da Fundação Nacional Pró – Memória
(Pró-Memória), com objetivos semelhantes. Ver: UCHÔA, op. cit.
455
A Noite da Literatura foi realizada no dia 24 de novembro de 1984. Banner sobre o Grupo Pró-Memória.
Exposição permanente em homenagem a Antonio Mário – FIGAM/ Programação do 4º Encontro Cultural de
Alagoinhas. 1984, Cendoma – FIGAM.
456
Programa de apresentação referente à III Mostra de artes plásticas do III Encontro Cultural de Alagoinhas.
Documento avulso, 1980, exposto na sala Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM.
457
Josilton Tomm – Ibidem.
458
Ibidem.
125
prótese teria vida útil de 20 anos. Isso significa que, aos 80 anos, ele estaria impossibilitado
de realizar outra cirurgia para o implante de nova prótese, devido à idade. Ele estava ciente,
portanto, de que chegando a tal idade o problema se agravaria, e com o processo viria a perda
gradativa da possibilidade de andar.459
Nesse intervalo de tempo não houve festival. Depois de 3 anos, a comissão
organizadora decidiu reunir os artistas dos diversos segmentos “para um trabalho
conjunto”.460 A intenção, portanto, era fortalecer o movimento e pressionar os governos, tanto
o municipal, como o estadual, nos trâmites para que a construção do desejado Centro de
Cultura fosse concebida, e alegando tal importância, conseguir patrocínio para realizar o 4º
Encontro de Cultura.
Formalizou-se, portanto, uma discussão no “Debate sobre o Centro de Cultura”, na
noite de 19 de novembro de 1984, no qual participaram o prefeito de Alagoinhas, Judélio
Carmo (1983- 1988), além de representantes da Fundação Cultural do Estado da Bahia e do
grupo Pró-Memória. Nessa mesma noite aconteceu o debate sobre os projetos desse último. A
discussão giraria em torno do pedido de “tombamento do curtume da família Meyer, [...] da
ruína de Alagoinhas Velha, bem como da Estação Férrea de São Francisco”.461 O pedido foi
recebido pela Fundação do Patrimônio Histórico da Bahia, que enviou técnicos à cidade para
discutirem com os integrantes do grupo Pró-Memória, responsáveis por mostrar os lugares a
eles. Dessa forma, o debate que aconteceu trouxe as informações ao público sobre tais
encaminhamentos. Apesar de já ter sido atestada a presença de Antonio Mário à frente do
grupo, nessa noite os coordenadores (provavelmente do debate) foram Iracy Gama e Antonio
Fontes.462
Ao longo dos anos de festivais descortinou-se um caráter diretamente engajado na
programação. Inclusive, a consciência de que o setor artístico estava crescendo e se
estabelecendo, possibilitou a incorporação de atividades de formação, tanto voltadas para a
comunidade acadêmica como para um público mais generalizado. No 3º Encontro de Cultura,
houve oficinas de teatro na FFPA, aula pública sobre essas oficinas no auditório do CSSS e
Seminário de Cultura no mesmo colégio.
459
Em seus últimos momentos de vida, Antonio Mário estava acamado, acometido pelo reumatismo. No atestado
de óbito, destacam-se uma série de enfermidades como insuficiência respiratória, infecção respiratória,
septecemia, infcção urinária, distúrbio de coagulação, doença pulmonar. Cópia da certidão de óbito de Antonio
Mário dos Santos. Alagoinhas, 17 de dezembro de 2002. Pasta “Antonio Mário” – CENDOMA/FIGAM.
460
Projeto referente ao IV Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso, 1984, exposto na sala Iraci
Gama - CENDOMA/FIGAM.
461
Ibidem.
462
Ibidem, p.3.
126
463
Ibidem, p.2.
464
Ibidem.
465
O evento ocorreu no domingo do dia 25 de novembro, na Praça Rui Barbosa. Ibidem, p.3.
466
Ibidem, p.4.
467
Teve como expositores Augusto Moncorvo com o tema “Os segredos da Medicina Oriental” que aconteceu na
FFPA às 20hs do dia 21, na quarta-feira. Ibidem, p.4.
468
Tribuna de Alagoinhas. Ano I. Nº 10. 20 jan. 1979, p. 3.
469
Projeto referente ao IV Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso, 1984, exposto na sala Iraci
Gama - CENDOMA/FIGAM.
127
470
Ibidem, p. 5.
471
Ibidem.
472
Ibidem.
473
Ibidem.
474
Ibidem.
128
475
A título de representatividade, entre esses nomes, somente Augusto Moncorvo e Antonio Fontes poderiam ser
consideradas pessoas negras. O jornalista e escritor Paulo Dias também endossou isso; sendo que foi
contemporâneo a esses dois. Numa coluna do site News inFoco, menciona sua relação com Moncorvo. Ver:
https://newsinfoco.com.br/inicio/2019/12/01/a-historia-e-a-cultura-de-alagoinhas-que-vi-e-vivi-por-paulo-dias/.
Acesso em: 30 julh 2021.
476
Ao menos não esteve presente na programação.
477
Programação referente ao IV Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso, 1984, exposto na sala
Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM. Sobre a criação do MNUA – banner referente aos acontecimentos de 1978 –
exposto na FIGAM.
478
Entrevista cedida por Francisco José Santos Alves, “Chicão”, à autora em 4 de maio de 2021.
479
A frase original é “Com o olhar de hoje, voltado para trás, a impressão que se tem é de que o Brasil parecia
ferver.” Ver: MACIEL, op. cit., p. 10.
129
faculdade, esses movimentos agregados foram cruciais para o diálogo e articulação entre
“grande público” e meio universitário.
Tanto o festival quanto o documento a partir do qual se germinou sua ideia –
Levantamento Cultural – fizeram parte do programa de Dinamização Cultural, sob
responsabilidade da Secretaria de Educação e Cultura em convênio com a Fundação Cultural
do Estado.480 O objetivo do programa de Dinamização era promover “um intercâmbio entre
valores artísticos da capital e do interior levando esses últimos a outros palcos e trazendo a
Alagoinhas atrações consagradas do Teatro Castro Alves”.481 Nessa perspectiva de
“interiorização da arte”, o programa não se resumiu somente à produção da 1ª Amostra de
Artes. Passado 1 mês após o 1º Encontro, a cidade foi contemplada com o retorno do
Conjunto de Sopro da UFBA e a participação do Ballet Brasileiro da Bahia, numa tarde de
programação musical, realizada no auditório do CSSS.482 Em seguida, o show de dança ficou
por conta dos trinta componentes do Ballet, tendo se apresentado no salão da FFPA. Todas as
atrações “de alto nível” foram inteiramente gratuitas ao público.483
Além dos festivais, a FUNCEB também produzia oficinas de formação artística na FFPA.
O jornal Tribuna de Alagoinhas anunciou em 1978, sobre um curso fornecido por Manuel
Lopes Pontes, ator que foi colega de Antonio Mário na turma de teatro da ETUFBA, tendo
participado com ele da peça O Boi e o Burro a Caminho de Belém. O curso de Montagem e
Produção de Espetáculo fez parte do projeto de Integração de Entidades de Ensino Superior e
Comunidade, “abrangendo as faculdades e Universidades vinculadas à Secretaria Estadual de
Educação”. Este, por sua vez, foi desenvolvido pela Fundação Cultural do Estado e pelo
Departamento de Ensino Superior. Foi realizado na FFPA.484
Além disso, uma Oficina chamada Chapéu de Palha foi fornecida por Jurema Pena, outra
ex-colega de turma de Antonio Mário. Realizada entre 8 a 29 de abril de 1985, todas as aulas
aconteceram no auditório da FFPA.485 Como material de apoio, ofereceu-se uma apostila
480
Consistia num dos 3 órgãos específicos para questões culturais no Estado, sendo os outros dois, o Conselho
Estadual de Cultura, responsável por formar política cultural do Estado e aprovar o Plano Estadual de Cultura; e
o Instituto do Patrimônio Histórico e Cultural, responsável pela preservação do patrimônio cultural nas cidades
baianas. / A FUNCEB foi criada no ano de fundação da FFPA, em 1972, apesar de seu funcionamento só ser
efetivado em 1974. UCHÔA, op. cit.
481
Jornal Tribuna de Alagoinhas. Ano I. nº 5. 11 nov. 1978, p. 6.
482
Segundo o Jornal, foram “trinta figurantes sob a regência do maestro Schewebel” que “executaram um
repertório que variou de Vila-Lobos a trilhas sonoras de sucessos cinematográficos: My fair Lady, The last time
Y [sic] saw Paris, e outros” - Jornal Tribuna de Alagoinhas. Ano I. nº 5. 11 nov. 1978, p. 6.
483
Segundo o Jornal Tribuna de Alagoinhas, o grupo, reconhecido internacionalmente, já havia se apresentado
na Argentina, México e estava com show marcado nos Estados Unidos (Ibidem).
484
Ibidem, p. 3.
485
Foi patrocinada pela Fundação Cultural e pela Prefeitura da cidade, com responsabilidades divididas.
Solicitação de financiamento para o projeto Chapéu de Palha, assinada por Iraci Gama Santa Luzia e enviada ao
130
sobre a “História do Teatro”. É interessante trazer alguns pontos para serem discutidos sobre
essa história, pois diz respeito ao conteúdo com o qual os artistas em formação entravam em
contato. Foi organizado por Jurema Pena, e tratou-se de um resumo do livro O Que é Teatro,
de Fernando Peixoto.486 O texto mostra a necessidade desse teatro se tornar popular e
acessível às massas, e quando acessível, ser transformado num meio de educar politicamente
o público. A trajetória do texto se encerra com a fase do teatro pós AI-5, até os “dias atuais”
que consistem na década de 1980. Traz Augusto Boal com o teatro do oprimido – já discutido
aqui no 1º capítulo, inclusive figura cujos métodos foram utilizados por Antonio Mário – com
a definição de que o Teatro do Oprimido “deve devolver os meios de produção teatral ao
povo”, seguindo um movimento nacional na busca por um teatro vinculado aos bairros,
487
sindicatos, igrejas, etc. Conclui, portanto, que do AI-5 até 1980, a resistência cultural é
marca desse teatro, apesar “de confusa, contraditória, dilacerante [...] Enfim, um teatro
institucional em crise, buscando alternativas, mas que não se isenta de suas
responsabilidades”.488
Na busca desse teatro engajado com a “interiorização”, e com a proposta não somente
teórica, mas prática, de proporcionar a artistas e não artistas, a vivência do cotidiano popular
da cidade através do teatro, intencionou-se devolver os “meios de produção teatral” ao povo,
parafraseando Boal. Pois, como resultado da oficina, houve pesquisa e representação desse
“povo” sobre a vida na Feira do Pau, “em respeito à memória da cidade”, culminando num
espetáculo teatral que se chamou “Aspectos culturais de Alagoinhas”.489 Da prefeitura,
solicitou-se o apoio material, como a hospedagem de Aricelma Monteiro (técnica em
Assuntos Culturais), e as despesas com aula pública, relacionadas ao som, materiais para
cenário e fotografias da culminância do projeto. À época, os recursos foram solicitados em
ofício ao prefeito Judélio Carmo, por Iraci Gama.490
Como visto, o poder local disponibilizava apoio para as atividades artísticas. As
montagens do Dias Gomes e do Natureza contavam com apoio da prefeitura municipal – o
prefeito de Alagoinhas, Judélio de Souza Carmo. Alagoinhas: 20 de maio de 1985. Documento exposto na sala
Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM.
486
PEIXOTO, Fernando. Teatro e Questão. São Paulo: Editora Hucitec, 1989.
487
Apostila sobre a história do teatro. Responsável: Jurema Penna./Projeto Chapéu de Palha. Governo do Estado
da Bahia/Secretaria de Educação e Cultura/Fundação Cultural do Estado da Bahia – Divisão de Teatro. s/d, p. 10.
Pasta “Teatro” - CENDOMA/FIGAM, p. 9.
488
Ibidem, p. 10.
489
Banner sobre o nascimento do projeto Chapéu de Palha, documento avulso, exposto na sala Iraci Gama.
Alagoinhas: 20 de maio de 1985 - CENDOMA/FIGAM.
490
Solicitação de financiamento para o projeto Chapéu de Palha, assinada por Iraci Gama Santa Luzia e enviada
ao prefeito de Alagoinhas, Judélio de Souza Carmo. Alagoinhas: 20 de maio de 1985. Documento exposto na
sala Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM.
131
que poderia ser desde apoio financeiro, até disponibilização de espaço para ensaios. Mas era
necessária constante intervenção dos artistas e fazedores de cultura para a conquista desse
apoio nos festivais e atividades como a Oficina Chapéu de Palha (1985) e o “Projeto
Alagoinhas 85”. No primeiro festival, em matéria no Tribuna de Alagoinhas a diretora Denise
Maria Gurgel reconhecia que era demasiadamente custoso “promover cultura em outros
municípios”.491 O apoio financeiro do estado e município não cobria todos os gastos
necessários para o público ter acesso gratuito aos espetáculos. Na edição de 1978, se
desprendeu em média Cr$ 20.000 a Cr$ 40.000 com o custeio do deslocamento de cada
atração, da capital ao interior. Os custos com telefonemas para os acertos entre a FUNCEB e a
Secretaria também eram altos. Como mostra o “exemplo prático” no Jornal, durante o mês do
evento foram gastos 6mil cruzeiros em ligações interurbanas, “quatro vezes mais que a
mensalidade normal”.492
Já em 1979, ano da Amostra de Artes Plásticas, dentre as secretarias em Alagoinhas, a
Secretaria de Educação e Cultura teve o 2º maior orçamento aprovado para o ano (Cr$
8.018.000,00), perdendo só para a Secretaria de Serviços Urbanos (Cr$ 16.735.000,00).493
Mas, como o subsídio era destinado às duas esferas, pelo fato de a secretaria ser única, não há
evidências de quanto desse orçamento foi destinado para gerir somente as atividades culturais
desse ano. Além disso, os eventos tinham apoio também do comércio de Alagoinhas. 494 No
IV festival, em 1984, foram solicitados ao prefeito Judélio Carmo (1983 - 1988) 950 mil
cruzeiros, ao todo, para custear as atividades.495 Para se ter uma ideia dos valores na época, o
salário mínimo em novembro de 1984 era de Cr$ 166.560,00.496 Mas, a quantia solicitada
para suprir os custos de 9 dias de festival (com programação totalmente gratuita) ainda era
uma “previsão simplória”. O documento destacou que, mesmo trabalhando “dentro das
possibilidades” e “ procurando utilizar materiais simples que não impliquem em despesas”,
“sempre é indispensável alguns recursos financeiros para certas atividades”.497
À medida que as edições dos festivais empenhavam mais discussões que envolviam
artistas, poder público e população, mais transpareciam as expectativas desses artistas sobre
491
Jornal Tribuna de Alagoinhas. Ano I. nº 5. 11 nov. 1978, p. 6.
492
Ibidem.
493
Ibidem.
494
Movimento que acontece desde a década de 1960 com o Grupo Dias Gomes – Programa de apresentação da
peça Irene realizada pelo grupo Dias Gomes na década de 1960. Documento avulso. s/d. Pasta “Antonio Mário”,
CENDOMA/FIGAM.
495
Projeto referente ao 4º Encontro Cultural de Alagoinhas. Documento avulso, 1984, Cendoma – FIGAM.
496
Decreto nº 90301, de 1984. Site AUDTEC – Gestão Contábil. Disponível em:
https://audtecgestao.com.br/capa.asp?infoid=1336 acesso em 01 ago 2021.
497
Projeto referente ao 4º Encontro Cultural de Alagoinhas. Documento avulso, 1984, Cendoma – FIGAM.
132
498
A matéria gira em torno das eleições para deputado estadual (poder legislativo). Esperava-se eleger ao menos
2, através dos 30mil eleitores em Alagoinhas. Em entrevista na coluna “Os candidatos da cidade e as eleições”,
os dois candidatos que tiveram voz no jornal foram José Azevedo (MDB) e Jairo Azi (ARENA). Jornal Tribuna
de Alagoinhas. Ano I. nº 5. 11 nov. 1978, p. 2.
499
SILVA, Denise Pereira. João Augusto e o Teatro Livre da Bahia: Artistas, intelectuais e o Estado na Bahia
nos anos 1970. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011. Disponível
em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300804084_ARQUIVO_artigoanpuhusp2011.pdf
Acesso em 1 de ago 2021, p. 4.
500
A ideia de ampliar a ação do governo nos organismos culturais gerou novos campos de atuação, consolidados
na implantação do CONCINE (Conselho Nacional de Cinema), reformulação da EMBRAFILME (Empresa
Brasileira de Filmes), expansão da ação do SNT (Serviço Nacional do Teatro) e criação da FUNARTE
(Fundação Nacional de Arte). MICELLI apud SILVA (Idem, ibidem, p. 4).
133
501
SCHWARZ apud SILVA (Idem, ibidem, p. 5).
502
Denise Pereira Silva afirma que na década de 1970 existiu um movimento por parte do Estado, de “tentativa
de cooptação dos intelectuais” (SILVA, Idem, ibidem, p. 7).
503
O projeto Comeia também fez parte dessa dinamização. Tanto ele quanto o Chapéu de Palha foram realizados
entre 1983 e 1986. Ver: BORGES, Rosa; ALMEIDA, Isabela Santos de. A correspondência nos Acervos de João
Augusto e Jurema Pena. Revista Digital do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da
Universidade Estadual de Feira de Santana Feira de Santana, v. 10, n. 1, 2019
http://periodicos.uefs.br/index.php/leguaEmeia, Disponível em HTTP://dx.doi.org/10.13102/lm.v10il.3658
Acesso em 1 ago 2021, p 4.
504
UCHÔA, op. cit., p. 2.
505
“Como setores produtivos prioritários foram considerados o agrícola, o de mineração e o turismo [...]. A
expansão e melhoramento [...] dos serviços de turismo que representam, aliás, destinações ecológicas, históricas
e culturais” Relatório de Governo, 1973, p. 13 (Idem, ibidem, p. 11).
134
506
“Nessa época, a relação entre cultura e turismo, que foi concretizada anos depois com a criação da Secretaria
de Cultura e Turismo na Bahia, dava os passos iniciais.” (Idem, ibidem, p. 11).
507
Diretrizes para a Ação Governamental, 1975. (Idem, ibidem, p. 5).
508
Idem, ibidem, p. 12.
509
Idem, ibidem, p. 13.
510
Programação referente ao IV Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso, 1984, exposto na sala
Iracy Gama - CENDOMA/FIGAM.
511
“Inicialmente a Fundação possuía a Diretoria Executiva e o Conselho Deliberativo, além delas foram
incorporadas à sua estrutura as bibliotecas, os museus e o Teatro Castro Alves. O primeiro diretor-executivo da
Fundação, de 22 de janeiro a 16 de junho de 1974, foi o professor Ramakrishna Bagavan dos Santos. No governo
de Roberto Santos, entre 1975 e 1978, foram criados o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC), a
Fundação Cultural e o Conselho Estadual de Cultura.” “Em 1978 foi aprovada a lei nº 3.660 atribuindo à
Fundação o poder de tombar bens culturais em nível estadual, passo indispensável para a atuação do órgão.”
UCHÔA, op. cit., p. 9. / SILVA, op. cit., p. 6.
135
A “deixa”, no teatro, significa “tocar para a vez do outro”. Por isso, as “deixas” de
Antonio Mário no movimento cultural, aqui, são representadas pelos seus posicionamentos
através da escrita, em textos que ele escreveu nesse período pós Festival de 1984. 515 Nesse
momento, o movimento cultural crescia e se somava à mobilização dos estudantes
secundaristas. Assim, acirravam-se suas reivindicações ao governo (tanto municipal, quanto
estadual) por maior atenção às necessidades dos artistas. Antonio Mário se insere nesse
cenário, trazendo suas “deixas”, nesse/sobre o contexto, e a partir das quais notam-se outras
opiniões reflexivas e incisivas do diretor, não só sobre arte, cultura, mas sobre educação e
suas respectivas questões políticas.
Foi possível perceber no decorrer desse trabalho que Antonio Mário não tinha postura
combativa diante dos governos militares. Prezava pela sua integração estratégica em diversos
meios, instituições e movimentos que não tinham relação com enfrentamentos e mantinha
relações com pessoas de âmbitos os mais diversos. Inclusive, pela manutenção de suas boas
referências sociais, a partir de 1980 ingressou na maçonaria, tendo sido obreiro da Loja
512
Resolução de 1972. MELO apud SILVA. In.: SILVA, op. cit.
513
Até a atualidade, ano de 2020, o evento permanece com os mesmo objetivos e mesmo formato, sendo
chamado de Semana de Arte do Litoral Norte e Agreste Baiano – Alagoinhas, realizado anualmente e com
temáticas variadas.
514
UCHÔA, op. cit., p. 4.
515
Compilado de textos que foram escritos e (alguns) publicados na Revista Tempo do IBGE e que estão
compilados no material aqui já mencionado, sobre Alagoinhas.
136
516
O banner da exposição sobre a vida de Antonio Mário, presente na FIGAM afirma que ele chegou ao cargo de
venerável. Mas essa informação não pôde ser verificada na própria Loja Maçônica por ter estado fechada, devido
às intempéries do momento pandêmico de 2021. A loja foi Fundada em 5 de outubro de 1922.
517
As fontes referentes às palestras são, respectivamente: fotografia impressa no banner da exposição sobre a
vida de Antonio Mário, CENDOMA/FIGAM. Autor da foto, desconhecido. Acompanha a seguinte legenda:
“Antonio Mário realizando palestra na Loja Maçônica Fraternidade Catuense na cidade de Catu em 4.07.1987”.
Texto referente à “Palestra pública proferida pelo autor no Capítulo Rosa Cruz de Alagoinhas” escrito por
Antonio Mário, 1991. Acervo pessoal de Lívia Santarém.
518
Programação referente ao IV Encontro de Cultura de Alagoinhas. Documento avulso, 1984, exposto na sala
Iraci Gama - CENDOMA/FIGAM.
137
havia entrado com a verba, mas, desde 1980, “nada de concreto se realizou nesses 4 anos”. 519
Havia uma dose de otimismo sobre algo que, apesar de aparentemente encaminhado, ainda
não estava efetivado. De fato, mesmo com a atmosfera positiva de comemoração que
envolveu o festival, o Centro ainda levaria mais alguns anos para ser, enfim, inaugurado.
Essa dificuldade de acesso a aparelhos de cultura que fornecessem estrutura digna aos
artistas motivou um texto escrito por Antonio Mário. Chamado “Direita Vamos Ver” no
artigo Alagoinhas Presente nas Mudanças (que provavelmente foi publicado na revista
Tempo), ele lamentou o fato de a cidade não acompanhar o ritmo de outras do interior como
Feira de Santana “a apenas 108 quilômetros de Salvador [...] com uma vida artístico-cultural
invejável”. Outra cidade também mencionada fora Ilhéus, que ainda dispunha de seu teatro
histórico, o Teatro Municipal (Cine Teatro Ilhéus, inaugurado em 1932) e que se
assemelhava, em estrutura, ao Cine Teatro Popular em Alagoinhas, que, depois de muita
espera por restauração, no ano de escrita de Antonio Mário, já havia sido demolido.
Em tom visivelmente indignado:
Ah, Ilhéus, com seu Teatro Municipal onde, há poucos dias, companhia
Teatral formada dos mais expressivos valores do teatro nacional apresentou
a peça de Lauro Cesar Muniz – que nós daqui da nossa cidadezinha só
conhecemos de nome por causa das novelas de televisão, lembramos a
recente “Roda de Fogo” – a peça em referência é “Direita Volver”, trazendo
no elenco nada menos que Mauro Mendonça, Rosamaria Murtinho, Ana
Maria Nascimento e Silva, Élcio Romar, Eliana Martins e Álvaro Gomes,
sob direção de Roberto Frota. Alagoinhenses, se quiserem ver a peça é só
darem a volta à direita e irem ao Tetro Maria Bethania neste princípio de
mês, pois para cá ela não virá. Que pretensão!520
519
No projeto tinham discriminado, a justificativa, objetivos, programação do evento e cotação de valores para
solicitar patrocínio. Ibidem.
520
Texto “Direita Vamos Ver”, escrito por Antonio Mário, publicado na Revista Tempo, nº 2, maio de 1986.
Acervo pessoal de Lívia Santarém.
138
que, ao que parece, não participaram dos festivais mencionados, mas surgiram depois, como o
Verluzir, de 1985, que tinha como um de seus dirigentes Pitágoras Fernandes; e o Grupo e
Teatro Infantil Retrato, surgido em 1986 e dirigido por Josenice Miranda da Cruz.521
O grupo Meninos da Terra, por exemplo, em 10 de novembro de 1980, praticamente 1
mês depois de participar do 3º Festival com o espetáculo “O Próximo”, já buscava discutir
os “trâmites legais para que o grupo adquira personalidade jurídica” e consequentemente,
obter benefícios, como receber “dotações orçamentárias” 522. Pelo fato de o grupo ser dirigido
e ter como secretário o advogado Antonio Torres, esses “trâmites” devem ter sido facilitados,
visto que foi ele quem orientou sobre todo o processo.523 A dinâmica proporcionada pelos
festivais influenciou diretamente no impulsionamento da cena teatral na cidade ao longo dos
anos.
Como mencionado, a luta dos artistas foi tomando corpo em conjunto com a mobilização
estudantil na cidade. Grêmios escolares, como o grêmio do Polivante, formado nesse ano de
1984, eram representados pela União Municipal dos Estudantes Secundaristas de Alagoinhas
– UMESA. A justificativa da formação da união se dá por resgatar “a imagem dos
secundaristas de Alagoinhas, sempre presentes à movimentação da comunidade”, ou seja,
agregava-se à cultura pela consciência de que as demandas estudantis também deveriam estar
ligadas às demais pautas sociais, fora dos muros das escolas. Reivindicava uma atuação ativa
nas novas elaborações do Ministério da Educação e Cultura e dentre os outros objetivos, ou
seja, reivindicar-se protagonista nesse processo. “De um modo geral, nas escolas brasileiras,
os alunos se sentem alheios ao seu próprio local de aprendizagem, pois não participam da vida
escolar, não têm espaço para discutir, não tem liberdade, enfim”.524
A cultura, pela projeção que tomava na cidade, tornava-se pauta de reivindicação dos
estudantes, principalmente quando se tratando da expectativa criada em torno da inauguração
do Centro de Cultura. Por volta de 1985 o Grêmio do Colégio Dínamo se referiu aos
processos no âmbito cultural como uma “preguiça administrativa” que “reina” na cidade,
521
Documento encaminhado pelos Organizadores do Projeto Cultural de Alagoinhas/85 aos dirigentes da
COPENER Alagoinhas, solicitando recebimento de quantia (financiamento). 24 out. 1985. / Convite do Grupo
Retrato para o 2º ano de existência (sem destinatário). 1987. Ambos os documentos se encontram na Pasta de
Teatro - CENDOMA/FIGAM.
522
Ata de reunião do grupo de teatro “Meninos da Terra”. 10 de novembro de 1980. Pasta “Teatro”.
CENDOMA/FIGAM.
523
Dentre os presentes na reunião, estavam: Roque Paulo Correia de Souza (presidente), Antonio Barreto
(secretário); Graça Maria Ferreira Sacramento (tesoureira); Francisco José Santos Alves, “Chicão”; Jorge Pereira
de Oliveira, Edson Reis, Antonio Jose Dantas Fontes Filho; Iraci Gama Santa Luzia, Tereza Maria Barreto
Paolilo – com ausência justificada de Aluisio Rodrigues. Ata de reunião do grupo de teatro “Meninos da Terra”.
10 de novembro de 1980. Pasta “Teatro”. CENDOMA/FIGAM.
524
Panfleto da UMESA. Sem data (de acordo com cálculos aproximados, de, aproximadamente, 1985). Pasta
“Projetos Culturais” - CENDOMA/FIGAM.
139
“Afinal, para não fugir à regra nacional, a cultura em Alagoinhas está relegada a um plano pra
lá de secundário”.525 O que se pode observar do posicionamento dos artistas sobre o Centro de
Cultura é que o crescimento e engajamento da classe era acompanhado pelo governo às duras
penas, tanto da esfera municipal, quanto da estadual. E por isso, o informativo finalizou o
texto convocando todos os estudantes alagoinhenses e artistas a “fazer algo em prol da nossa
cultura” pois “embora na visão de alguns, haja perspectivas de melhores dias para a cultura
alagoinhense, precisamos injetar-lhe uma vitamina de ânimo através dos nossos próprios
esforços”. 526
O descaso era também percebido e denunciado pelos estudantes sobre a esfera
educacional, quando da tratativa do poder local na indicação de profissionais da Cultura e
Educação, considerados por eles como “sistema injusto de escolha de cargos”:
525
Informativo do Grêmio Livre Sintonia veiculado pelo movimento estudantil organizado de Alagoinhas. s/d.
Pasta “Projetos Culturais” - CENDOMA/FIGAM.
526
Ibidem.
527
Ibidem.
140
Por esses motivos, se colocou abertamente em apoio às greves desses professores que,
em sua maioria, não ganha sequer um salário mínimo por mês, numa escola isenta de
impostos e instalada em prédio próprio, com um “corpo docente que não atinge a duas dúzias
de mestres” e concluiu: “Lucros também assim, é demais também”.530 A Alagoinhas sob a
representação escrita de Antonio Mário era a cidade que, diante de grandes acontecimentos,
“jamais se fez omissa”, mas, sob outros aspectos, era a cidade “pacata e em tudo
conformada”.
A questão relacionada à indicação antidemocrática para cargos públicos foi tema que
se apresentou algumas vezes nos informativos do movimento estudantil e nos textos de
Antonio Mário. Da perspectiva dos estudantes representados pela UMESA, a questão
relacionada às indicações injustas poderia ser sanada de forma mais democrática aderindo às
eleições diretas pra diretores desde o 1º até o 3º grau. Dentre os outros objetivos propostos,
incluíam-se “Ensino Público gratuito e 13% para a educação”.531 Sobre as eleições diretas
para diretores, Antonio Mário discorreu sua opinião acerca do assunto. Mas, na direção
528
Texto “O ensino faz parede”, escrito por Antonio Mário, publicado na Revista Tempo, nº 2, maio de 1986.
Acervo pessoal de Lívia Santarém.
529
Ibidem.
530
Ibidem.
531
Panfleto da UMESA. Sem data (de acordo com cálculos aproximados, de, aproximadamente, 1985). Pasta
“Projetos Culturais” - CENDOMA/FIGAM.
141
é preciso não esquecer que a escola é uma unidade técnica, no máximo, uma
empresa de prestação de serviço educacional, nunca jamais uma célula
política, é preciso igualmente admitir que o diretor e/ou vice, no caso da
escola publica, é um servidor público, um funcionário do Estado e como tal
um ocupante de cargo de confiança.532
Ou seja, se tal incapacidade também poderia ser característica daqueles eleitos por
eleições diretas, em sua opinião, o que dificultaria o modo em lidar com um coordenador dito
“incapaz, inoperante ou mesmo corrupto” seria uma falta de “hierarquia funcional”: “Onde
[fica] a obediência devida ao titular da pasta da Educação? Que condições legais terá o
secretário da Educação para demitir do cargo o diretor que se venha mostrar incapaz,
inoperante, ou mesmo corrupto?”. E finaliza frisando que a qualificação do profissional é
indispensável e tão importante quanto a forma como a pessoa foi nomeada, pois de nada
adianta mudar o método se as mesmas incapacidades se repetissem nos próximos nomeados:
“o certo é demití-los, mas substituí-los por outros iguais ou piores – com licença da má
palavra – é crassa burrice”.533
Ao introduzir o problema das Diretas já Para Diretores, justificou as questões relacionadas
a certas mudanças na área da educação, alertando que
532
Texto “Diretas já para Diretores”, escrito por Antonio Mário, publicado na Revista Tempo, nº 2, maio de
1986. Acervo pessoal de Lívia Santarém.
533
Texto “Diretas já para Diretores”, escrito por Antonio Mário, publicado na Revista Tempo, nº 2, maio de
1986. Acervo pessoal de Lívia Santarém.
534
Ibidem.
142
Nessa passagem, destilou uma breve reflexão sobre outra mudança no seio do próprio
sistema de ensino:
O que levou a “educação ao desastre”, portanto, diz respeito ao acordo entre o MEC e a
United States Agency for International Development (USAID) que pretendia aproximar o
Brasil dos Estados Unidos em torno de uma “colaboração técnica” pela educação. Por ser um
fruto e consolidação da influência norte-americana sobre a educação brasileira, críticos do
acordo ressaltaram o fato de que essa “cópia dos modelos norte-americanos” causava a
“subordinação do ensino aos interesses imediatos da produção, a ênfase na técnica em
detrimento das humanidades e a eliminação da gratuidade nas universidades oficiais”. 536 Foi
praticamente sobre isso que Antonio Mário se referiu ao dizer que não se atingiu o esperado
com tal profissionalização técnica, esta que, em tese, proporcionaria “mão-de-obra
especializada”. Segundo ele, eis o resultado: nem o fez, nem possibilitou ao alunado o acesso
ao “eruditismo” proporcionado pelo sistema francês. 537
Percebe-se a crítica voltada para as conseqüências do sistema educacional na ditadura,
mas ele não se direcionou, abertamente, ao governo, diferente do movimento estudantil que
desde 1985 se punha contra as contradições na educação, “herança do golpe de 1964”:
535
Ibidem.
536
CUNHA, Luís Antônio. Acordo Mec-Usaid. S/d. Site FGV CPDOC. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/acordo-mec-usaid Acesso em: 4 fev. De 2022.
537
Texto “Diretas já para Diretores”, escrito por Antonio Mário, publicado na Revista Tempo, nº 2, maio de
1986. Acervo pessoal de Lívia Santarém.
538
Panfleto da UMESA. Sem data (de acordo com cálculos aproximados, de, aproximadamente, 1985). Pasta
“Projetos Culturais” - CENDOMA/FIGAM.
143
No mesmo ano em que Antonio Mário tecia suas críticas ao sistema de ensino, sem
criticar abertamente a ditadura, a UMESA, num panfleto de manifestação pró-eleições diretas
para presidente – Diretas 88 – abertamente se autodeclarava “presente nas lutas pelo avanço
da sociedade e pela liberdade do povo operário em geral” e mantinha a luta por uma educação
pública gratuita. O movimento aconteceu do dia 7 de setembro, contou com participação
artística de uma banda de rock chamada “AI-5” e foi coordenado por Hugo Leonardo,
presidente do centro cívico do Colégio Dínamo. O líder do movimento era Joildo de Jesus
Andrade.539
Percebe-se que os argumentos de Antonio Mário não incitavam mobilizações, não
consistiam numa escrita de agitação: ele trazia situações pontuais, tecia a crítica e, ainda que
com linguagem irônica, justificava-as com o argumento de sugerir reflexões para solução da
situação apresentada. Retoma-se, por exemplo, o texto “Alagoinhas presente nas mudanças”
introduzido no início desse tópico. Atento aos cargos para assumir os aparelhos de cultura do
estado, Antonio Mário observou que os que seriam nomeados a gerir o Centro de Cultura de
Alagoinhas, seguindo um “figurino à moda antiga”, seriam “’afilhados’” de “senhores
parlamentares”.540 E como de costume nas conclusões de seus textos, encerra com um apelo
jocoso: “que sejam esses os indicados tudo bem. Mas pelo amor de Deus, que sejam eles
capazes, e mais que isso, sejam entendidos no que toque à cultura e arte e que estejam
entrosados no meio artístico e cultural local”.541
Mas quando da nomeação de um “alagoinhense”,542 artista, e, portanto, entendedor da área
cultural, para presidente provisório da FUNCEB – Jose Carlos Capinã – demonstrou certo
entusiasmo, ainda que a instituição não tenha lhe causado mesmo efeito: “esperamos que o
menino-prodígio tenha coração bastante para acolher, sem esmorecimentos, as ‘paixões’ que
lhe esperam no espinhoso cargo, haja visto[sic] o débito de Cz$ 23 milhões, herança dos
gestores de antes”.543 Talvez ao saber das problemáticas relacionadas à FUNCEB, como
“débitos com a caixa econômica, atrasos no pagamento dos funcionários e ainda os
recalcitrantes ‘grupos de cupins’ assim chamados aqueles autores e elaborados dos desmandos
539
Documento da Polícia Militar informando sobre a aprensão do panfleto da UMESA, sobre manifestação pró
eleição direta para presidente da República. 5 out 1987. Arquivo Nacional. Comissão da Verdade. Disponível
em: <https://sian.an.gov.br/sianex/consulta/login.asp> Acesso em: 31 jan. 2021.
540
Texto “Alagoinhas presente nas mudanças”, escrito por Antonio Mário, 1987. Acervo pessoal de Lívia
Santarém.
541
Ibidem.
542
Antonio Mario o considerou alagoinhense, apesar de o artista ter nascido na cidade de Esplanada-BA.
543
Texto “Alagoinhas presente nas mudanças”, escrito por Antonio Mário, 1987. Acervo pessoal de Lívia
Santarém.
144
e desvios na Fundação Cultural”,544 não tenha se surpreendido com a demora nos processos
para construção e inauguração do CCA.
Ademais, permanecer à espera de um aparelho apropriado e funcionando devidamente
levou os artistas a tomarem providências quanto a um local de encontro e produção constante.
Em 10 de outubro de 1985, artistas, professores e estudantes da FFPA fundaram a Casa da
Cultura de Alagoinhas (CASCA), resultado da consolidação do Movimento Cultural de
Alagoinhas. A entidade era composta por presidência, no nome de Iraci Gama, vice-
presidência com Antonio José Dantas Fontes Filho e outros 10 cargos de vice-presidência:
sob “a responsabilidade de coordenação de atividades até então realizadas pelo esforço
pessoal de alguns poucos abnegados”.545 E apesar de no compilado de textos de Antonio
Mário, ele não fazer menção à Casca, ocupou o cargo de vice-presidente de Teatro. No dia da
inauguração, o grupo de Teatro Verluzir apresentou o espetáculo “Torturas de um Coração ou
Em Boca Fechada não Entra. Mosquito!” de Ariano Suassuna e dirigido pelo próprio grupo,
sob supervisão de Lazaro Zacariades, na FFPA.546 Em 1986, funcionava em sede provisória
no bairro Praça Kennedy, 282-A. Para comemorar a instalação no local, a festa foi
programada para acontecer no dia 26 de abril de 1986, com atividades musicais e “projeção
do filme produzido sobre as atividades de encerramento do Projeto Cultural Alagoinhas 85.547
Os próprios estudantes do grêmio perceberam a importância da CASCA para manter os
artistas num vínculo pelas atividades culturais:
544
Ibidem.
545
Documento veiculado com propósito de oficializar o estabelecimento da Casa da Cultura de Alagoinhas e
divulgar os empossados responsáveis pela entidade. Datado de fevereiro de 1986. Exposto na sala Iracy Gama -
CENDOMA/FIGAM.
546
Programa de apresentação da peça “Torturas de um Coração ou Em Boca Fechada não Entra Mosquito!” de
Ariano Suassuna, realizada pelo grupo Verluzir em 29 e 30 de nov. de 1985. Documento avulso. s/d. Pasta
“Teatro”, CENDOMA/FIGAM.
547
Convite da Casa da Cultura de Alagoinhas (sem destinatário) para a sua festa de instalação. Documento
exposto em banner na sala Iracy Gama - CENDOMA/FIGAM.
548
Informativo do Grêmio Livre Sintonia veiculado pelo movimento estudantil organizado de Alagoinhas. s/d.
Pasta “Projetos Culturais” - CENDOMA/FIGAM.
145
A CASCA atravessou e foi atravessada por todo processo de luta pelo CCA. Apesar de ser
essencial para articular os artistas e estudantes nesse objetivo em prol do interesse pelo centro
de cultura como “patrimônio da cidade”, não serviu passivamente como um espaço provisório
que seria substituído pelo CCA automaticamente.549 Foi reinaugurada em 1993, quando esse
já estava efetivamente funcionando. Apesar das expectativas, manteve-se ativa no
mencionado espaço por apenas mais um ano, tendo sido desativada em 1994.550
Da CASCA germinaram eventos, movimentos e outros projetos de expansão de aparatos
culturais na cidade, como a Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer em 1988, – “órgão oficial
da prefeitura para se responsabilizar pelas questões culturais do município”–; Criação da Sala
de leitura “como núcleo de reativação da Biblioteca Pública Municipal” (1987), e o projeto
Alagoinhas 85.551
Depois de muitos obstáculos relacionados a burocracias, ou como sugerem as fontes aqui
citadas, “estagnação da cultura”, “cultura em estado de preguiça”, a luta pelo Centro de
Cultura deu resultados efetivos e os artistas em 1984 viram os primeiros sinais de que
finalmente seria construído, com o projeto que havia sido elaborado por Litho Silva.552 Nesse
ano, a ideia ainda girava em torno de construir um centro na Igreja Inacabada de Alagoinhas
Velha. Portanto, Foi enviado ao governador Antonio Carlos Magalhães a ideia desse projeto
com um abaixo-assinado da “comunidade”, solicitando o tombamento da Igreja Inacabada e
restauração para implantar o Centro lá, além de medidas de preservação de outras estruturas,
como casa e acervo do curtume Santo Antonio desativado desde 1957, a capela do distrito de
Boa União (construída em 1854).553
A resposta do governo chegou aos artistas de Alagoinhas, confirmando o financiamento
para a construção do Centro de Cultura, aprovado pela Secretaria de Planejamento da
Presidência da Republica - SEPLAN
549
Ofício encaminhado à coordenadora do Centro de Cultura de Alagoinhas, Jocelita Correa, em 13 de fevereiro
de 2008, como resposta à solicitação do histórico deste. Documento exposto na sala Iracy Gama -
CENDOMA/FIGAM, p.2.
550
Ibidem.
551
Ibidem, p.2.
552
Ibidem.
553
Ibidem, p.2.
146
554
Ibidem, p.3.
555
Ibidem, p.2.
556
Ibidem, p.2.
557
Segundo as análises da prefeitura junto a Funceb (Ibidem, p.3).
558
Ibidem, p.3
147
finalização do projeto Alagoinhas 85, o grupo Pro-Memória elaborou novo abaixo assinado
sugerindo ao estado, o novo local para a construção.559
Finalmente, 1 ano depois, ela se inicia. Construído pela Interurb e Fundação Cultural,
distinguia-se dos outros centros por estar ao lado de outro patrimônio histórico que também
recebia financiamento para restauração – o Matadouro, “obra de característica neoclássica que
contrasta e embeleza ainda mais o conjunto de equipamentos destinados à cultura
alagoinhense” uma vez que o projeto arquitetônico do centro segue a estética moderna.560
Através da CASCA, elaborou-se um documento solicitando o nome de Antonio Fontes,
vice-presidente da entidade, para diretor do Centro Cultural de Alagoinhas.561 Ao que parece,
a princípio o pedido foi negado, priorizando-se interesses políticos por parte do governo
situação. No documento, expuseram-se as vantagens em nomear Antonio fontes, inclusive por
ter sido vereador em 1973 e, segundo o documento, “proferia discursos contundentes no
combate à ditadura em então”, o que leva a crer que esse poderia ser um critério considerado
pela gestão atual. Diretor do grupo de teatro Verluzir, e advogado, Antonio Fontes também
atuou ao lado de Antonio Mário no Pró-Memória, nos recitais de poesia dos encontros
culturais, mas, em um caminho diferente do diretor, Fontes foi membro fundador e atuante do
MNUA.
A reivindicação do nome de Fontes para diretor do Centro pode ter mobilizado o texto
“Alagoinhas presente nas mudanças” de Antonio Mário, em que ele fez um comentário
irônico sobre os “afilhados” que tomariam posse do centro sem qualquer qualificação para
tal.562 Pois, além de ambos os documentos serem de 1987, diante da fala do político que
negou o pedido dos artistas, “‘vou ficar com o centro de cultura para Alfredinho porque ele
desde que aqui chegou me acompanha no trabalho político’”, vê-se que a indicação não
respeitava o critério de ser qualificado para o cargo. A “resposta” proferida pelos artistas do
movimento, diante dessa situação foi: “Quer dizer: a competência e o respeito pela
comunidade não contam? Isso é triste e nós protestamos”.563
559
Ibidem, p.3
560
Ibidem, p.3. Segundo o banner exposto na sala iraci Gama na FIGAM, o Matadouro foi restaurado em 1987
pela Secretaria de Cultura do Estado da Bahia para receber o Memorial da Cidade.
561
Documento elaborado pela “comunidade de artistas de Alagoinhas” para o Govenador Waldir Pires,
solicitando a nomeação de Antonio Fontes para diretoria do Centro de Cultura de Alagoinhas. 23 de março de
1987. Exposto em banner na sala Iraci Gama – CENDOMA/FIGAM.
562
Texto “Alagoinhas presente nas mudanças”, escrito por Antonio Mário, 1987. Acervo pessoal de Lívia
Santarém.
563
Documento avulso elaborado pela Casa da Cultura de Alagoinhas. 10/11 de abril de 1987. “Pasta Produção
Cultural” - CENDOMA/FIGAM.
148
Em 1987, já com diretor nomeado, aparentemente, nada faltava para que o Centro de
Cultura fosse inaugurado. Alagoinhas, por fim, teria uma estrutura própria, sobretudo, “para
apresentação de espetáculos cênicos”, ou seja, o teatro que Antonio Mário, linhas atrás,
lamentou não haver. No entanto, ao recapitular a narrativa, vê-se que essa queixa do diretor
foi feita em 1987, e a construção do Centro de Cultura iniciou em 1986. Isso significa que,
mesmo depois de construído, houve outro hiato. Pelo menos é o que observa o próprio
Antonio Mário ao denunciar que havia “seissentos centros de cultura espalhados, inacabados e
abandonados pelo interior do Estado, num eloqüente atestado da malversação do dinheiro
público”. 564
Dentre esses, 7 que foram construídos com financiamento da Caixa Econômica
Federal, nas cidades de
Ou seja, mais burocracias surgiam à vista. O sonho ainda não estava efetivado.
De acordo com o documento sobre o histórico do centro de cultura, o jornal Interurb
assumiu que faltava dinheiro para conclusão das obras.
Uma solução imediata seria solicitar recursos da prefeitura o que, segundo Olivia
Barradas, não era justo, pois essas prefeituras já passavam por maiores dificuldades com
564
Texto “Alagoinhas presente nas mudanças”, escrito por Antonio Mário, 1987. Acervo pessoal de Lívia
Santarém.
565
Ibidem.
566
Ofício encaminhado à coordenadora do Centro de Cultura de Alagoinhas, Jocelita Correa, em 13 de fevereiro
de 2008, como resposta à solicitação do histórico deste. Documento exposto na sala Iracy Gama -
CENDOMA/FIGAM, p.3.
149
orçamento. Por fim, no mesmo ano em que Antonio Mário escrevia, aparentemente,
desesperançoso, meses depois a inauguração aconteceu.567
É interessante compreender como a necessidade de um espaço para os artistas foi
mobilizada e agregada ao resgate da memória e história da cidade: ao se reconhecer que
constituir o Centro na “ruína” da Igreja Inacabada não “se preservaria ruína – intenção maior
do Grupo [Pró-Memória]”, a ideia foi deixada de lado. Desse modo, naquele ano os artistas
comemoraram duas conquistas: um espaço específico destinado o Centro, e o projeto da
preservação de patrimônios históricos da cidade como a Igreja Antiga e o Matadouro.568
O Centro de Cultura foi um símbolo físico resultante do movimento cultural da cidade. E
Antonio Mário “deu suas deixas” nesse cenário, inserido e mergulhado através de suas
observações, da escrita e das pesquisas que empreendeu. O circuito cultural nascido na década
de 1970 conformou um cenário social e político de transformações irreversíveis para a cidade.
O que se percebe é a integração entre a produção da capital e dos interiores, as possibilidades
de vivência artística não só para alunos da FFPA, mas para a cidade. Esse movimento em que
o público que assiste torna-se público que produz, gerou novos artistas no município,
incentivados pelos festivais, pelo projeto de levantamento cadastral, pelas oficinas e
formações alternativas. E esse crescimento de artistas gerou demanda para a expansão de
dispositivos culturais na cidade.
Após o horizonte de reabertura se delinear, as políticas culturais se configuraram, por um
lado, como estratégia de controle do que se produzia e do que ia público. Mas, ainda assim,
foram inegáveis os ganhos relacionados à formação de plateia e incentivo à produção cultural.
Foi possível perceber também como as políticas públicas para cultura estavam chegando a
Alagoinhas, e como o movimento dos artistas foi, ao longo dos anos, sendo progressivamente
atravessado por questões políticas como a luta do Movimento Negro Unificado refletida num
movimento próprio na cidade, os seminários de discussão sobre arte e mercado capitalista, a
luta do movimento estudantil da década de 1980 que também se incorporou à luta dos artistas.
A história da Alagoinhas que pulsa nesse circuito tanto foi, traduzindo em termos teatrais,
567
Em texto escrito por Antonio Mário ele menciona o governo de Waldir Pires que aconteceu de 1987 a 1989, se
referindo ao seu tempo atual. Então, ele estava falando em 1987, dizendo que o CCA ainda não tinha sido
inaugurado, mesmo com todos os funcionários já trabalhando. Entretanto, num documento sobre o histórico do
CCA, a data de inauguração consta como 1986, com o “6” riscado à mão sobre outro numero que provavelmente
era “7”. Não se sabe se foi erro, ou algum interesse em afirmar que foi, efetivamente, inaugurado, 1 ano antes.
568
O tombamento da Igreja só foi decretado mais tarde, em 2011, pela lei municipal nº 2101/2011. Ver:
ALAGOINHAS. Lei nº 2101/2011 de fevereiro de 2016. Dispõe sobre o tombamento da igreja inacabada de
Alagoinhas velha, pelo seu valor histórico e cultural, e dá outras providências. Disponível em:
<https://leismunicipais.com.br/a1/ba/a/alagoinhas/lei-ordinaria/2011/210/2101/lei-ordinaria-n-2101-2011-
dispoe-sobre-o-tombamento-da-igreja-inacabada-de-alagoinhas-velha-pelo-seu-valor-historico-e-cultural-e-da-
outras-providencias > Acesso em 1 fev 2022.
150
interpretada e representada por Antonio Mário, quanto captada por ele num olhar por meio do
qual cultura, política e sociedade se encontram em perspectiva historiográfica. É com essa
multiplicidade de sentidos e representações que se pode identificar na figura de Antonio
Mário, um sujeito que construiu teias em lugares táticos na formação do circuito cultural em
Alagoinhas.
151
Considerações Finais
569
Jornal da Bahia, 2 de jul. 1979.
152
Pode ter gerado diversos desafetos, mas, da perspectiva de quem trabalha na boa
manutenção de sua imagem, não deixou rastros negativos sobre si, o que nos remete ao trecho
da música, “Fique de olho na vida/ O sinal vai abrir”.570 Há uma convergência dessa “boa
imagem” entre os contemporâneos e que já fora cristalizada como o “baluarte da cultura”. Tal
representação, no entanto, não está dissociada de um romantismo ligado à chamada
“efervescência cultural” dos anos 1980 por meio do qual os depoentes contemporâneos se
referiram. Pois não se deve desconsiderar que é das incoerências do indivíduo que suscitam as
mudanças sociais.571
Entretanto, abordando outro sentido para as “incoerências”, talvez fiquem as dúvidas
sobre o porquê de um homem negro, que se apresentava minimamente engajado com a
sociedade, não ter se posicionado nos anos de militância do MNUA. Talvez porque, mais do
que um cidadão não negro, estava “no paradeiro dessa gente”. Fica também a reflexão sobre
as incoerências do homem de comportamento libertário nas artes, mas para que existisse o seu
“fator múltiplo” fora de casa, consequentemente, existiam as esposas com quem ele esteve ao
longo dessa trajetória, dentro de casa, na manutenção do lar.
Mas é a narrativa que constrói o sentido para a história de uma vida, e as incoerências
nem sempre precisam sem sanadas, resolvidas, como quem resolve uma questão matemática.
Do horizonte de quem coleta, “manuseia” e constrói narrativas com os dados, a analogia
sugerida pelo quadro pintado por Anthonio Lins – além da música de Sérgio Sampaio – é bem
vinda nessa análise, pois nele, Antonio Mário caminha do ponto mais alto do município, o
Alto do Capinã, como personagem que se propôs a observar a cidade em perspectiva
panorâmica, assim que aqui chegou.
“Observou” as transformações dessa urbe, desde o ano crucial de seu
desenvolvimento, na década de 1960. Mas não de forma passiva, nela se inseriu e criou um
vínculo que lhe rendeu o titulo de cidadão alagoinhense, uma exposição permanente na
Fundação Iraci Gama, sobre sua vida, uma sala no Centro de Cultura de Alagoinhas,
inaugurada em 2017 e que leva seu nome. Inseriu-se no cenário construindo vínculos em
diversos meios – inclusive num meio liberal como a maçonaria – construiu um cenário no
teatro que perduraria por todo o período da ditadura, consideradas as devidas proporções em
seus hiatos, e diante de outro cenário, aquele cuja repressão impunha suas ordens. Portanto,
570
SAMPAIO, Sérgio; Dona Maria de Lourdes. In: SAMPAIO, Sérgio. Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua.
Rio de Janeiro: Philips, 1973. 1 CD. Faixa 9.
571
Parafraseando Giovani Levi com a frase: “para todo indivíduo existe também uma considerável margem de
liberdade que se origina precisamente das incoerências dos confins sociais e que suscita a mudança social”.
LEVI, Giovanni. Usos da biografia, 2006. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de M. (Orgs.). Usos e
abusos da história oral. Rio de janeiro: FGV, 1996, p.167-182, p. 182.
153
estava no “bar do Auzílio” mas também “na igreja”, ou seja, entre a maçonaria e o
catolicismo (pelas amizades com padres), entre as “comédias inofensivas” de Pedro Bloch e
os espetáculos “subvsersivos” de Dias Gomes e Plínio Marcos. Não estava no movimento
negro, mas “montou” autores de um teatro de protesto. Até onde ia o seu protesto? Até onde
ele parecia dizer “O auditório aplaudiu / Mas cuidado com a porta da frente”.
Conscientemente ou não, saiu ileso, talvez, mas com táticas difíceis de ler – porém
possíveis de acessar nas entrelinhas dos seus textos, em suas “deixas” e práticas. “No jogo
político das desigualdades, era preciso saber jogar no campo de possibilidades de luta traçado
pelo adversário e, indiretamente, ir ganhando-lhe espaço”.572 Ele registrou suas impressões
sobre a história do cenário, com visão historiográfica. Passeia pelas ruas desse cenário já
atravessado por toda essa história, enquanto sujeito “escorregadio”: Não era o homem
“exemplar”, nem tinha comportamento previsível. Criava caminhos para não se indispor, mas
demonstrava certa indisposição, na escrita. Difícil de ser tomado, categoricamente, como
“uma coisa” ou “outra”. E os vestígios que deixou, onde deixou e como deixou, mostram que
estava em quase todos os lugares, mas “onde quer que eu esteja, eu não estou”. Para os
estudiosos de sujeitos como Antonio Mário, permanece, na dúvida metódica, sempre um
gosto de “Não espere por mim”.
Por fim, como a pintura do já mencionado quadro, “caminha” disseminando o múltiplo
que lhe constituiu, na cidade onde se estabeleceu diante de todas as transformações que o
cenário viveu e as que ele viveu no cenário. As cortinas do espetáculo continuaram abertas
por mais uma década, pois registram-se produções suas, de teatro, até meados de 1990.573
Quando no início do novo milênio, em 2002, tal qual vida que imita a arte, encerra-se o
último ato com a morte do personagem.
572
LOPES, Beatriz. Tudo Preto: diálogos e assimilações no teatro de revista. Revista Intercâmbio dos
Congressos Internacionais de Humanidades, Brasília, n. 6, p. 519-528, Ano 2016, p.09.
573
Convite da Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer de Alagoinhas destinado ao Grupo Natureza para a
participação no 8º Encontro de Cultura. 10 de nov. de 1990. Acervo pessoal de Lívia Santarém.
154
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GAMA, Iraci. Iraci Gama (depoimento, 2021). Entrevista cedida a Bruna Meyer.
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SANTARÉM, Lívia. Lívia Santarém (depoimento, 2020). Depoimento cedido a Bruna
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Anexos