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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

FERNANDA BLANCO VIDAL

SAUDADE SIM, TRISTEZA NÃO:

MEMÓRIA DO DESLOCAMENTO COMPULSÓRIO E DA


RECONSTRUÇÃO DA VIDA DOS ATINGIDOS PELA BARRAGEM DE PEDRA DO
CAVALO EM SANTO ESTEVÃO (BAHIA)

Salvador
2012
FERNANDA BLANCO VIDAL

SAUDADE SIM, TRISTEZA NÃO:

MEMÓRIA DO DESLOCAMENTO COMPULSÓRIO E DA


RECONSTRUÇÃO DA VIDA DOS ATINGIDOS PELA BARRAGEM DE PEDRA DO
CAVALO EM SANTO ESTEVÃO (BAHIA)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação


em Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal da Bahia, como
requisito para obtenção do grau de Mestre.

Orientadora: Profª DrªLídia Maria Pires Soares Cardel

Salvador
2012
___________________________________________________________________________

Vidal, Fernanda Blanco


V648 Saudade sim, tristeza não: memória do deslocamento compulsório e da
reconstrução da vida dos atingidos pela barragem de Pedra do Cavalo em Santo
Estevão (Bahia) Fernanda Blanco Vidal. – Salvador, 2012.
202 f.: il.
Orientador: Profª Drª Lídia Maria Pires Soares Cardel
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, 2012.

1. Psicologia Social. 2. Memória - Aspectos Sociais. 3. Conflito social.


4. Territorialidade. 5. Luto – aspectos psicológicos. 6. Pedra do Cavalo,
Barragem (BA). 7. Santo Estevão (Bahia). I. Cardel, Lídia Maria Pires
Soares II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas. III. Título.

CDD – 301.15
____________________________________________________________________
Em memória de meu avô, Manuel Blanco Osório, aquele que me deu tudo, inclusive
suas memórias.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, gostaria de agradecer a meus pais, os que me deram a vida e aqueles
que a vida me deu, por me oferecerem e ensinarem o que é o amor incondicional. A minha
mãe, Maria Cristina Blanco Vidal, a meu pai Nilson Vidal Vidal, a meu segundo pai José
Manuel Peleteiro Barreiro Junior e segunda mãe Maria da Conceição Souza Correia.
Agradeço também pela companhia de sempre, aos meus irmãos Vanessa Blanco Vidal,
José Rodrigo Blanco Peleteiro e Rafael Blanco Peleteiro, pelos quais sou absolutamente
apaixonada e a meus afilhados-primos, Marcelo Blanco e Barbara Beatriz.
Aos meus familiares, minhas avós Maria Conchita Blanco Vidal e Maria del Carmem
Vidal Vilas (em memória), aos meus tios e tias (Conchita, Carminha, Rosa, Fernando,
Carlinhos, Lucho, Ana), primos e primas, agregados e tornados parentes (Rafael Portela,
Louelen, Dani, Sancho, Dedé, Teca, Lila, Rafael avô, Cris e Vanilda) meus eternos
agradecimentos por compartilharem comigo a vida em família e a alegria de estar junto ao
outro. Agradecimentos especiais a meu padrinho, Manuel Fernando Blanco Vidal, por estar
sempre ao meu lado, em tudo que preciso, sendo como um pai para mim. Aos meus primos,
Luis Carlos Lemos e Jorge Vidal Amorin, por me divertirem bastante quando eu precisava
ficar em casa.
Às minhas amigas de infância que amo muito, Camile Viana, Camila Farias, Fernanda
Grave de Marcelo Borges, Priscila Cunha e Ciranda Ferrari por me acompanharem nesta vida
fazendo-a mais suave e divertida, com muita e pouca seriedade ao mesmo tempo. A meu
amigo Igor Gomes, que me viu em tantas fases e idades e que estará comigo por todos os
anos, meus agradecimentos e admiração. Às minhas amigas psicólogas, formadas comigo na
UFBA, que também amo muito e que me acompanham na vida pessoal e profissional, Gisele
Lopes, Sandra Assis Brasil, Karen Khrisna, Ana Luisa Dias, Marília Brito (sempre sumida) e
Tonho (só poderia chamá-lo assim).
A (os) outras (os) psicólogas (os) amigas (os), que gosto e admiro imensamente, por
estarem comigo nas “trincheiras” dos sonhos possíveis: Marilda Castelar, Alessandra
Almeida, Carlita, Rosângela Castro, Lúcio Magano, Valter da Mata. Agradecimentos
especiais a Luciana França, uma amiga daquelas, que me acolhe nas angústias e alegrias com
seu ouvido e telefone, compartilhando comigo igualmente a “dor e a delicia” de ser quem ela
é. Obrigada por me inspirar com sua coragem para tudo na vida.
Agradecimentos coletivos, para evitar esquecer alguém, a alguns grupos que me
ajudaram a ser quem sou: o DAPSI e Movimento Estudantil da UFBA, LEPEL – UFBA, o
MST (recôncavo da Bahia), a Comunidade da Gamboa de Baixo, o PIC, os moradores da
estrada da “cascalheira” e ao meu grupo do Núcleo de Psicologia Social da Bahia.
Em relação à dissertação mais especificamente, gostaria de agradecer o Programa de
Pós-graduação em Ciências Sociais da UFBA por ter acolhido desde sempre essa psicóloga
interessada em ciências sociais. Meus sinceros agradecimentos a todo o corpo docente e aos
professores das disciplinas que cursei. Agradecimento especial ao professor Antônio Câmara,
sempre disponível a acolher os que o procuram com leveza e simplicidade. Aos funcionários
que compõem o programa, especialmente Dôra – sempre disposta a nos ajudar. Aos
funcionários da biblioteca da UFBA, aos colegas do NUCLEAR. Agradecimento também ao
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela bolsa nestes
dois anos, permitindo que me dedicasse exclusivamente ao meu mestrado.
Agradeço também a alguns profissionais amigos de outras áreas que me ajudaram a
gerar dados quantitativos, planilhas, mapas, croquis, elementos que nem sempre tive
facilidade. Muito obrigada a Camila Farias (Arquiteta), Rodrigo Estivalet (Administrador),
Ângelo Nepomuceno (Administrador). A Greice (Socióloga), Laura e Daniele (Psicólogas)
que me ajudaram nas muitas transcrições desta pesquisa, fazendo com que tudo isso fosse
possível.
Aos funcionários e militantes do Pólo Sindical de Feira de Santana que me acolheram
e me levarem para conhecer as comunidades atingidas por Pedra do Cavalo. Agradecimentos
especiais a Zé Carlos por me receber e Conceição Borges, uma grande mulher e militante que
passei a admirar de perto. A todos e todas do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Santo
Estevão e da Associação de Moradores da Fazenda Modelo, que me receberam e me levaram
às pessoas entrevistadas nesta pesquisa, meus sinceros agradecimentos.
Aos moradores do núcleo de Reassentamento da Fazenda Modelo, que me receberam
em suas casas, me contaram suas histórias, me levaram para conhecer seus terrenos, me
ofereceram atenção e frutas que até hoje me causam saudade. Não há palavras para expressar
minha gratidão.
À professora Guiomar Germani, agradeço por ter me recebido quando esta dissertação
ainda era um projeto a ser escrito, ajudando-me a escolher a barragem deste estudo. Por sua
disponibilidade, por sua generosidade, pela oferta de seus arquivos e materiais, não tenho
como lhe ser grata o suficiente. Espero que parte da angústia que a invisibilidade destas
histórias tinha possa ser atenuada por este trabalho que apresento. Agradeço também por estar
na minha banca de qualificação e de defesa, por fazer indicações e correções fundamentais
que me ajudaram muito. Por fim, não menos importante, por ser uma mulher e intelectual que
inspira as novas gerações pelo rigor, pela vitalidade e pelo compromisso ético e sobretudo
político.
Ao meu eterno professor e amigo Marcus Vinícius de Oliveira, que me acompanha
nesta vida acadêmica desde sempre, compartilhando inquietações e preocupações. Obrigada
por ser um psicólogo admirável, que inspira também às novas gerações, mantendo a postura
crítica que a academia deve ter, sem perder a ternura tão fundamental para lidarmos com as
pessoas em condição de vulnerabilidade. Obrigada por ter estado na minha banca, mesmo
depois das peripécias que a vida lhe pregou, pelo esforço de ir de muletas, mas de estar lá
compartilhando suas impressões e recomendações, fundamentais nessa pesquisa.
Não menos importante, agradeço a minha orientadora Lídia Cardel, uma mulher e
socióloga daquelas que se guarda para sempre. Obrigada pela acolhida generosa desde
sempre, pela atenção e por estar sempre disponível para orientações. Agradeço também a
liberdade e respeito sempre demonstrado acolhendo as contribuições da minha formação e me
oferecendo tudo aquilo que a Sociologia e Antropologia tinham para me dar. Minhas palavras
certamente não darão conta da gratidão que tenho por dividir este trabalho que agora se
concretiza.
Por fim, aquele que não poderia deixar de fora, meu companheiro de vida, de sonhos,
de amor, enfim de tudo, Rafael Davis Portela, por dividir a vida comigo há quase 07 anos,
fazendo-a mais leve todos os dias, junto com Frida e Zeferina, nossas gatinhas. Obrigado por
sempre me escutar, por muitas vezes discordar, por me fazer olhar para onde meus olhos não
estão olhando, por me oferecer a leveza para lidar com a seriedade das coisas, enfim, por me
fazer uma pessoa melhor todos os dias. Você foi meu leitor mais “cruel” e o companheiro
mais acolhedor, certamente um dos que mais me ajudou na redação deste texto. Não há como
agradecer por tudo. Só posso dizer que “antes de você chegar, era tudo saudade”.
Enfim, a todos e todas que dividiram a vida e a dissertação comigo, me ajudando e
compreendendo minha distância, meus eternos, sinceros e inesgotáveis agradecimentos.
“É preciso força pra sonhar e perceber
Que a estrada vai além do que se vê”
(Los Hermanos)
RESUMO

Esta dissertação trata da memória social dos atingidos pela barragem de Pedra do Cavalo do
núcleo de reassentamento Modelo no município de Santo Estevão (BA), buscando
compreender os impactos dela nas diversas dimensões da vida social desses atingidos, em
uma perspectiva interdisciplinar, na interseção da Psicologia com a Sociologia. Em termos
metodológicos, usamos as entrevistas em profundidade com os atingidos como fio condutor
da análise, articulando-as com dados de naturezas diversas. Entrevistamos técnicas sociais que
trabalharam na Companhia de Desenvolvimento do Vale do Paraguaçu (DESENVALE),
responsável pela barragem, e militantes que atuaram na região. Analisamos documentos da
empresa, árvores familiares dos atingidos, desenhos feitos por eles dos lugares em que
viviam antes da barragem e fichas de saúde do reassentamento, gerando dados quantitativos
que também foram analisados. A partir desses dados, foi possível constatar que os impactos
daquela barragem não se limitaram aos aspectos objetivos e econômicos, repercutindo em
dimensões sociais, culturais, subjetivas e afetivas na relação com o território. Na condução do
Estado, houve desrespeito ao modo de vida camponês, no qual a terra e a família são
elementos centrais, formando “territórios de parentesco”. Os lotes entregues às famílias foram
extremamente pequenos, insuficientes para provê-las, contrariando a própria legislação
agrária. Houve separação das famílias em diferentes núcleos, tema dos mais dolorosos para
esse grupo. Os mais velhos foram muito afetados: o relato da história de um senhor que
faleceu por “paixão” após perder suas terras foi detidamente analisado através dos aportes da
Psicologia sobre a vivência do Luto. Além da questão da terra, destacou-se a relação com as
águas, que, conforme indicavam os desenhos e falas, tinha importância cultural para este
grupo. Tão danosa quanto a perda do território foi a forma de tratamento oferecida. A partir
das legislações indicadas pelo relatório do Conselho Nacional de Direitos da Pessoa Humana
sobre as barragens no Brasil, constatamos que o Estado violou pelo menos 14 direitos
humanos neste processo. Todo ele, entretanto, não ocorreu à revelia dos atingidos. Ao longo
do estudo apresentamos a sua história de organização e luta, desde os primeiros anos do
projeto até os dias de hoje. Pode-se dizer que, no esforço de viabilizar um reassentamento que
lhes foi entregue de maneira precária e sem condições de recebe-los, os atingidos terminaram
reconstruindo-se como uma comunidade, podendo hoje ver o seu passado com “saudade”,
mas não mais com “tristeza”.

Palavras-chave: Psicologia Social; Memória Social; Deslocamento Compulsório; Atingidos


por Barragem; Territorialidade; Luto e sofrimento político; Reconstrução de comunidades;
Pedra do Cavalo e Santo Estevão (Bahia).
ABSTRACT

This dissertation deals with the social memory of those affected by the dam Pedra do Cavalo
of core resettlement Modelo in the municipality of Santo Estevão (BA), seeking to understand
the impact of it in the various dimensions of social life of those affected in an interdisciplinary
perspective, at the intersection of Psychology and Sociology. In terms of methodology, we
used in-depth interviews with those affected as thread of analysis, linking them to data of
different types. We interviewed social techniques that worked in Companhia de
Desenvolvimento do Vale do Paraguaçu (DESENVALE), responsible for the dam, and
activists who worked in the region. It was analyzed company documents, family trees of those
affected, their drawings of the places where they lived before the dam and the health records
of resettlement. From these data, it was found that the impacts of that dam were not limited to
economic aspects and goals. This was reflected in social, cultural, subjective and affective
relationship with the territory. In the conduct of the State, there was disrespect to the peasant
way of life, in which the land and the family are central elements, forming "territories of
kinship." Lots delivered to families were extremely small, insufficient to provide them,
contradicting the land legislation. There was separation of families in different cores, the most
painful issue for this group. The older ones were very affected: the report of the story of a
man who died of "passion" after losing their land was carefully analyzed by the contributions
of psychology on the experience of mourning. Beyond the question of land, it was highlighted
the relationship with the water, which, as indicated by the drawings and words, had cultural
significance for this group. As damaging as the loss of territory was the type of treatment
offered. As indicated by the report of the reports of the Conselho Nacional de Direitos da
Pessoa Humana on dams in Brazil, found that the State violated at least 14 human rights in
this process. All of it, however, did not occur in absentia of those affected. Throughout the
study we present his story of struggle and organization, from the early years of the project
until the present day. It can said that, in an effort to facilitate a resettlement was delivered to
them in a precarious manner, those affected rebuilt itself as a community, can now see your
past with "nostalgia", but not more with "sadness".

Keywords: Social Psychology, Social Memory, Displacement Compulsory; Affected by


Dam; Territoriality; Mourning and political suffering; Rebuilding communities; Pedra do
Cavalo and Santo Estevão (Bahia).
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 1 Mapa de Santo Estevão e região do Território de Identidade do Portal do Sertão ….... 15

Ilustração 2 Mapa sem escala com os municípios e reassentamentos de Pedra do Cavalo .............. 17

Ilustração 3 Croqui com representação da Modelo antes de se tornar reassentamento …................ 18

Ilustração 4 Grade leitora construída a partir das reflexões de Ricceur (2007) …............................ 39

Ilustração 5 Grade leitora lembrar-esquecer ..................................................................................... 52

Ilustração 6 Fases do processo de reassentamento populacional ….................................................. 57

Ilustração 7 Mapa dos Complexos Industriais próximos a Pedra do Cavalo ….............................. 62

Ilustração 8 Afetos localizados na pesquisa ….................................................................................. 87

Ilustração 9 Proporção de títulos de terra entre reassentados do núcleo Modelo .......................... 101

Ilustração 10 Categorias indissociáveis na cultura do campesinato …............................................ 103

Ilustração 11 Complexo de abastecimento de água da barragem de Pedra do Cavalo …................ 118

Ilustração 12 Desenho da família de JN (a) - Local onde viviam antes da barragem …..................120

Ilustração 13 Desenho da família de L(o) e V(a) - Local onde viviam antes da barragem …......... 121

Ilustração 14 Legenda das árvores familiares …............................................................................. 124

Ilustração 15 Árvore familiar da entrevistada D(a), 53 anos .......................................................... 125

Ilustração 16 Árvore familiar da entrevistada M (a) e do entrevistado A(o), 58 e 64 anos …......... 126

Ilustração 17 Árvore familiar de L(o), 66 anos; V(a), 65 anos; G(o), 42 anos ............................... 140

Ilustração 18 Croqui com representação do núcleo de reassentamento Modelo em 1985 …......... 149

Ilustração 19 Foto da Escola (ao lado esquerdo) e da Igreja (lado direito) …................................ 161
Ilustração 20 Foto da Unidade de Saúde do reassentamento Modelo …....................................... 162

Ilustração 21 Croqui com a representação da Modelo em 2011 .................................................... 164

Ilustração 22 Equipamentos comunitários e datas de construção …...............................................165

Ilustração 23 Desenho de Dona JN(a), E(o) e CL(a) – trabalhadores da fazenda antes de se tornar
núcleo de reassentamento …............................................................................................................... 199

Ilustração 24 Desenho da família de M(a) e P(o) - Local onde viviam antes da barragem ........... 200

Ilustração 25 Desenho da família de D(a) ….................................................................................. 201


LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Núcleos de reassentamento de Pedra do Cavalo ….............................................. 13

Tabela 2 Informações gerais sobre as barragens …........................................................................ 59

Tabela 3 Histórico de reajustes da DESENVALE …...................................................................... 98

Tabela 4 Comparação entre tamanhos das terras reinvidicadas e recebidas ….............................. 100

Tabela 5 Tamanho das terras antes e depois da barragem ….......................................................... 107

Tabela 6 Migração dos filhos dos entrevistados da Modelo …...................................................... 141

Tabela 7 Quantidade e Porcentagem de pessoas por ocupação ….................................................. 145

Tabela 8 Tipos de ocupação …....................................................................................................... 147

Tabela 9 Locais buscados em caso de doença …........................................................................... 162

Tabela 10 Lista de violações de direitos humanos da barragem de Pedra do Cavalo …................ 175

Tabela 11 Etapas de construção de hidrelétricas em região de floresta tropical e riscos à saúde -


Modelo Tucuruí ….............................................................................................................................. 191

Tabela 12 Impactos produzidos pelas barragens …........................................................................ 194

Tabela 13 Detalhamento das ocupações encontradas na Modelo …............................................... 202


LISTAS DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABACS Associação Bueraremense dos Agentes Comunitários


ACC Atividade Curricular em Comunidades
ACM Antônio Carlos Magalhães
APAEB Associação de Pequenos Produtores do Estado da Bahia
ASSOFS Associação de Oleiros de Feira de Santana
ASTA Associação de Técnicos Agrícolas
CAR Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional
CDDPH Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana
CEPED Centro de Pesquisas e Desenvolvimento
CIA Centro Industrial de Aratu
CIS Centro Industrial Subaé em Feira de Santana
CMB Comissão Mundial de Barragens
CNEC Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico
CPT Comissão Pastoral da Terra
CRMAB Comissões Regionais de Atingidos por Barragens
CUT Central Única dos Trabalhadores
DCE Diretório Central dos Estudantes
DEM Partidos Democratas
DESENVALE Companhia de Desenvolvimento do Vale do Paraguaçu
ECSB Encontros de Ciências Sociais e Barragens
EIA Estudos de Impacto Ambiental
ELETROBRÁS Centrais Elétricas Brasileiras
FABS Federação de Associações de bairros de Salvador
FETAG Federação dos Trabalhadores da Agricultura
GEOGRAFAR Geografia dos Assentamentos na área rural
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas
IPPUR Instituto de Pesquisas e Planejamento Urbano e Regional
LEPEL Linha de Estudo e Pesquisa em Educação Física & Esporte
e Lazer
MAB Movimento de Atingidos por Barragens
MME Ministério de Minas de Energia do Brasil
MOC Movimento de Organização Comunitária
MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
PAC Plano de Aceleração do Crescimento
PIBIC Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
PLAT. DHESCA Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos,
Sociais, Culturais e Ambientais
PFL Partido da Frente Liberal
PND Plano Nacional de Desenvolvimento
PPGS Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
RIMA Relatórios de Impacto Ambiental
SEI Superintendência de Estudos Sociais e Econômicos
STR Sindicato de Trabalhadores Rurais
SUDENE Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste
TIBRAS Fábrica de Dióxido de Titânio
UEFS Universidade Estadual de Feira de Santana
UFBA Universidade Federal da Bahia
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO (Delineamento atual da pesquisa e Estrutura da dissertação)

I. INTRODUÇÃO …........................................................................................................... 07
I. 01) Recorte Empírico: a barragem, o munícipio e o reassentamento ............. 12
I. 02) Trajetos Metodológicos: as idas e vindas …................................................ 19
I. 03) Para além dos procedimentos: impressões dos encontros …..................... 23

II. Memória e Esquecimento: encarnando a teoria …...................................................... 25


II. 01) Um dilema paralisante – memória como produção individual ou coletiva?..27
II. 02) Usos e possibilidades de análise a partir da memória …................................ 37
II. 03) Somos o que lembramos, mas também aquilo que conseguimos esquecer....43

III. A Barragem de Pedra do Cavalo e o deslocamento compulsório: do planejamento à


implantação............................................................................................................................. 55
III. 01) Planejamento e Divulgação - contexto De Pedra do Cavalo …................…58
a) O “Social” e o “Tecnológico”: desigualdades entre a barragem e os atingidos...65
b) As primeiras notícias da barragem …................................................................. 68
c) A Descrença ....................................................................................................... 70
d) A Organização – a luta por um novo destino …................................................. 73
e) Propaganda – de atingidos a beneficiados …...................................................... 77
f) As promessas …................................................................................................... 79
III. 02) Implantação ou o momento da mudança …...................................................... 82
III. 03) Sofrimento Político ….......................................................................................... 87

IV. Território, Processos Identitários e Subjetividade....................................................... 91

IV.01) Questões territoriais …......................................................................................... 92


a) Questão fundiária: a terra como elemento central do conflito …..................... 95
b) Relações culturais com a terra ….................................................................... 102
c) Cada caso é um caso: três formas de perceber e lembrar da barragem .......... 105
Os posseiros …......................................................................................... 105
Os agregados …........................................................................................ 109
As Trabalhadoras das fazendas …............................................................ 111
As três formas de sentir e lembrar …....................................................... 113
IV. 02) Quando a relação com o lugar se rompe: revelando dimensões na relação
com território........................................................................................................... 114
a) Unidade terra-água …....................................................................................... 114
b) A separação (física) das famílias ….................................................................. 122
c)Territorialidade e Subjetividade: relações afetivas com o lugar ….................... 127

V. Resistências, Persistências e Reconstrução: a reinvenção do futuro ......................... 134


V. 01) Estratégias familiares: chegada, estranhamento e a retomada da vida…..137
a) Migração ...........................................................................................................139
b) Pluriatividade ....................................................................................................143

V. 02) Um projeto coletivo para a área coletiva ........................................................ 148

VI - Considerações finais ................................................................................................... 172

REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 178

ANEXOS .............................................................................................................................. 190


1

APRESENTAÇÃO

Apresento nas páginas seguintes a dissertação “Saudade Sim, tristeza não” -


Memória do deslocamento compulsório e da reconstrução da vida dos atingidos pela
barragem de Pedra do Cavalo em Santo Estevão (Bahia) escrita entre 2010 e 2012 a partir
da pesquisa do projeto de mestrado submetido e aprovado no Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais da UFBA intitulado “O que as águas afundam, as lembranças fazem emergir
– Memória dos atingidos pela barragem de Pedra do Cavalo”.
A mudança do título buscou acompanhar o movimento vivido na pesquisa de campo,
quando a partir do contato com os entrevistados pude perceber que nem tudo que o grupo
viveu viria à tona através das lembranças. De certo modo, este grupo optou por olhar para
frente, seguir ou até esquecer certas experiências, para que a vida ganhasse novos rumos.
“Saudade sim, tristeza não” foi a frase de uma das entrevistadas que expressava justamente
essa relação para com o passado. O esquecimento, ganhava um papel semelhante ao das
lembranças, como estratégia de resistência para lidar com o que passou: uns optam por
relembrar, outros por esquecer ou passar com brevidade. Por tudo isso, e por outros aspectos
que ficarão mais claros durante o texto, optei por modificar o título, de modo que este fosse
mais fiel aos sentidos da minha experiência com este grupo.
Antes de passar à discussão mais específica desta pesquisa, gostaria de refletir
brevemente sobre uma questão que por vezes me fizeram: porque uma psicóloga resolve
estudar atingidos por barragens? Apesar desta questão, quando feita, vir quase sempre num
tom positivo, me faz refletir sobre o porquê destas inquietações, mas sobretudo sobre o
porquê de minhas escolhas. Assim, acho proveitoso apresentar aqui alguns aspectos de minha
trajetória, mas principalmente das preocupações que explicam os objetivos deste trabalho. Na
verdade, é preciso dizer que este tipo de questionamento já me foi feito outras vezes, tendo
em vista que desde sempre, interessei-me por estudar comunidades que tinha na luta pelo
território, por um lugar para viver, sua marca registrada.
Em 2004, recém chegada a Universidade Federal da Bahia (UFBA), ingressei numa
Atividade Curricular em Comunidades (ACC) que atuava junto a Assentamentos de Reforma
Agrária do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem terra (MST). Na época não havia em
Psicologia um grupo que trabalhasse com movimentos sociais do campo e por isso fui buscar
este espaço em outros cursos, encontrando esta possibilidade na Faculdade de Educação, com
a Prof. Dra. Celi Taffarel que coordenava a Linha de Estudo e Pesquisa em Educação Física
2

& Esporte e Lazer (LEPEL) desenvolvendo atividades de pesquisa e extensão em áreas de


reassentamento.
Em 2005, fui selecionada num projeto de pesquisa e extensão aprovado junto ao CNPq
que se propunha a trabalhar com agricultores familiares numa perspectiva Agroecológica em
duas áreas da Bahia, o Vale do Jiquiriçá e a Caatinga, permitindo-me uma aproximação com
questões territoriais, agora associada ao debate ambiental. Novamente a interdisciplinaridade
fez parte da minha vida e pude conviver com professores e estudantes ligados a cinco áreas do
conhecimento: Educação, Sociologia, Agronomia, Veterinária e Biologia1.
Mas minha relação com as questões territoriais não parou ai, e em 2006, realizei breve
pesquisa a partir de uma disciplina de Psicologia com os pescadores da comunidade da
Gamboa de Baixo2. Desta primeira aproximação, retomei contato com a professora Maria
Cecília de Paula e Silva, que já atuava nesta comunidade, tornando-me bolsista do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) em um projeto de pesquisa que tinha
como um de seus campos a Gamboa de Baixo 3. Continuei trabalhando com esta comunidade
por mais três anos, registrando seu cotidiano e memórias e com eles, ampliei meu olhar sobre
questões territoriais, na medida em esta comunidade revelava não apenas a relação com a
terra, mas sobretudo com as águas – território produtivo, comunitário e existencial
fundamental para comunidades pesqueiras.
Em 2008, fiz uma disciplina de Psicologia com o professor Marcus Vinícius de
Oliveira Silva, sobre a contribuição da psicologia em situações de emergências e desastres 4,
tendo como foco a chamada “Reconstrução”, fase em que se discute os processos sociais após
o desastre ocorrer. A maior parte dos estudos localizados na época tinham uma perspectiva
preponderantemente biomédica ou patologizante, enfocando o chamado estresse pós-
traumático, mas eu, que sempre estive envolta com comunidades que se relacionavam
fortemente com seus territórios me perguntava: mas como ficam estas comunidades e pessoas
que perdem o lugar de toda uma vida? Como fazem para reconstruir suas vidas?

1
O nome do projeto era “Tecnologias apropriadas para agricultores familiares em biomas do estado da Bahia”
CNPq 2005-2006.
2
Pesquisa realizada junto com Sandra Assis Brasil como requisito da disciplina Psicologia Organizacional e do
Trabalho I.
3
O projeto de pesquisa intitulava-se “Cultura Corporal, lazer, trabalho e meio ambiente: história de humanidades
invisíveis” e o meu plano de trabalho específico era “Tecendo Redes de Trabalho, Lazer e Vida: histórias de
pescadores”.
4
Nesta disciplina tivemos a oportunidade de discutir as contribuições e possibilidade de atuação dos psicólogos
em situações de desastres sócio-ambientais, tais como enchentes, secas, acidentes industriais ampliados etc.
3

Retomando alguns textos antigos, que abordavam questões de Identidade e Território,


reli um texto do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) e resolvi tomar o tema dos
atingidos por barragens para refletir sobre a relação das comunidades com seus territórios a
partir de uma situação de ruptura, ou seja, a partir das ações de políticas de desenvolvimento
que deslocam comunidade e alagam para sempre os territórios onde estas viviam: O que
acontecia com elas? Como se sentiam? Como eram tratadas? Quais os impactos que estes
deslocamentos compulsórios poderiam causar? Como aprender com elas sobre a
“reconstrução” da vida e de seus territórios?
Assim, no plano de fundo de todos estes contatos e estudos, mantive como fio
condutor a tentativa de entender a relação que as pessoas estabelecem com o lugar e a
importância do lugar para compreendermos os processos de subjetivação. Lembro-me aqui de
uma expressão de Geertz (2005) em seu livro “A Interpretação das Culturas”, quando diz que
os antropólogos não estudam exatamente “as” comunidades, eles estudam “nas”
comunidades. Semelhante a ele, gostaria de dizer que como psicóloga não estudo exatamente
“as” barragens, mas “nas” barragens, a relação que as pessoas estabelecem com o lugar
quando este se transforma: Território, Identidade e Subjetividade são portanto as
preocupações que sempre me guiaram e que explicam porque uma psicóloga estuda atingidos
barragens.
Delineamento atual da pesquisa

A presente dissertação dedicou-se a trabalhar com as memórias das pessoas atingidas e


deslocadas pela barragem de Pedra do Cavalo localizada na Bahia, buscando compreender
como as comunidades atingidas pela barragem de Pedra do Cavalo recordam e
significam os impactos por ela produzidos em suas vidas.
Considerando que as mudanças produzidas por uma barragem são intencionais e
normalmente administradas por determinados agentes, por isso buscamos compreender mais
especificamente, de que modo essas pessoas percebem a atuação do Estado através de seus
agentes antes, durante e após o processo de deslocamento compulsório produzido pela
barragem.
Tendo em vista que um dos grandes interesses desta pesquisa foi a relação entre
território, identidade e subjetividade, trabalharemos no segundo objetivo específico desta
pesquisa buscando reconstruir, a partir da memória, as trajetórias dos atingidos no
4

processo de deslocamento, destacando os aspectos objetivos e subjetivos da relação com


o território, considerando a organização da vida, trabalho e relações comunitárias.
Por fim, importa-nos compreender que estas mudanças não ocorreram à revelia das
pessoas e que em muitos casos houve processos de resistência mais ou menos coletivos
visíveis e concretos. Importa dizer que as mudanças não terminam na chegada ao novo local e
que mesmo com processos tão complexos e impactantes como estes, as comunidades se
reconstroem, buscamos no último objetivo apreender, a partir da memória, as estratégias
de resistência e reconstrução utilizadas pela população antes, durante e depois do
deslocamento compulsório produzido pela barragem.

Estrutura da dissertação
Para dar conta desses objetivos, construímos uma dissertação com quatro capítulos,
além da introdução e conclusão. Durante o texto, optamos por não separar as discussões
teóricas dos resultados em capítulos diferentes e assim encontraremos a teoria e a empiria de
maneira articulada em todos os capítulos. Outro aspecto importante é que esta dissertação
trabalha com diferentes tipos de dados – documentais, quantitativos, qualitativos e imagéticos
– que embora guiados pela análise das entrevistas com os atingidos, participam de todos os
capítulos compondo o texto de maneira articulada com as narrativas.
O primeiro capítulo, intitulado “Memória e Esquecimento: encarnando a teoria”
dedica-se então a apresentar as discussões teórico-metodológicas sobre o trabalho com a
memória. Nele, trabalhamos com os principais autores que fundamentam os estudos sobre
memória, clássicos e contemporâneos, construindo assim um recurso analítico que apoiou a
interpretação dos dados na pesquisa.
Já no segundo capítulo, “A Barragem de Pedra do Cavalo e o deslocamento
compulsório”, trabalhamos com a história desta Barragem, focalizando o contexto histórico,
sua importância no processo modernizador, seu planejamento e construção, a política de
reassentamento proposta, a organização dos atingidos, até o momento da mudança. Nesse
processo, trabalhamos entremeando o olhar dos atingidos com a documentação da empresa
construtora da Barragem e com as lembranças das técnicas sociais que trabalharam nesta
época e que foram entrevistadas na pesquisa. O foco neste capítulo é no tratamento oferecido
5

aos atingidos por aqueles que administraram a mudança, conforme indica o primeiro objetivo
específico da dissertação5.
Já no terceiro capítulo, “Território, Processos Identitários e Subjetividade”,
analisamos mais cuidadosamente o conflito territorial de Pedra do Cavalo, considerando os
diferentes impactos que o deslocamento produziu, conforme propunha o segundo objetivo
especifico desta dissertação6. Neste capítulo encontramos discussões sobre as múltiplas
dimensões atingidas com a perda do território, incluindo questões culturais do campesinato e
subjetivas sobre a relação afetiva com o lugar. Tudo isso foi feito sem deixarmos de trabalhar
com os aspectos fundiários que, conforme veremos tiveram um tratamento absolutamente
inadequado por parte do Estado.
O quarto e último capítulo, intitulado Resistências, Persistências e Reconstrução: a
reinvenção do futuro, aborda questões ligadas ao último objetivo específico da pesquisa 7,
analisando a chegada ao novo local, os processos de resistência e reconstrução da comunidade
no pós-deslocamento. Nele, trabalhamos com os impactos e as estratégias das famílias e
comunidade para sobreviver e se reinventar em terras pequenas e sem condição de recebê-los.
Conforme poderá ser visto, optamos então, na composição desses capítulos por dois
níveis de análise e de construção da narrativa. Num primeiro plano trabalhamos com uma
perspectiva temática, concentrando a interpretação dos temas de cada objetivo específico num
capítulo. Embora possamos encontrar estes temas – tratamento do Estado, relações com o
Território e processos de resistências e reconstrução – em praticamente todos os capítulos,
pode-se dizer que há uma preponderância de cada um deles no seu referido capítulo.
Em outra perspectiva, fizemos uma apreciação mais longitudinal dos dados na escrita
do texto e assim, cada capítulo, recorta um momento da história do grupo. O capítulo dois por
exemplo, trata os antecedentes da barragem, o contexto em geral, seu planejamento e
construção, sendo finalizado no momento da mudança, em 1985, quando as pessoas são
levadas aos núcleos de reassentamento. O capítulo três, analisa a relação com o território,
focalizando o tratamento dado à questão fundiária e as múltiplas dimensões da vida social
afetadas pela problemática dos deslocamento, abordando este processo um pouco antes da

5
Compreender, a partir da memória, como essas pessoas percebem a atuação do Estado através de seus agentes
antes, durante e após o processo de deslocamento compulsório produzido pela barragem.
6
Reconstruir, a partir da memória, as trajetórias dos atingidos no processo de deslocamento, destacando os
aspectos objetivos e subjetivos da relação com o território, considerando a organização da vida, trabalho e
relações comunitárias.
7
Apreender, a partir da memória, as estratégias de resistência e reconstrução utilizadas pela população antes,
durante e depois do deslocamento compulsório produzido pela barragem.
6

mudança até a chegada das famílias ao novo local com todos os estranhamentos que esta
mudança produzia. Já o último capítulo, aborda a história do grupo no novo local, o recomeço
da vida, os anos seguintes até os dias de hoje.
Para finalizar, apresentamos também a introdução desta dissertação em que fizemos
uma breve exposição sobre a ampla bibliografia de barragem, considerando os diversos
enfoques e contribuições das áreas para a compreensão dessas mudanças. Neste espaço
também apresentamos os aspectos metodológicos da pesquisa e o recorte empírico. Ao final
do texto, em nossas considerações finais, apresentamos uma síntese da pesquisa considerando
seus objetivos e as conclusões que pudemos tirar a partir de cada um deles.
Esperamos com esta abordagem que possamos compreender melhor a história desta
barragem, mas sobretudo o modo como “as comunidades atingidas pela barragem de
Pedra do Cavalo recordam e significam os impactos produzidos em suas vidas” conforme
nos propomos no objetivo geral desta pesquisa.
7

I. INTRODUÇÃO

Inúmeras barragens foram construídas em todo o mundo ao longo das últimas décadas
afetando significativamente os recursos ambientais e sociais do planeta. Pelo menos 19% de
toda a energia produzida no mundo advém das mais de 45.000 barragens existentes, que
comprometeram quase metade de todos os rios do planeta, deslocando mais de 40 milhões de
pessoas, segundo informações da Comissão Mundial de Barragens (CMB, 2000). Neste
cenário, o Brasil desempenha importante papel estando entre os 24 países que produzem 90%
de toda a energia atual. Nosso modelo energético assenta-se na fonte hídrica e por isso 79%
de toda a energia produzida aqui provém das mais de 2.000 barragens construídas até hoje,
que produziram deslocamentos estimados em, no mínimo, 1 milhão de pessoas (MAB, 2004;
ROTHMAN, 2008).
As barragens, apesar de serem obras de engenharia ligadas a políticas energéticas,
produzem impactos complexos e multidimensionais, sociais e ambientais que não começam
no momento da construção, não se esgotam quando esta construção termina e não se limitam
apenas à área onde as águas tocam.
Para começar, mesmo quando ainda é um projeto, as barragens impactam as regiões
para onde são planejadas, já que alguns abandonam as áreas por medo do futuro, enquanto
outros aproveitam a situação para especular os preços das terras próximas ao lago da
barragem que costumam ser valorizadas após a sua construção. Além disso, é necessário toda
uma infraestrutura para que o material destinado à construção chegue e por isso, em muitos
casos, precisa-se deslocar pessoas no local onde construirá o canteiro de obras e as estradas de
acesso ao empreendimento.
No caso das grandes barragens, a mão de obra necessária à construção é bastante
significativa e por isso centenas ou milhares de trabalhadores costumam chegar de outras
regiões para trabalhar nestes projetos8. Assim, mesmo antes do alagamento do reservatório
toda a região passa a ser afetada, havendo diversos conflitos sociais por conta disto. Além da
complexidade que estas configurações de trabalho trazem9, as cidades que recebem esses
enormes contingentes costumam ser bastante afetadas já que nem sempre, ou melhor quase
nunca, há uma preparação efetiva para o recebimento de tantas pessoas (CMB, 2000).
8
Somente nas barragens de Jirau e Santo Antônio no Estado de Rondônia estima-se cerca de 30 mil
trabalhadores.
9
A Psicóloga Social Priscila Pavan Detoni (2010), ocupou-se justamente em estudar os chamados “barrageiros”,
trabalhadores que vivem seguindo projetos de barragens.
8

Quando então começam a ser construídas, uma série de novas demandas se colocam,
sendo o aspecto mais visível e imediato, a necessidade do deslocamento compulsório das
pessoas que vivem na área de formação do lago do reservatório. Esse deslocamento
populacional produz mudanças sociais significativas, já que centenas ou milhares de pessoas
precisam sair forçadamente das áreas onde sempre viveram e sobretudo de onde extraiam sua
sobrevivência.
Internacionalmente, muitos estudos com reassentamento populacionais de barragens
foram feitos demonstrando graves problemas gerados não apenas pela perda do território, mas
sobretudo pela forma como estes processos costumas ser conduzidos10. No Brasil, alguns
estudos indicam quadros semelhantes (SIGAUD, 1987; 1992; SIQUEIRA, 1994; GERMANI,
1993, 2003; CARVALHO, 2009; COLITO, 2000; ZHOURI, 2008; VAINER, 2008;
ROTHMANN, 2008; ROCHA, 2008; ALMEIDA, 2009).
O que tem se notado é que – a despeito das diferenças entre países, regimes políticos e
mesmo temporalidade – há, em geral, um padrão de tratamento oferecido aos atingidos
que é marcado pelo completo descompromisso com o futuro dessas populações e com
seus direitos, gerando mais danos que benefícios em todos os lugares do mundo. Na
maior parte dos casos, as barragens têm gerado endividamento dos países, estouro de
orçamentos públicos, deslocamentos forçados, empobrecimento das populações atingidas,
inundação de florestas e patrimônios ambientais com graves alterações aos ecossistemas.
Infelizmente, apesar de números tão elevados de pessoas atingidas e da clara tendência
à sua ampliação, os problemas sociais suscitados pelas barragens ainda costumam ser a
dimensão menos cuidada. Primeiramente, o número de atingidos é quase sempre impreciso e
pouco confiável11 e mesmo havendo previsão legal nos licenciamentos de barragens no Brasil,
a maior parte dos Relatórios de Impacto Ambiental (RIMAS) e Estudos de Impacto
Ambiental (EIA) não atentam adequadamente para os problemas sociais, nem conseguem
propor soluções adequadas aos impactos que os deslocamentos têm produzido.
Num estudo realizado por Castro (1993) citado por Rothman (2008), o autor concluiu
que estes instrumentos têm dado ênfase exagerada aos aspectos físico-químicos, econômicos
ou técnicos, deixando as dimensões sociais numa posição periférica. Mesmo no campo
acadêmico, onde encontramos a maior contribuição para a análise dos impactos
10
COLSON, E. Development Refugees: Indians, Africans and the Big Dams (1994); TURTON, David. Refugees
and 'Other Forced Migrants: towards a unitary study of forced migration (sem data).
11
Os dados da Comissão Mundial de Barragens indicam 40 a 80 milhões de atingidos em todo o mundo, ou seja,
há uma variação de 40 milhões.
9

socioambientais produzidos por barragens12, há ainda uma preponderância de estudos que se


preocupam com aspectos econômicos e técnicos ou nos impactos físico-químicos e
biológicos13.
Apesar dessa desigualdade, os estudos sobre os impactos sócio-ambientais têm
crescido, havendo no âmbito das ciências humanas contribuições importantes que apontam
para os impactos sociais, econômicos, produtivos, culturais que projetos como estes geram.
Áreas do conhecimento como a Sociologia, Antropologia, Geografia destacam-se entre
aquelas que se debruçam há mais tempo sobre o tema, contribuindo de maneira consistente
para a compreensão desses processos. Outras áreas entretanto começam a se aproximar e
contribuir, lançando novos olhares como objetiva a presente pesquisa.
Entre estes estudos considerados mais periféricos, embora não menos importantes, há
por exemplo, alguns autores da saúde que vêm cobrindo esta dimensão (COUTO, 2007;
KOIFMAN, 2001; PORTO, 2007). Segundo eles, há problemas ligados às mudanças
ambientais que geram desequilíbrios no ecossistema e danos àqueles que vivem mais
próximos ao projeto; há também aumento no quadro de doenças ocupacionais na região pelo
número de trabalhadores envolvidos em projetos como estes; há ainda impactos à saúde dos
deslocados que passam por processos de vulnerabilidade social dos mais diversos em todas as
fases do deslocamento (ver Anexo 01) .
Há ainda autores dedicados a considerar questões relacionadas com os direitos,
demonstrando que as violações não se limitam aos aspectos objetivos e pecuniários da perda
das propriedades. Num estudo realizado pelo advogado Rezende (2009), há discussões sobre
os “danos morais” causados pelas barragens. De acordo com o autor, deve -se reconhecer o
direito ao bem-estar e à relação afetiva com o território, embora estas dimensões sejam
normalmente desconsideradas.
Alguns estudos têm demonstrado que esses processos ganham diferentes significados
para os diferentes grupos sociais afetados. Neste grupo, encontramos pesquisas que se
preocupam em analisar os impactos dessas mudanças numa dimensão simbólica e cultural

12
Destaca-se alguns congressos e grupos de pesquisa: Encontros de Ciências Sociais e Barragens (I, II e III);
Inventário Social de Barragens do Projeto Integrado de Pesquisa – Geografia dos Assentamentos na área rural
(GEOGRAFAR UFBA); Observatório socioambiental de barragens do Instituto de Pesquisas e Planejamento
Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Projeto de Assessoria às Comunidades
Atingidas por Barragens da Universidade Federal de Viçosa dentre outros.
13
No “Inventário Social de Barragens” que vem sendo construído pelo GEOGRAFAR – UFBA evidencia-se a
desigualdade de dados em relação aos aspectos técnicos da barragem por oposição aos impactos socioambientais,
como por exemplo o número de atingidos. Sabe-se detalhes sobre a barragem, mas muito menos sobre suas
consequencias socioambientais.
10

(SIGAUD, 1987; 1992; ESTRELA, 2004; SCOTT, 2009; CARMO, 2007). Em muitos casos,
as barragens têm deslocados populações indígenas e quilombolas que, a despeito de disporem
de legislações protetivas específicas vêm sendo impactadas e deslocadas sem qualquer
hesitação.
Embora em menor quantidade, encontramos também alguns estudos preocupados com
os impactos à saúde mental (COLSON, 1996; TURTON, (s/d); ABERIE, 1982) e com o
sofrimento social que projetos como estes têm produzido. Neste grupo, encontramos
pesquisas que documentam processos de adoecimento e até mesmo morte quando projetos
como estes chegam a determinadas regiões. No âmbito da Psicologia Social, em que o foco
não é necessariamente com processos de adoecimento, mas sim com as vivências subjetivas
dessas mudanças, encontramos no Brasil estudos de duas psicólogas, Detoni (2010) que
trabalha com os barrageiros e Alves (2011) que trabalha com populações ribeirinhas.
Mas, como dissemos antes, os impactos das barragens não se limitam à área do
reservatório e a questão dos deslocados e por isso há outros grupos atingidos que são menos
evidentes. Há por exemplo, as chamadas “cidades anfitriãs”, responsáveis por receber os
deslocados ou os trabalhadores da obra e que têm impactos significativos em suas dinâmicas
sociais e políticas públicas, mas que são pouco estudadas (CMB, 2000).
Há também os danos gerados à jusante das barragens, incluindo a questão do risco, já
que projetos como estes são considerados arriscados embora nem sempre isso seja informado
à população que vive nas áreas pós-barragem (VALÊNCIO, 2009). Alguns impactos a jusante
só são sentidos efetivamente alguns anos depois do funcionamento da barragem, quando as
mudanças no ritmo e curso alteram as condições ambientais deste. Na barragem de Pedra do
Cavalo por exemplo, tem surgido uma série de problemas na baía do Iguape gerados por este
tipo de alteração conforme apontam estudos de Prost (2007) e Gens (2006).
A partir do que foi dito, pode-se entender que os atingidos por barragens não são
apenas os deslocados, apesar de serem estes os mais perceptíveis num primeiro momento.
Para o pesquisador Vainer (2008), deve-se considerar o “atingido” como um “conceito em
disputa” já que esta definição varia no tempo, entre as instituições, a depender dos contextos
políticos ou mesmo do desenlace dos conflitos.
Numa análise que fez deste conceito em contextos e instituições diferentes, Vainer
(2008) propôs que consideremos duas formas de conceitualização consideradas por ele como
mais restritas. A primeira, chamada por ele territorial-patrimonialista costuma entender os
11

atingidos como os proprietários de terras que dispõe de documentos para comprovar esta
posse. Já as concepções que denomina hídricas são um pouco mais amplas, mas ainda assim
limitam o atingido àquele que foi inundado.
Entre as décadas de 70 e 80, quando muitas barragens foram construídas
simultaneamente no Brasil, vários conflitos ocorreram em todas as regiões do Brasil e em
muitos casos formou-se as Comissões Regionais de Atingidos por Barragens (CRMAB) que
deram origem em 1991 ao Movimento Nacional de Atingidos por Barragens (MAB)14.
Nessas décadas, muitas lutas e ações foram feitas na tentativa de garantir os direitos
destas comunidades e a ampliação do entendimento de quem são os “atingidos”. Um das
vitórias recentes, em termos legais, está ligada justamente a este conceito com a aprovação
em 2010 do Decreto Presidencial 7.342, que instituiu a criação do cadastro socioeconômico
“para identificação, qualificação e registro público da população atingida por
empreendimentos de geração de energia hidrelétrica” e no qual pela primeira vez o governo
federal define o entendimento deste termo (ver Anexo 02).
Por tudo isso15 é que, apesar do nosso foco ser a população que foi deslocada, tendo
em vista o objetivo deste trabalho, entenderemos que os atingidos não foram apenas aqueles
que tiveram suas terras inundadas e que detinham a titularidade destas, mas todos aqueles que
deixaram de ter acesso aos seus meios de vida ou tiveram estes alterados pelas barragens.
Além disso, conforme indica Vainer (2008), compreenderemos as barragens como
empreendimentos deflagradores de mudanças sociais, ou seja, como um processo
simultaneamente econômico, político, cultural, ambiental e simbólico:
[…] Entender o processo como mudança social implica, igualmente, considerar que há
dimensões não estritamente pecuniárias e materiais. Há perdas que são resultantes da
própria desestruturação das relações prevalecentes, da eliminação de práticas, da perda
de valores e recursos imateriais, por exemplo, a dispersão de um grupo familiar extenso,
ou a inundação de lugares com importância simbólica, religiosa, para um determinado
grupo social (VAINER, 2008, p. 45)

Apesar de Pedra do Cavalo ser uma barragem antiga, funcionamento há mais de 25


anos, considero que este estudo suscita questões extremamente atuais, já que há um número
14
Em 1989 ocorreu o Primeiro Encontro Nacional de Atingidos por barragens, quando aventou-se a formação de
uma entidade nacional que articulasse as diversas lutas. Em 1991, no I Congresso Nacional de Atingidos por
barragens votou-se pela formação do MAB – Movimento de Atingidos por Barragens que desde lá vem
contribuindo decisivamente para organização e luta dos atingidos de todo o país (GERMANI, 1993; MAB).
15
Em Anexo 03 apresento uma tabela que construí para a disciplina optativa “Riscos Ambientais Urbanos”, no
departamento de Engenharia Civil, coordenada pelo Prof. Dr. Roberto Guimarães, na qual busquei sintetizar os
impactos em cascata que um empreendimento como este deflagra. Esta tabela foi elaborada da partir dos artigos
do eixo “Impactos sócio-ambientais das barragens” dos I e II Encontro Internacional de Ciências Sociais e
Barragens: www.escb.ufba.br
12

cada vez maior de pessoas sendo deslocadas compulsoriamente em diversos projetos. Na


política energética especificamente, a despeito de todas as críticas, o Plano Decenal de
Expansão da Energia Elétrica de 2006-2015 do Ministério de Minas de Energia do Brasil
(MME) – prevê a construção de mais 494 Barragens e 942 Pequenas Centrais Hidroelétricas,
que gerarão, segundo estimativas do MAB, a expulsão de mais de 850 mil pessoas de suas
terras, quase dobrando o número atual de atingidos. A retirada das pessoas de seus territórios
é ato comum e naturalizado na maior parte destes empreendimentos e com isso, o estudo
sobre seus impactos certamente traz reflexões importantes e atuais, referidas neste caso tanto
pelo olhar da sociologia, mas também da psicologia.

I. 01) Recorte Empírico: a barragem, o munícipio e o reassentamento

A barragem de Pedra do Cavalo escolhida nesta pesquisa está localizada no Planalto


do Recôncavo Baiano, na Bacia do Rio Paraguaçu tendo sido uma das seis grandes barragens
construídas no Brasil entre as décadas de 70 e 80, como parte da política desenvolvimentista
adotada na época16. Apesar de muito questionada, suas obras foram iniciadas em 1979 e
concluídas em 1985. Para a execução das obras, o governo do Estado criou a Companhia de
Desenvolvimento do Vale do Paraguaçu (DESENVALE), mas a responsabilidade por esta
barragem mudou ao longo dos anos, passando para a Companhia de Desenvolvimento e Ação
Regional (CAR), estando desde 2004 sob administração de uma empresa privada, a
Votorantim, responsável por transformá-la numa hidroelétrica.
Desde sua proposta inicial, é considerada uma barragem de usos múltiplos devendo
servir ao abastecimento de Salvador e região metropolitana; controle dos níveis de água do
Rio Paraguaçu; irrigação, lazer e turismo; fixação das populações locais na região, evitando
êxodo; e posteriormente produção de energia elétrica.
A escolha desta barragem não é aleatória: trata-se de um projeto que deslocou
aproximadamente 5.000 pessoas de suas terras, a maioria produtores rurais e ribeirinhos,
produzindo importantes alterações sobre seus modos de vida, gerando conflitos e resistências
em diversos momentos de suas histórias. Seu reservatório produziu o alagamento de áreas em
nove municípios e a construção de reassentamentos populacionais em oito deles: Feira de
Santana, São Gonçalo dos Campos, Antônio Cardoso, Rafael Jambeiro, Conceição de Feira,

16
As outras foram Itaipu, Sobradinho, Itaparica, Tucuruí , Machadinho e Itá (GERMANI, 1993).
13

Santo Estevão, Muritiba, Governador Mangabeira e Cabaceiras do Paraguaçu. Na Tabela 01 –


Núcleos de Reassentamentos de Pedra do Cavalo – apresentamos os dados das famílias
deslocadas que foram reassentadas, destacando informações sobre a área, total de família e
município do referido núcleo17.

Tabela 1: Núcleos de reassentamento de Pedra do Cavalo

NÚCLEOS RURAIS ÁREAS (HÁ) N.FAMÍLIAS MUNICÍPIOS


Primeira etapa
1- Ilha Antônio Cardoso 202,71 53 Antônio Cardoso
2- Fazenda Mocó 187,46 37 Antônio Cardoso
3- Fazenda Mamona 121,73 29 Santo Estevão
4- Novo Porto Castro Alves 113,99 29 Santo Estevão
5- Fazenda Primavera 117,00 28 Santo Estevão
6- Ilha de São Gonçalo 121,00 27 São Gonçalo dos Campos
7- Fazenda Lagoa Comprida 127,00 23 Muritiba
8- Fazenda Mocambo 32,17 09 Muritiba
9- Fazenda Nova 300,00 69 Rafael Jambeiro
10- Fazenda Pontal Itaporã 227,00 45 Muritiba
11- Fazenda Ieda Barradas 391,30 81 Antônio Cardoso/Feira de
Santana
12- Fazenda Modelo 354,00 76 Santo Estevão
13- Fazenda Brava/Ipuaçu 936,95 142 Feira de Santana
14-Fazenda Xavante /Queimada 392,00 52 São Gonçalo dos Campos/Feira
de Santana
TOTAL 1ª ETAPA 3.623,32 700
Segunda etapa
1- Fazenda Olhos D’água 325,87 40 Muritiba
2- Fazenda Moenda 228,72 22 São Gonçalo dos Campos
3- Fazenda Nossa Senhora da 99,43 14 Feira de Santana
Aparecida
4- Fazenda Paiaiá 203,30 29 Santo Estevão
5- Fazenda Rebouças 115,34 10 Santo Estevão
TOTAL 2ª ETAPA 972,46 115
Fonte: Germani (1993). Elaborado por Palma (2007).

De acordos com os documentos da DESENVALE analisados nesta pesquisa, 1.600


famílias foram reconhecidas como atingidas e destas 930 foram indicadas para os núcleos de
reassentamento, que deveriam ocorrer em duas etapas. Um primeiro aspecto destes números é
que entre as 1.600 famílias atingidas e as 930 indicadas para reassentamentos, sobravam 670
que não apareciam nestes documentos. Segundo relatos das técnicas que trabalharam na
empresa e foram entrevistadas nesta pesquisa, estariam entre essas pessoas aquelas que

17
Esta tabela foi retirada da dissertação de Palma (2007), entretanto a versão aqui apresentada corrige alguns
erros da tabela do autor em que alguns núcleos foram indicados em municípios incorretos.
14

preferiram indenizações ou que dispunham de outras propriedades e por isso não precisariam
viver nos núcleos.
Há entretanto uma outra lacuna, agora entre os “reassentados”, já que apesar da
previsão de 930 famílias, como vimos na Tabela 01, apenas 815 o foram efetivamente.
Segundo a tese de Germani (1993), essas 115 famílias não teriam sido reassentadas até a sua
pesquisa, dado reiterado na dissertação de Palma em 2007. Busquei informações sobre estas
famílias em 2011 e segundo representantes sindicais entrevistados, estas famílias nunca foram
reassentadas, dispersando-se com o tempo na busca por sobrevivência.
A partir desses dados e das primeiras idas a campo para conhecer os núcleos, resolvi
trabalhar com o município de Santo Estevão, considerado um dos mais atingidos, recebendo
06 núcleos de reassentamentos que totalizaram 201 famílias.
O município de Santo Estevão é um dos 17 municípios que compõem o Território de
Identidade Portal do Sertão, estando a 153 km de Salvador e 45 km de Feira de Santana. É
cortado pela BR-116 e pelas BA 120 e 491. Seus limites intermunicipais são Antônio
Cardoso, Cabaceiras do Paraguaçu, Ipecaetá e Rafael Jambeiro. Estima-se uma população de
mais de 46 mil habitantes (SEI, 2010; IBGE 2009), sendo 52% de mulheres e 48% homens e
53% de moradores de áreas consideradas urbanas e 47% da zona rural (SEI, 2010).
Este munícipio está localizado entre os biomas da Caatinga e Mata Atlântica, tendo
uma temperatura média anual de 24º, com períodos chuvosos entre os meses de março e julho.
Localizado na Bacia do Rio Paraguaçu, é banhado por pelos rios Paraguaçu, Camboatá,
Curimataí18, Conde e pelo riacho do Cipó. O munícipio faz parte da unidade de conservação
da APA do Lago de Pedra do Cavalo e está situado no Eixo de Desenvolvimento do Grande
Recôncavo. Sua criação data de 1921, a partir da lei n 1.491 de 12/07/1921, entretanto alguns
dados remontam as primeiras ocupações a 1739. Na ilustração 01, apresentamos um mapa
geral da região com o município de Santo Estevão em destaque.

18
Este rio foi bastante referido nas entrevistas entretanto sob o nome de “Crumataí”.
15

Ilustração 1:Mapa de Santo Estevão e região do Território de Identidade do Portal do


Sertão

Fonte: SEI (2010).

Entre os principais ramos ocupacionais da cidade – além da a gropecuária, extração


vegetal, caça e pesca que nos dados da SEI (2010) ficam subestimados já que apenas os
trabalhadores formalizados são computados – esrão a administração pública com 1.480
pessoas empregadas; a construção civil com 55 e a indústria de transformação responsável por
empregar mais de 2.500 pessoas. Este último dado está ligado a existência de uma fábrica de
calçados que se instalou na cidade em 2001, empregando trabalhadores de Santo Estevão e
16

municípios vizinhos19. Conforme veremos mais a frente, estes três ramos ocupacionais se
repetem no núcleo de reassentamento estudado, em conjunto com a agricultura.
Em relação ao núcleo de reassentamento, escolhi trabalhar a “Fazenda Modelo”, o maior
núcleo do município, tendo recebido 76 famílias na época 20. Este núcleo foi também um dos mais
acessíveis à pesquisadora, já que nas minhas idas a Santo Estevão conheci pessoas do Sindicato de
Trabalhadores Rurais (STR) que eram moradores deste núcleo e logo se disponibilizaram a me
apresentar a comunidade.

Este núcleo, apesar de situado bem próximo ao centro do município (três km da praça
principal), localiza-se do lado direito da BR-116 (sentido Feira de Santana – Santo Estevão),
portanto do lado oposto à cabeceira do Paraguaçu, de onde a maioria dos reassentados vieram.
Assim, não há neste reassentamento nenhuma fonte de água significativa, sendo este um dos
elementos mais apontados durante as entrevistas. Na ilustração 02, encontramos um mapa, sem
escala, construído para esta dissertação a partir do cruzamento de outros mapas. Nele podemos ver
a área do lago e os munícios afetados, a localização aproximada dos núcleos, bem como as
principais estradas que cortam a região. O núcleo de reassentamento Fazenda Modelo encontra-se
destacado e conforme pode ser visto não dispõe de rios ou riachos que passem por ele.

19
A DASS, antiga Dilly, é uma empresa multinacional que atua em países de terceiro mundo e que no Brasil
possui industrias em 12 cidades, normalmente no interior: Itapipoca, Santo Estevão, Itaberaba, Vitória da
Conquista, São Paulo, Pinhalzinho, Saudades, São Carlos, Ivoti. Disponível em: http://www.grupodass.com.br/?
page_id=122 .
20
Na época do deslocamento este núcleo recebeu 76 famílias, sendo que cinco delas já viviam no local sendo
trabalhadoras da antiga fazenda que foi comprada pela DESENVALE para formação do núcleo. As outras 71
famílias vieram, em sua maioria, de Santo Estevão, do “berço do rio”, de localidades diferentes, sendo portanto
este núcleo formado por pessoas de comunidades distintas que pouco se conheciam antes de chegarem lá.
17

Ilustração 2: Mapa sem escala com os municípios e reassentamentos de Pedra do


Cavalo

Fonte: Palma (2007); Germani (1993). Elaborado por Farias (2011).

O núcleo Fazenda Modelo foi formado a partir de uma fazenda comprada pela
DESENVALE de um fazendeiro conhecido na região como Francisco do Açúcar 21. A partir
desta compra a fazenda, que antes dispunha apenas de poucas casas onde ficavam os
trabalhadores e a casa maior do fazendeiro, foi reformulada, dividida em ruas e lotes para se
tornar um reassentamento. Na ilustração 03, temos um croqui desenhado a partir das
memórias e dos desenhos dos reassentados que eram trabalhadores antes da fazenda tornar-se
núcleo.

21
Nome de registro Francisco Lessa (ARAÚJO, A. SANTANA, J., 2007).
Ilustração 3:Croqui com representação da Modelo antes de se tornar reassentamento

Elaborado por Farias (2011).


19

Há diferentes relatos trazidos pelo grupo para contar a história do nome do


reassentamento. O primeiro deles, de acordo com os moradores que já viviam no lugar antes
de se tornar núcleo, seria que o Fazendeiro “Francisco do Açucar” teria comprado duas
fazendas vizinhas, chamadas de Fazenda Saco e Beijo, e transformado numa só com o nome
de Modelo, “uma das mais bonitas de toda a região”. Com esta versão concorre outra, em que
o nome teria sido escolhido pela DESENVALE, porque “queria que eles fossem Modelo para
todos os outros”. Há ainda uma terceira história, contada por uma reassentado mais jovem,
que diz que o nome foi escolhido pelos reassentados numa reunião, porque não queriam se
chamar “Saco” e Modelo seria mais bonito, porque seriam modelo para os outros. Apesar da
diferença sobre quem “batizou” o núcleo entre as versões, há em comum a ideia de que o
nome do reassentamento tinha relação com o fato de que eles deveriam ser “modelo” para os
outros.
Em relação ao perfil deste grupo, fizemos um levantamento, a partir das fichas de
saúde da agente de saúde do município que indicou os seguintes números em 2011: a Modelo
abrigava aproximadamente 511 pessoas em 133 famílias 22. Das 511 pessoas, 54% eram do
sexo feminino (278) e 46% do masculino (233). Em relação à distribuição por idade, 74
pessoas tinham até 10 anos, 125 eram jovens entre 11-21, 253 pessoas estavam na fase adulta
(22-60) e 59 pessoas haviam passado dos 60 anos. Havia portanto pelo menos 38% de
crianças e jovens até 21 anos e 12% de pessoas com mais de 60 anos.

I. 02) Trajetos Metodológicos: as idas e vindas

A opção por trabalhar com a memória de um grupo implica numa abordagem


qualitativa para esta dissertação. Neste sentido, o fio condutor da metodologia aqui
empregada foi, sem sombra de dúvidas, as entrevistas em profundidade com os atingidos.
Nesse processo, trabalhamos com uma escuta atenta e delicada que buscou seguir os
movimentos da memória desses sujeitos, tendo como tema de enquadramento destas
interações a problemática da barragem. Por conta disto é que, apesar das entrevistas serem
livres, tinham um caráter semi-estruturado já que a pesquisadora dispunha de um roteiro geral
de questões que buscava garantir certos temas.
Embora fossem o foco, as entrevistas não foram o único recurso metodológico
utilizado. Ao longo da pesquisa, optamos por combinar estratégias variadas de coleta de

22
A agente de saúde entende como família cada grupo que vive numa mesma casa.
20

dados, que além de aprofundar as informações trazidas pelos entrevistados, contribuíam para
lançar outros olhares sobre o tema. Por conta disto, apesar de ser um estudo eminentemente
qualitativo, dispomos de fontes de informação diversas, inclusive quantitativas, que geraram
portanto dados com características diferentes, todos utilizados na construção do texto.
Em relação aos dados secundários, buscamos informações gerais do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) e da Superintendência de Estudos Econômicos e
Sociais da Bahia (SEI) que nos deu um panorama geral da região estudada. Além disso,
trabalhamos com as Fichas de Saúde da agente comunitária do município, especificamente
com as fichas do núcleo Modelo, que permitiu gerar dados quantitativos com o perfil do
grupo.
Sobre a barragem de Pedra do Cavalo, trabalhamos com algumas dissertações e teses,
além de um vasto acervo de documentos da antiga DESENVALE que nos foi cedido pela
professora Guiomar Germani, coordenadora do Geografar, que trabalhou como técnica da
área social na época de construção da barragem23.
Em relação aos dados primários, coletados no contato junto aos atingidos, a chegada
ao grupo se deu por aproximações. Foram realizadas 06 viagens a campo, sendo a última a
mais longa, quando passei cerca de 15 dias em Santo Estevão convivendo mais de perto com
o grupo, através de encontros e entrevistas com moradores do núcleo de reassentamento
Modelo. As viagens anteriores, realizadas desde o começo do mestrado em 2010, foram
fundamentais para chegar a estas pessoas, mas também para conhecer e entender a barragem e
os documentos da empresa DESENVALE com os quais vinha trabalhando.
Embora a aproximação com o grupo tenha se dado a partir das visitas ao Sindicato de
Trabalhadores Rurais de Santo Estevão – fundamental nesta pesquisa – foi através da
presidente da associação de moradores da Fazenda Modelo que consegui o acesso mais e
próximo e efetivo com o grupo.
Um momento importante na aproximação com esta comunidade ocorreu justamente no
dia que fui conhecê-la. Ela estava na sede da associação com outras mulheres num curso de
pintura de tecidos. Entrei no local, sendo apresentada por ela e após um tempo de conversa
informal ela, que estava sentada numa mesa separada no fundo da sala voltou-se para mim e
disse em voz alta: “Fernanda, você quer ouvir minha história agora?”. Aquela não era a
melhor situação para uma entrevista, mas respondi de pronto: “Claro, quer começar aqui

23
Agradeço à professora Dra. Guiomar Germani pelo apoio nesta pesquisa e pela oferta deste material tão rico.
21

mesmo?”. Mal terminei a frase e ela começou a contar sua história. Falou sozinha durante um
tempo sem parar, quando então pediu que lhe perguntasse algo. Fiz uma ou duas perguntas e
ela seguiu sozinha na “entrevista” contando a sua história. As mulheres mais próximas
acompanhavam-na e no final começaram a se interessar e interagir. A “entrevista” durou
apenas 18 minutos, mas creio que tenha sido o suficiente. Para mim, não eram exatamente
informações que ela me passava, mas a “chave” pública para acessar o grupo. Era como se,
após a presidente da associação ter se aberto comigo, deixasse para as outras a mensagem, de
que, como ela, poderiam também me contar suas histórias.
A partir desse momento, neste mesmo encontro, me aproximei das outras mulheres
que se mostravam mais interessadas e marquei de ir em suas casas. A partir dessas entrevistas,
fui buscando alguns “personagens” mais recorrentes que eram indicadas como pessoas
importantes na história do grupo – seja por sua participação nas lutas em torno da barragem
ou das melhorias da comunidade, seja por serem pessoas cuja história parecia ressoar.
Para a realização das entrevistas, optei por uma condução mais informal, evitando
muitos papéis ou perguntas prontas. Construí um roteiro geral com perguntas a partir dos
meus objetivos de pesquisa, utilizando-as nas conversas a partir do conteúdo trazido pelo
entrevistado.
Em alguns casos, as entrevistas ocorreram com mais de uma pessoa, já que a maioria
dos meus entrevistados eram pessoas de mais idades que viviam com seus companheiros (as)
ou filhos/netos. Nesses encontros, havia certa centralidade de um dos entrevistados, com falas
complementares do outro, que em alguns momentos dividiam a interpretação ou lembrança de
algum processo vivido.
Durante as entrevistas, incorporei algumas estratégias, como o uso dos mapas da
região e dos núcleos que ajudavam nas lembranças. Além disso, trabalhei com a construção
de árvores familiares, buscando saber onde cada pessoa da família vivia antes de depois da
construção da barragem. Um dos aspectos mais importantes indicados nestas árvores é que a
barragem, além de separar as famílias num primeiro momento, impôs a migração dos filhos
num segundo, por conta do reduzido tamanho das terras que impedia a sobrevivência do
grupo. Este foi um dos temas de destaque nas memórias deste grupo e será discutido nos
capítulos três e quatro.
Por fim, após as entrevistas, combinei com todos de nos reunirmos na sede da
associação de moradores para uma oficina de mapas. Levei os materiais necessários para a
22

atividade e pedi que me mostrassem como era o lugar em que viviam antes da barragem.
Além dos desenhos por família, que representavam localidades diferentes 24, pedi que
construíssem coletivamente um desenho com o mapa do núcleo Modelo, destacando como era
quando chegaram e como seria atualmente. A partir deste mapa construí os croquis da
comunidade que serão apresentados nos capítulos mais a frente.
A partir destas informações, podemos entender porque esta pesquisa, apesar de se
concentrar nas entrevistas, utilizou estratégias complementares para a coleta das informações.
Dispomos assim dos seguintes materiais:
• Dados secundários da região
• Documentos da DESENVALE
• Entrevistas (áudio e transcrição)
• Árvore familiar
• Fotografias
• Desenhos dos lugares em que viviam
• Mapa coletivo do reassentamento Modelo
• Dados quantitativos da agente de saúde

Após a qualificação, realizei também entrevistas semi-estruturadas em profundidade


com três técnicas que trabalhavam na DESENVALE na área social na época da barragem e fiz
mais uma entrevista com a militante ligada ao Pólo Sindical de Feira de Santana. Estas
entrevistas também foram utilizadas nos capítulos compondo com o olhar dos atingidos a
história sobre esta barragem.
Para identificação das falas dos entrevistados durante o texto, optei por utilizar a
primeira letra do nome em maiúscula, garantindo o sigilo dos informantes conforme resolução
CNS 196/96. Nos casos em que o nome começava com a mesma inicial, optei por agregar
mais uma letra. Para identificar o sexo, utilizei as vogais (a) para o sexo feminino e (o) para o
sexo masculino após a primeira letra do nome.
Em todas as citações, ao final da fala, busquei agregar a condição geral do informante
(atingido/deslocado; trabalhador da antiga fazenda; técnica da área social ou militante de
entidade) juntamente com a data de realização da entrevista. Nos casos em que a entrevista
envolvia filhos ou netos de atingidos dos entrevistados agreguei a informação 2a ou 3a
geração para destacar que grupo falava em cada momento. Em relação ao nome das técnicas
24
As famílias vieram das seguintes localidades: Fazenda “Pocinho”, “Magalhães”, “Tororó”, “Trapiá” e
“Batizal”.
23

que trabalharam na DESENVALE, optei pela utilização das letras X, Y e Z, que não fazem
qualquer referência às iniciais de seus nomes.
No total, foram realizadas 14 entrevistas, com 17 pessoas. Estas entrevistas
produziram cerca de 17 horas e 34 minutos de gravações e 405 páginas de transcrições.
Algumas dessas entrevistas tiveram um caráter mais “institucional” (a agente de saúde
responsável por este núcleo, uma militante do Pólo Sindical de Feira de Santana, as técnicas),
enquanto as outras gravações foram feitas com famílias distintas ou com gerações diferentes
de uma mesma família, perfazendo sete grupos familiares que vieram de cinco localidades
diferentes. Em dois casos, entrevistamos pessoas que não foram deslocadas, mas que já
viviam na antiga fazenda que foi comprada e se tornou um núcleo de Pedra do Cavalo.25

I. 03) Para além dos procedimentos: impressões dos encontros

Como lidar com o tempo do outro, respeitando os esforços individuais e coletivos para
lidar com as memórias? Como suscitar e trazer a tona memórias de tempos difíceis e
impactantes, que através de certo esforço tornaram-se de certa forma “esquecidos”? Estas são
perguntas que sempre me faço nas diversas interações que temos com as pessoas na condição
de pesquisadores. Algumas delas fazem mais sentido hoje, depois de lidar com um grupo que
mais parecia querer esquecer que lembrar, viver o hoje do que calcular o que ganhou ou
perdeu, me chamar para o agora, enquanto eu, com minhas “autênticas perguntas de
pesquisa” buscava levá-los ao passado. Como toda relação social, também as entrevistas estão
envoltas por interesses e expectativas não necessariamente conscientes: o que quero com
eles? o que querem de mim? quais os interesses em jogo? que expectativa nutrimos de um
lado a outro?
Começo dizendo tudo isso porque, durante os contatos com os moradores da Modelo,
a despeito de estarem muito envolvidos com o encontro, sorridentes e interessados, senti que
muitas vezes se esquivavam ou passavam com brevidade sobre alguns temas. Inicialmente
fiquei confusa, achando que poderia não estar sendo uma boa entrevistadora, mesmo já tendo
tido experiências anteriores. Mas a repetição desse processo começou a indicar que talvez se
tratasse de algo mais delicado. Foi com Dona D (a), minha última entrevista – rica em
detalhes – que comecei a entender o que ocorria. Num dado momento de nosso encontro,

25
Em anexo 04 apresentamos os dados de todas as entrevistas detalhadamente.
24

fizemos sua árvore familiar e pude ver que sua família era grande e que na mudança para o
reassentamento pouco restou de seu grupo familiar, já que ela foi viver na Modelo apenas
com seu marido e filhos. Quando vi este dado lhe perguntei: “Dona D(a), como foi isso de vir
sozinha tendo uma família grande assim?” Ela me respondeu sorridente: “ah menina, saudade
sim, tristeza não!” Resolvi pergunta-la novamente e ela repetiu a mesma frase: “Saudade sim,
tristeza não”. Foi então que perguntei o que queria me dizer com essa frase e ela disse:
D (a): Vou fazer como a história, saudade sim, tristeza não! Se for entristecer, a gente
pára. Tem que dizer: saudade sim, tristeza não! Vai embora tristeza, porque não é fácil
não filha (D (a), 53 anos, atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo,
entrevista em 04/03/2011).

Foi só então que pude repensar as entrevistas. Na verdade, aquilo que buscava não eram
lembranças fáceis, disponíveis e mais que tudo, desejáveis. Se a vida mudou, e melhorou, porque
lembrar destes momentos? Eu, chamando-os para o passado, eles chamando-me para o presente,
que lhes parecia melhor. Embora em meu projeto de pesquisa já tivesse apontado para o papel do
esquecimento e dos silêncios no trabalho com a memória, através de autores como Pollak e Bosi,
foi somente com Dona D (a) que pude encarnar a teoria e entender, concretamente, o que os
autores queriam me dizer.
25

II. Memória e Esquecimento: encarnando a teoria

[…] não há memória para aqueles a quem nada pertence. Tudo o que se trabalhou,
criou, lutou, a crônica da família ou do indivíduo vão cair no anonimato ao fim de seu
percurso errante. A violência que separou suas articulações, desconjuntou seus esforços,
esbofeteou sua esperança, espoliou também a lembrança de seus feitos (BOSI, ,2003,
p.163).
26

Trabalhar com um tema como memória implica em fazermos opções já que a


quantidade e amplitude de abordagens nos impõem, de antemão, o limite de cobrir tão vasta
produção. A memória, que já foi trabalhada por filósofos, religiosos, romancistas e cientistas
das mais diversas áreas, é ao mesmo tempo tema antigo e atual e por isso discuti-lo significa
mapear, em meio a tantas vias possíveis, o caminho ou os caminhos que mais se aproximam
do nosso.
Optei então por recorrer a autores clássicos como Bergson (1999) e Halbwachs (2004),
mas também contemporâneos como Pollak (1989; 1992), Bosi (2003; 2006), Ricceur (2007) e
Porteli (2006). O diálogo com os autores mais antigos justifica-se por sua atualidade, por sua
recorrência e sobretudo por sua influência nos debates atuais. Todos os autores aqui
trabalhados citam e se posicionam em relação às principais questões colocadas por estes
autores. Para Schmidt (2006), isto ocorre porque estes dois autores podem ser considerados
como o “núcleo duro” teórico metodológico da maior parte dos estudos de memória.
No século XIX, com o processo de constituição de diversas disciplinas, incluindo ai as
ciências sociais e a história, estes autores ganharam destaque, mas foram incorporados como
vertentes distintas. Teriam nesse processo sofrido o peso dos debates de seu tempo, mas
principalmente dos processos de institucionalização e disputa disciplinar, que acabaram por
tomá-los, quase sempre, como autores de visões distintas e necessariamente antagônicos
(SCHMIDT, 2006).
Para Schmidt (2006), embora com abordagens diferentes, ambos escreveram num
contexto de grandes transformações na Europa Ocidental, marcado sobretudo pela
industrialização e urbanização, quando o interesse pela memória ganhou força. A percepção
disseminada na época era que tantas mudanças produziam sensações de desenraizamento e
que o recurso à memória poderia de algum modo servir de contraponto.
Esta relação entre desenraizamento social e memória é também sugerida por Bosi
(2003), ao perguntar-se sobre sua recuperação atual no âmbito das ciências humanas: seria um
tema estratégico quando tudo em volta parece sucumbir. De algum modo, também esta
pesquisa parece estar guiada por esta preocupação: em meio a tantas mudanças, a inundação
de territórios de toda uma vida, perdidos para sempre, o que pode ficar? O que a memória
guarda de tudo o que passou? O que fica? “Fica o que significa”, diria Bosi. Com esta
afirmativa caminharemos nos estudos de memória buscando entender de fato o que isto quer
significar.
27

II. 01) Um dilema paralisante – memória como produção individual ou


coletiva? 26
Em 1896, Henry Bergson publicou a obra “Matéria e Memória: Ensaio sobre a relação
do corpo com o espírito” na qual se propôs a enfrentar os debates filosóficos de sua época e as
dificuldades teóricas que o dualismo provocava ao tratar “matéria” e o “espírito” através de
perspectivas ora idealistas ora realistas. A estas perspectivas, consideradas por ele como
igualmente excessivas, propôs uma abordagem a meio caminho, afirmando tanto a realidade
do “espírito” quanto a realidade da “matéria” e buscando construir uma abordagem mais
próxima da experiência comum, ou seja, das ideias, concepções e sensações dos homens
simples. Dizia ele:
Colocamo-nos no ponto de vista de um espírito que ignorasse as discussões entre os
filósofos. Esse espírito acreditaria naturalmente que a matéria existe tal como ele a
percebe; e já que ele percebe como imagem, faria dela própria uma imagem. Em uma
palavra, consideramos a matéria antes da dissociação que o realismo e o idealismo
operaram entre sua existência e sua aparência. Certamente tornou-se difícil evitar essa
dissociação, desde que os filósofos a fizeram. Pedimos no entanto que o leitor a esqueça
(BERGSON, 1999, p.03)

Diferente de outros filósofos, Bergson (1999) dialogava tanto com questões


metafísicas quanto com as pesquisas científicas disponíveis na época, propondo que os
problemas filosóficos fossem trazidos ao campo da observação, ao invés de circunscritos à
esfera da filosofia, se perdessem indefinidamente nas disputas internas das escolas existentes.
Ao longo de toda a obra, apresenta suas divergências com os filósofos, mas também
com os psicólogos que ou não abordavam a relação entre corpo/espírito, ou diziam que havia
uma união entre corpo e alma, mas de natureza inexplicável, ou entendiam o corpo apenas
como um instrumento da “alma”.
Mas qual seria a relação entre estas questões filosóficas e o tema da memória? É que
para Bergson (1999), a memória seria o ponto preciso de interseção, o elo, aquilo que
articularia a relação entre matéria e espírito. Para explicar esta relação, Bergson lançou mão
de toda uma fenomenologia da memória, que será aqui apresentada com brevidade, apenas
para garantirmos uma apropriação mais cuidadosa do autor.
O primeiro ponto destacado é que Bergson (1999) discordava da forma como a
memória era estudada, sobretudo pela escola psicofísica, que via este fenômeno

26
Dilema paralisante é a expressão de Ricceur (2007) para falar sobre o eterno debate indivíduo/sociedade que
também repercute nos estudos de memória.
28

preponderantemente a partir de quadros patológicos – da observação de pacientes com


cegueira psíquica, amnésia, afasia e outros distúrbios.
Para Bergson, o corpo deveria ser considerado como um centro de ação e não de
representação que também tinha relações com a memória e não apenas o cérebro como se
costumava analisar. Para ele, em meio ao mundo – com suas formas, elementos e objetos – o
corpo se tornaria aos poucos centro de nossa experiência, referencial de nossa relação com o
mundo, através de longos processos de induções que fariam com que notássemos o corpo
como um elemento invariável em meio às outras imagens que variariam no tempo e espaço.
Neste sentido, para Bergson (1999) seria no corpo e não do espírito, que nossas percepções se
desenvolveriam, sendo que para ele também a percepção não deveria ser entendida como pura
idéia ou representação.
De acordo com Bergon (1999), embora a matéria tivesse sim uma existência concreta,
na prática ela não seria apreendida em si mesma, mas sim como um conjunto de imagens. A
percepção seria então as mesmas imagens desse mundo concreto apreendidas a partir da ação
de uma certa imagem, o meu corpo. Ou seja, nossa ação no mundo determinaria, limitaria e
recortaria nosso olhar e a relação que estabelecemos com as coisas, portanto a percepção que
delas temos. Nesta perspectiva, Bergson (1999) se diferenciava de seus contemporâneos, que
costumavam entender que perceber era igual a conhecer, ou seja, tratavam a percepção numa
perspectiva especulativa, servindo esta apenas para a produção de “conhecimento puro”.
Porque se toma a percepção por uma espécie de contemplação, porque se lhe atribui
sempre uma finalidade puramente especulativa, porque se quer que ela vise a não se
sabe qual conhecimento desinteressado: como se, isolando-a da ação, cortando assim
seus vínculos com o real, ela não se tornasse ao mesmo tempo inexplicável e inútil!
(BERGSON, 1999, p. 72).

Para sustentar sua perspectiva, tomará o cérebro como um centro de ação destacando
exemplos da evolução das espécies buscando demonstrar como, desde os organismos mais
simples até os mais complexos, os estímulos do mundo são percebidos e acionados através de
centros motores, de ação, e não apenas de mecanismos sensíveis produtores de imagens. Para
ele, apesar da tentação a supormos que a evolução teria produzido uma certa
“espiritualização” dos conhecimentos, uma análise comparativa da estrutura cerebral e
medular com organismos menos complexos poria em cheque tal perspectiva. Em todo o
complexo movimento que envolveria levar os estímulos ao cérebro e emitir respostas, não se
teria ganho apenas na transformação das coisas em representação, mais numa sofisticação e
ampliação das possibilidades ação do ser no mundo.
29

Apesar de alguns de seus exemplos e hipóteses terem sido superados, faz-se


importante marcar a contribuição que este autor trouxe ao pensar na percepção para além de
nossas representações do mundo – como conhecimento especulativo – tratando-a como
elemento ativo ligado ação.
Mas por que abordar estes aspectos teóricos sobre a percepção? Porque para Bergson
(1999), não haveria atividade ou escolha humana que não levasse em conta e não se inspirasse
em experiências passadas. Entre a nossa imagem do mundo e as coisas, entre o corpo e o
espírito, entre os estímulos vindos do mundo externo e nossa ação, haveria certos
constrangimentos produzidos pelas lembranças. Desta forma, destaca o autor a relação entre
percepção e memória
Na verdade, não há percepção que não esteja impregnada de lembranças. Aos dados
imediatos e presentes de nossos sentidos misturamos milhares de detalhes de nossa
experiência passada. Na maioria das vezes, estas lembranças deslocam nossas
percepções reais, das quais não retemos então mais que algumas indicações, simples
“signos” destinados a nos trazerem à memória antigas imagens (BERGSON, 1999, p.
30).

Bergson (1999) entretanto foi além e a este debate mais geral sobre a relação entre
estes dois fenômenos, propôs uma teoria da memória, designando tipos de memória e relações
mais precisas com a percepção.
Em sua perspectiva, o passado sobreviveria de duas maneiras: ou através de
mecanismos motores ou por meio de lembranças. No primeiro caso, a memória estaria
intimamente ligada à ação e portanto o passado atuaria no presente através de mecanismos
corporais adaptáveis à situação atual. Seria uma espécie de hábito, produzido a partir da
repetição, recomposição e transformação das ações em mecanismos motores que atuariam
cotidianamente sobre nós. No segundo caso, não com o corpo, mas com o “espírito” que a
memória estaria ligada, sendo esta produto do esforço dirigido ao passado, tornado presente
através das representações. Esta memória, não estaria ligada à repetição da vida, mas
guardaria os acontecimentos como “momentos irredutíveis” da nossa história.
Destas duas formas de sobrevivência do passado, ele propõe dois tipos de memória:
memória hábito e a memória representação. Mais do que diferenças de graus, estas
memórias teriam naturezas distintas: na memória hábito o passado seria depositado no corpo
através de mecanismos adaptáveis voltados para a ação. O passado não seria representado,
mas vivido, repetido, sendo uma espécie de memória “agida”. Já no segundo caso, a memória
representação, o passado seria representado, imaginado, retomado por meio da atividade do
30

espírito. A memória representação registraria através de imagens, o cotidiano e os


acontecimentos da vida, sem necessariamente haver uma utilidade prática. Na verdade, para
Bergson, esta seria a memória por excelência.
Entre estas duas formas de sobrevivência do passado existiriam duas formas distintas
de retomá-lo: a primeira seria considerada mais passiva, já que o passado agiria sobre nossos
hábitos, enquanto a segunda mais ativa, tendo em vista que chegamos ao passado através do
esforço de nosso espírito.
Apesar das diferenças, em grau e natureza, Bergson (1999) que elas se prestam ao
apoio mútuo, não havendo para ele uma distinção tão clara em nossa experiência cotidiana.
Ainda que avance um pouco, para Ricceur (2007) este é sem dúvida um ponto crítico da teoria
de Bergson, na medida em que, buscando superar o dualismo entre o corpo e o espírito, acaba
por retomá-lo quando distingue as duas formas de memória.
Considero que sua proposta de pensar os sistemas perceptivos como intimamente
ligados à ação e não apenas à representação, criticando o papel eminentemente especulativo
que se confere à percepção, valiosa; entretanto acredito que a separação entre estes dois tipos
de memória em ação/representação associada a dois tipos de atitudes antagônicas seria um
problemática, já que para ele, é como se, para lembrar precisássemos não agir.
De sua teoria, destacamos três grandes contribuições: a) a possibilidade de
investigação das percepções sobre as experiências vividas a partir da memória; b) a
consideração de que as experiências anteriores influenciarão nas percepções, representações e
ações atuais; c) a consideração da dimensão corporal envolvida na memória, indicando sua
influência sobre os hábitos atuais.
Mas o debate sobre a memória não se esgota com Bergson (1999) e então poderemos
perguntar com Halbwachs (2004): seriam as lembranças uma produção dos indivíduos na sua
intensa relação com o mundo?
Halbwachs (2004), ex-aluno de Bergson, propôs-se a contribuir com os estudos de
memória de outra forma, apostando no papel do outro, da sociedade na construção das
lembranças. Aderindo a uma perspectiva sociológica, cuja influência principal foi Durkheim,
Halbwachs (2004) rompeu com seu antigo professor Bergson construindo uma trajetória
intelectual mais próxima da sociologia (ALEXANDRE, 2004).
Combinando o método objetivo e reflexivo da ciência com a filosofia para apreender a
memória nas tramas da vida social, ultrapassou a sociologia clássica, inaugurando uma série
31

de possibilidades ao estudo do cotidiano (ALEXANDRE, 2004). Como Bergson fez na


filosofia, aproximou a sociologia da realidade comum através de uma proposta teórico
metodológica ousada, que unia, contrariamente ao postulado positivista de seu tempo, uma
interpretação compreensiva a uma análise causal, buscando reconhecer o papel dos diferentes
grupos sociais na conformação das lembranças (DVIGNAUD, 2004).
De acordo com ele, nossa relação com o passado se daria o tempo todo, por vezes de
maneira mais clara do que outras. Entre essas lembranças, haveria aquelas que só dizem
respeito a nós mesmos e às pessoas mais próximas, enquanto outras nos pareceriam mais
gerais como um período, uma época vivida, fatos e processos políticos. Não importando o
caso, se recordamos de algo mais pessoal ou social, sentimos constantemente que somos nós
que lembramos, que é através de nós que estas lembranças existem, que apenas nós as
guardamos de determinadas formas e que por isso essas memórias seriam individuais. Para
Halbwachs (2004), esta ideia de que por serem “nossas” e “pessoais”, as memórias seriam
individuais seria na verdade um grande equívoco, uma grande ilusão. Em primeiro lugar, diz-
nos Halbwachs (2004), nunca estamos sós . Mesmo quando se trata de acontecimentos vividos
sem mais ninguém, esse estar só é apenas uma aparência, pois estamos sempre ligados a
outros homens, não necessitando que estes estejam presentes.
Suponhamos, como exemplifica Halbwachs (2004), que viajamos sós e que nesta
viagem, olhamos certos lugares e monumentos. O fato de estarmos sós, não quer dizer que
nosso olhar seja apenas nosso, na medida em que nosso pensamento se guia muitas vezes por
referências que nos foram oferecidas por outros homens(sugeridos por amigos, livros ou
outros). Ou seja, adoto, a cada momento, um tipo de atitude ou olhar que não é apenas meu,
mas que foi forjado junto a outros com os quais me relacio. Esta memória seria social, ainda
que a imagem guardada de cada lugar seja apenas minha.
Mas este exemplo não nos bastaria para confiarmos na premissa proposta por
Halbwachs (2004) e neste caso, valeria a pena analisar outra situação um pouco mais radical.
Tomemos situação trazida pelo autor quando uma criança se perde numa floresta. A criança
relembraria deste momento com muita angústia, pois não encontrava seus pais, familiares ou
amigos, vivendo aquela situação dramática solitariamente. Neste caso, temos algo vivido só,
em que absolutamente ninguém mais participou e apenas a criança se lembra. Ainda assim,
para Halbwachs (2004) não se trata de uma memória individual, já que a criança buscava e
lembrava de uma família fisicamente ausente. Era a ausência dos seus, a distância destas
32

pessoas, sentida e vivida angustiantemente que indicava a relação social que alimentavam
aquela experiência de solidão. Mesmo ausentes, uma comunidade humana se fazia presente, e
portanto apesar de aparentemente só, não se tratava jamais de algo individual. Além disso,
essas lembranças estariam envoltas em objetos e lugares com marcas humanas, sendo
contadas através de uma linguagem socialmente compartilhada, não havendo portanto
nenhum aspecto destacável nelas que não fosse de natureza social.
Como seres sociais, não haveria nada em nossa produção que não fosse de natureza
social. Eis aí sua premissa: sendo o homem um ser social também sua memória o é, não
havendo portanto nenhuma memória humana individual.
[…] é por isso que, quando um homem entra em sua casa sem estar acompanhado de
alguém, sem dúvida durante algum tempo “esteve só”, segundo a linguagem comum.
Mas lá não esteve senão em aparência, posto que, mesmo nesse intervalo, seus
pensamentos e seus atos se explicam pela sua natureza de ser social, e que em nenhum
instante deixou de estar confinado dentro de alguma sociedade (HALBWACHS, 2004,
p. 41).

Estamos diante de um ponto no qual Halbwachs (2004) diverge claramente a Bergson


(1999), já que para ele não haveria em nossas lembranças “nenhum estado de consciência
puramente individual” constituíodo como pura “intuição sensível”. Por mais antigas e
originais que sejam nossas impressões do mundo, seria difícil encontrar alguma lembrança
que se referisse a sensações como apenas reflexos dos objetos exteriores, em que estas
imagens não estivessem misturadas, sob qualquer forma, a outros homens e outros grupos que
nos cercavam: “se não nos recordamos de nossa primeira infância, é, com efeito, porque
nossas impressões não se podem relacionar com esteio nenhum, enquanto não somos ainda
um ente social” (HALBWACHS, 2004, p. 42).
Mas dizer que a memória é social, não quer dizer que toda lembrança seja coletiva.
Embora possa parecer contraditório, não o é, já que Halbwachs (2004) diferencia o que chama
de memória histórica e memória coletiva.
A memória histórica, que muitas vezes também é chamado por Halbwachs (2004) de
história, representaria a memória social no sentido mais amplo: a atmosfera de uma época –
com suas concepções, sensibilidades e jeitos de ser – as formas de marcação do tempo
socialmente compartilhadas, os momentos históricos de uma memória pública como eleições,
crises, mudanças de regime, acontecimentos que entram para o imaginário social.
Esta memória histórica ancoraria os grandes marcos da memória das pessoas, já que
quando evocamos acontecimentos de vida utilizamos uma série de referências fixados pela
33

sociedade em geral, como as noções de tempo utilizadas para a divisão da vida coletiva. De
certo modo, muitas vezes esta memória é vivida como mais distante, nem sempre parecendo
nossas, mas sim ligadas a um processo mais geral, como por exemplo a história nacional.
Já a memória coletiva seria diferente desta memória mais ampla, sendo um outro tipo
de memória social, mais próxima e orgânica, relacionada com os grupos de referência dos
quais fazemos parte. Para Halbwachs (2004), não basta que tenhamos vivido uma mesma
situação com determinado agrupamento de pessoas para que estas vivências possam ser
entendidas como memória coletiva. Na verdade, se um acontecimento vivido não deixa seu
rastro, se somos incapazes de reconstruí-lo sob o ponto de vista do grupo, não poderemos
chamar determinado conjunto de imagens de memória coletiva. Isto porque na concepção de
Halbwachs (2004), para que algo vivido em comum possa se converter em memória coletiva
é preciso que eu possa me recolocar sob o ponto de vista do grupo e recordar com ele o
passado. É preciso portanto, adotar uma “atitude mental” a partir do grupo, com suas formas
de pensar, perceber e sentir.
Por exemplo, se tomo certa distância de um grupo que fiz parte e nesta distância perco
este grupo como referência, ao retomar o passado lembrarei de certas vivências com um certo
distanciamento ou até estranhamento. Em outros casos, mesmo longe, relembro o passado e
mais que isso, me sinto parte do grupo. Para Halbwachs (2004), o que perdemos no primeiro
caso não foram as imagens do passado, mas a capacidade de nos colocarmos a partir da
concepção do grupo, a partir de “noções comuns” que compartilhamos. A diferença entre os
dois casos, não estaria exatamente no tempo desta distância, mas no vínculo afetivo em
relação ao grupo. A memória coletiva seria então justamente esta possibilidade de reconstruir
um passado em comum, sendo este passado revelador do imaginário do grupo.
Acontece com muita frequência que atribuímos a nós mesmos, como se elas não
tivessem sua origem senão em nós, ideias e reflexões, ou sentimentos e paixões, que nos
foram inspirados por nosso grupo. Estamos então tão bem afinados com aqueles que nos
cercam, que vibramos em uníssono e não sabemos mais onde está o ponto de partida
das vibrações, se em nós ou nos outros (HALBWACHS, 2004, p. 51)

Resumindo, a memória coletiva revelaria não só o passado, mas o esforço do grupo em


agir sobre esse passado, resguardando certos aspectos em detrimento de outros. A seleção que
se opera sobre a memória revela os pontos de articulação que o grupo estabelece com seu
passado, seu ponto de vista e aquilo que é tomado como representativo de si mesmo.
A memória coletiva, ao contrário, é o grupo visto de dentro, e durante um período que
não ultrapassa a duração média da vida humana, que lhe é, frequentemente, bem
inferior. Ela apresenta ao grupo um quadro de si mesmo que, sem dúvida, se desenrola
34

no tempo, já que se trata de seu passado, mas de tal maneira que ele se reconhece dentro
dessas imagens sucessivas. A memória coletiva é o quadro de analogias, e é natural que
ela se convença que o grupo permanece, e permaneceu o mesmo, porque ela fixa sua
atenção sobre o grupo, e o que mudou, foram as relações ou contatos do grupo com
outros (HALBWACHS, 2004, p. 93)

Mas retomemos o “dilema paralisante” que iniciou este debate: não temos dúvida de
que Bergson (1999) e Halbwachs (2004) trouxeram importantes contribuições para os estudos
da memória. Em cada um deles, uma série de discussões, hipóteses e propostas foram
lançadas, de modo que ao longo deste texto os encontraremos várias vezes ainda. Neste
momento, entretanto buscaremos enfrentar a questão indivíduo/sociedade na produção das
lembranças, já que os diversos autores aqui usados participam desta encruzilhada teórica, ora
posicionando-se com um, ora posicionando-se com outro, ora buscando posições
intermediárias ou ora reivindicando certas dicotomias.
De começo Halbwachs (2004) levanta, entre as suas divergências, o peso dado por
Bergson ao indivíduo. Ao abordar a relação entre corpo e espírito a partir das lembranças,
Bergson teria sido considerado como um autor que estuda a memória como um ato apenas do
indivíduo, tendo em vista que não se ateve, nem se preocupou com a produção social da
mesma. Embora concorde com certos aspectos criticados por Halbwachs, considero que o
problema enfrentado por Bergson era outro. Interessava-lhe entender como uma lembrança
nos chega a atualidade saindo de uma “virtualidade” para ser revivida e de que forma certas
experiências são guardadas e recuperadas durante os processos de recordar. Neste sentido,
perguntava-se Bergson (1999) mais pelo como, do que por quem lembra.
Mas isto não foi bastante para Halbwachs (2004) que, rompendo com boa parte da
perspectiva filosófica de Bergson, tomou para si a tarefa de enfrentar o problema do “social”
na produção das lembranças. Não tenho dúvidas de que, em seus objetivos, Halbwachs (2004)
trouxe análises consistentes que modo que não se pode desconsiderá-lo. Concordo inclusive
com sua importante premissa, segundo a qual toda memória é social já que somos seres
eminentemente sociais e não existimos fora das teias de relações que nos recebem e nos
instituem como sujeitos.
Entretanto considero que, apesar de ser um pressuposto fundamental, ele não resolve o
problema central de entendermos como e de que forma este “social” atua sobre as lembranças.
Isto porque, se estas lembranças não podem ser ditas como individuais por sermos seres
sociais, também não podemos dizer que sejam apenas sociais, haja visto que comumente são
indivíduos que lembram e não entidades sociais (ainda que hoje tenhamos instituições
35

definidas para cuidar da memória). Neste caso, teremos de levar o debate a uma zona menos
limite para enfrentarmos nossos dilemas de uma maneira mais complexa.
Para que fique claro então, concordamos com Halbwachs (2004) que nossas memórias
são sempre sociais, por nossa natureza social, não havendo nada em nossas lembranças, nem
mesmo a imagem mais antiga e solitária, que não esteja envoltas de elementos sociais:
objetos, linguagem, sistema de percepção, crenças, temporalidade ou mesmo a presença dos
ausentes. Entretanto teremos de discordar, e não solitariamente, apoiando-nos em outros
autores como Bosi (2003; 2006), Pollak (1989;1992), Porteli (2006), Ricceur (2007), que o
debate sobre o papel da memória coletiva na produção dos indivíduos precisará ser
sofisticado, pois devemos considerar o papel ativo dos indivíduos que lembram.
Claro que alguns logo dirão que Halbwachs (2004) disse que são indivíduos que
lembram e que cada lembrança individual é um ponto de vista da memória coletiva.
Entretanto, o fato de reconhecer que os indivíduos lembram, em alguns momentos de sua
obra, não quer dizer que tenha dado a estes indivíduos um papel ativo e criativo na construção
da memória.
Para começar, conforme já explicitamos antes, Halbwachs (2004) propõe dois tipos de
memória social, a coletiva e a histórica. Na primeira, trata-se de uma memória mais próxima,
em que os nossos grupos de referência têm um papel fundamental na construção das
lembranças. Mesmo quando distante, ao recuperar uma história, o fazemos porque o grupo
“age em nós” conformando nossas percepções sobre o acontecimento. Já na segunda, a
memória histórica, seria a sociedade em geral que modularia minha relação com o passado e
também neste caso me apoio sobre o “social”. De certa forma, ao recuperar feitos de minha
vida, estaria sempre ligada a um ou outro tipo de memória, quando não os dois, e por isso o
papel do indivíduo é quase passivo na produção das lembranças: sou muito mais um
transmissor dessas lembranças que um artífice.
[…] acontece com muita frequência que nos atribuímos a nós mesmos, como se elas não
tivessem sua origem em parte alguma senão em nós, idéias e reflexões, ou sentimentos e
paixões, que nos foram inspirados por nosso grupo. Estamos então tão bem afinados
com aqueles que nos cercam, que vibramos em uníssono, e não sabemos mais onde está
o ponto de partida das vibrações, em nós ou nos outros (HALBWACHS, 2003, p. 51).

Discordamos desta posição secundária dos indivíduos na produção das memórias, e


neste ponto nos aproximamos de Porteli (2006) que propõe, sem desconsiderar e buscando
localizar o papel dos grupos na confecção das lembranças, que usemos a expressão memória
coletiva quando de algum modo esta memória esteja abstraída e separada da “individual” –
36

nos mitos do grupo, na delegação de uma pessoa como representante do grupo, nas
instituições que organizam memórias (escolas, igreja, estado, partidos, associações...).
[…] se toda memória fosse coletiva, bastaria uma testemunha para a cultura inteira:
sabemos que não é assim. Cada indivíduo, particularmente nos tempos modernos, extrai
memórias de uma variedade de grupos e as organiza de forma idiossincrática. Como
todas as atividades humanas, a memória é social e pode ser compartilhada (razão pela
qual cada indivíduo tem algo a contribuir para a história “social”) [...] (PORTELI, 2006,
p. 127).

Bosi (2006, 2003), que também considera que são indivíduos que lembram e lhes
oferece um papel ativo em sua teoria, propõe refinar esta perspectiva. Para ela, haveria
processos de recordar profundamente ancorados nos grupos de referência – tanto na memória
coletiva quanto na memória pública – que muitas vezes, no ato de narrar os indivíduos podem
estar mais ou menos enraizados. Noutros, mesmo a memória de uma cena pública, pode ser
vista sob um olhar peculiar, daquele que participou do processo e transformou-o numa
memória pessoal. Nestes processos, não se está falando de pessoas que teriam a memória de
um ou de outro tipo, mais imersos na visão dos grupos, haveria sim, no ato de narrar, no
trabalho de recordar momentos de maior ou menor efeito da memória coletiva, da memória
histórica e dos atos de criação destes indivíduos.
Nenhuma delas seria menos legítima que a outra, mas perceber as nuanças envolvidas
na memória, aquilo que o grupo trabalhou fio a fio, ponto a ponto, reconstruindo e
remontando enquanto memória coletiva e mesmo a interseção entre estas memórias e as
memórias sociais mais amplas, como a memória pública e a histórica, devem ser analisadas
por aquele que se propõe a trabalhar com a memória.
Assim, ao dizer que assumimos que os indivíduos participam da construção da
memória, ora de maneira mais ativa, ora mais passiva, ora mais criticamente, ora aderindo a
ideologia dominante, ora subvertendo às ideias hegemônicas, ora curvando-se às estereotipias,
não queremos negar à memória seu caráter social, mas reconhecer que este social não é uma
entidade homogênea construída por outros seres que não estes mesmos humanos.
[…] por muito que deva à memória coletiva, é o indivíduo que recorda. Ele é o
memorizador e das camadas do passado a que tem acesso pode reter objetos que são,
para ele, e só para ele, significativos dentro de um tesouro comum (BOSI, 2006, p. 411).

Para sintetizar esta parte, concordamos então com Bergson (1999) quando este articula
percepção e memória e nos diz que, não existe percepção que não esteja impregnada de
lembranças, e que, portanto, ao trabalhar com a memória das pessoas, entramos em contato
37

com seus sistemas de percepção/ação guardados em suas memória hábito e memória


representação, ainda que achemos um pouco problemática esta distinção.
Concordamos também com Halbwachs, quando nos diz que somos seres sociais e
como tal nossas memórias o serão também e que os grupos com os quais lidamos atuam mais
em nossas memórias do que sentimos ou supomos. Mas também concordamos com Bosi
(2003, 2006) e Porteli (2006) quando estes afirmam que os indivíduos lembram e que
devemos extrair deles seu papel de agentes. Nesse sentido, faremos um esforço de nos
mantermos na corda bamba deste debate, ou seja, resguardando o papel do indivíduo e do
coletivo na produção das lembranças, buscando nestas categorias a reflexão sobre a
perspectiva por vezes mais ativa ou passiva que estas possam ter.
[…] descrevendo a substância social da memória – a matéria lembrada – você nos
mostra que o modo de lembrar é individual tanto quanto social: o grupo transmite,
retém, reforça as lembranças, mas o recordador, ao trabalhá-las, vai paulatinamente
individualizando a memória comunitária e, no que lembra e no como lembra, faz com
que fique o que signifique (CHAUÍ, in Bosi 2006, p. 31).

Espero ainda, neste último ponto, poder dizer que manter-se “na corda bamba do
debate”, será afirmar o papel do indivíduo, mas também dos grupos. Neste sentido, os
mesmos autores trabalhados nos ajudarão e muito, a localizar, na voz desses atores, os
processos de construção e identidade do grupo. Acerca disso, Bosi (2006) também não se
exime de dizer, que como Halbwachs (2007), ainda que pensemos que muitos de nossos
pensamento sejam originais, na verdade são em muitos casos inspirados em conversas que
tivemos com outros e que por isso podemos dizer que há sempre um “lastro comunitário”
sob o qual nos assentamos para nos constituir subjetivamente.

II. 02) Usos e possibilidades de análise a partir da memória

Há em nossa vida inúmeros momentos em que as lembranças nos chegam sem que
tenhamos feito qualquer esforço de lembrar: uma imagem nunca mais recordada aparece-nos
como se sempre estivesse ali e até nos perguntamos por que ou como esta recordação
apareceu entre nossos pensamentos. Capturados pelo efeito desta lembrança, revivemos uma
situação, um momento da vida, doloroso, prazeroso, tanto faz, mas revivemos e somos
convocados a revivê-lo sem que, de nossa parte, aparentemente, tenhamos feito qualquer
esforço de evocação. Ao contrário, parece que fomos “evocados” pela lembrança e que esta
nos conduziu a um sem número de imagens, sensações, afetos. Nestes casos, seríamos pouco
38

ativos no processo de recordar e bastaria em nós uma certa disposição a recebê-la como tal,
para que uma lembrança ocupe o cenário principal de nossas ideias (BERGSON, 1999).
Mas o processo de lembrar também poderia ser vivido da maneira oposta a esta
descrição, quando por exemplo fazemos um claro esforço por buscar, em meio a tantas coisas
vividas, uma lembrança desejada. Nestas situações, diria Bergson (1999), seria preciso um
esforço por abstrair o presente seguindo os rastros que nos levam às lembranças mais
profundas. Tateando em meio a massa escorregadia de lembranças, buscaríamos aquela
imagem precisa, num enorme esforço do espírito em reencontrar a si mesmo (BERGSON,
1999).
Entre a vivência mais passiva do primeiro processo e a mais ativa do segundo,
viveríamos sob efeito de nossas lembranças o tempo inteiro, embora a consciência desses
processos só nos seja perceptível quando paramos e analisamos sua ação. Ao mesmo tempo,
entre o alcance e a tentativa de lembrarmos algo, entre a obtenção de uma lembrança e seu
completo esquecimento, haveria para os autores dimensões variadas das quais temos pouca
consciência.
Inspirando-se na fenomenologia descritiva do processo de recordação de Bergson,
Ricceur (2007) propôs uma espécie de “grade de leitura”, na qual temos dois eixos: um
vertical – que varia em graus de profundidade, do esquecimento pleno às lembranças – e outro
horizontal – em que localizamos diferentes atitudes no ato de recordar variando da
passividade à atividade. A partir desta grade e da descrição das formas de lembrar, podemos
localizar o nosso tipo de pesquisa, no polo mais voltado para a atividade, no qual o sujeito, a
partir do encontro com o pesquisador, é convocado a retomar o passado, esforçando-se por
buscar as lembranças que parecem dar sentido a experiência.
39

Ilustração 4: Grade leitora construída a partir


das reflexões de Ricceur (2007)

Elaboração própria a partir de Ricceur (2007).

Mas como conservamos e evocamos o passado? Este é sem dúvida um ponto


importante de discussão, pois quando Halbwachs (2004) diz que nunca lembramos sozinhos e
que as recordações apoiam-se em certos “quadros sociais de referência” ataca frontalmente a
tese de Bergson (1999) segundo a qual a origem da lembrança estaria na intuição sensível
conservada tal qual o fato vivido. Em sua perspectiva sociológica, Halbwachs (2004)
relativiza um principio caro a Bergson segundo o qual o “espírito conserva em si o passado
em sua inteireza e autonomia” (BOSI, 2006). Tanto a noção de inteireza quanto a de
autonomia são questionadas por Halbwachs (2004) na medida em que, para ele, a memória
não só não se conserva como tal, como participam de sua confecção diversas instituições e
grupos sociais.
[…] A interpretação social que Halbwachs dá à capacidade de lembrar é radical.
Entenda-se que não se trata apenas de um condicionamento externo de um fenômeno
interno, isto é, não se trata de uma justaposição de “quadros sociais” e “imagens
evocadas”. Mais do que isso, entende que já no interior da lembrança, no cerne da
imagem evocada, trabalham noções gerais, veiculadas pela linguagem, logo, de filiação
institucional. É graças ao caráter objetivo, transubjetivo, dessas noções gerais que as
imagens resistem e se transformam em lembranças (BOSI, 2006, p. 59).

O processo de recordar então não seria tão “livre e espontâneo”, como propunha
Bergson (1999), que associava os processos da memória aos dos sonhos, descolados do
presente, em busca do passado como contemplação. Recordar, para os outros autores aqui
trabalhados, seria na verdade um processo ativo, de reconstrução do passado realizado a partir
do presente. Neste sentido, o passado não estaria conservado em si mesmo, mas sendo refeito
40

a todo momento, havendo participação de outras pessoas nesse processo. O que se lembra, o
que se esquece, o que se revê, em todos esses processos outras pessoas participariam das
lembranças, ora como interpretes, ora como testemunhas, corroborando, afirmando,
justificando ou ocultando o vivido.
Concordaremos então com Halbwachs (2004), Ricceur (2007), Pollak (1989;1992),
Porteli (2006) quando estes afirmam a memória como um esforço, uma construção, um
trabalho que fazemos para retomar o passado, segundo as perspectiva atuais. Mas mais que
isso, entenderemos a memória como um trabalho, um trabalho sobre o tempo vivido do qual
participam os sujeitos e seus grupos de referência, bem como a memória oficial do momento
em que vivemos (BOSI, 2003).
[…] Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir,
repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é
um sonho, é um trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado “tal
como foi”, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem
construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto das
representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a
lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na
infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-
se e, com ela, nossas ideias, nossos juízos de realidade e valor. O simples fato de
lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e
propõe sua diferença em termos de ponto de vista (BOSI, 2006, p. 55, grifo meu).

Por esta perspectiva, lembrar na verdade torna-se uma excepcionalidade, no mais das
vezes esquecemos e seguimos a vida lidando com suas urgências e demandas e o passado
atuaria em nós encarnados sem que tenhamos muita consciência desse processo. A idéia de
trabalho sobre o tempo vivido traz portanto uma perspectiva ativa na construção das
lembranças e na relação entre a percepção e passado. Apesar de já termos falado brevemente
sobre este segundo aspecto no item anterior, retomaremos alguns aspectos novamente, tendo
em vista que nos são úteis como perspectivas de análise para as fases seguintes.
Halbwachs (2004), que também assume a relação entre percepção e memória e entre
memória e interesse, agrega o papel dos grupos nos dois processos. Em relação aos interesses,
considera que os grupos operam seleções sobre que será lembrado, modulando a memória
segundo as perspectiva presente, ora detendo-se em certos aspectos, ora descartando outros,
ora celebrando certas situações, repassando-as cuidadosamente, ora desvalorizando outras.
Nessas oscilações, encontraríamos o esforço do grupo em elaborar certos acontecimentos
vividos segundo as preocupações e interesses de hoje.
41

A noção de depoimento proposta por Halbwachs (2004) aqui nos parece útil, visto
que a partir dela entende-se que um acontecimento só tem sentido a partir da comunidade de
referência que investe de sentidos em determinados fatos convertendo-os aos poucos em parte
da memória coletiva. O depoimento seria aquilo que “não tem sentido senão em relação a um
grupo do qual faz parte, pois supõe um acontecimento real outrora vivido em comum e por
isso, depende de um quadro de referência no qual evoluem presentemente o grupo e o
indivíduo que o atestam” (DUVIGNAUD, 2004: 14).
Importa-nos então analisar os depoimentos do grupo, ou seja, o modo como “um
acontecimento real outrora vivido” converteu-se pouco a pouco em memória coletiva. Esta
conversão implica em fazer deste acontecimento algo que diz do fato, mas principalmente do
grupo, algo que ao ser guardado, retomado e recontado o é para dizer algo sobre o grupo. Isto
porque a memória coletiva não se esgota nas imagens que podem ser enumeradas e a partir
dos quais reconstruiríamos o passado de um grupo, ela representa a própria alma do grupo,
modos de ser compartilhados e organizados em torno da narrativa que o grupo constrói para
falar de si aos outros. A memória coletiva nesta perspectiva se converte então em um
elemento identitário dos grupos (HALBWACHS, 2004).
Ao trabalharmos com a memória dos atingidos que vivem juntos num reassentamento,
poderemos analisar não só o modo como cada um deles percebe o processo de deslocamento e
a reconstrução de suas vidas naquele lugar, mas também como, ao longo dos anos, o grupo se
constituiu e construiu uma narrativa sobre este processo. A partir desta narrativa, que pode ou
não estar conformada mais coletivamente, poderemos analisar não apenas o que ocorreu, mas
também que significados foram associados àquela experiência. Poderemos, não apenas
conhecer uma versão da história, no caso, a versão das pessoas que foram deslocadas, mas
principalmente o modo como este grupo se apropriou e significou esta história e a si mesmo
tornando esta narrativa uma memória coletiva e portanto um elemento de seus processos
identitários.
Para Pollak (1989, 1992) de fato, a memória coletiva funciona como um recurso de
coesão do grupo, envolvendo uma série de imagens e acontecimentos que o grupo elege para
referir-se a si mesmo e relacionar-se com os outros, e que muitas vezes se constitui a partir de
sentimentos de coerência e continuidade. Nesse sentido, concorda com Halbwachs acerca da
relação entre memória e identidade, considerando a primeira um dos elementos constitutivos
da segunda.
42

A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado


que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos
conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais
entre coletividades [...] A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e
das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua
complementaridade, mas também as oposições irredutíveis (POLLAK, 1989, p.09).

Entretanto, será preciso agregar a esta perspectiva de Halbwachs (2004) algumas


críticas feitas por Pollak (1989, 1992), para quem, a memória e a identidade antes de ser um
todo coerente, envolve na verdade conflitos sociais e intergrupais que muitas vezes estão
assentados em importantes divergências sobre a história do grupo. Nesse sentido, também a
memória coletiva é alvo de disputas e tensões que objetivam reconhecer a interpretação do
passado que será considerada como legítima. Assim, para Pollak (1989; 1992) deve-se
analisar não só os elementos comuns que aparecem na memória de um grupo, mas também as
diferenças, os pontos de vistas divergentes e mesmo o que podem ocultar a partir de uma
imagem majoritária que dá sentido ao grupo num determinado momento. Deveremos neste
caso nos perguntar, quem são os grupos que compõem o núcleo de reassentamento fazenda
Modelo? O que dizem de si e trazem como memória coletiva? O que esta memória revela e
oculta?
Halbwachs (2004) até contribui com esta possibilidade de análise, ao considerar que,
embora as lembranças sejam comuns, estas se apresentam nos sujeitos com intensidades e sob
pontos de vistas diferentes, que variam conforme posição social no grupo, podendo a memória
ser alterada se mudamos as posições dos sujeitos. Neste sentido, buscaremos considerar os
diferentes grupos e lugares ocupados no interior do grupo maior: por exemplo, a visão dos
entrevistados que eram militantes e os que não eram; a diferença entre os rendeiros, posseiros
e trabalhadores da antiga fazenda que foram agregados ao núcleo Modelo sem no entanto
terem sido deslocados pela barragem.
Estas reflexões certamente colocam em questão a relação entre memória e coerência.
Claro que os sujeitos e grupos com os quais trabalharemos farão, quase sempre, um esforço de
narrar sua história ou a história de certo evento de forma coerente, criando articulações e
cadeias do passado com o presente. Mas este esforço de criar coerência não pode ser
analisado como coerência necessariamente real. Conforme indicam os autores, a fonte oral
opera por curvas, tem descaminhos, tateia o passado dando-lhe um sentido presente, e nesse
tatear encontra seus desvios, atalhos, silencia alguns aspectos, detalha outros. Longe de ser
um equívoco de quem narra ou uma prova da inautenticidade, este discurso por vezes
43

esfiapado e esgarçado, deve ser entendido como uma tentativa de ordenação pessoal na qual
uma série de lógicas que ignoramos operam para dar sentido e forma àquilo que foi vivido e
agora contado (BOSI, 2003). Nesse sentido, recontar será sempre um ato de criação no qual a
ordenação que se realiza obedece a lógicas afetivas muito próprias que pouco conhecemos ou
controlamos (BOSI, 2003).
A memória então pareceria mais com uma tapeçaria que um caminho linear rumo ao
passado: terá áreas de maior e menor densidade, regiões em que as significações se
aproximam e outras em que se afastam, vivências relembradas com cuidado, enquanto outras
passam com rapidez. Bosi (2003) sugere a imagem de uma tapeçaria em mosaico, cuja análise
mais que seguir uma trilha, terá de operar a partir de um olhar mais amplo, guiado em alguns
momentos, difuso em outros. Esse detalhamento em certos pontos por oposição a outros
defasados ou borrados, longe de serem tomados como elemento secundário ou menor,
deverão ser analisados cuidadosamente, pois representam para ela, os mapas afetivos da
experiência.
Propomo-nos então seguir seus rastros, passos e descompassos, a lógica que o
processo de recordação nos impõe. Neste sentido, deveremos operar com rigor e sutileza,
interpretando o dito e não dito, aquilo que foi relatado e o que hesitam, aquilo sobre o qual os
sujeitos se detêm e aquilo que passam com brevidade. Seguir estes caminhos e atalhos, as
falas e silêncios, o que se lembra, o que se conta, o que se silencia e quem sabe, até o que
esquece.

II.03) Somos o que lembramos, mas somos também aquilo que conseguimos esquecer27

Chegamos então a um momento importante desta discussão: os silêncios da memória.


Quando falamos da memória quase sempre nos detemos a interpretar os conteúdos que
aparecem, como se de algum modo a memória fosse apenas o ato de lembrar. Entretanto,
convém apreciar o que alguns alguns dos autores já trabalhados sugerem sobre o
esquecimento.
Buscarei fazer esta reflexão porque, ao longo dos encontros, pouco a pouco fui me
dando conta que apesar de falarem sobre o tema sugerido e mesmo de terem trazidos muitas
informações (405 páginas de transcrições), as entrevistas me deixavam, por vezes, uma

27
Frase de Martin Alamada cinesastra entrevistado no documentário “Utopia e Barbárie”.
44

sensação de concisão, por um lado, saltos para o presente, em outros, e sinalizações de que,
aquele momento, por mais prazeroso que fosse, tinha algo de desconfortável.
Tive sempre o cuidado de estabelecer um clima tranqüilo e amistoso inicial,
apresentando-me, conversando sobre coisas triviais, lançando as questões de acordo com os
movimentos do próprio entrevistado. Entretanto, apesar disso, durante alguns momentos das
entrevistas sentia que as pessoas, apesar de parecerem gostar do momento, lançavam
expressões breves e sorrateiras de seus incômodos, algo como: “é só essa vez não é?” No
começo estranhei estes processos, supondo que fosse um erro ou quem sabe uma
incompetência de minha parte, já que esperava encontrar um quadro mais próximo do que
sugere a bibliografia, ou seja, uma avidez e desejo de falar sobre o passado.
Apesar de já ter previsto certo desconforto como possibilidade no projeto de pesquisa,
tendo em vista o tipo de situação que envolve os deslocamentos compulsórios, somente com
minha última entrevistada28 é que pude repensar todas as outras entrevistas. De certa forma,
estavamos trabalhando com um tema que implicava em lembranças difíceis, as vezes
dolorosas, que não estavam rapidamente acessíveis ou que talvez nem fossem desejáveis.
Comecei a considerar que valeria a pena tentar ler tais processos, essa passagem rápida pelo
passado, interrogando-os sobre o papel do esquecimento, do não dito ou neste caso do dito
com brevidade.
Para começar, percebi que em alguns momentos falavam sobre o assunto que pedia,
entretanto de uma maneira mais rápida, menos envolvida, como que escapando a um possível
afeto mobilizador, antes que tudo viesse a tona e o vivido fosse revivido. Em outros casos, as
lembranças pareciam condensadas, ou seja, através de expressões repetidas num termo que
reúnia várias situações, condensadas numa expressão. Por exemplo: “para conseguir isso aqui
foi muita luta”. A idéia de luta e mesmo a palavra aparecia constantemente nas falas, estando
ligada a uma série de situações – encontros com representantes do poder público, reuniões
com entidades, assembleias, atos públicos, reuniões em Salvador – ou seja, as lutas
envolviam todo o processo de “negociação e conflito” que estas famílias viveram na tentativa
de garantir o processo de reassentamento, mas que apareciam por vezes condensada numa
expressão.
Outro processo comum era o que chamarei de salto para o presente. Quando
começavam a relatar as dificuldades dos primeiros anos no reassentamento, um momento

28
Ver notas na parte sobre metodologia.
45

bastante delicado – com a mudança de lugar, o estranhamento dos vizinhos, a distância dos
familiares e principalmente a falta de água – e iam pouco a pouco entrando nestas lembranças
e sendo tomados por elas, logo davam um salto e contrapunham a este passado o presente:
“mas graças a Deus hoje em dia não temos mais isso”.
Na verdade, há que se dizer que o presente, ou o passado mais próximo dos últimos 8
ou 10 anos, foi usado tanto como um contraponto rápido, ali nas narrativas mais duras, mas
em termos mais amplos, como uma dimensão sócio histórica vivida coletivamente como por
oposição à chegada no reassentamento. Os primeiros anos, quando a palavra “falta” é a
principal definidora – falta de água, espaço, de escola, posto, equipamentos na área coletiva –
era contraposto à realidade atual, na qual, por meio das “lutas” foram criando um lugar
melhor.
Este é um ponto importante, pois parece estar mais ligado à memória coletiva deles em
relação ao reassentamento. As principais dimensões identitárias do grupo aparecem
vinculadas a este presente construído em contraposição ao passado herdado, aquele
passado recebido sob o qual se empenharam em modificar. Se por uma lado a condição de
cidadania precária anterior à barragem havia sido violada não sobrando quase nada, a este
quase nada contrapunham um querer tudo, tudo aquilo que deveriam ter e não tiveram, sem o
“apoio da DESENVALE”. “Mérito” deles, digamos assim. Mérito deles conseguirem tudo
onde não havia nada, depois de tudo que viveram e depois de tudo que lhes foi tirado.
Neste ponto, é importante dizer que nem “tudo são flores”, e nesta perspectiva do
grupo está, creio eu, o imaginário deles a própria história. A narrativa em torno da história do
nome bem expressa isso. Por um lado, de fato conseguiram produzir mudanças importantes,
mas estas estavam muito vinculadas a agentes externos que lá atuaram servindo ao grupo. As
dificuldades, sobretudo em relação aos projetos que de alguma forma dependiam do trabalho
cotidiano do grupo e que não iam para frente eram menos abordados, ficando assim, na
narrativa deles, uma imagem do grupo muito vinculada a estas concretizações na área
coletiva: como se a área coletiva, antes vazia e hoje cheia, materializasse uma imagem do
grupo: Modelo para todos os outros.
Por tudo exposto, considero que valerá a pena trabalhar aqui algumas perspectivas e
conceitos apontados pelos autores para pensar os esquecimentos, os silêncios, essas passagens
breves, refinando assim a possibilidade de analisarmos estas narrativas.
46

O primeiro ponto a ser considerado para pensarmos a problemática do esquecimento é


apresentado por Halbwachs (2004) para quem a memória apoia-se sobre três elementos do
mundo social: o grupo de referência, o espaço e o tempo. Já discutimos anteriormente o papel
das comunidades de referência na construção e manutenção da memória. Em relação ao
lugar, este aparece para Halbwachs (2004) como o quadro espacial do grupo, representando
por um lado uma concreta, material e por outro tendo relações simbólicas, afetivas e históricas
com o grupo. Sendo o espaço um elemento mais estável, teria ele um papel importante na
constituição dos grupos, promovendo uma experiência de continuidade frente às mudanças.
De acordo com Halbwachs (2004), o lugar em que um grupo vive não é um quadro negro, é
algo que age sobre os homens enquanto é agido por estes, recebendo assim o lugar a marca do
grupo e este a marca do lugar.
[…] o lugar recebeu a marca do grupo e vice-versa. Então todas as ações do grupo
podem se traduzir em termos espaciais, e o lugar ocupado por ele é somente a reunião
de todos os termos. Cada aspecto, cada detalhe desse lugar em si mesmo tem um sentido
que é inteligível apenas para os membros do grupo, porque todas as partes do espaço
que ele ocupou correspondem a outro tanto de aspectos diferentes da estrutura e da vida
de sua sociedade, ao menos, naquilo que havia nela de mais estável (HALBWACHS,
2004, p. 139)

Muitos grupos e mesmo indivíduos estão ligados ao lugar, como algo que faz parte
deles tanto quanto a sua história. Os homens “agarram-se às pedras” diz Halbwachs (2004) e
neste sentido, as mudanças de lugar, ou no lugar, as rupturas e deslocamentos impostos
costumam ser alvo de resistência, pois não se tiram apenas o lugar, mas os pontos de apoio
que sustentam o grupo e sua memória.

[…] não é tão fácil modificar as relações que são estabelecidas entre as pedras e os
homens. Quando um grupo humano vive muito tempo em lugar adaptado a seus hábitos,
não somente os seus movimentos, mas também seus pensamentos, se regulam pela
sucessão das imagens que lhe representam os objetos exteriores. Eliminai agora,
eliminai parcialmente ou modificai em sua direção, sua orientação, sua forma, seu
aspecto, essas casas, essas ruas, essas passagens, ou mudai somente o lugar que ocupam
um em relação ao outro. As pedras e os materiais não vos resistirão, mas os grupos
resistirão (HALBWACHS, 2004, p.143).

A partir das reflexões teóricas apontadas por Halbwachs (2004), convêm perguntar:
como fica a memória dos atingidos por barragens quando tendo em vistas que se retiram, em
muitos casos, dois importantes pontos de referencia e estruturação da memória: o lugar e os
grupos de referência?
Ao tratar de situações de deslocamentos, numa passagem bem breve, Halbwachs
(2004) chama atenção para o sofrimento que a separação dos homens do lugar em que vive,
47

sua abrupta transformação ou demolição impõe. É como se também eles tivessem sido
transformados, demolidos ou mesmo como se parte de si mesmos morresse. Aqui Pollak
(1992) nos ajuda, pois ao trabalhar com lembrança dolorosas, o autor atenta para a
necessidade de pensarmos nos sentimentos ambivalentes que surgem na relação com o
passado.29
Em certos casos, esses acontecimentos dolorosos foram alvo de muitas conversas, de
um longo processo de “digestão” individual e coletiva em que houve um grande esforço para
lidar com conteúdos, por vezes traumáticos e difíceis de serem contados. Por seu forte
conteúdo, o oposto também costuma ocorrer e em muitos casos, é preferível silenciar, falar
pouco, “deixar para lá” o que já passou. São lembranças “ressentidas”, “envergonhadas”,
“dolorosas”, “traumatizantes”, que envolvem acontecimentos difíceis de se contar. Por isso,
propõe Bosi e Pollak (1989), que se leiam os não-ditos, o que se passa com rapidez, o que se
relata cuidadosamente e o que foi descuidado. A escuta atenta é o primeiro ponto para que
estas lembranças possam vir à tona, mas não é suficiente. Ela abre espaço, mas é preciso que
também os sujeitos entrevistados queiram reviver estas situações, o que muitas vezes os
levam para afetos indesejáveis. Citando Olievenstein, Pollak (1989) chama atenção para os
mecanismos psíquicos individuais e coletivos que operam neste acesso às recordações de forte
conteúdo emocional:
A linguagem não é apenas vigia da angústia […] mas a linguagem se condena a ser
impotente porque organiza o distanciamento daquilo que não pode ser posto à distância.
É ai que intervém, com todo o poder, o discurso interior, o compromisso com o não-dito
entre aquilo que o sujeito confessa a si mesmo e aquilo que pode transmitir ao exterior
(OLIEVENTEIN citado por POLLAK, 1989, p.06).

Para Pollak (1989;1992), é justamente nessas fronteiras entre o dizível e o indizível,


entre o que se conta e o que se oculta, que operam os mecanismos de enquadramento da
memória separando a memória coletiva subterrânea da imagem que a memória oficial constrói
dos acontecimentos:
A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em
nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de
grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma
sociedade majoritária ou o Estado desejam passar (POLLAK, 1989, p. 06).

Embora para ele todo e qualquer grupo – famílias, associações, grupos informais,
instituições e mesmo nações – faça este trabalho de enquadramento, elegendo versões que
serão entendidas como legítimas, este processo torna-se mais evidente quando trabalhamos

29
Pollak que trabalhou com memórias traumáticas, de pessoas que viveram situaçõe limite como as guerras.
48

com memórias de processos políticos, cuja natureza das disputas é mais facilmente
identificável. Este é justamente um dos pontos de críticas a Halbwachs (2004) que não teria
visto esta “memória coletiva” como “uma imposição, uma forma específica de dominação ou
violência simbólica”. Para Pollak (1989, 1992), a memória coletiva contribuiria de fato para a
coesão do grupo, mas isto se daria muitas vezes por mecanismos coercitivos e não apenas por
uma adesão afetiva como abordava Halbwachs (2004).
Pollak destaca entre os fenômenos de dominação, a clivagem existente entre o que
chama de memória oficial e memória subterrânea. Embora estes dois termos remeta
comumente a uma separação entre o Estado – como dominador – e a sociedade civil, Pollak
defende que ela ocorre também entre grupos minoritários e a sociedade englobante ou em
grupos menores entre aqueles que são considerados como legítimos para contar a história do
grupo: seria o controle social da memória.
Para Pollak (1989), ainda que sejam eficientes, estes mecanismos de dominação não
conseguem acabar completamente com as vozes dissonantes que insistem em resguardar as
outras versões. Essa tentativa de silenciamento longe de culminar com o esquecimento pode
fazer vir à tona, mesmo que com certo atraso temporal, sob as mais diversas formas as
memórias ressentidas, feridas a serem abertas, talvez sob a forma de reivindicações. As
memórias subterrâneas não seriam completamente apagáveis, mesmo quando se impõe o
silêncio de suas testemunhas por longos períodos, ou quando estas testemunhas optam por
silenciar durante um tempo
[…] as lembranças traumatizantes esperam o momento propício para serem expressas.
A despeito da importante doutrinação ideológica, essas lembranças durante tempos
confinadas ao silencio e transmitidas de uma geração a outra oralmente, e não através de
publicações, permanecem vivas. O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao
esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de
discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças
dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a ora da verdade e da
redistribuição das cartas políticas e ideológicas (POLLAK, 1989, p.03).

Deste trecho destacamos algumas questões: a primeira delas é que, a despeito do


empenho, investimento e coerção que se faz em produzir uma memória oficial, as memórias
subterrâneas, ou melhor, suas testemunhas, guardam-nas e distribuem pacientemente em suas
redes as outras versões da história. Há, portanto, vida, conflito e esperança nessas batalhas
em torno da memória. Ela não é algo dado e finalizado, mesmo que seja dominada por todos
os lados. Além disso, diz ele, ela espera a “redistribuição das cartas políticas e ideológicas”,
ou seja, estas memórias estão sempre ligadas aos processos de mudança social aguardando
49

muitas vezes condições sociais e políticas mais favoráveis para que se coloquem essas
recordações na cena pública.
Podemos pensar, a partir destas colocações, nas pautas colocadas no dia a dia pelas
organizações de atingidos por barragens e numa de suas conquistas mais recentes, a
aprovação do Relatório da Comissão Especial de Atingidos por Barragens no Conselho de
Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (2010), que declarou que o Estado Brasileiro tem
violado direitos dessas populações. Após anos de denúncias, vêm as reivindicações por
reparação, pondo em cena a necessidade de reconhecimento oficial das violações outrora
silenciadas. A conquista deste tipo de relatório aponta, no quadro da memória oficial, para as
contradições, as lacunas e os silenciamentos que a história oficial vinha produzindo. O que se
conta então sobre as barragens no Brasil? E sobre Pedra do Cavalo? Em que se sustentou sua
construção? Quem foi por ela impactada e como foram distribuídos seus encargos e
benefícios? Como ficam as memórias daquelas comunidades que foram submersas e
dispersas? De que modo os atingidos negociam suas versões com a versão mais geral que
circula sobre esta barragem?
Apesar dos avanços trazidos pela perspectiva de Pollak (1989), Porteli (2006) critica a
dicotomia proposta entre oficial e subterrâneo e propõe pensarmos em memórias divididas 30.
Para ele, ao falarmos em memória dividida, não devemos pensar em um conflito apenas entre
uma memória “oficial” considerada “ideológica” por oposição a uma memória “comunitária”
considerada “pura e espontânea”. Em seu lugar, devemos pensar “que estamos lidando com
uma multiplicidade de memórias fragmentadas e internamente divididas, todas, de uma forma
ou de outra, ideologicamente e culturalmente mediadas” (PORTELI, 2006, p.106). Com isso
não se quer dizer que sejam menos autênticas, mas que deve-se manter uma atitude crítica e
cuidadosa, que considera que também nas memórias comunitárias operam mecanismos
ideológicos ligados à história oficial e ao grupo dos quais fazem parte.
Além disso, Porteli (2006) propõe que deve-se pensar em memória dividida de uma
maneira ampla e radical, considerando dicotomias e hierarquias não só entre a memória

30
Memória dividida é um termo utilizado apresentado por Giovanni Contini, em trabalho de 1984, sobre as
vítimas do massacre de Civitella Val di Chiana em 1944. Ao estudar o massacre, Contini identifica que havia
uma comemoração “oficial”, que entendia o massacre como um episódio de resistência, sendo as vítimas
entendidas como mártires na luta pela liberdade e distintamente, uma memória dos sobreviventes, “criada e
preservada” por viúvas e filhos dos homens que foram mortos e que centravam-se no seu luto. De acordo com
Contini, essas memórias não só eram distintas, como entravam em choque em vários momentos, já que os
sobreviventes viam a resistência como causadores do massacre por terem matado 02 soldados alemães dias antes
do massacre. Para saber mais sobre este massacre e suas diversas versões ver artigo de Portei (1996): “O
massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum”.
50

oficial e a subterrânea, a memória institucional e a da comunidade, mas outros mecanismos de


divisão que operar no interior dos grupos, famílias e mesmo indivíduos:
A própria “memória do povoado” não é um todo sólido. As memórias inexprimíveis,
sonegadas até mesmo no círculo familiar, coexistem com memórias igualmente
autênticas e comoventes, expostas publicamente na praça e na igreja. A memória então,
dividida por gerações; e o que é mais dramático, até mesmo as individuais dividem-se
internamente entre o desejo de silenciar e esquecer e a necessidade de se expressar
(PORTELI, 1996, p. 128)

A partir destes autores, buscaremos manter um olhar atento na análise das entrevistas,
buscando elementos de uma memória mais compartilhada, mas também possíveis divisões nas
narrativas do grupo. Temos por exemplo documentos da DESENVALE, dados de uma
empresa Estatal, mas que não necessariamente informam sobre a “memória oficial” da
barragem, uma vez que não sofreram ainda os processos de enquadramento que transformam
estes documentos numa história sobre a barragem. Temos também, na Modelo, pessoas
oriundas de variadas comunidades distintas, que podem nos trazer perspectiva destes grupos
anteriores ao reassentamento. Além disso, temos entre os entrevistados pessoas que vieram
de condições sociais anteriores bem distintas e que se relacionam diferentemente com a
barragem. Há entre os deslocados, alguns que eram antigos rendeiros, que viviam nas terras
dos patrões e que podem ver a barragem de uma forma distinta dos posseiros, pessoas que
eram filhos de indivíduos que tinham terras e as perderam com a Barragem.
Mas voltemos para o tema do esquecimento. Mesmo havendo referência em todos os
autores aqui trabalhados sobre esta tênue e tensa relação entre lembrar e esquecer, nenhum
deles se deteve mais teoricamente em relação ao uso deste termo, por isso trabalharemos um
pouco mais com Ricceur (2007) que se dedicou uma discussão mais detida longa sobre o
termo.
Para começar, Ricceur (2007) não concebe o esquecimento como uma “fraqueza”,
“vulnerabilidade” ou “dano” da memória. Para ele, não devemos pensar no esquecimento
como um inimigo da memória e a memória como uma “luta contra o esquecimento”. O
esquecimento ganha teria um papel dialético junto à memória, compondo com ela os
movimentos da presença-ausência do passado, abrindo espaço para uma perspectiva mais
positiva e acolhedora com o esquecer.
Também Bosi (2006), questiona esta perspectiva em que não caberia o esquecimento,
sugerindo que este esgarçamento narrativo, longe de representar um problema ou
questionamento à autenticidade das lembranças, representaria o selo de que o sujeito que
51

lembrava esforçou-se em escapar da estereotipia que as narrativas muito lineares e


compactadas podem guardar.
Mas, se quisermos nos aproximar da esfera que resiste ao formato social, registremos
atentos as hesitações e silêncios do narrador. Os lapsos e incertezas das testemunhas são
o selo da autenticidade. Narrativas seguras e unilineares correm sempre o perigo de
deslizar para o estereótipos. Existem evoluções nas representações coletivas, mas
conhecidas pelos contemporâneos porque elas se situam aquém da consciência
formalizada (BOSI, 2003, p. 64).

Assim, frente à polissemia do termo esquecimento, Ricceur (2007) propõe que não se
pense no esquecimento de uma maneira geral, mas a partir do que chama de “grade leitora”,
agora baseada na noção de profundidade, variando do esquecimento absoluto à lembrança
perfeita. Retomando a proposta dos eixos inspirada em Bergson, aprofundamos agora os
elementos do eixo vertical através da ilustração 05.
52

Ilustração 5: Grade leitora lembrar-esquecer

Elaboração própria a partir de Ricceur (2007).

No ponto mais baixo, estaria o esquecimento mais profundo, no qual temos a


impressão de que certas experiências se perderam e não mais serão retomadas. Esta seria para
Ricceur (2007) a modalidade do esquecimento quase definitivo, que ele denomina
esquecimento por apagamento dos rastros31. No nível intermediário, estaria o esquecimento
de reserva, aquele a partir do qual algumas vivências não estão imediatamente acessíveis, mas
podem vir à tona, sendo portanto um esquecimento reversível. Nele, poderíamos retomar
certas impressões originárias que estaria, latentes e inconscientes, antes de enfim nos
chegarem novamente à lembrança. Por fim, e mais próximo, o esquecimento manifesto,
entendido como um tipo esquecimento exercido.
31
Ricceur elenca três grandes tipos de rastros mnemônicos: o rastro escrito - que com o avanço da historiografia
se converte em rastro documental; o rastro cortical - ligado às neurociência, que estudam os processos de
esquecimento preponderantemente a partir das patologias, buscando a relação precisa entre certas funções da
memória e sua localização na topografia cerebral; e por fim, os rastros psíquicos, para ele mais difíceis de serem
analisados, estando ligados à noção de impressão originária, ou seja, a possibilidade de guardamos certas
experiências que nos foram marcantes de maneira única. Para informações mais detalhadas sobre cada um destes
rastros ver a seção de Ricceur sobre Esquecimento.
53

Destes três níveis de esquecimento, nos interessa aprofundar o último, o esquecimento


manifesto que desdobra-se em outros três tipos: o esquecimento e a memória impedida; o
esquecimento e a memória manipulada e o esquecimento comandado: a anistia.
No primeiro tipo, o esquecimento e a memória impedida, Ricceur (2007) discute
uma certa “psicopatologia da memória impedida”, trabalhando com processos de
esquecimento associados a situações traumáticas, a partir de textos de Freud. Discutindo o
conceito de inconsciente em Freud e Bergson, Ricceur (2007) propõe que, a despeito da
diferença entre estes autores, ambos concordavam com a indestrutibilidade do passado
vivenciado. Embora por vezes inacessível à consciência, uma situação vivida jamais seria
esquecida. No seu lugar, e os lapsos, as substituições, os deslocamentos e as condensações,
indicariam processos de “retorno do recalcado” a partir do qual as experiências vividas viriam
à tona. Neste sentido, o esquecimento estaria associado a uma postura mais individual e
defensiva com o passado, no qual pode-se resguardar de reviver certas experiências
traumáticas que produzem sofrimento demasiado quando retomadas.
No segundo, Ricceur (2007) aborda o chamado esquecimento e a memória
manipulada, uma modalidade de esquecimento menos individual que a impedida e menos
ampla chamada anistia. De acordo com Ricceur (2007), a memória manipulada chama
atenção para a função mediadora da narrativa, que impõe limites aos usos e abusos da
memória, mas também do esquecimento. Se por um lado não poderíamos lembrar tudo, nem
esquecer tudo, tampouco podemos narrar tudo. E é justamente no trabalho de seleção operado
pela narrativa que se coloca para ele a problemática da ideologização da memória.
Aqui, Ricceur (2007) se aproxima de Pollak (1992), quando referindo-se às estratégias
de manipulação da memória nos processos de construção das indentidades discute o papel da
história na produção de uma “história autorizada, imposta, celebrada, comemorada – a história
oficial”. Para ele, esta seria a principal forma “desapossamento dos atores sociais” de um
poder fundamental para a memória, o poder de narrarem a si mesmos e às suas histórias.
Opera-se em diferentes graus e níveis, um processo de organização do esquecimento, que por
meio da narrativa seleciona a memória tornando-a, em muitos casos, uma memória
manipulada.
No terceiro tipo, teríamos o esquecimento levada ao outro pólo, no plano da ação do
Estado, através do esquecimento que Ricceur (2007) chama de comandado: uma forma de
esquecimento institucionalmente proposto através do mecanismo da anistia. Frente a situações
54

de graves desordens políticas – tais como guerras civis, mudanças violentas de regime – a
anistia propõe a “reconciliação entre cidadãos inimigos” através do esquecimento dos atos
feitos até a data em questão. Declara então um passado proibido, efetuando o que chama de
uma amnésia comandada. Para ele, esta forma de esquecimento – comandado, imputado de
fora para dentro – que não tem espaço para o trabalho da memória, mas seu abafamento por
negação impõe aos envolvidos uma negação do passado que cedo ou tarde virá à tona. A esta
perspectiva Ricceur (2007) propõe uma discussão sobre o que chama de perdão, ou
reconciliação com o passado, que é alvo de discussão em seu último capitulo.
A partir de Ricceur (2007) e das contribuições vistas nos outros autores, podemos
então relativizar certas perspectivas que tomam a memória apenas como o ato de lembrar,
para agora compreendermos o papel do esquecimento na produção da memória. Poderemos
assim entender melhor a colocação de Martin Alamada, começando este item, quando este nos
diz: “somos o que lembramos, mas somos também aquilo que conseguimos esquecer”.
55

III. A Barragem de Pedra do Cavalo e o deslocamento compulsório:

do planejamento à implantação

G (o): Meu nome é G, eu morava na fazenda Tororó, aqui no município de Santo


Estevão mesmo. Na época eu tinha o que, uns 17 anos e aí veio a DESENVALE. O
pessoal dizia que era para todo mundo sair de lá, que as águas iam tomar tudo. E a gente
ficava na expectativa esperando, demorou, demorou. Aí veio mesmo, veio aquela
desmatação, pra desmatar tudo. A gente tinha quintal, pé de laranja, pé de jaca, tinha
tudo! Só que aí começou, veio desmatando tudo, sabe, derrubando os pé de caju, pé de
jaca, pé de manga. E muita gente entrou em desespero, porque a DESENVALE vinha e
muita gente dizia que não ia pagar, que não ia pagar – como não pagou os pé de árvore
da gente, os pé de fumo – não pagaram, pagaram as terras pela metade. E aí começou
dizendo que era pra levar a gente pra outro lugar. E a gente tudo com medo que não
sabia pra onde é que ia. Aí eles vinha dizendo que ia levar pra um lugar bom e tal, e até
que graças a Deus a gente veio pra um lugar bom. Mas muita gente foi pros lugar aí que
não gostaram [Silêncio] (G (o), 42 anos, atingido/deslocado pela barragem de Pedra do
Cavalo, entrevista em 05/03/2011, 2a geração).
56

No começo desta dissertação dissemos que as barragens seriam entendidas como


empreendimentos deflagradores de mudanças sociais, que produzem transformações que
repercutem em várias esferas da vida social (VAINER, 2008). Mas uma barragem é, antes de
tudo, um processo de “mudança administrada”.
Isso quer dizer que, diferente de outras mudanças sociais que também produzem
deslocamentos forçados como os “desastres naturais” – em que costuma-se atribuir a
causalidade dessas mudanças às “forças inevitáveis” da “natureza” – no caso das barragens a
mudança socioambiental é intencional, planejada ou mais precisamente administrada por
determinados agentes (SCOTT, 2009). Por conta disto, este capítulo buscará justamente
acompanhar o modo como o Estado, representado neste caso principalmente pela
DESENVALE no primeiro momento, implementou e administrou os processos de mudança
na Barragem de Pedra do Cavalo.
Se era preciso construir esta barragem e deslocar milhares de pessoas de suas terras,
esta remoção poderia ser feita de diversas formas – mais ou menos adequadas, mais ou
menos impactantes, mais ou menos democráticas, mais ou menos violentas – e são estas
formas de condução que aqui discutiremos.
Embora a forma de tratamento oferecida pelos agentes públicos termine sendo
analisada em todos os capítulos, pode-se dizer que o grau e o tipo de interação Estado-
atingidos varia ao longo dos anos, sendo a presença e atuação mais intensa nos primeiros
anos, quando a barragem esta sendo construída e o deslocamento das famílias realizado.
Os autores norte-americanos Scudder e Colson (1982) propuseram quatro grandes
etapas nos processos de reassentamento populacional gerado por grandes projetos encontradas
em todo o mundo. Seriam elas, o Planejamento/Divulgação, a Implantação, o
Desenvolvimento e a Emancipação. Segundo eles, apesar das diferenças culturais, políticas e
mesmo de temporalidade, o que tem se nota são padrões sistemáticos de tratamento na
condução dos reassentamento em que a presença institucional fica mais marcada nas duas
primeiras fases (Planejamento/Divulgação e Implantação), contrastando com as fases
seguintes (Desenvolvimento e Emancipação), quando as comunidades costumar ser
abandonadas, sendo a lentidão, a morosidade e distanciamento, as marcas mais claras da
interação ( SCUDDER E COLSON, 1982; SCOTT, 2009) .
57

Ilustração 6: Fases do processo de reassentamento populacional

Elaboração própria a partir de Scudder e Colson (1982)

Neste capítulo então, em que trabalharemos com contexto histórico da Barragem – os


processos de planejamento, as primeiras notícias da inundação, a discussão sobre o destino
das famílias, o planejamento dos reassentamentos até o momento da mudança – estaremos
focados justamente nas duas primeiras fases, quando o grau de administração da mudança é
maior e por isso o traço gerencial sobre a vida social destas pessoas torna-se mais intenso e
visível.
De acordo com diversos com pesquisadores (SIGAUD, 1992; GERMANI, 1993;
ROCHA, 2008; ZHOURI, 2008, entidades representantes dos atingidos (MAB, 2004), e
organizações sociais de direitos humanos que atuam acompanhando situações como estas
(PLATAFORMA DHESCA, 2011; JUSTIÇA GLOBAL, FEDERAÇÃO INTERNACIONAL
DE DIREITOS HUMANOS E JUSTIÇA NOS TRILHOS, 2011) esses processos de
“mudança administrada” não têm sido realizados de forma adequada e por isso encontramos
impactos negativos em todas as fases dos projetos.
O envolvimento da sociedade varia conforme o grau de debate e de abertura política de
cada país. Porém, as barragens inclusas na Base de Conhecimentos da CMB revelam
que houve um fracasso generalizado em se reconhecer as pessoas afetadas como
parceiras, com direitos, no processo de planejamento e em dar-lhes poder para
participarem do processo (CMB, 2000, p.16)

No caso do Brasil, cenário semelhante foi apontado no Relatório da “Comissão


Especial de Atingidos por Barragens” do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana
(CDDPH)32 em 2010, quando constatou-se graves impactos negativos em todas as fases das
barragens analisadas.
Apesar da Comissão ter recebido 74 denúncias, optou analisar detalhadamente sete
barragens33 considerando a diversidade regional, os tamanhos, os diferentes períodos de
32
O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) é um órgão colegiado criado em 1964 (Lei
nº 4.319) e reúne representantes de setores da sociedade ligados à luta pela garantia e promoção dos direitos
humanos. Para saber mais: http://www.direitoshumanos.gov.br/conselho/pessoa_humana
33
As barragens escolhidas foram Tucuruí (Pará), Acauã (Paraíba), Cana Brava (Goiás), Aimorés (Minas
Gerais/Espírito Santo), Emboque (Minas Gerais), Fumaça (Minas Gerais) e Foz do Chapecó (Santa Catarina e
Rio Grande do Sul). A versão final do relatório possui 107 páginas e pode ser no encontrada endereço eletrônico
58

construção (antigas, recentes e em construção), bem como a natureza dos responsáveis e


diferentes objetivos (geração hidrelétrica, abastecimento de água, etc).
A aprovação deste relatório foi considerada uma vitória, já que pela primeira vez
houve um reconhecimento por parte do Estado acerca das violações de direitos humanos que
projetos como estes têm produzido. Segundo o relatório, pelo menos 16 direitos foram
“sistematicamente violados”(CDDPH, 2010).
1. Direito à informação e à participação; 2. Direito à liberdade de reunião, associação e
expressão; 3. Direito ao trabalho e a um padrão digno de vida; 4. Direito à moradia
adequada; 5. Direito à educação; 6. Direito a um ambiente saudável e à saúde; 7. Direito
à melhoria contínua das condições de vida; 8. Direito à plena reparação das perdas; 9.
Direito à justa negociação, tratamento isonômico, conforme critérios transparentes e
coletivamente acordados; 10. Direito de ir e vir; 11. Direito às práticas e aos modos de
vida tradicionais, assim como ao acesso e preservação de bens culturais, materiais e
imateriais; 12. Direito dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais; 13. Direito de
grupos vulneráveis à proteção especial; 14. Direito de acesso à justiça e a razoável
duração do processo judicial; 15. Direito à reparação por perdas passadas; 16. Direito de
proteção à família e a laços de solidariedade social ou comunitária (CDDPH, 2010, p
15)

Não menos importante, estes estudos e relatórios têm constatado que há uma completa
desigualdade no tipo de tratamento oferecido aos diferentes grupos sociais afetados pelas
barragens e que , mais grave ainda, as barragens têm contribuído para aprofundar as
desigualdades sociais já existente.
Os estudos de caso permitiram concluir que o padrão vigente de implantação de
barragens tem propiciado de maneira recorrente graves violações de direitos humanos,
cujas consequências acabam por acentuar as já graves desigualdades sociais,
traduzindo-se em situações de miséria e desestruturação social, familiar e individual.
(CDDPH, 2010, p 13)

A partir destas constatações indicadas por tantos estudos e relatórios, analisaremos


como o processo de mudança administrada se deu no caso de Pedra do Cavalo.

III. 01) Planejamento e Divulgação - o contexto da Barragem de Pedra do Cavalo

A história de Pedra do Cavalo não começa nem se esgota nela mesma. Construída
entre final 1979 e 1985, esta barragem fazia parte de um processo mais amplo de
desenvolvimento, em que outras seis grandes barragens foram construídas, deslocando de
215.000 pessoas.

http://www.agb.org.br/documentos/GT_Agraria_Relatorio_Final_CDDPH_2011.pdf
59

Tabela 2: Informações gerais sobre as barragens


Barragem Período Localidade Estimativa dos Atingidos
Sobradinho 1972 - 1978 Médio São Francisco (Bahia) 70.000
Itaipu 1974 - 1982 Rio Paraná 42.000
Tucuruí 1978 - 1985 Rio Tocantins 32.000
Itaparica 1977-1988 Rio São Francisco 70.000 (muitos adiamentos por
conta dos conflitos na região)
Itá 1983-1987 Rio Uruguai 1.000 (estimativa conservadora
por haver divergências entre
Eletrosul e Pesquisadores)
Machadinho 1979 – primeiros estudos Rios Pelotas e Apuaê Não obtivemos dados
Pedra do Cavalo 1979 - 1985 Rio Paraguaçu 5.000
Total 215.000
Fonte: pesquisa pessoal. Elaboração própria.

De uma ponta a outra, o país era rasgado por projetos modernizadores, realizados
preponderantemente através de grandes obras, que buscavam garantir o fornecimento de
recursos hídricos e elétricos às industrias através do aproveitamento dos recursos naturais que
o país dispunha. A crença amplamente difundida era de que o desenvolvimento do Brasil
passava pela industrialização e que o Estado brasileiro deveria participar ativamente deste
processo criando a infraestrutura necessária, garantindo a oferta de energia, insumos,
escoamento da produção, incentivos fiscais, créditos e tudo aquilo que fosse preciso para tirar
a economia do país de sua posição periférica (BECKER, 1999).
Essa participação estatal era defendida por amplos setores da sociedade, inclusive por
partidos e intelectuais de esquerda, que acreditavam na importância estratégica do Brasil em
termos continentais, e consideravam que o Estado promover o desenvolvimento econômico
das áreas mais atrasadas tornando-as competitivas no cenário regional. Esta visão não era
defendida apenas no Brasil, já que numa economia capitalista um dos papéis centrais do
Estado costuma ser justamente garantir o processo de acumulação do capital (GERMANI,
2003), através da oferta de infraestrutura. A produção de energia elétrica era, sem sombra de
dúvidas, um dos elementos fundamentais nesse processo e por isso era “inquestionável” que
caberia ao Estado o papel de oferecer a energia necessária para que o país “não parasse”.
Importa dizer que esse contexto modernizador ocorreu num período muito peculiar da
história brasileira, já que desde 1964 vivia-se numa ditadura militar e por conta disto boa
parte destas grandes obras foram feitas por vias autoritárias, deixando marcas profundas e
duradouras na nossa experiência social, mas também territorial (BECKER, 1999). Nesta
época, os governos militares lançaram os chamados Planos Nacionais de Desenvolvimento
(PNDs) que buscavam concretizar esta “potência regional”, o “milagre” econômico, através
60

de mudanças aceleradas, intensas e caras ao país, em termos econômicos, mas sobretudo


sociais e ambientais34.
A natureza e a sociedade brasileira eram forçadamente integradas a este projeto
imposto de norte a sul, se não pela via da força, pela via da propaganda ideológica que não
deixava espaço para questionamentos ou hesitações. Quem se oporia à ideia de modernizar o
“gigante adormecido”? Quem se oporia a usar tantas riquezas naturais em prol do “nosso”
desenvolvimento? Quem se oporia a atração de grandes industrias geradoras de empregos, que
trariam dinamismo econômico e social para as áreas “atrasadas”? Quem se oporia, mais ainda,
à construção de estradas, pontes, barragens e tudo aquilo que um país “desenvolvido” e
competitivo precisaria ter e oferecer a seus cidadãos?
Apesar da distância temporal e de tudo isso ter ocorrido em meio a uma ditadura, creio
que podemos sentir a proximidade com esse contexto, já que vivemos semelhante processo
desenvolvimentista. Muitas vezes se diz que o que ocorreu em Pedra do Cavalo e nas
barragens da época não ocorre mais, pois estando hoje num momento democrático, haveria
um maior cuidado com as populações atingidas. De fato, há que se fazer as devidas ressalvas
considerando que o período autoritário em que Pedra do Cavalo foi construída, entretanto
temos também que relativizar a ideia de que estas situações não façam mais sentido hoje
(CMB, 2000; CDDPH, 2010).
Como antes, o poder econômico ainda define prioritariamente os processos de atuação
do Estado no território e a definição dos projetos que chegarão ou não em determinadas
localidades. Como antes, estes planos ainda são pensados de “cima para baixo”, baseados em
interesses que passam ao largo dos anseios das pessoas que de fato conviverão com estes
projeos. Mais que isso, ainda trabalhamos com os grandes planos nacionais de
desenvolvimento, não mais chamados PNDs, mas agora Plano de Aceleração do Crescimento
(PAC) cuja natureza também assentada em grandes obras prevalece35.
34
PND I (1970-1974) teve como eixos principais a siderurgia, o ramo petroquímico, transporte e produção de
energia elétrica, ficando conhecido como "milagre brasileiro" já que a economia chegou a crescer a taxas de
10%. Com o uso de capital externo, resultou num rápido aumento da inflação e da dívida externa. O PNI II foi
lançado no Governo Ernesto Geisel (1974/1979), tendo como objetivo a expansão das indústrias de bens de
produção, grandes obras na área energética, e no setor de mineração (Serra dos Carajás, extração de bauxita pela
ALBRAS e ALUNORTE). O PND III (1979/1985) tinha como metas a tentativa de reequilibrar as contas através
do equilíbrio nos pagamentos, controle da dívida externa, combate a inflação, crescimento de emprego e renda,
bem como o desenvolvimento de novas fontes de energia. Para saber mais ver http://www.rep.org.br/pdf/26-
4.pdf.
35
O PAC 02 – Programa de Aceleração do Crescimento – lançado em 2010 possui 06 grandes eixos:
Transportes, - Energia, Cidade Melhor, Comunidade Cidadã, Minha Casa, Minha Vida, Água e Luz para
Todos. Somente o PAC Energia prevê a construção de mais 76 usinas hidroelétricas, boa parte delas de grande
porte, localizadas sobretudo na região norte. Ver: http://www.brasil.gov.br/pac/o-pac/pac-energia
61

Como na década de 80, muitos destes empreendimentos têm gerado empobrecimento,


migração forçada, expropriações e violações de direitos em todas as esferas, prova disto é que
o relatório do CDDPH de 2010 investigou barragens recentes e encontrou violações de
semelhantes às de outrora. Outro exemplo emblemático, noticiado amplamente, tem sido o
caso das Usinas de Girau e Santo Antônio no Rio Madeira e a Usina de Belo Monte
construídas na região norte. Temos visto também relatórios documentando violações de
direitos humanos não apenas em barragens, mas nas obras da Copa do Mundo 36. A diferença
que temos hoje é menos na forma cuidadosa de atuação do Estado e mais na capacidade de
organização e visibilidade das populações afetadas, que além de terem organizações mais
preparadas, dispõem hoje de artefatos legais mais avançados que ao menos em tese podem
servir para protegê-las.
Mas voltemos à barragem de Pedra do Cavalo. No enário nacional, a Bahia era
considerada peça-chave no projeto geopolítico dos governos militares, que tinham aqui
grande empenho de políticos locais para se consolidar. Para começar, é mister destacar que
nosso Estado estava bastante alinhado a esse processo de modernização, havendo desde final
dos anos 60 a implantação de grandes complexos industriais, com destaque para a região
metropolitana de Salvador e Recôncavo, que despontavam como áreas estratégicas.
Na década de 50, tivemos a descoberta dos primeiros poços de Petróleo e a construção
da refinaria Landulpho Alves localizada em Candeias (além de Catu, São Francisco do Conde
e Salvador). A implantação da Petrobrás impactou significativamente na organização
territorial do Estado, já que se tornava estratégico a atração de indústrias para áreas próximas.
Por isso, entre o fim dos anos 60 e começo dos 70 tivemos a criação do Centro Industrial
Subaé em Feira de Santana (CIS), seguido da implantação da fábrica de produção de Dióxido
de Titânio (antiga Tibrás chamada hoje Millenium), do Centro Industrial de Aratu (CIA) e do
Porto de Aratu. Já em 1978 entrou em operação o Pólo Petroquímico de Camaçari,
considerado o maior do Hemisfério Sul.

36
No dia 13 de dezembro de 2011 foi divulgado o “Dossiê da Articulação Nacional dos Comitês Populares da
Copa - Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil”, um relatório que sugere, segundo estimativas
conservadoras, que cerca de 170 mil peessoas estão sendo ameaçadas ou violadas em seu direito à moradia por
obras relacionadas à Copa do Mundo. Para acessá-lo ver:
http://por.habitants.org/news/habitantes_das_americas/dossie_reune_impactos_e_violacoes_de_direitos_no_cam
inho_para_aos_megaeventos_esportivos_no_brasil.
62

Ilustração 7:Mapa dos Complexos Industriais próximos a Pedra do Cavalo

Fonte: imagem feita no Google Earth em 05 de janeiro de 2012. Elaboração própria.


Legenda:
A – Salvador/BA
B - Centro Industrial de Aratu - Simões Filho – BA
C - Complexo Petroquímico Camaçari (Polo)
D- Millenium, Camaçari – Bahia
E – Petrobras petróleo Brasileiro S/A, Catu – Bahia
F - Petrobras petróleo Brasileiro S/A, Candeias – Bahia
G- Petrobras petróleo Brasileiro São Francisco do Conde – Bahia
H- CIS Centro Industrial Subaé - Feira de Santana – BA
I – Barragem de Pedra do Cavalo

Neste contexto de industrialização, é claro que as construção de grandes barragens


como Sobradinho, Xingu e Itaparica eram consideradas imprescindíveis. Pedra do Cavalo
ainda mais, já que ficaria localizada nas proximidades das grandes cidades e dos maiores
complexos industriais do estado. Assim, embora a proposta inicial de construção desta
barragem date dos anos 30, quando o engenheiro Américo Simas sugeriu o aproveitamento do
Rio Paraguaçu, foi somente nos anos 70 que este projeto foi retomado, ganhando forma e
empenho do governo Estadual.
Na época, Antônio Carlos Magalhães (ACM) havia sido indicado pelos militares para
governar entre 1971-1975 e já no primeiro ano de seu mandato, solicitou um estudo à
Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) sobre as formas de
63

aproveitamento dos recursos hídricos da região do Paraguaçu. A SUDENE por seu turno,
contratou a empresa Camargo Correia que indicou uma de suas subsidiárias, a Consórcio
Nacional de Engenheiros Consultores (CNEC), para realização de estudos que indicassem as
possibilidades de uso racional dos recursos da região. O CNEC lançou dois documentos, o
Diagnóstico Preliminar – que sugeria alguns barramentos – e outro denominado Plano de
Valorização – que além dos barramentos, destacava ações de promoção do desenvolvimento
econômico na bacia do Paraguaçu37. A Universidade Federal da Bahia foi outra importante
fonte de estudos para viabilização desta Barragem, já que o Instituto de Geociências foi
responsável por diversas pesquisas de mestrado sobre condições geomorfológicas e
pedológicas das sub-bacias, identificando as contribuições dos rios e seus afluentes
(PALMA, 2007).
Em 1974, o ainda governador ACM encomendou então, através da Secretaria de
Saneamento e Recursos Hídricos do Estado um novo estudo, agora mais detalhado, com vista
ao planejamento de ações voltadas especificamente para a execução de obras hidráulicas na
bacia do Paraguaçu. Seu mandato terminou em 1975, quando Roberto Santos, antigo reitor da
Universidade Federal da Bahia, foi eleito indiretamente pelos militares para governador da
Bahia. É neste ano que os primeiros estudos para a construção da Barragem se iniciam, mas o
projeto não foi muito adiante, pois os recursos necessários à obra não foram liberados pelo
então presidente da Centrais Elétricas Brasileiras (ELETROBRÁS), Antônio Carlos
Magalhães, que suspendeu o envio de verbas no período de sua gestão (1976-1979). Anos
depois, em 1979 ACM volta ao governo da Bahia e retoma o projeto de Pedra do Cavalo,
levando-o agora às vias de fato com todo apoio financeiro para isso.
Apesar de tantos estudos, Pedra do Cavalo foi bastante questionada em seus aspectos
técnicos e econômicos. O local escolhido para a barragem foi criticado por se tratar de uma
falha geológica, conhecida como falha de Maragogipe. A preocupação era que a instabilidade
geológica colocasse em risco de rompimento a barragem, produzindo um desastre nas cidades
à jusante, sobretudo Cachoeira e São Felix (GERMANI,1993; PALMA, 2007).

37
O plano do CNEC recomendava o desenvolvimento da agricultura irrigada aproveitando a bacia do Rio Una; a
execução de projetos de reflorestamento com fins corretivos ou lucrativos na parte Noroeste da Bacia
(municípios de Baixa Grande, Mairi, Piritiba, Tapiramutá, Souto Soares, Seabra, Andaraí, Ibiquera e Itaberaba);
a execução de projetos de mineração de diamantes e outros subprodutos na região da Chapada Diamantina;
Prospecção e lavra de diamantes, carbonado e outros minerais pesados entre os municípios de Andaraí, Mucugê
e Lençóis; programas de prospecção de água subterrânea para abastecimento rural, sobretudo o desenvolvimento
da pecuária e a criação do Complexo de Pedra do Cavalo com usos múltiplos (PALMA, 2007).
64

Esta polêmica não vinha necessariamente de políticos contrários ao governo, como se


tenderia a pensar, mas de técnicos e cientistas que faziam referências justamente aos estudos
realizados pela Universidade Federal da Bahia. Engrossavam este debate organizações
profissionais ou ligadas à pesquisas tecnológicas como o Clube de Engenharia da Bahia, a
Associação Baiana de Geólogos, o Centro de Pesquisas e Desenvolvimento (CEPED) e
mesmo de setores internos ao próprio governo:
Os estudos realizados indicaram que a rocha é gnaisse cinza, praticamente inalterado,
com uma pequena cobertura de solo principalmente de origem coluvionar. Não se deve
esperar problemas maiores de fundação e permeabilidade na área de implantação da
barragem. Nos limites desta área, na margem direita, existe uma falha de grande
desenvolvimento. Esta zona deve ser evitada no posicionamento de estruturas de
concreto e, de qualquer forma, há de receber atenção especial durante as sondagens.
(BAHIA, 1974, p. 9 citado por PALMA, 2007: 68).

O contexto, entretanto não era favorável a questionamentos, nem mesmo de natureza


técnica e por isso a polêmica em relação ao sítio escolhido para a barragem foi
desconsiderada. Anos mais tarde, num relatório de 2001, encomendado para a APA Pedra do
Cavalo, a empresa Geoexperts (2001) reforçaria os diagnósticos apontados décadas antes
(PALMA, 2007).
A construção da barragem foi propagandeada então como essencial, já que entre os
seus objetivos estavam o fornecimento de água para Salvador, para cidades próximas como
Feira de Santana e para as plantas industriais que funcionavam a pleno vapor. Apesar da força
que este argumento do “abastecimento de Salvador” tinha, também nisso havia discordâncias,
inclusive de setores do próprio governo, que defendiam opções mais racionais e baratas,
através do aproveitamento de bacias mais próximas a Salvador como a bacia do rio Pojuca, do
rio Joanes, a barragem de Santa Helena e o lençol freático da região de Dias Dávila (PALMA,
2007).
Mas o projeto ainda assim seguia e para viabilizar a barragem, o governo estadual
criou a Companhia de Desenvolvimento do Vale do Paraguaçu (DESENVALE) uma empresa
estatal que, conforme o próprio nome indicava, deveria ser responsável por realizar um amplo
processo de aproveitamento do potencial da bacia, promovendo o desenvolvimento em todo o
Vale do Paraguaçu conforme apontavam estudos do CNEC. De forma alguma, a “proposta”
do Plano de Valorização e consequentemente da própria DESENVALE se limitava à
construção de barragens e muito menos apenas Pedra do Cavalo (já que o projeto propunha
pelo menos outros 17 pontos de barramento) . Entretanto, conforme sugere Palma (2007),
65

apesar de tantas possibilidades havia uma clara tendência a se sustentar a prioridade de Pedra
do Cavalo em detrimento dos outros projetos.
Na época, foi feita uma licitação vencida pelo consórcio formado pelas empresas
ODEBRECHT/CONCIC/CEPEL. Como no resto do país, as empresas privadas ficaram
responsáveis pelas questões tecnológicas do empreendimento, enquanto o governo, figurado
na DESENVALE, deveria tratar do financiamento e da resolução das questões sociais e
ambientais, tais como o deslocamento das famílias e o desmatamento da área.

a) O “Social” e o “Tecnológico”: desigualdades entre a barragem e os atingidos

O que antes era um projeto aos poucos foi ganhando forma e, em 1979, a barragem de
Pedra do Cavalo começou a ser construída. Apesar de tantos estudos acumulados por
pesquisadores, por governos e empresas, o foco sempre foi nos aspectos tecnológicos e por
isso por muito tempo pouco se falava ou se sabia sobre aqueles que poderiam ser afetados por
ela. Na época em que se decidiu por esta construção, sequer houve aviso ou consulta aos
municípios que seriam alagados, menos ainda às comunidades que viviam nas áreas e assim,
também a decisão sobre esta obra passou longe daqueles que seriam atingidos. Nem o
governo Estadual nem a DESENVALE promoveram qualquer tipo de discussão democrática
ou consultiva antes de iniciar a construção de Pedra do Cavalo, e, na prática, como veremos,
esta foi a forma regular de interação por muito tempo.
Havia uma contradição importante nesta desigualdade. Se por um lado obras como
estas costumam ser meticulosamente planejadas, sendo este planejamento uma marca de toda
a capacidade técnico-científica de projetos desta natureza, o mesmo não se evidenciava para
com a dimensão social e ambiental, tomada como elemento “surpresa” e “inesperado”.
Por exemplo, apesar das obras de construção terem sido iniciadas em 1979, somente
em 1981 começou a haver referências na documentação da DESENVALE sobre a questão dos
atingidos e mesmo assim de maneira muito incipiente. Segundo as técnicas entrevistadas, foi
justamente em 1981 que um pequeno setor social começou a ser esboçado na empresa, mas
com apenas 02 ou três funcionárias que precisavam se preparar para lidar com a tarefa que
recebiam.
Y(a): Eu cheguei a Desenvale em 1981 como assistente social para trabalhar dentro do
projeto. A princípio, não era nem tão definido o processo de reassentamento. Foi
quando você chegou ?
66

X (a): Eu cheguei em 83.

Y (a): Então, estava naquela fase dos estudos, estudo preliminar, estudo de viabilidade
da barragem, aqueles contatos com o CNEC, aquela coisa toda. A gente ficava só nessa
parte se embasando, foi quando W [outra técnica] trouxe material para a gente começar,
material de Itaipu né? Então, era muito mais de reunião, encontro, essas coisas todas. E
começou realmente quando começou o barramento, que começou a fase do
reassentamento que foi feito um estudo, mas ele só começou a ser realmente praticado
quando as outras partes, quando a parte física já estava mais ou menos definida (X (a) e
Y(a), ex-técnicas da área social da DESENVALE, 11/10/2011).

Esta falta de cuidado e planejamento para com as questões sociais e ambientais, que
quase sempre se desenvolve com muitos problemas, de certo modo contradiz toda a natureza
planejada destes empreendimentos. Longe de ser um traço de Pedra do Cavalo, tamanho
descuido tem se evidenciado em outras barragens (ROCHA, 2008; ROTHMAN, 2008). Para
Scott (2009), este “acaso” pode ser considerado como uma espécie de “Descaso Planejado”
Megaprojetos de desenvolvimento mobilizam planejadores e administradores durante
décadas em torno objetivos hierarquizados bastante claros. Tudo é cuidadosamente
planejado e permanentemente negociado ao longo de todas as operações, desde as
primeiras inspirações de ideias até a concretização e implementação do planejado. Mas
são negociações em muitos cenários e previamente marcados como desiguais. Mais
cedo ou mais tarde os planejadores e administradores implementarão os seus projetos
mobilizando contingentes de aliados que se aglutinam em torno das muitas
oportunidades que tais projetos oferecem. E, via de regra, mais cedo ou mais tarde as
populações que se encontram no caminho dos projetos terão que ceder a eles, por mais
que consigam impor certas condições para, como dizem os planejadores, “mitigarem”
os impactos. É uma cessão resistida, batalhada e negociada, pois população não se ilude
pelos discursos persuasivos dos idealizadores de planejamento e da administração dos
projetos sobre a possibilidade de ser “beneficiária” e não vítima (SCOTT, 2009, p.10).

Este desigualdade no tratamento dado aos aspectos sociais e os aspectos técnicos


ligados à engenharia da barragem era comum e bastante naturalizada na empresa e por isso,
de acordo com as técnicas, havia diferenças até mesmo entre condições de trabalho dos
profissionais destas diferentes áreas.
Z (a): A gente era quem ganhava menos, era quem levava as coisas, os problemas
sociais todos nas costas, né?

Y (a): Em termos de logística para o trabalho nós não tínhamos problema. Carro, cada
técnico tinha um carro com motorista, com diária, com tudo, entendeu? Isso nós
tínhamos […] Em termos salariais, logicamente eles ganhavam mais. Eles tinham uma
certa mordomia e havia uma certa discriminação. A gente tinha as coisas não era X(a),
mas os pedidos não fluíam tanto como os deles. A área social em relação a área de
engenharia física, caminhava, mas que eles tinham mais privilégios, isso é inegável e
prioridade (X (a) e Y (a), ex-técnicas da área social da DESENVALE, 11/10/2011).

Havia ainda um sistema de diferenciação entre profissionais de ensino superior e


ensino médio/fundamental, que não só dormiam em locais diferentes, como comiam em locais
comidas também diferentes.
67

X (a): Era uma coisa assim panorâmica, desagradável porque eu achava que era vizinho.
Aqui o restaurante, ali o outro restaurante deles [...] Os restaurantes eram escalonados
[...] Quem era nível superior tinha restaurante do nível, tinha dessas coisas […]. Os
chefes não ficavam no alojamento, os supervisores ficavam num hotel muito chique ...

Y (a): Me disseram que até o próprio hotel ia aproveitar para fazer um hospital.

F (pesquisadora): Foi um hotel construído para a barragem?

X (a): Para a barragem. Três estrelas o hotel (X (a) e Y (a), ex-técnicas da área social da
DESENVALE, 11/10/2011).

Além desses aspectos, o trabalho do setor social era por vezes visto como mais
“ideológico” do que técnico e por isso, esses profissionais eram por vezes acusados de
“defensores das comunidades” ou “radicais” por outros profissionais. Segundo as técnicas era
preciso muito cuidado para se exercer o papel de técnico e interferir na política social da
empresa.
Z (a): E, assim, eu notava que os técnicos, a maioria deles não tinha a menor
consciência do problema social que tava existindo. Tanto é que tinha cinco pessoas lá
dentre elas, eu, W e mais umas três que eram chamadas de xiitas. E a gente tinha o
maior cuidado para colocar qualquer problema. Porque se a gente colocasse o problema
de uma maneira mais assim... pronto (Z (a), ex-técnica da área social da DESENVALE,
25/10/2011).

Tudo isso gerava desconfortos para os profissionais que atuavam na área social, pois
no final das contas eram eles que precisavam convencer as pessoas a saírem de suas casas,
sem que isso tivesse sido combinado ou planejado anteriormente. Em alguns casos, havia
sofrimento na execução deste trabalho, já que as decisões sobre a melhor forma de conduzir a
política social não eram tomadas pelos técnicos, mas sua execução sim.
Z(a): […] Nós somos o muro da vergonha, nós ficamos entre o que as diretoria falam,
as chefias que falam: vocês tem que respeitar as comunidades né? E, no entanto, são
eles que determinam tudo. Determinam até diária, se pode viajar ou não e a gente fica lá
parando os anseios da comunidade e as decisões que eram tomadas, mas que nós não
participamos (Z(a), ex-técnica da área social da DESENVALE, 25/10/2011).

De todo modo, as obras avançavam, e por isso era preciso planejar a remoção das
pessoas da área do futuro reservatório. Se até então essa questão era secundária, recebendo
pouca atenção e recursos, com o avançar da obra, não era possível adiar o problema. Por isso,
na documentação da DESENVALE, entre os anos de 1982 e 1983, as comunicações entre
setores se ampliam e o tom de pressa para com a área social torna-se evidente. De acordo com
as técnicas, foi justamente em 1983 – 4 anos após o começo das obras – que a “questão
social” começou a se tornar uma “questão” para a empresa, sendo necessária a criação de uma
68

política. Um primeiro passo então foi a estruturação de um setor com a contratação de mais
funcionários.
Considero que essa mudança não ocorreu por benevolência da DESENVALE, mas
porque nesta época a questão das comunidades atingidas começou a se tornar um “problema”.
Primeiro, porque as obras avançavam e era preciso preparar a área do reservatório. Segundo,
porque aos poucos se iniciava um processo de organização e mobilização das comunidades
que questionava o tratamento da empresa aos expropriados. Terceiro, porque em 1983 ocorre
a primeira eleição direta, e João Durval é eleito governador do Estado. Apesar de muito
alinhado com a política do governo de ACM, tratava-se de um político nascido na região,
inclusive numa das áreas que seriam alagadas (Ipuaçu), havendo a necessidade de um maior
comprometimento do mesmo com sua principal base de apoio38.

b) As primeiras notícias da barragem


Os anos de 1982 e 1983 também apareceram nas memórias dos atingidos, mas neste
caso como o período em que começaram a saber sobre a barragem. Num primeiro momento,
isso ocorria através de rumores que chegavam sem muita precisão. Depois, a notícia começou
a se tornar mais efetiva por conta da presença de técnicos que faziam as medições em algumas
destas áreas. Segundo lembram, foi justamente a partir destas medições que as primeiras
interações concretas com a DESENVALE começaram a ocorrer.
G (o): Porque primeiro eles vieram com aqueles piquetes, marcando as terras, entendeu?
Bem antes, acho que uns três a quatro anos antes. Eles vinha medindo as terras, batia
piquete, batia o piquete lá nos terreno (G(o), 42 anos, atingido/deslocado pela barragem
de Pedra do Cavalo, entrevista em 05/03/2011, 2a geração)..

F(pesquisadora): E avisavam a vocês?

G (o): Não, a gente não sabia o que era. Aí a gente ia na beira e perguntava. Aí eles
falava que era a DESENVALE, sobre a barragem Pedra do Cavalo. Só que ninguém
nunca acreditava, né, que era muito tempo, ninguém acreditava que ia acontecer (G(o),
42 anos, atingido/deslocado pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em
05/03/2011, 2a geração)..

***

R(a): Começou, essa medição começou muito antes, só que assim, a gente via
helicóptero passando, a gente via, mas ninguém se tocava da verdade. Aí depois que
eles fizeram toda pesquisa de área, toda pesquisa, foi que eles viram realmente que
aquelas pessoas, que haveria necessidade de remover aquelas pessoas porque a água ia
38
A atmosfera política começava a se tornar mais favorável com um processo organização social maior em
vários lugares do país, o que proporcionava melhores condições de resistência. Internacionalmente, começa
haver a aprovação de leis que vão repercutir sobretudo na questão ambiental destes projetos. No Brasil, por
exemplo, é justamente em 1981 que se tem a aprovação da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81).
69

atingir. Aí foi quando eles começaram a reunir com as famílias (...) Ia, conversava, aí
começava a fazer as reuniões, pra dizer realmente o que que ia acontecer, que a gente ia
ter que sair (R(a), 33 anos, atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo,
entrevista em 28/02/2011, 2a geração).

Aos poucos, outros técnicos chegavam, não mais para fazer medições, mas para
informá-los que aquela área seria alagada. Conforme narram, esses contatos não tinham um
tom de consulta, eram na verdade a notícia de que suas casas seriam cobertas e que a partir
daquele momento suas vidas mudariam. Não havia opção: era sair ou sair. A notícia portanto
era uma sentença, e neste primeiro momento sem uma clareza do novo destino.
L (o): Naquela época que a gente vivia lá no nosso lugar, aonde a gente convivia, aí a
gente ouvia falar que ia construir uma barragem que chamava barragem Pedra do
Cavalo. Então aí no início que saiu o comentário que ia construir a barragem, aí todo
mundo já ficava assustado, ‘que barragem é essa?’ O que será essa barragem, aí o
povo, muitas pessoas idosas que tinha propriedade de junto do Paraguaçu, então teve
muitos que morreram, outros morreram do coração, morreram choqueado porque
desapropriou a terra.

F: Choqueado é o quê?

L (o): É com medo por causa de perder, tomou choque de perder a propriedade
[…] (L (o), ex-sindicalista, atingido/deslocado pela barragem de Pedra do cavalo,
02/03/2011).

Em muitos casos, a recepção da notícia gerava sentimentos intensos de susto,


desorganização, surpresa: como aceitar que deveriam sair de suas terras porque alguém em
algum lugar resolveu construir uma barragem e mudar o rumo da vida de tantas pessoas? A
expressão “choqueado”, usada por Senhor L (o) refere-se justamente ao susto que a notícia da
barragem gerava em algumas pessoas, sobretudo as de mais idade.
Esse tipo de estratégia de desinformação não ocorreu apenas em Pedra do Cavalo e na
verdade tem sido comum em muitos projetos. No estudo realizado por Rodrigues (1999), em
Nazaré Paulista (SP), as primeiras notícias da barragem chegaram como rumores,
comentários, notícias incertas, de origem não declarada. Apesar de alguns ouvirem falar da
barragem antes, ela só chegava a eles de forma mais concreta quando “começa a se delinear,
pelas mediações dos técnicos, a área de inundação, cerca de um ano antes do enchimento”
(Rodrigues, 1999, p. 39). Saber sobre a represa portanto equivalia a saber que seria inundado.
O desconforto que esse tipo de notícia gerava parece ter sido tão comum, que
encontramos nos documentos de 1983 uma lista de recomendações da DESENVALE aos
seus funcionários, na qual se indicava como estes deveriam se portar nas interações com os
atingidos. Esse “código de conduta” chamado nos documentos de “Política de Ação” mostra
que a empresa sabia que suas ações suscitariam a emergência de problemas, por seu caráter
70

expropriatório, e por isso recomendava-se cordialidade para que não tivessem “problemas
ainda maiores no andamento das desapropriações. Abaixo segue trecho do documento:
[...] Deverá entender todos aqueles integrados ao sistema, que a função da equipe que
tem ao seu encargo executar a desapropriação que em caráter amigável, quer judicial,
não constitui exercício de poder de polícia ou atividade punitiva contra o proprietário
que porventura tiver sua propriedade inserida na poligonal do decreto expropriatório,
mas, muito ao contrário, seu desempenho será obrigação funcional com profundas
repercussões políticas e sociais. Desta forma, todos aqueles que tiver de ser
expropriado a sua propriedade, merece atendimento excepcional, devendo ser
compreendido quando externar revolta pela perda da propriedade, o que supõe de
modo geral ser uma violentação ao seu direito.

Haverá ainda aqueles que procurarão tirar partido desta situação, procurando aparecer
como defensor de um direito comum, para os quais deve-se ter cuidado e habilidade,
determinação suficiente para evitar a prosperação dos interesses pessoais, destes, que
se dizem defensores ou representantes de grupos [...]

Assim, à vista das implicações e necessidades de os chefes das equipes de topografia


das empresas contratadas, deverão participar do programa de treinamento, pois serão as
primeiras pessoas a lidar com os expropriados, devendo se esmerar no tratamento que
dispensar ao expropriado, usando linguagem cortês, ponderando suas palavras,
medindo as consequências dos esclarecimentos que faz. Devemos entender que o
expropriado com o surgimento da barragem é um preocupado com a situação de
desapropriação, motivo pelo qual devemos como requisito fundamental de atuação
a seriedade, compreensão, honestidade cortesia (DESENVALE, “Política de Ação”
no texto Projeto de Desapropriação e Relocação, 1983).

Destaca-se entre essas recomendações a necessidade constante de se policiar o


comportamento e as palavras, “medindo as consequências dos esclarecimentos que faz”. Além
disso, a empresa sugeria que não dessem espaço para aqueles que se colocassem como
“defensores de um direito comum”, devendo-se ter com esses ainda mais cuidado e
habilidade. Nesta época, em 1983, já se esboçava os primeiros processos de organização das
comunidades e os sindicatos buscavam evitar as negociações caso-a-caso. A isso, propunham
negociações coletivas, através de representantes, de modo que a desigualdade de forças entre
atingidos/DESENVALE fosse minimizada. Esta recomendações possivelmente foram
construídas no contexto desses conflitos.
c) A Descrença
Do outro lado da história, as famílias recordam que além dos sustos e ansiedades que
as notícias produziam, havia também uma completa descrença naquilo que os técnicos lhes
diziam. Num primeiro plano, as pessoas não acreditavam que aquilo poderia acontecer em
termos geográficos. Muitas famílias viviam em áreas altas, em pequenos morros existentes na
região, convivendo com o rio Paraguaçu há muitos anos. Apesar de ser um rio importante e
71

perene, não era grande o suficiente para cobrir suas casas, não havendo referência em suas
memórias a qualquer tipo de risco desse tipo.
M (a): […] Quer dizer, depois eu fui lá depois e vi, ai eu disse: “Rapaz, eu nunca
pensava”. Não esperava, não pensava que água subia ladeira. O pessoal dizia que
água não subia ladeira, né? E minha casa era aqui, tinha uma baixada que você tinha
que estirar pra olhar, pra conseguir ver o fim da baixada. E água cobria tudo. E a água
veio, subiu a ladeira e cobriu minha casa (M(a), 58 anos, atingida/deslocada pela
barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 02/03/2011)..

D (a): […] O filho perguntava pra ele: “Mas, papai”. Chega a me arrepiar. “Mas,
papai”. Chamava Desenvale naquele tempo. “Será que isso vai acontecer?”. Ele falava:
“É, meu filho, quem durar muito vai ver! Agora só uma coisa, água não sobe ladeira”.
Escute: “Água não sobe ladeira”. Tem hora que eu estou assim na roça, a pouca hora eu
cheguei, tava jogando palma para os bicho ali e pensando lá o dizer que ele dizia para o
filho […] O filho perguntava pra ele: “Mas, papai, será mesmo que a gente vai ver água
aqui?”. Aí, ele respondia: “Meu filho, tu já viu água subir ladeira?” (PAUSA) Ó, agora
você vê como que é porque ele nunca esperava que a água subia ladeira, mas a água
sobe porque, vamos supor, nunca é que a terra é uma planagem toda por uma, né?
Sempre tem aquele lugar mais baixo e tem aquele ladeirado né? A água aproveita
aquele baixinho e aí vem. E ela está fazendo o que? Subindo ladeira (D(a), 53 anos,
atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 04/03/2011).

A expressão “agua não sobe ladeira”, trazida por muitos entrevistados deslocados,
indicava justamente esta descrença e a incompatibilidade entre a percepção espacial das
comunidades e dos técnicos que construíam a barragem. A ideia de que o rio inundaria suas
casas lhes parecia improvável, talvez uma “loucura”dos engenheiros que faziam “a tal
barragem”.
B (a): Eles começaram a avisar assim, já tinha uma previsão, já havia uma previsão há
uns dois meses ou mais que essa água ia subir. Só que meu avô não acreditava, a
distância era imensa da casa dele pro rio, entendeu? E também ninguém no mundo
supunha que um dia a água ia chegar naquele lugar, entendeu? Todo mundo achava
que era fantasia! Você sabe que o pessoal da zona rural não costuma acreditar em
tudo, só no que vê. E principalmente naquela época, que era uma época que não tinha
assim tanta tecnologia, que não tinha televisão, meu avô não tinha TV […] Que
barragem? Ninguém nem ouvia falar em barragem. Então o que aconteceu, na verdade
ele não acreditava, ou nunca acreditou, nem meu pai, nem meu avô, nem ninguém que
morava naquele lugar, que a água ia subir daquele jeito […] a casa do meu avô era
muito distante do rio, era uma distância enorme, assim a gente falando pra você, talvez
você não vá acreditar. Tinha que viver naquela época pra saber quanto que a água subiu.
A gente não tinha dimensão daquilo ali. A gente achava que aquilo ali era fantasia,
era surreal demais pra acreditar. E meu avô, eu acho, eu creio até hoje que meu avô
não acreditava que a água ia chegar na casa dele. Por isso que ele ficou até o último
momento (B(a), 35 anos, atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo,
entrevista em 28/02/2011, 2a geração).

Mas a descrença também aparecia de outra forma, um pouco menos comum, ligada a
um sentimento de que ninguém poderia tirá-los suas casas e do que lhes pertencia. De modo
geral, a casa está relacionada culturalmente a um lugar da intimidade, privacidade e envolve a
escolha familiar de quem entra ou não, quem é bem vindo ou não, sendo ao mesmo tempo um
72

abrigo e uma parte da família. Para eles, quem poderia se sobrepor ao direito inviolável de
que na “nossa casa” fazemos o que queremos e ninguém pode mexer em nada sem nossa
autorização? Assim, para muitas famílias, ainda que tudo aquilo fosse verdade, ainda que
dissessem que o rio ia subir, ainda que dissessem que seriam desapropriados, ninguém poderia
tirá-los de suas casas.
Houve ainda um terceiro aspecto da descrença, neste caso mais associado à
desconfiança para com o Estado. Para eles, se haveria necessidade de retirá-los dali, era
preciso que se oferecesse algo melhor, mas ainda que oferecessem não era possível acreditar,
já que para eles “os políticos” costumavam prometer muitas coisas, mas na prática tudo
permanecia igual. Era portanto impossível acreditar nas garantias que a DESENVALE
oferecia de que seriam indenizados, que esta indenização seria justa ou que teriam acesso a
terra. De certa forma, esta análise se mostraria correta, já que uma política de reassentamento
mais efetiva só acabou avançando com os processos de mobilização das comunidades.
M (a) : Eles chegaram falando que ia, que o rio ia subir e as águas iam cubrir as nossas
terras. Inclusive, a nossa casa. Misericórdia, como é isso? O que é que vão fazer com a
gente? Aí, eles disseram né? Que iam indenizar as terras. Só que a gente não acreditava,
a gente pensava que era mentira [...] Eles tratavam bem, eles eram até umas pessoas
boas, sabe? Eles eram pessoas que davam até pra gente acreditar, só que a gente não
acreditava. A gente ficava pensando que aquilo era tudo conversa, que aquilo não ia sair
do papel, entendeu? (M(a), 58 anos, atingida/deslocada pela barragem de Pedra do
Cavalo, entrevista em 02/03/2011).

Para C (a), militante do Pólo Sindical de Feira de Santana, parte desta descrença teria
impactado nos processos de organização dessas comunidades que teria demorado a se efetivar
pela falta de informação por um lado e por essa descrença de outro.
C (a): Eu me lembro de uma senhora lá de Antônio Cardoso que ela insistiu, insistiu pra
não sair, tiraram ela da casa na marra e ela enlouqueceu. Pois é, é muito desumano, mas
também ali é a verdadeira certeza de que no mundo existe dois poderes: quem acredita
em Deus, deus é um e o segundo é o povo organizado. Ali faltou organização. Porque se
os trabalhadores tivessem se organizado nas suas entidades, tivesse tido informação e
acreditado naquilo, eles não teriam feito o que fez (C(a), Liderança do Pólo Sindical
de Feira de Santana, 01/03/2011).

Seu L (o), diretor do STR de Santo Estevão e atingido, que atuava na época
organizando as comunidade, também falou da descrença das pessoas e da dificuldade de
convencê-las não só do que ocorreria, mas também dos direitos que tinham a despeito do que
a DESENVALE dizia.
L: [...] que o trabalhador não acreditava nos direitos que eles tem, e eles não
acreditavam, e eles não tinham esperança que ia conseguir. Era dizer assim como diz na
vida, “ô homens de pouca fé”! Porque, olha, na medida que a gente luta com uma
73

coisa, mas com fé de conseguir, a gente consegue […] (L(o), ex-sindicalista,


atingido/deslocado pela barragem de Pedra do cavalo, 02/03/2011)

Penso que esta descrença, tão trazida pelo grupo, de algum modo pode ter sido uma
espécie de mecanismo de defesa inconsciente para lidar com a angústia que tamanha notícia
gerava. Segundo a teoria freudiana, os mecanismos de defesa são formas de inconscientes de
lidar com o desejo – que não é o caso – ou com afetos de grande intensidade que geram medo,
ameaça, incerteza e risco. A angústia pode ser entendida como uma reação afetiva do sujeito
frente a uma situação traumática que produz uma ansiedade que o sujeito é incapaz de
dominar. Segundo Laplanche (2001), a angústia representaria uma experiência de “desamparo
psíquico latente” (p. 27), aproximando os sujeitos de um sentimento de quase morte.
Mas o ritmo das obras e da barragem não respeita sentimentos de descrença ou de
discordância e por isso, ainda que achassem que aquilo tudo era impensável, a obra seguia e
com ela os processos de desapropriação. O que restava a estas famílias senão organizar-se
para ao menos garantir um novo destino já que perderiam suas casas e terras com certa
brevidade?
d) A Organização – a luta por um novo destino
L(o): Aí foi quando ia fechar as comportas da barragem, aí a luta esquentou. Fechar as
comportas das barragens e as famílias vão para onde? [...] Então eles já avisavam que ia
chegar essa água, que ia acontecer de chegar a água, mas que todo mundo tinha que
desocupar. Desocupar e ir pra onde? Aonde a gente vai ficar? Aí agora só que o
Sindicato de Santo Estevão, Antônio Cardoso, Feira de Santana, São Gonçalo dos
Campos, Cabaceiras do Paraguaçu se juntou […] (L(o), 66 anos, ex-sindicalista,
atingido/deslocado pela barragem de Pedra do cavalo, 02/03/2011).

Para os entrevistados da Modelo, se não fossem as lutas das comunidades atingidas, o


saldo final da história desta barragem teria sido muito pior. De certa forma, tendo a concordar
com eles já que na documentação da DESENVALE vimos que a “questão social” só começou
a ganhar espaço a partir de 1983, próximo ao fim das obras e com o começo das mobilizações.
A tarefa das entidades não era simples: a percepção da condição de atingido não estava
dada necessariamente por seus aspectos objetivos, ou seja, por uma área que seria inundada,
mas por um processo de construção identitária de natureza política, que significava perceber-
se como alguém que seria afetado por uma ação do Estado, perdendo acesso às suas condições
de produção, devendo portanto ter direito a uma compensação, mesmo que dissessem o
contrário39. Assim, de acordo com as lembranças dos militantes, era preciso organizar as
famílias e comunidades, muitas vezes dispersas em suas localidades, através de reuniões que
39
Veremos no próximo capítulo que o entendimento da empresa sobre quem eram os atingidos foi se
modificando. Inicialmente apenas os donos de terra com documentação eram considerados.
74

buscavam convencê-las sobre seus direitos por um lado e sobre a necessidade de organização
por outro.
L (o) : Porque tinha que reunir, saia da comunidade, juntamente com outro
companheiro do sindicato também, fazendo reunião e ouvindo dos trabalhadores e
trazendo para Feira de Santana o que tava ocorrendo e como é que o povo estava
disponível a lutar, pra poder conquistar, porque se não fosse o querer, o sindicato não
ia para frente […] (L(o), 66 anos, ex-sindicalista, atingido/deslocado pela barragem de
Pedra do cavalo, 02/03/2011).

São os Sindicatos de Trabalhadores Rurais dos municípios que aparecem nas


memórias como as primeiras entidades a organizar as pessoas. Segundo todos os
entrevistados, os STRs eram as entidades mais próximas e que participaram decisivamente no
processo de organização. O problema é que nem todos os STRs estavam bem estruturados e
fortes na época, período tensa para a organização política no Brasil. Segundo lembra C (a),
muitos sindicalistas era ameaçados na região mesmo neste período final da ditadura.
C: [...] Era uma época muito difícil, ainda tinha aquele o pessoal com pigarro da
ditadura e aí nosso pessoal ficou muito assustado com a condição da barragem, com a
situação da ditadura […] (C(a), Liderança do Pólo Sindical de Feira de Santana,
31/10/2011).

Havia ainda outra questão: não eram só os trabalhadores rurais que se organizavam,
mas também entidades ligadas aos grandes proprietários que viam na barragem oportunidades
de ganhos com o projeto.
C (a): Mas nessa época também da barragem havia uma, uma organização muito grande
porque assim a barragem mexeu com muita coisa, mexeu com os trabalhadores, mas
mexeu com o poder econômico ? Então, tinha um monte de pecuarista que ficava nossos
dirigentes sindicais, que andavam assustados, né? Assustado com medo de ser
assassinado, porque nesse tempo a UDR que é a União Democrática Ruralista, uma
entidade que representa os pecuarista começou a se fortalecer, começou a fazer uma
intervenção muito forte pra enfrentar o movimento sindical. Então, o povo não falava
muito, não se fazia discussão política partidária […] (C(a), Liderança do Pólo Sindical
de Feira de Santana, 31/10/2011)

Assim, além de organizar as famílias atingidas, era preciso articulação entre os STRs
e com outras entidades para terem alguma força e visibilidade. Entre as entidades mais
lembradas estavam algumas ligadas a igreja católica como Movimento de Organização
Comunitária (MOC)40 e a Comissão Pastoral da Terra (CPT)41 e outras ligadas ao movimento
40
O Movimento de Organização Comunitária (MOC) foi criado em 1967, na cidade de Feira de Santana, sendo
ligado à Igreja Católica. Já em 1970, o MOC foi fundado como entidade autônoma, ao menos juridicamente, já
que mantinha relações estreitas com membros da Igreja Católica, embora ampliasse suas relações com outros
grupos e religiões, como os evangélicos. Na memória deste grupo há um destaque especial para Albertino
Carneiro, um dos principais integrantes do MOC que atuou com proximidade na luta dos atingidos por Pedra do
Cavalo.
41
A CPT é uma entidade ligada a Igreja Católica surgida, em 1975, num Encontro de Pastoral ocorrido na
Amazônia. No começo era uma organização que prestava serviço pastoral a trabalhadores ligados à terra, bem
75

sindical como a Federação dos Trabalhadores da Agricultura (FETAG) e Central Única dos
Trabalhadores (CUT)42. Estas organizações já tinham uma história na luta com os STRs antes
da Barragem, debatendo na região a necessidade de promoção da reforma agrária, acesso às
sementes, ao financiamento e mesmo a direitos sociais trabalhistas como a questão da
aposentadoria rural (SANTOS, 2008).
O papel destas entidades era diverso: ora atuavam como informantes qualificados,
trazendo para as bases do movimento informações mais detalhadas sobre o andamento das
obras, os passos do governo e a situação dos atingidos em outras barragens; em outros
momentos atuavam como apoiadores, divulgando e lançando posicionamentos públicos sobre
a situação de Pedra do Cavalo; em outros, atuavam como mediadores, buscando contato com
representantes do governo que pudessem escutar os atingidos; em outros momentos ainda,
atuavam como organizadores do movimento, contribuindo com as lideranças locais nos
processos de mobilização das comunidades.
Em outubro de 1984, por exemplo, os STRs e entidades parceiras convocaram uma
grande reunião realizada Colégio D. Pedro Primeiro em Santo Estevão, quando cerca de 400
pessoas participaram. O objetivo do encontro foi apresentar as pautas do movimento e ao
mesmo tempo destacar a força que começavam a ter, não só pelo número de pessoas reunidas,
mas também pelas personalidades e organizações presentes. Segundo Santos (2008) os jornais
da época destacavam
Prefeitos e vereadores de Santo Estevão, FETAG, STRs de Santo Estevão, Feira de
Santana, Cruz das Almas, trabalhadores de Castro Alves, São Gonçalo dos Campos,
Antônio Cardoso, CUT, Federação de Associações de bairros de Salvador (FABS),
Associação de Oleiros de Feira de Santana (ASSOFS), Associação de Técnicos
Agrícolas (ASTA), Delegação feirense do sindicado dos professores, Diretório Central
dos Estudantes da UEFS (DCE-UEFS), Associação de Moradores do Jardim Cruzeiro,
Rio Pajeú, Novo Horizonte e Rua Nova, Associação de Pequenos Produtores do Estado
da Bahia (APAEB) e a Comissão Diocesana de Apoio aos Agricultores da Barragem.
(GOMES, 2008)

Os processos de luta envolviam portanto um contato contínuo com as comunidades –


no sentido de mantê-las informadas e organizadas – e a criação de espaços de visibilidade
pública e negociação. Para isso, além da realização de atos públicos, do agendamento de
audiências, de ações nas câmaras de vereadores da região para pedir apoios a prefeitos e

como indígenas e outros grupos sociais. Com o tempo a organização tornou-se nacional, ampliou seu foco de
atuação, mas não deixou de se vincular à luta pela terra ou seus recursos naturais fundamentais como a água.
42
Outras organizações também apoiaram essas comunidades entretanto de maneira menos destacada: Grupo
Ambientalista da Bahia (GAMBA), Associação Baiana de Geólogos (ABG), a Associação dos Engenheiros
Agrônomos da Bahia (AEABA), Clube de Engenharia da Bahia (CEB), e Sindicato dos Engenheiros da Bahia
(SENGE-BA) (PALMA, 2007; CARMO, 2007, GERMANI, 1993).
76

vereadores, costumavam ir a Salvador para pressionar o escritório da DESENVALE. Sobre


este último ponto vejamos as lembranças de três pessoas diferentes, Sr. L(o), atingido e
sindicalista, M(a), uma atingida e e X(a), uma das técnicas da área social.
L(o): Se tinha, no modo geral tinha, a gente fechava rodovia, pintava o sete, tinha que
fazer isso aí, tinha que fazer isso aí para, pra dar uma forma do que estava acontecendo,
tinha que interromper um negócio aí, parar uma rodovia, coisa e tal, tinha que fechar
ela, e distribuindo os folhetos para o evento, o que é, quer dizer chama divulgação,
colocava no rádio (L(o), ex-sindicalista, atingido/deslocado pela barragem de Pedra do
cavalo, 02/03/2011)

M(a): Eu mesma fui em Salvador duas vezes, lá no [Capeni] eu nem me lembro mais
onde era aquele lugar ali. Eu sei que era ali perto do Iguatemi ali, que a gente ia. Que
era um setor, que era uma repartição desse negócio deles da Desenvale. Ali perto do
Iguatemi, eu fui duas vezes ali. É porque eu me esqueci como era o nome do edifício
(M(a), 58 anos, atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em
02/03/2011).

X(a): Minha filha, os sindicatos eram super atuantes, o MOC, a pastoral da terra, mas só
que era o sindicato, pelo menos o que a gente via lá que o temor era o sindicato. Quando
o sindicato chegava, era um corre, corre. Que eles iam pra lá, entendeu? Pra questionar
e fazer reunião (X(a), ex-técnica da área social da DESENVALE, 11/10/2011).

Neste momento, o foco das lutas era na garantia de uma política social por parte da
DESENVALE que oferecesse indenizações justas e reassentamentos aos atingidos. Digo isto
porque, no último capítulo veremos que a história das lutas dessas comunidades vão se
modificando ao longo dos anos e não cessam com a mudança para os núcleos (ver capítulo
04).
Mas para que tudo “corresse bem”, era preciso continuar “atento e forte”, porque nem
sempre aquilo que era acordado tornava-se realidade. Havia por exemplo lentidão na
localização de novas terras e por isso os sindicatos passaram a buscar ativamente fazendas
para formar os núcleos43. E não apenas isso, em muitos casos os STRs vistoriavam, de
maneira bem próxima, todos os passos da empresa, já que nem sempre as terras escolhidas
para reassentar as famílias pela empresa eram adequadas.
Por isso, os STRs buscaram apoio nessas entidades parceiras para a contratação ou uso
de agrônomos na fiscalização das fazendas indicadas pela DESENVALE. O núcleo Modelo
teria sido uma indicação dos STRs, sendo antes uma fazenda pertencente ao Sr. Francisco do
Lessa. De acordo com relatos, teria sido comprada por Sérgio Carneiro, a pedido então
governador para a construção de mais um reassentamento.

43
Segundo Araújo (2007), as grandes fazendas de Santo Estevão que foram compradas pela DESENVALE
pertenciam aos seguintes fazendeiros Francisco Lessa (Fazenda Modelo); Tibúcio de Oliveira (Fazenda
Mamona); José Cerqueira (Porto Castro Alves); Luís Bahia (Fazenda Primavera); Isauro Ramos (Fazenda
Rebouças); Glorinha Abreu (Fazenda Paiaiá).
77

E(o): Eu lembro! Olhe, ele ia vender essa fazenda pra um doutor lá de Salvador. Ai
vende, mas não vende, ai na hora dele dá o sim de vender ele resolveu não vender. Ai
ficou, ainda querendo vender. Ai foi que esse João Durval soube que ele ia vender essa
fazenda, ai mandou Sérgio saber. Ai dessa vez ele não vendeu ainda essa fazenda.
Depois eu acho que ele resolveu, ai botou mesmo para vender. Ai Uzeda veio aqui num
dia de sábado. Tava eu sozinho e Deus, mas não tinha mais ninguém ali. Ai Uzeda
chegou sete horas da noite e disse: “Seu E, o senhor sabe dizer certo, se Francisco tá
vendendo essa fazenda?” E eu disse: “Tá.” “E o preço?” Eu digo: “Bom, o preço ai eu
não sei. Porque ele não me falou. Agora eu sei que ele tá vendendo.” “E quem deve
saber o preço certo?”“ Um cara ali que chama [Zé Grosso].” Ai acertei tudo e fui lá com
ele. Ele disse: “Então vamo lá pra vê se ele sabe do preço.” (…) Ai ele disse: “Sabe se
tá vendendo a fazenda?” “Tá.” “E sabe qual é o preço?” Acho que era mil real a tarefa,
era mil real. Ai seu Sérgio chegou e disse: “É, dessa vez eu compro.” Risos. Ai vieram e
me deixou em casa e foi se embora. E comprou mesmo (E(o), 75 anos, trabalhadora da
antiga fazenda que virou Modelo, entrevista em 01/03/2011).

Apesar do empenho e da atenção das entidades, o traço de autoritarismo permanecia e


por isso outros interesses se sobrepunham aos dos atingidos. No caso da Fazenda Nova por
exemplo, a compra da área foi realizada mesmo com a discordância dos sindicatos que já
haviam diagnosticado que a área não inadequada para reassentar as famílias. Esta lembrança
do ex-sindicalista entrevistado se confirma no estudo de Carmo (2007). De acordo este
estudo, a área não foi aceita por ter não ter acesso a água e ter um solo pouco produtivo.
Apesar disso, a DESENVALE passou por cima das organizações e realizou a compra da área,
conseguindo reassentar as famílias que eram consideradas menos organizadas, através da
oferta de indenizações irrisórias, que na época representava muito para essas famílias.

e) Propaganda – de atingidos a beneficiados

Todo este quadro impactava na imagem da barragem como promotora de progresso e


desenvolvimento, e por isso era preciso minimizar os problemas, custos e desgastes políticos
que os conflitos produziam. Para isso nada melhor do que transformar os “atingidos” em
“beneficiados” (SCOTT, 2009) divulgando-se que a barragem traria “desenvolvimento” para
todos, através da inclusão social das famílias mais pobres que poderiam ser beneficiadas com
este projeto. No trecho da Política de Ação da DESENVALE já apresentado anteriormente,
havia a seguinte recomendação
[…] Com a devida compreensão, deve o servidor esclarecer a todos quantos
procurarem, como medida preliminar, a importância do empreendimento, os benefícios
que advirão, para logo em seguida demonstrar a preocupação, que é real, que a
Desenvale tem em não provocar prejuízos ao patrimônio, pagando uma indenização que
possa recompor a efetiva expressão econômica do patrimônio expropriado […]
(DESENVALE, 1983, “Política de Ação” no texto Projeto de Desapropriação e
Relocação.)
78

Considero que uma das estratégias utilizadas nesse sentido pela empresa foi através da
propaganda, lançada em cima de um dos aspectos técnicos previstos no projeto, aspecto este
que poderia compor com setores mais progressistas da região que apoiavam os atingidos. Esta
estratégia envolvia a divulgação da idéia de que a barragem de Pedra do Cavalo era diferente
de outras, pois tratava-se de um empreendimento de usos múltiplos.
A ideia funcionava mais ou menos assim: a construção de Pedra do Cavalo, uma
barragem de grandes proporções e impactos, não permitiria apenas o abastecimento de água
para Salvador, Feira de Santana e cidades vizinhas ou a produção de energia elétrica para os
complexos industriais. Sendo uma barragem de “usos múltiplos” ela teria outros fins cujos
benefícios ficariam ali mesmo, como por exemplo o controle das das cheias do rio Paraguaçu,
acabando com as inundações recorrentes em Cachoeira e São Félix; a promoção da
agricultura irrigada com uso de sistemas de captação no futuro lago da barragem, como em
Juazeiro na barragem de Sobradinho; desenvolvimento da piscicultura, incrementando as
possibilidade de uso do lago para os pescadores; e desenvolvimento do potencial turístico da
região que poderia promover a prática de esportes náuticos, a criação de marinas e espaços de
lazer ao longo de todo o lago (DESENVALE, 1984).
Sem dúvida, muitos desses usos poderiam gerar novas possibilidades de trabalho e
renda para as famílias deslocadas, se a politica social assim o quisesse. Entretanto os “usos
múltiplos” foram mais usados como uma forma de divulgação dos benefícios da barragem, do
que efetivamente como uma política social de compensação. Toda essa propaganda
influenciou algumas organizações de trabalhadores da região que falavam da inclusão social
que a barragem promoveria (CARMO, 2007), bem como algumas técnicas sociais que
trabalhavam na DESENVALE.
X (a): Então, assim, era um projeto bonito, era bonito entendeu? Só que com essa
questão política acabava com tudo, não quiseram nem saber, não se levou adiante. Aí,
ficou lá, barragem só para levar água. Mas era luz, era piscicultura, diversão, irrigação,
lazer. Ia fazer aquela parte náutica com ancoradouro. Eram não sei quantos usos:
múltiplos usos (…) (X (a), ex-técnica da área social da DESENVALE, 11/10/2011).

Y (a): Eu mesmo, quando eu me dispus a vender o peixe era múltiplos usos, uma coisa
que era muito bonita, muito bonita. De fato, é. Aí, se você saísse daquela sua atividade,
você poderia, a depender da sua capacidade, você poderia entrar em outra área de
investimento ou de atuação, você poderia explorar a piscicultura, você poderia fazer
isso ou aquilo, né? Tinha outras, várias possibilidades né? (…) Que ia ter irrigação, que
ia ser assistido pela CAR , pela Secretaria de Agricultura e tudo isso era o sonho de ...
Eu lembro que eu mesmo sonhei fazer os meus núcleos, de ter uma central comercial
em Santo Estevão, onde eles pudessem levar a produção, ter um box coletivo de venda.
Essas coisas todas que você sonha, mas sonhar é uma coisa, na hora da realização sem
suporte (Y(a), ex-técnica da área social da DESENVALE, 11/10/2011).
79

f) As promessas
Na memória dos atingidos, esses “benefícios” da barragem apareceram, mas como
“promessas” feitas pela empresa em relação à condição dos núcleos para onde iriam. De certo
modo, a demora de se constituir uma política social gerou um enorme descompasso entre o
tempo técnico do setor de engenharia, que em breve pretendia limpar a área44 e o tempo dos
atingidos que buscavam negociar ponto por ponto suas necessidades, para que não fossem
ainda mais prejudicados.
Quanto mais se aproximava a finalização das obras, mais pressa havia para que a área
fosse liberada e, consequentemente, maiores as ansiedades entre os atingidos. Qual seria então
a melhor forma de minimizar tantas incertezas criadas pelo próprio Estado e ao mesmo tempo
arrefecer os ânimos que a esta altura estavam inflamados com tamanha injustiça e ação? Creio
que através de promessas.
De modo geral, as “promessas” envolviam a oferta de diversos direitos sociais básicos
que muitas famílias não tinham acesso regular e que foram usados como “moeda de troca”
para que aceitassem a saída de onde viviam, já que no novo lugar a vida seria “melhor”:
teriam escola, posto de saúde com médicos, acesso a assistência técnica, projetos de irrigação,
acesso a terra, ao título etc. Apesar dos entrevistados considerarem que tudo isso eram apenas
“promessas”, já que na chegada ao núcleo nada foi encontrado, todos estes aspectos eram
parte dos compromissos assumidos pelo DESENVALE constando nos Planos de
Reassentamento da DESENVALE.
De acordo com os documentos da empresa havia dois tipos de núcleo: no primeiro,
chamado Núcleo de Reassentamento – que poderiam ter a forma de Agrovilas ou Lote/Casa
– haveria uma área comunitária onde todos os equipamentos citados anteriormente seriam
construídos; no segundo tipo, chamado Núcleo de Relocação, haveria apenas lotes e casas
sem área coletiva ou equipamentos comuns. O critério de diferenciação entre os tipos de
núcleo era a quantidade de famílias e neste caso, apenas quando houvesse mais de 40 famílias
seria construído o núcleo de reassentamento devendo ter a área comunitária (DESENVALE,

44
A expressão “limpar a área” é utilizada nos documentos da empresa e em projetos deste tipo até hoje. Esse
termo se refere à retirada de tudo que existe na área do reservatório – pessoas, animais e vegetação através do
desmatamento. Gostaria de pontuar entretanto que este termo, apesar de parecer estritamente técnico e inocente,
oculta uma perspectiva desumanizadora na medida em que denomina a retirada das pessoas, junto com a fauna,
flora e construções como limpeza da área. Este termo me parece um tanto problemático na medida em que
transforma tudo que está no caminho da obra em coisa, tomando-se estas pessoas quase como objetos a serem
removidos como tantos outros.
80

1983; 1984). A menor quantidade de pessoas implicava portanto num menor investimento e
custos para viabilizar o projeto.
Em relação ao Núcleo de Reassentamento, o modelo das Agrovilas foi uma das
propostas logo implementadas pela DESENVALE, inspirado no modelo de reassentamentos
da CHESF. Neste modelo, as casas seriam construídas no centro da comunidade, numa
espécie de “vila”-- onde se localizam todos os equipamentos comunitários – e os lotes com as
terras mais distantes das casas. O outro modelo, Lote/Casa, era diferente, ficando a casa e o
lote no mesmo local e tendo portanto uma maior distância entre as propriedades que não
ficavam todas na “vila”.
O primeiro núcleo a ser construído, Nova Ipuaçu, chamado posteriormente de Distrito
Governador João Durval Carneiro e foi feito justamente no formato de Agrovila. Segundo as
técnicas, este foi o núcleo que recebeu maior empenho da área social, pois se tratava do local
onde seriam reassentados os moradores da antiga Ipuaçu, localidade onde nasceu o então
governador João Durval Carneiro. Por ser “filho da terra”, o governador teria tido um cuidado
especial com este núcleo45.
Y (a): Ipuaçu, ela tinha uma certa prioridade por ter sido a época, por ter sido a terra que
nasceu de João Durval. Então, era para ser dado um tratamento todo especial, onde foi
todo feito um planejamento lá dentro da própria, da própria Desenvale, na construção
dessa nova vila. Então, se demandou também muito tempo e depois praticamente que se
cuidou das outras coisas, não foi X? […] (Y (a), ex-técnica da área social da
DESENVALE, 11/10/2011)

Este “cuidado especial” fazia com que os processos institucionais fluíssem de forma
diferente na empresa, já que para os assuntos de Ipuaçu as técnicas tinham acesso direto a
outros setores que buscavam resolver tudo com brevidade. Outro aspecto importante é que,
neste núcleo, houve um enorme cuidado com o remanejamento das famílias e por isso as
redes vinculares foram consideradas no planejamento da ação da DESENVALE.
Apesar de todo cuidado, este núcleo foi considerado um dos mais problemáticos.
Primeiramente, porque as pessoas logo estranharam os traços urbanos do projeto de Agrovila,
sobretudo a grande proximidade com as casas dos vizinhos e a distância dos lotes de terra. Em
segundo lugar, por uma questão ainda mais grave, ocorrida apenas neste núcleo, em relação
ao cemitério que existia na comunidade. De acordo com uma das técnicas, que fez uma
análise preconceituosa sobre as motivações do conflito, nos casos em que os restos mortais

45
Este núcleo abrigou 117 famílias e seria bem diferente dos outros: dispunha de 2 escolas, 3 tipos de Igreja
(uma católica, uma evangélica e um terreiro), delegacia, cartório, correio, fornecimento de energia elétrica e
água, telefone, transporte regular.
81

estivam muito danificados foi proposto um enterro coletivo, o que gerou descontamentos
enormes.
Y (a): Agora, um problema que eu vivi mais em Ipuaçu que deu uma grande celeuma
foi do cemitério. Esse problema que eu tive do cemitério foi porque dentro da
religiosidade deles e com toda uma fase rudimentar de espiritualização, achavam que
botar em uma vala comum era ofender […] eles queriam que transferisse os ossos para
colocar cada um num túmulo, mas tinham situações que ainda tinham restos mortais,
mas tinham outros que não tinha mais como você pegar, já estavam super danificados.
Então, o que é que se fez? O que estavam, que tinha condição. Porque muitos tinham o
mausoléu, ao modo deles, lógico. Então, se transferiu. Outros que não foi feito uma vala
e simbolicamente um enterro coletivo onde eram de todos os demais (Y (a), ex-técnicas
da área social da DESENVALE, 11/10/2011).

Os problemas deste núcleo logo serviram de bandeira para os Sindicatos da região que
passaram a questionar o formato das Agrovilas e solicitar mudanças nos projetos dos núcleos.
No caso da Modelo, por exemplo, alguns se lembravam que não queriam o formato de
“agrovila”, já que a terra e a casa ficariam separadas. Este choque cultural, com o formato das
Agrovilas, foi tema detalhadamente discutido na obra de Lidia Rebouças (2000) intitulada “O
planejado e o Vivido – o reassentamento de famílias no pontal do Paranapanema”. Neste
texto, a autora destaca o estranhamento que tais formatos de organização do espaço
produziram nas realidades estudadas, com o abandono das vilas por parte das famílias, para
viverem nos lotes onde moradia e trabalho não se separavam.
Mas voltando à questão do que foi acordado nos projetos de reassentamento, conforme
indicava a política da DESENVALE, os núcleos com mais de 40 famílias deveriam dispor dos
equipamentos comunitários e por isso o núcleo Modelo que recebeu 76 famílias deveria ele
dispor dos seguintes equipamentos: posto médico, grupo escolar, centro comercial, praça,
centro comunitário, igreja e administração (DESEVALE, 1983), mas ainda assim não havia.
No plano individual também havia algumas promessas que estavam relacionadas com
as diferentes condições das propriedades e portanto com as diferentes expectativas em relação
à compensação. Por exemplo, àqueles que tinham casa de farinha prometia-se a construção de
uma no lote. Nas casas em que havia um ponto comercial idem e assim seguia. Mas se no
plano coletivo nem tudo aconteceu, imagine no individual e por isso numa e noutra dimensão,
as frustrações foram semelhantes.
Mas porque destacarmos todas essas propostas e as chamamos de promessas? Porque
todos estes aspectos negociados e assumidos pela DESENVALE apareceram nas lembranças
dos entrevistados por sua ausência, por sua inexistência, pelo fato de terem sido prometidos e
não cumpridos.
82

L (o): […] Eles prometeram igreja e não fez, prometeu posto médico e não fez, isso aí
foi por causa da DESENVALE, tudo foi rejeitado. Então, essas coisas tudo, praça, esses
negócios não foi feito na época deles, foi uma reivindicação que a gente fez com o
prefeito na época (L(o), 66 anos, ex-sindicalista, atingido/deslocado pela barragem de
Pedra do cavalo, 03/03/2011).

Scott (2009) chama de violência administrada esta forma particular de exercício do


poder pelo Estado em políticas de desenvolvimento que baseia-se na criação constante de
expectativas junto as populações para sequencialmente frustrá-las num ciclo repetitivo que se
baseia em prometer-descumprir-prometer, adiando constantemente a efetivação do que foi
acordado.
As promessas de um futuro melhor são o pano de fundo otimista-desenvolvimentista,
em que ocorre um processo subjacente que se pode identificar com regularidade no
decurso do projeto. Este processo de violência administrada, configura-se num uso
particular do poder das organizações burocráticas, encarregadas de executar programas
de desenvolvimento, de criar expectativas para as populações atingidas para, logo em
seguida, na execução do programa, frustrá-las (SCOTT, 2009, p.94)

No caso da barragem de Itarapica, Scott (2009) analisou os compromissos e


adiamentos em relação aos projetos de irrigação e segundo ele, na fase pós-implantação dos
reassentamentos, a ação do Estado costuma ser marcada pela morosidade completa e pelo
recorrente adiamento do que foi combinado. Este adiamento, gera um desassossego sobre as
comunidades atingidas e graves impactos no cotidiano e sobrevivência. Para ele, a violência
nestes casos envolveria as populações duplamente: pela inclusão forçada em novos ambientes
e relações sociais produzidas pela criação de comunidades artificiais (os reassentamentos); e
pela sujeição às novas regras de tratamento imersas numa estrutura burocrática institucional
que não controlam, mas dependem profundamente. Essa estrutura burocrática impõe uma
forma de relação despersonalizada, que por um lado aparenta envolver a participação de
representantes de grupos atingidos, sugerindo maior poder decisório, ao passo que geram
constantemente novas promessas que vão sendo descumpridas ano após ano (SCOTT, 2009,
p. 95).

III. 02) Implantação ou o momento da mudança

[…] o reassentamento é uma mudança forçada e planejada, o que implica na


identificação clara de planejadores e administradores aos quais se dirigem cobranças
sobre o processo desencadeado por sua ação. Entrando com recursos enormes e com a
aprovação legitimada por políticas internacionais e nacionais, as instituições
governamentais mandam e desmandam na área sujeita à administração do seu projeto
(SCOTT, 2009, p. 102).
83

O término das obras representa o começo de uma nova fase na vida dessas famílias e
nos processos de interação com o Estado. A chamada Implantação, considerada por Scudder e
Colson (1983) como aquela fase em que os reassentamentos começam a entrar em
funcionamento, aparece nas memórias dos entrevistados como momento da mudança.
No final de 1985, o enchimento do lago começa a se tornar um fato e por isso é
preciso retirar as pessoas efetivamente, afinal cada dia representa ganhos ou perdas
financeiras e políticas. A pressa, a aceleração, o ritmo intenso são os traços mais destacados
deste momento. A hora da mudança é o momento em que, pela primeira e última vez, a área
social será o centro dos planos do empreendimento. Todos os esforços e mobilizações dos
setores da empresa, e de fora dela, voltam-se para este momento que envolve por um lado a
remoção das pessoas e por outro a resolução dos problemas que esta remoção irá gerar.
É preciso retirar os últimos animais silvestres e domésticos que ficaram na área,
ameaçados pela inundação e ao mesmo tempo fazer as mudanças de milhares de pessoas o
que implica numa logística complexa. Segundo as técnicas, este foi um dos momentos mais
importantes do projeto, tanto que precisaram se mudar para a região para acompanhar os
procedimentos: caminhões de mudança para todos os lados trabalhando simultaneamente,
funcionários para carregar tudo que fosse preciso levar das propriedades e ao mesmo tempo a
necessidade de apoiar as famílias.
Porque mesmo que se tenha cuidado neste momento, programando antes, o dia da
mudança envolve tensões, pois nesta hora, próximo ao enchimento do lago, é preciso retirar as
pessoas queiram elas ou não, concordando elas ou não, sentindo-se elas injustiçadas ou não,
pois as águas chegarão e assim a remoção é exercida sem hesitação.
Para Scott (2009), é nesta fase que toda onipotência dos empreendedores e do Estado
do são exercidas e isso num ritmo “ofegante” para garantir a “limpeza da área”. Este ritmo
acelerado na condução da mudança praticamente inviabiliza a fiscalização e o
acompanhamento mais preciso por parte das entidades (sobretudo os sindicatos) – que
precisam acompanhar o translado da população, assessorá-los, contabilizar, observar, dar
assistência, denunciar problemas encontrados etc. Há demandas para todos os lados, sendo
para Scott (2009) este momento o ápice das vulnerabilidades da população atingida face às
ações de quem opera o deslocamento.
No caso de Itaparica, o autor chega a dizer que o momento da implantação foi
conduzido pela CHESF como uma “operação de guerra”, já que momentaneamente a empresa
84

assumiu características de uma instituição total definindo e organizando todos os passos da


vida das pessoas que se transformaram para eles em “parte da obra”. Expressão semelhante
foi usada por Germani (1993), em sua tese de doutoramento, referindo-se a condução deste
processo em Pedra do Cavalo. Segundo ela, muitas vezes as empresas tocam os processos de
mudança sem que todas as questões tenham sido todas negociadas e neste caso usa-se o
fechamento das comportas como forma de realizar a “limpeza da área”. Não só as pessoas
sofrem significativamente, como muitos animais, que apesar dos planos de salvamento,
terminam por morrer afogados ou serem socorridos em condições de grande risco.
Por tudo isso, o momento da mudança é considerado como um daqueles que mais
marcam o traço compulsório desta experiência 46. Este caráter compulsório era evidenciado nas
falas através de expressões de inevitabilidade, de falta de escolha, de se sentirem obrigados.
G: não, eles que mandaram os técnicos, os técnicos deles vinha da DESENVALE vinha
e conversava com a gente, que a gente não ia ficar ali, que as águas ia tomar, entendeu?
E aí a gente dizia que não ia sair dali, e eles diziam vocês têm que sair daqui porque
como é que vocês vai ficar? E aí começou...(...) Ele teve que aceitar, ninguém queria
não (G(o), 42 anos, atingido/deslocado pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em
05/03/2011, 2a geração).

Em relação ao momento da mudança, apenas uma família relatou a saída com a


chegada das águas.
R (a): E foi uma coisa muito rápida. Foi uma coisa assim, não sei. É tanto que no dia
mesmo, eu me lembro que no dia meu avô, que meu avô fez a mudança, foram tirar o
meu avô, era meu avô saindo e a água, a água tomando conta. Tomando conta mesmo
da casa, eles tirando as coisas e subindo mesmo, uma coisa...

F: Mas eles não avisaram antes ou o seu avô que não queria sair?

R (a): Eu não sei o que aconteceu com meu avô, sei que meu avô saiu já tava com a
água batendo nas pilastras da janela praticamente (R(a), 33 anos, atingida/deslocada
pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 28/02/2011, 2a geração).

Apesar de nenhuma outra família entrevistada vivido esta situação, houve um


elemento interessante na memória desse grupo, que foi a referência feita por alguns deles a
uma grande chuva em 1985, que teria ocorrido justamente no período da mudança,
produzindo uma grande enchente na região. As técnicas também fizeram referência a esta
grande chuva e ao desconforto que era realizar a mudança das famílias embaixo de tanta água.
A diferença entre as lembranças das técnicas e a dos atingidos é que nas deles havia uma

46
Esse traço de compulsoriedade também aparece em outros momentos, sobretudo no período de desmatamento
considerando pelo grupo como um dos momentos mais sofridos, por verem tudo que plantaram sendo derrubado
e destruído enquanto ainda vivem no local.
85

associação entre esta chuva e a barragem, como se de algum modo uma marcasse a
lembrança da outra. Umas das entrevistadas chegou a se ressentir:
M (a): Parece que Deus contribuiu na época com o projeto do Governo, sabia?
Porque foi chuva viu, e aí pronto, quanto mais chovia, mais o rio e as água avançava.
Aí, pronto que a gente veio pra aqui (M(a), 58 anos, atingida/deslocada pela barragem
de Pedra do Cavalo, entrevista em 02/03/2011).

L (o): […] Eu tenho um marco ali, naquele poste ali, quando a gente se mudou em
oitenta e cinco, no dia da mudança da gente teve uma grande enchente, que foi aonde
cobriu a casa que não deu tempo de tirar as casas pra poder levar pras famílias. Então o
que é que acontece, a gente chegou aqui e o riacho transbordou de um jeito que veio até
ali, até ali pertinho ali, ai em frente. De oitenta e cinco pra cá já houve enchente, mas
pra essa que veio até ali não (L(o), 66 anos, ex-sindicalista, atingido/deslocado pela
barragem de Pedra do cavalo, 03/03/2011).

A (o): Começou subir, mas depois um mês e pouco foi que as águas, deu uma
chuvarada e eles prenderam as águas e aí subiu bastante, que aqui começou até a
atolar ali embaixo na baixa da chuvarada, mas foi chuva! Foi a chuva mais forte que
nós tivemos foi da vez que a barragem (A(o), 64 anos, atingido/deslocado pela
barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 02/03/2011).

O momento da mudança pode ser considerado como um dos mais difíceis já as


angústias e ansiedades anteriores tornam-se experiência concreta: é preciso abandonar a casa
em que viveu durante tantos anos, talvez a vida toda, sabendo que esta não mais existirá. É
preciso contar os animais no criatório, escolher os que irão, deixar alguns, vender outros ou
levar todos. Enfim, é preciso deixar para traz, perder para sempre a “morada da vida”,
mudando-se para um outro lugar, ainda que não se queira.
[…] despede-se de uma paisagem conhecida, e entra num caminhão para ir ocupar uma
casa idealizada por um planejador, com um vizinho logo ao lado, e ainda com boa parte
do preparo do solo e da implantação de equipamento a fazer. E o plantio ainda será com
uma tecnologia pouco conhecida que requer assistência de agrônomos! A sensação de
ganho sucumbe à sensação de perda! É um período de absoluta vulnerabilidade,
tamanha é a dependência nos executores do projeto (SCOTT, 2009, p. 200).

Scott (2009) considera que a fase da Implantação como o momento de maior


“insegurança administrada”, já que o Estado antes distante se faz “super presença”, uma
presença que promove a ruptura com o passado e com o tempo de uma vida que não voltará
mais, ao mesmo tempo que passa a administrar todos os seus passos da vida deste grupo para
que seu projeto seja enfim viabilizado. A despeito de toda a propaganda investida nas fases
anteriores para criar a imagem de que esta população terá benefícios, no final das contas o
objetivo é outro e o o momento da mudança escancara estes interesses, deixando claro, na
condição dos reassentamentos, que o centro da ação do Estado é a barragem e não o
destino das famílias.
86

A complexidade deste momento tem seus custos e estes vão além dos aspetos
objetivos, reverberando muitas vezes no âmbito da saúde. Aparecem problemas ligados a
ansiedade, estresse, tristeza ou mesmo o agravos à saúde de quadros já existente (COUTO,
2007; KOIFMAN, 2001; PORTO, 2007). Em muitos casos, as empresas contratam médicos,
apoio psicológico e assistência social para este momento buscando minimizar os impactos e
demonstrar sensibilidade social para com os problemas destas famílias. O problema é que
normalmente este cuidado mais atento é efêmero e instrumental. Em Pedra do Cavalo por
exemplo, houve a oferta de apoio médico num primeiro momento, mas esta presença não
passou de 1 ano segundo lembram os entrevistados.
G (o): Não isso foi logo assim que colocou os pessoal, mas também não demorou muito
não, foi negócio de médico só atenderam negócio de seis meses. Dava remédio, ia nas
casas, media pressão.

F(pesquisadora): Muita gente ficou doente, logo depois que mudou?

G (o): Muita gente ficou assim sem querer mudar, ficava nervoso, sem saber se ia gostar
do lugar (G(o), 42 anos, atingido/deslocado pela barragem de Pedra do Cavalo,
entrevista em 05/03/2011, 2a geração).

Creio que esse agravo à saúde, até esperado pelas empresas, nos convoca a refletir
sobre as dimensões menos visíveis desse processo. Como estamos vendo, e ainda veremos,
além do empobrecimento de alguns, perda de terras por outros, perda de benfeitorias e do
trabalho investido por anos nas árvores plantadas e cuidadas que ficaram sob as águas, temos
ainda os impactos secundários que sinalizam para o grau de transformação imposto a estas
famílias.
Na superfície deste processo pode parecer que a mudança envolve um pedaço de chão,
onde as pessoas vivem e de onde tiram seu sustento, mas na verdade se vamos mais a fundo,
percebemos que o que o Estado expropria não é apenas a terra, mas tudo que dá consistência a
certas formas de vida profundamente associadas àquele território. Perde-se a casa, a terra, o
que se plantou, parte das relações e mesmo da história, retirando-lhes tudo, o que lhes sobra?
A possibilidade de reinventar-se em outro lugar, ainda que de maneira tropega, já que
rompendo com diversos elementos que lhes são essenciais e até mesmo constitutivos.
C: […] É muito triste, nós tivemos, ninguém diz isso, se você for lá, ninguém acredita
nas pessoas que se suicidaram, pessoas que morreram porque aderiram ao álcool,
pessoas que foram assassinadas, pessoas, a maioria das pessoas abandonaram e vieram
pra cidade, entendeu? Ou seja, as barragens, do ponto de vista social, ela serviu
exatamente para tirar das pessoas o que há de melhor: a vontade de viver (C(a),
Liderança do Pólo Sindical de Feira de Santana, 31/10/2011).
87

III. 03) Sofrimento Político

Todos os processos apresentados até aqui apresentados suscitaram afetos:

Ilustração 8: Afetos localizados na pesquisa

Elaboração própria a partir da análise das entrevistas.

Considero ser este um tema importante, na medida nos permite elucidar sobre
dimensões não objetivas que as ações investidas sobre essas pessoas produziram. A
consideração destes vivências subjetivas era uma preocupação destacada entre os objetivos
desta pesquisa e por isso creio ser importante trazer neste último momento algumas
contribuições da Psicologia Social para tentar traduzir como estas formas de insegurança e
violência “administrada” produziram sofrimentos que podemos classificar como políticos.
O uso do sofrimento como uma categoria de análise dos processos de
exclusão/inclusão social tem sido proposto e realizado por diversos autores da Psicologia e
das Ciências Sociais como uma forma de recuperar conceitos que muitas vezes são
discriminados na análise das questões sociais – considerados como pouco científicos
(SAWAIA, 2008; GONÇALVES FILHO, 1998; COSTA, 2004; PAUGAM, 2000;
BOURDIEU, 2003). Para alguns autores, o sofrimento pode ser considerado como um
“desestabilizador”, na medida em que nega o projeto de neutralidade em que se sustentam
muitas análises da desigualdade social.
No caso aqui em questão, esta ideia nos convida a refletir sobre o tipo de “cuidado”
que o Estado ofereceu àqueles que foram afetados por sua ação, incorporando-se os custos
sociais e humanos que essas decisões impuseram. Em relação às barragens, busca considerar
os efeitos que uma política energética como a brasileira – assentada preponderantemente na
construção de grandes barramentos e no deslocamento maciço de pessoas – produz sobre os
88

atingidos produzindo não só o que a literatura já vem apontando, mas também certas formas
de sofrimento. Com isso pretende-se recuperar as “formas sutis de espoliação humana”
(SAWAIA, 2008, p.106) e suas consequências na vida das pessoas comuns cuja escuta atenta
aos sentimentos, desejos e interesses quase nunca ocorre. A psicologia, sobretudo a psicologia
social, tem feito um esforço neste sentido há várias décadas, buscando considerar a
afetividade, quase sempre descartada ou colocada em segundo plano em muitas análises47.
Ao fazermos isso, entendemos que há certo desafio a se superar já que o tema da
afetividade é quase entendido como um sinônimo de subjetividade e esta por sua vez como
correlato de um sentimento pessoal, particular, interno, cujo papel do Outro e das questões
públicas nada tem a ver. Na perspectiva aqui adotada, entende-se a produção da subjetividade
de outra forma, como um fenêmeno eminentemente psicossocial cuja natureza e determinação
só pode ser entendida por uma análise dialética da relação indivíduo e sociedade na sua
produção.
Além disso, nesta perspectiva, a afetividade e emoções são entendidas também como
sociais e históricas, conforme já apontava Vigotsky (1994; 2004) no começo do século XX.
Cada época e cultura cria e institui certos afetos e a partir destes é que os processos são
traduzidos pelos indivíduos na sua interação como o mundo. Assim, podemos nos perguntar:
Como certas experiências são vividas e interpretadas por determinado grupo social? Como as
diversas culturas e tempos históricos lidaram com certas situações do ponto de vista afetivo e
emocional? Que afetos são possíveis em certos momentos que não em outros? O que se sente
e como se interpreta determinadas circunstâncias?
[…] a exclusão social vista como sofrimento de diferentes qualidades recupera o
indivíduo perdido nas análises econômicas e políticas sem perder o coletivo. Dá força
ao sujeito, sem tirar a responsabilidade do Estado. É no sujeito que se objetivas as várias
formas de exclusão, a qual é vivida como motivação, carência, emoção e necessidade do
eu. Mas ele não é uma mônada responsável por sua situação social e capaz, por si
mesmo, se superá-la. É o indivíduo que sofre, porém esse sofrimento não tem a gênese
nele, e sim em intersubjetividades delineadas socialmente (SAWAIA,2008, p.99).

Em todas as análises aqui realizadas buscamos trazer não só o significado associado


àquela situação, mas também as emoções ou sofrimentos ali implicados. Vimos, modalidades
de sofrimento48 aqui entendidos políticos. Isso quer dizer que consideramos que é de natureza

47
Para saber mais sobre a consideração dos afetos e emoções nos estudos de Psicologia Social, inclusive em
termos metodológicos ver: LANE, Silvia T. M.; SAWAIA, Bader. Novas Veredas da Psicologia Social. São
Paulo: Educ e Brasiliense.
48
SAWAIA (2008) citando Heller em seu livro Teoria dos Sentimentos, destaca a distinção feita entre dor e
sofrimento: “Dor é próprio da vida humana, um aspecto inevitável. É algo que emana do indivíduo com outros
corpos e diz respeito à sua capacidade de sentir, que para ela equivale a estar implicado em algo ou, como
89

política a determinação destes afetos, já que não estamos falando aqui da esfera privada, mas
de sentimentos cuja origem e consequência estão ligados claramente à esfera pública ou da
cidadania.
Conforme Gonçalves Filho (1998; 2004) sugere há sofrimentos que são vividos por
tantas pessoas e em situações tão semelhantes que não se pode mais considerá-los como
individuais. Sendo sofrimentos que arrebatavam tantos homens e mulheres, pode-se e deve-se
considerá-los como psicossociais. Mais que isso, alguns destes sentimentos, estão ligados a
experiências de desqualificação social, nas quais o sentir-se inferior, sem valor,
desconsiderado e mesmo negado em sua condição de humanidade é uma marca comum. Por
isso, como sugere Gonçalves Filho (1998), é preciso tratá-los como políticos, já que a
determinação deles está claramente ligada às mensagens de rebaixamento social que estão no
cerne de sociedades construídas na naturalização das desigualdades entre os homens. Para o
autor, trata-se de um problema político para a psicologia, já que por um lado estamos
falando de sentimentos e emoções vividas como sofrimentos, tema portanto típico de trabalho
dos psicólogos, mas que para serem superados exigem estratégias coletivas que impactem
sobre as formas de injustiça social e suas consequências subjetivas.
No caso analisado até aqui, vimos por exemplo o sofrimento destas populações que,
naquele momento histórico tinham como “questão social dominante” um processo de
modernização autoritário, cujo traço principal era a negação de diversas formas de vida em
detrimento de outras consideradas legítimas e desejáveis em todos os cantos do país. Como
justificar socialmente que pequenos produtores, agricultores familiares, pescadores e donas de
casa, com seus modos de vida vinculados àquele território, teriam algum direito de continuar
seu projeto de vida e “parar o progresso”? Como justificar socialmente que aquelas possíveis
5.000 pessoas atingidas não deveriam mesmo fazer “o pequeno sacrifício”, de sair daquela
área, para que construindo a barragem se pudesse levar água a milhões de pessoas?
Susto, duvidar, desconfiança, choque, incerteza, abandono, ansiedade, tristeza,
descrença, perda, humilhação, sentir-se enganado, vazio, frustração.
Em todos os afetos aqui trabalhados vimos que o cerne de sua produção estava não
apenas em ter que sair de suas casas, mas na forma como isto se dava. Uma forma invasiva,
abrupta, pouco participativa e mesmo violenta, em que a violação de direitos fundamentais,
analisa Epinosa, de ser afetado. O sofrimento é a dor mediada pelas injustiças sociais. É o sofrimento de estar
submetido à fome e a opressão. Seria experimentado como dor, na opinião de Heller, apenas por quem vive
situação de exclusão ou por seres humanos genéricos e pelos santos, quando todos deveriam estar sentindo-o,
para que todos se implicassem com a causa da humanidade” (SAWAIA, 2008, p. 102).
90

como à informação, a moradia, ao trabalho, ao bem-estar e mesmo à memória foram


desconsiderados. Ao retomarmos este processo através das memórias destas pessoas
terminamos por recontar suas histórias e a história desta barragem, dando espaço para aquilo
que muitas vezes torna-se ainda mais invisível: seus afetos.
[…] não se trata de introduzir nada na vida dessas populações, mas de tirar-lhes o que
tem de vital para sua sobrevivência, não só econômica: terras e territórios, meios e
condições de existência material, social, cultural e política. É como se elas não
existissem ou, existindo, não tivessem direito ao reconhecimento de sua humanidade
(Martins, 1993:63 citado por Rodrigues, 1999, p.32).
91

IV. Território, Processos Identitários e Subjetividade

B (a): Ele (avô) ficou quase um ano, eu acho que um ano e pouco voltando, indo
pescar, só pra não desgrudar o umbigo da terra. Depois a DESENVALE proibiu
permanentemente, se não ele estava lá até hoje (B (a), 35 anos, atingida/deslocada pela
barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 28/02/2011, 2a geração).
***
O reservatório terá uma extensão de cerca de 48km, ao longo do curso d'água,
atingindo áreas de vários municípios […]. O aproveitamento visa à regularização do
rio para controle de enchentes, o abastecimento de água da Grande Salvador, Feira de
Santana e Região Fumageira, irrigação agrícola e geração de energia elétrica, para o
que foi produzido um estudo de otimização desses usos múltiplos para a sua
compatibilização (DESENVALE, Aproveitamento múltiplo Pedra do Cavalo –
impactos ambientais, 1984).
92

IV.01) Questões territoriais

Há muitas formas de se perceber o território. Alguns autores ou vertentes costumam


trabalhar com os aspectos materiais e econômicos, e neste caso enfatizam o território como
fonte de recursos disputado por diferentes grupos. Outros autores, têm uma concepção mais
política ou jurídica e, por isso, abordam as formas de controle do espaço, através das
fronteiras que os grupos estabelecem entre si, sejam elas mais ou menos formalizadas. Há
também aqueles que se interessam pelo território numa perspectiva cultural e desta forma
preocupam em entender como o espaço é apropriado e, sobretudo, vivido pelos diferentes
grupos sociais (HAESBAERT, 2006).
O fato de haver tantas formas de interpretar o território pode ser entendido de duas
formas. Por um lado, como uma questão disciplinar – cada campo recortando seu objeto de
estudo – por outro, como uma propriedade do território que, não sendo apenas um
instrumento analítico, mas também uma realidade empírica, é multidimensional, ou seja,
vinculado às diversas dimensões da vida social – econômica, política, cultural, ambiental,
afetiva (FERNANDES, 2008).
Para Haesbaert (2006), as abordagens que focalizam apenas uma ou outra dimensão do
território produzem uma “concepção parcial” do mesmo e por isso propõe o que denomina
de visão integradora, na qual deve-se considerar essas diversas dimensões, de preferência de
maneira articulada.
Para Santos (1994) citado por Fernandes (2008), longe de ser uma questão aleatória
ou apenas fruto das separações disciplinares, esta forma parcial de conceber o território oculta
interesses antagônicos que estão no cerne das disputas territoriais. Para eles, é preciso que se
trabalhe com o território de maneira histórica, multidimensional e política, incorporando-se as
conflitualidades existentes também em nível conceitual, evitando assim que certas
territorialidades dominantes tornem-se também, em muitos casos, definições dominantes
(FERNANDES, 2008).
O conceito de “atingido” é um bom exemplo disso, já que na visão do Estado costuma-
se considerar como território apenas as áreas visivelmente inundadas e os atingidos como
aqueles que dispunham de documentação. Focaliza-se neste caso, apenas os aspectos
materiais, produtivos e jurídicos das relações com a terra, limitando-se o impacto da barragem
a perda de um espaço físico, “facilmente” resolvido com o pagamento de indenizações.
93

Diferente desta perspectiva, pretende-se aqui considerar as diversas facetas do


território e as outras dimensões do território que nesse conflito foram negligenciadas ou
ignoradas. Embora este trabalho não tenha a pretensão de discorrer sobre a bibliografia de
território, que além de vasta não se restringe ao âmbito acadêmico 49, serão destacadas a seguir
algumas perspectivas conceituais que convergem para construção de uma análise mais
integradora, multidimensional e interdisciplinar.
Um primeiro ponto a se destacar neste esforço, é que o território será considerado em
sua materialidade e sendo assim será entendido como substrato da vida social. Neste caso,
destacamos os autores que entendem os processos de territorialização como formas de
demarcar, controlar e defender determinadas porções do espaço e os recursos a ele referidos,
definindo as formas de posse e usufruto (SACK citado por LITTLE 2002). Godelier por
exemplo, trabalhando com comunidades cuja relação com os recursos naturais é central
compreende território como:
[...] uma porção da natureza e, portanto, do espaço sobre o qual uma determinada
sociedade reivindica e garante a todos ou a parte de seus membros direitos estáveis de
acesso, de controle e de uso com respeito à totalidade ou parte dos recursos que aí se
encontram e que ela deseja e é capaz de explorar (GODELIER, 1984, p. 112 citado por
HAESBAERT, 2006 p. 56)

Mas essas dimensões materiais, econômicas e políticas de modo algum existem


desprovidas de sentidos e por isso, neste ponto, a antropologia contribui para evidenciar a
dimensão cultural, já que num mesmo território podem se inscrever perspectivas identitárias
diferentes e mesmo antagônicas. Segundo Haesbaert (2006) “o poder do laço territorial releva
que o espaço está investido de valores não apenas materiais, mas também éticos, espirituais,
simbólicos e afetivos. É assim que o território cultural precede o político e com ainda mais
razão precede o espaço econômico” (HAESBAERT, 2006, p. 72)
Para avançar na integração destas perspectivas, Haesbaert usa as noções de domínio e
apropriação, sendo que a primeira destacaria mais a natureza política, econômica e produtiva
da relação com o espaço, enquanto a segunda os aspectos mais afetivos e simbólicos do
território entendido como espaço de pertença. A aproximação de um ou outro pólo conceitual

49
Diversas instituições e políticas públicas têm cada vez mais incorporado a noção de território. Embora já
usado há muitos anos nas políticas de desenvolvimento territorial ou agrária, tem-se hoje áreas como a saúde
incorporando este termo não apenas na organização “territorial” dos serviços, mas como uma dimensão de
análise dos processos de saúde coletiva. Um bom exemplo desta tendência é o livro: MIRANDA, Ary Carvalho
de; BARCELLOS, Christovam; MOREIRA, Josino Costa (Org.).Território, ambiente e saúde. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2008.
94

variaria conforme a dinâmica do conflito e, mais ainda, daquilo que se elege para analisar
num dado momento.
Mas Maldonado (1994), trabalhando com comunidades de pescadores vai além,
incorporando essas dimensões numa única perspectiva, considerando tanto a noção de
domínio quanto a de apropriação, tanto os mecanismos de controle e quanto o sentimento de
pertença, tanto a economia quanto a cultura.
Tomemos a territorialidade como os processos e mecanismos pelos quais os grupos
estabelecem, mantêm e defendem o usufruto ou a posse de espaços interessantes. Trata-
se de uma significativa dimensão do comportamento humano que se orienta implícita ou
explicitamente para apropriar-se do espaço e dividi-lo em territórios fazendo deles
recursos como o seu interesse, a sua ação e seus esforços para mantê-los. Esses
territórios tanto podem corresponder a realidades geográficas concretas quanto a
representações que frequentemente se estendem às relações sociais, na medida em que a
territorialidade humana encompassa amplo leque de dimensões como status, identidade
e prestígio, não raro podendo constituir-se em ordenações simbólicas em cujo bojo se
dão relações de poder e dominação, eventos de linguagem e ideologia.

A territorialidade se desenvolve através do tempo, passando de uma geração para outra


nos processos de socialização e de transmissão da tradição como uma relevante
dimensão da capacidade do homem de conferir significado simbólico ao espaço,
inclusive o espaço social em que ocorrem as suas relações, construindo lugares. Estes
comportamentos levam a fenômenos da ordem da ocupação e da posse, de exclusão, de
distanciamento e de pertencimento que constituem elementos fundamentais a cada
cultura e a todo ser (MALDONADO, 1994, p.35).

Outro autor que elabora um conceito bastante útil e multidimensional sobre


territorialidade é Paul Little (2002), que busca abarcar as dimensões anteriormente citadas
através do conceito de Cosmografia. Segundo ele, a cosmografia envolveria
Os saberes ambientais, ideologias e identidades − coletivamente criados e
historicamente situados − que um grupo social utiliza para estabelecer e manter seu
território. A cosmografia de um grupo inclui seu regime de propriedade, os vínculos
afetivos que mantém com seu território específico, a história da sua ocupação guardada
na memória coletiva, o uso social que dá ao território e as formas de defesa dele
(LITTLE, 2001, citado por LITTLE, 2002).

Mas pretendemos aqui ir um pouco além e considerar também os processos subjetivos


na relação com o território. Neste caso, pensamos que o território (em suas múltiplas
dimensões, material e simbólica, real e e imaginária, coletiva e individual) pode ser pensado
como elemento da subjetividade. Esta discussão será realizada não de uma perspectiva
estritamente teórica, como alguns autores vem fazendo50, mas a partir das memórias dos
atingidos, analisando de que forma o território foi vivenciado não como algo externo, mas
como partes dos sujeitos, que ficaram mais evidentes com a experiência de ruptura.

50
FISCHER, Gustave-n..Psicologia Social do Ambiente.2. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 1994. (Perspectivas
ecológicas). Tradução Armando Pereira da Silva.
95

Na primeira parte do capítulo então, abordaremos os aspectos mais evidentes do


conflito, a partir da questão fundiária. Depois, apresentaremos os aspectos da culturais do
campesinato de modo a evidenciarmos que a terra para o Estado não era a mesma terra dos
atingidos. A partir dai veremos como os diferentes grupos sociais, com suas diferentes
relações com a terra, deram sentidos muito próprios a esta situação. Na segunda parte
abordaremos três aspectos que se destacaram nas memórias após a mudança para o novo
ambiente: a relação com as águas, a separação das famílias e a afetividade na relação com o
lugar. Ao final do capítulo, teremos passado pelas diversas dimensões do território buscando
a visão multidimensional, integradora e interdisciplinar que nos propomos.

a) Questão fundiária: a terra como elemento central do conflito

D (a): O pequeno com o grande não leva vantagem

O primeiro aspecto a ser analisado no conflito territorial em Pedra do Cavalo é a


questão da terra, tratada neste caso em seus aspectos mais visíveis, materiais e legais. O
enchimento do lago serviu para escancarar o caos da estrutura fundiária, evidenciando que o
título de terra tinha mais valor na comprovação da propriedade do que a sua posse, o trabalho
nela realizado e a história das pessoas que ali viviam (GERMANI, 1993, p. 561). Se no
capítulo anterior vimos o tratamento desigual entre as questões técnicas da barragem e a
questão social, neste veremos que este “social” não era um todo homogêneo, e que havia
tratamentos distintos conforme a condição social ou legal de cada família.
Em primeiro lugar, as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores rurais para serem
reconhecidos como atingidos e terem uma política social por parte da DESENVALE, não
foram experimentadas pelos grandes proprietários, que tiveram uma atenção especial por
parte da empresa desde o começo51. Mais que isso, na opinião dos entrevistados e das técnicas
sociais, esses grandes proprietários teriam sido beneficiados de diversas formas com a
Barragem.
Entre os documentos da empresa, encontramos um relatório da Comissão de Auditoria
da DESENVALE, de 1987, que constatou, dentre outras coisas, que houve favorecimento aos
grandes proprietários e que este favorecimento era um traço da política institucional da

51
O único grupo que foi entendido como atingido desde o começo sendo previstas indenizações financeiras
foram os proprietários de terra que dispunham de título (DESENVALE, 1981; 1983; 1984).
96

empresa, que respeitava ou transgredia certas normas conforme o grupo que estava sendo
atendido.
- As Resoluções de Diretoria (RD'S) privilegiaram e favoreceram os grandes
proprietários. […]

- Para os privilegiados (com condições de constituir advogados), as RD(S) autorizaram


indenizações cujos valores situaram-se bem acima daqueles estipulados pela Tabela de
Avaliação da DESENVALE, enquanto que para a maioria dos pequenos proprietários,
posseiros, meeiros, etc..., que ignorava até o termo de “Imissão de Posse” e, sequer,
tinha acesso a um Defensor Público, a indenização de seus bens foi altamente injusta.
(DESENVALE, Relatório Final da Comissão de Desapropriação, Relocação e
Reassentamento. Item: Conclusão a nível das áreas-chave, 1987)

Conforme explicita o próprio documento, umas das formas mais evidentes de


beneficiamento ocorria através das indenizações, que no caso dos grandes proprietários eram
consideradas adequadas ou acima do valor, gerando enriquecimento. Em algumas situações
teria sido pago 30 vezes mais do que o valor de estipulado pela tabela da empresa, dado
trazido tanto pelas técnicas entrevistadas, quanto pela documentação analisada:
Após análise efetuada em 30% dos 170 cadastros de Desapropriação correspondentes a
área da Adutora de Água Bruta, conclue-se que:

• a constatação de distorções, no que diz respeito aos Valores de Avaliação e


Valores de Indenização indicam, desde já, que em parte não foram obedecidas
as diretrizes propostas na implantação da Sistemática de Desapropriações;

• calculando-se o percentual de variação do valor de avaliação para o valor de


indenização, mesmo considerando o índice inflacionário correspondente ao
período de andamento do processo, observa-se oscilações que vão de 101% a
22.533%;

• em alguns casos percebe-se a existência de favorecimento político, como no


cadastro AD-150, cujo valor da indenização é 30 vezes superior ao de
avaliação, sem incluir os valores das casas (02 tipo II) construídas em favor do
mesmo (DESENVALE, Relatório Final da Comissão de Desapropriação
Relocação e Reassentamento, 1987, p. 20).

Outra forma de beneficiamento que também foi utilizado ocorria pela oferta dos
melhores terrenos, nas áreas próximas ao futuro lago, onde era possível incrementar a
produção através do desenvolvimento da piscicultura, irrigação, construção de marinas e
criação de espaços de lazer (como restaurantes e hotéis) usando as águas do reservatório da
barragem52.
Z (a): Era completamente diferente, claro. Eles eram privilegiados, os grandes ficaram
com regiões geralmente próximas aos lagos e ganhavam indenização muito superior,
entendeu? (Z (a), ex-técnica da área social da DESENVALE, entrevista dia 25/10/2011)
52
Segundo Palma (2007), nestes e no caso de muitos reassentamentos houve um desrespeito por parte do Estado a
dispositivos legais já existentes como a Lei Federal 4771 de 15 de Setembro de 1965, conhecida como Código
Florestal.
97

C (a): Do ponto de vista econômico, serviu muito bem pros grandes empresários, pras
marinas da vida, lá pra Santo Estevão, pro pessoal do Paraguaçu, porque eles instalaram
vários viveiros de criação de peixe. Enfim, pra quem tinha grana, se aproveitou desse
momento e estabeleceu inclusive uma unidade produtiva extremamente econômica.
Para os pequenos, que foram desabrigados e reassentados, você pode rodar a barragem
toda, que você não encontra uma família bem sucedida. Você não encontra uma!
(C(a), Liderança do Pólo Sindical de Feira de Santana, 31/10/2011)

Um dado sintomático dessa desigualdade é que nos documentos da área social da


DESENVALE os grandes proprietários são invisíveis, ou seja não eram encontradas
informações sobre eles. As técnicas entrevistadas esclareceram essa invisibilidade informando
que eles não eram acompanhados pelo setor de desapropriação da empresa, mas pela própria
Diretoria. Com isso fica claro que o setor e a política social da DESENVALE tinha como foco
um “social” bem preciso:
X(a): A gente nem tinha conhecimento. Os grandes proprietários não passavam por a gente.
Y(a): Direto no jurídico, não passavam nas nossas mãos.
F (pesquisadora): Então, a área social ficava com o quem?
Y(a): Ficava com aquele que não tinha para onde ir.
X(a): Os pequenos (X(a) e Y(a), ex-técnicas da área social da DESENVALE, 11/10/2011)
***
J: A gente recebia o pessoal que ia ser desapropriado. A gente recebia o pessoal e orientava eles.
Mas foi um trabalho muito difícil, porque a indenização era muito baixa. Tipo assim: o cara que
era desapropriado ganhava três mil hoje em dia pela casa com benfeitoria e tudo. Porque era
cadastrado tudo, a casa, benfeitoria. E um cara que tinha pistolão, que era mancomunado com o
governo, fazia o acordo na diretoria da própria empresa, da Desenvale, entendeu? Esse era
beneficiado com a barragem (Z, ex-técnica da área social da DESENVALE, 18/10/2011)
Já do outro lado da história, ou seja, para com os “pequenos” a situação era bem
diferente. Primeiro, que inicialmente não havia reconhecimento de muitos grupos sociais
como atingidos, já que no entendimento da empresa apenas os proprietários com títulos e
alguns posseiros com quantidade de terras significativa poderiam ser considerados atingidos.
Em se tratando de estrutura fundiária brasileira, isso significava que a maior parte das
pessoas não seria contemplada, gerando o empobrecimento quase imediato das famílias que
passariam a não ter terra nem trabalho. Este público representava justamente a maioria dos
que viviam na área a ser inundada, já que conforme a documentação do setor social de 1983,
70% dos atingidos eram formados por “pequenos proprietários que se dedicam à lavoura de
subsistência e à referida criação [...] e de ocupantes rurais de terras e/ou domicílio [...]”
(DESENVALE, 1983).
Em relação aos pequenos proprietários que dispunham de documentação, a saída
oferecida também não era interessante, pois as indenizações oferecidas tinham valores bem
abaixo do valor das terras na região. E não era só através da desvalorização financeira na
98

tabela de preços das terras que se atuava de maneira perversa com essas populações mais
pobres. Segundo Germani (1993), que também trabalhou como técnica social na
DESENVALE, havia outras estratégias para reduzir os preços que serviam ao mesmo tempo
pressionar as famílias a decidirem com rapidez a saída da área do lago.
Todavia mais maquiavélica foi a prática que por algum tempo se adotou na
expropriação da área de Pedra do Cavalo, na Bahia. Neste caso, se elaborou uma tabela
com preços da terra e das benfeitorias, mas no momento da negociação se apresentava
outra com um valor 50% menor que o valor total. O expropriado dizia que não, que o
valor oferecido era muito pouco, que não era possível aceitá-lo. O responsável pela
negociação então fazia uma proposta de que se aceitasse naquele momento, o valor
pago seria aumentado em 50%, isto é, chegaria ao valor real da tabela. O que se observa
é que o valor da expropriação, isto é, o preço justo, longe de ser estipulado como uma
garantia de que o expropriado pudesse restabelecer-se o mais breve possível, era
manipulado segundo as conveniências tanto no sentido de fazê-la mais barata como de
mais fácil execução (GERMANI, 1993, p. 564, grifo meu. Tradução livre)

Uma outra estratégia de desvalorização também foi localizada, ocorrendo neste caso
pelas vias institucionais formais, através do não reajuste da “Tabela de Avaliação e
Indenização”. De acordo com o Relatório da Comissão de Auditoria, apesar das normas da
empresa recomendarem claramente a necessidade de atualização dos preços da tabela
através de “correção trimestral, tendo como base os valores de mercado e índices de correção
da FGV”, na prática “verificou-se, que esse princípio não foi observado, e que, durante todo o
processo desapropriatório, ocorreram apenas 02 reajustes” (DESENVALE, 1987, p.14).

Tabela 3: Histórico de reajustes da DESENVALE


Período Reajuste

De 02.02.1982 a 28.02.1983 Nenhum reajuste

De 01.03.1983 a 31.07.1984 Reajuste de 20%

A partir de 01.08.1984 Reajuste de 150%

Fonte: DESENVALE (1987).

Os dados trazidos pela tabela 03 ilustravam duas outras questões: que os reajustes
ocorreram entre 1983 e 1984, justamente quando a organização dos atingidos pressionava o
Estado e que no último reajuste houve um aumento de 150%, sugerindo que os valores pagos
até então estavam bem abaixo do que era recomendado.
A situação, portanto não era muito favorável “aos pequenos”. Primeiro, porque
precisavam lutar para serem reconhecidos como atingidos. Segundo, porque os que eram
reconhecidos recebiam indenizações irrisórias. Terceiro, porque havia uma grande quantidade
99

de trabalhadores que, sendo ligados a grandes proprietários perderiam acesso a terra sem
receber parte das indenizações.
Em meio a tantas configurações de trabalho e relações com a terra mais ou menos
formais, mais ou menos legitimadas pelas políticas da empresa, a tarefa dos sindicatos se
tornava complexa: precisavam transformar essas pessoas anteriormente dispersas, com
diferentes condições sociais em um grupo organizado com pautas comuns.
L(o): Esses arrendeiros, essa pessoas pequenas que não tinha terra, naquela época eu era
o presidente do sindicato, eu ia para a comunidade junto com outros companheiros do
sindicato, eu ia pra rua fazer reunião com eles, nas comunidades Coqueirinho, Mamona,
Batizal, Trapiá nos lugares que pertencessem a área de barragem. A gente tinha que
fazer reunião, o sindicato ia fazer reunião pra levar eles para a luta, pra conseguir os
direito deles. Porque se eles não fossem empenhados também na luta, que direito que
eles iriam ter? Defender o sindicato sozinho sem eles tarem na frente? Sindicato, ele
vive através de seus associados. Então o quê que acontece, a gente mantinha a reunião
marcada naquele dia e depois a gente repassava. Repassava lá em Feira de Santana
juntamente com outros sindicatos como estava ocorrendo, e engajava e marcava as datas
[…] não era fácil não! (L (o), 66 anos, ex-sindicalista, atingido/deslocado pela barragem
de Pedra do cavalo, 03/03/2011).

Assim, um dos primeiros aspectos destacados entre as revindicações foi a bandeira


Terra para Todos. Os STRs passaram a defender que todos os que viviam da terra e teriam
seus meios de vida impactados fossem contemplados pelas políticas sociais da DESENVALE.
Isto significava considerar não só os proprietários com documentação, mas também os
posseiros, meeiros, rendeiros, agregados e outros grupos sociais afetados, ampliando assim a
concepção de atingido que norteava a ação do Estado.
Essa ação foi uma daquelas em que o movimento de algum modo saiu vitorioso, já que
na memória da documentação da empresa pode-se localizar mudanças na política de
reassentamentos. No Plano de Reassentamentos de 1983, os grupos que eram considerados
“reassentáveis” por recomendação dos técnicos sociais eram: grandes, médios e pequenos
proprietários com documentação e posseiros que por sucessão familiar ou compra de terras
que estivessem em vias de regularização. Os “ocupantes de terras” ou os trabalhadores
assalariados entravam no texto no item chamado “Casos Especiais” junto com “idosos,
inválidos quitandeiro e operador de balsa” (1983, p. 91). Já em 1984, todos esses grupos
passaram a aparecer numa lista só, sem grandes diferenciações, todos sendo considerados
como reassentáveis (DESENVALE, 1984, p.48 e 49).
O segundo aspecto incluído entre as reivindicações foi a troca de terras por outras
terras e não mais por indenizações financeiras. Terra por Terra era o lema das lutas dos
atingidos de outras regiões do país que chegava em Pedra do Cavalo. Na memória dos
100

entrevistados um valor preciso aparecia em disputa: 70 tarefas, o que equivalia a 30,4 hectares
por família53. Essa proposta dos STRs estaria baseada no módulo rural do INCRA indicado
para a região, considerando a necessidade básica de uma família para sobreviver e
desenvolver-se tendo em vista questões quantitativas e qualitativas região.
O debate era por um lado legal e por outro moral e político: já que o Estado pretendia
tomar de milhares de pessoas um espaço territorial tão significativo, inundá-lo e deslocá-los,
nada mais justo do que arcar com os custos destas áreas e garantir as estas famílias uma vida
igual ou melhor compensando-as pelos danos incalculáveis que a mudança produziria. O
problema é que a racionalidade que geria esta relação não estava baseada necessariamente
numa perspectiva ética ou moral, mas numa lógica econômica e burocrática e assim as 70
tarefas propostas pelos STRs foram reduzidas pelo governo a 10 tarefas ou 4,3 Ha bem abaixo
do esperado.
Mais grave ainda, é que na verdade o módulo rural recomendado pelo INCRA não
era 70 tarefas – ou 30,40 hectares – mas sim 50 hectares, o equivalente a 115 tarefas.
Assim, para sermos bem precisos, o Estado ofereceu 11,5 vezes menos terras recomendava a
própria legislação agrária54. Cada família acabou recebendo 4,34 hectares, apenas 02 hectares
a mais que a Fração Mínima por Propriedade (FMP) recomendada na região:

Tabela 4: Comparação entre tamanhos das terras reinvidicadas e recebidas


Reinvindicado Módulo Recomendado pelo INCRA Recebido
Hectare 30,4 ha 50 ha 4,34 ha
Tarefa 70 tarefas 115 tarefas 10 tarefas
Elaboração própria a partir das pesquisas bibliográficas e de campo.

De acordo a lembrança dos sindicalistas da época, não houve luta, reunião ou ação que
mudasse a proposta do governo. Se por um lado sentiam-se vitoriosos por terem conseguido
as terras, por outro o diminuto tamanho foi percebido como derrota, cujas consequências
seriam perceptiveis no futuro próximo quando os filhos dos reassentados chegassem na idade
de trabalhar e produzir. Conforme será visto mais a frente, a preocupação deles se confirmará,
já que em praticamente todas as famílias analisadas houve migração das gerações seguintes.
Não tardou, entretanto para que percebessem que a política de reassentamento poderia ser
53
Tarefa é uma medida agrária que corresponde a 4.356 m2. Cada 1 Hectare corresponde a 2,3 tarefas.
(Germani, 1993, p 602).
54
Dados elaborados pelo GEOGRAFAR 2004 a partir do IBGE. IX Recenseamento Geral do Brasil -1980.Censo
Agropecuário. SR - BA. V. 2, Parte I, Tomo 3, N.15. Rio de Janeiro 1983/4. http://www.geografar.ufba.br/LP
%20estruturafundiaria.html
101

usada como uma nova propaganda a favor da barragem, que de expropriadora passava agora a
se dizer promotora da “a reforma agrária” já que estaria “distribuindo terras” para aqueles que
tanto precisavam.
Havia entretanto outra questão a se resolver: se a falta de documentação das terras
havia sido uma questão importante na vida das famílias, sobretudo nos conflitos da
Barragem, nada mais justo que entre as pautas de reivindicações estivesse justamente a posse
dos lotes através da emissão dos títulos de terra. Naquela época, um dos pontos acordados era
que cada família não poderia vender os lotes recebidos nos primeiros cinco anos, quando
então receberiam a posse definitiva dos terrenos. Como em outros pontos, também este foi
apenas uma promessa e em 2011, segundo dados levantados nesta pesquisa, apenas 18
famílias da Modelo receberam alguma documentação, o que significa dizer que 76% delas
permaneciam sem os títulos55.

Ilustração 9:Proporção de títulos de terra entre reassentados do núcleo


Modelo

Fonte: pesquisa de campo. Elaboração própria.

Esses títulos foram emitidos somente em 2000, pela Coordenação de Desenvolvimento


Agrário (CDA), a partir de ações feitas pelos STRs e o Pólo Sindical de Feira de Santana. O
processo não teria avançado pelos enormes problemas fundiários gerados pós-barragem com
a falta dos títulos e venda dos lotes.
C(a): […] a gente ainda conseguiu 114, entre elas 18 de Santo Estevão. Depois, eu não
sei o que é que deu neles. Só quem conseguiu, conseguiu nessa época [...] Porque foi
que eles não entregaram? Porque houve por parte dos grandão do lago:”tira esse
55
O cálculo de 76% foi feito considerando as 76 famílias que receberam lotes na implantação do núcleo.
Atualmente temos 133 famílias no núcleo, já que alguns filhos cresceram e construíram casas nos terrenos de
seus pais. Se tomamos como referência este número atual, teríamos 86% de famílias sem documentação de
casas e terras.
102

negocio daqui porque se começa...”. Porque eles ia chegar, por exemplo, em alguém.
Qual foi a dificuldade que a gente encontrou, por exemplo, a terra era minha, eu lhe
vendi, mas ta no meu nome. E agora, como é que faz? Eu vou dar o título da terra pra
quem? E não era qualquer qualquer pessoa não. Aí, era o Bel do Chiclete, o dono da
Marina, o cara que é criador de peixe: os grandes que chegam lá nos trabalhadores e
conseguiu convencer os trabalhadores a sair da terra […] (C(a), Liderança do Pólo
Sindical de Feira de Santana, 31/10/2011).

Em 1997, essa questão dos títulos voltou a cena novamente com a criação da APA do
Lago de Pedra do Cavalo, já que foi constatado que a maior parte dos núcleos de
reassentamentos (14 dos 19) estavam em áreas que desrespeitavam a legislação ambiental, o
que poderia gerar novos processos de desapropriação no futuro. Mais uma vez, a decisão
sobre este território e sobre as pessoas que viviam nas áreas foi tomada de maneira autoritária
já que a criação desta APA ocorreu sem qualquer consulta ou participação da sociedade
(PALMA, 2007, p. 128).
Como vamos vendo, o tratamento oferecido era por um lado desigual e promotor de
desigualdades, quando comparamos os grandes e pequenos proprietários, e por outro igual,
quando vemos que os “pequenos” receberam 10 tarefas. A seguir veremos como isto foi sendo
conduzido na realidade concreta dos “pequenos” e como eles perceberam essa forma de
tratamento.
b) Relações culturais com a terra

Compreender que a luta por terra é um luta por determinados tipos


de território: o território campesino (FERNANDES, 2008, p. 274).

A questão do campesinato é antiga e atual nas Ciências Humanas 56. Este tema vem
ganhando destaque nas últimas décadas através de estudos que se interessam em entender
como este grupo resiste aos processos de modernização – pelas mais diversas vias – já que o
avanço do capitalismo em todo o mundo passa por uma necessária apropriação das terras,
elemento central de sua organização social e produtiva.
Mas em que difere culturalmente o campesinato de outros grupos na relação com a
terra? De modo geral, entende-se o campesinato como um grupo social cujo cultivo da terra
marca de maneira decisiva suas formas de organização social, tanto material quanto
simbolicamente (MOURA, 1988, p. 10). Diferente de outros sistemas produtivos, a unidade
camponesa seria, ao mesmo tempo, unidade de produção e de consumo, já que seus membros
56
O termo camponês não é a forma mais comum de auto-definição no Brasil, onde encontramos mais o termo
lavradores ou outras variações (MOURA, 1988). No caso da Fazenda Modelo, os entrevistados costumam se
autoreferir como Trabalhadores Rurais – como um coletivo – e em modalidades mais específicas de relação com
a terra: posseiros, arrendeiros, agregados e etc.
103

trabalhariam para produzir e o produto deste trabalho seria apropriado e redistribuído no


próprio grupo. Este grupo que nos referimos é a família, que possui centralidade no sistema
produtivo camponês, estruturado socialmente a partir das relações de parentesco
(CHAYANOV, 1966 citado por MOURA 1988).
Alguns autores entretanto consideram que o campesinato não deve ser entendido
apenas por sua vinculação produtiva com a terra. Para Margarida Moura (1988) por exemplo,
o conceito de camponês extrapola as questões materiais e econômicas do
trabalho/produção/troca de mercadorias e envolve uma complexa forma de organização social
reconhecida por possuir relações próprias com o trabalho familiar, com os sistemas de
herança, comportamento político e mesmo tradições religiosas.
Klass Woortmann (1990), fazendo algumas críticas às vertentes marxistas, que por
vezes analisam o campesinato apenas como um modo de produção, propõe que se considere
as dimensões culturais e simbólicas da ética camponesa, entendida como uma ordem moral
que inspiraria certas formas de vida sendo a terra o elemento fundamental57
Nessa perspectiva, não se vê a terra como objeto de trabalho, mas como expressão de
uma moralidade; não em sua exterioridade como fator de produção, mas como algo
pensado e representado no contexto de valorações éticas. Vê-se a terra, não como
natureza sobre a qual se projeta o trabalho de um grupo doméstico, mas como um
patrimônio da família, sobre o qual se faz o trabalho e se constrói a família enquanto um
valor. Com o patrimônio, ou como dádiva de Deus, a terra não é simples coisa ou
mercadoria. Estou tratando, pois, de valores sociais; não do valor-trabalho, mas do
trabalho enquanto um valor ético. (WOORTMANN, 1990, p. 12).

O primeiro aspecto desta lógica camponesa é que Terra-Trabalho-Família são


categorias centrais, intimamente articuladas. Isso quer dizer, que não podemos entender uma
senão por sua vinculação com a outra do ponto de vista empírico, mas também teórico-
conceitual (MOURA, 1988; HEREDIA,1979; WOORTMANN, 1990).
Ilustração 10: Categorias indissociáveis na
cultura do campesinato

57
Woortmann (1990) trabalha com a noção de Campesinidade como uma qualidade cultural do modo de vida
camponês encontrada em diferentes tempos e lugares e em variados graus a depender do grupo em questão.
104

Essa terra é mais que o chão onde se pisa, o espaço onde se vive, o local onde se
trabalha. A terra, na ética camponesa, é a “morada da vida”: é dela que tudo emana e é nela
que tudo se investe. A terra oferece a casa, o espaço do trabalho, o alimento e outros bens,
mas é também a partir dela que se organiza socialmente a família, já que através do
trabalho com a terra se marcam as diferenças sociais – entre as gerações (pai-filho) ou entre
os sexos (homem-mulher).
A concepção do que se define como trabalho permitiu-nos compreender e dar sentido à
divisão das tarefas por sexo e, em resumo, levou-nos a compreender a oposição
masculino-feminino. Esta oposição vai além de uma simples divisão de tarefas,
expressando-se em outra oposição que é casa roçado (HEREDIA, 1979, p. 26)

Mas a terra em si mesma não produz esses significados e segundo alguns autores, os
significados associados à terra estão sempre relacionados às condições de trabalho – se
familiar ou patronal, se livre ou controlada. O trabalho neste caso teria pelo menos duas
dimensões: uma produtiva e outra moral. Pelo trabalho é que poderíamos entender noções de
honra e hierarquia do campesinato, onde os pais socializam os filhos dando-lhes a “direção do
trabalho”, mas sobretudo da vida.
Para entendermos melhor essa relação, vale a pena trazer um exemplo destacado de
um estudo realizado em Sergipe no qual os sitiantes diferenciavam duas categoriais sociais, os
chamados “dono da terra” e os “proprietários da terra”. A distinção destas categorias revelava
um componente moral do grupo em que o acesso a terra se dava através do trabalho. O
“proprietário de terra” formava um par oposto-complementar com o “dono da terra”. O
primeiro representaria a ordem econômica, em que a terra é uma mercadoria que pode ser
comprada sem que se precise trabalhar nela. Já a segunda, representaria a moral camponesa,
em que a terra é um patrimônio familiar que passa através das gerações por meio da
descendência e sobretudo do trabalho. Assim, é preciso ter trabalhado na terra para se tornar
dono dela (MOURA, 1988; WOORTMANN, 1990).
Sendo a terra entendida como um patrimônio familiar, sua divisão seria um tema
importante para diversos autores. A herança seria uma das questões privilegiadas para se
entender a família camponesa, sua relação terra-trabalho e os fundamentos sociais nos quais
se apoia58. Em dois momentos da vida, a questão do acesso à terra se coloca com mais clareza:

58
Não é incomum que uma família camponesa submeta-se ao processo de inventário quando da morte do dono
da terra e em seguida, decida por restringir o acesso a terra a alguns de seus membros evitando assim a
fragmentação excessiva do patrimônio territorial familiar. Isto porque a herança da terra é ao mesmo uma forma
de manutenção das condições de sobrevivência do grupo e um mecanismo de resistência à expropriação
(MOURA, 1988; WOORTMANN, 1990).
105

na formação de novas famílias pelo casamento dos filhos, ou na morte do pai, o “dono da
terra”, em que a questão sucessória precisa ser encarada.
Nessa questão também se percebe que a terra está vinculada a complexas relações de
parentesco, sendo o local onde essas relações se dão e ganham sentido. A noção camponesa
de parentesco é ampla e dinâmica e, por isso, aqueles que são entendidos como parentes nem
sempre são consanguíneos. Através dos casamentos, compadrios e afilhamentos,
transformam-se pessoas de “fora” do grupo familiar em parentes. Comumente esse processo
guarda relação com as necessidades produtivas do grupo.
Compadres são concebidos como irmãos rituais (e, com grande frequência, são “irmãos
de sangue”). O padrinho, por outro lado, é “que nem o pai”, e essas construções
legitimam a troca de crianças, tornando-se o(a) afilhado(a) um(a) filho(a). Através da
cultura, consegue-se equilibrar o grupo doméstico, ao mesmo tempo que se preserva o
principio da família (WOORTMANN, 1990, p. 33).

A discussão sobre as relações culturais com a terra é aqui importante porque, como
veremos, a noção de território dessas pessoas era distinta da noção do Estado. Mais que isso,
essas diferentes significações farão com que os processos de perda do território façam vir à
tona dimensões mais profundas que foram desconsideradas. Veremos agora como uma mesma
ação produziu sentidos muito diversos relacionados às diferentes relações sociais com a terra.

c) Cada caso é um caso: três formas de perceber e lembrar da barragem

Os posseiros
Para começar essa análise abordaremos a questão dos posseiros, grupo mais
expressivo numericamente entre os entrevistados da Modelo (04 famílias). Neste grupo,
temos a preponderância de senhores e senhoras, hoje aposentados (com 55 a 65 antes), que na
época da barragem tinham entre 29 e 40 anos. Essas pessoas eram filhos ou netos de pequenos
proprietários e viviam em terras familiares, as chamdas “fazendas” onde todos produziam,
tendo cada unidade familiar menor uma casa própria59.

59
No artigo de Woortmann (1990), semelhante forma de organização familiar do território com nome de sítio,
havendo pelo menos três sentidos ligados a este termo. No primeiro significado e mais recorrente, se refere a
uma comunidade de parentesco em que várias famílias, normalmente ligadas a um ancestral comum, dividem e
reproduzem socialmente. Por este sentido, estamos aqui tratando sítio como um território de parentesco. No
segundo, o sítio se refere mais especificamente a terras que são trabalhadas por uma família e neste caso, seria
um sítio menor no interior de um sítio maior, uma localidade. Aqui o sítio é entendido como um patrimônio
familiar transmitido de pai para filho segundo as regras do grupo. No terceiro sentido, o sítio designaria o par
casa-quintal, neste caso mais próximo do espaço da mãe par complementar feminino casa/roçado. Entre os
entrevistados encontramos um termo similar, “fazenda” entendido aqui através dos primeiros dois sentidos.
106

Essas “fazendas” tinham entre 70 e 180 tarefas e pertenciam a um ancestral comum,


normalmente o “pai” ou o avô, considerados como “donos da terra”. Estes homens possuíam
um lugar de destaque na hierarquia familiar, representando pessoas morais e não apenas
indivíduos, aqueles que receberam a terra por tê-la herdado e trabalhado nela
(WOORTMANN, 1990, p. 37).
Como se conduziu a política de reassentamento da DESENVALE nesses casos?
Primeiramente, cada família “menor” que vivia na terra dos pais foi entendida como
“posseiro”60 e neste caso recebeu um lote com 10 tarefas e uma casa nos núcleos de
reassentamento. Necessário dizer que nem todos que viviam na terra famíliar poderiam entrar
nesta política. Somente aqueles em idade produtiva casados ou que tivessem filhos. Aos
outros – normalmente irmãos, tios, ou filhos solteiros – restava viver com os pais, com os
irmãos casados ou migrar (como aconteceu na maior parte dos casos).
Já os “pais” ou os “donos” da terra tiveram outro tratamento. Entendidos como
“pequenos proprietários”, não recebiam terras nos reassentamentos, mas sim indenizações
para comprar as terras em outro lugar. O primeiro problema é que estas indenizações eram
muito pequenas, o que dificultava a aquisição de terras semelhantes na região. Em segundo
lugar, essas terras não eram nos reassentamentos e por isso, inevitavelmente, ficavam
separados da família. Não conseguindo comprar terras, estes senhores passavam a depender
de seus filhos reassentados que lhes ajudavam na busca por uma solução.
Na Modelo, estes “pais” terminaram com uma pequena casa no lote dos filhos – o que
por vezes gerava conflitos e insatisfação de todas as partes – ou conseguiram comprar um
pequeno lote de alguém que abandonou o local. Tivemos ainda dois “pais” ficaram no
restante das terras não inundadas (normalmente áreas pequenas) e também neste caso
buscaram apoio dos filhos para não viver longe da família.
L (o): Eu morava de junto de meu pai, agora tinha minha casa, tinha meus irmão também, que
foram reassentado, são 4 comigo, três irmão que eu tenho.
F: E seu pai foi para onde?
L (o): Meu pai, ele ficou com um pouquinho de terra que sobrou, ele não foi reassentado porque
era proprietário[...] Ele era proprietário assim, no caso, quem tinha 80 e tantas tarefas de terra, a
gente convivia nessa terra, e aí eles pagaram lá um dinheiro... naquela época pagaram foi uma
mixaria, acho que 13 mil, era tempo do cruzeiro, 13 mil cruzeiro (L (o), 66 anos, ex-sindicalista,
atingido/deslocado pela barragem de Pedra do cavalo, 03/03/2011).
Para todas as famílias nesta condição, a barragem foi significada como Perda, como
algo que lhes prejudicou, já que as terras lhes pertenciam e a partir da barragem passaram a

60
Também é assim que entenderemos este termo, já que foi a forma mais comum encontrada na comunidade.
107

não ter certeza sobre sua condição futura. A oferta de 10 tarefas para família menor não foi
entendida como um beneficio, mas como empobrecimento, já que a vida nas terras dos “pais”
era considerada por eles melhor e mais farta.
L(o): Meu pai mesmo perdeu 82 tarefas e pouco, aí foi a gente foi reassentado aqui era posseiro
também (L(o), 66 anos, ex-sindicalista, atingido/deslocado pela barragem de Pedra do cavalo,
03/03/2011).
B(a): Aquilo foi cruel demais. Meu avô tinha 109 tarefas de terra, 109 tarefas, meu avô perdeu
pra DESENVALE (B(a), 35 anos, atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo,
entrevista em 28/02/2011, 2a geração).
R (a): […] Eu to te falando que foi questão de tudo ou nada, é pegar ou largar. Então pense aí nos
fazendeiros. Quem tinha aí suas duzentas e tantas tarefas terra pra ser coberta. Meu avô perdeu
muita terra. Então foi uma tristeza, uma tristeza muito grande pra eles, pra a gente que era
tudo menino, criança, tudo era felicidade e assim mesmo não foi. Quando a gente chegou aqui foi
horrível. Horrível pra adaptar a nova vida (R(a), 33 anos, atingida/deslocada pela barragem de
Pedra do Cavalo, entrevista em 28/02/2011, 2a geração).
D(a): [...] E aí foi uma perdedeira pra nós. Porque, no caso, eu acharia que eles tinha como fazer
o que? Dar o terreno como deram, o lote, tudo bem. Mas eles analisar que aquela terra que ia água
ia cobrir que nós não ia lucrar nada, eles tinham que fazer o que? Indenizar. Pra gente, no futuro,
ter como aumentar. Chegar aqui, vamos supor, aparecer alguém vendendo, a gente já ter aquele
dinheiro guardado, reservado pra comprar. Pra que? Pra gente ter como criar nossos filhos através
do trabalho, mas não foi assim. Aí, chegaram lá, enganaram, e com isso, eu sei que tirou todo
mundo. Ai você já sabe aqueles grandes, que tem seus bom estudo e souberam mesmo que no
futuro quem ia lucrar era eles e nós só tinha a perder como a gente perdeu, enganou e tapiou e a
gente Ah, mas a gente vai fazer o que? Não tinha o conhecimento mesmo, naquele tempo era tudo
apagado. De 26 anos atrás, quanta coisa modificou de lá pra cá, né? (D(a), 53 anos,
atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 04/03/2011).
Uma das técnicas entrevistadas sugeriu que esta forma de tratamento (indenização aos
pais e reassentamento dos filhos casados) teria gerado ganhos, pois estas famílias teriam sido
“beneficiadas duas vezes”. Entretanto, desconsiderando o caráter legal do Módulo Rural
indicado pelo INCRA, e fazendo apenas uma análise numérica em cima do tamanho das
terras/números de filhos que foram reassentados, percebe-se que, na verdade, estas famílias
receberam menos terra do que dispunham antes.

Tabela 5: Tamanho das terras antes e depois da barragem


Família Terras antes da barragem Quantidade de Famílias Reassentadas Total

M(a) (terra do avô) 75 tarefas 04 famílias 40 tarefas

L(o) (terra do pai) 82 tarefas 04 famílias 40 tarefas

D(o) (terra do sogro) 150 tarefas 05 famílias 50 tarefas

O(o) (terra do pai) 109 05 famílias 50 tarefas

Total 416 tarefas 180 tarefas


Elaboração própria a partir da pesquisa de campo.
108

Além disso, de acordo com os dados da própria DESENVALE sobre a estrutura


fundiária da região, os tamanhos médios das pequenas propriedades e das propriedades por
família naquela época eram bem superiores às 10 tarefas oferecidas61.
Na Área do Reservatório observa-se uma concentração maior do número de famílias nas
unidades produtivas com áreas de até 13,0 hectares, na proporção de 49,3%. O grupo a
seguir, entre 13,0 e 43,5 hectares, é a segunda concentração (27,2%). Esses números
mostram uma predominância das pequenas propriedades. A área média, por
propriedades, é de 79,8 Hectares e por família, 31,2ha (DESENVALE, 1984, p. 50).

Vê-se que média das propriedades era de 79,8 hectares ou 183,54 tarefas e a média
por unidade familiar menor chegava a 31,2 hectares ou 71,76 tarefas. Assim, para estas
famílias e, sobretudo para “os pais” ou os “donos de terra”, o saldo da barragem foi
considerado terrível, já que perdiam não apenas as terras e mas também parte de sua
importância econômica, social e moral no grupo familiar.
L (o): É que quando aquelas pessoas de idade, que perdeu tantas terras, que recebeu o
dinheiro, e que ficou numa situação de não ter mais o possuído mais aquela terra que ele
tinha e ele certamente ficou triste. E ai se ele tinha... e não foi só pai de Otávio, foi meu
pai também e outro e outros e outros que ficou nessa pendência. Outros que pegou o
dinheiro e não comprou mais as terra e foi morar mais o filho porque cabou tudo [...]
Não foi tanto porque eles não deram terra, foi porque ele perdeu tarefas de terra mais
ficou com um pouquinho de terra [...] com uma cambuinha de terra e não tinha mais
terra pra ele, os filhos veio pra cá e ele disse que não ia ficar lá só que era pra trazer
ele e eu trouxe ele pra cá (L(o), 66 anos, ex-sindicalista, atingido/deslocado pela
barragem de Pedra do cavalo, 03/03/2011).

Dois aspectos se destacam nestas histórias: o sentimento de tristeza, de


inconformismo, a sensação de derrota destas famílias e destes “donos” que teriam perdido as
terras para a DESENVALE, e o fato de todos irem atrás de terras próximas às dos filhos,
possivelmente buscando recuperar a referência de família tão central na estrutura camponesa.
Conforme veremos mais a frente, este último aspecto foi sem dúvida um dos mais impactantes
para este grupo.
Outra questão importante a se destacar é que a ação institucional da DESENVALE
mexeu também com a questão da herança, um dos pilares da organização camponesa, em que
o pai passa aos filhos o patrimônio familiar, já que a partir dos reassentamentos a
DESENVALE é que fazia esse papel. Situação semelhante foi descrita por Carneiro (1998)
referindo-se a projetos de irrigação em áreas de reassentamento no Piauí e analisadas por
61
Nos dados de 1984, os grandes proprietários (superior a 400 hectares) e médios proprietários (entre 40 e 400
hectares) representavam 15% dos atingidos, ou seja, 50% menos do que foi estipulado nos anos anteriores. Neste
estudo, os pequenos proprietários ligados a lavoura de subsistência e à pequena criação, representavam 30% e os
“ocupantes rurais” (rendeiros ou arrendatários; posseiros; assalariados rurais; e ocupantes de habitações rurais
trabalhando em atividades diversas da exploração da terra(pescadores, balseiros e comerciantes etc) perfaziam
55% das famílias atingidas (DESENVALE, 1984, p.50)
109

Woortmann (1990). Nesses projetos, os pais de famílias não eram aceitos como irrigantes já
que os administradores os consideravam “velhos” para ter acesso à terra. O filho passava a ser
responsável pelo lote, invertendo-se assim a hierarquia familiar (WOORTMANN, 1990).
Segundo a lógica do projeto, que obedece a uma ordem econômica mais que uma ordem
moral camponesa, a autoridade se subordina à produtividade da força de trabalho e não
à hierarquia familiar, onde cabe ao pai “dar a direção”, independente da sua idade (...) o
pai subordinado ao filho, conforme relata Carneiro, o pai ficaria restrito ao domínio da
casa e portanto, numa situação próxima à da mulher. O projeto de irrigação implica,
então, numa subversão da ordem familiar, desarticulando a relação representada entre o
trabalho e o pai e desconstruindo a família. Por outro lado, inventava-se o velho,
transferindo para o contexto camponês uma categoria gerada pela lógica do capital,
quando naquele contexto, o pai idoso nunca é marginalizado pela idade: ele é o dono do
sítio no qual se mora e se trabalho e é também o detentor do saber e da experiência
acumulados (WOORTMANN, 1990, p. 48)

***
R: Tipo assim, eu moro com a minha esposa, tem minha mãe que mora dentro de casa
comigo, entendeu? Como minha mãe já era uma pessoa idosa, o governo entendia o
que? Pra que que ela queria dez tarefas de terra? Aí deu cinco pra ela, e cinco pro
filho. O filho acabava tomando conta das dez né, porque ela não sobrevivia mais de
roça, tipo (R(a), 33 anos, atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo,
entrevista em 28/02/2011, 2a geração).

Os Agregados

Mas a barragem não foi só ruim. Para outros trabalhadores rurais, ela teria sido “boa
por um lado” e “ruim por outro”. Esta foi a interpretação do Senhor E. e Dona JL, que não
foram deslocados, pois trabalhavam na fazenda que foi comprada e se tornou o núcleo de
reassentamento Modelo.
Na história deles, tudo começou com seus pais e avós, nascidos e criados nesta mesma
área, quando esta pertencia a fazendeiros antes de “Francisco do Açúcar”. Os donos iam e
vinham, mas suas famílias permaneciam ligados àquela terra, onde não tinham a posse, não
pagavam renda, sendo considerados agregados da fazenda e recebendo para isso62. Junto com
outras cinco famílias, viviam em pequenas casas junto à sede da fazenda (ver ilustração 03).
Os homens trabalhavam com o gado e as mulheres/crianças com a criação de galinhas.
Segundo lembram, além do salário, ganhavam “ajudas” do fazendeiro que comprava alguns

62
Seu E(o) se autodefine como “posseiro”, entretanto pelo que ele mesmo nos conta não dispunha de nenhum
tipo de posse da área em que vivia, não pagava renda e mal podia plantar. Para não confundirmos esta família
com as outras que viviam nas terras dos pais, chamaremos estes de agregados, pois mantinham relações de
trabalho mais duradouras com seus patrões.
110

produtos em quantidade e dividia com seus funcionários. Por esse aspecto, o passado era
vivido as vezes como bom.
JL(a): Seu Francisco era bom pra gente, porque muitas coisas a gente não comprava. Sal
a gente não comprava, luz a gente não pagava. Se a gente quisesse um leite à gente não
comprava, tinha de fartura […] Vinha quando tinha assim uma festa de São João, ele
convidava os vaqueiro tudo, as mulher dos vaqueiro, todos que morava aqui. E fazia
aquela brincadeira, aquela festa. Ele botava de tudo pros povo comer e ali brincava. Era
bom de mais. Acho que uma coisa daquela pra se vê agora... ai, De tão bom que era
faleceu de repente (JL(a), 71 anos, trabalhadora da antiga fazenda que virou Modelo,
entrevista em 01/03/2011).

Essa relação paternalista, permitia-lhes dispor de alguns produtos com certa “fartura”,
mas o que sobrava em produtos, faltava em “liberdade” como contrapôs senhor E(o), para
quem este passado não era tão “bom” assim.
E(o): Naquele tempo era bom por uma parte, outra agora é melhor. Naquele tempo tinha
essas coisas que ela falou, mas não tinha liberdade.

JL(a): Não tinha a liberdade e hoje tem.

F: Como assim seu E., não tinha liberdade?

E(o): Porque se a gente quiser plantar uma roça aqui, planta aqui, se quiser plantar ali,
planta ali. E naquele tempo a gente tinha vontade de fazer uma roça ali e não podia. Ele
não deixava... era fazenda né? (E(o) e JL(a), trabalhadores na antiga fazenda que virou
núcleo, entrevista em 01/03/2011).

Podiam trabalhar, mas quase não podiam plantar. Primeiro, porque não tinham essa
autonomia no uso das terras da fazenda, segundo porque o tempo que lhes restava era
pequeno frente a carga de trabalho. Assim, conforme contam ou “bem fazia a roça ou bem
ganhavam pra comer”.
É desta relação terra-trabalho que o tom das críticas vai chegando, já que nem a terra
nem o trabalho lhes pertencia. Quando então foram incorporados junto aos reassentados na
política da DESENVALE, recebendo 10 tarefas como os atingidos, puderam ver nesta
mudança alguns aspectos positivos. A relação com a barragem tem portanto traços de
ambiguidade. Embora na maior parte do tempo considerem que tiveram mais ganhos que
perdas, por vezes se ressentem de não mais ter certos “apoios” do fazendeiro; ao mesmo
tempo, tendo a própria terra e podendo controlar seu trabalho, acham que a barragem foi algo
“bom”.
JL(a): Pra gente foi bom, porque a gente não tinha terra pra morar. Se agente tivesse que
fazer uma rocinha...Nós ia fazendo a rocinha... agora que nós tá fazendo a rocinha, nós
fiquemos porque a gente já tá na idade. Quando a gente queria fazer uma roça, só fazia
rocinha pequena. Ou bem fazia a roça ou bem ganhava pra comer. Então hoje em dia a
gente tem a terra da gente, a casinha da gente, a gente não pode criar gado, mas cria
uma galinha que já serve pra dá a um filho que chegar, um ovo de galinha(...) tenho meu
111

quintalzinho aqui, é uma frutazinha, é minha goiaba, meu mamão, tem lá embaixo no
quintal... Naquele tempo ali só era bom em certos pontos, mas ni outros não era essa
maravilha não. Era um trabalhar, que só Deus. Trabalhar que só Deus. Trabalhava. Se a
pessoa pegava cinqüenta vacas, cada um aqui pegava cinqüenta vacas pra tirar leite de
manhã e quando chegava duas horas da tarde já tava outra vez com cinqüenta vacas de
novo. Tem horas que a gente fica assim pensando como Deus é tão maravilhoso e bom,
que a pessoa tá viva ainda e labutando (JL(a), 71 anos, trabalhadora da antiga fazenda
que virou Modelo, entrevista em 01/03/2011).

O caso desta família é semelhante ao de outras cinco famílias que também


trabalhavam para o senhor “Francisco do Açúcar” e dos reassentados do núcleo fazenda
Mamona que eram ligados ao fazendeiro Tibúcio de Oliveira (ARAUJO, 2007).
Não tenho dúvidas que a bandeira de luta “Terra para todos” levantada pelos
Sindicatos de Trabalhadores Rurais da região tenha jeito diferença para garantir que famílias
como essas recebessem a terra. No entanto, é necessário outra reflexão: estes trabalhadores da
Fazenda da Modelo falaram muito agradecidos da “bondade de seu patrão em deixá-los ali”,
mas devemos considerar que havia relações de trabalho longas e pagamentos referentes a
estas relações que sumiram das negociações com a proposta dos lotes. Na verdade, podemos
considerar que esta foi uma excelente troca para os grandes proprietários na qual o Estado
cumpriu o papel de resolver as questões trabalhistas ou dívidas pelas terras através da oferta
dos lotes dos reassentamentos em troca63.
As Trabalhadoras das fazendas

A última história que vamos conhecer é da família de Dona JN (a), formada apenas
por mulheres, todas trabalhadoras de uma grande fazenda inundada e que representam uma
condição sociologicamente bem distinta da dos posseiros. Para analisar esta história, será
necessário retomar alguns aspectos do campesinato que foram apresentados anteriormente.
Apesar da terra ser um elemento central, os sentidos a ela vinculados podem ser
diversos dependendo das condições de trabalho. A terra é a morada da vida quando o trabalho
que ali se realiza é familiar, livre, com relativo controle do tempo e quando seu produto se
converte em benefícios para o próprio grupo. Porém, se a relação com a terra se dá por outras
vias, dependendo-se da terra alheia ou se o trabalho é feito para outrem, esta mesma terra
pode ser cativeiro – lugar de humilhação, sujeição, eito (WOORTMANN, 1990;
HEREDIA, 1979; MOURA, 1988).
Para Moura (1988), deve-se considerar as distinções entre camponeses e trabalhadores
rurais proletarizados. Estes últimos, difeririam dos primeiros por serem desapossados da terra

63
GERMANI (2011) comunicação pessoal feita no exame de qualificação em 20/09/2011.
112

e de seus instrumentos de trabalho e por isso, não controlariam os meios de produção que
garantem ao camponês um relativo grau de autonomia e controle do seu processo produtivo.
Woortmann (1990) agrega a esta distinção a questão do controle do tempo que proporciona
um sentimento de liberdade, por oposição aos cativos que, trabalhando para outro, não
controlam seus processos de trabalho, seu tempo, seu produto ou seja, a própria vida.
Some-se a esta relação de sujeição, o fato de se tratar de uma família de mulheres. Ao
iniciar esta análise, abordamos a questão dos “donos da terra” utilizando não por acaso o
artigo masculino para destacar o lugar central dos homens na estrutura social camponesa. É o
pai que detêm o patrimônio passado aos filhos – normalmente os homens. Nas sociedades
camponesas, a terra e o trabalho marcam claramente as diferenças de gênero através da
divisão sexual do trabalho. Mais que diferente, a posição entre homens e mulheres é desigual.
O trabalho e espaço feminino costumam ter significados hierarquicamente inferiores.
Apesar do quintal e da casa serem espaços territoriais femininos, vinculados a
sobrevivência e ao cuidado com o grupo familiar, a mulher, dificilmente, é a dona do
patrimônio. Em alguns casos ela pode até herdar, do pai, junto ao seu marido, mas é o pai de
família que detêm o controle da terra e que dispõe do topo da hierarquia familiar.
Dito isto, retomemos a história de Dona JN (a), que tendo perdido os pais quando
pequena, foi criada por algumas tias migrando de uma fazenda para outra atrás de trabalho.
Segundo esta senhora (com 81 anos quando entrevistada), a vida antes da barragem era
“difícil”. Vivendo na Fazenda Magalhães, numa casa de taipa muito pobre, sequer podiam
plantar. Se assim fizessem, deveria fazê-lo colado ao “pé da parede da casa”, único lugar que
os donos da fazenda permitiam. Vivia com suas duas filhas, todas trabalhando para terceiros
ou vendendo algo que conseguissem produzir/pescar nos tempos de maior dificuldade.
Durante as entrevistas, usaram a expressão “escravidão” para definir a vida nesta época. É
importante ressaltar que esta expressão é significativa e representa sua condição e a forma
como eram tratadas. Esta expressão denota o sentido da terra como cativeiro, como sujeição,
já que o trabalho estava dado por uma relação patronal.
RM(a): O dono do terreno só deixava plantar capim no pé da parede e não tinha um
terreno. Tinha que plantar, plantava no pé da parede e quando ela plantava roça antes da
roça ta boa de colher ele colocava o gado e aí o gado comia e aí.

J(a): A gente ficava sem nada.

RM(a): Era tipo uma escravidão, que morava no terreno dos outros e não tinha
direito a nada (JN(a) e RM(a), atingidas/deslocadas, 01/03/2011, 1a e 3a gerações).
113

Diferente dos outros grupos que contaram o “susto”, o “medo” que a notícia da
barragem lhes causou, elas falaram do interesse pelo projeto, já que poderiam conseguir uma
terra conforme divulgava o sindicato de trabalhadores rurais. De acordo com as lembranças
das filhas, que na época tinham entre 17 e 20 anos, começaram a participar de muitas reuniões
na esperança de que algo pudesse mudar em suas vidas.
S(a): Toda reunião que tinha, nós ia que era sobre assim o sindicato outras coisas né?
Nós ia, não perdia a reunião para ter o direito de cada uma achar o seu pedacinho de
terra, entendeu? (...) Tinha um momento que eu nem sei contar direitamente porque
minha mãe sempre ia na reunião e sempre a gente naquele tempo pra resolver, porque
teve essa reunião, mas há muito tempo e que nem todos pensava de nós ter direto mais
de nós tá aqui, falava “Ah, essa reunião, o pessoal sempre fala dessa reunião, nunca vai
sair daqui, nunca vai sair”. Até chegou um dia que teve outra reunião, até aí eu lembro
que teve essa reunião por que não pra chamar pra todo mundo vir pra aqui pra fazenda
Modelo. Foi então que a gente pensou que ia ficar próximo da rua, pertinho, mas só que
ficou mais distante um pouquinho, mas a gente agradece a Deus por isso. Que não é
questão aqui (S(a), atingida/deslocada, 01/03/2011, 2a geração).

Interessante destacar que esta fala coincide com a do sindicalista que relatou sobre as
idas e vindas para organizar as pessoas e a descrença das mesmas quanto ao direito de terem a
terra efetivamente. Ela diz: “nem todos pensava que nós ia ter direito, mas nós tava aqui” e ao
mesmo tempo “o pessoal sempre fala dessa reunião, nunca vai sair daqui, nunca vai sair”.
Mas para estas três mulheres, que viviam na terra de terceiros, sem nenhum horizonte, esta
possibilidade significava muito. Por tudo isso, Dona JN (a) e e suas filhas definem a barragem
da mesma forma: como uma benção!
JN(a): É, aqui foi uma benção de Jesus do Céu! (JN(a), atingidas/deslocadas,
01/03/2011, 1a geração).

S(a): Antes, a gente trabalhava muito, como a gente trabalha, mas só que agora nós
trabalha, quer dizer, eu vou falar logo: porque, antigamente, eu trabalhei muito, sofria
muito, muitas vezes, a gente estocava pasto, pintava e bordava. E hoje nós trabalha,
sempre nós continua o trabalho, mas quer dizer que nós não está mais trabalhando como
era antes, né? […] Eu sentia muita falta e no mesmo tempo eu fiquei feliz porque não
tinha terra, e nós quando chegou aqui achou uma terrinha […] Aí, Deus abençou que
nós (S(a), atingidas/deslocadas, 01/03/2011, 2a geração).

A: Era mesmo. Do lugar que nós morava, minha filha, isso aqui foi uma benção
(A(a), atingidas/deslocadas, 01/03/2011, 2a geração).

As três formas de sentir e lembrar


Considero que todas estas histórias, ao mesmo tempo que trazem formas muito únicas
de lembrar das mudanças produzidas pela barragem, revelam dimensões sociais e culturais
que estão ligados a estes sentidos. Para aqueles que detinham a terra, o controle do trabalho e
se organizavam a partir da lógica familiar, a barragem foi vivida como perda, como algo ruim,
114

que nem sempre gostavam de lembrar. Para outros, que viviam na terra alheia, com o trabalho
controlado por terceiros, a terra, apesar de um bem precioso almejado, era vivido como
cativeiro e por isso, a barragem e a obtenção das terras foi entendido como algo bom ou
mesmo “benção”.
Ao articularmos estas perspectivas subjetivas, tornam-se mais evidentes os diferentes
sentidos que uma mesma situação pode gerar. A modernização capitalista que para os
“pequenos” tratou todos como “iguais” de maneira massificada trouxe, sem sobra de dúvidas,
muitos danos e prejuízos para estas famílias. Entretanto, diante de certos traços da hierarquia
social camponesa, sobretudo no que tange o papel das mulheres, esta situação trouxe alguns
avanços, permitindo a elas o acesso a terra convertida agora em “morada da vida”.

IV. 02) Quando a relação com o lugar se rompe: revelando dimensões na relação com o
território

Situações de crise ou de mudanças sociais significativas costumam fazer vir a tona


elementos da tecitura social que, naturalizados no cotidiano, mal são percebidos em sua
importância. A mudança de lugar, a chegada a um novo ambiente, com outras pessoas e sem
tudo que era desejado, impactou significativamente as famílias aqui trabalhadas, acabando por
revelar dimensões pouco evidentes até então como a importância das água, a separação das
famílias e as dimensões afetivas na relação com o território. Nesta segunda parte do capítulo
passaremos a analisar cada uma delas mais detalhadamente.

a) Unidade terra-água

Embora no conflito de Pedra do Cavalo a questão da água não tenha aparecido com
destaque, na chegada ao núcleo de reassentamento Modelo, localizado numa área sem rio,
“aguadas” ou água encanada, este tema foi vivido como dos mais cruciais, relevando a
importância cultural deste elemento para o grupo aqui estudado.
Por conta disso, os momentos de maior expressão emocional nas entrevistas ocorreram
justamente quando os entrevistados falaram sobre a relação com as águas. Quando nos
referimos às “expressões emocionais” estamos falando de claras demonstrações de
sentimentos – de indignação, inconformismo, saudade ou alegria – inclusive por meio de
sorrisos. De algum modo, a questão das águas apareceu como um dos marcadores da ruptura
entre a vida antes e a chegada no reassentamento e por conta da emergência desta questão, o
115

tema será aqui apresentado tanto pela análise das entrevistas, como através de desenhos do
lugar em que viviam nas quais as águas aparecem com destaque.
Ao voltar no tempo através das memórias dessas famílias, percebe-se que dois rios
apareciam mais comumente, o Crumataí e o Paraguaçu. Além destes rios, havia alguns
riachos que, em alguns casos, passavam inclusive dentro das propriedades. Desta forma, para
todos os entrevistados que foram deslocados64, havia uma proximidade física com os rios que
eram percebidos como parte do cotidiano, da sobrevivência e da vida social das comunidades.
Uma das primeiras relações destacadas nas lembranças estavam associadas a processos
de trabalho, já que todos os entrevistados, inclusive as mulheres, costumavam praticar a
pesca regularmente, embora sem se identificarem como pescadores “profissionalmente” 65.
Esta pesca aparecia como uma atividade complementar a agricultura sobretudo em
determinadas épocas.
R: [...] No caso do meu pai, meu pai pescava, né. Só que daí quando veio pra aqui, a
dificuldade... Ainda ficou um tempo, eles ficaram um tempo saindo daqui pra ir, é
depois da Mocó é muito longe, e por conta da distância, eles pararam de pescar. Meu
pai, tinha muito pescador, ou melhor, eu acho que esse pessoal que veio pra o núcleo
Modelo eram pescadores, viviam da pesca. Era agricultura, mas a pesca predominava
também. Eles pescavam muito. Porque agricultura assim, você planta, e tem ali o tempo
né, da colheita, se você cria, tem o tempo de você tirar o animal pra vender. E a pesca
não, ta ali diariamente, né? A maioria ali era pescador (R(a), 33 anos,
atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 28/02/2011, 2a
geração).

A pesca também aparecia no cotidiano complementando a alimentação ou a renda, já


que algumas famílias podiam aproveitar o peixe para vender na região ou se alimentar numa
momento de necessidade.
S(a): Eu sinto muita falta porque a gente pegava o nosso camarãozinho, porque chegava
naquele tempo da semana santa, a gente vendia pra adquirir o nosso pão de cada dia.
Hoje, nós adquiriu outras coisas, mas nós já pescou muito através disso entendeu,
benção? (S(a), atingidas/deslocadas, 01/03/2011, 1a e 3a gerações).

Num estudo realizado por Alves (2011), com uma comunidade de ribeirinhos do Rio
Paraná afetados por uma usina, as águas do rio também apareceram com destaque como uma
atividade complementar à produção agrícola. Segundo ela, “água e terra se complementavam
na vida do ribeirinho. Nem a lavoura, nem o rio eram capazes de sozinhos fornecerem o

64
O único desenho em que não há referência a rios ou fontes de água foi no desenho de dona E(o), JL(a) e CL(a),
trabalhadores da fazenda que se tornou o núcleo de Modelo e que portanto não tinham convívio com rios. O que
vemos no desenhos são imagens ligadas preponderantemente ao processos de trabalho (Anexo 05).
65
Apesar de todos pescarem, apenas um se identificava como pescador, aposentando-se como tal.
116

alimento o ano todo. Tanto a água quanto a terra precisam de tempo para gerar alimento”
(ALVES, 2011, p. 184).
Mas o rio tinha também outras funções para os grupos. Servia por exemplo para a
criação dos animais, para o abastecimento de água das famílias (sobretudo em períodos de
seca), para o banho das crianças, para a lavagem das roupas e mesmo o lazer das famílias que
por vezes tinham a pesca uma forma de diversão
G(o): (Sorrisos) Tomava banho de rio, levava as bacia de roupa pra lavar lá no rio,
“panhava” água era, a gente buscava água era na fonte, a gente botava as cangalhas no
cavalo. Risos. Botavas as cangalhas no cavalo com aquelas pofas e botava o bujão e ia
buscar água no rio, entendeu? Que lá tinha o Paraguaçu, mas era aquele Paraguaçu
antigo (G(o), 42 anos, atingido/deslocado pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista
em 05/03/2011, 2a geração).

L(o): Ai eu jogava uma tarrafa e pegava peixe, assava peixe lá pra gente coisa lá. Então
a gente tinha isso. Agora, dentro do Toróró mesmo, pra gente criar nossos filhos nessa
fazenda [...] A gente fazia o que? A gente pescava no rio, nesse rio de Crumataí, a gente
criava galinha de criação, criava duas vaquinhas, criava ovelha, criava porcos no
chiqueiro, plantava feijão, plantava milho, plantava mandioca... Meu pai tinha uma casa
de farinha velha lá que a gente relava mandioca e fazia farinha, era assim (L(o), 66
anos, ex-sindicalista, atingido/deslocado pela barragem de Pedra do Cavalo,
03/03/2011).

Trabalho, alimentação, abastecimento, produção, lazer: diversos aspectos da vida


comunitária passavam pelas águas. O rio era portanto parte do território destas famílias, tendo
ai sim, “usos múltiplos”. Talvez por isso, em todas as entrevistas, justamente quando se
lembravam do rio, desta vida levada na proximidade das águas, expressavam sentimentos de
alegria, através dos sorrisos, que terminavam quase sempre pela expressão “saudade”.
R(a): Todo dia? Toda hora, minha mãe procurava e a gente tava na água (sorrisos).
Pense aí, era bom demais. Que eu tenho saudade de lá, lá era um lugar muito bonito,
sabe. Mas o que eu tenho saudade lá é só o rio (R(a), 33 anos, atingida/deslocada pela
barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 28/02/2011, 2a geração).

JN(a): Ave maria. É horrível. Sinto saudade ainda (JN (a), 81 anos,
atingidas/deslocadas, 01/03/2011).

Todos os entrevistados, mais jovens ou mais velhos, homens ou mulheres, posseiros


ou arrendeiros, fizeram referência à falta que o rio lhes fazia, utilizando em alguns casos
expressões afetivas muito claras. Esta é uma questão que parece muito importante porque o
uso de palavras afetivas para referir-se às experiências do passado foi usado economicamente
por este grupo e justo quando falavam deste tema se permitiram este tipo de expressão.
Pode-se afirmar que as águas tinham importância cultural e simbólica para o grupo,
estando associada a processos de trabalho e lazer, que em comunidades de pescadores são
comumente dimensões indissociáveis. No estudo que fiz na comunidade da Gamboa de
117

Baixo, esta situação também foi encontrada. Diferente da terra é um elemento mais estável e
em que o trabalho está significado pela dureza e fadiga, nas comunidades pesqueiras destaca-
se o componente lúdico, prazeroso que a água oferece, mesmo quando ligada aos processos de
trabalho (VIDAL, 2010).
L(o): Eu senti falta, eu senti falta, porque a pescaria é um divertimento, além de pescar,
por exemplo, se eu tivesse morando de junto do rio, se eu tivesse morando de junto do
rio... De junto do rio a gente se diverte, trabalha, pesca, toma banho, come um
peixinho assado, leva a família, a meninada toda, mas tem gente passando
domingo, passando feriado. A gente sente saudade sempre […] [Risos] (L(o), 66
anos, ex-sindicalista, atingido/deslocado pela barragem de Pedra do cavalo,
02/03/2011).

Se do passado a relação com as águas foi destacada por sua importância e alegria, não
era de se estranhar que a chegada no núcleo da Modelo, sem rio e água encanada, tenha sido
vivido como sofrimento. Durante as entrevistas, todos falaram da falta da água como um dos
aspectos mais duros na nova vida, traduzidos pela palavras sofrimento e dificuldade. Neste
núcleo a água chegava através de carros pipa divididos entre duas casas, sem regularidade. O
dia-a-dia sem o rio, sem a pesca e sem acesso a água tornava o cotidiano bastante complicado:
era preciso tomar banho, beber água, cozinhar, limpar a casa, lavar a roupa e a louça com
moderação.
M(a): Porque era o carro pipa que tinha que trazer a água. Pra lavar roupa, a gente
sofria. Eu cansei de ir na casa de meu tio. A minha menina pegava aqui. A roupa da
criança, da minha filha mais velha. Ela ia lá pra cima, pra casa do meu tio pra lavar
porque aqui não tinha água. Depois foi que a prefeitura mandou encanar água, mas
demorou muito. Acho que a gente levou bem uns cinco anos aqui sem água, não foi
não? Cinco ou mais. Era um sofrimento triste.

F: É, porque pra quem tava do lado do rio.

M(a): Do lado do rio. Às vezes, a gente ia lavar na fonte do meu irmão ali. Foi uma
dificuldade muito grande quando a gente chegou aqui por falta de água. Era uma
falta de água terrível (M(a), 58 anos, atingida/deslocada pela barragem de Pedra do
Cavalo, entrevista em 02/03/2011).

No estudo realizado por Alves (2011), a falta da água também ganhou destaque por
sua repercussão em várias esferas da vida. Segundo o estudo, a comunidade ressentia-se “da
perda do rio, da pesca farta, da caça realizada nas matas, das terras férteis cultivadas nas
barrancas, na sociabilidade e de toda uma produção de subjetividade que mantinham naquele
lugar marcado pela proximidade com o rio e suas águas” (ALVES, 2011, p. 181). A água
tanto lá quanto aqui marcava, por sua falta, a ruptura com o passado, com a vida anterior.
Segundo lembravam os entrevistados da Modelo, para terem acesso a água era preciso
negociar constantemente com a prefeitura o envio de carro-pipa e assim também esse aspecto
118

foi vivido como sofrimento diante do tratamento que lhes era oferecido. Uma das
entrevistadas chega a definir esta experiência como humilhante, já que passaram a ter que
“pedir” constantemente algo que antes dispunham com fartura e relativa autonomia.
D(a): […] Mas foi tanta dificuldade que nós encontrou fia e foi tanta coisa que eles
prometeram no início mesmo. Quando a gente mudou pra aqui, aqui não tinha água,
nós recebia água de carro pipa. Era uma humilhação pra gente conseguir a água,
era pra estar lutando, era pra estar no pé da prefeitura, era pedindo, era aquela coisa
toda. Elas aí também sabem que todos nós passamos por esse sofrimento. Era tudo no
fifó, não tinha energia e aí a gente começou lutar (D (a), 53 anos, atingida/deslocada
pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 04/03/2011).

Tamanho problema só começou a se resolver mais de uma década depois, no final dos
anos 90, quando, a partir das lutas da comunidade junto à prefeitura, conseguiram que água
chegasse até o Núcleo. É necessário chamar atenção para o fato de que a água desta barragem
servia para o abastecimento para Salvador, sendo levada por um sistema de adutora por mais
de 100 km. Mas, apesar disso, aqueles que saíram de suas casas para garantir este beneficio,
passaram mais de uma década sem ter água encanada, mesmo estando a menos de 20 km da
Cabaceira do Paraguaçu, de onde vinham os carros pipa (ver ilustração 02).
Ilustração 11: Complexo de abastecimento de água da barragem de Pedra
do Cavalo

Fonte:PALMA (2007). Elaborado por PALMA, E.G.A.(2007)

Por tudo isso, na história deste grupo a água marcou decisivamente a diferença entre o
lugar de antes e o reassentamento, o que nas memórias aparece pela oposição entre os
119

sentidos Fartura/Escassez e Desenvolvimento/Limite. Há uma comum sensação de limite


em relação ao tamanho das terras – 10 tarefas por lote – que não podiam ser ampliados, de
limite na quantidade de água – que ficava em tanques – e limites na possibilidade de se
ampliar o patrimônio familiar através do trabalho coletivo.
V(a): Tinha mais fartura de que hoje (V(a), 65 anos, ex-sindicalista, atingido/deslocado
pela barragem de Pedra do cavalo, 03/03/2011).

***

M(a): A gente plantava milho, plantava feijão, criava. Agora, criar era melhor pra
gente criar porque tinha muita terra. Lá tinha muita terra. E a gente criava.

A(o): Águada também

M(a): Tinha água à vontade lá também tinha porque era de junto do rio, do
Paraguaçu, né?(A(o) e M(a), atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo,
entrevista em 04/03/2011).

***

D(a): Agora, o que eu sinto ainda é que não tem como a gente desenvolver pra crescer
porque não tem como a gente lucrar nada que dê assim pra sobrar nada pra gente se
desenvolver a crescer. É só amarradinho ali naquele lugarzinho (D(a), 53 anos,
atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 04/03/2011).

Essas oposições Fartura/Escassez e Desenvolvimento/Limite marcavam por um lado


sentimentos de insatisfação para com a situação encontrada e por outro o tempo, a diferença
entre os lugares, o antes e o depois.
As comparações sempre trazem um tom de saudosismo da vila anterior, à beira do rio, e da vida ali
existente. A pesca, o plantio, a criação de animais, enfim, uma vida campestre é sempre lembrada
como uma época de fartura e felicidade, apesar do intenso trabalho e das tecnologias rudimentares
utilizadas. A vida na cidade atual é apresentada como possuindo algumas vantagens, como dispor
de infraestrutura propiciada pelo urbanismo, porem trazendo uma maior dificuldade no plano
econômico e alterações na sociabilidade vistas como desvantajosas (ALVES, 2011, 187)
Analisando os desenhos que fizeram dos locais em que viviam antes, vemos todos
estes elementos da relação terra-água-família-trabalho-criação-lazer apareceram
representados. Embora aqui no texto tenhamos apresentado essas dimensões e suas análises de
maneira separada, vemos que nos desenhos aparecem juntas, de maneira indissociada, como
partes do território vivido por eles. Destacamos nas ilustrações 12 e 13 os desenhos das
famílias de Dona JN e L(o) nos quais, como será possível notar, as águas e riachos aparecem
relacionados a vários aspectos da vida social66. Em anexo 06, apresentamos os desenhos de
outras famílias que não aparecem no corpo da dissertação.

66
Nas ilustrações, os quadrados e setas com indicaçoes digitadas nas ilustrações foram feitas pela pesquisadora
para valorizar alguns desses elementos.
120

Ilustração 12: Desenho da família de JN (a) - Local onde viviam antes da barragem

Fonte: pesquisa de campo.

Na Ilustração 12 apresentamos o desenho de Dona JN(a). Esta senhora vivia com suas
filhas na Fazenda Magalhães, como trabalhadora rural. Trabalhava na lavoura, como lavadeira
e em outras terras em trabalhos temporários. Pescavam e vendima algumas peças de
artesanato nas feiras. O rio de referência destacado por essa família foi o Paraguaçu. Há
imagens de peixes e de pessoas nas águas. Segundo as anotações que fizemos com elas,
seriam pessoas tomando banho, lavando roupa, pescando ou pegando água para beber.
Percebe-se que há poucas referências no desenho a lavoura, já que a elas não era permitido o
plantio. Vemos apenas uma árvore, um pé de feijão e outro de milho. A escola próximo
ganhou destaque no desenho da família.
121

Ilustração 13: Desenho da família de L(o) e V(a) - Local onde viviam antes da barragem

Fonte: pesquisa de campo.

Senhor L(o) vivia em terras familiares do pai (destacado no centro da imagem) junto
com seus irmãos (que aparecem na imagem nas casas no terreno) numa localidade chamada
Fazenda Tororó. Há referência ao Rio Crumataí, na parte inferior do desenho e ao Riacho
Tororó, no lado esquerdo, que acabou borrando. Nesses espaços, desenharam pessoas, peixes
e diversas atividades como a pesca, banho, lavagem de roupa e abastecimento dos animais. O
desenho é bastante rico e cheio de elementos produtivos como as criações (vaca, ovelha,
porco, galinha), o cultivo de feijão, milho, abóbora, mandioca, amendoim e fumo e a
referência a uma casa de farinha familiar.
122

b) A separação (física) das famílias

Outro tema destacado quando a mudança ocorreu estava relacionado à separação das
famílias, tema evidente desde os primeiros momentos da pesquisa. Ao fazer contato com o
Pólo Sindical de Feira de Santana para conhecer o município de Santo Estevão, numa breve
conversa telefônica para com B(a) do STR, esta revelou seu ressentimento para com a
barragem. Segundo ela, além de ter tomado a terra de suas famílias, Pedra do Cavalo teria os
separado significativamente, já que seus avôs foram viver em Ipuaçu (no município de Feira
de Santana), enquanto seus pais ficaram em Santo Estevão. De algum modo, naquela ligação,
B (a) antecipava um tema delicado e doloroso para o grupo, já que como dissemos antes, a
maior parte estava em terras familiares, formando um território de parentesco
(WOORTMANN, 1990).
A primeira separação familiar ocorreu na relação pais/filhos, já que os donos da terra
recebiam indenizações e não era reassentados nos núcleos junto com seus filhos. Estes “pais”
certamente foram dos mais afetados, pois como foi dito, passaram a buscar apoio com os
filhos para conseguirem terras próximas a eles, pois não queriam ficar sós.
L: […] Ele ficou com uma cambuinha de terra e não tinha mais terra pra ele, os filhos
veio pra cá e ele disse que não ia ficar lá só, que era pra trazer ele e eu trouxe ele pra cá.

V: Ele comprou um pedacinho de terra e colocou ele.

L: Eu tinha um restinho de dinheiro e ele falou “meu filho compra um pedacinho de


terra pra mim que eu vou ficar junto de vocês (V(a) e L(o), atingidos/deslocados pela
barragem de Pedra do cavalo, 02/03/2011).

A questão portanto não era só a terra ou o local desta, mas a relação familiar a ela
vinculada.
Mas o processo de separação não parou por ai. Se no começo das lutas a dúvida era
para onde iriam, num segundo momento tornou-se quem iria para onde. No processo de
reassentamento, eram feitos cadastros das famílias atingidas e a distribuição delas entre os
núcleos. Os reassentamentos tinham capacidades diferentes e por isso nem sempre a demanda
era compatível com a oferta da empresa. Além disso, as pessoas recebiam um cardápio de
locais com “atrativos” diversos e o que motivava determinado membro da família podia não
ser o que atraía os outros. No final das contas, seja pelas diferentes propagandas, seja pela
falta de espaço ou pelo descuido da área social com o sistema vincular dessas famílias, o que
ocorreu é também entre os reassentados – normalmente irmãos e tios – houve separação.
123

No estudo de Scott (2009), um dos aspectos mais graves apontados pelo autor na
barragem de Itaparica teria sido justamente a separação das relações de vizinhança que
envolvia parentes e não parentes. Segundo o autor, a despedida dos vizinhos de longas datas
envolveu choro e muita tristeza, sendo um dos momentos mais dramáticos vividos pela
população. Ainda que na Modelo as pessoas tenham optado por pular este assunto ou falá-lo
de maneira ligeira, é possível supor como foi este momento, já que em Pedra do Cavalo o
grau de rompimento dos laços chegou a atingir relações familiares muito fundamentais.
Para entendermos melhor esta situação, vamos apresentar brevemente a situação de
duas famílias através de suas árvores familiares. Durante as entrevistas, optei por trabalhar
com essas árvores pedindo que os entrevistados falassem onde cada membro vivia antes e
onde foi viver após a barragem. Com isso foi possível passar da narrativa a uma representação
visual dessas separações, algo que me parece fundamental a se revelar.
A primeira história que vamos conhecer aqui é de Dona D (a), representada na
ilustração 15, que vivia no Trapiá nas terras de seu sogro, próximo às terras de seus pais e
mais 17 irmãos. Quando o processo de deslocamento ocorreu, ela foi viver na Modelo,
seguindo seu marido. Ninguém de sua família foi reassentado na Modelo: seus pais e irmãos
ficaram no pouco que restou das terras, mas em seguida 12 deles migraram para sobreviver.
Quando construí sua árvore familiar, evidenciando a quantidade de irmãos que tinha, indaguei
como foi para ela a ida para este núcleo sozinha, apenas com marido e filhos. Foi justamente
neste ponto que dona D (a) promoveu a inflexão que dá titulo a esta dissertação: Saudade
sim, tristeza não! Percebi que se tratava de um tema um tanto delicado e que ela buscava
“desconversar”. Mais uma vez perguntei como se sentiu e ela repetiu a mesma frase. Foi então
que perguntei o que queria me dizer com isso e ela respondeu:
D(a): Fazer como a história, saudade sim, tristeza não. Se for entristecer a gente para .
Tem que dizer: saudade sim, tristeza não. Vai embora tristeza porque não é fácil não,
filha […] a gente vê a separação e é triste (D(a), 53 anos, atingida/deslocada pela
barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 04/03/2011).

Seu marido, senhor V (o), teve história semelhante, já que das 04 irmãs que tinha
apenas 01 foi reassentada na Modelo, sendo que as outras 03 foram viver em outros dois
núcleos (02 na Fazenda Nova e uma na Mocó).
A segunda história trazida como exemplo é de Dona M(a), exemplificada na ilustração
16, que vivia com seu marido e filhos numa casa própria nas terras de seu avô, junto com
alguns tios e mais cinco irmãos. No processo de deslocamento, apenas 03 tios receberam
124

terras e ficaram na Modelo. Entre seus irmãos, 01 recebeu terra, mas em outro núcleo de
reassentamento. Os outros ficaram no que restou das terras do avô – migrando em seguida
(ver cor verde). Do lado de seu marido, Seu A(o), 03 das 05 irmãs foram reassentadas na
Mocó, portanto nenhuma ficou com ele no núcleo Modelo. Os pais receberam indenizações e
por isso não foram para a Modelo. Entre os seis filhos do casal, todos precisaram migrar.
Para um melhor entendimento das árvores apresentamos a legenda na ilustração 14.
Destaca-se que os quadrados ou círculos pintados de preto representam os familiares
reassentados em núcleos diferentes do entrevistado e em verde aqueles que migraram nos
anos seguintes.

Ilustração 14: Legenda das árvores familiares

1900
Homem Mulher

Entrevistado(a) ANO- quando


houver ref ere-se ao
ano de nascimento

Filho(a) Neto(a) Bisneto(a)


do do do Falecido(a)
entrevistado entrevistado entrevistado

Separado do(a) MIGRAÇÃO - não conseguiu sobreviver SEPARAÇÃO


entrevistado(a) no pelo tamanho da terra - SP, SSA(Salvador) do entrevistado
deslocamento da barragem ou RUA(Centro urbano de Santo Estevão) e MIGRAÇÃO
Ilustração 15: Árvore familiar da entrevistada D(a), 53 anos.

Elaboração própria a partir da pesquisa de campo.


Ilustração 16: Árvore familiar da entrevista M(a) e do entrevistado A(o), 58 e 64 anos.

Elaboração própria a partir da pesquisa de campo.


127

Durante a construção dessas árvores, enquanto trabalhávamos para entender as


separações entre núcleos, um novo tema veio à tona, a questão dos filhos. Em praticamente
todas as famílias, quando o reassentamento aconteceu, os filhos eram pequenos ou
adolescentes e desde as lutas pela terra no começo dessa história, as famílias reivindicavam
terras maiores para que as gerações seguintes pudessem sobreviver dela. O sindicalista L (o)
falou enfaticamente como defendiam 70 tarefas para que os filhos não precisassem “correr o
mundo”. O problema é que mesmo com tantas lutas e argumentos, a DESENVALE ofereceu
apenas 10 tarefas para cada família e este tamanho, considerado por todas as famílias como
pequeno, demonstrou seus limites com brevidade.
Se retomamos essas mesmas árvores(ilustração 15 e 16), olhando desta vez para as
pessoas destacadas com uma marca verde, que representam aqueles que precisaram migrar,
veremos que nestas famílias, quase todos os filhos fizeram este movimento (descrito com
mais detalhe no próximo capítulo). A barragem, portanto, além de romper, ao menos
fisicamente, com as relações familiares do passado através da separação das famílias entre
reassentamentos, comprometeu também o futuro, já que os filhos destes homens e mulheres
também foram atingidos.

c)Territorialidade e Subjetividade: relações afetivas com o lugar

Nesta última parte do texto abordaremos um dos aspectos mais importantes e ao


mesmo tempo invisíveis na relação com o território: a dimensão afetiva. Faremos isso partir
da análise da história de um senhor que teria falecido de “paixão” por suas terras.
Considero esta história importante em si mesma, mas também do ponto de vista do
grupo, já que este senhor parece ter funcionado como uma espécie de porta-voz. De acordo
com algumas perspectivas da psicologia, em algumas situações, o indivíduo que adoece
comporta-se como um “porta-voz” revelando os conflitos emocionais vividos por seu grupo
de referência. A maioria dos entrevistados, ao falarem dos sofrimentos e tristezas gerados pela
barragem, fizeram referências à história desde senhor como se de algum modo, ela
expressasse sentimentos difíceis de se falar ou relembrar.
Este senhor que faleceu, chamado SL (o) era o “pai” e portanto o “dono” das terras
onde vivia com seus filhos há muitos anos. De acordo com a nora, que contou sua história,
gostava do trabalho na terra e buscava fazer crescer a família e seu patrimônio por meio do
128

seu trabalho. A chegada da barragem para este senhor, foi vivido como algo dramático. Como
todos os outros, inicialmente não acreditou e depois não aceitou o que lhes propunha. Para ele
– nas palavras dela – como poderia a DESENVALE “tomar tudo”: tudo que trabalhou, que
tirou de seus filhos, economizando para fazer crescer suas terras?
D(a): [...] Quando pensou que não, minha filha, o velho, meu sogro, pouco durou.
Quando surgiu a conversa da DESENVALE. Aí, êta, nossa senhora, vai tomar tudo.
“Mas, tanto que eu trabalhei”. E era mesmo, o velho batalhava, batalhava, criava os
bichinho, trabalha em roça, era doido pra trabalhar. E nisso foi criando filho e eu
casando com o filho dele e continua essa mesma luta. Aí, ele dizia assim: “Será meu
Deus, tanto que a gente trabalhou, tanto que gente pelejou, tirando da boca pra comprar,
pra ter, pra nós ter nossas família, criar nossas família, não se bater pro mundo afora. E
será que vão tomar nossas terra?”. Ele pegou atacar com problema de coração e com
pouco tempo morreu. Esse não esperou nem chegar o desapropriamento. Aí, que morreu
(D(a), 53 anos, atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em
04/03/2011).

O caso deste senhor narrado pelas pessoas pode ser interpretado aqui com ajuda da
Psicanálise, através de um texto clássico de Freud chamado Luto e Melancolia escrito em
1915. Neste texto, Freud discute a dor da alma humana gerada por circunstâncias da vida em
que se perde algo muito estimado. O luto e a melancolia seriam distintos, o primeiro
entendido como um afeto normal cujo curso é a retomada da vida, enquanto a melancolia,
embora assumindo várias feições, seria um quadro afetivo patológico cujo desfecho não é tão
natural quanto o luto. Para Freud (2006), o que aproxima estes dois temas num único texto é
que em ambos estamos diante de condições psíquicas geradas por “influências ambientais” no
qual perde-se algo de grande importância – um ente querido, uma atividade que ocupou a vida
da pessoa por longos anos, algo de importância para as pessoas como a liberdade, ou mesmo o
amor de alguém que se desejava.
Embora a situação de perda seja a mesma, as consequências seriam diferentes nas
pessoas. Algumas, por exemplo, viveriam o luto – ou seja, uma tristeza de grandes proporções
que produz afastamentos daquilo que seria a “atitude normal para com a vida” – mas passado
um tempo retomaria o cotidiano sem necessidade de maiores cuidados médicos. Outras
pessoas, entretanto, desenvolveriam a Melancolia caracterizado por Freud como:
[…] desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a
perda da capacidade de amar, inibição de toda e qualquer atividade e uma diminuição
dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e
auto-evilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição (FREUD, 2006,
99).

Apesar da “paixão” não ter tido um desfecho tranquilo como o luto, já que o senhor
SL(o) faleceu, não considero que aqui devamos pensar na paixão dele como um quadro de
129

Melancolia, já que alguns elementos distintivos fundamentais não foram encontrados na


narrativas das pessoas. O primeiro deles é que na melancolia haveria uma “perturbação da
autoestima” com sentimentos de culpa no qual o sujeito deseja ser punido, algo que não foi
encontrado nesta história. O segundo, é que, na Melancolia o objeto perdido não é tão claro
para o sujeito e por isso a vivência desta dor tem algo de enigmático para o sujeito. No caso
de SL(o), o sentimento de perda de suas terras “para a DESENVALE” ficou claro para todos
desde o começo, ainda que possamos sugerir que a terra que ele perdia não era apenas aquela
visível e mensurável concretamente.
Mas o que seria o luto na perspectiva Freudiana e o que sua análise pode nos revelar?
O primeiro ponto a se destacar é que, tanto no luto quanto na melancolia há uma perda de um
objeto amado – leia-se objeto como algo amplo que pode ser alguém, uma posição social, um
lugar, ou uma coisa. O sujeito que perde, apesar de inicialmente não querer crer nesta perda,
confronta-se com a realidade percebendo a todo tempo que o objeto amado não mais existe.
Apesar disso, pela natureza desta relação – ou seja, uma relação de profundo amor, no qual se
investiu muita energia simbólica e afetiva – opõe-se o sujeito a perder o objeto e por isso,
apesar de prevalecer o respeito a realidade – insiste ele em recuperar o objeto ora negando
esta perda, ora investindo tempo e dedicação a relembrar diversas situações vividas com
aquele objeto.
Pensemos, por exemplo, na morte de alguém em que a pessoa que sofre não quer crer
que aquilo possa ter ocorrido sentindo que a qualquer momento a pessoa aparecerá
novamente. Ao mesmo tempo, sabendo que a pessoa morreu, recupera e relembra inúmeras
cenas vividas. As vezes expressa essas lembranças às pessoas próximas que, numa certa
altura, cansam-se da monotonia temática que a pessoa vive, e tentam trazer outros temas de
interesse sem grande êxito. Em outros momentos, aliás na maior parte do tempo, a pessoa
permanece na tristeza e ainda que nada fale, alimenta a relação afetiva com o objeto
lembrando-se em silêncio de tudo que com ele viveu.
Normalmente neste tempo em que a pessoa vive o luto há um completo desinteresse
pelo mundo externo que se torna vazio e sem sentido. O que interessa ao enlutado é justo e
apenas aquilo que está relacionado com o objeto perdido. Por isso, um dos traços do luto é
“perda da capacidade de adotar um novo objeto de amor (o que significaria substituí-lo”
(FREUD, 2006).
130

As pessoas ao redor tentam alegrar a pessoa em situação de luto, chamar-lhe atenção


para outras coisas do mundo, confortá-la para que volte a interessar-se por outros temas, mas
tudo isso é em vão. É como se o enorme vazio vivido pela perda tudo que lhes fosse dito e
feito caísse em lugar algum. O ego, diz Freud, é completamente absorvido pela tristeza que a
perda gerou e dificilmente o sujeito consegue voltar-se para o mundo externo.
Tudo isso que descrevi em termos teóricos assemelha-se ao que Dona D(a) explicou
ao tentar descrever o que é a “paixão”. Dizia ela:
D(a): Entender o que é apaixonar? Eu vou lhe dizer o que é pra você ter o significado
mais fácil. A moça gosta de um rapaz, depois não dá certo, ele as vezes não quer ela,
mas ela gosta dele e é apaixonada por ele. Quantas que faz arte ruim através do que ele
não está querendo ela, mas ela quer ele. O mesmo caso se dá com o homem e a mulher.
Então, a paixão significa que chega até esses ponto de coisa. É isso, o amor que tem seja
lá, eu tenho uma planta, mas eu cuido com tanto amor, todo dia eu vou lá, converso com
ela, ponho água nela. Eu não quero ver uma pessoa chegar aqui e destruir. Não é? Não é
isso? Então, chega uma pessoa e destrói, eu posso não dizer nada, posso não coisar, mas
eu fico com aquela paixão, toda hora eu me lembro daquilo, da minha plantinha que eu
zelava com o maior cuidado, não é? Então, a paixão significa uma coisa dessa (D(a), 53
anos, atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 04/03/2011).

Dona D (a) começa exemplificando a paixão como um sentimento aplicável a outras


situações – como no enamoramento entre homem e mulher – e depois vai chegando a um
exemplo mais próximo do caso de SL (o). Em ambas histórias, o afeto existente – “aquele
amor” – não pode se realizar, seja porque o homem não quer a mulher, seja porque o objeto
não existe mais, foi destruído. A pessoa que ama precisa lidar com o fato desse amor não
poder se efetivar, não ter mais o objeto para ser investido. Diz ela: “eu posso não dizer nada,
posso não coisar – [não fazer algo contra si] – mas eu fico com aquela paixão, toda hora eu
me lembro”. A paixão aparece aqui justamente como o trabalho do luto em que frente perda
do objeto amado a energia subjetiva retorna ao próprio sujeito que já não pode investi-la no
“mundo externo”. “Ficar com a paixão” é justamente desinteressar-se do mundo, ficar
lembrando-se, ainda que “não se diga nada”.
Freud (2006) define o luto como um trabalho, um trabalho psíquico no qual o sujeito
vai pouco a pouco lidando com a perda. A energia afetiva permanece, já que o objeto perdido
não permite mais a depositação do afeto. Isso significa dizer que, perder no real não implica
em perder no simbólico ao mesmo tempo. É preciso lidar com a perda, senti-la, processá-la
simbolicamente até que, quando o trabalho do luto se finde “o ego fique outra vez livre e
desinibido”. Quando isso ocorre, a energia antes depositada num único objeto, que ganhou
131

centralidade frente aos outros, torna-se disponível para ligar o sujeito ao mundo e a novos
objetos de amor.
A história de SL(o) entretanto não termina exatamente desta forma, já que ele falece.
Em relação à situação de morte, Freud se interroga sobre alguns casos em que a melancolia
culmina com o suicídio, o que de algum modo era para ele um enigma, já que na Melancolia
Freud descobre que há uma identificação narcísica com o objeto perdido. De acordo com
Freud, “situações opostas de paixão extrema e suicídio, o Eu, embora por vias totalmente
diversas, acaba sendo sobrepujado pelo objeto” (Freud, 2006). Creio que a hipótese levantada
por Freud pode ser usada aqui para refletirmos o caso de seu SL (o), já que possivelmente o
tamanho da perda e do objeto perdido deve ter se sobreposto ao próprio sujeito que de algum
modo não conseguiu operar a renúncia desta perda, etapa importante para a saída do luto.
Uma das minhas hipóteses é que, além de perder a terra este senhor perdia o lugar
social no interior da família, já que seus filhos foram reassentados em outros lugares ficando
ele apenas com um pequeno pedaço de terra, uma indenização, tendo boa parte de tudo que
construiu e produziu ido por água abaixo. De algum modo o lugar moral de pai da família,
aquele que dava a direção da terra e do trabalho, pode ter morrido simbolicamente e com eçe
também o senhor de carne e osso que encarnava o lugar “moral” do pai na família
camponesa? Como vimos, segundo Woortmann (1990) “pais de família encarnam a hierarquia
familiar enquanto pessoas morais e não como indivíduos”(p. 37)
Mas a história deste senhor pode nos render um pouco mais que o entendimento sobre
a tristeza dessas pessoas e o que teria acontecido com este caso em termos psicológicos. A
análise desta situação pode nos ajudar a entender que tipo de relação com o território estava
em jogo, já que estamos diante de uma discussão em que o objeto perdido é parte da
subjetividade.
Para isso, opto por dialogar brevemente com o conceito de Vínculo – que na
Psicologia Social Pichoniana67 – é entendido como um sistema de interação social, um tipo
particular de relação com o objeto, no qual há certo grau de internalização deste. Isto quer
dizer que não apenas nos relacionamos com o mundo e com as pessoas, mas que aos poucos
este mundo e estas pessoas vão sendo por nós incorporados. O investimento que fazemos
nestes objetos vai aos poucos convertendo-os em parte de nós.
67
Enrique Pichon Riviere era um Psiquiatra e Psicanalista argentino, nascido na Suiça, que veio morar na
América Latina ainda pequeno, tendo uma perspectiva de Psiquiatria e Psicologia ampla, articulando Psicanálise,
Marxismo, Existencialismo, dentre outros. Para ele, o homem é um ser histórico-social, de necessidades,
transformador e transformado, criativo.
132

O vínculo remete justamente à ideia de que das nossas relações são internalizadas e
que portanto entre eu e o objeto existem dimensões e relações que não podem ser
evidenciadas apenas olhando-se para seus aspectos externos. O vínculo nesse sentido, se
configuraria e se consolidaria conforme a conexão que tenho com o outro, o grau de
internalização deste e como interajo com este sistema (MALAURIE, 2002).
Um aspecto importante desta teoria é que deve-se considerar as necessidades como um
dos elementos fundamentais do vínculo. Desde o nosso nascimento e em todo o desenrolar da
vida, haveria em nossa relação com o mundo diversas necessidades, que fariam com que nos
movêssemos na direção do outro em busca da satisfação delas. Essas necessidades podem ser
físicas ou psicológicas, fisiológicas ou sociais, envolvendo objetos ou pessoas. O que importa
nesta concepção é que para Pichon Riviere (1998), deve-se considerar que um dos
fundamentos motivacionais do vínculo são as necessidades, aqui entendidas como aquilo que
nos move para a relação com o outro e com o mundo e que podem ou não ser satisfeitas o que
implica dizer que os vínculos poderiam ser gratificantes ou frustrantes, por exemplo
(MALAURIE, 2002).
Outro aspecto da teoria do vínculo, é que ao dizer que ele envolve certo grau de
internalização, destaca-se dois campos psicológicos da percepção, o mundo interno e o mundo
externo, a intersubjetividade e a intrasubjetividade. No primeiro caso, a intersubjetividade
evidencia-se mais a relação entre as pessoas ou entre sujeito objeto, enquanto no segundo,
intrassubjetivo, volta-se o olhar para os elementos que compõe o mundo interno, digamos
“dentro do sujeito”.
A intersubjetividade daria conta de aspectos mais estruturais e externos das relações
sociais, onde os vínculos se estabelecem, enquanto a intrasubjetividade estaria ligada aos
processos de internalização, em que o outro é incorporado. Na concepção de Pichon Riviere
(1998), a relação entre estas dimensões é dialética e portanto não se entende uma senão por
sua relação com a outra.
Isto significa que aquilo que acontece na realidade condiciona o mundo externo de um
sujeito, mas também que a forma como se estrutura o seu mundo interno condiciona o
modo de operar sobre a realidade. Na medida em que esta interioridade opera sobre a
realidade, também se modifica a interação com o outro (operação na dimensão
intersubjetiva). E isto por sua vez volta a operar modificando a interioridade do sujeito e
assim sucessivamente. Vale dizer que nunca há uma representação definitiva. Assim
como o vínculo não é estático, a representação do vínculo tampouco o é (MALAURIE,
2002, p. 05, tradução livre)
133

Vale dizer, que para Pichon Riviere (1998) o entendimento da subjetividade passava
também por considerar nossos vínculos em termos mais amplos, com os grupos de referência
e a sociedade em geral, o que significa dizer considerar o contexto social, que Maullarie
chama de transsubjetividade.
O vínculo seria portanto uma realidade empírica, que diz respeito às relações humanas,
mas também instrumento analítico e operacional da Psicologia Social que se comporta como
um conceito limítrofe articulador eu-mundo, eu-outro, indíviduo-sociedade, interno-externo,
considerando a natureza afetiva destas interações.
Mas o que toda esta teoria dos vínculos tem haver com a discussão de território? É que
considero que é de natureza vincular a relação estabelecida por estas pessoas com seus
territórios incluindo aí objetos animados ou não, as relações sociais de parentesco, a terra em
seu significado mais amplo – produtivo, cultural e simbólico.
Durante as entrevistas e na análise que aqui apresentamos, foram destacados vários
elementos afetivos e emocionais na relação com o território, experimentado não apenas como
algo externo, mas também como parte destes sujeitos. Os sofrimentos, as alegrias, a
descrença, o inconformismo, a ansiedade e saudade, a dor e o sentimento de falta, o luto e a
paixão, sugerem que ao se mexer no território mexia-se também nas pessoas, em seu mundo
interno, em suas “subjetividades”, na medida em que os anos de trabalho e investimento
físicos e psíquicos, individuais e coletivos – fizeram daquele espaço mais que homenlad ou
abrigo, mas parte de si mesmos, elementos de suas subjetividades.
C(a): E aí chama pra dar uma volta, bora ver o rio. E aí você vai ter noção do que você
realmente quer estudar. Quando você chegar, aí não, borá ai dar uma volta, ver a casa
que eu morava, aquele pé de manga. Uma mulher em Rafael Jambeiro ela me chamou
pra me mostrar o pé de araçá, o pé de caju que cortaram. Não cortaram o pé, cortaram
ela. Então quando você chegar lá vai ter essa coisa de mostrar o tamanho do peixe de
pesca, os instrumentos de pesca, o tamanho da criança (C(a), Liderança do Pólo
Sindical de Feira de Santana, 31/10/2011).

A paixão revelaria dois componentes fundamentais da relação com o território: o


trabalho e a natureza afetiva do vínculo. Ama-se aquilo que se cuida, aquilo em que se
investiu, trabalho, dedicação, afeto. SL(o) morre não apenas porque perdeu as terras, mas
porque nestas terras havia parte de si mesmo. Quando a terra lhe foi “tomada”, desmatada, a
criação retirada, a família separada e enfim inundada, ele pode “não ter dito nada”, mas ficou
ali “com aquela paixão”. O objeto perdido era justamente o território, que como vimos, sendo
multidimensional, faz parte de muitas dimensões da vida social, inclusive para mim o da
subjetividade.
134

V. Resistências, Persistências e Reconstrução: a reinvenção do futuro

D(a): Quando a gente mora no lugar a gente acostuma naquele lugar. Quando a gente
chegou pra aqui, a gente achou assim uma coisa tão estranha né? Que parece que não ia
acostumar. Depois, hoje, eu já acho tão bonito, né? Porque já me acostumei. Também
26 anos já vai fazer. Já daria tempo de nascer o menino, crescer, ficar de idade, se casar.
Vê quanto tempo tem? Então hoje, já me sinto acostumada, em uma parte sim. Com os
vizinhos, graças a Deus, não tenho o que reclamar, tudo gente boa. E aí é isso aí, eu já
estou acostumada. Agora, o que eu sinto ainda é que não tem como a gente desenvolver
pra crescer, porque não tem como a gente lucrar nada que dê assim pra sobrar, nada pra
gente se desenvolver a crescer. É só amarradinho ali naquele lugarzinho (D(a), 53 anos,
atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 04/03/2011).
135

“Saudade sim, Tristeza não” ou para frente é que se anda

A atitude para com o passado encontrada nos entrevistados da Modelo será a matéria
deste capítulo. Se nos capítulos anteriores vimos a trajetória desse grupo no encontro com a
Barragem e as mudanças a partir daquele evento, neste buscaremos entender o que aconteceu
depois de tudo.
Faremos isso respeitando os movimentos da memória do grupo, que não tomou o
passado como lugar de lamento, mas sim como um momento vivido, que deixou duras
marcas, que alterou o curso de suas vidas, mas a partir do qual recomeçaram. A expressão
“Saudade sim, tristeza não” representava, além dos sentidos já trazidos, esta atitude individual
e coletiva, em que o passado é vivido com “saudade”, mas não com “tristeza”.
É como se dissessem que o que passou já passou; que a despeito de tudo, a vida
seguiu; que era preciso adaptar-se, reinventar-se neste novo lugar, até porque do inevitável –
a submersão lugar que viviam – optaram por seguir, transformando o reassentamento recebido
de maneira inacabada em “Modelo para todos os outros”.
Em termos individuais, essa relação com o passado se expressava da seguinte forma:
para situações difíceis que eram relembradas havia um momento de pausa e pulo para o
presente: algo como “mas hoje não é mais assim”. Neste sentido, o presente ou o passado
mais recente, era muitas vezes utilizado na narrativa como um contraponto ao que foi vivido.
Desta vida atual extraíam o sentido das mudanças e melhorias, mas também o escape à
tristeza e as emoções do passado que vinham a tona. No plano da memória coletiva o mesmo
mecanismo foi encontrado. Ao mesmo tempo em que contavam as histórias da chegada no
novo núcleo considerado estranho, difícil e, sobretudo cheio de faltas, falavam das lutas para
fazer daquele reassentamento um lugar melhor. Assim, das memórias mais familiares ou
comunitárias, das recordações mais individuais ou de processos coletivos, a atitude
permanecia: do passado difícil um presente melhor, sobre o qual se sentiam responsáveis.
Aparentemente, este grupo optou pelo “esquecimento” ou por uma passagem breve e
não lamuriosa pelo passado como uma forma de resistência pensando-se a resistência para
além das formas tradicionais (MENEZES, 2002; SCOTT, 2002). Depois de tantas perdas,
medos e tristezas, sustos e saudades, era preciso seguir em frente, lidar com as dificuldades e
reconstruir a vida.
136

Por tudo isto, por esta atitude encontrada nos entrevistados é que opto, neste capitulo,
por abordar o que veio depois, os primeiros anos e os anos mais recentes em que avaliam a
vida de uma maneira mais positiva. No final das contas, e era mais ou menos isso que
tentavam me dizer, o que lhes importava era o presente, e “para frente” é que devíamos andar,
na vida e na pesquisa.
Este capítulo então, trabalhará com as estratégias de Persistências, Resistências e
Reconstrução através das quais essas famílias reinventaram suas histórias, sentindo-se
protagonistas desta recriação. Trata-se também do último objetivo específico da dissertação,
a saber: “apreender, a partir da memória, as estratégias de resistência e reconstrução utilizadas
pela população antes, durante e depois do deslocamento compulsório produzido pela
barragem”.
Isso será feito em dois níveis de análise. Num primeiro plano, serão analisadas as
estratégias familiares de sobrevivência e adaptação em terras pequenas e sem irrigação. Neste
ponto, temas como Migração e Pluriatividade estarão entre nossas análises. Posteriormente,
na segunda parte do capítulo, serão trabalhadas as memórias no plano da ação coletiva,
buscando entender as transformações do reassentamento a partir das mobilizações da
comunidade. Conforme veremos, muitos processos identitários deste grupo, os sentimentos de
pertença, passavam nas memórias pela sensação de terem transformado o luga.
Duas palavras que apareciam constantemente articulando os dois universos: trabalho
e luta. A palavra Trabalho estava associada à retomada da vida no novo local,
cotidianamente, mas também em relação às estratégias familiares de sobrevivência. Era
através do trabalho que a vida seguia, que o lugar estranho tornava-se familiar, que o presente
e o futuro eram construídos. Já a palavra Luta, expressava mais o processo de reconstrução.
Somente através da “luta” é que conseguiram transformar o espaço cheio de problemas e
promessas não cumpridas numa comunidade. Apesar de distintas, estas palavras encontravam-
se constantemente para expressar a ideia tudo que ali víamos e que hoje dispunham não foi
recebido pronto, não foi “de graça”, mas sim construído, adquirido, conseguido com muito
esforço, muitas idas e vindas, de muita luta e trabalho.
137

V. 01) Estratégias familiares: chegada, estranhamento e a retomada da vida

A chegada ao reassentamento foi vivida como momento de ruptura, estranhamento, e


dificuldades. Tudo de algum modo era um pouco estranho: a terra – que nunca havia sido
cultivada – a casa – distinta e sem que eles participassem da construção – os vizinhos – já
que a maior parte chegou ao local sem os parentes com os quais viviam antes.
Para se ter uma idéia, entre os entrevistados da Modelo, não havia nenhuma família
vinda da mesma localidade que outra. Alguns vieram Fazenda Pocinho, Fazenda Magalhães,
Fazenda Toróró, Fazenda Trapiá, Batizal. Sendo assim, podiam até se conhecer de “vista”,
mas não eram vizinhos “de longas datas”
M (a): […] aqui quando a gente chegou aqui pra gente era tudo estranho, tudo estranho.
A gente conhecia só um único vizinho e aquele ali que era meu irmão. Esse daqui não
conhecia, nunca tinha visto esse pessoal. Aquela menina ali já conhecia que era num
lugar chamado Magalhães que era próximo a casa do meu pai […] mas quando a gente
chegou pra aqui foi uma dificuldade terrível, esse mundão que a gente não conhecia, era
tudo estranho, mas depois com um tempo a gente foi acostumando[...](M(a), 58 anos,
atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 02/03/2011).

Além de estranho, este momento inicial foi considerado difícil, já que o núcleo não
estava preparado efetivamente para a chegada das famílias e por isso não tinha água, luz e
tudo aquilo que havia sido prometido (como já falamos antes). Outro problema imediato que
se colocou na chegada foi a questão produtiva, já que ainda havia “muita mata” e por isso era
preciso roçar antes de começar o plantio. Como não havia projeto de irrigação, foi preciso
esperar o período de chuvas, que na região ocorre entre Março e Julho. Estas famílias portanto
chegaram justamente na época de seca entre Novembro e Fevereiro e por isso houve um
tempo em que não era possível produzir 68.. Apesar da dureza deste momento, a atitude
permanecia:
M (a): Teve que adaptar né? (risos) Teve que adaptar. Não tinha mais jeito. Lá já
tava tudo coberto de água. Assim que a gente saiu, a minha casa logo, assim que a gente
saiu cobriu logo (M(a), 58 anos, atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo,
entrevista em 02/03/2011).

Quando perguntados sobre este começo, sobre o que fizeram assim que chegaram e
encontraram essa situação, respondiam com naturalidade: trabalhar. Na verdade, o trabalho
68
Na experiência da barragem de Itaparica esta situação também ocorreu, entretanto diferente de Pedra do
Cavalo, acordou-se uma compensação monetária mensal, chamada VMT (Verba de Manutenção Temporária) de
aproximadamente 2,5 salários de referência, considerado “irrisório”, pago para compensar a impossibilidade de
trabalho e produção imediata das famílias. Apesar da idéia de ser uma verba temporária, expresso inclusive no
nome, na prática esta compensação só findou em 2004, havendo portanto inúmeras famílias que dependiam dela
pela ausência dos projetos de irrigação prometidos que levaram anos ou mesmo décadas para serem efetivados
(SCOTT, 2009).
138

foi trazido como o principal elemento de retomada da vida para essas famílias. Trabalho num
sentido produtivo (sobreviver), mas trabalho também num sentido simbólico, como atividade
sobre o mundo para recolocar a vida no seu devido lugar.
G (o): Ah, quando eu cheguei aqui fomos trabalhar, fazer roça, desmatar, que era tudo
mata. Aí a gente foi pra desmatar aqueles pastos tudo lá e fazer roça (G(o), 42 anos,
atingido/deslocado pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 05/03/2011, 2a
geração).

Neste ponto, é interessante destacar que as memórias mais detalhadas, menos


“esfiapada” e cheias de lacunas, eram justamente aquelas relacionadas com seus trabalhos.
Alguns deles chegaram a falar de medidas ou o tempo destinado a cada atividade,
demonstrando uma riqueza de detalhes bem distinta de outros temas.
L(o): Fazia mungunzá. Pra bater o feijão, pra fazer a colheita do feijão primeiro a gente
levava os menino tudo, as mulher levava eles... eu criei nove filho, a gente criou nove
filho. Ai quando os filho mais velho, mais crescidinho, ai todo mundo batia enxada de
manhã cedo. A mulher ficava em casa prontando o café pra levar. Quando era sete horas
pra oito horas a mulher chegava com o café pra gente tomar, a gente já tava no meio, a
gente chamava lá a tarefa... Mas eu não dava tarefa pra meus filhos não. Tinha gente
assim, pai que tinha que medir a tarefa, mas o que meu pai não fez comigo eu também
não fiz com eles. Eu nunca fiz isso com meus filhos. Criei meus filhos e nunca medi
uma tarefa pra dizer assim “se tu não cabar tu não tá desocupado”. Eu não fazia isso.
Trabalhava e na hora que chagava “vamo arriar?” “vumbora”. Todo mundo botava a
enxada na mão e ia embora. Na hora de ir com o solo muito quente, não deixa o chão
esfriar mais. Trabalhava até, até escurecendo a gente trabalhava. E voltava pra casa e
agora ia cuidar das coisa. Pra bater o feijão, pra plantar o feijão, a terra toda capinada eu
botava divisória, quando não fazia divisória, a gente mesmo ia lá plantar. Plantava e
quando era pra ronçar etá nossa senhora! Os milho ficava da altura dessa casa. É.
Chegava a ficar escuro, de dia dava de noite. Eu plantava duzentas, duzentas e tantas
quartas de milho, plantava era duas sacas de feijão... ainda trabalhando na enxada.
Plantava dois sacos de feijão. E ai agora pra carregar esses fechos de feijão na cabeça e
levar pras estacadas? Já ouviu falar em estacadas de feijão? (L(o), 66 anos, ex-
sindicalista, atingido/deslocado pela barragem de Pedra do cavalo, 02/03/2011).

Nota-se que o trabalho era um elemento de permanência em meio às mudanças, aquilo


que ainda tinham algum controle e familiaridade. Se retomarmos o tripé Terra – Trabalho –
Família que fundamenta a organização social camponesa poderemos entender a importância
deste elemento. Estando numa terra nova, com apenas uma parte da família, o trabalho
ganhava destaque como um esteio frente às mudanças.
No trabalho realizado por Cardel (2008), com memórias de migrantes na comunidade
Brejo dos Olhos D'água69, a autora também destacou o papel do trabalho na memória,

69
Esta comunidade está localizada no município de Barra, noroeste do Estado da Bahia, divisa com o Sul do
Estado do Piauí. Para saber mais ver artigo: CARDEL, L. Territorialidade, Liminaridade e Memória: um estudo
de caso sobre o choque entre imaginários e (re)construção de identidades (2008). Disponível em:
http://www.nuclearufba.org/files/texto1.pdf
139

funcionando como uma espécie de eixo articulador e organizador da vida e sobretudo das
lembranças, algo que ancorava o sujeito no mundo.
Neste processo de desterritorialização e reterritorialização, o trabalho, associado a uma
profissão, transforma-se numa âncora que fixa o indivíduo no mundo moderno, onde o
trabalho, enquanto mercadoria, é o sujeito das relações sociais. Ou seja, o trabalho
enquanto necessidade real e fonte de fantasias e desejos do migrante estabelece-se como
uma região moral dominante, criadora da roupagem identitária modernizante do
indivíduo deslocado (CARDEL, 2008, p. 21)

Mas se o trabalho foi uma “solução” neste primeiro momento, logo se converteu num
“problema” já que não havia espaço para o trabalho de todos nos lotes recebidos. Os filhos
cresciam, os adolescentes tornavam-se adultos e a sobrevivência objetiva e subjetiva das
famílias colocava-se em questão: como poderiam viver da terra numa área tão pequena? Esta
preocupação, que como visto anteriormente nas negociações com o Estado, tornou-se
efetivamente um ponto de tensão e por isso era preciso encontrar alternativas com brevidade.
De modo geral, duas questões apareceram com estratégias familiares – embora também
coletivas já que as encontramos em todo o grupo – para lidar com esta questão, a migração
nos primeiros anos e a pluriatividade mais recentemente.
a) Migração

No terceiro capítulo vimos que a questão da migração foi abordada quando se tratou
a separação das famílias. Em praticamente todas, a migração dos filhos ocorreu assim que
estes chegavam numa idade produtiva/adulta, sem variação significativa entre homens e
mulheres. Para retomar este processo, apresentamos a árvore de uma das famílias a de L(o),
ilustração 17, em que fica evidente a migração de sete dos seus nove filhos.
Ilustração 17:Árvore familiar de L(o), 66 anos; V(a), 65 anos; G(o), 42 anos.

Elaboração própria a partir de pesquisa de campo.


141

Além do trabalho com a árvore, reuni na tabela 06, os dados sobre a migração de todas
as famílias entrevistadas, que nos permite afirmar que pelo menos 62% dos filhos dos
reassentados entrevistados precisaram migrar nos anos seguintes após a mudança. Na coluna
do meio, estão representados o número de filhos 70 de cada família e no lado direito os que
migraram71.

Tabela 6: Migração dos filhos dos entrevistados da Modelo


Família de referência Quantidade de Filhos Filhos que Migraram
JN(a) 02 00
Diene (a) 07 02
L(o) e V(a) 09 07
M(a) e A(o) 06 06
JL(a) e E(o) 07 04
Total 31 19
Fonte: pesquisa de campo. Elaborado por VIDAL, 2012.

Este processo de migração não se restringiu à Fazenda Modelo e foi também


documentado nos estudos de Carmo (2007) e Palma (2007) em outros dois núcleos de Pedra
do Cavalo.
Atualmente vivem no núcleo de reassentamento da Ilha de São Gonçalo 19 famílias,
com um total de 85 pessoas, sendo 52 crianças e adolescentes, 19 homens e 14
mulheres. Para a maioria dessas pessoas, viver na Ilha de São Gonçalo tem se tornado
difícil a cada ano, resultando na emigração de jovens e crianças para Santo Estevão e
São Gonçalo dos Campos em busca de novas oportunidades de emprego e renda. Há
fatos que chamam a atenção neste núcleo. O primeiro é que apenas os mais velhos
resistem a sair da Ilha, devido a todo histórico de lutas para conquistar o lote em que
vivem, quando da organização dos atingidos pela barragem. Das 52 crianças que vivem
na ilha, 34 estudam na sede do município, enquanto que 18 estudam na escola do
núcleo. Segundo relatos dos moradores, muitos dessas crianças estão aguardando o
término de seus estudos secundários para viverem em Santo Estevão na casa de parentes
que já se estabeleceram na cidade, principalmente por conta do emprego na indústria de
calçados, que recruta jovens com apenas o ensino médio. Outro destino é Feira de
Santana, entretanto, muitos acabam retornando ao núcleo pelas dificuldades encontradas
no competitivo mercado de trabalho do comércio naquele município (PALMA, 2007,
p.104).

A maior dos jovens da Modelo migraram para São Paulo, considerado um lugar de
oportunidades ou onde tinham parentes para recebê-los. A segunda opção citada foi Salvador,
mais próxima, e que também permitia opções de trabalho. Em último caso, estes jovens iam
para a “Rua” – referência à sede do município de Santo Estevão – que apesar de ser muito

70
Que ainda eram vivos e que foram com seus pais para o núcleo Modelo.
71
Importante destacar que houve casos de migração de irmãos ou tios que não foram reassentados, mas este
número não entrou aqui, pois estamos nos atendo especificamente àquela unidade familiar que vive num mesmo
lote no núcleo de Modelo.
142

perto é entendido como um lugar não-rural onde os filhos buscavam outras oportunidades de
trabalho.
Nos três casos, as diferentes distâncias pouco importavam. O que havia em comum era
a sensação de que a agricultura e a terra não conseguiu prover a família. A migração neste
caso apareceia como um estratégia de reprodução social do grupo que precisava elaborar
formas concretas e simbólicas para lidar com os limites da propriedade. No estudo de Cardel
(2008), citado anteriormente, a migração foi utilizada como estratégia familiar para lidar com
a questão da herança, evitando assim divisão do patrimônio cada vez mais.
Se a migração aparecia como um sintoma dos problemas da agricultura e mais ainda
dos problemas que a barragem poderia ter contribuído para resolver e acabou por agravar,
também aparecia como uma solução, provisória e coletiva, para ao mesmo mudar e
permanecer. Pode-se imaginar que ao migrar, as pessoas abandonam a terra ou a agricultura,
entretanto em muitos casos, o que vimos foi o oposto, a migração como uma forma de
resistência e persistência para, num futuro próximo, poderem continuar senão vivendo
da terra, ao menos próximo dela e de seus parentes.
V(a): Conviveram lá mais já voltaram […] Só tem um lá.

L(o): Só tem um. É que naquela época muitos saíram pra as grandes cidades e depois
passado tempo, levaram bem oito anos por lá, oito, dez anos por lá e depois voltou pra
cá de novo. Arrumaram alguma coisinha, fizeram as casinha e coisa e tal e tão vivendo
por aqui de novamente (V(a) e L(o), ex-sindicalista, atingido/deslocado pela barragem
de Pedra do cavalo, 03/03/2011)

E isso foi justamente esse o dado encontrado. Em muitos casos, os jovens da Modelo
migraram (e de lá ajudaram suas famílias) e retornaram para Santo Estevão anos anos depois,
as vezes para viver com seus pais trabalhando na terra ou em para trabalhar em outras
ocupações que, apesar de não serem mais ligadas a agricultura, lhes permitia a proximidade
com a terra e família. Em alguns casos, estes jovens continuavam cultivando na terra dos pais
sem que isso representasse sua renda principal.
G(o): Eu fui pra São Paulo com 18 anos.

F(pesquisadora): Logo depois então.

G(o): Foi logo logo. Porque o trabalho ali não tinha, não tinha como ganhar dinheiro,
sabe. Não era fácil pra ganhar dinheiro aqui. Aí eu falei, olha meu pai, eu vou pra São
Paulo. Nessa época minhas tias já moravam em São Paulo (…) Lá eu trabalhei em posto
de gasolina; trabalhei em padaria; trabalhei no Diário do Grande ABC onde faz jornal,
trabalhei seis meses no Diário do Grande ABC (…).

F(pesquisadora): E aí você ficou seis anos e voltou?


143

G(o): Voltei... Eu fui mesmo só porque aqui não tinha renda pra ganhar dinheiro. Mas
eu nunca tinha vontade de ir e quando eu fui, todo ano eu vinha em casa, sabe. Todo ano
eu vinha (G(o), 42 anos, atingido/deslocado pela barragem de Pedra do Cavalo,
entrevista em 05/03/2011, 2a geração).

Na família de G(o), trazido na fala anterior e na ilustração 15, ao retornar, ele e seus
irmãos passaram a envolver-se em atividades de serviço, abrindo seus próprios negócios em
Santo Estevão. No começo G(o) comprou um carrinho de cachorro quente e anos depois,
abriu um pequeno mercadinho cujo nome é indicativo da relação com a comunidade:
Mercadinho Modelo. Mais interessante ainda, é que ao lado do seu negócio, os irmãos
abriram outros: uma borracharia, uma capotaria, um bar e um “armarinho”, todos próximos,
na saída da cidade no caminho do reassentamento, com o mesmo nome: Modelo.
G(o): Todo mundo gostou. Aí quando eu me mudei pra aqui, quando eu mudei pra aqui,
eu cheguei e falei ah qual é o nome do mercadinho que a gente pode colocar, aí eu falei
assim pra minha mulher, borá colocar Mercadinho Modelo se a gente é da Modelo, pelo
menos que é um ponto de referência. Ë um ponto de referência que a gente já é da
Modelo. Aqui já é praticamente a descida já pra Modelo. Então vamos colocar
Mercadinho Modelo, aí ficou o nome Mercadinho Modelo. Foi tanto que meus irmãos
também começaram a construir aqui, aí meus irmãos colocou ali, aí é tudo dos meus
irmãos ói. Meu irmão colocou Bar Modelo, lá tem a borracharia que também é de meu
irmão colocou Borracharia Modelo. E aqui ó, capotaria que faz sofá, Capotaria Modelo
também (G(o), 42 anos, atingido/deslocado pela barragem de Pedra do Cavalo,
entrevista em 05/03/2011, 2a geração).

b) Pluriatividade

A pluriatividade se refere à dedicação de membros de uma família rural ao exercício


de atividades econômicas e produtivas não estritamente ligadas à agricultura e ao cultivo da
terra (SCHNEIDER, 2003). Trata-se de um termo relativamente recente, adotado nas diversas
ciências sociais há pouco mais de 40 anos e que se insere num debate sobre as transformações
sociais no mundo rural e suas relações com o modo de produção capitalista. Para Schneider e
alguns autores contemporâneos (CARNEIRO, 1998; NEVES, 1995), a pluriatividade seria um
bom exemplo das transformações no campo, em que apesar da indiscutível importância da
agricultura como dimensão produtiva e econômica, vem sofrendo mudanças e perdendo
alguns espaços.
De acordo com alguns autores, a pluriatividade seria um fenômeno que vem se
generalizando desde os anos 70, quando famílias rurais passaram a integrar-se a outras
atividades ocupacionais. No começo dos anos 80, do ponto de vista acadêmico, haviam dois
termos comuns para se referir a este processo, Part-time farming (agricultura de tempo
parcial) e pluriactivité (pluriatividade). Estas nomenclaturas estavam ligadas a tradições
144

intelectuais diferentes – a primeira norte americana e a segunda francesa – que abordavam


estas mudanças sociais de maneiras distintas. No primeiro entendimento, do Part-time
farming havia uma ideia subjacente de dedicação em tempo integral à agricultura ou cultivo
da terra; já no segundo, uma concepção mais ligada à ideia da agricultura como uma
monoatividade, em que a integralidade das atividades estaria ligada a agricultura
(SCHNEIDER, 2003). Com o tempo, e por caminhos diferentes, estes debates foram se
aproximando e já nos anos 80 o termo pluriatividade passou a ser adotado pelos diversos
autores por ser considerado mais amplo, dinâmico e adequado para análise social deste
fenômeno.
[...] o termo procura focalizar as diferentes atividades e interesses dos indivíduos e das
famílias que vivem na unidade produtiva. Preocupa-se tanto com a reprodução social e a
participação no mercado de trabalho rural, como com a terra e as questões agrícolas. A
pluriatividade implica uma forma de gestão do trabalho doméstico que sempre inclui o
trabalho agrícola, o que não quer dizer que esta atividade seja exclusiva ou mesmo a
mais importante. Outras atividades podem ser assumidas com o objetivo de sustentar ou
de dar suporte à unidade doméstica, ou ainda serem motivadas por considerações não
relacionadas à agricultura. A pluriatividade permite-nos questionar o pressuposto de que
a full-time farming seja tanto a norma, e, portanto, algo positivo, quanto um estado
temporário, ou um mal necessário, no desenvolvimento econômico das unidades
produtivas, das famílias ou das áreas rurais […] (FULLER 1990 citado por
SCHNEIDER, 2003, sem página)

Alguns historiadores entretanto questionavam a “novidade” deste processo, pois os


camponeses sempre teria praticado atividades não agrícolas. Schneider (2003) considera esta
análise válida, havendo inclusive referência a atividades “acessórias” ou “complementares” a
agricultura em autores clássicos como Kaustsky e Chayanov. Entretanto, para ele, deve-se
considerar que o termo pluriatividade é recente e busca analisar um fenômeno mais
contemporâneo de expansão capitalista no campo que não só expropria as terras camponesas,
como cria novas modalidades de trabalho utilizando a mão de obra dessas famílias como é o
caso de muitas indústrias que se instalam em pequenas cidades (SILVA, 2008; SCHNEIDER,
1994).
Mas porque trabalhar com este tema? É que quando iniciei as entrevistas, já com a
agente de saúde deste núcleo a questão da produção apareceu como um problema. Na maior
parte das famílias apenas a agricultura não garantia a sobrevivência e por isso era preciso
encontrar outras formas de trabalho. Um primeiro aspecto apontado por eles referiu-se à
migração e o segundo ao trabalho em outras áreas. Destacou-se, entre as atividades, a
crescente contratação de trabalhadores por uma indústria de calçados, instalada em Santo
Estevão há 12 anos. A DASS, antiga Dilly, emprega hoje mais de 3.000 trabalhadores no
145

munícipio de Santo Estevão e região e por conta disto uma parte significativa dos jovens que
antes migravam, passaram a trabalhar nessa empresa.
R(a): [...] antes os jovens saiam mais [...] depois da Dilly parece que é 11 anos que vai
fazer a Dilly, é mais ou menos o tempo que ele deu uma sossegada (R(a), 33 anos,
atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 28/02/2011, 2a
geração).

D(a): Aqui ainda a felicidade daqui foi a fábrica de sapato que apareceu aqui. E o
pessoal corre tudo atrás ou morrendo ou vivendo, porque bem não faz a ninguém,
porque os tóxicos que tem lá dentro, as colas (D(a), 53 anos, atingida/deslocada pela
barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 04/03/2011).

Este dado trazido pelos entrevistados foi confirmado no trabalho com as fichas de
saúde feito nesta pesquisa. Somente a DASS emprega quase 10% dos que vivem na Modelo,
um total 45 pessoas. Além disso, pode-se ver que embora a agricultura ainda seja
predominante e a atividade realizada por mais pessoas, não ultrapassa 31% dos moradores da
comunidade. Na tabela 07, temos os dados sistematizados com as principais ocupações dos
moradores da Modelo, na qual vê-se a diversidade de atividades ocupacionais do grupo.
Tabela 7: Quantidade e Porcentagem de pessoas por ocupação
Ocupação Total Percentual
Aposentado 43 8%
Comerciante 4 1%
DASS 45 9%
Doméstica 5 1%
Estado 9 2%
Estudante 141 28%
Lavrador 158 31%
motorista 7 1%
Pedreiro 10 2%
Outros 15 3%
Sem Informação72 74 14%
Total geral 511 100
Elaboração própria a partir das fichas de saúde do munícipio de Santo Estevão.

A construção civil, que emprega 10 pessoas apoareceu como um ramo importante, que
juntamente com o Estado que empregava 09 pessoas, representando 2% dos moradores (cada
um). Havia ainda 04 comerciantes – que possuem pequenos negócios na comunidade - 05
trabalhadoras domésticas, 07 motoristas e 15 pessoas ligadas a Outras atividades como
auxiliar de enfermagem, borracheiro, carpinteiro, costureira, entregador de gás, pescador,
vendedor e zelador (em anexo 07 ver tabela detalhada).

72
Há 74 fichas sem informação pois envolvem pessoas que podem estar pessoas sem trabalhar, impedidas por
algum adoecimento ou deficiência ou simplesmente porque a agente de saúde não dispunha da informação.
146

Outro aspecto importante que tem contribuído decisivamente com a sobrevivência das
famílias é a aposentadoria rural. Este dado apareceu nas entrevistas, mas também nos dados
quantitativos. Conforme apontam as fichas, em 2011, havia 43 pessoas na Modelo que
recebiam aposentadoria rural, representando 8% do total de moradores. Este dado tornava-se
ainda mais significativo quando cruzamos o questionário individual com aquele ligado aos
dados por família e descobrimos que em 37 famílias há pelo menos 01 aposentado. Neste
caso pode-se dizer que há aposentados em pelo menos 28% das casas/famílias da Modelo,
representando quase 1/3 das casas.
Além da importância numérica, os aposentados têm contribuído para diminuir a
migração. Em muitos casos, estes eles representam a única fonte de renda estável e garantida
e por isso têm tido grande importância social e econômica. Em todas as famílias trabalhadas
havia pelo menos 01 aposentado e todos eles falaram da importância deste direito para uma
vida melhor. Muitos deles estavam com netos pequenos que passavam o dia em suas casas,
enquanto os pais trabalhavam. Por isso participavam também de boa parte dos processos
educativos das crianças.
R(a): Naquele momento ali, assim hoje, hoje talvez a gente olhe assim as famílias já se
adaptaram né. A gente hoje já conseguiu uma adaptação melhor por conta, se aprendeu
né. A criar, o tipo que eu te falei ovinos, caprinos. Não que lá, não criava, mas por
exemplo, você pega um pescador e joga num local onde não tem rio, né. Pense aí que no
início isso foi uma dificuldade muito grande, muito grande mesmo. Até se adaptar foi
bastante complicado. Mas hoje, graças a Deus, hoje tá melhor, até porque assim a gente
tem essa quantidade de família aí, pouquíssimas casas que não tem um aposentado, não
é? Os pais já se aposentaram, então hoje eu te digo que a sobrevivência, a sobrevivência
hoje em torno da aposentadoria, dos aposentados (R(a), 33 anos, atingida/deslocada
pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 28/02/2011, 2a geração).

JL(a): Que eles não tinham lugar de morar, né? A leva da gente é de 10 tarefas. Então, a
gente teve uma precisão, porque antes da gente aposentar passava muita dificuldade
mesmo […] esse salário quando acaba de receber, a gente paga a água, a luz, compra o
comestível pra mode de passar o mês. Quando acaba de receber ali, já é pra pagar. Tem
semana ai que, eu tenho dois netos que mora mais eu (JL(a), 71 anos, trabalhadora da
antiga fazenda que virou Modelo, entrevista em 01/03/2011).

Voltando aos dados sobre as ocupações, fizemos um esforço de reunir algumas destas
ocupações classificando-as em Rural e Urbano, na medida do possível73. Conforme pode ser
visto, ao se retirar os lavradores, aposentados rurais e estudantes, restam 186 pessoas que não
vivem da agricultura familiar. Deste valor, subtraímos 74 casos em que não se tinha
informações sobre a ocupação (ver tabela 07), restando portanto 112 pessoas ou 22%. Assim,
pelo menos 1/5 das pessoas desta comunidade sobrevive hoje de atividades não diretamente

73
Em cada categoria informamos ao lado as ocupações que foram reunidas.
147

ligadas à terra. Este dado é ainda mais significativo ao se considerar apenas aqueles em idade
produtiva (327). Neste caso o número sobe para 34% de pessoas que, em idade produtiva,
não dependem da agricultura como fonte de renda principal.

Tabela 8: Tipos de ocupação


Tipos de ocupação total
Sem informação 74
Estudantes 141
RURAL (aposentado rural e lavrador) 201
URBANO (DASS e Comerciante) 49
Outros(domésticas, funcionários públicos, motorista, pedreiro e outros) 46
Total geral 511
Elaboração própria a partir das fichas de saúde do munípio de Santo Estevão

Por todo este quadro, sugere-se que tanto a pluriatividade quanto a migração foram
utilizadas pelo grupo como estratégias de sobrevivência em terras pequenas e sem tecnologia
apropriada. Ao se tratar estes dois processos sociais como estratégias, opta-se por uma
perspectiva de análise que considera estas famílias como ativas no processo de tomada de
decisão face às condições materiais de seu ambiente socioeconômico. Como sugere Schneider
(2003) estas estratégias buscam viabilizar não só a sobrevivência econômica, mas também
social, cultural e moral do campesinato.

O conceito de estratégia aqui utilizado refere-se a um processo de tomada de decisão


em relação à alocação da força de trabalho familiar considerando as necessidades do
grupo/capacidade produtiva da propriedade. Nem sempre a quantidade de pessoas disponíveis
para trabalho adequa-se ao tamanho ou mesmo às condições de produção numa unidade
familiar. A incompatibilidade entre a produção-consumo-necessidade impõe às famílias a
necessidade de decidir sobre os melhores caminhos para alocar seus recursos garantindo a
reprodução do grupo. Nesta perspectiva a estratégia é considerada como uma ação consciente,
planejada e racional, ainda que condicionada pelas relações sociais, econômicas, culturais e
mesmo espaciais do contexto destas famílias.
Passemos agora para as estratégias realizadas mais no plano da ação coletiva.
148

V. 02) Um projeto coletivo para a área coletiva

As dificuldades trazidas pelos entrevistados no plano familiar também tiveram


expressão em termos coletivos na memória do grupo. Todos os entrevistados destacaram que
na chegada ao reassentamento havia muitas faltas, todas elas de grande efeito no cotidiano: a
falta de escola, do posto de saúde, de uma praça e de espaços de lazer, a falta da Igreja, da
casa de farinha, da luz, dos projetos de irrigação e principalmente da água gerava transtornos
nessa fase de adaptação. Por conta disto, a imagem do “vazio” encontrado na área coletiva se
destacava entre as recordações contrastando com tudo que lhes fora prometido anteriormente.
L: (...) Eles prometeram igreja e não fez, prometeu posto médico e não fez, isso aí foi
por causa da DESENVALE, tudo foi rejeitado. Então, essas coisas tudo, praça, esses
negócios não foi feito na época deles, foi uma reivindicação que a gente fez com o
prefeito na época (L(o), 66 anos, ex-sindicalista, atingido/deslocado pela barragem de
Pedra do cavalo, 02/03/2011).

Este “vazio” apareceu no desenho coletivo que fizeram quando pedi que mostrassem
como era o núcleo de Modelo quando lá chegaram em 1985. Na ilustração 18, encontramos
um croqui construído a partir do desenho feito pelos entrevistados. Nele, a área coletiva de 10
tarefas, reservada pela DESENVALE para a construção dos equipamentos comunitários,
aparece praticamente vazia, tendo apenas algumas poucas construções da antiga fazenda
comprada do Senhor Francisco Lessa antes da criação do núcleo: a casa do fazendeiro e mais
seis casinhas menores dos trabalhadores da fazenda.
Ilustração 18: Croqui com representação do núcleo de reassentamento Modelo em 1985

Fonte: desenho dos entrevistados. Elaborado por Farias (2011).


150

As lembranças do “vazio” ou dessas “faltas”, não duram muito tempo e também, neste
ponto, as memórias seguem em frente no sentido de mostrar que tudo isso mudou, que “já não
é mais assim”. Os entrevistados falaram dessas ausências contrapondo este passado difícil
com as ações coletivas que fizeram para conseguirem o que havia sido combinado. Neste
processo, o grupo percebe-se como responsável, como protagonista das mudanças, fruto de
suas lutas durante longos anos
D(a): Prometia tudo isso, água, luz que ia ser beneficiado, que a gente ia ser
beneficiado. Hoje, nós estamos sendo beneficiado, mas através de luta nossa junto
com a prefeitura, sindicato e que a gente conseguiu, graças a Deus agradecer a Deus e a
luta de alguém que foi mais experiente que sempre foi puxando e as pessoas
acompanhando (…) foi reunindo sempre buscando projeto, incentivando as pessoas e
até que Deus ajudou e foi desenvolvendo que hoje graças a Deus, já está bem melhor,
mas logo no início fia, a gente sofreu aqui, sofreu. Não foi fácil não. Muita
dificuldade a gente encontrou pela frente (D (a), 53 anos, atingida/deslocada pela
barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 04/03/2011).

Uma das primeiras ações relembrada foi em relação à escola. Conforme contam, na
chegada ao Núcleo, não havia escola para as crianças e por isso precisaram intervir com
rapidez, pois as aulas começariam em breve. Umas das entrevistadas era professora e lembra-
se que, num primeiro momento, improvisaram na sua casa.
M(a): Eu já ensinava lá no Trapiá. Eu fiquei preocupada, os menino logo tudo, mas tava
no período de férias, a gente ficou de férias. Aí que quando começou, quando chegou o
tempo das aula, de tempo de voltar as aulas, eu disse: “O que é que eu faço?”. O pessoal
tudo começou a me procurar. “Ah, eu quero matricular meu filho”. Outro: “Quero
matricular”. Eu comecei a escola aqui na minha casa, na varanda da minha casa
comecei a escola. Comecei uma turma com 53 alunos, aqui na varanda da casa (M(a),
58 anos, atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em
02/03/2011).

Naquela época, a solução encontrada pela DESENVALE foi a reforma da casa da


sede da antiga fazenda. Durante muitos anos, esta solução improvisada foi a única disponível,
o que gerava problemas, pois o espaço era pequeno e por isso crianças com idades e séries
diferentes dividiam a mesma sala. Somente em 2002, 17 anos após a mudança e o
“improviso” é que, através de ações junto à prefeitura de Santo Estevão, conseguiram um
prédio específico destinado a abrigar a escola do núcleo de reassentamento.
JL(a): Nada! Tudo era oco! Vazio! Só as casa que ficou ... tudo nós e a prefeitura.
Porque, como é que dize... Tinha o G(o), seu L(o) que era que era dá...era o cabeceira
(JL(a), 71 anos, trabalhadora da antiga fazenda que virou Modelo, entrevista em
01/03/2011).

Frente a situação encontrada, este “vazio” mantiveram-se organizados no período


anterior à mudança, não mais para conseguir um reassentamento, mas para fazer dele lugar
151

digno de seus moradores. Neste sentido, associado à palavra luta, encontramos a expressão
reunião, que aparecia constantemente nas falas. Nas lembranças dos moradores da Modelo, o
termo reunião estava associado aos processos de organização, antes e depois da mudança.
G(o): Reunião porque o sindicato, meu pai na época era presidente do sindicato, aí o
sindicato sempre fazia reuniões, pra convidar o povo pra ir orientando como era que a
gente tinha que fazer, entendeu? Como era que a gente tinha que decidir as coisas, como
era que a gente tinha de cobrar o que a gente tava precisando. Porque quando a gente
mudou pra aqui a gente não tinha, a gente não tinha posto médico, colégio a gente não
tinha. O colégio ali era a sede da associação, a casa era a fazenda, a sede da fazenda,
que a DESENVALE transformou num colégio. Aí a gente tinha que fazer o quê, a gente
teve que se unir pra a gente cobrar colégio, cobrar posto médico, pra a gente cobrar
água encanada, pra a gente cobrar energia, que nada disso quando a gente mudou pra aí
a gente tinha. A gente não tinha água, não tinha energia, não tinha posto médico, não
tinha nada disso (G(o), 42 anos, atingido/deslocado pela barragem de Pedra do Cavalo,
entrevista em 05/03/2011, 2a geração).

Novamente o Sindicato de Trabalhadores Rurais apareceu em destaque, como


principal agente organizador, figurado através de alguns moradores militantes que atuavam
como lideranças no processo de mobilização. Dona JL(a), citada um pouco antes, traz o nome
de seu L(o) e seu filho G(o) associados à expressão “eles eram o cabeceira”, numa alusão ao
papel de direção que eles cumpriam.
Junto com eles, senhor O(o), V(o), N(o), foram lembrados, todos ligados ao STR
formal ou informalmente. Neste ponto, há que se suspeitar que parte da capacidade
organizativa desta comunidade, que começou antes da mudança para o núcleo, possa ser
atribuída ao fato de existirem pelo menos 04 lideranças ligadas ao sindicato, sendo dois
diretores. Estes dois já eram diretores do STR de Santo Estevão antes da barragem e como
seriam atingidos passaram a atuar como lideranças na região. Certamente a proximidade
destes militantes permitiu ao grupo da Modelo uma qualidade de articulação política diferente
de outros núcleos que, embora também organizados por eles, não os tinham da mesma forma
no cotidiano.
Na dissertação de Carmo (2007) e Palma (2007) há referências justamente à
precariedade da organização dos núcleos por ele estudados, dado que se diferencia um pouco
das percepções dos moradores da Modelo sobre seu processo. Para não restringir este debate
apenas as memórias do grupo, trazemos dois dados que corroboram com suas percepções.
Ao entrevistar as técnicas da DESENVALE, fui questionada sobre o núcleo com o
com o qual estava trabalhando e ao responder que era o núcleo Modelo, elas disseram que se
tratava de um grupo diferenciado sempre questionador.
152

X(a): Ahh, a Modelo era boa, você pegou uma comunidade que era diferenciada. Tanto
assim em termos de organização. O pessoal era mais organizado, o sindicato na época
também tinha militantes […] questionavam muito, conseguiam muita coisa, faziam
muitos questionamentos (X(a), ex-técnica da área social da DESENVALE, 11/10/2011).

Além deste dado, foi encontrado nos relatórios da CAR de 1989 um pequeno resumo
de cada núcleo visitado com informações sobre o grau de organização social dos
reassentamentos. O quadro geral do relatório coaduna com a situação encontrada por Palma
(2007) e Carmo (2007) em seus núcleos, em que havia uma grande precariedade e
desorganização, entretanto no caso da Modelo, havia uma situação um pouco mais favorável,
sendo levantadas algumas hipóteses pelo próprio documento
NÍVEL DE ORGANIZAÇÃO - A comunidade da Fazenda Modelo por ser composta na
sua maioria de pessoas com laços de parentesco e vizinhança, apresenta uma certa
disposição em participar de atividades associativas e de buscar coletivamente solução
para seus problemas imediatos. A proximidade com a sede do município muito
contribui para a sua mobilidade e acesso aos canais decisórios. Embora ainda
embrionária, a organização da comunidade vem se delineando na formação de
comissões responsável pela casa de farinha, pela representação de ruas e pela
participação no Sindicato de Trabalhadores Rurais (o presidente e morador do núcleo)
(CAR, Plano Operativo, 1989)

Com relação às reuniões que serviam para mobilizar o reassentamento, pode- se dizer
que, além de terem cumprido seu papel tradicional na organização política do grupo, parecem
ter contribuído também para aproximar as pessoas, fazer com que pudessem se conhecer aos
poucos e trocar experiências sobre a vida no novo lugar. Além disso, eram nessas reuniões
que se organizavam atividades comunitárias muito lembradas por eles como as festas, leilões,
bingos que mobilizavam a todos e aproximavam as famílias.
JL(a): Fazia, fazia. Agora que o povo ficou, depois dessas coisas todas que tá havendo
no mundo é que o povo ficou um pouco mais afastado, mas tinha aqui em riba nessa
igreja, com a associação com o povo tudo e buscou mesmo. Fazia aquela reunião, fazia
aquele leilão, tudo junto, juntava todo mundo, todo mundo brincava. As mulher mesmo
arrematava leilão. Então quando chegava nas festa assim... Seis de Janeiro a gente fazia
aquela festinha da gente, cantava o Reis, sambava, dançava, brincava, e era todo mundo
junto. Graças a Deus nunca teve (JL(a), 71 anos, trabalhadora da antiga fazenda que
virou Modelo, entrevista em 01/03/2011).

Entre as festas mais lembradas destacaram-se a Festa de Reis, o São João com suas
quadrilhas, o Natal e o dia das crianças. Havia também algumas festas fora do calendário mais
tradicional, como os leilões, festas de casamento e a chamada “cavalgada”, uma festa que
envolvia um passeio de cavalo pela cidade.
Com o passar do tempo, cerca de cinco ou seis anos após a mudança, resolveram
formar uma Associação de Moradores, chamada por eles Associação Beneficente
153

Comunitária de Modelo, que seria responsável por manter a organização da comunidade e


interagir com as instituições públicas.
G(o): Ia se conhecendo. Aí a gente ia elaborando projetos, aí a gente não tinha
associação, a gente criou uma associação isso foi com o tempo já. Daí a quatro ou cinco
anos a gente criou uma associação (G(o), 42 anos, atingido/deslocado pela barragem de
Pedra do Cavalo, entrevista em 05/03/2011, 2a geração).

D(a): [...] Aí, depois tentaram organizar uma associação e aí, veio umas pessoas reuniu-
se Seu Leonídio, Seu Emílio, Romão Barbosa não sei de que lá. E aí, juntaram com meu
esposo, Otávio que trabalha no sindicato e aí formou um grupo, junto com a EBDA e
começou uma associação sabe? Pra buscar projeto e coisa […] (D(a), 53 anos,
atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 04/03/2011).

Todo esse quadro de precariedade e abandono vivido pela Modelo não era pontual e se
estendia a praticamente todos os outros núcleos, assim as “lutas” tão lembradas por eles não
envolviam só a Modelo, mas também outros núcleos e sindicatos.
Retomando os estudos internacionais de Colson e Scudder (1982) e as quatro fases nos
processos de reassentamento (Planejamento e Divulgação; Implantação; Desenvolvimento e
Emancipação), vimos que as duas primeiras fases que acabam quando ocorre a mudança das
populações para os núcleos. Já as fases seguintes (Desenvolvimento e Emancipação)
deveriam envolver toda uma política de acompanhamento e assistência a essas comunidades
criadas artificialmente até que, após um certo período pudessem efetivamente se “emancipar”.
Na prática, entretanto o que ocorre é bem diferente. Se nas duas fases anteriores a presença do
Estado costuma ser constante, nas duas últimas se reduz drasticamente, quando não há mesmo
um completo abandono
A fase de “Desenvolvimento é descrita como variável, e as vezes nunca realizada, pelos
autores, e argumento que a demora ou total fracasso na execução dos benefícios na
terceira fase é estrutural, garante que a quarta fase, Emancipação, seja realizada de uma
forma ficcional e como alivio de cargos e dívidas sociais pelos implementadores e
idealizadores. Ou seja, a criação de 4 etapas idealizadas permite a execução das
primeiras duas (planejamento e execução) com se fossem levar tranquilamente à
terceira, mas termina por mascarar a secundarização estrutural do beneficio da
população reassentada num discurso de planejamento mais flexível (SCOTT, 2009,
p.15).

O que se pretende dizer com isso é que, o completo a situação das comunidades no
pós-deslocamento de Pedra do Cavalo, longe de ser um caso apenas desta barragem ou do
Estado da Bahia, tem sido na verdade uma tônica dos projetos de desenvolvimento deste tipo.
Para que possamos nos aproximar do quadro experimentado por essas comunidades de
Pedra do Cavalo nos anos pós-deslocamento, vale a pena recuperar alguns diagnósticos feitos
pelos técnicos da CAR em 1989 e 1991.
154

Segundo esses relatórios, a falta dos equipamentos comunitários acordados anos antes
e de condições adequadas para estas famílias viverem era comum na maior parte dos núcleos,
mesmo já tendo passado seis anos desde a mudança. O problema, parecia circular em si
mesmo, já que muitos descumprimentos afetavam outros num círculo interminável. Por
exemplo, em 1989, quando mais uma vez as comunidades reivindicavam os títulos de terra, a
resposta da DESENVALE remetia justamente às opções que ela fez em relação ao tamanho
das terras. Diz o documento:
Somado a isto, ainda existe a insegurança por parte das famílias quanto a situação legal
do imóvel que se encontra sob domínio da Desenvale. A escritura definitiva constitui a
maior reivindicação de todos os núcleos. Apesar das inúmeras gestões feitas não só
pelos técnicos mais principalmente pelo movimento sindical, aos órgãos competentes
(DESENVALE, CAR, SERAC) não houve ainda uma solução para o caso. A
DESENVALE coloca que o que vem dificultando a legalização é exatamente o
tamanho da área (CAR, 1989, pp03)

Essa falta de títulos por sua vez dificultava o acesso aos créditos, conforme resposta
do governo estadual aos pleitos do movimento dos atingidos. Nesta resposta, o governo
informa, sem cerimônia, que esta dificuldade se dava justamente pelo fato de não terem as
escrituras definitivas. O problema é que em nenhum momento se garantia efetivamente a
solução deste problema que passava justamente pelo Estado.
O crédito não está sendo conseguido devido a ausência de documentos de propriedade
passado em nome dos reassentados (DESENVALE, Resposta às reivindicações dos
trabalhadores em 1987).

Em relação à questão da água, o cenário era igualmente delicado. Mais uma vez era
notável o descaso com essas comunidades já que 6 anos após o deslocamento, o
abastecimento continuava sendo feito por carro-pipa74 . As notícias sobre o futuro indicadas
nos relatórios eram muito ruins, pois concluíam a impossibilidade de que alguns núcleos
pudessem ter acesso a água com brevidade. Em alguns casos “descobriu-se” – se é que é
possível falar em descoberta – que a água dos lençóis freáticos era salobra. Em outros que os
poços perfurados não dispunham de vazão suficiente. Em outros ainda, que o solo era
pedregoso demais, impedindo a perfuração dos canos “pelo alto custo” que custaria
(CARMO, 2007).
O reassentamento neste núcleo (Fazenda Nova)75 efetivou-se com a garantia por parte
da DESENAVALE de implantação imediata de um Projeto de Irrigação o qual foi
iniciado após análise realizada por especialistas da CAR, concluiu-se ser inviável
economicamente sendo então paralisado (CAR, 1991)

74
Principal medida de responsabilidade garantida pela CAR
75
Esta situação torna-se ainda mais grave quando nos lembramos que os STRs foram contra a compra desta área
por considera-la inadequada para a construção de um reassentamento.
155

O núcleo Modelo encontra-se até então sem um sistema de abastecimento d'água


definitivo. Houve tentativa de implantação de um poço tubular inviabilizado em função
da água da região ser salinizada. Foi iniciado um estudo de viabilidade de um sistema
de captação de água do lago (pelo núcleo de infraestrutura, mas que não teve
prosseguimento por falta de recursos (CAR, Informações Gerais sobre os núcleos de
reassentamento, 1991, sic)

Se nos momentos anteriores a promessa de melhoria das condições produtivas destas


terras estava justamente nos projetos de irrigação, tornava-se cada vez mais claro que
novamente não receberiam aquilo que foi prometido. Por isso mesmo, diz um dos relatórios
técnicos da CAR “a revolta das populações assentadas é marcante pois, sentem-se ludibriados
pela DESENVALE que tudo prometeu apenas para viabilizar seus objetivos”(CAR, 1991, s/p,
sic).
Mais que isso, todo esse quadro de projetos inacabados e não cumpridos, sem as
condições essenciais e em terras tão pequenas, gerava empobrecimento das famílias, que
tinham cada vez mais dificuldades de sobreviver nos núcleos. Esta é a conclusão dos técnicos
da CAR que buscavam em seus relatórios sensibilizar as instituições públicas para a gravidade
dos núcleos de reassentamento76.
Apesar de toda campanha publicitária girando em cima deste projeto o que se constata
não é a superação da pobreza e sim a reprodução deste estado em grau mais
avançado, destruindo a própria dignidade humana, com fome generalizada chegando a
níveis absurdos o estado de nutrição da população como um todo, em particular as
crianças (CAR, 1991).

Diante de todo esse quadro, é compreensível que em vez de findar, as lutas dos
atingidos por barragens continuaram e, em certa medida, intensificaram-se após a mudança.
Os STRs permaneciam mobilizados e articulavam ações entre núcleos e municípios. Não
estando mais dispersos e passando a viver juntos, os reassentados não cessaram as lutas, mas
iniciaram outras, entrando numa nova dinâmica de relação com o Estado.
De certo modo, pode-se pensar que a partir daquele momento entrava-se num novo
ciclo de lutas na região, entre meados dos anos 80 e até começo dos anos 90, no qual os
atingidos por Pedra do Cavalo tinham importância e destaque. Além da situação encontrada
nos núcleos, favorecia as mudanças no cenário nacional – que vinha num processo de
redemocratização – e a situação estadual, já que em 1987 houve a eleição de um novo
governador, Waldir Pires (que reuniu setores de esquerda, centro-esquerda e dissidentes do

76
A frase que abre o relatório de 1991 é a seguinte: “o presente documento tem por objetivo informar sobre a
situação atual do Programa de Reassentamento da População atingida pela formação do reservatório da
Barragem de Pedra do Cavalo, buscando comprometer as várias instâncias do Poder Público com a solução dos
problemas evidenciados” (CAR, Apresentação, 1991, pp. 02).
156

governo Carlista) produzindo um rompimento momentâneo com o poder do grupo ligado a


Antônio Carlos Magalhães.
O fechamento da DESENVALE, por exemplo, ocorreu justamente em 1987 com o
peso das muitas denúncias de desvio, superfaturamento e a situação das comunidades
atingidas que pesavam em sua história77. O acompanhamento da DESENVALE pós-
deslocamento durou, portanto apenas 1 ano e 5 meses, entre julho de 1986 até dezembro de
1987. Em seguida a CAR passou a ser responsável por este acompanhamento, daí a existência
dos relatórios aqui trabalhados.
Nesse novo ciclo de lutas, um dos grande ganhos do movimento teria sido a criação de
uma entidade regional, o Pólo Sindical de Trabalhadores Rurais, em 1987, fruto da
articulação entre os STRs dos municípios atingidos. De acordo com as lembranças dos
militantes, os STRs permaneciam mobilizados, mas não conseguiam encontrar formas de
expressão mais efetivas nas lutas da região e por isso com apoio do MOC e FETAG criaram
uma entidade de caráter regional reunindo os sindicatos e a luta dos atingidos da região. No
momento da criação, em 1987, 10 STRs compuseram a entidade
C(a): O Polo foi o seguinte. Quando se criou a barragem, quer dizer, quando se fez a
maldade, aquela maldade enorme com os trabalhadores, aí, só tinha os sindicatos, certo?
Só tinha os sindicatos para cuidar desses trabalhadores, só que era uma demanda, era
uma discussão muito grande e os sindicatos sozinhos não respondiam. Então, foram
buscar apoio aonde? No MOC que é o nosso grande MOC, Movimento de Organização
comunitária. Na época, uns dos secretários do MOC era Albertino Carneiro aí foram se
buscar a FETAG que era a Federação dos Trabalhadores da Agricultura e foi aí que o
próprio MOC, o Albertino e um grupo de pessoas sugeriram criar o centro de apoio aos
trabalhadores rurais da região de Feira de Santana. Porque tinha que se criar uma
estrutura mais forte, né? Porque com a estrutura regional respondia todos aqueles
sindicatos que estavam ali naquela situação que era Feira, Santo Estevão, Antônio
Cardoso, Rafael Jambeiro, inclusive, São Gonçalo dos Campos, Conceição da feira.
Então, juntou um grupo de sindicatos naquele momento, acho que foram dez sindicatos
e fundaram o Pólo - Centro de apoio aos trabalhadores rurais da região de Feira de
Santana (C(a), Liderança do Pólo Sindical de Feira de Santana, 31/10/2011).

Há portanto entre a história de criação do Pólo Sindical de Feira de Santana e a luta


dos atingidos pela barragem de Pedra do Cavalo uma relação fundamental que nem sempre é
conhecida pelas gerações atuais. De acordo com C (a), a criação deste Pólo permitiu não só
uma intervenção maior na luta política regional, mas também a atuação em outras frentes
que muitas vezes o formato dos sindicatos não permitia. Entre os aspectos destacados dessa
mudança estava o apoio financeiro que o Pólo Sindical passou a receber de uma organização
internacional, ligada a Igreja Católica, chamada “Pão para o Mundo que permitia a
77
Apesar de ter sido encomendada uma auditoria interna, na prática nada ocorreu com aqueles diretamente
envolvidos nessas denúncia.
157

contratação de advogados, agrônomos e técnicos sociais que passaram a apoiar e qualificar as


intervenções dos sindicalistas junto às comunidades atingidas.
C(a): […] Com a fundação do Pólo, qual era a vantagem que tinha em ter uma
organização regional? Porque conseguiu se trazer, mobilizar recurso fora do país, né?
Inclusive de uma entidade Alemã que era, deve existir hoje Pão para o mundo foi quem
financiou o Pólo por muito, muito tempo. Pão para o mundo. Certo? Financiou o Pólo
até 1995, não foi muitos anos, 1996, 98 ainda financiava. Com esses recursos que o Pão
para o mundo mandava aqui para o Brasil se fez o seguinte: se contratava os advogados
para acompanhar toda essa movimentação, se contratou na época também educadores
sindicais pra acompanhar as regularizações das terras [...] Você vê que praticamente em
todos os municípios se criou alguma coisa lá ou fortaleceu o sindicato através do Pólo
para chegar, para dar esse, para dar essa atenção que o próprio, até hoje, né, o governo
através dos órgãos públicos não dava (C(a), Liderança do Pólo Sindical de Feira de
Santana, 31/10/2011).

Com a criação do Pólo Sindical o movimento passou a se dirigir ao Estado também


por esta entidade. Em um dos documentos da CAR, encontramos um ofício encaminhado ao
Governador Waldir Pires de 1987, pelo Pólo Sindical de Trabalhadores Rurais de Feira
Santana, assinado por presidentes de STRs de cinco cidades em conjunto com o presidente da
FETAG, com as seguintes pautas.

• Reassentamento Urgente (antes do plantio de 1988 e no mesmo município das


duzentas famílias)

• Documento definitivo dos lotes

• Assistência técnica – Crédito- Sementes

• Irrigação com Assistência Técnica Especializada

• Construção de aguadas – casas de farinha e depósitos individuais

• Direito de concessão de uso da área remanescente do lago

• Revisão das casas e cercas de todos os lotes

• Eletrificação dos núcleos

• Assistência médica

• Abastecimento de água dos núcleos (CAR, 1991 – Oficio encaminhado em


1987 pelo Polo Sindical de Trabalhadores Rurais)

Nestas pautas, encontramos as mesmas questões urgentes de sempre e, na sequência


dos documentos, as respostas do governo estadual a cada pleito. Em praticamente todos os
pontos, as “providências” são pontuais e há encaminhamentos a outras instituições que
deveriam resolver os problemas. No quesito “eletrificação dos núcleos” por exemplo, entre as
“providências”, encontramos o seguinte: “A Coelba já tem projeto e orçamento feitos para
158

implantação da eletricidade em todos esses núcleos, de modo a atender a uma população de


aproximadamente 2.500 moradores”(CAR, 1991)
O problema é que essas respostas formais poderiam gerar “certa esperança” se na
prática todas estas reivindicações não permanecessem sem solução por anos, o que implicava
num permanente estado de mobilização pelas entidades. Para termos uma noção, a luz, que
conforme documento de 1987 dependia apenas de “finalizações”, só chegou ao núcleo de
Modelo no final dos anos 90, ou seja, quase 10 depois desse documento.
Questão ainda mais grave era a do primeiro ponto de pauta: “Reassentamento Urgente
(antes do plantio de 1988 e no mesmo município das duzentas famílias)”. Este ponto estava
relacionada à promessa de reassentamento das 200 famílias que ficaram para a 2a etapa e que
passados seis anos continuavam a espera de uma solução.
[…] a urgência de reassentamento das famílias da 2 etapa, prende-se ao fato de estarem
há mais de cinco anos na expectativa, com suas vidas totalmente desestruturadas, com
sias atividades produtivas comprometidas, trabalhando em áreas cedidas, ou em
minúsculas áreas remanescente, residindo em barracos ou casas cedidas (CAR, 1991,
pp11).

Anos depois, cerca de 115 famílias foram reassentadas a partir das ações feitas pelos
STRs, Pólo Sindical e as entidades parceiras de sempre. As Fazendas “Olhos D’água”,
“Moenda”, “Nossa Senhora da Aparecida”, “Paiaiá” e “Rebouças” – as duas últimas
localizadas em Santo Estevão – foram todas desta segunda etapa (ver introdução da
dissertação). Ainda assim, na tese de Doutorado de Germani em 1993, outra parte das famílias
permaneciam a espera dos reassentamentos. Na dissertação de Mestrado de Palma (2007) este
mesmo dado foi trazido e na minha, em 2012, até onde consegui mapear junto aos atingidos e
a lideranças da região, uma parte dessas famílias nunca foi reassentada, sendo que pouco se
sabia sobre seus destinos nos anos recentes.
Assim, neste período de 8 a 10 anos após a mudança para os núcleos, ainda
encontramos referências às lutas dos atingidos, que recordam os “abaixo-assinado”,
“caminhadas”, “audiências” em diversas cidades, principalmente em Feira de Santana, para
pressionar as instâncias competentes na tentativa de solucionar as situações provocadas pela
barragem de Pedra do Cavalo.
Com o passar dos anos entretanto, e a permanência dos problemas, a força dos
sindicatos e do Pólo foi diminuindo78. A água e a luz por exemplo, só começaram a chegar em

78
Isto porque os STRs nesta época têm outros êxitos, pois este teria sido um momento das lutas pela efetivação
de direitos dos trabalhadores rurais como a previdência social.
159

meados e final dos anos 90. Na Modelo só teria chegado entre 1996 e 1998, ou seja, 11 e 13
depois terem sido reassentadas e mesmo assim sem projetos de saneamento básico, já que até
hoje não há rede de esgoto na comunidade.79
Certamente esta demora impactava na capacidade de reunir as famílias e convencê-
las a continuarem lutando pelas mesmas pautas, recebendo as mesmas respostas formais com
pouca ação concreta. Neste sentido, segundo conta C (a), que em meados dos anos 90 o Pólo
Sindical já não tinha mais a mesma vitalidade e não conseguia mais sustentar sua existência
na luta dos atingidos. Houve portanto, neste período, um declínio na organização de atingidos.
Soma-se a isso o fato da organização internacional “Pão para o mundo” sinalizar ao Pólo
Sindical que os apoios financeiros cessariam em breve.
No final dos anos 90, o Pólo Sindical foi fechado por dois anos, sendo reaberto em
2000, com “novo foco” e “uma nova dinâmica”. Conforme C (a) conta, o objetivo deles não
era mais apenas os atingidos por barragens, mas os Agricultores Familiares, trabalhando na
perspectiva do “desenvolvimento social”
C(a): Aí, 2000, a gente reabre o POLO, mas já com outra dinâmica, com o foco pra
trabalhar com agricultura familiar, com empreendedoras, de fazer formação de
mulheres, passamos a fazer toda aquela formação, de organizar a juventude. E hoje
mesmo ele não tendo, nunca parou de fazer as intervenções junto a barragem, mas tem
outra linha que é mais ou menos igual que é trabalhar com o desenvolvimento da
agricultura familiar, trabalhar com juventude, trabalhar com mulheres (…) O centro de
apoio dos trabalhadores rurais da região de Feira de Santana continua sendo. Aí, pronto,
alguns sindicatos também tiveram que sair. Na época, nós éramos dez, hoje somos seis.
Porque foi o primeiro Polo na Bahia, primeiro centro de apoio na Bahia fundado foi o
de Feira de Santana da região de Feira, mas aí outros pólos foram se formando. Hoje,
temos a região do Sisal, nós temos a região do Senhor do Bonfim. Então, os sindicatos
que se, que se identifica com aquela região, aquela região vai pra lá. Mas mesmo assim ,
a gente continua hoje (C(a), Liderança do Pólo Sindical de Feira de Santana,
31/10/2011).

Passaram a atuar com projetos voltadas para agricultura familiar, juventude e


mulheres, de maneira mais articulada com algumas políticas públicas que conseguiam acessar
para empreender projetos.
C: (…) O centro de apoio, hoje a gente teve aí toda uma movimentação junto das
politicas territoriais e tem uma linha muito afinada na área da economia solidária, na
organização das mulheres trabalhadoras pra já comercializar. Foi uma coisa muito dura
que a gente teve que enfrentar, das mulheres trabalhadoras rurais que é a falta de
valorização do produto e hoje a gente já tem grupo de mulheres que organizaram
comercializando. Hoje, já tem várias agroindústria produzindo, aproveitando a nossa
produção, não é? Nesse momento, a gente vai vendo esse política territorial e
compreendendo de que, disputa os projetos de políticas públicas com o governo, mas a
gente quer a liberdade e autonomia de fazer a luta, de fazer as mobilização, de fazer a
intervenção da sociedade independente de que governo esteja lá no poder. Então, essa
79
Segundo dados das fichas de saúde, 85% das famílias utilizam fossa e 15% deixam esgoto a “céu aberto”.
160

foi um pouco a história desse Polo (C(a), Liderança do Pólo Sindical de Feira de
Santana, 31/10/2011) .

Nesse processo, a partir de 2000 retomaram também a organização dos atingidos e


nesse mesmo ano, junto com os STRs fizeram ações junto à CAR e ao CDA, conseguindo
obter alguns títulos de posse das áreas de barragens. O processo não conseguiu ir muito longe
já que a falta dos títulos durante longos anos gerou um quadro fundiário complexo e
conflituoso, que as instituições públicas não quiserem mexer.
Vale salientar que esses “ciclos” de luta que trato no texto, não aparecem desta forma
na lembrança dos atingidos, que recordam de uma forma mais condensada sem tantos
detalhes de décadas e períodos. Conforme começamos este capítulo, os atingidos da Modelo
têm hoje uma relação mais positiva com o passado e sentem-se protagonistas das melhorias de
seu núcleo. Mas nesta percepção marcam o tempo através de dois grandes períodos, um
considerado muito difícil no começo – que como vimos durou mais de 15 anos – e um de
melhoria quando conseguem várias de suas pautas antigas. Este segundo período está mais
ligado aos últimos 10 ou 12 anos.
Neste segundo ciclo de lutas, o processo de organização era feito principalmente
através da Associação de Moradores, que atuava em parceria com o STR de Santo Estevão e
pelo Pólo Sindical de Feira de Santana. As lutas neste momento eram um pouco mais
institucionalizadas, ocorrendo através de reuniões entre representantes das entidades e
representantes do poder público.
JL(a): Ele fazia aquela reunião, o prefeito vinha e ele ai agora discutia o que era preciso.
O que é que tá precisando aqui? A gente tá precisando de um posto médico. Ele vinha e
conseguia (JL(a), 71 anos, trabalhadora da antiga fazenda que virou Modelo, entrevista
em 01/03/2011).

G(o): Aí eu [PA]. Mas quando eu vim, não tinha ainda escola, igreja, não tinha ainda
posto médico, quando eu vim de São Paulo, não tinha ainda (…) Só tinha aquela
quadra. Não tinha aquela quadra, aquela quadra foi depois que eu cheguei, e ai a gente
foi cobrando, eu fui cobrando, enviei um bocado de documento aqui pra prefeitura, a
gente fazia abaixo-assinado, sabe. Fazia abaixo-assinado, lavrava a ata. Ó, eu fiz
abaixo-assinado ali cobrando posto médico, enviei outro abaixo-assinado cobrando o
colégio. Foi uma luta muito grande pra a gente conseguir! Enviei documento pedindo é
ponto de abrigo de ônibus. Pode ver que ali na Modelo tem dois pontos, ou é três (G(o),
42 anos, atingido/deslocado pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em
05/03/2011, 2a geração).

O sentimento de orgulho em verem a área coletiva não mais vazia vem na verdade
desta última década, de 2000 para cá, sendo a construção de cada equipamento lembrada com
precisão. Neste período, um prefeito de Santo Estevão se destaca como aquele que contribuiu
161

para viabilizar estes projetos, Orlando Santiago, que foi prefeito de Santo Estevão entre 2000
e 2008, pelo Partido da Frente Liberal (PFL) atual Democratas (DEM).

A quadra poliesportiva teria sido um dos primeiros equipamentos comunitários a ser


construído. Apesar de desgastada, tem grande importância para a comunidade, sendo utilizada
pelos jovens e nos fins de semana pelos adultos e mulheres que vão assistir a algumas
partidas. Já em 2002, conseguiram a construção da Escola, situada no lado oposto da antiga
sede da fazenda. O prédio da escola que abriga o ensino fundamental é novo e encontra-se em
bom estado de conservação (ilustração 19).

Ilustração 19: Foto da Escola (ao lado esquerdo) e da Igreja (lado


direito)

Fonte: arquivo pessoal.

Já em 2004, quase em 2005, ocorreu a construção da Unidade de Saúde que abriga


uma equipe de PSF (Programa de Saúde da Família) que atende às famílias da Modelo e das
comunidades próximas (ilustração 20).
162

Ilustração 20: Foto da Unidade de Saúde do reassentamento Modelo

Foto: arquivo pessoal.

No trabalho que pude fazer com as fichas de saúde, nota-se que vem sendo realizado o
acompanhamentos das famílias e que 122 das 133 famílias buscam a Unidade de Saúde em
caso de doença, o que representa 92% da comunidade80.

Tabela 9: Locais buscados em caso de doença


EM CASO DE DOENÇA PROCURA Números Porcentagem
Unidade de Saúde 122 92%
Hospital 48 36%
Benzedeira 2 2%
Outros 3 2%
Total 133
Elaboração própria a partir das fichas de saúde do município de Santo Estevão

Uma das lembranças coletivas mais orgulhosamente trazidas por eles para expressar a
“união” do grupo, o sentimento de terem sido responsáveis pelo que hoje têm, refere-se à
Igreja da comunidade, construída somente em 2004, não por órgãos de fora, mas por eles
mesmos. Segundo contam, numa das reuniões da Associação de Moradores cujos presidentes
em sua maioria eram ligados ao catolicismo, resolveram construir a Igreja que até então não
tinham. O plano era simples, cada um dava o que podia, todos contribuíam e aos poucos

80
Além disso, os dados indicam que 48 famílias buscam também o hospital da cidade e 02 famílias informam
utilizar também os serviços de benzedeiras. Considerando que os dados não são excludentes, pode-se dizer que
99% da comunidade utilizam a rede SUS para tratar de sua saúde.
163

conseguiriam construir. Na ilustração 19, tem-se a Igreja do lado direito bem próxima à
escola.
G(o): Queria uma igreja no Modelo. Mas eu só dei a ideia, o pessoal também gostou.
Mas como é que a gente fazia? Não tinha dinheiro. Aí a gente começou a fazer leilão.
Entendeu? A gente saia, [PA] a gente fez uma comissão, e essa comissão saia pedindo
ajuda, chegava nas casas: olha eu to querendo uma prenda pra um leilão que vai
acontecer tal dia. Aí as pessoas começava a dar a prenda, sabe. Aí marcou o dia do
leilão, aí convidemos o padre, o padre começou a colocar lá, fez, colocou a pedra
fundamental, aí com a pedra fundamental marcou a igreja. Aí daí em diante que marcou
a igreja, nós começamos a colher dinheiro, fazer leilão, colhendo dinheiro e subindo a
igreja até ficar pronta (G(o), 42 anos,atingido/deslocado pela barragem de Pedra do
Cavalo, entrevista em 05/03/2011, 2a geração)..

JL(a): Quer dizer que ali naquele lugar da associação, a gente botava ao redor da igreja,
quando tinha uma missa a gente juntava pra capinar aquilo tudo, eu cheguei e disse
assim: “olha gente, não é nada de mais dá gente ir aqui na igreja. É pra gente mesmo.
Da gente chegar e comprar cada um, um saco de cimento e dá um cimento ao redor da
igreja. É bom pra gente mesmo” (…) Eu mesmo dou um saco de cimento como dei. Ai
todo mundo reuniu, Celeste tomou a frente, tem comadre A aqui na rua, que é moradora
velha também. E a gente ajuntemos tudo (JL(a), 71 anos, trabalhadora da antiga
fazenda que virou Modelo, entrevista em 01/03/2011).

Na ilustração 21 temos o croqui da Modelo com a representação atual da comunidade


sobre o reassentamento. Nele vemos que o número de casas foi ampliado, já que as famílias
cresceram e alguns filhos construíram suas casas nos terrenos dos pais. Além disso, vemos
algumas edificações de uso não habitacional, destacadas na imagem em roxo, como pequenos
bares, mercearias e igrejas evangélicas surgidas nesses 25 anos81.

81
Apesar de haver na comunidade outras 03 igrejas evangélicas, sendo 04 pessoas entrevistadas de uma mesma
família ligadas duas delas, não houve referência a estas igrejas como obras coletivas. Dado sintomático é que
apenas a igreja católica foi construída na área coletiva. Certamente este é um dos aspectos da memória em que a
coesão do grupo oculta certos aspectos dissidentes que terminam sendo desconsiderados na história do grupo.
Ilustração 21:Croqui com a representação da Modelo em 2011

Fonte: desenhos dos entrevistados. Elaborado por Farias (2011).


165

Vendo esta imagem, percebemos que o projeto de preencher a área coletiva com tudo
aquilo que lhes foi prometido antes da mudança foi alimentado por este grupo ao longo dos
anos e no desenho da comunidade atual vemos a área coletiva preenchida. Na ilustração 20
apresentamos uma ampliação do croqui da ilustração 19, destacando a área coletiva, com cada
equipamento comunitário e sua respectiva data de construção.
Ilustração 22: Equipamentos comunitários e datas de construção

Foto: arquivo pessoal.

Uma última construção da área coletiva, que ainda não havíamos falado foi a da sede
da Associação de Moradores e teria ocorrido entre 2009 e 2010. Esta construção foi feita no
local onde antes era a Casa de Farinha da comunidade. Segundo contam, esta casa de farinha
foi feita em 1988 pela CAR, mas pouco tempo depois o motor foi roubado e a casa foi
desativada. Há um certo desconforto e desgosto com esta história e por isso eles
tergiversavam facilmente quando perguntados sobre o tema.
166

Este desconversar sobre certos assuntos é um aspecto de suas memórias – ou das


lacunas dessas memórias – que me parece interessante refletir. De modo geral, este grupo se
percebe como um grupo organizado, tendo um sentimento de comunidade, de pertencimento,
alimentado por uma história vivida em comum no antes e depois da barragem, onde se vêm
como unidos e protagonistas. Há entretanto alguns momentos em que percebemos que este
grupo tinha conflitos, problemas e dificuldades, mas que sobre isso pouco falam e preferem
escapar.
E(o): O problema tá ai. Porque como o prefeito fez a escola e fez o posto medico ali,
que aquela área é pra modo de dar movimento no lugar. Teve umas confusão ali, mas
ninguém pode fazer uma casa ali. E podia até ter. (E(o), 75 anos, trabalhador da antiga
fazenda que virou Modelo, entrevista em 01/03/2011).

Em relação a essa casa de farinha por exemplo, tem-se o dado do roubo e do


desconforto que esta situação causou. Essa situação parece ter mexido tanto com o grupo que,
apesar do caso ter ocorrido no fim dos anos 80, não tiveram mais a casa funcionando e ainda
se ressentem do fato. De algum modo, creio que este episódio mexeu com a imagem do grupo
sobre si mesmo.
Além disto, durante as entrevistas, vemos que os projetos coletivos que dependiam de
uma capacidade de organização menos “política” e mais cotidiana não iam para frente. Eles
falam por exemplo, da tentativa de criação de uma horta coletiva na área coletiva e que não
foi para “frente” porque as pessoas não participavam.
G(o): É. A gente trabalhou com horta, com o grupo jovem, mas eles deram assistência
só no começo, depois abandonou.

F: E o grupo seguiu?

G(o): O grupo seguiu, mas enfraqueceu.

F: Quem é que fazia parte do grupo, você lembra?

G(o): Eu só lembro mais [PA] era eu e B)a). Era eu e B(a), que os outros grupos já
saíram, sabe (G(o), atingido/deslocado pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em
05/03/2011, 2a geração).

Nos relatórios da CAR sobre os núcleos de barragens e sobre a Modelo há referência


ao fato de alguns núcleos chegarem a ter algum grau de organização, mas que esta
organização costumava se limitar a processos políticos puxados pelo movimento sindical.
Segundo esses relatórios, os projetos e atividades que dependiam de uma organização
cotidiana, produtiva, coletiva não chegavam a avançar. Ainda segundo estes documentos, o
embrião de organização que vinham conseguindo através de agentes externos, perdeu-se com
167

a extinção da DESENVALE e a falta de um acompanhamento mais sistemático por parte de


outras instituições como a CAR. Assim, os projetos produtivos que eram pensados pelos
técnicos em termos coletivos – por exemplo, na lógica do Associativismo – não iam a frente
pois as famílias não se interessavam de mesma forma (CAR, 1991).
Creio que temos ai duas questões. Primeiro uma mais ligada à situação das barragens,
que criou comunidades artificiais, não necessariamente baseadas em relações de parentesco,
num processo de grande violência, e em condições bastante inadequadas, para que tão
brevemente estas famílias conseguissem restabelecer a tecitura social. Em segundo lugar,
creio que estes projetos, pensados pelos técnicos, envolviam uma lógica de trabalho diferente
e estranha ao campesinato tradicional, que se organiza produtivamente em torno da família e
não necessariamente em torno da comunidade e de sua área coletiva. Assim, a despeito de
serem projetos interessantes e possivelmente bem intencionados, na prática eram pensados de
fora para dentro e de maneira pouco dialogada com as perspectivas culturais do grupo.
Mas ainda assim, em alguns momentos, os próprios entrevistados soltam, de maneira
breve, a dificuldade que têm em levar a frente processos que dependam do coletivo de
maneira cotidiana. Os chamados projetos – que se referem aos diversos programas e projetos
que as instituições publicas disponibilizam para eles – comumente não vão muito longe pela
falta de participação.
L(o): Quando chegou aqui isso aí não existia. Não existia porque não tinha aonde
pescar, não tinha aonde pescar, então ao invés de ficar aí sem, no escuro, como vivia lá,
ficava um bocado de anos no escuro, sem ter energia, vivia um bocado de tempo antes
sem ter água encanada, vivia antes também sem ter posto médico, vivia um bocado de
ano sem ter casa de farinha comunitária. E a partir daí eu passei, fui presidente da
associação por duas vezes, conseguimos muitas coisas para a comunidade, só não
fiz progredir projetos, projetos são aqueles que muitos conhece e outros não
conhecem, quando outros não conhecem, o projeto vai e bota alguma coisa e quando
abandona, abandona quer dizer, fica meio difícil, mas isso é quando as pessoas não
freqüentam acaba (L(o), 66 anos, ex-sindicalista, atingido/deslocado pela barragem de
Pedra do cavalo, 03/03/2011).

Considero que todas estas situações dão conta das contradições entre a experiência e a
memória coletiva que, conforme vimos na teoria, tem como papel mais do que retomar
processos vividos por um grupo no passado, mas construir uma narrativa em torno da imagem
social que o grupo tem de si mesmo.
Conforme vimos, segundo Halbwachs (2004), há uma estreita relação entre percepção,
memória e interesse, já que os grupos operam sobre o seu passado através de seleções – não
necessariamente conscientes – entre aquilo que será lembrado e esquecido, aquilo que será
168

cuidado e recordado em detalhes e aquilo que por ventura será considerado como menos
importante. Há portanto um processo de modulação da memória segundo a perspectiva
presente e por isso investe-se mais em determinados conteúdos, porque estes fazem mais
sentido do que outros na percepção do grupo. Para Halbwachs (2004) e Bosi (2003), nessas
oscilações, o que estaria em jogo é a percepção do grupo sobre si e sua história e neste caso o
esforço em se elaborar o passado de acordo com as preocupações e interesses atuais.
A memória coletiva se converte em um elemento identitário agindo sobre seus
membros para conformar um sentimento de pertença, traduzido num passado comum com o
qual devem se identificar. Mais que isso, a memória coletiva investe de sentido a experiencia
das pessoas, permitindo que seus membros possam por um lado se identificar e por outro
compartilhar uma visão de mundo e um ponto de vista sobre o passado (HALBWACHS,
2004).

Conforme dissemos antes, no nosso capítulo sobre memória, ao trabalharmos com este
grupo nos importa não só analisar o que lembram, mas “principalmente o modo como este
grupo se apropriou e significou esta história e a si mesmos tornando esta narrativa uma
memória coletiva e portanto um elemento dos processos identitários que os conformaram”.
Isto porque, o trabalho com a memória coletiva nos revela “a alma e o coração do
grupo”(HALBWACHS, 2004), a imagem que o grupo tem e cria, para si e para os outros com
os quais interage. Estas imagens e histórias cumprem o papel de estruturar uma visão sobre o
passado de tal forma que, podem, nesta narrativa, contar seus feitos, mas principalmente
reconhecer-se.
Em relação à memória coletiva da Modelo, vemos que há uma forma de retomar o
passado mais positiva, em que o presente cumpre importante papel. No foco desta memória
está o próprio grupo que se percebe como protagonista desse processo. Nesta memória, escapa
por exemplo, uma conjuntura nacional mais favorável na última década, com a eleição de
governos mais progressistas e a criação de políticas públicas voltadas para a zona rural. O
máximo que encontramos é um nível de interação mais local, com prefeitos, instituições e
organizações que os apoiavam enquanto eles faziam “este projeto coletivo se concretizar”.
Não existem nexos feitos por eles entre estes processos conjunturais e suas trajetórias.
Com isso não quero dizer que suas memórias sejam incorretas ou que ocultem estas
informações de maneira proposital, mas que se considerarmos a memória coletiva como a
imagem que o grupo faz de si mesmo, veremos que esta forma de se relacionar com o passado
169

faz sentido num grupo que se entende como responsável por sua história e mais que isso, que
se via como “Modelo para todos os outros”.
A coesão encontrada na narrativa e na percepção sobre seu passado e sobre o modo de
construção do presente, sugere não apenas que este grupo conseguiu avançar em seus
processos identitários, mas que esses processos passaram por uma experiência política de
resistência e reconstrução do qual sentem-se os principais atores. Aparentemente, do passado
tão dramático vivido pela perda de seus territórios e que envolveu um processo de
organização antes da mudança para que uma política de reassentamentos fosse efetivada,
surgiu a possibilidade dessa comunidade se constituir para lidar com o cotidiano e com este
espaço compartilhado.
Os moradores da Modelo, ao menos aqueles com quem trabalhei, sentem-se parte
desta comunidade, sentem-se construtores da história do lugar, orgulham-se de terem
conseguido melhorá-lo e compartilham estas percepções através de uma construção simbólica
em torno de uma memória política. Mesmo sendo uma comunidade artificialmente
construída, formada por famílias que vieram de localidades diferentes, hoje, passados 27 anos
sentem-se parte daquele lugar e do grupo e por isso não percebemos sentimentos de
estranhamento entre os entrevistados.
Além desta percepção de si mesmos, os entrevistados da Modelo costumam comparar-
se com outros reassentamentos, sobretudo Fazenda Mocó e a Fazenda Nova, que são
percebidos como lugares de qualidade inferior por oposição à Modelo. Ou seja, não apenas
encontramos neste grupo uma clara percepção de si, mas também um certo grau de
diferenciação social para com os outros, considerados neste caso por sua alteridade (ELIAS,
2000).
R(a): Com todos os problemas, é o lugar mais bonito, porque o Mocó, aff, no Mocó eu
não ficaria nem uma semana [...] A terra mais produtiva é a Modelo mesmo, Moco é um
horror, Fazenda Nova (R(a), 33 anos, atingida/deslocada pela barragem de Pedra do
Cavalo, entrevista em 28/02/2011, 2a geração).

M(a): Que na época tinha uma mulher que chamava T. do Polo de Feira, um rapaz que
chamava V que esse rapaz também lutou mesmo que eu fui pro Mocó, pra Fazenda
Mocó, eu falei pra ele assim que queria ficar lá. Aí, ele falou assim: “Você ta doida,
professora, você quer morrer pra onças lhe comer, você quer vir pra cá, pras onças lhe
comer aqui dentro? Fique na Modelo mesmo, vá brigar pela Modelo” (M(a), 58 anos,
atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 02/03/2011).

D(a): Porque era mais próximo da cidade e também ficava mais perto da gente ir pra o
nosso restante de terreno e também porque de todos os terrenos foi o melhorzinho que a
gente foi esse aqui. A Mocó é bom, mas já não é igual aqui não tem (D(a), 53 anos,
atingida/deslocada pela barragem de Pedra do Cavalo, entrevista em 04/03/2011).
170

L(o): Fazenda Nova era terra de tabuleiro e tal, mas o clima lá naquela época, antes da
barragem era um. Quer dizer, dizendo as pessoas que viviam lá. E só tinha chuva em
dois anos, três anos, era chuva passageira, a terra não era boa pra dá lavoura, só tinha
mais licuri […] (L(o), 66 anos, ex-sindicalista, atingido/deslocado pela barragem de
Pedra do cavalo, 03/03/2011).

Esses dados, e mesmo a história que aqui foi contada, sugerem que este grupo passou
por um processo de mudança de território que foi vivido como perda e sofrimento, mas que
aparentemente conseguiram reconstruir-se concreta e simbolicamente, apropriando-se deste
novo local, fazendo dele seu território. Neste ponto, discordo de Palma (2007) quando este
diz que muito núcleos de Pedra do Cavalo são de populações “desterritorializadas”:82
Considero que na Modelo houve uma apropriação do núcleo, hoje sentido como um
território que “se acostumaram” e até “acham um lugar bonito”. Onde construíram suas
famílias, onde dedicaram tempo coletivo para modificar, permitindo-lhes um sentimento de
comunidade, de pertencimento, convertendo este reassentamento em homeland, conforme
discutido no capítulo anterior.
Nesta perspectiva, considero que viver a perda de um espaço não implica
necessariamente num sentimento ad infinito de desterritorialização. Vivê-lo da forma dura e
violenta como foi na história aqui contada, também não implica em viver para sempre com o
sofrimento do passado, até porque como eles mesmos sugerem, a vida muda, novas
conjunturas surgem, as pessoas podem seguir em frente recriando o passado e a percepção
deste.
Com isso quero dizer que o fato desses diversos núcleos terem vividos situações
bastante semelhantes, ao menos do ponto de vista concreto, não quer dizer que se relacionarão
com estes processos da mesma forma e não necessariamente terão uma mesma interpretação
sobre o seu passado. Os processos identitários das comunidades estudadas por Palma (2007) e
Carmo (2007), apesar de guardarem semelhanças com os da Modelo, não são sinônimos, nem
implicam nos mesmos caminhos e percepções.
Conforme disse no começo, por vias familiares ou coletivas, a atitude com o passado
foi semelhante e a atitude com as dificuldades também. Estas famílias de algum modo
escolheram seguir em frente e inventar estratégias de sobrevivência e permanência que lhes

82
“Por todas as observações elencadas anteriormente, afirmamos que Pedra do Cavalo e seus núcleos de
reassentamento são verdadeiros territórios “desterritorializados” (PALMA, 2007, p. 90). Creio que o autor pode
sugerir tal perspectiva no trabalho realizado com o núcleo Ilha de São Gonçalo, mas não necessariamente para
todos os outros núcleo.
171

permitissem ficar ali, onde a vida recomeçava. Seja pelo trabalho ou pela luta, pela migração
provisória ou pelo trabalho pluriativo, seja por meio das mobilizações dentro e fora do núcleo,
a vida seguiu, e foi possível persistir, resistir e reconstruir o futuro num novo local.
O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma
humana. É uma das mais difíceis de definir. Um ser humano tem raiz por sua
participação real, ativa e natural na exigência de uma coletividade que conserva vivos
certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro (WEIL, pp43).

A comunidade Modelo tem inclusive muitas casas reformadas ou remodeladas, numa


clara indicação de investimento das famílias em seus lotes, que pode ser entendida como uma
comunidade que se enraizou, que reinventou seu futuro e por que não dizer que com isso
também reinventou sua relação com o passado.
172

VI - Considerações finais

C (a): Chegando e conversando com as famílias a gente identificou que nessas famílias
pessoas morreram, morreram porque não conseguiram, não aceitaram a forma dura e
cruel como foram retirados da terra, da propriedade. Nós temos pessoas com problemas
emocionais de todas as ordens, entendeu? Porque não conseguiram, depois que saíram
das suas propriedades, implantar um sistema de produção e aí tem toda a identidade
entendeu? Que é o que você cria, é o que você é, é a sua vida que tá ali na sua casa, ta
toda sua identidade ali, e esses laços que foram cortados […] Pra você ter uma ideia, a
feira de Antônio Cardoso até hoje é pequena. A gente tem pessoas que eram de Rafael
Jambeiro, que vieram morar em Santo Estevão, tivemos pessoas que eram de Castro
Alves e vieram morar na sede de Ipuaçu, e por aí foi. Então, essa história é triste, ela é
realmente triste, ninguém nunca quis contar, nem sequer analisar ela (C(a),
Liderança do Pólo Sindical de Feira de Santana, 01/03/2011)

No começo dessa dissertação dissemos que a construção das barragem deflagram


mudanças sociais complexas e profundas que não se limitam à área inundada, nem ao tempo
de sua construção. As barragens impactam dimensões socioambientais da região onde se
instala antes, durante, depois e muitos anos depois de sua construção, afetando áreas a
montante e a jusante do local escolhido para sua instalação. Conforme vimos aqui, todos esses
aspectos foram encontrados na história da barragem de Pedra do Cavalo que foi aqui contada
através das memórias dos atingidos que viviam num de seus núcleos de reassentamento
(GENS, 2010; PROST, 2007). Durante essa análise, foi possível notar que, de forma alguma
esses impactos se limitavam à perda das terras, empobrecimento das famílias, e aos aspectos
pecuniários e econômicos comumente considerados. Longe disso, Pedra do Cavalo repercutiu
em dimensões culturais, comunitárias e familiares produzindo reverberações subjetivas e
afetivas em cada pessoa como buscamos aqui demonstrar.
Mais grave ainda é que todas essas transformações foram produzidas por um ente
público, que administrou essas mudanças (SCOTT, 2009) e por isso, não por acaso, um dos
focos desse trabalho foi justamente analisar a avaliação das pessoas sobre o tratamento que
lhes foi oferecido.
Alguns relatórios apontavam que a distribuição dos benefícios e prejuízos de projetos
como esses são profundamente desiguais e que, quase sempre, aqueles que são afetados não
chegam a ser beneficiados com os frutos do “desenvolvimento” tão prometido (CMB, 2000).
O relatório do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana apontava
situação ainda mais grave, ao concluir que no Brasil as barragens não apenas tratavam os
grupos de maneira desigual, violando direitos humanos da maior parte das atingidos, como
173

parte desta violação contribuía para aprofundar as desigualdades sociais já existente


(CDDPH, 2010).
Nesta dissertação, infelizmente, constatamos que o quadro internacional e nacional
apontado nesses relatórios encontrava esteio na situação dos atingidos por Pedra do Cavalo.
Longe de ter sido algo pontual, fruto do momento histórico delicado da ditadura militar 83,
vimos que a condição de precariedade e violação de direitos dos atingidos perdurou por
longos anos gerando problemas dos mais diversos com os quais precisaram lidar.
A questão do acesso a água por exemplo, tema caro para o grupo que trabalhamos,
que deixou suas casas para que a área fosse inundada, garantindo o abastecimento de Salvador
e regiões vizinhas, só chegou nesse núcleo no final dos anos 90 ou seja, mais de 15 anos
depois do deslocamento. Situação igualmente grave ocorreu em relação às terras recebidas,
visto que muitas famílias perderam o que tinham e foram deslocadas para um local sem as
condições necessárias ao seu recebimento, em lotes de terra extremamente pequenos que
afetando sua a sobrevivência. O módulo rural do INCRA de 50 hectares (ou 115 tarefas)
recomendado para a região foi desrespeitado pelo próprio Estado quando este implementou
sua política de relocação e assim essas famílias receberam 11 vezes menos do que deveriam
legalmente.
Não por acaso, um dos efeitos dessa ação foi a migração dos filhos das famílias
reassentadas tão logo chegavam na idade adulta. Neste aspecto, vale aqui novamente destacar
que os laços sociais foram simplesmente desconsiderados na implementação da mudança e
por isso como vimos a separação das famílias foi um dos temas mais dolorosos trazidos por
esse grupo. Numa ligação que fiz este ano, já escrevendo a dissertação, falei com uma das
atingidas e novamente a dor e o ressentimento com “a barragem” foram trazidos. Disse-me:
“perder as terras foi terrível, mas os bens materiais a gente trabalha trabalha e um dia
consegue novamente, mas os vínculos, as relações familiares, o sofrimento que isso traz, isso
não tem como resolver facilmente”.
Conforme buscamos demonstrar, mais que o deslocamento em si, que já gera muitos
sofrimentos, a forma como o processo foi conduzido fez toda a diferença, tornando as
situações dessas pessoas ainda mais dolorosas, produzindo sofrimentos que podemos chamar
de “desnecessários”.

83
Os relatórios atuais confirmam que barragens recentes e empreendimentos com grande visibilidade como as
obras da copa do mundo e as olimpíadas, continuam violando direitos humanos em vários níveis e deslocando
populações de maneira naturalizada (CDDPH, 2010; COMITÊ POPULAR, 2012).
174

Conforme sugere a Psicologia Social, podemos classificar muitos desses sofrimentos


como sofrimentos políticos (MOURA, 2008), já que a determinação destes estava claramente
relacionada a esfera pública, da cidadania, ao tipo de tratamento oferecido às populações mais
pobres , naturalizado em nossa sociedade desigual. Nesse aspecto concordo com Palma
(2007) quando constata que o Estado, que deveria se portar como ente regulador, garantindo
condições adequadas no deslocamento, torna-se na verdade no principal agente violador de
direitos sociais e ambientais, desrespeitando muitas vezes os seus próprios dispositivos legais.
O que esta pesquisa revela é exatamente a constatação de que o próprio Estado, como
ente regulador e regulamentador das ações empreendidas no Território, se omite, ou
mesmo é ele o causador das desorganizações provocadas pelos grandes
empreendimentos. No caso em tela, a construção do barramento de Pedra do Cavalo
envolveu uma série de decisões unilaterais do ente de Estado (governo da Bahia e
governo da União). Essas decisões não levaram em conta argumentos técnicos,
científicos e mesmo sociais na constituição do empreendimento, resultando na
desestruturação de um grande número de famílias ribeirinhas do rio Jacuípe e rio
Paraguaçu, numa extensão territorial de dezenas de quilômetros, dessa forma, atingindo
essencialmente o cotidiano social e também o patrimônio natural (PALMA, 2007, p.
167).

Todo este processo foi detidamente analisado nesta dissertação, em todos os capítulos
cumprindo assim um dos objetivos específicos deste estudo que era precisamente avaliar de
que forma os atingidos foram tratados antes, durante e pós-deslocamento.
Além de todas as análises que fizemos aqui, fizemos um esforço de síntese, a partir do
relatório da Comissão Especial de Atingidos por Barragens de 2010, mapeando as violações
de direitos humanos em Pedra do Cavalo a partir dos dispositivos legais indicados pelo
relatório utilizado por aquela comissão na vistoria das barragens analisadas. Concluímos que
Pedra do Cavalo violou pelo menos 14 direitos humanos fundamentais ao longo de sua
história, considerando-se: o direito à informação e à participação; o direito ao trabalho e a um
padrão digno de vida; o direito à moradia adequada; o direito à educação; o direito a um meio
ambiente saudável e à saúde; o direito à melhoria contínua das condições de vida; o direito à
plena reparação das perdas; o direito à justa negociação e tratamento isonômico, conforme
critérios transparentes e coletivamente acordados; o direito à cultura, práticas e aos modos de
vida tradicionais, assim como acesso e preservação de bens culturais, materiais e imateriais;
os direitos dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais; o direito de
proteção à família e a laços de solidariedade social ou comunitária; o direito de acesso à
justiça e a razoável duração do processo; e por fim o direito à reparação por perdas passadas.
Em detalhes apresentamos a tabela 10 com a síntese dessas violações.
175

Tabela 10: Lista de violações de direitos humanos da barragem de Pedra do Cavalo


Direito analisado Violação em Pedra do Cavalo
Direito à informação e à Não se garantiu o conhecimento “efetivo e prévio” do projeto e suas
participação consequências, nem a participação democrática nesta decisão.
Direito ao trabalho e a um Houve desrespeito a este direito já que as condições territoriais e ambientais
padrão digno de vida foram modificadas significativamente no núcleo estudado. O acesso regular
a água e a pesca foi inviabilizado com a distância do rio. Além disso, não se
garantiu o acompanhamento técnico efetivo para a qualificação dos
trabalhadores na mudança de ambiente.
Direito à moradia adequada Este direito considera o respeito aos moldes culturalmente definidos e a
garantia de que a nova moradia não conduza a população a uma condição de
pobreza e marginalização social. Deve-se considerar os módulos mínimos
recomendados para a região na construção dos lotes. Conforme vimos no
capítulo três este direito foi claramente violado de diversas formas.
Direito à educação Apesar de ter sido garantida uma escola funcionando no núcleo, as
condições desta escola eram inadequadas e improvisadas na sede da antiga
fazenda e não havendo salas sufientes para a demanda de alunos.
Direito a um ambiente Este direito diz respeito à garantia de condições ambientais e sanitárias
saudável e à saúde adequadas. Consideramos que houve violações, já que não havia água
disponível para as famílias com a regularidade necessária. Além disso, até o
momento não há uma rede de esgotamento sanitário, nem um sistema de
coleta de lixo garantido. Destaca-se ainda os impactos à saúde mental
gerados em todos os momentos do deslocamento, havendo famílias que até
hoje trazem sofrimentos quando falam da barragem.
Direito à melhoria contínua O tamanho das terras e o completo descuido com esta população nos anos
das condições de vida seguintes dificultaram a melhoria das condições de vida, gerando migração
imediata dos mais jovens.
Direito à plena reparação Não houve qualquer medida reparatória até hoje e mais grave ainda, a maior
das perdas parte das famílias não dispõem dos títulos de terra.
Direito à justa negociação e Conforme vimos nos capítulos dois e três, não houve uma negociação justa
tratamento isonômico, e transparente, sendo que o curto tempo entre a notícia e a mudança
conforme critérios (1983/1985) constrangiam as pessoas a aceitar os termos de negociação
transparentes e apresentados pela empresa.
coletivamente acordados
Direito à cultura, práticas e As condições encontradas nos núcleos e a separação das comunidades em
aos modos de vida reassentamentos diferentes impactou na reprodução do patrimônio imaterial
tradicionais, assim como do grupo. Além disso, desconsiderou-se aspectos básicos dos modos de vida
acesso e preservação de bens como a proximidade com os rios e a prática regular da pesca como
culturais, materiais e complemento da produção agrícola.
imateriais
Direitos dos povos Muitos elementos do campesinato não foram respeitados, sobretudo no que
indígenas, quilombolas e tange a relação com a terra e a importância das relações de parentesco.
comunidades tradicionais
Direito de proteção à família Este foi sem dúvida um dos direitos violados que mais repercutiu no grupo
e a laços de solidariedade na medida em que não se garantiu o manejo dos vínculos nem do ponto de
social ou comunitária vista comunitário, nem do ponto de vista familiar.
Direito de acesso à justiça e Não houve tempo para que as famílias questionassem na justiça o
a razoável duração do tratamento oferecido.
processo
Direito à reparação por Nem sempre se entende que direitos violados há tanto tempo possam ser
perdas passadas ainda considerados. Até hoje os danos produzidos por Pedra do Cavalo não
foram reparados e as gerações seguintes, que também foram afetadas, não
foram entendidas como atingidas e nem tiveram qualquer compensação.
Elaboração própria a partir da pesquisa de campo e do relatório do CDDHP, 2010.
176

Além da dimensão dos direitos violados, uma outra preocupação desta dissertação foi
a do Território como uma categoria importante para análise dos processos sociais e de
subjetivação. Conforme vimos, era de natureza territorial o cerne do conflito de Pedra do
Cavalo, mas o território para o Estado não era o mesmo que para os atingidos, e mesmo entre
os atingidos havia diferentes relações.
Não há dúvidas de que houve um tratamento profundamente desigual entre os grandes
e pequenos proprietários conforme apontaram as técnicas entrevistadas, os atingidos, mas
também o Relatório da Comissão de Auditoria da DESENVALE em 1987 apresentado aqui.
Para os “pequenos”, que representavam a maioria dos atingidos, houve demora na
consideração de vários grupos sociais como atingidos, pois inicialmente apenas os que
dispunham de documentação eram considerados. Apesar disso, o processo de organização e
resistência dessas comunidades, ainda que frágil e de certo modo atrasado, conseguiu
imprimir mudanças nessa política, tanto ao considerar outros grupos que antes ficavam de
fora, quanto pela luta em torno da troca de terra por terra e não mais por indenizações
financeiras.
A política de reassentamento, apesar de ter avançado nesses aspectos, não garantiu
entretanto os tamanhos de terra recomendados para a região e por isso cada família que
recebeu as 10 tarefas logo sentiu os efeitos desta decisão. Para a maioria dos entrevistados, o
sentimento de que “perderam” para a DESENVALE é claro, em termos objetivos e subjetivos,
já que estas famílias por um lado ganharam menos do que tinham e sentiram a perda de outros
elementos associados à terra.
Houve entretanto duas famílias com visões diferentes sobre este processo, pois se
tratavam de trabalhadores ligados aos fazendeiros que não vislumbravam num futuro próximo
conseguir suas próprias terras. Com o processo da barragem e a luta dos atingidos, alguns
trabalhadores foram contemplados e por isso a barragem parece ter sido algo “bom” para uns
ou uma “benção” para outros. Essas diferentes percepções, que foram aqui consideradas,
estavam relacionadas às diferentes condições econômicas, sociais, fundiárias e de cidadania
no momento anterior à mudança.
Assim, nesse processo, as lutas e estratégias de resistência local foram fundamentais
para conformar a decisão da empresa sobre o território.
O território, portanto, não será de todos os cotidianos, nem de todas as firmas (Santos
2001), mas será um território seletivo, desigual, onde o interesse por espaço será
exercido pelo uso da força, ou simplesmente pela dominação. O território nesse sentido,
deixa de ser o abrigo, o lar para ser os espaços racionais, voltados para a produção do
177

capital e de atores exteriores ao local da intervenção de dominação. Em Pedra do


Cavalo o sentimento de território seletivo é muito forte. Os núcleos de reassentamento
foram instituídos, conforme já descrito, pelo embate das representações sindicais e da
atuação da sociedade civil organizada, e não pelo planejamento estatal (PALMA, 2007,
p. 88)

Para finalizar, vimos que o grupo com o qual trabalhamos lidou com este passado sem
se ater muito nos lamentos, nos convocando a todo tempo para olhá-los como protagonistas,
como pessoas que, a despeito do modo como eram tratados, opunham-se a isso tentando se
reinventar. Em todos os capítulos vimos as estratégias de resistência utilizadas por esta
comunidade, no bojo das lutas dos atingidos da região.
A chegada ao núcleo foi vivida com grande tristeza, sobretudo pelas dificuldades da
falta de água, da falta dos equipamentos comunitários acordados, pelo diminuto tamanho da
terra e pelo estranhamento com os novos vizinhos. A tudo isso sentiam “saudade”, mas não
deixavam virar “tristeza”, porque a vida seguiu, o tempo passou, as coisas mudaram e eles se
sentiam parte dessas mudanças.
De certo modo, este grupo lança um sopro de esperança em meio a tantos absurdos,
dramas e histórias tristes que esta barragem produziu, mas que “ninguém nunca quis contar,
nem sequer analisar”. Ser “Modelo para os outros” parece ter sido uma ancoragem simbólica
importante para este grupo que a mesmo com tudo, optou por reconstruir o presente, o futuro
e principalmente sua relação com o passado.
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190

ANEXOS
191

Anexo 01

Tabela 11: Etapas de construção de hidrelétricas em região de floresta tropical e riscos à


saúde - Modelo Tucuruí.

Fonte: COUTO (2007).


192

Anexo 02

Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos

DECRETO Nº 7.342, DE 26 DE OUTUBRO DE 2010.

Institui o cadastro socioeconômico para identificação, qualificação e


registro público da população atingida por empreendimentos de geração de
energia hidrelétrica, cria o Comitê Interministerial de Cadastramento
Socioeconômico, no âmbito do Ministério de Minas e Energia, e dá outras
providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, incisos IV e VI,
alínea “a”, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 3 o-A da Lei no 9.427, de 26 de dezembro de
1996,

DECRETO:

Art. 1o Fica instituído o cadastro socioeconômico, como instrumento de identificação, qualificação e


registro público da população atingida por empreendimentos de geração de energia hidrelétrica.

Parágrafo único. Deverá ser assegurada ampla publicidade ao cadastro de que trata este Decreto.

Art. 2o O cadastro socioeconômico previsto no art. 1 o deverá contemplar os integrantes de populações


sujeitos aos seguintes impactos:

I - perda de propriedade ou da posse de imóvel localizado no polígono do empreendimento;

II - perda da capacidade produtiva das terras de parcela remanescente de imóvel que faça limite com o
polígono do empreendimento e por ele tenha sido parcialmente atingido;

III - perda de áreas de exercício da atividade pesqueira e dos recursos pesqueiros, inviabilizando a
atividade extrativa ou produtiva;

IV - perda de fontes de renda e trabalho das quais os atingidos dependam economicamente, em virtude da
ruptura de vínculo com áreas do polígono do empreendimento;

V - prejuízos comprovados às atividades produtivas locais, com inviabilização de estabelecimento;

VI - inviabilização do acesso ou de atividade de manejo dos recursos naturais e pesqueiros localizados


nas áreas do polígono do empreendimento, incluindo as terras de domínio público e uso coletivo, afetando a
renda, a subsistência e o modo de vida de populações; e

VII - prejuízos comprovados às atividades produtivas locais a jusante e a montante do reservatório,


afetando a renda, a subsistência e o modo de vida de populações.

Parágrafo único. Para os efeitos do disposto neste Decreto, o polígono do empreendimento abrange áreas
sujeitas à desapropriação ou negociação direta entre proprietário ou possuidor e empreendedor, incluindo as
áreas reservadas ao canteiro de obras, ao enchimento do reservatório e à respectiva área de preservação
permanente, às vias de acesso e às demais obras acessórias do empreendimento.
193

Art. 3o Fica instituído o Comitê Interministerial do Cadastro Socioeconômico, no âmbito do Ministério


de Minas e Energia, com as seguintes funções:

I - apresentar, no âmbito do processo de licenciamento ambiental, os requisitos para que o responsável


pelo empreendimento elabore o cadastro socioeconômico da população atingida por empreendimentos de
geração de energia hidrelétrica; e

II - acompanhar a elaboração do cadastro socioeconômico, a ser realizada pelo responsável pelo


empreendimento, e manifestar-se sobre sua adequação.

§ 1o O Comitê será composto por representantes dos Ministérios de Minas e Energia, do Meio
Ambiente, da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, do Desenvolvimento Agrário, da Pesca e Aquicultura e da
Secretaria-Geral da Presidência da República, cabendo ao Ministério de Minas e Energia a sua coordenação.

§ 2o O Comitê será integrado, ainda, por representantes dos órgãos e entidades federais com atribuições
relativas à população atingida pelo empreendimento analisado, quanto aos impactos referidos no art. 2o.

Art. 4o O cadastro socioeconômico e o funcionamento do Comitê serão disciplinados em ato conjunto


dos Ministérios de Minas e Energia, do Meio Ambiente, da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, do
Desenvolvimento Agrário e da Pesca e Aquicultura.

Art. 5o A Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL incluirá, nos contratos de concessão de uso do
bem público e nos editais de leilão, cláusula específica sobre responsabilidades do concessionário, frente ao
cadastro socioeconômico da população atingida por empreendimentos de geração de energia hidrelétrica.

Art. 6o Este Decreto se aplica aos empreendimentos a serem licenciados a partir de janeiro de 2011.

Art. 7o Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 26 de outubro de 2010; 189o da Independência e 122o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA


Wagner Gonçalves Rossi
Marcio Pereira Zimmermann
José Machado
Guilherme Cassel
Cleberson Carneiro Zavaski
Luiz Soares Dulci
Este texto não substitui o publicado no DOU de 27.10.2010
194

Anexo 03
Tabela 12: Impactos produzidos pelas barragens
1.IMPACTOS GERAIS
Municípios com área inundadas (montante) Cidades Anfitriãs
Perda de territórios e áreas cultiváveis Chegada de amplos contingentes de trabalhadores para
obras da barragem
Redução da capacidade produtiva na área inundada Aumento do contingente populacional impactado pela
barragem (não necessariamente os oficialmente
deslocados)
Impactos no comércio local Favelização de áreas no em torno da cidade
Impactos na arrecadação de impostos Ausência de dispositivos públicos para recepção do novo
contingente populacional
Deslocamentos compulsórios Sobrecarga dos equipamentos públicos já existentes
(escolas, postos de saúde, medicação...)
Acesso desigual às informações e técnicos disponíveis) Conflitos entre grupos sociais distintos
Assimetrias no processo decisório
2. DESLOCAMENTOS COMPULSÓRIOS
a) questões fundiárias e produtivas Territórios terrestres
Escancaramento das problemáticas fundiárias não resolvidas
Aumento da concentração fundiária
Especulação imobiliária na região próxima (aumento no preço das terras dificultando o uso das indenizações para
compra de terras semelhantes)
Não garantia dos ciclos produtivos na época do deslocamento
Não garantia de reassentamento em área com características produtivas semelhantes (exemplo de Itaipu e Pedra do
Cavalo)
b) Dimensões jurídicas e violações de direitos
Disputas entre Estado, empresas e populações afetadas pela barragem em torno do conceito de atingido e suas
derivações no campo dos direitos
Uso de estratégias de individualização das negociações fragilizando as lutas coletivas e acesso aos direitos
Uso de perspectiva do direito positivo para negociação dos territórios (indenizações e reassentamento mais comum
para aqueles que têm posse de terra em detrimento de grupos com usos tradicionais e coletivos da terra/água)
Violações de direitos humanos individuais e coletivos
Desrespeito a legislações nacionais e internacionais sobre direitos coletivos de comunidades étnicas e indígenas como
o OIT 169
“Povos indígenas e tribais e minorias étnicas vulneráveis sofreram um nível desproporcional de deslocamentos e
impactos negativos sobre os meios de subsistência, a cultura e a existência espiritual”(CMB, 2000).
c) Territorialidade e Identidade
c.1) Relações com a terra
Não garantia de acesso a territórios formados por terra/água (boa parte dos grupos praticam a agricultura família,
associada à pesca artesanal e mesmo a extrativismos)
Conflitos entre concepções de territorialidade (uso, manejo, posse e organização dos recursos) distintas entre técnicos e
população reassentada
Conflitos concepções de trabalho e lazer distintas entre técnicos que operam deslocamento e as populações
195

reassentadas
Conflitos em torno das concepções distintas de território: para Estado e empresas o território limita-se ao espaço
geofísico, mensurável, quantificável e transformado em mercadoria X para alguns grupos o território possui
significados que extrapolam dimensão material e envolvem aspectos culturais, afetivos e ligados á história do
grupo/família
Reassentamento de grupos e comunidades distintas num mesmo lugar implicando em conflitos pelo estabelecimentos
dos novos códigos sociais e territoriais dos grupos
Aumento na desigualdade entre os sexos, com as mulheres sofrendo uma parcela desproporcional dos custos sociais e,
via de regra, sendo discriminadas na partilha dos benefícios (CMB, 2000)

c.2) Territorialidade das águas


MONTANTE JUSANTE
Perda de acesso as águas em alguns territórios Alterações no biomas aquáticos
Perda de territórios na águas pela alteração do ritmo e Alterações nos biomas por meio da salinização
estrutura das águas
Prejuízos nos meios de subsistência e produtividade futura
de diversas comunidades pesqueiras a jusante
Por consequência, perda de acesso a pesqueiros de uso coletivo e tradicionais (patrimônios imateriais e culturais dos
pescadores e comunidades pesqueiras)
d) Alterações Ambientais
Desmatamento
Destruição de florestas e habits naturais promovendo desaparecimento de espécies e a degradação ambiental a
montante
Drásticas alterações na flora e fauna terrestre e aquática
Alterações no ritmo e curso das águas
Alterações na biodiversidade aquática, com diminuição das áreas de desova, não se limitando aos ecossistema fluviais,
mas influenciando também nos ecossistemas adjacentes marinhos.
Impactos cumulativos sobre a qualidade da água, inundações naturais e a composição de espécies quando várias
barragens são implantadas em um mesmo rio.

Alterações físico-químicas nas águas


Impactos na migração dos peixes e extinção de algumas espécies.
03. ANÁLISE DAS MULTIPLAS DIMENSÕES DOS DANOS
a) COMUNIDADES
Perda de referenciais territoriais e identitários
Fragmentação e separação de algumas comunidades ou parte delas
Perda do territórios relacionado á memória/história do grupo
Uso de estratégias de desmobilização das comunidades (separação em reassentamentos, indenizações individualizadas,
negociações desiguais, cooptação de lideranças...)
Impactos significativos sobre modos de vidas de povos tradicionais (pescadores artesanais, ribeirinhos, indígenas,...)
b) FAMÍLIAS
Suspensão de projetos familiares a espera das definições da barragem durante anos
Famílias sem acesso a indenizações ou com indenizações irrisórias(CMB, 2000)
196

Famílias reassentadas em locais distintos (as vezes em cidades diferentes)


Graves transformações nas dinâmicas produtivas, organizativas, simbólicas e afetivas.
c) PESSOAS
Impactos na saúde (ver COUTO e dados da FIOCRUZ)
Impactos na saúde mental (incluindo casos de suicídios e amento do alcoolismo)
Sofrimentos
Violações de direitos (reintegrações de posse, criminalização de certos grupos)
Violência concreta e simbólica (uso da lei de segurança nacional para dispositivo das indenizações)
Anexo 04
Dados dos ENTREVISTADOS Dados ENTREVISTA
N Nome Se Idade Ocupação/Tipo Deslocamento Participação Observações Data Local da Identificação Tempo da Número Foto Arvore Diário de
xo da barragem em grupos entrevista gravação de familiar campo
comunitários páginas
01 R(a) F 33 Agente de Saúde Sim Associação e Membros na 28/02/11 STR Santo Deslocada e 01:02:00 22 Sim Não Sim
(1978) (fazenda Sindicato dos casa/família: Estevão agente de (fichas)
pocinho) Trabalhadores 04 Saúde da
Rurais Alfabetizada Modelo
02 CL(a) F 59 APOSENTADA( Não Associação Membros na 01/03/11 Associação Presidente da 19 min 8 Não Não Sim
(1952) Trabalho Rural ) - (vivia na e casa/família: Beneficent Associação
Lavradora Fazenda que se STR 05 e Rural de
tornou Alfabetizada MODELO
reassentamento
Modelo)
03 JN(a) F 81 APOSENTADA Sim Nenhum Membros na 01/03/11 Casa Deslocadas 1:25:00 40 Sim Não
(1930) RURAL (Fazenda casa/familia: pela barragem
(Trabalhadora Magalhães) 05
Rural –
Lavradora) Não
Alfabetiz. Sim
04 S(a) F 46 Lavradora Sim (Fazenda Nenhum Membros na 01/03/11 Casa da Deslocada 30 min 17 Sim Não
(1965) (Trabalho Rural) Magalhães) casa/familia: mãe JN(a) pela barragem
05

Alfabetizada
05 JL(a) F 71 APOSENTADOS Não (nascidos Associação e Membros na 01/03/11 Em casa Morador da 1:26:47 38 Sim Sim Não
e (1940) (Trabalhadores na fazenda que Sindicato dos casa/familia: antiga fazenda
E(o) M 75 rurais - Lavrador) virou Modelo) Trabalhadores 07
(1936) Rurais
Não
alfabetizados
06 L(o) 66 Sim (Fazenda Membros na 02/03/11 No Ex-presidente 1:35:00 35 Não Ver Não
M (1945) APOSENTADO Tororó) Associação casa/familia: sindicato do STR e da entrevist
RURAL e Sindicato dos 03 Associação da a 09
(Trabalhador Trabalhadores Alfabetizado Modelo
Rural – Lavrador) Rurais

07 M(a) e F 58 APOSENTADA Sim Grupo Membros na 02/03/11 Casa Deslocados 1:10:00 31 Não Sim Não
A(o) (1953) (professora) e (Fazenda Religioso casa/familia: pela barragem.
lavradora Trapiá) 12 Professora e
Alfabetizados Pescador.
M 64 APOSENTADO
(1947) (pescador e
lavrador)
08 L(o) M Ver 07 APOSENTADOS Sim (Fazenda Associação e Membros na 03/03/11 Casa Deslocados 1:18:00 40 Sim Sim Não
e (Trabalhadores Tororó) Sindicato dos casa/familia:
V(a) Rural – Lavrador) Trabalhadores 03
F 65 Rurais Alfabetizados
(1946)
09 G(o) M 42 Comerciante Sim (Fazenda Não vive na Membros na 03/03/11 Casa Hoje é 1h e 5 29 Não Ver o 09 Não
1969 Toróro) Modelo, vive casa/familia: comerciante. minutos
no centro de 04
Santo Estevão Alfabetizado
Morou em SP
por 8 anos.
Filho de L(o)
10 D(a) 53 APOSENTADA Sim (Fazenda Sindicato de Membros na 04/03/11 Casa Deslocada 1:28:00 30 Sim Sim Não
f (1958) RURAL Batizal) Trabalhadores casa/familia:
Rurais de 06
Santo Estevão Alfabetizada
Outros atores – liderança e técnicas da Desenvale
11 C(a) F Dirigente do 2010 Feira de Presidente do 1:02:10 25 Não Não Sim
Dirigente Sindical Pólo Sindical Santana Pólo Sindical-
Dirigente Sindical de Feira de atuou nas
12 C(a) F 31/10/2011 Salvador 1:20:30 29 Não Não Não
Santana mobilizações

13 X(a) F Assistente Social Ex-técnicas 11/10/2011 CAR 2:38:15 43 Não Não Sim
Y(a) F Assistente Social da área social
da Desenvale

14 Z(a) F Socióloga EX-tecnica da 18/10/2011 INGA 1:06:00 18 Não Não Não


Desenvale
Total 17 horas e 405
34 páginas
minutos
199

Anexo 05

Ilustração 23: Desenho de Dona JN(a), E(o) e CL(a) – trabalhadores da Fazenda de


Francisco Lessa antes de se tornar núcleo de reassentamento.

Fonte: pesquisa de campo.


200

Anexo 06

Ilustração 24: Desenho da família de M(a) e P(o) - Local onde viviam antes da barragem

Fonte: pesquisa de campo.


201

Ilustração 25: Desenho da família de D(a)

Fonte: pesquisa de campo.


202

Anexo 07

Tabela 13: Detalhamento das ocupações encontradas na Modelo

Grupo de Ocupação 1 Total


ajudante geral 1
aposentado 43
auxiliar de enfermagem 1
borracharia 1
carpinteiro 2
comerciante 4
costureira 1
DASS 45
doméstica 5
dona de casa 1
eletricista 1
entregador de gas 1
Estado 9
estudante 141
fotografia 1
lavrador 158
marcineiro 1
motorista 7
pedreiro 10
pescador 2
SEM INFORMAÇÃO 74
vendedor 1
zelador 1
Total geral 511

Elaboração própria a partir das fichas da agente de saúde de Santo Estevão

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