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NOELLI, F.S.; BROCHADO, J.P. O cauim e as beberagens dos Guarani e Tupinambá: equipamentos, técnicas de prepara
ção e consumo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 8: 117-128, 1998.
Guarani, do século XVI ao XIX, pois esses rituais ção é mantida até alcançar o teor alcoólico deseja
celebrações ainda são pouco conhecidos. Os da do. Às vezes, acrescentavam-se mais açúcares sob
dos apresentados também são úteis aos estudos de a forma de mel ou frutas e, também, fungos e outros
lingüística histórica, pois a nomenclatura dos in vegetais que aumentavam ainda seu conteúdo al
gredientes e equipamentos indicam que a prática coólico. Podiam ou não ser mastigadas, dependen
da cauinagem ocorre, pelo menos, desde há vários do da quantidade de açúcares já contida nos ingre
milênios, na época do proto Tupi-guarani. dientes. Lima (1990: 312-313) considera o cauim
Constatamos, como se pode ver abaixo, que como um “pão líquido” ou uma “sopa pré-digerida
os ingredientes e equipamentos usados na produ e fermentada por bactérias e leveduras”.
ção destas bebidas eram utilizados de maneira si Devido ao seu efeito embriagador, as bebidas
milar pelos Guarani e Tupinambá. O seu consu fermentadas alcoólicas dos Guarani e Tupinambá
mo, nas chamadas beberagens, também foi reali foram freqüentemente traduzidas e registradas por
zado em contextos sociais semelhantes, condicio cronistas quinhentistas e seiscentistas como “vi
nados, ao que tudo indica, por elementos culturais nho” e, menos freqüentemente, como “cerveja”.
comuns. Como sintetizou originalmente Alfred Sem embargo, no século XX, foram vertidas como
Métraux (1928: 171): “Nada ocorria de importân “água de bêbado” (Stradelli 1929: 407). Seriam,
cia na vida social ou religiosa ... que não fosse na realidade, diversos tipos de bebidas e o termo
seguido de vasto consumo de certa bebida fermen genérico talvez indicasse apenas serem todas al
tada conhecida pelo nome de cauim”. coólicas. Assim, cauim em Tupinambá e caguy em
As fontes compulsadas formam dois blocos Guarani, definem genericamente qualquer tipo de
distintos quanto à natureza das informações. Para bebida fermentada embriagante, não consideran
os Guarani a maioria delas são constituídas por do nem os ingredientes nem a forma de produção.
verbetes de dicionários da época dos primeiros con No final do século XVI e início do XVII o
tatos, em que os termos indígenas referentes à bebi tradutor do Tupinambá, no Vocabulário na Lín
da e ao equipamento estão traduzidos e explicados; gua Brasílica, foi preciso: caoy (VLB II: 146)1
porém, existem poucas descrições “etnográficas” “vinho qualquer”. No início do século XVII, An-
do seu preparo e consumo. Para os Tupinambá, ao tonio Ruiz de Montoya verteu de modo simplifi
contrário, existem completas descrições “etnográ cado no Tesoro e no Vocabulário de la Lengua
ficas”, mas poucas referências em dicionários. Guarani: caguy (T: 86, B: 231)2“vinho”. No Te
As descrições históricas e etnográficas tam soro, são sinônimos as seguintes traduções: vinho,
bém nos mostram que existiam variadas bebidas licor e chicha (palavra quichua introduzida pelos
com diversos graus de fermentação, feitas com os europeus). As traduções são similares nos demais
mesmos vegetais comumente consumidos como cronistas do mesmo período e como não havia re
alimentos (cf. Lima 1990), que podem ser dividi gras gramaticais estabelecidas, a grafia foi variá
das em dois tipos: não-alcoólicas e alcoólicas. vel (Cunha 1989: 108): cauy, caüy, caguy, cauhi,
As bebidas fermentadas não-alcoólicas são cauin, cauim, kauin, etc.
derivadas da fermentação do amido de vegetais co
mo a mandioca, batata doce, milho, podendo du
Ingredientes
rante a sua produção ser mastigados ou não. Pode-
se considerar estas bebidas como uma outra manei
Os ingredientes eram variados e sua quantida
ra de ingerir estes mesmos vegetais que eram con
de reflete a intensiva exploração dietária dos vege
sumidos fervidos, assados ou torrados, quebrando tais, demonstrando um conhecimento botânico que
a monotonia dietária. Este tipo de fermentação in propiciava múltiplos empregos de uma mesma
terrompida do amido produzia açúcar, mas não em planta (como bebida, comida, remédio, matéria pri
quantidade suficiente para gerar um teor alcoólico ma, etc.).
embriagante. Estas bebidas quando azedam não são
mais consumidas, por isso devem ser produzidas
diariamente, como se constata na etnografía sul-
(1) VLB = Vocabulário na Língua B rasílica. VLBII:
americana. 146=volume II, p. 146.
As bebidas fermentadas alcoólicas são pro (2) T: 86 = Tesoro de la Lengua Guarani, p.86. B: 231 =
duzidas de forma semelhante, porém a fermenta Vocabulário de la Lengua Guarani, p.231.
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As bebidas embriagantes podiam ser feitas a de ingredientes. Há, também, um trecho no longo
partir de um único vegetal ou da mistura de duas poema épico de Martin dei Barco Centenera (1970:
ou mais plantas. Frutas e/ou mel eram adiciona 379), composto no fim do século XVI para des
dos às bebidas que tinham como base cereais, crever a conquista espanhola da Bacia Platina, que
raízes e/ou tubérculos amiláceos, para aumentar o relata alguns vegetais empregados no cauim:
teor de açúcares (frutose/glicose) e, pela fermen
“El vino de maíz y de algarroba,
tação, o alcoólico. Fungos também poderiam ter
de molles, y de murta bien obrado,
sido acrescentados para diminuir o tempo gasto
seguro que bebían casí arroba
no processo de fermentação (Hartmann 1958, Lima
que medida a cada cual le estaba dado ”
1990).
Os ingredientes mais usuais parecem ter sido Em outras fontes, relativas a regiões do leste
os cultivares de mandioca e milho, que aparecem da América do Sul separadas por enormes distân
com maior freqüência nas descrições, principal cias, encontramos referências que atestam o em
mente das bebidas consumidas nos rituais antro- prego generalizado dos mesmos ingredientes,
pofágicos. Outros vegetais amiláceos, frutas, fun exceto os fitogeograficamente limitados pelo cli
gos e mel também eram utilizados, conforme a épo ma, solo e ambiente (Brochado 1977, Lima 1990).
ca do ano e a motivação da beberagem. Porém, a As referências utilizadas neste trabalho para
maioria das informações Guarani e Tupinambá compor a lista de ingredientes e para definir o nome
poucas vezes precisam que ingrediente era usado científico das espécies vegetais citadas foram ex
e em qual ocasião, ficando a resolução deste pro traídas de cronistas e das sínteses de Hoehne
blema aberto às futuras pesquisas. (1937), para os Tupinambá; e de Gatti (1985) e
No século XVII Simão de Vasconcelos (1977: Noelli (1993, 1994) para os Guarani. Considera
106-107) apontou uma lista de 32 tipos de cauins mos esta lista incompleta por estes tempos, devi
entre os Tupinambá, mencionando alguns: do à natureza das fontes utilizadas, sendo prová
“Uns fazem de fruta que chamam acaiá; ou vel que os Guarani e Tupinambá empregassem
outros ingredientes.
tros de aipim, e são de duas castas, a uma
chamam de cauí caracú, a outra de cauí As bebidas podem ser divididas, quanto aos
macaxera; outros de pacoba, a que chamam seus ingredientes, entre as produzidas basicamen
pacouí; outros de milho, a que chamam de te com vegetais cultivados típicos de roça (p. ex.
abativi; outros de ananás, que chamam milho, mandioca, batata doce, cará, taioba, abó
nanavi, e este é mais eficaz, e logo embebeda; bora e banana), que possuem mais amido que açú
outros de batata, que chamam jetivi; outros cares; e as produzidas basicamente com frutas, que
de jenipapo; outros que chamam bacutingui;3 contêm mais açúcares que amido. Estas frutas
outros de beiju, ou mandioca, que chamam eram cultivadas (p. ex. genipapo, abacaxi, caju)
tepiocuí; outros de mel silvestre outros de nas roças e em áreas manejadas ou coletadas em
acaju, e deste tanta quantidade, que podem diferentes ecótonos.
encher-se muitas pipas, de cor a modo de Do primeiro grupo, o milho, a mandioca e a
palhete batata doce eram utilizados na produção de bebi
das tanto pelos Guarani como pelos Tupinambá.
Para os Guarani não há uma lista assim com Porém só para os Tupinambá há menção de bebi
pleta numa mesma crônica, sendo os dicionários das preparadas a partir do cará, taioba, banana e o
de Montoya os repositórios da maior quantidade genipapo, ainda que estes também fossem cultiva
de ingredientes conhecidos, perdidos entre os mi dos pelos Guarani. Por outro lado, só para os
lhares de verbetes do Tesoro. Existe, também, uma Guarani há menção de bebidas feitas com abóbo
descrição genérica de Cardiel ([1780], 1984: 47):
ras, apesar de estas serem também cultivadas pe
“[os Guarani] têm vinhos de diversas frutas, er
los Tupinambá. Nestes casos em que não há infor
vas, raízes e grãos”, que pode representar o reco
mação, ainda não pudemos concluir se a produção
nhecimento e emprego de uma grande variedade
dessas bebidas era pouco freqüente ou inexistente.
Quanto às frutas do segundo grupo, só existe
informação de que o abacaxi e o ananás eram usa
(3) Planta não identificada. dos nas bebidas tanto pelos Guarani como pelos
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Tupinambá. Mas, há novamente menção de que de mandioca, cozida antes em beijú e desmancha
apenas os Tupinambá faziam bebidas da mangaba, da em água fria'". A menção a qualquer “espécie
do caju, do acaiá (os dois últimos não existiam de fécula” reforça a possibilidade de se empregar
nos territórios ocupados pelos Guarani; não há variadas espécies de plantas como ingrediente para
notícia de que a mangaba era consumida na forma fazer o cauim.
de bebida pelos Guarani). Por outro lado só os Os Guarani denominavam o cauim de batata
Guarani faziam bebida da alfarroba e da aroeira, doct-Ip o m o ea batatas decaracu (T: 90, B: 231),
embora esta última também fosse consumida pe do mesmo modo que o de mandioca doce. Os
los Tupinambá. Tupinambá chamavam-no de jetivi (B: 233; Ca:
41; SV: 106; M: 17).
Os Tupinambá elaboravam cauim de tuberosas
Sumário de ingredientes como o cará-D ioscorea sp. - (Bettendorff, 1990:
233) e a taioba - Colocasia antiquorum - (Barleus,
Cauim de milho - Zea mais - era chamado de 1980: 132). Quanto aos Guarani, não há informa
avati caguy4 (T: 86, B: 231) ou abativi (SV: 106)5 ções explícitas, apesar de eles também cultivavam
e poderia ser misturado com mandioca (S: 77; Th: essas plantas.
89; C: 175; L: 117; R: 168; Lo: 173; Az: 374; BC: Por outro lado, os Guarani produziam um
379; SS: 182; S: 112; An: 398); ou com mel (An: cauim de abóboras - Cucurbita maxima - chama
54). do curapepe mbi (T: 109); mas não há descrição
O cauim dos cultivares de mandioca - Mani de seu emprego entre os Tupinambá, ainda que
hot esculenta - “amarga” ou tóxica eram denomi estes as cultivassem também.
nados de caracú (T: 90, B: 2311. cauim pepica ÍS: O cauim de abacaxi e ananás - Ananas
82), cauí caracú e caui caraixu. O cauim feito com bracteatus e Ananas comosus - era chamado pe
as variedades não-tóxicas ou “doces” era chama los Tupinambá de nanaig (VLB II: 146; SV: 106).
do de caui macaxera e aipigig (SV: 106,149, VLB Não temos o nome Guarani da bebida, mas tam
II: 146), sendo apenas fervidas e, posteriormente, bém há descrições do seu consumo (Lz: 249). Os
mastigadas. A mandioca “amarga” tinha que pas cronistas registraram o conceito que os Tupinambá
sar antes pelo processo de extração do ácido tinham do cauim de abacaxi, considerando-a uma
cianídrico, através da prensagem e do cozimento das frutas mais saborosas e embriagantes (Ca: 63;
a seco ou torragem, como na preparação da fari SS: 201-202). Montoya (T: 234) reproduz um di
nha e do beiju (C: 47; G: 137; SS: 179; L: 117; tado Guarani a respeito do apreço pelo abacaxi:
An: 84; N: 96; A: 238). Esse tipo de mandioca “um abacaxi tem só três coisas, que são a cor, o
podia ser misturada com milho (S: 77; Th: 89), sabor e o odor”.
com batata doce (B: 233) ou cará (B: 233). Os Acajuig (VLB II: 146). Caju-cauim (Ab: 237),
Tupinambá chamavam o cauim, elaborado a par como diz seu nome, é a bebida de - Anacardium
tir do beijú, de tepiocuí (SV: 106) ou bejutigig occidentale - muito consumido pelos Tupinambá
(VLB II: 146). Na Língua Geral Amazônica, do Nordeste brasileiro (Ab: 237; Br: 352; SS: 187;
dicionarizada por Ermano Stradelli (1929:407), o E: 196; Ca: 51). Como os outros cronistas, Simão
nome de caxiri, também traduz a confecção do de Vasconcelos (SV: 106-107) chama a atenção
cauim de beijú: “bebida fermentada de qualquer para a quantidade com que era produzido e a pre
espécie de fécula, mas, de preferência, de farinha ferência que merecia, comparando-o com o vinho
europeu do tipo palhete: “é este vinho [cauim] entre
eles, estimado sobre todos os outros”. Da mesma
(4) Os nomes em negrito correspondem aos Guarani e os maneira, Abbeville (1975: 237) escreveu que o
sublinhados aos Tupinambá. cauim de caju era parecido com os vinhos brancos
(5) Ab = Abbeville; An = Anchieta; Aza e Azb = Azara; B regionais da França. O caju não ocorre na área que
= Bettendorff; Bc = Barco Centenera; Br = Brandão; C = foi dominada pelos Guarani (Cavalcante, 1991:
Cardiel; Ca = Cardim; Co = Correia; E = Évreux; G =
69).
Gandavo; Gu = Guevara; L = Léry; Lo = Lorenzana; Lz =
Lozano; M = Marcgrave; N = Navarro; R = Romero; S =
O cauim de banana - Musa sp -, era chamado
Staden; SC = Schmidl; SV = Simão de Vasc.; SS = Soares pelos Tupinambá de Pacouí (SV: 106). Não há
de Sousa; Th = Thevet. notícia desta bebida entre os Guarani, embora
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consumissem a fruta, que chamavam de pacova Ey caguy (T: 124, B: 231), cauim de mel. Esta
(T: 260, B: 165). era uma das bebidas alcoólicas mais difundidas na
O cauim de mangaba - Hancomia speciosa - América do Sul (Handbook 1946a, 1946b, 1948a,
era denominado de Mangabig (VLB II: 146) pelos 1948b; Hartmann 1958). Alguns cronistas citam
Tupinambá. Não há notícia desta bebida entre os explicitamente seu emprego no cauim (SC: 63; Lo:
Guarani, embora consumissem a fruta, que cha 173; Az: 374; BC: 379; SV: 106; E: 77), enquanto
mavam de mangai (T: 206). outros deixam subentendido seu emprego. O mel
O cauim de acaiá (SV: 106) - Spondias era freqüentemente adicionado em cauins de in
mombim - também era consumido apenas pelos gredientes predominantemente amiláceos, com
Tupinambá. Devido à restrição geográfica desta objetivo de aumentar o teor alcoólico.
planta, os Guarani não poderiam consumi-la em Finalmente, a exemplo de grupos Tupi con
seus territórios. temporâneos, os Guarani e Tupinambá também
Cauim de Jenipapo (SV: 106), Genipa ameri poderiam ter empregado sementes piladas de al
cana, consumido pelos Tupinambá. Não há des godão, abóbora, amendoim e outras plantas culti
crições do seu emprego como bebida, mas poderia vadas, misturados ao milho e aos outros vegetais
ter sido consumido assim pelos Guarani, que de básicos do cauim (Baldus 1970: 198, Lima 1990).
nominavam a fruta como nandipava (T: 242). O vinho europeu era distinguido do cauim,
Cauim deivope (Aza: 374; Azb: BC: 379; Gu: recebendo a designação Guarani, uva caguy (T:
525), de alfarroba - Prosopis juniflora. Exclusivo 86, B: 231) “vinho de uvas”. Entre os Tupinambá,
dos Guarani, por ocorrer apenas na sua área de segundo Anchieta (1988: 459) o vinho era deno
ocupação (Cruz, 1985: 37). De acordo com Gatti minado como cãoy áyà (“vinho agro”) em com
(1985: 76) eram utilizadas aspuntas de alfarroba, paração ao cãoy eté, o “cauim verdadeiro”, con
a vagem, para confeccionar a bebida. Provavelmen feccionado com equipamentos e ingredientes tra
te, de acordo com Azara (1969: 81), pois não en dicionais que estamos descrevendo neste trabalho.
contramos informação explícita, as vagens eram
transformadas em farinha antes de serem ensaliva-
das (a farinha era chamada de ivopekuí, T: 171). O equipamento
Hoehne (1937: 69-70), ao considerar o consumo
da alfarroba como bebida, cita as descrições de Para elaborar as bebidas, os Guarani e Tupi
Ulrich Schmidl para os povos da bacia do Paraguai. nambá utilizavam basicamente o mesmo tipo de
Cauim de aguara yva (T: 197) -Schinus mol- equipamento. Os não-perecíveis, como as vasilhas
le, Schinus terebentifolius (Az: 374; BC: 379; Lo: cerâmicas e os implementos líticos, e os perecí
249). Somente encontramos descrições para os veis, como as ferramentas e utensílios de madeira,
Guarani, embora os Tupinambá de São Paulo pu osso, concha, dente, etc., podem ser estudados a
dessem tê-la transformado em bebida alcoólica. partir dos cronistas mencionados e dos achados
Os Guarani tinham um nome genérico para o arqueológicos. Os restos das plantas usadas como
cauim de uma fruta qualquer: yva’y (T: 166) “vi ingredientes também podem ser resgatados nos
nho de fruta”. Da mesma maneira os Tupinambá. contextos arqueológicos, contribuindo decisiva
Os cronistas referiam-se ao emprego de mui mente para definir regionalmente quais as espéci
tas espécies frutíferas, sem discriminá-las, apenas es que eram empregadas.
citando que havia cauim feito de muitas frutas (CC: As vasilhas cerâmicas arqueológicas Guarani
47; Ca: 146; An: 398; SV: 106). Neste caso, os 32 e sua funcionalidade foram intensamente estuda
tipos referidos por Simão de Vasconcelos (1977: das por La Salvia & Brochado (1989), Brochado,
106) podem ser um exemplo da variedade de ve Monticelli & Neuman (1990), Brochado & Monti-
getais empregados. Se considerarmos somente as celli (1994). As vasilhas Tupinambá e sua funcio
espécies nativas que ocorrem no Brasil, é possível nalidade descrita pelos cronistas começaram a ser
que se elaborasse mais de 140 tipos diferentes de estudadas por Brochado (1991) e Assis (1995). Te
cauim de frutas, pois este é o número aproximado ríamos que considerar também os raladores, pilões,
de espécies consumidas, referidas na documenta tipitis, facas, furadores e raspadores de pedra, con
ção sobre os Guarani (Gatti 1985, Noelli 1993) e cha, dente, osso e madeira, cestos, estruturas de
Tupinambá (Hohene 1937, VLB). suporte para o tipiti, fogões, áreas cobertas anexas
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ção e consumo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 8: 117-128, 1998.
ou no interior das casas (cf. exemplos etnográficos nduuhara (T: 86) “as que mascam ... para vinho”.
dos equipamentos In: Ribeiro 1988). Para os Tupinambá, em vez da denominação para
O uso deste equipamento também seguia uma as mulheres que mascam, existem várias descri
mesma seqüência de operação nos dois grupos, ções e iconografias da cena (SS: 311; Th: 89; SV:
depois que os ingredientes haviam sido coletados, 149). As citações de Staden e, abaixo, de Léry,
transportados em cestos para aldeia, limpos, des podem representar as várias descrições:
cascados e preparados para iniciar a elaboração das
“As mulheres fazem as bebidas. Tomam raízes
bebidas.
de mandioca e cozinham em grandes panda
O processamento inicial dos ingredientes, de
das cheias. Uma vez cozida, retiram a mandi
pendendo do tipo de vegetal, tinha etapas diferen oca da panela profunda, passam-na em outras,
tes: lavá-los para remover os sedimentos agrega ou em vasilhas não profundas, e deixam-na
dos ou descascá-los com facas de pedra lascada esfriar um pouco. Então se assentam as meni
ou de carapaça de moluscos ou com ossos. Algu nas perto, mascam-na, colocando-a numa va
mas espécies, como a alfarroba, ou partes das plan silha especial. Quando todas as raízes cozidas
tas, como as sementes, poderiam ser ralados ou estão mastigadas, põem de novo a massa na
triturados em pilões de pedra ou madeira, com panela, deitam-lhe água, misturam ambas e,
mãos-de-pilão igualmente confeccionados de pe aquecem de novo. Têm para tal vasilhas ade
dra ou madeira. Outras poderiam ser secionadas quadas, que enterram a meio no chão, e que
em várias partes com as facas ou raladas em rala se empregam como aqui os tonéis para vinho
dores feitos em pranchas de madeira com cente e cerveja” (Staden 1963: 126).
nas de pequenas lascas de pedra incrustadas. A
mandioca tóxica tinha um processo e equipamen “fervem em grandes vasilhas de barro cheias
tos exclusivos, como já mencionamos acima, para d’água, até que amoleçam; tiram-nas então do
extrair o ácido cianídrico, sendo prensada no tipiti fogo e as deixam esfriar ... acocoram-se em
ou outros tipos de prensa, pré-cozida, torrada, torno das vasilhas e mastigam ... jogando-as
transformada em farinha ou beijú, para depois se depois em outra vasilha ... para uma nova
guir a mesma seqüência das outras espécies (cf. fervura, mexendo-as com um pau até que tudo
prensas e sua distribuição In: Dole 1960). esteja bem cozido. Feito isso, tiram do fogo a
Quando a preparação e limpeza dos ingredien pasta e a põem a fermentar em vasos de barro
tes estava concluída, a etapa seguinte consistia no de capacidade igual a uma meia pipa de vi
cozimento dentro das vasilhas com função especí nho” (Léry 1941: 117).
fica de preparar alimentos por fervura, diretamente Por outro lado, a iconografia de Staden (1974:
sobre o fogo, denominadas yapepo(T: 188, B: 118) 166) representa abaixo parte da confecção da be
pelos Guarani e nhaempepo (VLB II: 63) pelos bida. O cozimento na panela funda (acima, direita),
Tupinambá. Este tipo de vasilha não possui um a mastigação e cuspida no bacio (acima, esquer
tratamento de superfície pintado, sendo simples da) e a deposição nas talhas, também profundas
mente corrugadas, alisadas, escovadas e, mais rara (abaixo, esquerda), usadas primeiro para a fermen
mente, unguladas (glossário In: La Salvia & Bro tação e depois para servir.
chado 1989: 35-108). Tinham tamanhos variados, Assim, depois de fervidos em panelas, amas
que poderiam conter até mais de 250 litros, como sados ou mastigados, os ingredientes eram co
é possível conferir nos exemplares arqueológicos locados e cuspidos em outras vasilhas, para se
inteiros existentes em diversas coleções museoló- rem reaquecidos até 50° C ou 60° C durante al
gicas do Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. gum tempo, sendo a fervura evitada, pois inter
Em seguida, os ingredientes eram retirados da romperia o início do processo de fermentação
panela para que uma parte fosse mastigada e cus (Ab: 238; L: 117; S: 165). Estas vasilhas tinham
pida em outra vasilha, onde estaria pronta para ini por função um uso similar ao das panelas, po
ciar a fermentação. A outra parte poderia ser amas rém, conforme com os exemplares arqueológicos
sada com as mãos ou em pilões, antes de ser agre inteiros, tinham o formato diferente, aproxima
gada junto com a porção mastigada (A: 237-239; damente tronco-cônico e de altura menor que as
SS: 311). Entre os Guarani, as mulheres que mas panelas. Entre os Guarani recebia o nome de ñaetá
cavam os ingredientes eram chamadas de caguy (T: 241, B: 210), traduzido por Montoya como
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conter mais de 450 litros de cauim entre os formava uma crosta coloidal na superfície da be
Tupinambá (cf. Brochado 1991). Entre as talhas bida (todavia, esta crosta também poderia ser even
arqueológicas Guarani depositadas em museus, po tualmente ingerida). Os Guarani possuíam uma
demos encontrar exemplares com capacidade para escumadeira, chamada de tyjyi ogkava (T: 391),
conter mais de 300 litros. para retirar a escuma e fragmentos dos ingredien
A partir desta fase, devido à fermentação, ha tes. Da mesma maneira, os Tupinambá também
veria uma produção de gases e uma elevação na deviam possuir uma, embora não tenhamos encon
tural (sem fogo) da temperatura até aproximada trado descrição.
mente 40° C, fazendo com que a bebida borbulhas- Para iniciar o consumo, isto é, a beberagem,
se (cf. exemplo In: Baldus 1970: 200-201). Para após o cauim atingir a consistência e temperatura
que este processo fosse possível, as vasilhas eram adequadas, esperava-se que os pedaços e fibras dos
“bem fechadas” (S: 165) para que a fermentação ingredientes estivessem decantados, conforme as
fosse concluída. Conforme os dicionários, as talhas expressões huy a (B: 189) “assentar-se os licores”;
poderiam ser vedadas com uma tampa (outra vasi amoneuu acaguy ou amboipiapi caguy ruunguera
lha) e barro: amobapi peteg, amobapi mou ou amo- (T: 161) “fazer assentar o vinho”.
bapi chi (B: 335) “embarrar la boca dei vaso” e Encontramos diversos verbetes que retratam
açobapigtec (VLB I: 52) “barrar como as panelas o cuidado de não mexer ou revolver bruscamente
em que se guarda o vinho”. Deveria haver um pe a bebida, para não suspender a borra depositada
queno orifício na vedação para que o excesso de no fundo da talha, deixando o líquido livre de partí
gases pudesse escapar, pois, caso contrário, a veda culas flutuantes: ereco reco ime cambuchi huun-
ção de barro não seria suficiente para suportar a gue nemonani ey haguama (T: 34) “não meneies o
pressão interna da vasilha. As manifestações físi vaso, para que não se turve o licor”; ereco reco
cas do aumento da pressão, receberam dos Guarani ime caguy riru (T: 340) “não meneies o vinho”.
as expressões caguy ochiriri ou ochiriri caguy (T: Qualquer movimento brusco na talha ou na ativida
86, 120), que significavam “ferve o vinho”. de de retirar a bebida ao servir, poderia pôr a borra
Os registros do tempo gasto neste processo em suspensão. Existe uma expressão que parece
de fermentação variavam, dependendo possivel qualificar a bebida pela quantidade de resíduos flu
mente dos ingredientes empregados: entre 2 dias tuantes: caguy yeheapirey (T: 192) “vinho puro,
(A: 330; S: 165); 3 ou 4 dias (G: 55); “alguns dias sem surrapas”.
depois de seu preparo” (Th: 89). Esse período, a A bebida era servida por mulheres, que a reti
exemplo do que Coimbra Jr. (1985: 76) constatou ravam dos cambuchis e igaçabas com cabaças parti
entre os Suruí no início da década de 1980, pode das pela metade, denominadas pelos Guarani como
ria ser esticado até entre 7 e 10 dias para fermentar yvyrakuipe (T: 106) e com conchas denominadas
suas bebidas. yta guasu (T: 180) “colher grande”. Entre os Tupi
Dos processos de fervura e fermentação, for nambá seria de forma similar: “moças solteiras da
mava-se na superfície da bebida a escuma e, de casa andam dando o vinho em uns meios cabaços”
cantada no fundo da vasilha, a borra. Ambas po (SS: 311). Cardim (1931: 90) faz referência aos
deriam servir como alimento adicional. Os Guarani moluscos usados como cuias entre os Tupinambá,
cham avam a escum a de tyjyi (B: 368) e os comumente encontrados nos sítios arqueológicos
Tupinambá de yjuya (VLB I: 124). Quando o lí do litoral carioca.
quido estava em ebulição, formando a espuma na Os recipientes usados para beber podiam ser
superfície da bebida, os Tupinam bá diziam de cabaças ou de cerâmica. Os recipientes confec
atigjuyoc, atigjuyâr (VLB I: 124) “escumar como cionados com meia cabaças, semi-elipsoidais ou se-
panela”, e os Guarani: aytyjyiog (B: 368) “espu mi-esféricos que, dependendo da região, eram de
mar”. No Vocabulário na Língua Brasílica a ex crescentias (Crescentia cujete) e de lagenárias (La
pressão caoyee (VLB II: 43) é traduzida como genaria sp.). Entretanto, na região de ocorrência das
“mosto”, significando a bebida em fermentação. crescentias, estas eram as preferidas (especialmen
Thévet (Th: 89) compara o cauim espesso com o te no Norte e Nordeste do Brasil). O nome Guarani
mosto de vinho. era iapua (T: 166) “cabaça grande para vinho”; o
A escuma era retirada, conforme o verbete ay Tupinambá era cuia (VLB I: 61) “cabaço de grande
tyjyi og (T: 391) “tirar espuma”, pois muitas vezes casta partido pelo meio” (Cunha, 1989: 116-117).
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dois milênios (lista de datas obtidas através de car estrutura cultural comum aos Tupinambá e Gua
bono 14 In: Brochado 1984). Unificando dados his rani, bem como aspectos específicos devidos à his-
tóricos, lingüísticos e arqueológicos, existe a pos toricidade de cada grupo local e à configuração
sibilidade de se estabelecer consistentes modelos ambiental das diversas regiões onde os sítios ar
explicativos para se entender aspectos gerais da queológicos e/ou aldeias estão inseridos.
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