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Revista da Associação Cultural de Amizade Portugal-Egipto

Director:
Telo Ferreira Canhão

Número 3

Lisboa, Novembro de 2015


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A alimentação no antigo Egipto
Telo Ferreira Canhão
Centro de História, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
telofcanhao@gmail.com

Resumo: Tal como noutros locais, também no antigo Egipto a alimentação é um elemento
identitário bem definido. A iconografia, a arqueologia e a literatura egípcias contêm um vasto
património de vestígios respeitantes à sua alimentação. Cenas de cozinha e preparação de
alimentos, ou mesmo de deglutição, estão em muitos túmulos. Modelos tridimensionais
apresentam cenas detalhadas do pastoreio ao açougue e da pesca e caça à produção de pão
e de cerveja. Uma grande variedade de alimentos aparece em mesas de oferendas um pouco
por todo o lado. Há mesmo alimentos que mumificaram ou petrificaram e se conservaram
até hoje. Nem todos comiam o mesmo, mas todos comiam. Comiam os homens e comiam
os deuses. Falaremos de legumes e frutas, pães e bolos, peixe e carne, gorduras, açúcares,
condimentos e bebidas, apresentando modos de confecção para todos eles. Contudo, a grande
riqueza de fontes, que nos elucidam praticamente sobre todos os produtos que entravam
na gastronomia dos antigos Egípcios, não nos deixou receitas onde pudéssemos tomar
conhecimento das quantidades desses produtos. Assim não podemos elaborar verdadeiras 33
receitas culinárias do tempo dos faraós, salvo algumas excepções e apenas por aproximação,
nem nunca podermos saber o verdadeiro gosto que teriam os seus pratos.
Palavras-chave: legumes e frutas; pão e bolos; peixe e carne; gorduras, temperos e
adoçantes; bebidas.

Abstract: In Ancient Egypt, like in other places, the food is a well defined identity feature.
Egyptian iconography, archaeology and literature contain a wide heritage of traces regarding
its diet. Kitchen and food preparation scenes, even deglutition scenes, are present in many tombs.
The models depict detailed scenes from grazing to the slaughterhouse and from fishing and
hunting to the production of bread and beer. A wide variety of food appears on offering tables
throughout Egypt. There was even food that became mummified or petrified and was preserved
until nowadays. Not everyone ate the same, but all ate. The men ate and gods ate. We will talk of
vegetables and fruit, bread and cakes, fish and meat, of fat, sugars, condiments and drinks; and
we will show how all of them were prepared. Yet, the great richness of sources that enlighten us
about almost all the products that were part of the ancient Egyptians’ gastronomy, did not leave
recipes where we might learn about the quantities used. Thus we cannot create real culinary
dishes from the Pharaohs’ time, besides a few exceptions, and these only by approximation; and
neither can we know what might have been the actual taste such dishes had.
Key-words: vegetables and fruit; bread and cakes; fish and meat; fat, condiments and
sweeteners; drinks.
A estela 272 do Museu do Louvre, em calcário pintado de meados da XII dinastia (c. 1980-1765 a. C.), mostra
o intendente Senuseret diante de uma mesa de oferendas.
«Ora, porque a cozinha e a adega exercem uma tão larga e directa
influência sobre o homem e as sociedades, é que eu estranhava, há pou-
co, folheando Ateneu [O Banquete dos Sábios], que a erudição arqueo-
lógica não estudasse de um modo mais experimental e íntimo a cozinha
dos antigos, para lhes aprofundar mais completamente a estrutura mo-
ral. Diz-me o que comes dir-te-ei o que és. O carácter de uma raça pode
ser deduzido simplesmente do seu método de assar a carne. Um lombo
de vaca preparado em Portugal, em França ou Inglaterra faz compreen-
der talvez melhor as diferenças intelectuais destes três povos, do que o
estudo das suas literaturas.»
Eça de Queirós, Cozinha Arqueológica, 18931

1. Introdução

Aquilo que primeiro nos despertou a atenção sobre o passado do Egipto foram os túmulos
reais, os templos e as mastabas da elite, ao que se seguiram muitos outros vestígios materiais,
incluindo cidades de operários e túmulos privados que, depois do feito de Jean-François
Champollion (1790-1832), nos permitem, através das suas decorações e inscrições, conhecer
cada vez com maior precisão hábitos, utensílios e, até, gostos e valores dos antigos Egípcios.
A sua religião e costumes funerários legaram-nos através do que chamamos de arte egípcia,
34 que para os Egípcios era a forma de comunicarem e estarem com os deuses, representações de
mesas de oferendas recheadas das mais variadas vitualhas: carnes, peixes, produtos hortícolas,
frutos e bebidas. As próprias mesas de oferendas colocadas nos templos funerários chegaram
até nós. Com ou sem representações de alimentos, era aí que se colocavam cerimonialmente
os verdadeiros alimentos oferecidos ao defunto ou aos deuses, e eram feitas libações de água
sacralizada, vinho, leite, óleos, etc.
Contudo, essas cenas de todas as épocas da civilização faraónica são muito mais ricas,
pois apresentam uma grande variedade de actividades agrícolas, profissões artesanais e
comerciais, actividades de lazer como a caça, a pesca ou os banquetes, que também dão
excelentes informações para este tema. E até referências à organização do país, ao sistema
económico e social do Estado, que permitia através dos seus armazéns redistribuir alimentos
para evitar a fome, dão o seu contributo. Para além das imagens é de considerar que grande
parte das cenas murais é acompanhada de textos explicativos ou contextualizantes e que, para
além deles, há ainda referências em papiros e um espólio arqueológico considerável.
Os monumentos religiosos e funerários feitos para a eternidade que nos chegaram com
as suas preciosas decorações, ao contrário de nos revelarem um ambiente soturno e pesado,
mostram-nos alegria e vontade de viver. Num mundo regido pela crença e pela magia, uma

1 - Eça de Queirós, Cozinha Arqueológica, Lisboa: Compendium, 1998, pp. 27-28. Manuela Rêgo assina o
prefácio onde informa que o texto surgiu pela primeira vez na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, publicado em
três partes, nos dias 13, 14 e 15, de 1893, e foi postumamente integrado em Notas Contemporâneas, Porto: Lello &
Irmão, 1909.
das últimas cerimónias que o sacerdote ritualista executava na múmia do defunto era a
«abertura da boca», para lhe permitir de novo falar, comer e beber. Sabendo nós que, na
cultura faraónica, pela palavra se dava existência às coisas, isto mostra bem a importância
que a alimentação tinha na civilização egípcia, conduzindo-nos às alegrias da mesa e à
preparação dos alimentos que transparecem de grande quantidade de documentos. Não é que
tenhamos a sorte de terem chegado até nós algumas receitas de cozinha propriamente ditas,
mas as fontes que nos apresentam a alimentação dos antigos Egípcios são tão abundantes que
até podemos tentar reconstituir alguns pratos, com a certeza de não ficarmos muito longe da
realidade2. Infelizmente só podemos pressentir a riqueza e a variedade da cozinha egípcia,
pois não podemos apreender a sua arte culinária nos seus mais detalhados meandros.
Ao longo da história faraónica, são numerosas as estelas em que os defuntos mandaram
inscrever os seus títulos, fazendo-se representar frente a uma mesa de oferendas. Deste modo
assegurava-se a cada morto, através da magia, um serviço de refeições diário no Além, e,

Modelo de uma cervejaria, de madeira rebocada e pintada. Túmulo de Meketré (TT 280), XII dinastia, reinado de
Amenemhat I (c. 1980-1950 a. C.), em Cheikh Abd el-Gurna.

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2 - A obra de Pierre Tallet, La Cuisine des Pharaons, Arles: Sindbad/Actes Sud, 2003, que seguiremos de perto
em algumas passagens, integra-se na colecção L’Orient Gourmant e apresenta um número significativo de receitas
recuperadas e reconstituídas a partir de fontes diversificadas, a maior parte delas posteriores ao fim da civilização
faraónica. Como não são receitas dos antigos Egípcios que chegaram até nós, mas tentativas de aproximação, não as
incluímos neste texto, apresentando-as na íntegra no Boletim da ACAPE, a partir do seu número 29 (Janeiro-Abril
de 2015).
com variantes ao longo do tempo, fez-se um inventário completo de menus propostos, ainda
que simbolicamente, aos defuntos egípcios. Muitas vezes, a representação vai ao ponto de o
morto estender as mãos para os alimentos simbolizando a consumação das oferendas. Mas
não bastava isto: os nomes dos alimentos e as quantidades que deviam ser disponibilizadas
diariamente eram também inscritos na estela, dando a ideia clara de cada «menu». São
representadas e nomeadas variadas e numerosas oferendas de carne, de aves vivas ou já
preparadas, de partes de bovinos ou antílopes, várias espécies de peixes, diferentes tipos de
pães e bolos, frutos e vegetais diversificados, óleos, bebidas, etc.
A tudo isto, que já por si é de um valor incalculável, devemos juntar o património de alguns
túmulos mais elaborados, onde aparecem cenas de cozinha com representações de processos
de produção de alimentos. Infelizmente são quase sempre as mesmas operações: o abate e
desmanche dos animais, ou a preparação do pão e da cerveja. O pão, que podia ser comido sim-
ples ou acompanhado de cebola (Allium cepa) ou alho (Allium sativum) e a cerveja, encorpada
e espessa, eram a base da alimentação, «eram elementos fundamentais das oferendas aos deuses
e aos mortos, formando também o suporte dos salários no Egipto»3. Contudo, alguns casos há
em que nos é permitido ter uma ideia mais precisa da elaboração de certos alimentos, na área da
pastelaria, das bebidas ou das carnes. Também são de considerar alguns modelos tridimensio-
nais de cerâmica ou madeira do Império Antigo (c. 2660-2180 a. C.) e, sobretudo, os de madeira
do Império Médio (c. 2040-1765 a. C.) encontrados em túmulos, onde foram representadas
numerosas cenas da vida quotidiana de então. São maquetas com temas variados, mas grande
36 número delas mostra-nos detalhadamente
diferentes etapas das tarefas num açougue,
da pesca ou da produção de cerveja e pão.
Se as principais fontes são artísticas, gra-
ças ao clima seco e quente do Egipto há
casos de ficarem preservadas oferendas
alimentares verdadeiras deixadas nos tú-
mulos para alimentar o defunto e o seu ka
no Além, que se petrificaram ou mumifi-
caram. É um tipo de descoberta que não é
raro, existindo exemplos praticamente de
todos os períodos da história do Egipto.
É o caso, por exemplo, de um túmulo da
II dinastia descoberto em Sakara (Sakara
Alimentos de um túmulo tebano da XVIII dinastia, Mu- 3477), que continha uma refeição funerá-
seu Britânico, EA 5340. Nas prateleiras da mesa aves e ria muito bem preservada com vários tipos
outra carne, no cesto de vime pães e nos pratos cerâmi- de cereais, peixe, carne e vinho4, tudo em
cos figos e peixe.
recipientes cerâmicos e não de pedra, mui-

3 - Telo Canhão, Textos da Literatura Egípcia do Império Médio. Textos hieroglíficos, transliterações e tradu-
ções comentadas, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, pp. 387-389 e 478-479 (nt. 88).
4 - Ver Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 16.
to comuns na época. A refeição integrava um naco triangular de pão de espelta, um recipiente
com uma papa feita de grãos de cevada, peixe escamado cozido sem tripas nem cabeça,
guisado de pombo, uma codorniz depenada e cozida sem tripas, com a cabeça escondida
sob uma asa, dois rins cozidos, costelas e pernas de bovino, um cozinhado de identificação
incerta mas contendo costelas de bovino, compota provavelmente de figo, bagas frescas de
nabk5, pequenos bolos circulares, vários recipientes pequenos com alguns tipos de queijo e
uma jarra grande com vinho6.
No túmulo de Tutankhamon (c. 1333-1323 a. C.), dos finais da XVIII dinastia (c. 1550-
-1292 a. C.), também foi encontrada grande quantidade de recipientes cerâmicos de diversos
tipos, sobretudo no anexo e na câmara sepulcral7, que se podem agrupar em dois tipos
fundamentais: os recipientes abertos, sem qualquer tipo de tampa, que eram cerca de uma
dúzia, e os recipientes fechados, jarros com tampas ou ânforas seladas, cerca de 50, das quais
umas 30 eram ânforas para vinho, cada uma identificada com um selo hierático onde constava
a data de engarrafamento, o tipo de bebida, a vinha e o nome do vitivinicultor8. Três dessas
ânforas, por questões ritualistas estavam na câmara sepulcral entre as paredes e o santuário
exterior, uma junto à parede este com vinho branco, outra junto à parede oeste com vinho
tinto e uma terceira a sul com vinho chedeh, um vinho tinto com uma preparação diferente,
pois era filtrado e aquecido. Estas ânforas já se encontravam sem as suas tampas seladas9
e o líquido há muito que se volatilizara, apenas deixando os seus resíduos para podermos
analisar, o que nem sempre é muito fácil. A grande descoberta de Howard Carter em 1922
foi encontrada intacta mas, segundo provas aí recolhidas, antes de ser definitivamente selada 37
tinha sido duas vezes violada10.
Os outros recipientes cerâmicos, caixas de madeira e cestos, continham provisões
de alimentos e, os primeiros, como que os antepassados das latas de conserva, tinham
igualmente os respectivos selos que identificavam o seu conteúdo: óleos, gorduras,
unguentos e comida. A carne foi guardada em 48 caixas de madeira de duas peças e
vários tamanhos, designadas por «caixas em forma de ovo». Pintadas de branco por fora
e envernizadas com resina por dentro, continham diferentes partes de diversos animais
(cabeça, coração, espinha, tíbia… de boi), ou animais inteiros (gansos). Grande quantidade

5 - Frutos comestíveis da Zizyphus Lotus, uma árvore do Norte de África e do Sudoeste da Europa.
6 - http://www.digitalegypt.ucl.ac.uk/foodproduction/funeraryrepast.html, consultado em 07-07-2013.
7 - No pequeno túmulo de Tutankhamon é através de uma curta escadaria de 16 degraus que se chega a um corredor
de acesso orientado de este para oeste e que termina na parede este da antecâmara, que se estende de norte para sul.
Na parede em frente ao corredor, a parede oeste da antecâmara, há do lado esquerdo a passagem para o anexo e, na
parede da direita, a parede norte, há a passagem para a câmara sepulcral. Entrando nesta, temos no lado esquerdo da
parede à nossa direita, a parede este da câmara sepulcral, a passagem para a sala do tesouro (Nicholas Reeves, The
Complete Tutankhamun. The King. The Tomb. The Royal Treasure, Londres: Thames and Hudson, 2000, pp. 71 e 96.
8 - Idem, pp. 202-203.
9 - M. R. Guasch Jané, «Tres vinos en la transfiguración de Tutankhamon para su renascimiento», em L. M.
Araújo e J. C. Sales, Novos Trabalhos de Egiptologia Ibérica, I, Lisboa: Instituto Oriental e Centro de História da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pp. 525-527.
10 - Idem, p. 524.
de alimentos, originalmente encerrados no corredor do túmulo de Tutankhamon, foram
recuperados de Pit 54, um poço rectangular referenciado como o «princípio» de um túmulo
abandonado perto do túmulo de Tutankhamon11. Aí encontraram-se a omoplata de uma
vaca, costelas de carneiro ou de cabra, asas e peitos de nove patos (Anas crecca, Spatula
clypeata e Chaulelasmus streperus) e quatro gansos (Branta bernicla, Anser albifrons
e Anser fabalis). Havia uma grande variedade de tipos de pão (dos quais mais de uma
dúzia de forma semicircular com diversos tamanhos, outros com misturas de frutos e mel),
alguns envolvidos por embalagens individuais feitas de fibra de palmeira entrançada em
malha larga, e porções de grãos de cereais em cestos (cevada – Hordeum vulgare, e espelta
– Triticum dicoccum) misturados com sementes de leguminosas e de outras plantas, bem
como um modelo de moinho manual e outro de um celeiro12.
Os legumes e as leguminosas incluíam grão-de-bico (Cicer arietinum), lentilhas (Lens
esculenta), ervilhas (Pisum sp.), fenacho (Trigonella foenum-graecum), bagas de zimbro
(Juniperus oxycedrus), coentros (Coriandrum sativum), sésamo (Sesamum indicum), cominho
preto (Nigella sativa). Havia ainda duas pequenas ânforas com mel e uma boa selecção
de frutas com uma grande quantidade de tâmaras (Phoenix dactylifera), uvas secas (Vitis
vinivera), frutos de jujuba (Zizyphus spina christi) uma árvore típica do Próximo Oriente que
produz frutos muito doces, frutos da persea (Mimusops laurifolia) verdes e amarelos, frutos
da grévia (Grewia tenax) árvore típica do Norte de África que produz um pequeno fruto com
gomos, frutos de coculus (Cocculus sp.) uma planta tipicamente egípcia que gera pequenas
38 bagas vermelhas, figos de sicómoro (Ficus sycomorus), sementes de melancia (Citrullus
lanatus) para plantar ou mastigar e, ainda, amêndoas (Prunus dulcis)13.
Outro túmulo descoberto inviolado, dos finais da XVIII dinastia, foi o de Kha, arquitecto
de Amen-hotep III (1390-1353), que continha grande quantidade de alimentos. Tinha diversos
tipos de pão, alguns ainda dentro de embalagens individuais de fibra de palmeira entrançada,
semelhantes às encontradas no túmulo de Tutankhamon; bolos com várias formas de plantas
e animais; recipientes de alabastro com óleo, peixes secos, farinha e legumes, cabeças de alho
ou passas14. Mas estes restos de alimentos não nos interessam apenas em si. Ao submetê-los
a exames e análises obtiveram-se mais informações preciosas, até sobre a forma como foram
confeccionados. Podemos ficar a saber se o pão é simples ou se tem outro sabor misturado
como, por exemplo, o figo.
A arqueologia ainda permite coligir outros elementos respeitantes à alimentação das
populações. Quando há escavações em espaços urbanos, como a aldeia dos construtores
da pirâmide de Kahun, no Faium, da XII dinastia (c. 1980-1765 a. C.), ou a aldeia dos
construtores dos túmulos reais de Deir el-Medina, do Império Novo, ou as áreas urbanas de
Amarna, mandada edificar por Amen-hotep IV/Akhenaton (1353-1336 a. C.) no final da VIIII
dinastia, é frequente encontrarem-se restos de alimentos, como ossos de animais, espinhas
11 - Ver Reeves, The Complete Tutankhamun, pp. 38-39.
12 - Idem, p. 206.
13 - Idem, pp. 206-207.
14 - Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 16.
de peixes ou restos de origem vegetal. Por exemplo, o porco, que era considerado um animal
impuro, não era consumido pelos sacerdotes, e raramente aparece na arte egípcia, parece
ter sido uma das principais fontes de carne em Amarna, no Império Novo, sendo apreciado
pela maioria da população. Por vezes também é possível determinar a última refeição de
uma múmia. Foi assim, por exemplo, que se descobriram ossos de rato em restos humanos
mumificados, levando a crer que, apesar de pouco prestigiante e sem outro tipo de fontes,
pudessem ser consumidos pequenos roedores15.
Outras fontes que permitem recolher informações sobre os hábitos alimentares dos anti-
gos Egípcios, são vários tipos de textos que, pelo menos, aumentam a lista de ingredientes
utilizados: composições religiosas, contos, papiros médicos, textos contabilísticos de arma-
zéns, notas de entrega em papiros ou óstracos. No Conto do Camponês Eloquente, dos pro-
dutos que Khuenanupu leva do Uadi Natrum para o vale do Nilo, alguns relacionam-se com
a alimentação. Nesse mesmo conto são ainda referidos como base da alimentação diária o
pão e a cerveja16. No Conto do Náufrago, a descrição de abundância da ilha do Ka refere-se a
frutos, legumes, peixes e aves17. E na História de Sinuhe há a descrição da abundância animal
e vegetal em Iaa, a terra que lhe é dada, dos alimentos que lhe são distribuídos e o que pare-
ce ser uma certa aversão à comida dos «bárbaros» cozida em leite, pouco própria de gente
civilizada18. Mas não era só a cozinha sírio-palestiniana que era «diferente», a cozinha núbia
era igualmente «diferente». Num conto do período ptolemaico, um mago núbio desloca-se à
corte do faraó para aí lançar um desafio. Como a resposta não foi imediata, houve que alojar
o mago e foi ordenado «que lhe fossem servidas “porcarias à moda da Núbia”»19. 39
Temos, ainda, outras informações dispersas como, por exemplo, a lista de alimentos
consumida numa recepção a Ramsés III (1184-1153 a. C.), no Papiro Anastasi IV, dos finais
do Império Novo, que mostraremos adiante, ou as listas de oferendas dos maiores templos
no reinado do mesmo faraó, no Grande Papiro Harris20. Os contributos clássicos, como os
comentários de Heródoto (484-425 a. C.), por exemplo, são de ter em consideração, mas,
no mínimo, devemos ter em conta que são comentários de um período tardio, em que os
grupos sociais mais privilegiados já estariam corrompidos por um estilo de vida à grega,
o que aconteceria também com a comida, pelo menos nesses grupos, porque se sabe que
certos alimentos eram importados para satisfazer o paladar helenístico21. Ainda assim, será
15 - Canhão, Doze Textos Egípcios do Império Médio. Traduções integrais, Coimbra: Imprensa da Universidade
de Coimbra, 2013, p. 18.
16 - Em O Conto do Camponês Eloquente, o rei manda Rensi «garantir o sustento» à família de Khuenanupu,
que passa a receber «dez pães e dois jarros de cerveja por dia» (Canhão, Doze Textos Egípcios do Império
Médio, p. 108.
17 - Canhão, Textos da Literatura Egípcia do Império Médio, p. 304; ver também Canhão, O Conto do Náu-
frago. Um Olhar sobre o Império Médio Egípcio. Análise histórico-filológica/The Tale of the Shipwrecked Sailor. A
Glance over Egypt’s Middle Kingdom. A Historical-Philological Analysis, Lisboa: CHUL, 2012.
18 - Canhão, Textos da Literatura Egípcia do Império Médio, pp. 204-206.
19 - Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 18.
20 - Hilary Wilson, Egyptian Food and Drink, Buckinghamshire: Shire Publications, 2001, p. 8.
21 - Cfr. idem, ibidem.
necessário ter também em conta os quinze livros da obra Deipnosofistas (O banquete dos
sábios), de Ateneu, grego do século II, ou os dez livros da obra De re coquinaria (Sobre o
assunto de cozinhar ou A arte culinária), o conjunto mais importante de receitas antigas
que chegou até nós, de Apício, romano, talvez do século I, mas cujas receitas só foram
compiladas na transição do século IV para o século V, do qual Eça de Queirós disse ter
«noções e notícias da cozinha grega, romana e alexandrina, as três grandes escolas de
cozinha da Antiguidade, que ele nos conservou com enternecido cuidado, prevendo talvez
a chegada dos Bárbaros, e para que se não obliterasse entre os homens a arte superior
de bem comer»22. Também a culinária egípcia actual dá o seu contributo, unindo-se aos
seus mais longínquos antepassados. Toda esta diversidade gastronómica geograficamente
localizada, como, aliás, se observa noutras culturas, mostra-nos que a alimentação já é de
longa data um elemento identitário bem definido.
Sintonizemo-nos com Hilary Wilson e partamos à descoberta do que o antigo Egipto
tinha à disposição para pôr na mesa: «Os Egípcios consideravam o olfacto e o palato
importantes sentidos. Os convidados do jantar de festa de Nebamon durante o reinado de
Amen-hotep III são apresentados segurando flores de lótus junto ao nariz e usando cones de
cera perfumada sobre as suas perucas. Queimar incenso era uma parte essencial do ritual do
templo. O hieróglifo “nariz” era o determinativo para “cheirar” e “saborear”, mas também
para “desfrutar” e “ter prazer em”. Os Egípcios consideravam claramente que comer era uma
experiência sensual bem como um aspecto essencial da vida quotidiana»23.
40

2. Espaços e apetrechos das cozinhas egípcias

Antes porém, achamos conveniente ver onde os Egípcios cozinhavam e os apetrechos


que usavam, bem como dar uma ideia sobre os diferentes regimes alimentares que tinham.
Chegaram-nos bastantes representações de cozinhas egípcias de todas as épocas, das quais
destacamos a iconografia da mastaba de Ti, em Sakara, da VI dinastia (c. 2300-2180 a.
C.), os modelos de madeira do túmulo de Meketré, da XI dinastia (c. 2100-1980 a. C.),
e os murais to túmulo de Ramsés III, da XX dinastia (c. 1186-1070 a. C.). Confrontando
os exemplos disponíveis, verifica-se que os espaços, os equipamentos e as técnicas
essenciais pouco se alteraram. As grandes instituições como o palácio real, os palácios dos
governadores de província, os templos, as casas de determinados grupos de trabalhadores
do Estado, ou mesmo algumas casas mais abastadas de altos funcionários, tinham espaços
próprios onde eram preparados o pão, a cerveja e todos os alimentos necessários. Por
exemplo, para os construtores das pirâmides de Guiza, na IV dinastia, foram construídas
no local uma padaria e uma cervejaria e, um pouco mais tarde, na VI dinastia, no palácio
do governador do oásis de Dakhla construiu-se um vasto conjunto de padarias24. Nas casas
22 - Eça de Queirós, Cozinha Arqueológica, pp. 20-21.
23 - Hilary Wilson, Egyptian Food and Drink, p. 9.
24 - Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 36.
menos abastadas cozinhava-se em difíceis condições no interior dos edifícios25 ou, então, no
exterior, por vezes em estruturas ligeiras onde os cozinheiros se atarefavam sob um simples
alpendre de madeira, onde tudo era feito, desde o corte e preparação dos alimentos à sua
confecção. As tarefas da cozinha das elites estavam destinadas aos homens, com excepção
da preparação do pão e da cerveja onde aparecem homens e mulheres. Uma mulher aparece
numa única cena de cozinha em Deir el-Bahari. A mulher apenas se encarregava dessas
tarefas nas modestas residências populares26.
Tal como ainda hoje faz a maioria dos camponeses egípcios, também os seus antepassados
da época faraónica faziam, normalmente, três refeições: de manhã, antes de saírem para o
trabalho, à base de «alimentos cozinhados» para se manterem até ao jantar27, ao meio-dia e
à noite, provavelmente a sua refeição mais substancial. Segundo imagina Hilary Wilson, com
base numa frase bíblica e em modelos de faiança, alguns poderiam gostar de comer ao pequeno-
almoço pequenos pepinos em pickles, semelhantes aos que hoje se consomem do mesmo
modo28. A refeição do meio-dia era feita no exterior, à sombra das árvores no local de trabalho
e, em numerosos relevos, estão ainda embaladas, sendo as mais simples compostas apenas de
pão e cebolas, sem necessidade de qualquer preparação no momento. Com eles levavam alguns
pães para mordiscarem durante o dia e água fresca, ou leite, em odres. Podiam ter a possibilidade
de caçar ou pescar algumas presas com que melhoravam a sua alimentação enquanto estavam
fora de casa29. Então acendiam fogueiras e aqueciam ou cozinhavam a sua comida fora de
casa, fazendo assados em espetos sobre o lume, cozendo nas próprias cinzas ou improvisando
fornos com lajes de calcário sobre as brasas. Mas muitos dos cozinhados eram feitos em casa. 41
No Conto dos Dois Irmãos, Bata, o irmão mais novo, preparava todas as manhãs a comida
para ele e para o irmão mais velho, Anupu, levarem para o campo enquanto guardavam vacas
e faziam as tarefas normais de lavoura: «E quando o dia seguinte amanhecia, ele cozinhava [os
alimentos] e punha(-os) diante do seu irmão mais velho, que lhe dava os pães para levarem para
os campos»30. Podiam ser confeccionados ao ar livre, em pátios ao lado da casa ou num terraço
superior, preferencialmente do lado sul das casas, uma vez que no Egipto o vento dominante
vem do norte, em cozinhas parcialmente cobertas com folhas de palmeira, que faziam sombra
e deixavam escapar o fumo para evitar que os cheiros dos cozinhados invadissem os espaços
destinados a dormir, como se vê em Amarna na zona residencial dos trabalhadores31.
25 - Canhão, «Viver no campo», Hapi 1 (2013), pp. 53-54.
26 - Cf. Madeleine Peters-Destéract, Pain, bière et toutes bonnes choses... L’alimentation dans l’Égypte
ancienne, Paris: Éditions du Rocher, 2005, pp. 322-323.
27 - Idem, p. 325.
28 - Depois do Êxodo, alguns hebreus queixavam-se da sua dieta alimentar: «Quem nos dera comer carne! Que saudade
da comida do Egipto! Peixe de graça, pepinos, melões, alhos-porros, cebolas e alhos!» (Números, 11:5), Bíblia Sagra-
da, Lisboa: Difusora Bíblica, 1996, p. 149, e Wilson, Egyptian Food and Drink, p. 23.
29 - Idem, pp. 331-332; Adolf Erman e Hermann Ranke, La Civilisation Égyptienne, Paris: Éditions Payot e
Rivages, 1994, p. 250.
30 - Lefebvre, Romans et Contes Égyptiens de l’Époque Pharaonique, Paris: Librairie d’Amérique et d’Orient,
1982, p. 143.
31 - Wilson, Egyptian Food and Drink, p. 53.
Modelo de uma padaria de madeira rebocada e pintada com forno. Túmulo de Meketré (TT 280), XII dinastia,
reinado de Amenemhat I (c. 1980-1950 a. C.), em Cheikh Abd el-Gurna.

Outras residências não tinham qualquer espaço superior ou à sua volta e a cozinha era
uma das divisões interiores, normalmente a mais afastada da entrada. Em certos casos,
o fogo onde se cozinhava era feito dentro de uma larga peça de cerâmica côncava, uma
42 espécie de braseira, a maior parte das vezes colocada no chão. Era particularmente boa
para cozinhar lentamente sobre as brasas, por exemplo, para certos assados ou para a
preparação de pratos de papas. Contudo, o fogo doméstico mais vulgar era um buraco
escavado no chão, com o fundo côncavo, tão familiar que deu origem ao hieróglifo
bilítero DA, o caracter G. U28 ( ) e à sua variante G. U29 ( )32. Há diversas modalidades
como, por exemplo, alguns fogos poderem ter um pequeno muro na sua parte posterior
para conter e empilhar as cinzas, para se colocar nelas o que se pretendia cozinhar de
forma mais lenta, evitando o referido braseiro cerâmico; outros eram fogões do tipo do
que existe no modelo de açougue do túmulo de Meketré, com uma espécie de ameias
na parte de cima para o fumo sair e entrar o oxigénio, quando tivesse um recipiente da
sua largura sobre ele33. Aliás, os fornos comuns dos antigos Egípcios eram feitos de
argila e de forma cilíndrica ou paralelepipédica, com o interior oco e a superfície plana
de calcário na parte superior onde se fazia a cozedura. Em baixo, no seu interior, era
colocada a fonte de calor, havendo lateralmente uma abertura para entrada de oxigénio,
alimentação da fogueira e saída do fumo. Numa fase mais avançada tinham a forma de
cones cortados, feitos com três pedaços irregulares perfeitamente sobrepostos para não
partirem com o calor. Alguns destes fornos eram de menor tamanho e tinham furos na
sua superfície, servindo como fogões onde se punham as panelas de alimentos a guisar

32 - Alan Gardiner, Egyptian Grammar, Oxford: Griffith Institute, Ashmolean Museum, 3ª ed., 1994, p. 519.
33 - Idem, p. 53.
ou a cozer. Nas maquetas de madeira dos barcos cozinha do Império Médio, em vestígios
arqueológicos34 e, até, na escrita hieroglífica com a consoante «g», G. W11, , e G.
W12, , aparecem fornos portáteis35!
No túmulo de Meketré foram encontrados três destes modelos de fornos/fogões portáteis:
um fogão rectangular sobre o alto com uma panela em cima, um braseiro cilíndrico com o topo
guarnecido de ameias e uma panela de guisado e, o terceiro, um fogão cilíndrico com uma
superfície plana para servir de frigideira. O primeiro e o último eram ocos e tinham aberturas
para controlar o fogo no seu interior36. O fogo era aceso friccionando com uma broca de arco
uma vara num bloco de madeira, de forma ao calor obtido inflamar a palha colocada sobre
este meio de ignição, e depois alimentava-se o lume até obter a fogueira desejada. Usava-se
como combustível papiro, folhas de palmeira, esterco seco dos herbívoros, pequenos ramos
de acácia e de tamarisco, alguns deles antes transformados em carvão. As propriedades
insecticidas das cinzas eram usadas para desinfectar áreas com grãos, em casa ou nos celeiros.
Muitas vezes eram mesmo misturadas com os grãos, como foi o caso descoberto no Faium
numa escavação do Pré-dinástico; outras vezes eram espalhadas na área de trabalho, como se
descobriu em Amarna37. Ratos de maior porte e outros roedores não debandavam facilmente,
existindo a necessidade permanente de gatos domésticos. As paredes e áreas de preparação
de alimentos, além de lavadas, podiam ser branqueadas com natrão, que contém uma alta
percentagem de bicarbonato de sódio que é um potente removedor de sujidade.
Nas cozinhas de todos os períodos havia uma gama completa de louças de cerâmica,
de recipientes para cozinhar, de diversos tamanhos e formatos conforme as necessidades. 43
Eram feitos de barro do Nilo não vidrado mas, por vezes, com um polimento que tornava as
peças escorregadias: panelas grandes para ferver sobre o fogo, terrinas, tigelas, formas de pão
(moldes bedja cónicos do Império Antigo, moldes alongados em forma de dedo do Império
Novo, moldes duplos do oásis de Dakhla...)38 entre muitos outros objectos. Daí que fosse
natural haver frequentemente perto das grandes zonas de produção de alimentos oficinas de
cerâmica. Ainda que em menor número e, em alguns casos, incidindo mais em determinadas
épocas, havia também utensílios de pedra e de metal. A louça de pedra era mais luxuosa do
que a de argila. O metal era mais raro.
Mas havia muitos outros utensílios de cozinha. Os açougueiros, os negociantes de aves
e os pescadores tinham como instrumento comum a faca, e Salima Ikram mostra-nos doze
tipos diferentes de facas, do Pré-dinástico ao Império Novo39. Nas casas mais abastadas,

34 - Wilson, Egyptian Food and Drink, pp. 53-54.


35 - Gardiner, Egyptian Grammar, p. 529.
36 - Wilson, Egyptian Food and Drink, p. 54.
37 - Idem, p. 58.
38 - As formas de pão eram peças grosseiras, aparentemente destinadas a serem utilizadas apenas uma vez, já que por
vezes era mesmo necessário parti-las para desenformar o pão (Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 35).

39 - Salima Ikram, Choise Cuts: Meat Production in Ancient Egypt, Orientalia Lovaniensia Anacleta
(69), Lovaina: Peeters Press and Department Oriental Studies, 1995, pp. 63-64.
as facas40 podiam ser de cobre ou de bronze, sendo normal as de dois gumes serem direitas
e as de um só gume curvas, mas o mais comum em todas as épocas foram as facas de
sílex, sobretudo nas casas mais pobres. Algumas grandes facas usadas nos açougues eram
serrilhadas para cortar tendões, cartilagens ou mesmo ossos. O instrumento mais simples
de cozinha era uma vara longa de madeira, ou par de varas, usadas normalmente para
retirar alimentos cozinhados do forno. Usavam-se também colheres e espátulas para mexer,
virar ou verificar o estado da comida durante a confecção. A maioria era de madeira, mas
também podiam ser metálicas. Algumas eram furadas sendo autênticas escumadeiras
para escorrer os alimentos ao mesmo tempo que se retiravam do meio onde estavam a
ser confeccionados. Havia rodas de moer o grão e recipientes para amassar a massa, em
especial nas padarias e cervejarias, uma vez que nas casas particulares era mais frequente
o almofariz e o pilão, representados na escrita pelo hieróglifo G. U32( ) para moer
especiarias, frutos secos ou outros produtos. Como se vê em algumas imagens, por
exemplo, no túmulo de Rekhmiré, vizir de Tutmés III (1479-1425 a. C.) e de Amen-hotep II
(1425-1400 a. C.), havia também placas e frigideiras de cobre colocadas sobre o lume para
cozer bolos, inclusivamente exemplares providoscom duas pegas laterais para poderem ser
manipuladas, mas por enquanto ainda não se encontrou nenhuma41.
A comida era servida em recipientes de cestaria, planos ou em forma de tigela42, ou em
caixas, com ou sem tampa, tigelas de madeira, algumas divididas em secções. Na mesa usavam-
se pratos cerâmicos, tigelas e copos de diversos materiais, indo da madeira à faiança e à pedra.
44 Há também exemplos de pratos e copos de ouro e prata43. Não havia talheres, comendo-se à mão.
Muitos dos recipientes, tanto para líquidos como para sólidos, tinham uma base curva, sendo
assentes na areia ou em anéis feitos para o efeito44. Havia também suportes para várias ânforas
em simultâneo, normalmente usadas em armazéns ou em banquetes. Os vinhos, ou a cerveja,
podiam ser bebidos usando sifões ou palhas para sorver o líquido e evitar os sedimentos. Pelo
mesmo motivo, também se usavam coadores metálicos perfurados ou panos de linho, quando se
passavam certos vinhos ou cervejas para recipiente para beber. Em todas as épocas usaram-se
recipientes de cestaria de diversos tamanhos e formas, para armazenar e transportar alimentos
sólidos. Os produtos de maior valor, como algumas especiarias, sal ou natrão, eram guardados
em pequenos sacos de linho45 ou de couro fechados com cordões. Por seu lado, óleos e gorduras
eram guardados em recipientes de pedra.

40 - Também as facas deram origem a diferentes determinativos no sistema hieroglífico: G. T30 ( ) e G. T31 ( ).
41 - Tallet, La Cuisine des Pharaons, pp. 35 e 44-46.

42 - Casos hieroglíficos de G. V30 ( ) e G V31 ( ), cesta sem e com asa, ou de G. V32 ( ), uma cesta
com tampa.
43 - É o caso de algumas peças do espólio encontrado no túmulo das três esposas sírias de Tutmés III, da XVIII
dinastia (Wilson, Egyptian Food and Drink, p. 56).
44 - Alguns deles aparecem na secção W da lista de hieróglifos de Gardiner, denominada «Recipientes de pedra e de
barro» (Gardiner, Egyptian Grammar, pp. 527-531).

45 - Como o representado pelo hieróglifo G. V33 ( ), G. V34 ( ) e G. V35 ( ), ideograma ou determinativo de


linho e suas formas alternativa e arcaica.
3. Diferentes tipos de alimentação

Tal como hoje em qualquer parte do


mundo, também no antigo Egipto havia
diferentes regimes alimentares. O faraó e
a corte tinham uma alimentação privile-
giada e diferente da de todos e, no extre-
mo oposto, o povo, a maioria da popula-
ção, tinha outro tipo de alimentação. Por
exemplo, os últimos pouca carne comiam,
ao contrário dos primeiros que a tinham
em abundância. Entre estes dois extremos
podem-se considerar outros grupos, como
as elites provinciais, as elites sacerdotais,
ou os comerciantes bem-sucedidos, que Um trabalhador amarniano a comer o seu almoço de
teriam uma alimentação bem mais próxi- pão, pepino ou abóbora e cebola. Dos blocos de pedra
ma da do faraó do que da populaça. E gra- de pequeno porte, os talatat, das paredes do Guem-pa-
-Aton, o templo reconstruído de Aton em Karnak. Agora
ças a certas festividades e a banquetes, al- encontra-se no Museu de Lucsor.
guns demorando dias ou mesmo semanas,
e à alimentação do Além, não a iconográ-
fica mas as oferendas em géneros que eram feitas ao defunto, havia dias em que até os mais 45
indigentes tinham a sua alimentação reforçada. Os diferentes regimes alimentares eram
ainda negativamente afectados, mais uns do que outros, mais numas épocas do que noutras,
quando o nível da cheia era insuficiente em vários anos consecutivos, normalmente conju-
gado com alterações climatológicas adversas, provocando maus anos agrícolas com pouca
produção e mortandade dos animais. A carestia espreitava, a fome apertava, os comporta-
mentos humanos tornavam-se irracionais e a crise instalava-se. Seguiam-se os assaltos aos
armazéns do Estado, ou de quem tivesse excedentes, a morte às mãos dos desesperados ou
em defesa dos seus bens, a morte por falta de nutrição, e, até, o canibalismo fazia o seu
aparecimento, como noticiam algumas fontes do Primeiro Período Intermediário46.
À alimentação do faraó, da sua família, da corte, e mesmo dos funcionários que os
rodeavam, nada faltava, sendo o palácio o meio mais privilegiado da alimentação no antigo
Egipto. Não havia limites na quantidade e na qualidade. A quantidade e a diversificação
de funcionários ligados ao aprovisionamento do palácio provam isso mesmo. Além dos
numerosos intendentes que, a todos os níveis e em diversas áreas, supervisionavam as

46 - As calamidades climáticas «provocaram uma fome tão grande que alguns recorreram ao canibalismo, como
um governador local, Ankhtifi de Moalla estava em crer», Kathryn Bard (ed.), Encyclopedia of the Archaeology
of Ancient Egypt, Londres, Nova Iorque: Routledge, 1999, p. 44; um governador de província do Primeiro Período
Intermediário registou: «Todas as pessoas chegaram a comer os seus filhos»; muito mais tarde, no século I a. C.,
Diodoro escreveu: «Conta-se que os habitantes do Egipto, sendo um dia presas da fome, se devoraram sem de modo
algum tocarem nos animais sagrados», Marie-Ange Bonhême e Annie Forgeau, Pharaon. Les Secrets du
Pouvoir, Paris: Armand Colin Éditeur, 1988, p. 161.
operações, do aprovisionamento à mesa real, havia, entre outros, numerosos padeiros
e pasteleiros, cervejeiros, açougueiros, além de cozinheiros e todo o tipo de servidores
necessários à cozinha real. Para que se perceba o gigantismo que eram as cozinhas dos
palácios e dos seus banquetes, transcrevemos de Pierre Tallet uma lista de produtos recolhida
no Papiro Anastasi IV, que um funcionário deveria reunir para o banquete de recepção a
Ramsés III, na ocasião da sua chegada à capital.

«Lista dos alimentos que tu deves reunir


• pão de boa qualidade: 1000 pães heret feitos com farinha tjeret, 10000 biscoitos ibeset,
2000 pães tjet, 1000 pães het, 1000 pães pat;
• pão: 1000 pães secheret;
• pão de trigo duro: 1000 pães kemeh, 1000 pães get, 10000 pães khepech, 1200 pães
cheben dos Asiáticos;
• bolos chait: 100 cestas, 70 bandejas, 2000 medidas oipe;
• 100 cestos de bolos rehech;
• 2000 cestos de ages; 100 cestos de carne seca de 300 peças degit;
• 250 braçadas de vísceras;
• 60 medidas geser de leite;
• 90 medidas gat de natas;
• 30 tigelas gai de alfarroba;
46 • 100 feixes de erva (para a cozinha);
• 100 bandejas de frutos hekhek;
• 10 gansos amanhados;
• 40 gansos terep assados;
• 70 carneiros;
• 50 sacos peder de uvas (secas);
• 60 sacos peder de romãs;
• 300 fiadas de figos (secos) e 20 cestas kerechet de figos;
• [e ainda] pão, cerveja, carne, bolos chesit, bolos rehes [...], bois, reses castradas de
cornamenta curta do Oeste, bezerros gordos da província do Sul, aves em abundância,
aves keni dos pântanos;
• peixes udj do canal Cheni, peixes beg do canal Peteri, peixes iua e sargos de Che, peixes
chena de Miur, percas secas de Tjaru, peixes beri do canal nekhel de Nehesit, peixes
beri sem serem amanhados pelos pescadores, peixes imseka das terras inundadas, peixes
hutjen do estuário do rio, peixes tepi do viveiro, peixes khepepen do tanque;
• codornizes gordas, pombos de verão, mel, óleo alimentar, gordura de ganso, natas, vários
jarros de resina, medidas geser de leite, mairet, ik, feijões, lentilhas, ervilhas, frutos do
Egipto (?), abóboras cabaças, coentros, feijões libaneses, jarros de vinho barato para os
servidores, cerveja de Kedi, vinho da Palestina e muitas uvas.»47

47 - TALLET, La Cuisine des Pharaons, p. 22.


Um churrasco em Amarna, no palácio de Akhenaton e Nefertiti, onde se comiam pombos, gansos e espetadas
assadas. As filhas estão em cadeiras e os servos de pé. De um túmulo de um nobre, em Amarna.

Embora muitos destes produtos ainda 47


não se conheçam e só uma parte tenha
sido identificada pelos arqueólogos em
vários palácios reais48, temos aqui uma
bela e variada lista de produtos que
poderiam aparecer nas cozinhas egípcias.
Quotidianamente o povo alimentava-se,
fundamentalmente, de diferentes tipos
de pão, feitos principalmente com trigo
e cevada, e de cerveja heneket, que era
muito energética e que existiu ao longo
de toda a época dinástica. Sendo o
seu salário normalmente calculado em Baixo-relevo de uma filha de Akhenaton e Nefertiti a
quantidades variáveis de pão e cerveja, comer uma codorniz num banquete em Amarna. De um
túmulo de um nobre, em Amarna.
esta base alimentar era enriquecida
com vegetais como cebolas, feijões ou

48 - No palácio de Malkata¸ junto a Medinet Habu, na margem ocidental tebana, foi encontrada grande quantidade
de ânforas com ingredientes de uma refeição festiva, provavelmente do terceiro jubileu real que Amen-hotep III aí
festejou. Foram as inscrições das etiquetas das ânforas que nos informaram a respeito dos alimentos que comportavam:
cerveja, vinho, diversos tipos de óleos, mel, gordura animal, carne seca, aves conservadas em gordura ou em salmoura.
Já em Amarna, no palácio de Akhenaton a iconografia mostra a família à mesa, estando o rei a comer uma espécie de
espetada e as princesas a levar à boca codornizes inteiras (Tallet, La Cuisine des Pharaons, pp. 21 e 23).
lentilhas, ou com leite e queijo, ou diversos tipos de peixe do Nilo e dos mares Vermelho
e Mediterrânico, conforme o local onde vivessem. Podiam incluir alguns tipos de papas,
mas a carne era uma raridade. A que saboreavam podia ser proveniente de alguma caça
fortuita ou, sobretudo, de distribuições de alimentos do palácio ou dos templos como já
referimos, em particular das oferendas da divindade cultuada em festa ou dos defuntos.
Aí sim, a sua alimentação variava e enriquecia-se podendo incluir diversas variedades de
carnes e bebidas.
Apesar de a moral dos textos sapienciais recomendar grande moderação nos prazeres
da mesa e até uma certa frugalidade, e um comportamento irrepreensível à mesa de um
superior e as restrições impostas pela religião49, visíveis sobretudo em textos mais tardios,
os Egípcios gostavam de bons banquetes. É certo que as nossas fontes são sobretudo a
iconografia funerária onde se admite algum exagero, contudo é um tema frequente onde a
abundância é constante. Estas homenagens aos defuntos com numerosos convidados, são
como que uma fotografia antes do banquete, pois estão com muita comida diante deles, que
parecem não desfrutar já que nenhuma das suas mãos se estende ou pega num alimento,
única forma de representar o consumo. Em relação às bebidas aparecem frequentemente
personagens a beber directamente de um jarro ou por objectos que são autênticas palhinhas
para sorver cerveja, por exemplo. Para lá da pose hierática do defunto acompanhado pela
esposa, sentados frente às oferendas, os convidados, em particular as mulheres, com os
seus melhores fatos de linho, colares, braceletes e cones de perfumes, são servidos por
48 um pessoal numeroso, que lhes oferece sobretudo vinho e cerveja, e são distraídos por
bailarinas que dançam ao som de música que alguns músicos, normalmente três, homens
ou mulheres, vão tocando50.
Finalmente há que considerar que também os mortos se alimentavam diariamente,
já que a crença dos Egípcios era que eles continuavam vivos no Além, sendo oferecido
alimentos verdadeiros para o consumo na eternidade. Os serviços de oferendas funerárias
eram semelhantes para o rei, os elementos da sua família ou para a elite governativa,
só variaria a quantidade e a qualidade dos alimentos e dos servidores. Graças a alguns
achados importantes, como os papiros dos arquivos e contabilidade do templo funerário
do rei Neferirkaré (V dinastia), conhece-se o funcionamento destes templos, e pode-se
fazer uma ideia muito precisa dos alimentos diariamente oferendados. Conhecem-se bem
as peças de carne que integravam as oferendas e sabe-se que alguns destes templos tinham
mesmo padarias e cervejarias para confeccionarem as oferendas. Se fosse um rei podia
haver um colégio de sacerdotes funerários encarregue desse serviço quotidiano, que se
prolongava no tempo, se fosse um privado um simples sacerdote do ka podia encarregar-se
de todo o serviço que, mais cedo ou mais tarde, acabaria esquecido. Uma vez consagradas
as oferendas ao defunto, elas constituíam uma espécie de remuneração para quantos

49 - No geral, não era permitido comer animais em que encarnassem divindades locais ou que estiveram relacio-
nados com algum mito.
50 - Sobre a música no Antigo Egipto, ver Telo Canhão, «A música na literatura do Império Médio», em Cadmo
21 (2011), pp. 61-78.
interviessem no processo cultual que as consumiam. A origem destas oferendas assentava
em terras e bens complementares que os defuntos tinham deixado atribuídas ao seu serviço
funerário, os «domínios funerários», que não só alimentavam as oferendas como o clero
que tinha por obrigação mantê-las, gerindo-as como suas.

4. Os legumes e as frutas

O reino vegetal deveria ser o que mais contribuiria para a alimentação da maioria dos
Egípcios que, embora pudessem comer com alguma frequência peixe, raramente teriam
carne na mesa. Os legumes seriam mais acessíveis à maioria da população sendo largamente
consumidos como complemento de um regime que, sobretudo para as camadas mais pobres,
era essencialmente à base de cereais, com que faziam o pão e a cerveja, sendo a maioria dos
frutos considerada uma comida de luxo. As árvores de fruto eram cultivadas em pomares
bem organizados e bem cuidados, que pertenciam à família real, aos templos e à elite do
país. Conhecem-se variadíssimas representações de jardins, pintados em câmaras funerárias
ou, até, em modelos de madeira, como o do túmulo de Meketré (TT 280), da passagem da
XI para a XII dinastia, onde nos apercebemos do luxo que podia representar a existência
destes lugares, que se articulavam em torno de lagos, tanques ou outros espelhos de água,
que aliavam a utilidade de um meio de irrigação a um agradável espaço de lazer fresco e
com sombras. Por exemplo, no túmulo de Kenamon (TT 93), da XVIII dinastia, vemos a 49
organização de um pomar: no centro há um lago cheio de peixes de diversos tipos, aves
e plantas aquáticas (papiros, lótus...); a toda a volta uma vinha em latada com cachos de
uvas negras. Em torno destes espaços há grande variedade de árvores e arbustos, vendo-se
sicómoros, palmeiras dum e palmeiras tamareiras51. Era num agradável pavilhão dum espaço
deste tipo, com muita sombra e perfumes, o jardim da casa de Ubainer, onde a sua mulher
se encontrava com o amante, enquanto o marido, sacerdote leitor, acompanhava o faraó ao
templo de Ptah, em Mênfis52.
Em alguns desses jardins surgem representações do difícil trabalho dos jardineiros. Uns
elevam a água com chadufes, como no túmulo de Neferhotep (TT 49), da XVIII dinastia,
ou no de Ipui (TT 217), da XIX dinastia, outros regam as plantas com os seus recipientes de
água que transportam aos ombros em cangas, como no túmulo de Mereruka, da VI dinastia,
em Guiza, ou no de Khnumhotep III, da XII dinastia, em Beni Hassan. Na representação do
jardim de Rekhmiré (TT 100), enquanto alguns dependentes puxam na margem o barco do
senhor, jardineiros com cangas às costas e um recipiente de água em cada extremidade, regam
as árvores plantadas ao longo de estreitos canais53. Com os frutos maduros os trabalhos não
acabavam, pois era preciso espantar os pássaros, que mesmo assim ficavam com grande
parte das produções e, por fim, colher os frutos, tarefas que também surgem em algumas
51 - Alix Wilkinson, The Garden in Ancient Egypt, Londres: The Rubicon Press, 1998, p. 104.
52 - Canhão, Textos da Literatura Egípcia do Império Médio, pp. 49-165.
53 - Idem, pl. XIII.
representações. Embora conheçamos o verdadeiro objectivo da Instrução de Kheti, ela não
deixou de registar as dificuldades do trabalho do jardineiro:

«O jardineiro transporta uma canga


e os seus ombros serão usados permanentemente até à velhice.
Há um grande inchaço no seu pescoço
que cria gordura.
Ele passa a manhã a regar os legumes
e à tardinha rega os coentros,
depois de ter passado o dia
mal do seu inchaço.
(Isto) acontecerá até ele morrer,
mais envelhecido do que em qualquer (outro) ofício.»54

As fontes respeitantes à utilização dos legumes e das frutas na cozinha são muito escassas,
resumindo-se às representações de oferendas nos túmulos e nos templos, a jardins hortícolas
ou hortas, em túmulos, a restos alimentares depositados nos túmulos e a mais alguma
iconografia dispersa. E mesmo assim, salvo raras excepções, o que temos são alguns produtos
e não os modos de confecção ou a forma como se integravam os diversos produtos nas mais
variadas receitas! Tentar a comparação com a cozinha actual pode dar umas ideias sobre
50 alguns pratos, mas até nisso há que ter em consideração que, em cinco milénios de história,
houve vegetais que desapareceram do Egipto e muitos outros que aí foram introduzidos pelos
diferentes ocupantes do país. Por isso, o mais importante é saber com exactidão quais os
vegetais que eram consumidos na época faraónica.
Uma boa parte dos legumes consumidos no antigo Egipto é-nos bastante familiar. As
hortas que aparecem na arte egípcia organizam-se em canteiros separados por pequenos
carreiros para permitir a irrigação. Da produção hortícola destacam-se duas plantas que
parecem ter sido essenciais na sua alimentação, tal como o são ainda hoje: a cebola, hedju, e
o alho, khitjina. A cebola parece ter sido consumida pelos mais pobres, sendo um importante
complemento nutritivo de uma alimentação assente nos cereais. Foram essencialmente
consumidas cruas, fazendo fé de certas representações. Uma delas, um baixo-relevo do templo
de Akhenaton, em Tebas, mostra um trabalhador sentado em frente de uma lancheira com
pães e um pepino, benedet; na sua mão direita, segura uma cebola que se prepara para trincar.
Frequentemente representadas em oferendas alimentares para os defuntos, as cebolas tiveram
um papel importante no culto e festividades do deus funerário sincrético Ptah-Sokar55 que,
54 - Canhão, Doze Textos Egípcios do Império Médio, p. 192.
55 - Realizada em Mênfis, acontecia de seis em seis anos «no 26º dia do 4º mês de Akhet, e era celebrada em benefí-
cio dos defuntos. O seu rito principal era a “Saída de Sokaris” na sua barca henu, colocada num trenó que era puxado
à volta das muralhas da cidade de Mênfis e de outros locais de culto. Na procissão figurava um burro, substituto
mágico do deus Set. O pobre jumento era espancado pelos assistentes antes de ser condenado à morte pelo rei em
pessoa. Já os preparativos do festival davam lugar a cerimónias religiosas. Assim, a 22, procedia-se ao rito de abrir
(escavar) a terra, a 23, o caminho de Sokar era preparado e a 25 tinha lugar a festa Netjerit para a qual se levavam
graças ao seu âmbito funerário, também foi associado a Osíris, originando uma divindade
sincrética mais complexa Ptah-Sokar-Osíris, representando o ciclo de vida completo: Ptah
dava a vida, Sokar ligava-se à morte e Osíris representava o renascimento.
Também o alho é um dos vegetais conhecidos no Egipto há mais tempo, encontrando-se
vestígios seus em vários túmulos, entre os quais o de Tutankhamon. E no século V a. C., a
propósito da construção da pirâmide de Khufu, Heródoto registou: «Foi escrito na pirâmide
em caracteres syrmaia (rabanetes), cebola e alho; tanto quanto me lembro, o que me disse
o intérprete que me fez a leitura da inscrição, a soma ascendia a 600 talentos de prata.»56
Aparentemente é mais uma divagação de Heródoto, uma vez que, tanto quanto se sabe, nunca
foi feito qualquer registo semelhante na pirâmide de Khufu, ou em qualquer outro túmulo
real do Império Antigo ou do Império Médio. Contudo, o seu consumo está comprovado
desde o Império Médio, já que foi registada a descoberta de dois rabanetes por F. Petrie,

51

Sicómoros, palmeiras tamareiras e palmeiras dum. Túmulo de Amen-nakht (TT 218), XIX dinastia, reinado de
Ramsés II (1279-1212 a. C.), em Deir el-Medina.

em Kahun, datados da XII dinastia57. Também o alho-porro, iaket, ou alho francês na sua
designação recente, era bastante consumido, surgindo regularmente em textos a pardo alho e
da cebola, embora seja bastante difícil de distinguir desta última na iconografia.
De igual modo, a salada devia ser consumida crua e em grande quantidade. As alfaces,
abu, são dos vegetais mais representados nas oferendas, até porque a sua utilidade ia muito
além da alimentação, tendo um papel primordial: quando se apertam os seus caules mais
grossos, liberta-se um líquido leitoso que os Egípcios consideravam uma evocação do sémen
que, assim, se espalhava pelos habitantes do vale do Nilo. Por este motivo, a alface era uma

colares de cebolas e, à noite, os sacerdotes colocavam solenemente a barca henu no seu trenó, o mefekh. Esta barca,
própria de Sokar, distinguia-se das dos outros deuses pela sua forma e acessórios» (Ruth Schuman-Antelme e
Stéphan Rossini, Dictionnaire Illustré des Dieux de l’Égypte, Paris: Éditions du Rocher, 2003, p. 383).
56 - Hérodote, Histoire, II, 125.
57 - Madeleine Peters-Destéract, Pain, bière et toutes bonnes choses..., p. 33.
oferenda apropriada para o deus Min, divindade itifálica que assumia uma estreita relação
com a fertilidade e a fecundidade. As alfaces são uma das mais frequentes representações
hortícolas, surgindo, por exemplo, no túmulo dos irmãos Niankhkhnum e Khnumhotep, da V
dinastia, em Sakara, plantadas juntamente com cebolas, que os jardineiros regam e colhem.
Como salada, é provável que se utilizasse também a Corchoruso litorius, planta conhecida
no Egipto por melukhia, e no ocidente por «malva». Hoje é um dos pratos mais característico
da cozinha egípcia: com as folhas faz-se uma espécie de sopa, muito carboidratada, que se
acompanha com pão ou arroz. Plínio refere-a como um dos vegetais utilizados pela cozinha
alexandrina, atestando o seu conhecimento no período romano, mas não em relação à época
faraónica, assunto que ainda não está devidamente esclarecido58.
O antigo Egipto dispôs, também, de vários tipos de leguminosas em grão na cozinha, a
maior parte ainda hoje aí utilizada. As favas, iurit, encontradas em grande quantidade em
variadíssimos sítios arqueológicos desde o Império Antigo, eram tão populares que chegaram
a integrar o salário dos trabalhadores dos túmulos reais do Império Novo residentes em Deir
el-Medina59. Ainda hoje continuam a ser um dos mais populares produtos da cozinha egípcia:
picadas e fritas em óleo em forma de bolas, dão origem às taamia; cozidas e transformadas
em puré, por vezes com picante, dão lugar ao ful, usado para acompanhar carnes ou consumir
simplesmente com pão. Não há qualquer representação do fabrico deste último prato no
tempo dos faraós, mas o seu nome surge em textos, dando-nos a entender de que já nesse
tempo se comia. O que hoje é servido como fulmedames parece ser um prato do antigo
52 Egipto chamado metmes, e transmitido pelos coptas. Outra variedade de ful que o árabe
actual designa por bessara, corresponde ao pesuro copta60. É provável que algumas receitas
coptas que se conservam possam ter transitado directamente da tradição faraónica.
Sabe-se que o grão-de-bico, herbik, já era conhecido no Império Médio e no Império
Novo, surgindo alguns exemplares no túmulo de Tutankhamon. Tendo em conta a sua
forma arredondada, que num dos lados parece ter uma espécie de bico, os Egípcios
chamaram-lhe herbik, literalmente «cara de falcão». Ainda hoje é muito popular no
Egipto, confeccionando-se com ele um puré chamado hummus. A lentilha, aarchan, era
outra leguminosa que marcava a sua presença no vale do Nilo. Encontraram-se vários
exemplares em túmulos pré-dinásticos, no complexo funerário de Djoser, da III dinastia,
em Sakara, e, mais tarde, no túmulo de Tutankhamon. Sabe-se também que algumas zonas
do Delta se especializaram na sua produção, como, por exemplo, Alexandria na Época

58 - Wilson, Egyptian Food and Drink, p. 23.


59 - Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 88. Heródoto começa o versículo 37 afirmando que os Egípcios são:
«os mais escrupulosamente religiosos de todos os homens», e que uma das regras imposta pela religião é: «os
Egípcios não semeiam qualquer tipo de favas no seu país; mesmo pressionados, eles não as mastigam [cruas]
nem as comem cozidas; os sacerdotes nem suportam olhar para elas, imaginando que são um legume impuro».
Mas, como em cima escrevemos, esta afirmação foi desmentida pela arqueologia e Christian Jacob, responsável
pela introdução e notas da obra do grego consultada, acrescenta: «Será isto a projecção sobre o Egipto de um
tabu alimentar bem confirmado na Grécia (em particular dos sacerdotes de Elêusis, os Pitagóricos e os Órficos?»,
Hérodote, Histoire, II, 37, nt 86.
60 - Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 88.
Greco-romana. Eram ainda conhecidos no Egipto faraónico algumas qualidades de feijões
e certas variedades de ervilhas. Tal como hoje, também o tremoço foi consumido, segundo
atestam os achados arqueológicos desde o Império Antigo. A preparação dos pequenos
grãos achatados de cor amarela, que crus são rijos e amargos, deveria ser idêntica à que
se faz ainda hoje: depois de secos eram cozidos, ficando vários dias mergulhados num
banho de água, de preferência corrida ou renovada regularmente, para perderem o seu
sabor amargo e ficarem tenros. Outros vegetais que faziam parte da alimentação egípcia, a
maioria comidos crus: o aipo, pelo menos a partir do Império Novo; e a cabaça (Lagenaria
siceraria), cujo nome vem do árabe kara bassasa, «abóbora lustrosa», e dá pelo nome
popular de abóbora-d’água. Se a cabaça era conhecida antes da Época Greco-romana não
se sabe, mas ela entra numa das raras receitas «egípcias» do célebre livro de Apício.
Os Egípcios comiam ainda algumas plantas aquáticas como legumes, mas este hábito
perdeu-se no tempo: o lótus, sechen, a planta de predilecção dos Egípcios, e o papiro,
mehit, porventura a espécie vegetal mais utilitária do Egipto. Primitivamente havia duas
espécies de lótus: o lótus azul (Nymphaea caerulea), serepet, que se abre mal se levanta
o Sol e se fecha ao anoitecer, e o lótus branco (Nymphaea lotus), que se abre quando a
noite cai e se fecha aos primeiros raios de sol. Provavelmente no período persa, surgiu a
Nelumbo nucifera de cor rosa. As palavras neheb, nekheb e necheb, também se referem a
lótus. O lótus contém quatro narcóticos alcalóides concentrados nas suas flores e raízes61.
Frequentemente era representado em baixos-relevos ou pinturas como tema decorativo, em
belos campos brancos ou azuis, ou integrando os produtos das oferendas. O lótus azul era 53
o mais significativo para os Egípcios: a sua cor é a do céu. Era oferecido aos deuses, dava-
-se a cheirar aos defuntos para lhes restituir a vida; e uma lenda cosmogónica fazia nascer
desta flor o Sol primordial no Nun, logo que ela se abria de manhã. A flor de lótus também
é conhecida por lótus egípcio, lótus sagrado, lótus-da-índia ou nenúfar. Os dois nomes
egípcios do lótus passaram para as línguas europeias: sechen (sSn) (que dá o nome próprio de
Susana, por via hebraica através da palavra shoushan, literalmente «lírio, açucena») e na-neferu
(nA-nfrw), locução que significa literalmente «as belas» ou «os belos», referindo-se aos lótus
abertos sobre as águas, que nos chegou através do termo árabe ninufar, no qual se reconhe-
ce facilmente a palavra nenúfar62. Agradeço ao Professor Luís Manuel de Araújo, ter-me
alertado para a existência de estatuetas funerárias no Museu Nacional de Arqueologia (nº
105 do catálogo)63 e na Sociedade de Geografia de Lisboa, pertencentes a uma dama da
XXI dinastia chamada Gautsechenu, ou seja, «Ramo de Lótus».
Os rizomas dos lótus e as sementes eram comidos crus ou cozidos. A iconografia apresenta
um número considerável de mulheres segurando lótus e deliciando-se com o seu odor divino.
Experiências actuais em que se embebem as flores em vinho durante várias horas, levam a
admitir que pudesse também ser considerado uma droga recreativa com efeitos narcóticos
e eufóricos, podendo também ser considerado um estimulante sexual, mas embora se torne
61 - Nunn, Ancient Egyptian Medicine, p. 157.
62 - J.-P. Corteggiani, «Lotus», L’Égypte Ancienne et ses Dieux. Dictionnaire illustré, Paris: Fayard, pp. 300-301.
63 - L. M. Araújo, Antiguidades Egípcias, Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 1993, p. 206.
ligeiramente alucinogénia com doses mais altas. Aparentemente, ainda hoje há quem se
delicie: «para uma bebida tradicional egípcia, embeba as flores em vinho por várias horas.
Use aproximadamente 5 gramas por garrafa. Não exceda a dose recomendada: o lótus azul
torna o vinho azedo e difícil de beber»64.
Mais do que as fontes egípcias, é Heródoto quem nos informa acerca da utilização
alimentar do lótus: «Eles colhem estas flores, secam-nas ao sol, retiram o que contém o
coração do lótus, parecido com uma cabeça de papoila [rizoma?], moem-no e fabricam pães
que cozem no fogo. A raiz deste lótus é igualmente comestível; tem um sabor bastante doce;
é arredondada, da espessura de uma maçã»65. Mais tarde, no século I d. C., o naturalista
romano Plínio, o Velho, na sua Naturalis Historiae, faz referência a um tipo de pão que os
Egípcios criaram com sementes de lótus, mas também esta receita se perdeu66. Em relação ao
consumo do papiro, Heródoto informa-nos que era a parte inferior da haste que era cozinhada
e comida: «Quanto ao papiro que cresce cada ano, quando o arrancam dos pântanos cortam-
lhe a parte superior, que usam de diferentes maneira ou que vendem; e comem a parte inferior
que permanece, com um comprimento de cerca de um côvado. Aqueles que querem tirar do
papiro um prato verdadeiramente delicado fazem um ensopado num forno aquecido ao rubro,
e comem-no assim preparado.»67
Outro vegetal pouco usual nos nossos dias é a junça (Cyperus esculentus L.), uma cana
da família dos papiros a que os Egípcios chamavam giu, consumindo a sua raiz, designada
por uah, que podia entrar, pelo menos, em receitas de bolos. Cultiva-se ainda em certos
54 países árabes e em Espanha, com os tubérculos das quais se faz a típica bebida «horchata».
No Egipto foi uma das primeiras espécies vegetais a ser cultivada e deve ter tido uma
importância significativa na alimentação da Antiguidade. Os antigos Egípcios tinham, assim,
uma razoável diversidade de vegetais para comer. Alguns são-nos familiares e continuam a
ser muito utilizados no Egipto; outros desapareceram totalmente do vale do Nilo e, outros
ainda, estiveram sempre presentes no país, mas perdeu-se o hábito de os consumir, sendo
substituídos a pouco e pouco por produtos mais especializados.
E se isto é assim em relação aos vegetais, no que respeita aos frutos a diferença é muito
maior: no Egipto faraónico não havia limões, laranjas ou toranjas, pois os citrinos foram
introduzidos no vale do Nilo no período romano. Também as peras, os pêssegos, as ameixas,
os damascos, as cerejas, as mangas e as goiabas eram desconhecidas, tendo sido introduzidas
no Egipto pelos Árabes, ou levadas para lá depois, aproveitando o estreitamento de contactos
com regiões mais a oriente. De facto, no Egipto havia uma variedade muito limitada de frutos
nas primeiras dinastias, reduzindo-se praticamente às tâmaras, aos figos e às uvas.
Uma das árvores mais antigas e que surge com mais frequência na iconografia é a Phoenix
dactylifera, a palmeira tamareira, a que os Egípcios chamavam bener-chen e que parece ser
autóctone. O nome do seu fruto, bener(i), acabou por significar também «doce, açucarado,
64 - http://azarius.pt/smartshop/herbs/herbs-relax/blue_lotus_flower/, consultado em 05/02/2015.
65 - Hérodote, Histoire, II, 92.
66 - Caio Plínio Segundo, História Natural, XXII, 27, apud Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 91.
67 - Hérodote, Histoire, II, 92.
agradável». Desde a pré-história que há vestígios do consumo de tâmaras um pouco por todo o
lado, da distante Núbia, onde a sua recolha ficou registada numa pintura funerária, aos oásis do
deserto líbio onde aparece amiúde associada à vinha. Por serem, a par do mel, um dos açúcares
de então, as tâmaras, também designadas por amá, foram abundantemente utilizadas na cozinha,
integrando diversas receitas de pastelaria e servindo ainda para a produção de uma cerveja de
luxo. Além do mais, as tâmaras eram fáceis de conservar por períodos relativamente longos,
bastando para isso secá-las, para dispor delas durante todo um ano. Todavia elas podiam ser
utilizadas em diferentes estádios de conservação, podendo ser comidas secas, ou usadas frescas
ou no início do processo de secagem. Em Cheikh Abd el-Gurna, no túmulo de Antefiker e de
Senet (TT60), sua esposa ou mãe, da XII dinastia, no registo inferior de um conjunto de quatro
dedicados à cozinha, vemos à direita um cozinheiro que se baixa e mistura no chão um mosto
de tâmaras, e que, segundo a legenda que tem por cima, enquanto trabalha vai resmungando
que as tâmaras que vieram do celeiro são velhas e que para acabar o seu trabalho vai precisar de
muita sorte. Percebe-se assim que, neste caso, é bastante mais difícil produzir um bom trabalho
com tâmaras velhas e duras do que com elas frescas e moles.
A figueira (Ficus carica) parece não ser autóctone, mas é igualmente muito antiga no
Egipto. Poderá ter vindo da região da Síria-Palestina logo nas primeiras dinastias, pois é
frequente na iconografia dos túmulos privados desde o Império Antigo, muitas vezes em
bem humoradas representações da recolha de figos. No túmulo de Khnumhotep III, da
XII dinastia, em Beni-Hassan, vemos dois homens junto a uma figueira a apanhar figos:
um, ajoelhado, coloca-os num cesto grande de vime, o outro, em pé, apanha-os da árvore 55
pondo-os num cesto mais pequeno. Ao mesmo tempo, três macacos empoleirados na árvore
não aparentam ajudá-los mas, pelo contrário, fazem-lhes descarada concorrência, levando à
boca um fruto com uma mão e estendendo a outra mão para outro figo. O figo, dabu, era dos
principais alimentos egípcios, comendo-se fresco ou seco, natural ou cozinhado. Algumas
prescrições médicas referem mesmo os «figos assados» como tratamento de problemas de
digestão, como esta do Papiro Ebers (Eb. 41): «Outro (remédio) para expulsar os males
que estão no interior do corpo: figos assados, temperados com azeite de moringa fresco;
uvas secas (temperar) do mesmo modo; frutos peret-cheni (temperar) do mesmo modo.
(Isto) será misturado numa massa homogénea, depois comido pelo homem que tem males
no interior do corpo, e vamos fazê-lo beber»68.
As virtudes concedidas aos figos não acabam aqui. Um baixo-relevo do túmulo de
Mentuemhat, da XXV dinastia, conservado no Museu de Brooklyn, mostra uma mulher a
aleitar uma criança, sustentando a sua cabeça com uma mão e com a outra escolhendo figos
de uma cesta diante dela sobre um suporte. Ora, segundo certos textos religiosos, a forma
do figo podia ser uma referência ao seio da deusa Ísis, a alimentadora por excelência, sendo
assim uma boa evocação para garantir a importância deste alimento perante os Egípcios69.
Na realidade o figo entrava nas mais variadas receitas egípcias, tendo sido encontrados em

68 - Thierry Bardinet, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, Paris: Lib. Arthème Fayard, 1995, pp.
256-257.
69 - Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 79.
alguns túmulos sem pães fossilizados e no vinho, como ficámos a saber pelas análises feitas
a restos orgânicos sedimentados em jarros.
Na mesma época da figueira pode ter sido introduzida também no Egipto a vinha, iareret,
levando a que as uvas e figos tenham tido sempre uma certa proximidade. A descrição da
propriedade rural de Metjen, alto dignitário da III dinastia, na biografia encontrada no seu
túmulo em Sakara, mostra que as duas coabitavam em abundância. À volta de um grande
lago, a vinha ficava no centro e as figueiras à volta de todo o domínio, produzindo-se grande
quantidade de vinho. E segundo algumas fórmulas dos «Textos das Pirâmides», do final da
V e VI dinastias, como a 440, «O rei não é para ser excluído do céu», as uvas, em particular
o vinho, em conjunto com os figos, tornaram-se a base da alimentação do rei: «...que vive de
figos, que bebe vinho...»70. Como já assinalámos a respeito de Merit, mulher do arquitecto
Kha, da XVIII dinastia71, a uva podia também ser seca e consumida como passa, unchi. Por
fim, refira-se que as tâmaras, os figos e as uvas podiam entrar naturalmente em todas as
receitas que tivessem necessidade de açúcar.
Os Egípcios apreciaram outros frutos, sendo um dos mais antigos o melão (Cucumis
melo), chesepet, que na iconografia é difícil de distinguir do pepino, benedet, mas que já
aparece na mastaba do vizir Meru, da V dinastia, em Sakara, onde dois dependentes numa
espécie de latada colhem para cestos uns frutos compridos com pequenos pedúnculos fortes
e retorcidos. Além de consumirem o miolo, provavelmente consumiam também as sementes
secas. A melancia, bededu-ka, era conhecida pelo menos desde o Império Antigo, pois num
56 túmulo da VI dinastia, em Meir, a nordeste de Assiut, foi feita uma excelente representação
sua que permitiu identificá-la à primeira vista. A romã (Punica granatum), nehim, é mais
tardia no Egipto, podendo ter vindo da Ásia no final do Império Médio, mas só depois de
Tutmés III ter trazido exemplares do Retenu Superior e de os ter representado no seu «jardim
botânico»72, é que passou a surgir com frequência na iconografia egípcia a partir do meio da
XVIII dinastia. Como podemos ver numa pintura do túmulo de Neferhotep II (TT 216), da
XIX dinastia, em Tebas, a romãzeira era cultivada junto das figueiras e das vinhas. No Museu
Britânico vêem-se alguns exemplares fossilizados, juntamente com um bolo de tâmaras e
dois pães, oferendas funerárias depositadas num túmulo. A maçã (Malus sylvestris), karhet
ou depehet, surge no vale do Nilo no Império Novo, mas o clima do país não era apropriado
para se difundir e, por isso, permaneceu uma raridade e um luxo, sendo sobretudo importada.
No entanto, é mencionada em alguns textos e sabe-se que Ramsés II tinha macieiras no seu
jardim em Pi-Ramsés, e que Ramsés III ofereceu a Hapi 848 cestos de maçãs73.
Também a alfarroba (Ceratonia siliqua), vagem de 10 a 20 cm de comprimento, contendo

70 - Raymond O. Faulkner, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, Oxford: Oxford University Press, 1998,
pp. 146-147.
71 - Canhão, «Da produção têxtil ao vestuário», Hapi 2 (2014), p. 65.
72 - Lise Manniche, An Ancient Egyptian Herbal, Londres: British Museum Press, 1999, pp. 139-141;
Nathalie Beaux, Le Cabinet de Curiosités de Thoutmosis III, OLA (36), Lovaina: Peeters Press, 1990, pp.
196-201 e 215.
73 - Manniche, An Ancient Egyptian Herbal, p. 117.
grãos ovais muito rijos, a que, segundo alguns, os Egípcios chamavam uahe, segundo outros,
nedjem74, era muito usada na Antiguidade. São os frutos da alfarrobeira, uma árvore resistente
a climas rigorosos e à seca, que atinge cerca de 15 metros de altura. No túmulo de Menna
(TT 69), da XVIII dinastia, há uma representação desta árvore, com uma mulher a aleitar o
seu filho à sombra dos seus ramos com vagens muito mais parecidas com as da alfarrobeira
do que com as da acácia, cujos alvéolos dos grãos são muito mais vincados. Depois de seco o
fruto podia ser moído e utilizado na pastelaria, pois é naturalmente doce dispensando o uso de
açúcar. Esta particularidade foi registada pelos Egípcios na escrita ao criaram o hieróglifo G.
M29 ( )75,uma vagem da alfarrobeira, usando-o como determinativo de nedjem, «doce»76.
Os Egípcios consumiam, ainda, os figos de sicómoro (Ficus sycomorus), uma árvore de
grande porte, a que chamavam nehet, bastante difundida no Egipto e ao alcance de maior
número de pessoas, cujos frutos maduros são encarnados ou rosa, de menor tamanho e in-
ferior qualidade do que os figos da figueira. Para facilitar a sua maturação ou os secar, os
Egípcios entalhavam os figos, prática que ficou registada no seu vocabulário, pois aos figos
de sicómoro não entalhados chamavam kau e aos entalhados nekaut. Os frutos desta árvore
chegam à maturidade após um longo período de nove meses (de Abril a Dezembro), o que
deverá ter contribuído para tornar o sicómoro numa árvore produtiva, à qual os Egípcios se
afeiçoaram cada vez mais. Foi progressivamente ganhando um estatuto de árvore sagrada
nas crenças egípcias, ligando-se sobretudo à alimentação do defunto e integrando no Império
Novo o reportório funerário. Por vezes torna-se o habitat da deusa Hathor/Ísis, deusa alimen-
tadora do ba dos defuntos na orla do deserto, outras de Nut, deusa do céu e igualmente uma 57
alimentadora. No túmulo de Kenamon, TT 93, da XVIII dinastia, a deusa envia ao morto
estas palavras reconfortantes: «Palavras ditas pelo sicómoro, Nut. Eu sou Nut, alta e grande
no horizonte, eu vim junto de ti, saudar-te, intendente dos rebanhos [...] debaixo de mim, tu
revigoras-te nos meus ramos, tu satisfazes-te das (minhas) oferendas, tu vives do meu pão, tu
bebes a minha cerveja, eu faço com que tu te aleites do meu leite, que tu vivas e te mantenhas
vivo graças aos meus seios, a alegria e a santidade estão neles, ele (o leite) penetra em ti como
vida e estabilidade»77. Outras representações, como a do túmulo de Pachedu, TT 3, em Deir
el-Medina, XIX dinastia, mostram o defunto junto a um sicómoro, onde está uma deusa, «A
74 - Destéract, Pain, bière et toutes bonnes choses..., pp. 45-46.
75 - Da secção M - Árvores e plantas, de Gardiner, apresentada no final deste subtítulo.
76 - A alfarrobeira foi introduzida em Portugal e no resto da Europa pelos Árabes, para quem era muito importante
pois o peso constante das suas sementes era usado por eles para pesar ouro e pedras preciosas. Aliás, o termo «qui-
late», a unidade de peso de metais e pedras preciosas, deriva da palavra grega kerátion (κεράτιον), referindo-se a
essa antiga prática do Médio Oriente de pesar estes produtos preciosos contrapondo-os a sementes de alfarroba. O
sistema acabou padronizado e um quilate foi fixado em 0,2 gramas. Mais tarde, os Romanos cunharam uma moeda
de ouro puro, o solidus, que pesava 24 sementes, 4,8 gramas. Deste modo, a pureza do ouro passou a ser medida pelo
quilate, em que 24 quilates de ouro significava 100% puro e 12 quilates 50%. Até há bem pouco tempo, em Portugal
só se utilizava a alfarroba como alimento para o gado. Actualmente Portugal é um dos maiores produtores mundiais
de alfarroba, o «ouro negro do Algarve», produzindo cerca de 40 toneladas por ano, para consumo interno e exporta-
ção. As suas utilizações são cada vez em maior número, indo da indústria alimentar, da cosmética e da farmacêutica
até ao biocombustível (http://pt.wikipedia.org/wiki/Alfarrobeira, consultado em 08-02-2015).
77 - Nathalie Baum, Arbres et Arbustes de l’Égypte Ancienne, OLA (31), Lovaina: Peeters Press, 1998, p. 36.
Senhora do Sicómoro», que lhe dá um pão com a mão esquerda e lhe faz uma libação com
a mão direita. Actualmente, embora ainda haja muitos sicómoros no Egipto, os seus frutos
raramente são comidos.
A persea (Mimusops schimperi), uma árvore de folha perene que pode atingir 20 metros
de altura, é a árvore iched que produz um fruto comprido, de cor amarela quando maduro,
a que os Egípcios chamavam chauab. Frutos e sementes de persea foram encontrados em
diversos sítios arqueológicos desde o Império Antigo como, por exemplo, no complexo de
Djoser, em Sakara78. Uma carta do Império Médio encontrada em Lahun, sem se referir à
forma como esse produto foi preparado, fala de uma espécie de massa ou farinha extraída
da persea; e no Império Novo este fruto aparece nos túmulos, representado em oferendas
e consumido em banquetes, claramente com uma conotação erótica79. Hoje em dia, quase
desapareceu totalmente do Egipto.
Outra árvore que produz um fruto bastante consumido no antigo Egipto é palmeira dum
(Hyphaene thebaica), designada por mamá. Semelhante à palmeira tamareira, ainda hoje
está bem implantada no Sul do Egipto. Os seus frutos desenvolvem-se em cachos, sendo
irregularmente arredondados e encorpados (6-10 cm por 6-8 cm), lisos, de um castanho
avermelhado, amolgados, com a polpa esponjosa e açucarada, pesando cerca de 120 g cada
quando fresco e 60 g quando seco. Cada um contém uma única semente, muito resistente,
que encerra um líquido leitoso que também é consumido. Os Egípcios conheciam-nos bem.
Um texto religioso do Papiro Salier I consagrado a Tot, cujo animal sagrado, o babuíno,
58 vivia uma relação estreita com a palmeira dum, descreve-os dizendo: «A palmeira dum com
60 côvados de altura tem frutos (kaukau): há sementes (khanenet) no interior dos frutos, e
um líquido (mu) no interior das sementes»80. A palmeira dum, que pode desenvolver-se no
deserto, era assim uma espécie de último recurso do sedento, que podia matar a sede com
os seus frutos. Frequentemente representada no antigo Egipto entre as principais árvores de
fruto a partir do Império Novo, os seus frutos foram encontrados em sítios arqueológicos de
todas as épocas da história faraónica. No túmulo de Pachedu, foi registada uma bela pintura
em que o defunto bebe a água da vida ao pé de uma destas árvores.
Uma outra árvore mencionada frequentemente pelos textos egípcios é a árvore nebes
(Ziziphus spina christi), que conhecemos por jujuba e atingindo alturas entre os 4 e os 10
metros. Os seus frutos são pequenas bagas esféricas de cerca de 1 cm de diâmetro, com duas
ou três sementes no seu interior e que ficam com uma cor vermelho escuro ao amadurecerem,
semelhantes a cerejas e ricos em açúcar. Têm um valor alimentar semelhante ao da banana81.
78 - TALLET, La Cuisine des Pharaons, p. 83. As pequenas estatuetas funerárias de aspecto osiríaco, com a fun-
ção simbólica de obterem a comida para o morto e o servirem no Além, inicialmente eram feitas da madeira desta
árvore, parecendo que o seu nome deriva daí mesmo: chauabti (L. M. Araújo, Estatuetas funerárias egípcias
da XXI dinastia, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2003, p. 108).
79 - Idem, ibidem.
80 - Baum, Arbres et Arbustes de l’Égypte Ancienne, p. 118.Tome-se em consideração que é um texto religioso e
que, provavelmente, o tamanho da árvore foi exagerado. Cada côvado egípcio eram 52,5 cm, o que multiplicado por
60 resulta em 31,50 metros. Na realidade, estas árvores tinham alturas que se situavam entre os 15 e os 20 metros.
81 - Peters-Destéract, Pain, bière et toutes bonnes choses..., pp. 48-49.
Integrando as oferendas desde as primeiras dinastias ao longo de toda a história faraónica,
parece que foram consumidas no Egipto sem interrupção até ao presente, usados sobretudo
na confecção do pão té-nebes. Prova disso é o facto de a receita ter sido conservada no
Egipto, uma vez que o pão de nebes ainda hoje é fabricado no campo. Eis as etapas da sua
confecção, tal como foi recolhido no Sudão:

«Apanha-se o fruto do Ziziphus, coloca-se num almofariz de madeira e, com


um pilão igualmente de madeira, mói-se até a polpa ficar separada do caroço.
Feito isto, continua-se a moer até o reduzir a pó, que se põe numa peneira, uma
pequena esteira redonda, para o peneirar e refinar. Uma vez peneirado, coloca-
se o pó numa masseira e faz-se uma pasta com um pouco de água. Faz-se então
uma cova [no chão], grande ou pequena segundo a quantidade de massa obtida,
e enche-se a cova com folhas de ochar, folhas largas e longas do tamanho de
uma mão. O ochar é uma árvore que mede três metros de altura e cujos ramos
dão flores esverdeadas. [...] Com a cova cheia, deitamos a maça numa série de

59

Preparação dos bolos chait. Túmulo de Rekhmiré (TT 100), XVIII dinastia,. reinado de Tutmés III (1479-1425 a.
C.) e Amen-hotep II (1425-1400 a. C.), em Cheikh Abd el-Gurna.
abóboras cortadas em dois segundo o volume que queremos dar ao pão, e pomos
estas espécies de moldes uns ao lado dos outros na cova revestida. Cobrem-se
com mais folhas de ochar, e acende-se por cima um fogo que se mantém aceso
durante uma hora e meia a duas horas; depois deixa-se o fogo arder toda a noite
e, de manhã, tira-se o pão cozido e coloca-se numa mesa baixa assente em seis
pés chamada raqubat. Come-se simples ou com leite coalhado: desta última
maneira produz a prisão de ventre e é usado como medicamento pelos indígenas.
Prepara-se com as sementes peladas uma espécie de bebida azeda.»82

Estas são as principais etapas da produção de pão tal como era praticada pelos antigos
Egípcios: esmagar, refinar, amassar com água e cozer. Tanto para a produção de pão
como para o fabrico de cerveja, é possível que as receitas faraónicas se tenham mantido
ao longo dos séculos.
Para terminar, uma referência à mandrágora (Mandragora officinarum L.), embora pos-
samos já não estar a falar de culinária. Os frutos da matet, ou rermet, têm a forma de pe-
pinos cor de laranja e são carnudos, aromáticos e tóxicos; tem uma grande raiz principal,
bifurcada e muito ramificada. O uso da raiz e dos seus frutos é muito antigo, sendo-lhes
atribuídas propriedades afrodisíacas, alucinogénicas, analgésicas e narcóticas, em virtude
dos quatro diferentes alcalóides que contêm. Embora seja considerada venenosa, parece
que as suas características a elevaram. Integrada em contextos religiosos ou fortemente
60 simbólicos, as primeiras representações desta planta são do Império Novo. Representações
de banquetes a que é possível atribuir valor místico, mostram muitas vezes os convidados a
cheirar este fruto, ultrapassando o sentido erótico e conferindo-lhe uma utilização como se
de uma droga se tratasse, graças aos seus efeitos alucinogénios. Assinale-se também, que
não há dúvidas de que os Egípcios conheciam os efeitos narcóticos da papoila (Papaver
somniferum L.), tendo sido descoberto um recipiente com restos da sua resina no túmulo
do arquitecto Kha, da XVIII dinastia, em Deir el-Medina83. Era-lhes igualmente familiar
o cânhamo indiano (Cannabis sativa indica), provavelmente designado por chemchemet,
sendo provável que conhecessem também os seus efeitos alucinogénios. Podia ser admi-
nistrada pela boca, recto, vagina, ou por absorção cutânea, aplicado nos olhos e fumigado,
tendo uma utilização mais no campo da medicina do que no da culinária, devido aos seus
efeitos no sistema nervoso central84.
O reino vegetal ficou bem vincado na escrita hieroglífica. Da lista de Gardiner destacamos
da secção M. Árvores e plantas: M1, , árvore; M2, , erva; M3, , ramo; M4, , ramo de
palmeira; M8, , tanque com flores de lótus; M9, , flor de lótus; M10, , botão de lótus;
M12, , folha, caule e rizoma de lótus; M13, , caule de papiro; M15, , moita de papiros
com botões para baixo; M16, , moita de papiros; M17, , junco a florir; M20, , canavial;
82 - Tallet, La Cuisine des Pharaons, pp. 84-85.
83 - Manniche, An Ancient Egyptian Herbal, pp. 131-132.
84 - Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 85; Nunn, Ancient Egyptian Medicine, pp. 156-157.
M22, , junco dos pântanos; M23, , junco Scirpus; M26, , junco do deserto (?); M30,
, rabanete (?); M31, , rizoma do lótus; M33, , grãos de cereais; M34, , espiga de cereal;
M35, , monte de grão; M37, , feixe de pés de linho; M39, , cesta com frutos; M14, ,
feixe de canas atado; M42, , flor; M43, , vinha numa latada85.

5. O pão e os bolos

O trigo emmer ou espelta (Triticum dicoccum) é diferente do trigo ou cevada (Hordeum


vulgare). Os Egípcios sabiam isso perfeitamente, chamando ao primeiro bedet e ao segundo
it. Serviam tanto para o fabrico do pão, té, e de bolos, como para o fabrico da cerveja. Se a
carne não era de consumo regular para a maioria dos Egípcios, pelo menos o pão86 e a cerveja
eram produzidos quotidianamente em todas as casas, sendo aí uma tarefa essencialmente
feminina. O ciclo dos cereais, e a subordinação do camponês a eles, é das tarefas agrícolas
melhor conhecidas através da iconografia tumular. Também o fabrico do pão e da cerveja são
das cenas mais reproduzidas, muitas delas acompanhadas de textos explicativos, e das quais
temos também excelentes modelos tridimensionais das várias etapas do processo.
Vejamos o caso do pão, que se fosse pão branco se dizia té-dejet, de trigo sut, e ainda havia
o pão ah, o pão aadet, o pão guessu, o pão heref, o pão hesemem, ou qualquer outro dos nove
mencionados no papiro antes apresentado. Na sua versão mais simples, usavam tal como hoje 61
farinha, água e sal. A farinha podia ser de trigo, de cevada, as mais usadas, ou, ainda, de malte,
alfarroba ou junça. Provavelmente por obra do acaso, muito antes do período dinástico, os
Egípcios descobriram o fermento natural. Alguém terá deixado massa de farinha misturada
com água exposta algum tempo ao calor − sabe-se hoje, que seriam necessárias entre quatro
a oito horas para essa massa levedar e ganhar volume. Quando a cozeu verificou que obtinha
um pão macio e saboroso87. A fermentação aconteceu porque na atmosfera existem grandes

85 - Alan Gardiner, Egyptian Grammar, pp. 478-484; F. J. Martín Valentín, Gramática Egipcia, Madrid:
Alderabán Editiones, 1999, pp. 150-152.

86 - A secção X. Pães e tortas, da lista de Gardiner, tem oito tipos diferentes de pães: , um tipo de pão; , outro
tipo de pão; , forma alternativa do anterior; , rolo de pão; , forma semi-hierática do anterior; , pão re-
dondo com marcas dos dedos do padeiro, , meia fatia de pão; , pão cónico (Gardiner, Egyptian Grammar,
pp. 531-533).
87 - Em muitos sites e blogues da Internet circula a informação de que o primeiro testemunho escrito é o de Heró-
doto que teria escrito: «todos estão temerosos de alimentos fermentados, mas os egípcios fazem uma massa de pão
fermentada». Alguns chegam a dar a informação mais completa: «todos estão temerosos de alimentos fermentados,
mas os egípcios fazem uma massa de pão fermentada e criaram também o primeiro forno e começaram a utilizar
vários tipos de cereais para fazer farinha e pães». Mas nenhum dá a referência bibliográfica do local exacto de onde a
informação foi recolhida. Após consulta da versão completa de Heródoto, História, eBooks Brasil, 2006, tradu-
ção de Pierre Henri Larcher vertida para português por T. J. Brito Broca, e de Hérodote, Histoires, II, Paris: Les
Belles Lettres, 1997, tradução de Philippe-Ernest Legrand e, ainda, de Hérodote, Histoires, III, Lisboa: Edições
70, 1997, tradução de Maria de Fátima Silva e Cristina Abranches, não encontrámos tal citação em Heródoto.
quantidades de microrganismos, entre os quais esporos e fungos de levedura (Saccharomyces
cerevisiae), que nas massas de pão encontram o seu alimento: o amido da farinha. Por acção
destes microrganismos o amido decompõe-se em anidrido carbónico e álcool, e são as bolhas
produzidas pelo primeiro que, não conseguindo escapar da massa, a fazem crescer tornando-a
fofa. Na cozedura, tanto o álcool como o gás carbónico escapam, mas fica o seu efeito visível
na porosidade, no sabor e no aroma do pão. Antes de cozer retirava-se um pouco de massa
levedada para servir de fermento para a próxima fornada, o que acelerava o processo de
fermentação seguinte. Os fermentos, como eram naturais, eram da farinha com que era feita
a respectiva massa. Depois era só juntar à humidade o calor e o tempo!
A preparação do pão iniciava-se com a transformação do cereal em farinha. Vê-se moer
a farinha em pé, com grandes pilões em almofarizes assentes no chão, enquanto as legendas
dizem sehem (moer com o pilão) e, por vezes, é também necessário peneirar para eliminar
alguns grãos mais resistentes. Com a farinha pronta, misturava-se-lhe água e amassava-se.
Desta fase há também imagens que mostram a adição de sal. A operação era feita de joelhos
em lajes com uma ligeira inclinação para diante e, depois, essa massa passava para recipientes
convexos, semelhantes a algumas das actuais gamelas, onde continuava a ser amassada de
joelhos. Após esta etapa a massa estava pronta para repousar um certo tempo no processo
de fermentação, como refere uma legenda no túmulo de Ti88. O pão era cozido em moldes,
ou formas, de diversas configurações, mas o processo seria semelhante para todos eles. Os
mais comuns, os moldes bedja, eram formas cónicas que começavam por ser empilhados
62 sobre as chamas, geralmente em grupos de cerca de uma dúzia; previamente aquecidos eram
retirados do fogo, colocava-se dentro a massa suficiente e cobria-se com uma parte superior
semelhante à inferior; eram então colocados sobre brasas cerca de 40 minutos, segundo a
arqueologia experimental, para que pudessem cozer. Deixava-se o molde arrefecer e só então
se tirava o pão, operação a que as legendas hieroglíficas chamam «fazer cair o pão».
Hilary Wilson escreve ainda sobre o pão ázimo sem referir o antigo nome egípcio: «O
pão de base plana semelhante ao pão pitta, que ainda é o tipo de pão mais comum no Egipto,
era feito da mesma maneira que hoje. A farinha era misturada com água e um pouco de sal
num recipiente grande em forma de alguidar, o magur árabe. A massa do pão ázimo podia ser
moldada à mão e cozida directamente numa pedra plana colocada sobre o fogo, ou na base
interna de um forno de argila, ou ser mesmo colocada sobre a parede cerâmica do próprio
forno. Alguns pães eram simplesmente cozidos nas cinzas do fogo89.»
Tal como havia uma grande variedade de pães, também havia muitos tipos de bolos e
doçarias de pasteleiro. Para os bolos eram usadas como adoçantes grandes quantidades de
mel, tâmaras, alfarroba, passas ou doce de uvas. Embora haja muitas cenas de padarias, as
de pastelarias são muito raras, sendo apenas conhecidos três: no túmulo do vizir Rekhmiré
(TT 100) e no túmulo de Kenamon (TT 93), ambos em Tebas e do tempo de Amen-hotep
II, XVIII dinastia; e no túmulo de Ramsés III, XX dinastia. No entanto, são suficientes para
reconstituir as técnicas, dar uma ideia dos ingredientes empregues e, até, de fazer uma grande
88 - Tallet, La Cuisine des Pharaons, pp. 42 e 43.
89 - Wilson, Egyptian Food and Drink, pp. 13-14.
aproximação às próprias receitas. O melhor exemplo encontra-se no túmulo de Rekhmiré e
mostra-nos as etapas da confecção dos bolos chait de forma cónica. Lê-se da direita para a
esquerda. O produto base deste bolo é a raiz de junça que formava nas raízes, chamadas uahu,
uma espécie de nozes que tinham um sabor parecido ao da avelã90, que vemos num monte em
cima. Sob a supervisão e registo de escribas, a cena começa com a obtenção da quantidade
desejada de junça, usando as medidas que estão no chão junto ao almofariz e aos pilões:
uma medida de junça dá uma medida de farinha. As raízes das junças eram transformadas
em farinha em almofarizes, que depois era peneirada por diferentes peneiras para eliminar
todas as impurezas. Depois passava-se à zona propriamente de fabrico dos bolos, onde uma
legenda diz claramente: «servidores do departamento dos doces»91.
Misturava-se água e amassava-se até se obter uma massa com a consistência pretendida.
Faziam-se os bolos com a forma própria e, provavelmente, juntava-se o adoçante, pois à frente
do cozinheiro que está nesta tarefa encontra-se um grande pote de quatro asas junto do qual uma
legenda diz ser mel. Depois, numa frigideira com pegas em forma de anéis nas extremidades,
colocada sobre um fogão portátil, dois cozinheiros faziam o seu trabalho: o da direita a colocar
pedaços de massa na frigideira, o da esquerda a mexer com uma grande colher de madeira, ou
espátula, os que já estavam ao lume. A legenda diz: «Pôr a massa, cozinhar o bolo chait»92. Os
mesmos dois cozinheiros aparecem na cena seguinte junto à mesma frigideira, estando agora o
da direita a mexer o que está na frigideira com a mesma colher de madeira, ou espátula, e o da
esquerda a mexer em algo que se encontrava no fundo de um pote. Sem legenda não sabemos
qual é a sua tarefa. Mas por cima do fogão há uma pequena taça com tâmaras, identificadas pela 63
legenda beneret, que deveriam também ser adicionadas. Não é normal em pleno acto de fritura
juntar mais adoçantes, mas é o que parece. Há ainda, junto às tâmaras, quatro pães ovais que,
segundo Pierre Tallet, poderiam «fazer alusão ao que se encontrava no fogão nesse momento

Cena de pastelaria. Em KV 11, túmulo de Ramsés III (1184-1153 a. C.), XX dinastia.

90 - Manniche, An Ancient Egyptian Herbal, p. 98.


91 - Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 45.
92 - Idem, p. 46.
preciso da cozedura, segundo um processo familiar de figuração egípcia, muito explicativa,
que gosta bastante de mostrar o que está escondido em detrimento do realismo da cena»93. Por
baixo destas imagens há várias ânforas e quatro representações de bolos chait, que tinham uma
forma triangular, acompanhadas da legenda: «Colocar na forma de bolo chait».94
Seria a derradeira operação, provavelmente para retirar pequenos excedentes que o
processo de fritura provocara, desvirtuando a forma triangular que caracterizava este
bolo. Isto parece claro, porque uma outra receita parecida que surge no Papiro Ebers, um
papiro médico, diz claramente: «preparado segundo a forma do bolo chait». Por fim eram
acondicionados e levados da cozinha por um auxiliar numas cangas.
A pastelaria do túmulo de Ramsés III não nos proporciona nenhuma receita, mas
dá-nos informação sobre a realização de diferentes tipos de bolos. Não só a forma como a
ingestão dos bolos podiam ter significado religioso, o que justificaria a aparente dança ritual
realizada pelas duas figuras mais à esquerda. Ora, o modo de representação egípcio, agora
da esquerda para a direita, que apresenta dois homens «sobre» uma plataforma que tem no
exterior o desenho do que parece ser uma planta, pode querer dizer-nos que eles estão dentro
de uma grande tina a amassar com os pés um determinado tipo de plantas. Homero diz que
os Egípcios «amassam a massa com os pés, a argila com as mãos, e recolhem esterco»95.
Podia ser junça, por exemplo, cuja representação não difere muito. É evidente que o que
eles ralavam eram as nozes das suas raízes, mas a representação dessas raízes podia ser mais
difícil e, sobretudo, permitir a confusão com outros produtos. Neste conjunto de cenas de
64 pastelaria não há legendas, por isso nem se sabe quais são os produtos que os dois ajudantes
que se encontram imediatamente a seguir transportam. O da frente pode levar a massa já
feita e o de trás um pote de mel, mas isto são apenas suposições. O terceiro elemento desse
conjunto é um pasteleiro que faz sobre uma mesa bolos com diversas formas. Inclusive o
que se encontra mais à esquerda parece ter sido modelado com a forma de um touro deitado,
semelhante a outro que se encontra mais adiante. Aliás, esta cena do túmulo de Ramsés III
apresenta em cima e em baixo diversas formas de bolos.
Segue-se o momento em que os bolos eram fritos numa frigideira com tampa, directamente
sobre o lume entre os seus três pés. Aparentemente o cozinheiro da esquerda levantou a tampa
(a posição da mão esquerda indica isso mesmo) e mexe o conteúdo, e o da direita tirou do lume
com duas varas compridas um bolo já frito em forma de serpente enrolada. Não sabemos como
é que a massa foi posta a fritar, mas quer a frigideira quer o bolo lembram-nos o processo de
fritura das farturas, que ainda hoje encontramos em barracas e roulottes nas praias e feiras de
Portugal. Provavelmente a massa seria suficientemente «ligada» para ser esticada em rolo e
posta à mão, uma vez que nunca foi encontrado qualquer utensílio a que se pudesse atribuir
essa função (actualmente são usadas para a massa das farturas grandes seringas culinárias
que se descarregam pressionando o êmbolo com o sovaco). Por fim, em cima à direita, um
cozinheiro mexe num recipiente sobre o lume qualquer coisa que, pela forma do recipiente e
93 - Idem, p. 45.
94 - Idem, ibidem.
95 - Herodote, Histoires, II, 36.
como mexe o que está no seu interior aparenta ser líquida, enquanto um colega lhe traz lenha
para manter o fogo; em baixo outro cozinheiro parece estar a acondicionar algo no interior de
uma espécie de cesto estreito e fundo, provavelmente bolos como os que estão à sua direita.
Na faixa de baixo, dois cozinheiros de joelhos, o da direita amassa e o da esquerda dá forma,
fazem bolos com as formas que estão expostas entre eles. Ao centro, outros dois trabalhadores
executam as suas tarefas junto a dois recipientes, mas não sabemos quais são. Finalmente
temos três conjuntos de vasilhas de armazenamento, que deveriam conter uma variedade de
produtos necessários numa pastelaria, desde a massa a fermentar ao mel ou ao azeite.

6. O peixe

Por ser muito acessível a todos, o peixe era frequente na alimentação egípcia, sendo mais
consumido do que a carne e constituindo a principal fonte de vitaminas da alimentação do povo.
Heródoto diz mesmo: «Alguns Egípcios viviam unicamente de peixe; quando os apanhavam e
amanhavam, secavam-nos ao sol e consumiam-nos depois de secos»96. A pesca era praticada
um pouco por toda a gente, desde o camponês que, de forma individual, com ela melhorava
a alimentação da família, até ser feita em grande escala por conta do faraó ou da elite, para
alimentar os seus servidores e por razões comerciais, passando por uma pesca de lazer, de forma
desportiva e relaxante, como se vê na iconografia dos túmulos dos altos dignitários do Egipto.
Em relação à corte e a alguns sacerdotes, para quem Heródoto generaliza abusivamente 65
a interdição do seu consumo97, o peixe era consumido com alguma parcimónia, pelo menos
em algumas épocas históricas e por alguns egípcios. Não esqueçamos, por exemplo, que o
peixe oxirinco (Mormyrus kannume) era para muitos considerado o devorador do divino
falo de Osíris, o único pedaço que Ísis não encontrou do corpo do marido depois de Set o ter
retalhado em vários pedaços, por ter sido devorado por um destes peixes98; mas se uns não o
comiam por esse motivo, outros havia que os achavam deliciosos grelhados. Também na corte
era variável. Se por um lado o rei núbio da XXV dinastia Pié fez registar numa estela que os
derrotados Líbios eram impedidos de se submeterem e prestar vassalagem ao faraó por não
serem circuncidados e comerem peixe, o que era «uma abominação para a mansão real»99,

96 - Herodote, Histoires, II, 92.


97 - Hérodote, Histoires, II, 37: «cozem para eles pães sagrados e fornecem diariamente a cada um grande
abundância de carne de boi e de ganso, e dão-lhes vinho; mas é-lhes interdito comer peixe». Tanto quanto se sabe,
de uma maneira geral os sacerdotes comiam peixe, apenas o evitando em determinados períodos, quando tinham
que cumprir certos rituais (L. M. Araújo, «Peixes», Dicionário do Antigo Egipto, Lisboa: Editorial Caminho,
2001, pp. 669-670).
98 - Há informações sobre outros peixes considerados sagrados como o barbo ou lepidopus (adorado em Sunu, As-
suão), a perca-do-nilo (adorada em Esna) e o schilbe, que alguns dizem ser um golfinho (adorado em Mendés), Ma-
deleine Peters-Destéract, Pain, bière et toutes bonnes choses..., p. 305; Pascal Vernus e Jean Yoyotte,
Bestiaire des Pharaons, Paris: Éditions Perrin e AgnèsViénot Éditions, 2005, pp. 204-205, 240-242, 264-265 e 278.
99 - L. M. Araújo, «Peixes», Dicionário do Antigo Egipto, p. 669. De notar que nesta entrada do dicionário, Luís Araújo
chama atenção para o facto da palavra abominação», but, ter como determinativo um peixe, o Petrocephalus bane.
por outro, na ementa já apresentada do Papiro Anastasi IV para o banquete de recepção a
Ramsés III, constam doze tipos diferentes de peixe100, onde se vê inclusive que já então se
desenvolviam os primórdios da piscicultura. Também a estátua do Alto e do Baixo Nilo que
se encontra no Museu Egípcio do Cairo, que Nicolas Grimal diz ser uma representação dupla
de Amenemhat III, mostra o faraó fazendo uma oferta de peixes sobre um altar101.
No túmulo de Mereruka, da VI dinastia, encontramos parte das técnicas de pesca ilustradas
em dois registos de um relevo, onde os pescadores se atarefam em apanhar o maior número
de peixes. No registo superior, há quatro barcas de papiro sendo a primeira da esquerda a do
intendente que, sentado em posição de descanso, supervisiona a pesca e vai matando a sede.
Na sua barca, um homem sentado atrás de si submerge com a mão esquerda um fio com
anzóis, onde parece estar quase a prender-se um peixe. Na mão direita tem o pequeno bastão
de madeira para bater na cabeça dos peixes que pescar, atordoando-os ou matando-os mesmo.
O seu colega, na frente da embarcação, parece estar a abrir um peixe com uma faca. Por
cima dele há peixes escalados, aparentemente a secar, enquanto por baixo do barco se vêem
peixes vivos a nadar. Por baixo do barco seguinte, uma série de armadilhas ou aparelhos de
pesca fusiformes de cestaria ou de vime largo, as nassas, são fechadas e retiradas da água
cheias de peixes por um dos pescadores, enquanto outro ao seu lado despeja uma nassa já
retirada da água para uma cesta de um terceiro companheiro. Ao centro, com uma das mãos
dentro do peixe, outro pescador amanha um peixe. Nos outros dois barcos, cada um com
dois pescadores, os peixes são apanhados com redes do tipo dos nossos camaroeiros, de
66 boca triangular. São observados das margens por gansos e pelicanos102. No registo inferior, o
intendente está ao centro de dezoito homens, que puxam de cima do barco uma grande rede
apanhando os peixes maiores. Depois de lançada, os pescadores puxam os cabos de ambos
os lados da rede cercando os peixes que agora estão prestes a saírem da água103. Contudo, no
Império Antigo não aparece nenhum peixe em nenhuma lista de oferendas, acontecendo isso
sobretudo no Império Novo104.

100 - Por seu lado, o Papiro Harris ao falar das entregas aos templos nas festas de Ramsés III, mostra claramente
que os peixes não eram uma parte negligenciável das oferendas, contando-se a entrega de 441000 peças, Madeleine
Peters-Destéract, Pain, bière et toutes bonnes choses..., p. 306.
101 - L. M. Araújo, «Peixes», Dicionário do Antigo Egipto, p. 670.
102 - «Três espécies de pelicanos, o pelicano branco (Pelecanus onocrotalus), o pelicano cinzento (ou rosa!) (Pele-
canus rufescens) e o pelicano crespo (Pelecanus crispus) nidificam actualmente na Europa e são apenas sazonais no
Egipto. Mas antigamente, no Império Antigo pelo menos, alguma(s) destas três espécies nidificou(aram) no Delta»,
Vernus e Yoyotte, Bestiaire des Pharaons, p. 403.
103 - Há cenas deste tipo noutros túmulos como, por exemplo, nos da princesa Idut e de Ti, ambos da V dinastia e em
Sakara. E no túmulo de Ahanakht em Deir el-Bercha, do Primeiro Período Intermediário, temos uma representação
da arte xávega, do árabe xábaka que significa rede: seis pescadores puxam em terra os dois cabos de uma grande
rede de cerco largada ao rio por dois homens num barco de papiro. Mas também temos imagens de pescadores a
pescarem com fios atados na ponta de paus, verdadeiros antepassados das actuais canas de pesca, como no túmulo de
Khnumhotep, em Beni Hassan, da XII dinastia, ou de Nebuenenef, em Tebas, da XIX dinastia (Douglas J. Brewer
e Renee F. Friedman, Fish and Fishing in Ancient Egypt, Cairo: The American University in Cairo Press, 1990,
pp. 29-30 e 46.
104 - Cf. Peters-Destéract, Pain, bière et toutes bonnes choses..., pp. 304-305.
Todos os peixes representados pelos Egípcios estão há muito já identificados devido ao
naturalismo com que foram representados e, a maioria, são peixes do Nilo: carpas, percas,
tilápias, siluros, barbos, enguias, sargos, ruivos, peixes-gatos, oxirincos, peixes-balão... Mas
também aparecem representações de espécies marinhas, como a lula, a raia, o peixe-espada ou
o peixe-lua. Nos relevos de Hatchepsut em Deir el-Bahari, por exemplo, surgem a tartaruga, a
lagosta e o polvo105. Um dos mais apreciados, sobretudo pelas suas ovas, era o mugem (Mugil
cephalus), uma das espécies da tainha, um peixe do mar que subia o Nilo e que, como noutros
rios, era possível pescar no seu curso inferior. Na escrita hieroglífica ficaram registados alguns
dos peixes mais significativos para os Egípcios, para os quais Gardiner abriu uma entrada
exclusiva, K. Peixes, com sete signos: K1, , Tilapia nilotica, a que chamavam de inet; K2,
, Barbus bynni, a carpa dourada africana106; K3, , Mugil cephalus; K4, , Mormyrus
kannume, o peixe oxirinco, um peixe com «focinho de elefante» da família Mormyridae; K5,
, Petrocephalus bane, da mesma família do anterior mas sem extensão de boca; K7,
, Tetraodon fahaka, ou peixe-balão; sendo K6, , uma escama de peixe107. Além destes, de
partes de peixes e de peixes em cartelas, estandartes ou recipientes, a Hieroglyphica, uma lista
posterior à de Gardiner, acrescentou esta secção até K27A, donde destacamos: K4A, , K4B,
, K10, , K11, , K13, , K14, e K22, 108.

Conforme podemos observar em diversos túmulos, sobretudo privados, a preparação do


peixe não era diferente da actualidade. Não há representações do peixe a ser escamado, mas
foram encontrados em alguns túmulos pei-
67
xes mumificados escamados. Nas repre-
sentações o peixe começa por ser estripado
e escalado. Era uma tarefa que podia ser
desempenhada na própria embarcação an-
tes de chegar a terra ou na margem depois
do desembarque. Eram actividades que
faziam parte da arte da pesca e, por isso,
eram desempenhadas em ambiente nilóti-
co, como se vê no túmulo de Ipui, em Te-
bas (TT 217), onde um pescador, ou pei-
xeiro, junto de um outro trabalhador que Preparação do peixe: abrir, limpar, escalar e separar as
repara a sua rede, se senta num tamborete ovas. Túmulo de Ti, V dinastia (c. 2500-2300 a. C.), em
em frente a um suporte sobre o qual esca- Sakara.

105 - Wilson, Egyptian Food and Drink, p. 36.


106 - Curiosamente, a perca-do-nilo (Lates niloticus), um predador muito agressivo, cujas maiores, com 2 metros de
comprimento ou mais, podiam alimentar uma aldeia inteira, não consta da escrita hieroglífica, mas aparece na ico-
nografia, por exemplo, do funcionário da IV dinastia, Rahotep, em Meidum (mastaba 6) (Vernus e Yoyotte,
Bestiaire des Pharaons, p. 264).
107 - Gardiner, Egyptian Grammar, pp. 476-477.
108 - N. Grimal, J. Hallof e D. van der Plas, (eds.) Hieroglyphica, I, Utreque: Centre for Computer-aided
Egyptological Researchs, Utrecht University, 2000, p. 1 K-1.
la um peixe com uma faca. Num relevo do Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque,
originário de Sakara, do túmulo de Raemkai, da V dinastia, vemos um peixeiro à sombra de
papiros que brotam da água, sentado num tapete a limpar peixes com a ajuda de uma faca.
Num cesto estão os peixes por abrir e, à sua volta, espalham-se pelo chão os que foram aber-
tos e as suas ovas, que aparentemente estão a secar.
Em termos culinários, o peixe que era para se consumir de imediato cozia-se ou grelhava-se.
Como vemos numa cena do túmulo de Niankhkhum e Khnumhotep, da V dinastia, em Sakara,
o peixe podia ser posto num recipiente, certamente com água e sal, pelo menos, e posto ao
lume para cozer, tal como indica a própria legenda: «peixe cozido». Ou, como se vê no túmulo
de Urirni, da V dinastia, em Cheikh Said, podia ser grelhado de forma semelhante às aves,
sendo colocado num espeto que um homem segurava sobre as brasas, enquanto as ia atiçando
com um leque na outra mão. Outro método de preparação do peixe deveria ser o assado no
forno, com vários recheios e diversos condimentos. Por isso se têm em conta as receitas de
Apício, sobretudo aquelas que ele assinalou como sendo «ao estilo de Alexandria», pois
podem estar muito próximas das receitas do tempo dos faraós. Não há provas concludentes
sobre a possibilidade de os Egípcios comerem peixe frito. Sem iconografia ou textos que se
refiram a este método, extrapolamos, por exemplo, de casos como a ementa anteriormente
apresentada do Papiro Anastasi IV, onde constam vários tipos de peixe e a referência a óleo
alimentar; sabemos que em oferendas com peixe, também aparecem oferendas de óleo de
sésamo, mas não temos a ligação entre estes dois elementos109.
68 Nem todos os peixes eram para consumo imediato. Como vimos no túmulo de Raemkai,
o peixe podia ser seco certamente para ser consumido mais tarde, o que deveria acontecer
frequentemente, pois sabe-se que, logo depois do pão e dos cereais, era o peixe seco o produto
alimentar mais consumido pelas famílias de Deir el-Medina, segundo as relações de entregas
que se encontraram na cidade dos trabalhadores dos túmulos reais de Tebas e que alguns autores
reflectem110. No túmulo de Amenemhat, da XVIII dinastia, em Tebas, vêem-se os peixes
escalados a secar em fios suspensos de estacas, antes de serem embalados111. O peixe seco
podia ser cozinhado ou comido cru. Podia também ser salgado, alternando camadas de peixe
com camadas de sal. Por seu lado, a arqueologia deu a conhecer diversas ânforas do Império

109 - Peters-Destéract, Pain, bière et toutes bonnes choses..., p. 263.


110 - «Devido às várias fontes de renda e porque o governo forneceu não só habitação e rações de grãos, mas tam-
bém lenha, peixes e vegetais, água e óleos para cozinhar, iluminar e ungirem-se, os trabalhadores foram, provavel-
mente, capazes de economizar para obterem itens de luxo ocasionais e investimentos mais sérios», B. S. Lesko,
«Rank, roles and rights», em L. H. Lesko (ed.), Pharaoh’s Workers. The Villagers of Deir el-Medina, Ithaca e Lon-
dres: Cornell University Press, 1994, p. 22.
111 - Em Portugal, mais precisamente na praia da Nazaré, também é tradição antiga o peixe seco ao sol, o sustento
em dias de escassez, que depois pode ser comido cru (desfiado), grelhado ou cozido, acompanhado de batata cozida,
de preferência com pele, e regado com azeite e vinagre, ou sumo de limão, e alho picado. Os peixes mais utilizados
são o carapau, o batuque, a sardinha e o cação, ao que se acrescenta o polvo. O peixe começa por ser amanhado e,
depois de lavado, é posto numa salmoura de sal grosso (primitivamente era usada a água do mar). Por fim é escalado
e estendido nos paneiros ao sol. Distinguem-se duas formas de secagem: o peixe seco e o peixe enjoado. Depen-
dendo das condições atmosféricas e da temperatura do ar, a secagem demora 2 a 3 dias, para o peixe seco e 3 a 4
horas para o peixe enjoado. Também o consumo do peixe resultante destas duas técnicas é feito de forma diferente.
Preparação da butarga. Túmulo de Urirni (TT 25), Império Médio (c. 2040-1765 a. C.), em Cheikh Said.

Novo cujos selos referem terem contido peixe, e a iconografia da época mostra o peixe a ser
cozido antes de ser hermeticamente acondicionado em grandes potes. Assim, é plausível crer
que, para além da secagem simples, foram utilizados outros processos cuja técnica até pode ter
sobrevivido no Egipto actual, pois os Egípcios ainda hoje utilizam um sistema de conservação
do peixe que usa potes semelhantes e, portanto, é possível admitir que o método de salga
também o seja: o peixe é amanhado, lavado, escalado e coberto de sal, e progressivamente
colocado no pote. São intercaladas camadas de peixe com camadas de sal que, penetrando nos
tecidos do peixe, lhe retira a água, ficando pronto a ser consumido em cerca de dez dias. Muito
popular no Egipto de hoje, designa-se por fesikh e tem o condão de ajudar a unir muçulmanos e
cristãos, na festa da primavera Cham-en-Nesim, onde é muito consumido112.
Para além dos peixes, os Egípcios também consumiam as suas ovas, em particular as de
tainha, com as quais preparavam a butarga113, designação que deriva da expressão árabe bot-
ah-rik, ou seja, «ovos de peixe». Há cerca de 3500 anos os antigos Egípcios e, mais tarde, os 69

Gregos e os Romanos, consumiram ovas de peixe secas, embora se tenha ficado a dever aos
Fenícios a propagação ao longo da costa mediterrânica deste hábito alimentar. Contudo, as
etapas da sua produção ficaram registadas na iconografia dos túmulos egípcios. No túmulo
de Ti, da V dinastia, em Sakara, vemos em primeiro plano um cesto cheio de tainhas de onde
dois homens vão tirando os peixes que, com facas, amanham e escalam. À volta das suas
cabeças vê-se o resultado da tarefa: os peixes abertos ao meio e as suas ovas, uma espécie
de salsichas longas, espalhadas alternadamente. Uma outra etapa, a salga, é apresentada num
túmulo de Guiza: sentado num banquinho um homem abre uma tainha e, à sua frente, um
recipiente com sal ou uma solução de salmoura, está cheio de ovas de peixe. No túmulo já
antes mencionado de Urirni, onde vemos uma tainha a ser grelhada, temos, provavelmente,
a última etapa: um homem de cócoras retira as ovas da tainha do recipiente onde esteve um
certo tempo em sal, e prensa-as entre duas pranchas de madeira. Ao longo dos séculos, tanto
no Egipto como em algumas regiões da Europa, Marselha, por exemplo, a preparação da

112 - Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 69.


113 - A butarga é uma especialidade culinária feita das ovas de certos peixes (atum-rabilho, sargo,tainha,etc.), sal-
gadas e secas, revestidas com cera natural de abelha para deter a sua maturação no momento certo, protegendo-a do
contacto externo preservando-a e, sobretudo, ao seu delicado sabor durante a sua vida de prateleira. É característica
de vários países do Mediterrâneo, como Espanha, Itália, França, Grécia e região do Maghreb. Pierre Tallet acredita
que o termo francês «poutargue» é, provavelmente, uma antiga palavra egípcia que passou ao francês através do ára-
be, provando dessa forma a origem faraónica da própria receita (Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 70, nt. 50).
butarga não variou muito mas tornou-se um alimento de luxo. Rica em proteínas, ómega
3, vitaminas A, B, C, E, ferro e cálcio, como todos os ovos e ovas, surge feita com ovas de
outros peixes mas, os italianos, mais exigentes, por exemplo, dizem que só a que é feita
com ovas de tainha é que é a legítima. Depois de extraídas, as bolsas alaranjadas das ovas
das tainhas são limpas, colocadas no sal cerca de uma meia hora e, por fim, prensadas entre
placas de madeira e secas em treliças. Continua a consumir-se, tanto em França como no
Egipto, onde é conhecida pelo nome de battareh. Algumas receitas de preparação de peixe
no antigo Egipto só as conhecemos através do referido autor latino Apício. Das cinco receitas
consideradas «egípcias» neste antigo livro de cozinha, três referem-se à elaboração de peixe
grelhado. Podem não ser num ou noutro pormenor exactamente como na época faraónica,
mas aproximam-se certamente, acrescentando um tipo de informação e detalhe que nos
escapa nos baixos-relevos que, simultaneamente, nos dão tanta informação e nos deixam tão
imperfeitamente informados.

7. As carnes

Recorrendo à caça ou promovendo a criação de animais para exploração económica, tanto


da sua carne como dos restantes derivados, os Egípcios dispunham de uma grande diversidade
de tipos de carne. Alguns animais que criavam são muito pouco representados na iconografia,
70 como são os casos do porco114 e da cabra, mas encontraram-se grandes quantidades de ossadas
em diversos sítios arqueológicos, nomeadamente em Tell el-Amarna e Kahun115, tal como é
provável que se comesse carne de burro e é certo o consumo da carne de cavalo a partir do
Império Novo. Contudo, a iconografia e os vestígios arqueológicos, indicam-nos que, para
além das aves, o animal criado em maior quantidade e cuja carne seria a mais apreciada era a
vaca, kau. O faraó e alguns privilegiados, os elementos da família real, as grandes instituições
religiosas e os altos dignitários, tinham espalhadas pelo país numerosas manadas, as maiores
de vários milhares de cabeças116.
A sua carne não estava ao alcance da maioria dos Egípcios, sem capacidade económica
para a adquirir, mas parte da população podia consumi-la ocasionalmente, sobretudo graças
às redistribuições que o clero fazia ao povo, depois de dedicadas as oferendas por ocasião das
grandes cerimónias, muitas vezes de bois inteiros117. Como se vê na iconografia e em achados

114 - «Os Egípcios tinham o porco como um animal impuro (...); quanto aos porcos, ainda que sejam egípcios de
nascimento, são os únicos que não entram em nenhum santuário do Egipto», Hérodote, Histoire, II, 47. Heró-
doto continua a falar dos porcos e a dizer que as suas carnes são apreciadas nas festas de lua cheia a Osíris e Ísis,
confirmando a abundância do seu consumo aqui, mas sendo proibido em todas as outras festividades (Idem, ibidem).
115 - Wilson, Egyptian Food and Drink, p. 35.
116 - Sobre a criação de gado vide Canhão, «Viver no campo», Hapi 1 (2013), pp. 29-55.
117 - Em relação à carne das reses que eram abatidas para encherem as mesas de oferendas, ouçamos de novo He-
ródoto dizer: «Cozem para eles [sacerdotes] pães sagrados e fornecem diariamente a cada um grande abundância
de carne de boi e de ganso», Hérodote, Histoire, II, 37. Contudo, em relação aos animais sacrificados, nenhum
Egípcio «queria comer a cabeça de nenhum animal fosse ele qual fosse tentando vendê-las a comerciantes gregos ou
arqueológicos mumificados, a maioria das oferendas dos bovinos era de quartos traseiros ou
cabeças. Daí que o gado vacum fosse o mais representado em cenas de açougue em túmulos
de todos os períodos, o que nos permite conhecer os procedimentos do açougueiro no abate
dos bovinos: atavam três ou quatro patas ao animal para o fazer cair e depois cortavam-lhe a
garganta. A pata livre servia para, num movimento de bomba, retirar o sangue do corpo para
um recipiente. Pelavam o animal e retiravam-lhe as vísceras que também eram consumidas.
Os Egípcios consumiam a totalidade dos animais, pois se a iconografia nos mostra, sobretudo,
as partes mais nobres dos animais por questões religiosas (cabeça, membros, costelas...), os
textos de contabilidade registam o consumo de intestinos, fígado, estômago, cérebro e língua.
Por fim, retalhavam o animal para consumir ou vender.
Alguns animais selvagens eram apanhados, mantidos e reproduzidos em cativeiro, de
forma a serem tratados para serem consumidos. Neste caso estavam sobretudo as gazelas e
vários tipos de antílopes, como o órix, o addax ou o íbex, abundantemente representados em
baixos-relevos funerários. Os antigos Egípcios consumiam ainda a carne de outros animais,
uns de grande porte como o hipopótamo ou o crocodilo, outros pequenos como os ouriços,
importantes igualmente no controlo de pragas nos jardins118, as lebres e, até, ratos119. Não
concordamos com Pierre Tallet quando afirma que os Egípcios se alimentavam de hienas ao
dizer que «a alimentação egípcia enriquecia-se visivelmente com outras presas selvagens,
menos esperadas: a mais surpreendente é sem dúvida a representação frequente de hienas
no reportório egípcio. De facto nunca vemos cenas de abate e de desmanche concernentes.
No entanto, é possível vê-las em cativeiro, vê-las engordar (o que aparece claramente no 71
túmulo de Mereruka, onde vemos uma personagem pronta a obrigar um destes animais a

deitando-as ao rio, ainda que nós as vejamos frequentemente nas mesas de oferendas,» Hérodote, Histoire, II,
39. «Quanto às vacas, não lhes é permitido sacrificá-las, pois são consagradas a Ísis», Hérodote, Histoire, II, 41.
No volume IV, quando fala dos Líbios, confirma esta interdição: «Toda a região que se estende do Egipto ao lago Tri-
tónis é habitada pelos Líbios nômades, que se alimentam exclusivamente de carne e de leite, jamais comendo, como
se dá também com os Egípcios, vacas ou porcos», Heródoto, História, IV, 186. Mas estas interdições não terão
ocorrido em todo o período dinástico, pois nas oferendas de Ramsés III, posteriormente consumidas pelos sacerdotes
e pelo povo, «figuram 1122 vacas, número não negligenciável se o relacionarmos com o total de 2892 peças de gado
bovino», Peters-Destéract, Pain, bière et toutes bonnes choses..., p. 302. Estas restrições sobre a carne dos
bovinos, observadas já no período ptolemaico mas que não atingiam os Gregos, concluem-se com uma observação
respeitante ao relacionamento entre Gregos e Egípcios: «É por isso que nenhum Egípcio ou Egípcia querem beijar
um Grego na boca, nem servir-se de uma faca de um Grego, ou dos seus espetos e dos seus caldeirões, nem comer
da carne de um boi que não estivesse isento de sinais de ter sido retalhado com uma faca grega», Hérodote,
Histoire, II, 41. De tudo isto, se houve alguma interdição ao consumo de carne de boi ou de vaca, terá sido nas últi-
mas dinastias ou mesmo depois. Também havia restrições ao consumo de ovelha/carneiro, em particular nos locais
de culto a Amon por parte dos seus cultores, Tebas e Elefantina, por exemplo. Mas se algumas espécies acabaram
por se extinguir, provavelmente terá sido pelo excesso do seu consumo! Também as cabras e, sobretudo, os bodes
tinham os seus adoradores: «Os habitantes de Mendés veneram todos os animais da espécie caprina e, mais do que
as fêmeas, os machos, porque os seus cornos são de maior envergadura; há um que eles veneram mais do que todos
os outros; assim que ele morre é um grande desgosto em todo o distrito. O bode e o deus Pã chamam-se em egípcio
Mendés», Hérodote, Histoire, II, 46.
118 - Canhão, «Viver no campo», Hapi 1 (2013), p. 48.
119 - Salima Ikram, «Food for Eternity I», (KMT 5/1 (1993), pp. 25-33; KMT 5/2 (1993), pp. 53-76.
Assar um ganso e um boi. Túmulo de Ukhhotep (B2), XII dinastia, reinado de Senuseret I
(c. 1959-1900 a. C.), em Meir.

engolir aves), deixa poucas dúvidas em relação ao fim que lhe estava destinado»120. Já antes
fizemos referência à tentativa de domesticação das hienas, com a ideia de serem usadas
como auxiliares na caça121, sendo a alimentação forçada uma forma de reconhecimento dos
tratadores e não um modo de as engordar para abate.
A carne das aves, apedu, era o tipo de carne mais consumida na alimentação egípcia.
Mais uma vez é possível distinguir entre as aves domésticas e a caça. As aves domésticas
72 mais frequentes na alimentação eram os gansos e os patos122. Precisando um pouco melhor
o que antes afirmámos no nº 1 desta revista sobre a galinha de tipo europeu, que, de facto,
terá sido levada da Europa para o Egipto apenas na Época Greco-romana, há no entanto
uma referência no Jardim Botânico de Tutmés III (1479-1425), no templo de Amon, em
Karnak a uma galinha. Mas não é uma galinha da espécie Gallus gallus domesticus, a galinha
europeia comum, mas uma galinha tipicamente africana da família Numida meleagris, por
nós conhecida como galinha-d’angola, galinha-da-guiné ou galinha-do-mato123 e eternizada
no bilítero nH, que surge, por exemplo na palavra «eternidade», nHH, e que Gardiner registou
na secção G. Aves, das suas listas: G. 21, . Os gansos, de diversas espécies, terão sido as
aves de maior consumo não só pela sua carne, mas também pela capacidade de incorporar
gordura, que depois era usada na cozinha e na produção de preparados medicinais. O facto
de haver numerosas cenas de tratadores a alimentar este tipo de aves124, não significa, porém,
que os antigos Egípcios conhecessem o fois gras, pois a gordura não se lhes acumulava
exclusivamente no fígado. Consumiam também pombos, tanto grelhados como recheados
com trigo, codornizes, perdizes, garças, e todo o tipo de aves aquáticas. Mas se é relativamente

120 - Tallet, La Cuisine des Pharaons, pp. 53-54.


121 - Canhão, «Viver no campo», Hapi 1 (2013), p. 48.
122 - Sobre as aves de aviário vide Idem, p. 47.
123 - Nathalie Beaux, Le Cabinet de Curiosités de Thoutmosis III, pp. 256-257.
124 - Canhão, «Viver no campo», Hapi 1 (2013), p. 47.
fácil perceber que o consumo de carne pelos Egípcios podia ser bastante variado, mais difícil
é saber como ela era preparada.
Grelhar, assar, refogar, fritar, cozer ou rechear, deveriam ser semelhantes tanto para a
carne de mamíferos quanto para a de aves. Destes tipos de preparação da carne, o que aparece
mais vezes na iconografia é o grelhado, representado nas suas diferentes formas, talvez por
ser mais odorífica e por isso mais digna das oferendas aos deuses e aos defuntos, ou de
apresentar aos convidados nos banquetes. A sua justificação religiosa explica a inclusão de
cenas de preparação de carnes na grelha ou na chapa nos túmulos privados, com o objectivo
de assegurar alimento ao defunto. Um boi podia ser assado inteiro, como no exemplo que
temos no túmulo de Ukhhotep, da XII dinastia, em Meir (Meir B-2)125, onde, sobre uma
lareira cheia de brasas, a carcaça de um boi atravessado por um espeto assente em dois
suportes de madeira é rodada por dois cozinheiros.
Contudo, no antigo Egipto, a carne mais frequente no espeto era a das aves. Ao lado da
cena anterior, um homem está sentado junto a uma lareira com brasas. Com a mão esquerda
protege o rosto do calor do braseiro e com a outra mantém sobre o fogo uma enorme ave
enfiada num espeto. A dificuldade de corrigir os erros na pedra é grande, talvez por isso o
autor tenha preferido acentuar a eventual falha com humor, ao colocar uma legenda que
destaca o espanto do cozinheiro pelo tamanho do animal ao dizer: «Já grelho há muito tempo,
mas nunca vi uma ave semelhante!»126. Outras fontes iconográficas mostram-nos variantes
destas mesmas cenas, que permitem completar a informação. Numa que se encontra no
Museu do Cairo, dois homens sentam-se junto de uma pequena lareira, segurando cada 73
um sobre as brasas um espeto com uma ave cada. O da direita agita um pequeno leque
de papiro para espevitar o calor, lendo-se por cima deles apenas a palavra acher, isto é,
«grelhar». Mas nem todas as aves eram grelhadas da mesma maneira e, por vezes, nem são
as fontes iconográficas, mas as arqueológicas, a revelarem tal facto. Encontraram-se em
Deir el-Medina restos de pombos cozinhados por volta de 1400 a. C., abertos ao meio e
achatados, tal como hoje fazemos aos nossos frangos para grelharem melhor. É também o
método mais popular utilizado no Egipto actual para assar aves. Embora mais raramente,
por vezes também aparecem cenas em que se grelham no espeto pedaços de carne como,
por exemplo, no túmulo de Kar e Idut, em Guiza, onde um homem sentado sustenta com
uma mão um espeto por cima da lareira e com a outra atiça o fogo abanando um leque. A
legenda aí colocada diz: acher adjeru «Grelhar costeletas».
A carne também podia ser cozinhada em panelas, mas há que ter em consideração a ligação
com outros elementos associados em cenas contíguas: quando aparecem junto de cenas com
grelhados, podem ser consideradas duas opções de preparação da carne; quando aparecem
logo após a cenas de corte e preparação de carnes pode ser uma alusão à sua conservação,
como veremos mais à frente. E na maior parte das vezes as legendas junto destas cenas não
ajudam, resumindo-se a simples palavras como pesi, «cozinhar». Resta-nos imaginar o que
juntavam à carne na panela! Mas, por vezes, os gestos dos cozinheiros são muito precisos,
125 - Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 56.
126 - Idem, ibidem.
com a intenção de demarcar bem as diferentes fases da preparação. No túmulo da XI dinastia
de Ankhtifi, em Moalla, vemos dois registos de preparação de carne. No registo superior,
um pedaço de carne das costelas num espeto está a ser grelhada sobre uma lareira por dois
homens; um sentado segura o espeto, enquanto o outro em pé agita um leque. No registo
inferior, dois outros cozinheiros estão em pé, cada um de um dos lados de uma panela onde
se vêem pedaços de carne e osso. O da direita, com uma das mãos mexe a panela com uma
vara, ou colher, para misturar bem o que aí se encontra, uniformizando o calor e os temperos;
com a outra mão agita um leque, certamente para atiçar o lume sob a panela. O da esquerda
prova o cozinhado, provavelmente para avaliar o tempero e a cozedura. As aves podiam
ser preparadas da mesma maneira, conforme se vê numa cena do túmulo de Pepiankh, da
VI dinastia, em Meir (Meir A-2)127, onde aparecem duas panelas cheias de patos ou gansos
inteiros, junto a outra onde se grelha um pato no espeto. Mas, para além do tipo de carne e
da forma como a cozinhavam, pouco ou nada mais sabemos dos seus cozinhados. Como não
sabemos que ingredientes e em que quantidades eram deitados na panela, não podemos saber
qual era o sabor da sua gastronomia!
O consumo imediato não era a única preocupação alimentar que havia com a carne. Tal
como o peixe e, possivelmente, alguns vegetais, também a carne era sujeita a procedimentos
de conservação, tendo em vista o aprovisionamento de expedições ou de determinadas
instituições. Mais do que as iconográficas, são as fontes arqueológicas que provam a existência
destas práticas, tendo-se encontrado armazenamentos de grandes quantidades de ânforas do
74 Império Novo em diversos sítios, com vários produtos de açougue e inscrições hieráticas que
identificavam os seus conteúdos: carne em conserva, aves, gordura animal... Tinham também
uma data que indicava um mês, uma preocupação relacionada com a validade do produto,
mostrando que era para ser conservada várias semanas ou meses128. O modo de conservar
a carne no seu interior variava, havendo vários meios de conservação na Antiguidade, que
foram usados de diversas maneiras por diferentes povos em todo o mundo: seca, salgada,
prensada, fumada ou numa combinação de métodos. A finalidade de todos eles era a mesma
da mumificação: retirar a água dos tecidos e matar os microrganismos susceptíveis de a
corromper. Outra solução ainda era a conservação da carne num ambiente anaeróbico, isto é,
privada de oxigénio, por se encontrar mergulhada em gordura, salmoura ou mel.
As representações iconográficas apontam a seca como o método que deveria ser mais
usado. Há numerosas representações de açougues em que depois do abate do gado ele é
desmanchado e as finas tiras que daí resultam vão sendo penduradas num fio para ficarem
expostas ao sol. Há um excelente exemplo no túmulo de Antefiker, da XII dinastia, em Tebas.
Quatro açougueiros ocupam-se de uma rês, estando dois munidos de facas a desmanchar
a carcaça, e os outros dois a pendurar pedaços de carne num fio que, preso às colunas do
local onde se encontram, se estende sobre a cabeça dos quatro. O fio encontra-se cheio de

127 - Meir é a necrópole da cidade egípcia de Qis, capital da 14ª província do Alto Egipto, a Cusae greco-romana, a
cerca de 50 km de Assiut, com túmulos da VI e da XII dinastias, com cenas pintadas fora do comum da vida quoti-
diana, de características fortemente naturalistas, altamente detalhadas e com um estilo muito próprio.
128 - Canhão, «Viver no campo», em Hapi 1 (2013), p. 50.
pedaços de forma triangular, que não devem ser muito grossos para secarem melhor. Um
estudo recente avançou de forma séria a ideia de relacionar esta cena com a obtenção de
uma variedade elaborada de carne seca, preparada pelos Índios da América do Norte, a que
chamam biltong129. É um relacionamento estranho dadas as distâncias e a época, mas o
conhecimento desta produção também se encontra no Niger, com o nome de kilichi, o que
é bastante mais plausível. A sua obtenção é simples: os pedaços de carne são cortados finos
e cobertos de uma mistura de especiarias que incluem sal, aipo, alho, cominhos, coentros e
canela, sendo depois suspensos num fio e secos ao sol. O kilichi assim obtido pode conservar-
se pelo menos um ano num local seco. Dispondo dos ingredientes necessários e sendo mestres
na mumificação, pelo que era muito provável que conhecessem as características antisépticas
de certas especiarias, esta prática estaria ao alcance dos Egípcios.
Podiam, ainda, ser utilizadas outras técnicas de conservação, em especial para as carnes
mais difíceis de secar e que se corrompem com mais facilidade e rapidez, como as aves.
Uma seria a conservação em salmoura, uma solução com pelo menos 20% de sal, como
forma de eliminação das bactérias, e que Heródoto registou nas observações que fez no
Egipto no século V, da seguinte forma: «Das aves, eles comem cruas as codornizes, os
patos e as aves pequenas que salgaram previamente; todas as outras aves ou peixes que
têm em sua casa, excepção feita aos que consideram sagrados, são comidos assados ou
cozidos.»130 Mas já cerca de dez séculos antes parece haver iconografia que indica o uso
deste processo da conservação. É o caso de um conjunto de cenas do túmulo de Paheri,
da XVIII dinastia, em El-Kab, onde se vê por cima de alguns trabalhadores a depenar e 75
a eviscerar patos, as aves a serem acondicionadas em grandes potes sem que tenham tido
outra preparação, supondo-se que os recipientes tivessem salmoura. No túmulo de Nakht,
em Tebas, também da XVIII dinastia, ficou registada uma variante deste método: antes de
serem mergulhadas na solução de salmoura, as aves eram depenadas, estripadas e expostas
algum tempo ao sol, penduradas em fios suspensos por estacas perto dos potes onde seriam
depois acondicionadas.
Embora a iconografia e a arqueologia não sejam muito explícitas, vários indícios sugerem,
ainda, que os Egípcios podem ter produzido uma espécie de conserva. Como veremos mais
adiante, eles recolhiam a gordura animal, um dos produtos de base da cozinha egípcia,
cujos vestígios os arqueólogos encontraram em diversos potes e as inscrições exteriores
identificavam131. A gordura do gado e das aves deveria ser extraída cuidadosamente, pois
entra em várias preparações. No seu reconhecimento do que os rodeava e valorizavam, até
é provável que os Egípcios se tivessem apercebido que enquanto a carne seca ou salgada
perde parte do seu valor energético, a carne de conserva mantinha um valor nutritivo mais
elevado. Assim, é provável que alguns baixos-relevos e pinturas com cenas de cozedura de
carne, ou de aves, em panelas, possam representar a sua cozedura em gordura antes de serem

129 - Ikram, Choise Cuts: Meat Production in Ancient Egypt, pp. 149-150.
130 - Hérodote, Histoires, II, 77.
131 - Canhão, «Viver no campo», Hapi 1 (2013), p. 50.
fechadas hermeticamente em ânforas, para serem preservadas por determinado tempo. As
aves, sobretudo as que eram engordadas à mão, como acumulam facilmente gordura, prestar-
se-iam mais a este método de conservação do que os bovinos. Contudo, é bem possível
que algumas ânforas com a indicação de iuf der, «carne preservada», possam ter carne de
vaca conservada graças a este processo. Em todo o caso, é muito difícil dizer se algumas
cenas em que se cozem patos em panelas, logo após terem sido depenados e estripados, sem
os acompanhar de legendagem, ou com legendagem do tipo onde se diz apenas «cozer»,
mostram um tratamento usado para para o consumo imediato ou para conservação. Tanto
mais que não se sabe o meio a cozedura: água ou gordura? No Museu de Turim existe
um pote intacto retirado do túmulo de Kha, XVIII dinastia, em Tebas, que poderá ajudar
nesta questão. Sabe-se que contém aves que foram conservadas em determinada altura para
posterior consumo. Se foram conservadas em salmoura, gordura ou doutra forma qualquer, é
o que se saberá quando for analisado o seu interior.
Com respeito aos produtos alimentares derivados dos animais, de quem se comia a
carne, também se consumia leite, queijo, ovos e o sangue. Embora tenhamos observado
anteriormente que não era hábito cozinhar com leite no antigo Egipto, vários textos afirmam
a sua importância na civilização egípcia, surgindo frequentemente em oferendas e sendo
consumido como bebida natural. Uma inscrição tumular da XXVIII dinastia diz que 60
crianças consomem o leite de 3 vacas, 52 cabras e 9 burras. No palácio de Malkata foram
encontrados dois jarros com a palavra iretjet, leite, gravada, e no túmulo do arquitecto Kha
76 estavam duas sítulas também para leite132. Em relação ao queijo, sabe-se que o produziam,
mas pouco se sabe sobre este assunto, sendo as fontes diminutas, embora a mais antiga seja
de c. de 3000 a. C., dois jarros de um túmulo da I dinastia com o nome do Hórus Aha
gravado e contendo a inscrição seret, cujo conteúdo analisado revelou ter tido queijo133, e os
queijos encontrados em Sakara no túmulo 3477 da II dinastia referido no início. Uma que
ainda levanta dúvidas a muita gente, pertence ao túmulo tebano de Ipui, XIX dinastia. Numa
pintura com duas bandas sobrepostas onde pastam rebanhos de cabras, na banda inferior há
alguns pastores do lado esquerdo transportando ao ombro, em direcção a burros, uns sacos
triangulares semelhantes aos que na banda superior um homem leva numas cangas e uma
mulher negoceia, aparentemente no mercado. Neste contexto, há quem defenda que aqueles
bornais poderiam conter um tipo qualquer de queijo ou de leite coalhado.
Conforme referimos num artigo anterior, os Egípcios também consumiam ovos de ganso,
pato e avestruz, cujas resistentes cascas foram encontradas em numerosas lixeiras alimentares,
bem como servindo de vasos cerimoniais delicadamente decorados. Para a produção de ovos
havia explorações avícolas no antigo Egipto134. Finalmente, um outro derivado que era
aproveitado e consumido era o sangue dos animais abatidos. Sabe-se que era recolhido em
recipientes no momento do abate e que era utilizado, mas desconhecem-se as formas dessa
utilização, sugerindo alguns que pudesse ser utilizado para fabricar uma espécie de pudim.
132 - Cf. Peters-Destéract, Pain, bière et toutes bonnes choses..., p. 91.
133 - Idem, 92.
134 - Canhão, «Viver no campo», Hapi 1 (2013), p. 47.
Nesta área, a escrita hieroglífica espalhou-se por quatro itens, não os preenchendo na
totalidade como no caso dos peixes, mas onde se encontram uma série de signos que se
relacionam com a alimentação, alguns dos mais usados na escrita, e de que damos aqui os
principais exemplos: E. Mamíferos: E1, , um bovino; E3, , vitelo; E8, , cabrito;
E10, , carneiro egípcio de cornos ondulados; E12, , porco; E28, , órix; E29,
, gazela; E30, , íbex; E34, , lebre. F. Partes de mamíferos: F1, , cabeça de bovino;
F5, , cabeça de antílope; F7 , cabeça de carneiro egípcio de cornos ondulados; F20,
, língua de ruminante; F23, , perna de bovino; F32, , ventre de mamífero; F34,
, coração; F35, , coração e traqueia; F36, , traqueia e pulmões; F40, , espinha dorsal
e medula espinal saindo por ambos os lados; F42, , costela; F43, , costelas de vaca;
F44, , fémur com carne; F46, , intestino; F51, , pedaço de carne; G. Aves: G34,
, avestruz; G38, , ganso; G39, , pato de cauda longa; G40, , pato de cauda longa
a voar; G41, , pato poisando; G42, , pato cevado; G43, , cria de codorniz; G47,
, cria de pato; G52, , ganso a comer; G54, , ganso ou pato morto e depenado; e H.
Partes de aves: H1, , cabeça de pato de cauda longa; H5, , asa; H8, , ovo135.

8. Gorduras, açúcares e condimentos


77

Na Antiguidade também eram indispensáveis as gorduras para a cozinha. Os Egípcios


dispunham de gorduras em grande variedade, embora pareça que as mais utilizadas terão sido
as de origem animal (adj). A gordura de gado bovino era empregue não só na culinária, mas
também na preparação de receitas médicas. Contudo, conforme podemos ver nas etiquetas
dos recipientes de armazenamento do Império Novo, também usavam gordura de ganso e de
cabra. A gordura podia ser utilizada em todos os tipos de cozinhados. Por exemplo, no túmulo
de Rekhmiré (TT 100), os produtos de pastelaria eram cozidos com gordura animal.
Da técnica de extracção da gordura animal conhece-se uma única representação no
templo de Seti I, da XIX dinastia, em Abido, onde vemos as três etapas do método. Na
primeira cena, à direita de um intendente que vigia a tarefa, dois homens, um de cada
lado de uma mesa, cortam o toucinho com uma faca de lâmina dupla. Na cena seguinte, a
gordura é colocada sobre o lume num caldeirão. Quatro dependentes seguram o recipiente
com estacas que fizeram passar pelas suas asas. Por baixo do caldeirão, um rectângulo no
chão tem o signo hieroglífico de chamas, sugerindo a presença de fogo. Na última cena,
um saco de linho onde se põe a gordura bem quente funciona como uma prensa montada
numa armação de madeira, extraindo-a e refinando-a ao exercer uma torção no saco,
recolhendo-a numa bacia que se encontra sob o dispositivo. Assim se aproveita ao máximo
a gordura que permaneceu agarrada ao resto do toucinho, juntando-a à que foi directamente

135 - Gardiner, Egyptian Grammar, pp. 458-474.


derretida e ficou liquefeita no caldeirão. Este método de prensagem é o que conhecemos,
eventualmente com variantes, para a produção de vinho, azeite ou unguentos. Também
muitas receitas médicas, poções ou unguentos conhecidos, incluem frequentemente a
gordura de bovino, ganso ou porco nos seus ingredientes, como, por exemplo, «algumas
drogas usadas para tratamento da tosse» (serit)136.
Outra gordura que as fontes mostram ter sido bastante usada pelos antigos Egípcios na
cozinha é a manteiga clarificada, semi, uma manteiga líquida obtida a partir da manteiga
normal, certamente de leite de vaca, cabra ou ovelha, da qual era eliminada a água por
evaporação, separada da gordura e retirada a caseína (essencial para o queijo), através de
aquecimento controlado. Conservava-se um certo tempo em grandes potes, podendo ser
armazenada ou transportada para longas distâncias antes de ser consumida. Ainda hoje é
produzida no Egipto com o nome de samen.
Também eram utilizados óleos vegetais, surgindo nas fontes mais antigas, o azeite desig-
nado genericamente por merehet. O túmulo de Iimeri, da V dinastia, em Guiza, até agora é o
único que mostra a preparação deste óleo, onde um grupo de cinco dependentes esmaga um
produto vegetal numa prensa de linho, semelhante à anteriormente descrita. Um recipiente
colocado sob a máquina recolhe um líquido, o azeite. Ao lado, o azeite é despejado para uma
larga ânfora. A legenda hieroglífica à direita da representação diz simplesmente: «Espremer
o óleo merehet».
Mas grande parte do óleo vegetal consumido no Egipto era importada do Próximo
78 Oriente. O clima mediterrâneo da região da Síria-Palestina permitiu-lhe especializar-se na
produção de azeite e de vinho. A vinha ainda se adaptou razoavelmente ao vale do Nilo, mas
desde sempre que a oliveira parece ter posto grandes problemas de aclimatização no Egipto.
Daí que estes dois produtos tivessem sido importados em grandes quantidades ao longo de
toda a história faraónica. Se por um lado há textos do Império Novo que referem a plantação
de oliveiras na vizinhança de cidades do Baixo Egipto como Heliópolis e Pi-Ramsés, por
outro, a arqueologia pôs a descoberto em grande parte dos sítios escavados no Egipto, muitos
recipientes desta época, oriundos da costa fenícia. Frequentemente mostram na sua inscrição
hierática que foram vendidos por capitães de barco cujos nomes têm consoantes semíticas.
Este comércio é testemunhado por um conjunto de elementos diversificados: pinturas da
necrópole tebana, mostram asiáticos, reconhecíveis pelas suas roupas, fisionomia e cabelo,
a desembarcar em portos egípcios grandes ânforas, que se reconhecem como recipientes
para azeite. Isto foi confirmado pela descoberta em Ulu-Burun, ao largo da costa turca, dum
naufrágio cuja carga testemunha o comércio entre a costa sírio-libanesa, Chipre, Creta e
Egipto. Entre os bens que transportavam havia potes de azeite e resina odorífica de que os
Egípcios eram grandes consumidores, atestando os vestígios egípcios do naufrágio do fim
da XVIII dinastia. Por seu lado, a escavação de alguns portos fenícios, como a de Ugarit,
puseram a descoberto documentação local que revela muitas entregas de vinho e azeite para
serem embarcados para o Egipto137.
136 - Nunn, Ancient Egyptian Medicine, p. 161.
137 - Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 96.
Além do óleo merehet, aparecem nos documentos de contabilidade e nas etiquetas das
vasilhas do Império Novo, duas outras produções: o óleo bak e o óleo neheh. Conhecido
desde o Império Antigo, o óleo bak era extraído da moringa, uma árvore de porte médio que
abundava em solo egípcio na Antiguidade. O seu fruto é uma vagem estreita, de cerca de 20
cm de comprimento, que encerra grãos brancos que, esmagados, dão origem ao óleo bak,
usado tanto na cozinha como em perfumaria. O óleo neheh, o mais precioso, julga-se que se
tratava de óleo de oliveira, provavelmente mais fino, mais refinado do que o óleo merehet.
O facto de ser caro, não impediu que a partir do Império Novo este óleo se tornasse um
produto corrente no Egipto, provavelmente devido à sua qualidade. Extraiam igualmente
óleo da colonquinte, um tipo de abóbora cujas «tribos do Saara ainda usam nos nossos dias
como alimento e extraem óleo dos seus grãos»138. O óleo de sésamo era provavelmente
o preferido dos Egípcios para a cozinha, que também produziam o óleo de rabanete em
grande escala, pelo menos no período romano, mas era considerado de qualidade inferior
e pouco usado na cozinha. Ainda plantavam uma planta com o nome de kiki, identificada
como sendo o rícino, com o objectivo da produção de óleo, que não deve ter sido muito
usado na cozinha, talvez apenas pelos mais pobres, como ainda hoje acontece na Núbia,
por causa das suas propriedades purgativas e gosto particularmente desagradável139. A mais
antiga lista egípcia de alimentos é da VI dinastia, da pirâmide de Unas, e inclui 5 tipos
diferentes de azeite140.
Era utilizado o método de extracção por pressão a frio através do esmagamento da
semente, do cereal ou do fruto, usando o mínimo de calor e pressão, resultando num óleo 79
com o máximo de sabor e textura. Hoje são chamados óleos extra virgem e são próprios para
serem usados sem ir ao fogo, em saladas, molhos ou para finalizar pratos quentes prontos
para comer. Não temos qualquer informação sobre o uso do método de pressão a quente na
produção dos óleos vegetais no antigo Egipto, como hoje se faz com os óleos não refinados,
ricos em sabor. São os chamados óleos virgens, que podem ir ao fogo para preparar refogados.
O doce na comida é, em grande parte, produzido pelo açúcar, indispensável em qualquer
cozinha. Nos tempos faraónicos, como não havia nenhum açúcar refinado, eram frutos como as
tâmaras, os figos, as uvas ou as alfarrobas, que eram usados como adoçantes. A estes juntar-se-ia
também o sumo de uva aquecido, com o qual preparavam uma espécie de melaço. Contudo, o
açúcar de maior prestígio e o mais caro era o mel, bit, cuja produção foi sujeita a regulamentação
e controlo141. Há algumas cenas que ilustram a recolha do mel, mas são as do túmulo de Pabasa,
TT 279, da XXVI dinastia, em Asasif, perto de Deir el-Bahari, as mais difundidas: numa, um
dependente verte mel de um recipiente para outro maior; noutra, um sacerdote com os braços
em pose de adoração, parece fazer uma oração. Em volta de ambos voam as abelhas. Mesmo
assim, o que se produzia no Egipto não chegava, sendo também importado do Próximo Oriente,
para satisfazer a grande necessidade dos templos e de outras grandes instituições do país.
138 - Peters-Desteract, Pain, bière et toutes bonnes choses..., p. 56.
139 - Idem, pp. 56-58
140 - Wilson, Egyptian Food and Drink, p. 48.
141 - Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 97.
Por último, as plantas aromáticas com que se temperavam os cozinhados, de que os
Egípcios tinham à disposição uma razoável quantidade, algumas delas vindas de regiões
longínquas, como o mítico Punt. Partilhadas pela culinária e pela medicina, só podemos
imaginar o que seria possível fazer com estes ingredientes, pois não sabemos como, ou em
que quantidades, eram usadas em cada preparação. Usavam o cominho (Cuminum cyminum L.),
a que chamavam de tepenene, que é autóctone do Egipto e que foi muito apreciado por
Plínio na sua História Natural142, tendo-se encontrado grãos seus na cidade dos trabalhadores
de Deir el-Medina. Também a canela (Cinnamomum zeylanicum), importada de Ceilão, a
Taprobana de Camões e o actual Sri Lanka, cujo nome egípcio tichepes, «a nobre», evoca a
importância que tinha143. Até há pouco tempo acreditava-se que a pimenta era desconhecida
na época faraónica, mas estudos recentes mostraram que ela, da espécie Piper nigrum L., fez
parte dos produtos usados para embalsamar Ramsés II144. Por isso, é natural que também
fosse usada na cozinha, embora não se saiba por que nome era conhecida.
Mas eram as ervas aromáticas que, tal como hoje, deviam dar à culinária egípcia todo
o sabor, partilhando algumas um uso médico: os coentros (Coriandrum sativum L.), chau;
o sésamo (Sesamun indicum L.), iku a planta, nehehe o óleo; o endro, ou aneto (Anethum
graveolens L.), imeset; o fenacho (Trigonella foenum-graecum L.), hemait; o zimbro,
(Juniperus phoneicea L.), de nome egípcio desconhecido, foram identificados em diversos
túmulos de faraós do Império Novo, em particular no de Tutankhamon. Fontes diversas
dizem-nos que conheciam também o tomilho (Thymus), tjaiti; a mostarda branca (Sinapis
80 alba L.), heltem (?); o manjericão (Ocimum basilicum L.), (?); a salsa (Apium petroselium L.),
matethaset (?); a hortelã (Mentha piperina L.), tis (?) e o anis (Pimpinella anisum L.), ineset
(?). O loureiro foi utilizado na Época Baixa para coroar múmias, como se vê no Museu de
Leiden, mas não há evidências da sua utilização na cozinha egípcia145.
Refira-se por fim, que o sal, hemat, terá sido o condimento mais usado por todos, uma vez
que a sua ingestão é indispensável ao ser humano, embora não se conheça o modo como o
purificavam de forma a aplicá-lo na culinária. Não o deviam extrair dos mares Mediterrâneo
ou Vermelho, usando o que existia em regiões como o Uadi Natrun, de onde Khuenanupu
trazia o natrão. As águas dos seus lagos são salgadas, ricas em carbonato de sódio hidratado,
Na2CO3.10H2O, o natrão, usado na mumificação, e em cloreto de sódio, NaCl, o sal de
cozinha. A sua utilização na alimentação passa desapercebida, mas a arqueologia prova-nos o
seu uso, como, por exemplo, em Deir el-Medina, onde se encontraram «5 grandes pães de sal
cinzento», que «deviam ser fornecidos aos trabalhadores pelos entrepostos reais e deveriam

142 - Manniche, An Ancient Egyptian Herbal, p. 97.

143 - A palavra «nobre» escreve-se Spsy, chepsi. Como «canela» se escreve ti-Sps, é possível
fazer esta analogia, embora outra árvore com a mesma origem e utilizada como incenso esteja muito mais próxima:

Sps, chepes, «cânfora» (Cinnamomum camphora), Á. Sánchez RodrígueZ, Diccionario de Jeroglífi-


cos Egipcios, Madrid: Alderabán Ediciones, 2000, pp. 419 e 462. Ambas foram importadas para o Egipto e usadas na
medicina em chás e na perfumaria em perfumes e unguentos, Manniche, An Ancient Egyptian Herbal, pp. 88-91.
144 - Idem, p. 136.
145 - Peters-Destéract, Pain, bière et toutes bonnes choses..., pp. 51-56.
ser objecto de distribuições regulares como os outros produtos alimentares»146. Além do mais,
sabemos que era sistematicamente empregue como meio para conservar alimentos através da
salga ou da salmoura, e que era uma droga que integrava «alguns fármacos que parecem ter
sido usadas como laxante, com exemplos da sua utilização»147. O vinagre também deveria
ser empregue, uma vez que produziam vinho e cerveja, e, embora nunca se tenha encontrado
qualquer indicação do seu uso, que seria difícil de distinguir de resíduos destas bebidas, há a
possibilidade da sua utilização para conservação de vegetais numa espécie de pickles para usar
por gosto ou em momentos de falta de alimentos frescos148.

9. As bebidas

Água, mu, sumos de alguns frutos, e até o leite, iretjet, estavam ao alcance da maioria
dos antigos Egípcios. É mesmo provável que pudessem utilizar alguns frutos em bebidas
como a romã e a alfarroba, a segunda ainda hoje usada para fazer um sumo no Egipto. Tal
como o referido anis, ineset, que sabemos que era usado graças à prescrição médica nº 235
do Papiro Ebers: «Poção para arrefecer o coração (hati): figos – 1/8; anis– 1/8; ocre149
– 1/8; mel – 1/32; água: 10 ro. Tudo cozido e tomado durante quatro dias seguidos»150.
Contudo, só temos representações, e em grande quantidade, da preparação de duas bebidas
fermentadas: a cerveja, henket, e o vinho, ierp. Ambas tiveram um grande papel na vida
social e religiosa do Egipto faraónico, mas a cerveja, com a qual até se pagavam salários, 81
foi a que desempenhou um papel mais importante, conhecendo-se hoje o «nome, de várias
dezenas de variedades nas listas de oferendas e na documentação administrativa»151.
146 - Idem, p. 96.
147 - F. Nunn, Ancient Egyptian Medicine, p. 159.
148 - Wilson, Egyptian Food and Drink, pp. 23 e 44-45.
149 - Pierre Tallet refere que o ocre podia ser só para dar a cor encarnada, uma cor com uma forte carga simbólica
(Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 99), mas o ocre, uma variedade de argila colorida pelo óxido de ferro,
pode ter tons encarnados quando é mais rica em hematita (ocre vermelho) ou amarelos quando é mais abundante
a limonita (ocre amarelo), para além das cores castanhas intermédias que variam com a maior ou menor presença
daqueles componentes. As argilas são uma das primeiras formas de medicina natural, cujas virtudes terapêuticas
continuam a ser reconhecidas. Sendo uma mistura de vários minerais, são compostas principalmente por silicatos
de alumínio hidratados, no entanto, podem conter também vários oligoelementos como o titânio, o magnésio, o
cobre, o zinco, o alumínio, o cálcio, o potássio, o níquel, o manganês, o lítio, o sódio ou o ferro. Todos eles funcio-
nam como potenciadores de determinados efeitos terapêuticos, conforme a sua concentração. Por exemplo, uma
elevada percentagem de sílica e alumínio confere-lhe propriedades cicatrizantes e anti-inflamatórias. Contudo, é
a sua estrutura molecular que lhe confere um grande poder de absorção, permitindo-lhe extrair toxinas e substân-
cias nocivas do organismo, produzindo efeitos antisépticos e antimicrobianos, razão pela qual ainda hoje certos
animais que ingerem alimentos venenosos ou salgados, por exemplo, procurarem naturalmente determinados
tipos de ocres graças às suas propriedades desintoxicantes (http://www.naturalesaudavel.com/?p=324, consultado
em 31-07-2013).
150 - Bardinet, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte Pharaonique, Paris: Fayard, 1995, p.287; Tallet, La Cui-
sine des Pharaons, p. 99. Na primeira destas duas obras é a receita 235 e não a 237.
151 - Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 99.
Podiam ser utilizados os mais diversos produtos na fermentação: tâmaras, figos, frutos
de persea, sementes de tremoço, coentros, mel… A cerveja mais difundida era a cerveja
henket e uma das mais valiosas seria a de tâmaras, a cerveja seremet. Mas há outras, como
a cerveja henemes, a cerveja hamat, a cerveja tenemu ou a cerveja decheret, uma cerveja
forte e alimentícia152, que são mal conhecidas.
As cenas tumulares mostram-nos as etapas principais do processo de fabrico, mas os
pormenores só podem ser descobertos em textos tardios, como o de Zosime de Panópolis,
escrito no século IV a. C., cuja descrição corresponde ao geral das cenas tumulares: «Para
fazer a cerveja: pegar na bela cevada branca e limpa, fazê-la macerar um dia, depois tirar a
água e deixar repousar num lugar abrigado até de manhã. Deixar macerar de novo por mais
5 horas. Deitar de seguida num vaso poroso da profundidade de um braço e guardar húmido.
Deixar assim até que se formem flocos, depois secar ao sol até que esses flocos sejam
reabsorvidos, porque esta emulsão é amarga. Moer e fazer pão com o resto da cevada, depois
cozê-lo, superficialmente, apenas até que ele tome a cor. Diluí-lo então na água açucarada,
e fazê-lo passar por uma peneira fina. Outros fazem os pães e põem-nos ao forno com água,
e aquecem-nos um pouco, sem que ferva ou aqueça muito. Depois tiram [os pães] da água,
filtram e cobrem [o líquido], aquecem e provam [a preparação].»153 Esta preparação era ainda
feita há pouco tempo na Egipto como o nome de bouza, e no Sudão era conhecida pelo nome
de merissa, uma especialidade núbia até há muito pouco tempo.
Embora seja posterior ao período dinástico egípcio, esta receita permite perceber melhor
82 e completar alguns elementos fundamentais que a iconografia e as legendas faraónicas não
mostram. Com imagens do túmulo de Kenamon, TT 93, da XVIII dinastia, em Tebas, Pierre
Tallet demonstra-o: embora não haja nenhuma informação sobre a sua cozedura, o pão deveria
ser fabricado segundo a forma tradicional. Vê-se partir o pão e apresentam-se os quatro
pedaços resultantes por cima que, depois, são desfeitos com os pés num grande recipiente
com água para uniformizar o pão e a água, para que haja uma melhor decomposição. Os
dois recipientes cheios que se vêem a seguir com o que parece ser uma substância em flocos
esbranquiçados, têm por baixo dois dependentes que, em vasilhas diferentes, manobram o
que parece ser o resultado final depois de filtrado, um líquido com um mínimo de elementos
sólidos, embora a cerveja dos antigos Egípcios não fosse um simples líquido, sendo bastante
encorpada e espessa, matando a sede e a fome. Confirma esta afirmação uma cena que
se observa no túmulo de Antefiker, a legenda que acompanha a imagem de uma criança
segurando uma taça diz: «Dá-me um pouco de cerveja, pois eu estou com fome»154.
A grande variedade de cervejas que se conhece, deve-se, sobretudo, ao facto de a este
processo básico serem acrescentadas algumas passagens que lhes davam as características que
as tornavam diferentes. Por exemplo na cerveja seremet, a única que é referida regularmente
durante o Império Novo, em relação à corte e aos templos mais importantes, a operação

152 - Á. Sánchez Rodríguez, Diccionario de Jeroglíficos Egipcios, pp. 297, 325, 337, 382, 471 e 502.
153 - Idem, p. 100.
154 - Ian Shaw e Paul Nicholson, «Food», em The British Museum Dictionary of Ancient Egypt, Londres: The
British Museum Press, 1996, p. 102
83

Mercenário sírio tomando cerveja ao lado de sua esposa egípcia e de seu filho. Pintura mural da XVIII dinastia (c.
1550-1292 a. C.).

suplementar seria a adição de tâmaras esmagadas que, além de adocicar mais a cerveja, lhe
aumentava o índice alcoólico e a tornava mais estável, dando-lhe por isso uma qualidade
superior. O seu fabrico surge também no túmulo de Antefiker, por exemplo, num conjunto de
cenas bem-humoradas graças às suas legendas jocosas. Aí vemos os procedimentos já descritos,
ao que se acrescenta o esmagamento das tâmaras e a filtragem da pasta resultante, supondo-se
que depois seria feita a sua adição à mistura tradicional de cerveja. O seu armazenamento era
em recipientes mais pequenos do que os usados para a cerveja henket, que, depois de cheios,
eram selados.
Ao contrário da cerveja, o vinho, ierp, a outra bebida egípcia fermentada eque está bem
documentada, não estava ao alcance de toda a gente. A vinha não é autóctone do Egipto,
tendo sido, muito provavelmente, importada da Síria-Palestina. Como a sua aclimatação
parece ter sido feita por volta de 3100 a. C., era conhecida desde as primeiras dinastias
do Império Antigo, o que justifica os seus vestígios na maior parte dos primeiros túmulos
reais conhecidos, as frequentes referências nas listas de oferendas e nos textos religiosos
e, evidentemente, a iconografia nas paredes tumulares do Império Antigo, das principais
etapas do seu fabrico. Como vemos no túmulo dos irmãos Niankhkhnum e Khnumhotep,
da V dinastia, em Sakara, o fabrico do vinho começava com as vindimas, colhendo-se os
cachos de uvas que, depois, eram transportados em cestos e despejados em grandes tanques
planos e estanques de pedra, a que nós chamamos «lagares», onde eram pisadas por homens
em pé, amparando-se uns aos outros e agarrando uma corda presa horizontalmente sobre
as suas cabeças.
Depois das uvas pisadas, procedia-se à separação do sumo das cascas, caules
e grainhas, ou seja, do mosto. Usava-se para isso um saco de linho mais comprido do
que largo, com pegas nas extremidades, onde era colocado o mosto e que funcionava
como a já nossa conhecida prensa. Quatro homens, dois a dois, exerciam força oposta
nas duas extremidades efectuando um efeito de torção, fazendo cair do pano para um
recipiente o sumo espremido. Por vezes é representada uma quinta personagem numa pose
acrobática entre as duas pegas, ajudando os colegas no movimento de torção, afastando
as extremidades e permitindo um melhor resultado155. Também se espremia assim o sumo
de uva para se beber sem ser fermentado, ou se cozer para concentrar o sumo e matar as
leveduras, produzindo-se adoçante. Esta original prensa egípcia acabará por desaparecer,
quando os lagares já estiverem equipados com um escoamento lateral, como se vê já no
84 túmulo de Nebamon (TT 90), da XVIII dinastia. Seguia-se o acondicionamento do líquido
em ânforas, onde se processava a fermentação, vendo-se pequenos escorrimentos de vinho

Preparação de um vinho cozido. Túmulo de Baket, XI-XII dinastias (c. 2040-1765 a. C.), em Beni Hassan.

155 - Só aparentemente é que esse homem está em cima da prensa. Na realidade ele encontrava-se atrás dela pres-
sionando à direita e à esquerda, impedindo que os outros homens se juntassem ao centro, conforme a tendência da
torção. A arte egípcia é que, para que tudo se veja e nada ou ninguém fique coberto, acaba por originar este tipo de
aparências.
pelas paredes exteriores das ânforas156. Quando a fermentação terminava, as ânforas eram
seladas e armazenadas.
Os antigos Egípcios distinguiam vários tipos de vinho, cujas diferenças nada tinham a
ver com designações de castas de uvas ou de regiões demarcadas, residindo nas técnicas
de produção. No Império Novo, as «etiquetas» das ânforas dão-nos a conhecer o vinho
nedjem, literalmente «vinho açucarado», provavelmente devido à adição de mel ou figos
secos moídos que, ao aumentarem o teor em açúcar, aumentavam o grau alcoólico; o
vinho paur, um vinho de inferior qualidade obtido pela reumidificação do mosto depois
de uma primeira prensagem, ou seja, uma espécie de água-pé; e o vinho chedeh, que era
um vinho cozido, mais licoroso e alcoolizado, susceptível de ser conservado durante mais
tempo. Produziam também vinhos resultantes da mistura de vinhos diferentes através de
sistemas de sifões. Além de indicarem o tipo de vinho, as «etiquetas» referiam o ano de
produção, a origem geográfica, o destino, e até podiam conter o nome do responsável pela
produção. Assim foi possível conhecer melhor os vinhos faraónicos e, cruzando dados, foi
até possível perceber que podiam ser consumidos após um envelhecimento que variava
de cinco a trinta anos. Contudo, há certas questões que ainda não têm resposta ou são
mal conhecidas, como, por exemplo, os produtos utilizados para perfumar e adocicar os
vinhos que, por enquanto, pouco mais se sabe do que o conhecimento proporcionado pelas
análises químicas dos achados arqueológicos.
Referências ao pão, à cerveja e ao vinho, ficaram registados na escrita hieroglífica, alguns

Festival da embriaguês no templo de Mut, em Luxor. Desenho baseado numa pintura mural que mostra um festival da 85
embriaguês. Na linha superior os foliões bebem vinho e inalam os odores dos lótus, incluindo uma mulher que exage-
rou. O registo inferior mostra a procissão com músicos. XVIII dinastia, reinado de Hatchepsut (1479-1458 a. C.)

156 - Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 105.


sendo simultaneamente utilizados noutros contextos. Por exemplo, o caracter G. M33, ,
grãos de cereal; G. M43, , vinha numa latada; G. U10, , medida de grão esvaziando-
se; G. U32, , almofariz e pilão; G. W17, , três vasilhas seladas e alinhadas num suporte;
G. W21, , dois jarros de vinho; G. W22, , jarra de cerveja; e G W23, , variante do anterior,
ou todo o grupo X. Pães e bolos, antes referido. Tal como para outros líquidos ficaram: W1,
jarra selada para guardar óleo; W14, , vasilha para água; W19, , vasilha de leite carregada
numa rede segura por uma corda; e W20, , vasilha de leite coberta por uma folha.
Cerveja ou vinho, os Egípcios estavam familiarizados com as bebidas alcoólicas, podendo
mesmo abusar delas sem que isso tivesse conotação negativa. Num banquete do túmulo de
Rekhmiré, as serviçais enchem os copos com pequenos frascos, provavelmente com um vinho
mais concentrado, e, portanto, impróprio para beber, indo outra serviçal com um recipiente
maior e diferente, próprio para água, para o diluir tornando-o consumível157. No registo inferior
da parede oeste do pronaos do túmulo de Petosíris, há uma cena de vindima à esquerda, de
produção de vinho ao centro e de enchimento e registo das ânforas à direita, semelhante a

Pintura mural em calcário que surge no final de uma cena de produção de vinho. Ao contrário do que alguns pos-
sam pensar, não se trata de acrobatas mas de ébrios que são levados às costas, havendo mesmo a indicação de que
nesse estado se pode ficar a ver tudo de pernas para o ar ou a dobrar. Túmulo de Kheti (BH 17), XII dinastia (c.
1980-1765 a. C.), em Beni Hassan.

86

157 - Idem, p. 107.


tantas outras, acompanhada do seguinte texto: «Vem, nosso mestre, vê as tuas vinhas nas quais
o teu coração se completa, enquanto os jardineiros estão prestes a pisar (as uvas), diante de ti.
Muitas são as uvas nas videiras e abundante é o sumo delas, mais do que em qualquer outro ano.
Bebe, embriaga-te, não pares de fazer o que tu gostas, e que (o vinho) seja produzido como tu
desejas»158. Alguns túmulos de Tebas mostram celebrações em honra dos mortos, diante das
suas capelas funerárias, onde «o álcool devia fluir livremente»159. E no túmulo de Paheri, da
XVIII dinastia, em El-Kab, num banquete uma das mulheres grita: «Tragam-me dezoito copos
de vinho. Vejam, eu quero embriagar-me. O interior do meu corpo está seco como a palha»160.
Em cenas de banquete não é raro ver os convidados, homens e mulheres, assistidos pelos servos
devido ao excesso de bebida. Há até cenas de servos, ou amigos, a transportar em ombros
indivíduos completamente embriagados.

87
Cena de banquete onde não se come e só se bebe (acontece o mesmo com as mulheres nos dois registos supe-
riores), ao ponto de deixar o último dos convivas consideravelmente mal disposto. Túmulo de Djeserkaréseneb
(TT38), XVIII dinastia, reinado de Tutmés IV (1400-1390 a. C.), em Cheikh Abd el-Gurna.

O modo de consumo de bebidas alcoólicas no antigo Egipto variava e a embriaguez


tinha o seu espaço próprio. Principalmente as mulheres atingiam muitas vezes o estado
de embriaguez, que em certos contextos religiosos seria até desejável, eventualmente
integrando rituais de passagem para o Além e facilitando o contacto entre o mundo dos
vivos e o dos mortos. Por isso Hathor, além de protectora das mulheres, era também a
deusa das festas e da embriaguez. Mas em contexto social, segundo o que podemos ler
em algumas sabedorias e outros textos, as bebidas alcoólicas, sobretudo o seu excesso,
era mal visto, levando à degradação, ao ridículo e ao incumprimento, conforme podemos
ler nestes excertos de um conhecido texto do Papiro Anastasi IV: «A cerveja perde
os homens, ela faz mal à tua alma», e «Ah! Se tu soubesses que o vinho é uma coisa
horrorosa/tu odiarias o chedeh, não pensarias nos jarros (de vinho) e esquecerias a bebida
tenerek» e, ainda, «Tu, tu estás sentado na taberna, rodeado de raparigas,/queres ser terno

158 - M. G. Lefebvre, Le tombeau de Petosiris, I, Cairo: IFAO, 1924, p. 60; M. G. Lefebvre, Le tombeau de
Petosiris, II, Cairo: IFAO, 1923, pp. 16-18 e pl. XII.
159 - Tallet, La Cuisine des Pharaons, p. 107.
160 - Idem, pp. 107-108.
e dar-lhes prazer./Passas o teu tempo com uma rapariguita, e estás impregnado de óleo e
com uma grinalda de flores à volta do pescoço tamborilando sobre o ventre,/vacilas, cais
ao chão e ficas coberto de sujidade»161.
Mesmo assim, a embriaguez não deixava de estar presente em muitos banquetes,
havendo inclusive diligentes serviçais que tinham por incumbência apoiar aqueles
que estivessem mal dispostos, vendo-se em pinturas do Império Novo a estenderem
recipientes para os convivas vomitarem e lavarem-se, ou, até, apoiando uma mão nas
suas testas. Iluminado por muitas e muitas imagens e leituras, Luís Araújo idealiza a
seguinte cena: «E como era agradável e de boa colheita o vinho licoroso e adocicado
com mel... Comendo sem talheres, mas lavando previamente as mãos em recipientes
apropriados, bebiam por lindas taças de cristal ou mesmo de ouro, e utilizavam pratos
de travertino (alabastro). No animado ambiente, que um pequeno grupo de tocadores
de flauta, harpa, alaúde e pandeireta musicalmente ritmava, os comensais, enófilos e
enlanguescidos, admiravam os belos jardins e os pequenos lagos onde os patos e as
aves aquáticas deslizavam por entre os nenúfares e os lótus. Oh, passa-se qualquer
coisa ali no fundo da sala: é um participante no feliz e avinhado bródio que se sente mal
disposto... Eis que acorrem logo as meninas com as bacias de água para as abluções e
um recipiente para que o conviva empanturrado possa vomitar e depois prosseguir, com
renovada eficácia, a deglutição»162.
Um tão grande número de fontes não significa que possamos coligir um autêntico
88 Pantagruel egípcio, ou obra similar. Pelo contrário, de todas as especialidades culinárias
egípcias poucas são as que podem ser reconstituídas. É decepcionante o facto de uma tal
riqueza de fontes, da rica iconografia às listagens de produção, armazenamento e venda
de produtos, passando pelos papiros medicinais que, em contexto próprio, transmitem
um certo modo de pensar na forma de preparar os remédios, com medidas precisas dos
ingredientes, não nos permitirem elaborar verdadeiras receitas culinárias do tempo dos
faraós, salvo algumas excepções e apenas por aproximação. Estas fontes elucidam-nos
praticamente sobre todos os produtos que entravam na gastronomia dos antigos Egípcios,
mas a inexistência de verdadeiras receitas culinárias empurra-nos quase para a pura
adivinhação dos seus cozinhados. É exactamente como Eça de Queirós observava em
relação um jantar romano: «E do jantar propriamente, possuímos centenas de menus.
Começava-se sempre pelos ovos: ab ovo. E desde logo aqui aparece, a meu ver, a
lamentável deficiência da nossa erudição. Nós desconhecemos como se cozinhavam os
ovos − ou, pelo menos, ignoramos o gosto, o sabor especial desses ovos iniciais. E,
de facto, ignoramos o paladar de todos os pratos da alta cozinha clássica.»163 É um
pouco como a sua língua falada, acrescentaremos nós: conseguimos escrevê-la, entendê-
la e, até, pronunciá-la, mas seria esse o seu verdadeiro som? Nunca a ouvimos e só lá
chegamos por convenção! Na culinária é o mesmo: sem sabermos as proporções exactas
161 - Idem, p. 108.
162 - Araújo, Erotismo e Sexualidade no Antigo Egito, Lisboa: Edições Colibri, 2012, p. 147.
163 - Eça De Queirós, Cozinha Arqueológica, pp. 32-33.
dos ingredientes, nunca poderemos saber o verdadeiro gosto que teriam os seus pratos.
Tal como a língua, também aqui acreditamos não andar muito longe da verdade. Se
em casos raros, como o ful ou o pão nebes, as receitas parecem ter sido transmitidas
sem qualquer descontinuidade até à actualidade, para entrarmos realmente no espírito da
antiga cozinha egípcia, será necessário, pelo menos, voltarmos a familiarizar-nos com
plantas como o lótus branco ou como a noz da palmeira dum.

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