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12 a 17 de julho de 2021
UFPA – Belém, PA
RESUMO
O presente trabalho tem como propósito analisar o processo de construção
simbólica da cultura nordestina, tomando como objeto central o cajueiro
(Anacardium Occidentale) e seu fruto, o caju. Nos interessa compreender como esta
espécie, endêmica do nordeste, passa a figurar como elemento presente na cultura,
nas artes, e sobretudo, na socialização entre imigrantes e nativos, tendo como
resultados deste encontro: a construção de novos hábitos alimentares; a presença
da espécie em diferentes momentos das artes visuais brasileira, marcando o
surgimento de uma iconografia tropical; e as iniciativas para a patrimonialização do
caju e seus derivados, que vem ocorrendo desde a década de 70. Essas ações
denotam um interesse da sociedade em preservar e manter técnicas, ferramentas,
ideias e paisagens, de elementos simbólicos que traduzem a cultura local, uma vez
que patrimonializar é dar sentido à sociedade, colocando em relevo sua memória.
Neste aspecto, o presente trabalho reflete sobre como as representações artísticas e
culturais podem contribuir para a construção do conhecimento sociológico.
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Naturalmente o cajueiro começou a ser levado para outros países pelos colonizadores, sobretudo África e Índia,
onde se estabeleceu o seu cultivo e produção. Nos embates para definição da origem do Caju, os botânicos
chegaram a conclusão de que é uma espécie endêmica brasileira, que ocorre em clima tropical, com abundância
nas regiões Nordeste e do Baixo Amazonas. Mota (2011) reforça que a disseminação do Anarcadium occidentale
na África e no Hemisfério Oriental, chancela a sua origem brasileira, a partir do nome de origem tupi da espécie
identificada em doze idiomas orientais: bengali, conconi, galote, gujarati, indo-inglês, malaio, marata, sindi,
singalês, sudanes, tâmul e teto.
A descrição do caju ganha densidade nas narrativas do "descobrimento", ao
passo que os colonizadores passam a identificar sua variedade de usos pelos
indígenas: Do sumo extraído do seu pedúnculo, que ao ser fermentado se
transformava em vinho de boa qualidade. Mota (2011) conta que o preparo do vinho
do caju - cauim, era motivo de grande festa nas aldeias, sempre presente nas
ocasiões especiais, que incluíam desde uma celebração da tribo até as ocasiões
em que matavam, com solenidade, um prisioneiro de guerra para o comer.
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Cauim se trata da bebida derivada do processo de fermentação produzida pelos indígenas, podendo ser de
origem do caju, mas também cauim de milho, cauim de mandioca, entre outros.
apenas a conflitos. Vivendo em um mesmo território, compartilharam sabores e
saberes que iam da bebida alcoólica e pratos típicos, que os aproximava, incluindo o
uso terapêutico para tratamento das doenças. Nesta perspectiva, segundo Poulain
(2013) o caju se configura como um protagonista do “espaço social alimentar3",
compreendendo a alimentação como uma dimensão estruturante da organização
social.
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Segundo Poulain (2013) o espaço social alimentar é estruturado em 7 dimensões: O espaço do comestível, o
sistema alimentar, o espaço culinário, o espaço dos hábitos de consumo, a temporalidade alimentar, o espaço de
diferenciação social, Os modelos alimentares e a interação entre o social e o biológico.
As castanhas, verdadeira fruta do cajueiro, eram assadas verdes (maturi, do
tupi "fruto que vem" equivalente ao fruto "de vez") ou maduras e consumidas nas
refeições. Podendo ser ingeridas in natura ou piladas e adicionadas à macaxeira
(mandioca), que juntas resultam em uma farinha de alto teor nutritivo, consumida
pelos indígenas, e posteriormente adotadas nas expedições dos colonizadores
(MOTA, 2011).
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O calendário tupi era simples: dia, ara; lua e mês, yacy. Acaju significa ano, razão pela qual, na fase única da
frutificação anual, guardavam uma castanha (acajuitimaboera ou itimbiera) numa cabaça como marcador da
idade e do tempo.(MOTA, 2011)
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Trabalho apresentado em 1954, por Mauro Mota para o concurso de professor de Geografia do Brasil no Instituto de
Educação de Pernambuco, no qual se refere à informação coletada em Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil,
de Simão Vasconcelos (1865) e na História Natural do Brasil Ilustrada, de Guilherme Piso (1648).
normandos de madeira de tinta que aqui ficavam, deixados pelos seus para
irem se acamaradando com os indígenas; e que acabavam muitas vezes
tomando gosto pela vida desregrada no meio de mulher fácil e à sombra de
cajueiros e araçazeiros.
Cabe salientar, que a razão para o corte dos cajueiros estava relacionada ao
plantio de cana de açúcar. Mota (2011) pondera que essa resolução adotada pelos
holandeses, é de fato, mais rígida que as adotadas pelo decreto-lei do governo
republicano brasileiro, mais de três séculos depois, no qual as multas eram de
valores irrisórios comparados ao da época. Embora o desejo de Maurício de
Nassau, fosse preservar boa parte dos cajueirais visando o provimento dos
indígenas, Mota (2011, p.138) sugere que o interesse do holandês ia além:
"utilizá-los nas refeições frutíferas de sua gente aqui e nas remessas dos já famosos
doces de caju pernambucanos à Holanda". Entre o período de 1631 e 1647, foram
exportadas para a Holanda uma quantidade considerável de doces de caju.
Cumpre notar que embora não observem horas de jantar, merendar ou cear,
como o fazemos, nem trepidem em comer à meia-noite ou ao meio-dia, só o
fazem quando têm fome e pode-se dizer que são tão sóbrios no comer
quanto excessivos no beber. Alguns têm o bom hábito de lavar as mãos e a
boca antes e depois da comida; quanto à boca creio que o fazem porque do
contrário a teriam sempre viscosa em razão das farinhas de raízes e de
milho que consomem em lugar de pão. Quando comem observam admirável
silêncio e se têm alguma coisa para dizer, esperam até acabar a comida. E
quando nos ouviam tagarelar alegremente às refeições, como entre
franceses é costume, punham-se a motejar.
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No Brasil colonial, o caju se tornou presença obrigatória nas casas-grandes com uma infinidade de usos, como
descreve Mota (2011): no acompanhamento da aguardente, de feijoadas e peixadas; como uma boa isca para
pescar aratu ou caranguejos; transformado em vinagre ou em vinho, que se tornaram a bebida oficial, símbolo da
hospitalidade das casas-grandes. Freyre (2006, p. 200) comenta que "a cozinha das casas-grandes nasceu debaixo
dos cajueiros e os doces de caju enchiam as mesas dos senhores de engenho", sendo junto com a goiabada as
principais sobremesas do período.
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A atribuição de status simbólico conferido ao alimento e ao ato de comer, se dá pela distinção entre “comida” e
“alimento”. DaMatta (1998, p. 9) defende que toda substância nutritiva é um alimento, mas nem todo alimento é
comida: “Temos o alimento e temos a comida. Comida não é apenas uma substância alimentar, mas é também
um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se”. Alimento é o que o indivíduo ingere para se manter vivo; já a
comida contribui para a configuração de uma identidade, a definir um coletivo ou uma pessoa.
imaginária, numa visão de mundo", e nesta perspectiva o caju teve ampla projeção
na cultura do país.
A diversidade de usos é tal que ele já saltou para fora do uso direto e já tem
os usos simbólicos. Medidor de tempo, divisor de espaço temporal: antes e
depois da chuva do caju. Você tem objetos de arte usando o caju; mobiliário
com trabalhos de talha feitos com caju; pintura feita com uso do caju, poesia
citando caju, literatura em torno do caju, música em torno do caju. Enfim, ele
entra numa penetração multifacetada na comunidade que o configura como
objeto cultural.
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O Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) – foi fundado em 1975 por Aloísio Magalhães, e em 1979
foi incorporado ao IPHAN. O CNRC tinha como propósito a pesquisa, registro e arquivamento de práticas
culturais (memória), estudos e análises em torno dessas atividades (dinâmica) e inserções que possibilitassem
reflexões e aprimoramentos em cada contexto cultural (devolução), compunham as etapas ou fases de cada
projeto.
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Que promoveu o tombamento, em 1984, da antiga fábrica de vinhos de caju, “Tito Silva”, em João Pessoa-PB,
e o reconhecimento como patrimônio cultural imaterial da “produção tradicional e práticas socioculturais
associadas à Cajuína no Piauí”, registrado no livro dos Saberes, em 2014 pelo Iphan.
d) O caju apresenta um potencial de utilização ainda não totalmente
compreendido;
e) Um estudo do caju, levando em consideração sua permanência e
importância em algumas de nossas comunidades mais representativas,
poderá oferecer uma boa oportunidade de inter-relacionar dinâmicas
“técnicas” e “culturais”. (CENTRO, Nacional de Referência Cultural, p.1,
1977b).
Figura 2. Detalhe do corpo inferior do retábulo das Virgens Mártires, Basílica de Salvador, c.
1657-1672.
A caricatura política a que se refere Gilberto Freyre, trata de Dom Pedro II,
que era conhecido também como "Pedro Caju", uma referência a forma do seu rosto
com grande queixo. Mota (2011) atribui esse fato a uma influência francesa, que
caracterizavam o Rei Luís Felipe como uma pêra, pelo formato do seu corpo. Não
tardou para que artistas do Rio de Janeiro e Pernambuco, passassem a representar
a cabeça e a coroa de Pedro II com o formato da castanha de caju.
Figura 4. Transformação nas fórmulas do Brasil e seus destinos, de Raphael Bordallo Pinheiro,
publicados em Pontos nos ii, Lisboa, 05 dez. 1889.
Raro o nordestino em cuja obra o cajueiro não entrou, senão como tema,
como paisagem para o tema. Até como personagem. [...] Em nenhuma outra
flora já foi classificada uma árvore exercendo sobre as populações cultas ou
não influência das variedades e dimensões do cajueiro no Nordeste. É uma
influência de muitas faces que se estende a todos os grupos sociais,
manifestando-se na literatura popular e na erudita. Certa madrugada,
sentindo o perfume dos cajueiros da Boa Viagem, Assis Chateaubriand
disse: “Tenho um cajueiro dentro do coração”. Como nesse, em outros
corações nordestinos, o cajueiro rebenta.
Figura 5. Jogo de Castanha, Bico de Pena de Manoel Bandeira. Acervo Mauro Mota.
Figura 6. O vendedor de caju, bico de pena de Manoel Bandeira. Acervo Mauro Mota.
O ato de assar as castanhas-de-caju, de forma coletiva, reunia grupos em
torno do fogo. As castanhas eram assadas de modo rudimentar em brasas vivas,
detentoras de uma resina inflamável que produzia grandes labaredas. Após assada,
jogava-se areia em cima para o resfriamento. Formava-se então uma grande roda
de pessoas para proceder a abertura da castanha assada, que sentadas no chão,
faziam a quebra com pilotes de madeira ou pedras. As castanhas tinham como
destino o consumo próprio e a comercialização. Todo o processo de interação e
trocas, promoviam a sociabilidade entre os participantes.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; São Paulo:
Difel, 1989.
DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
FREYRE, Gilberto Freyre. Casa Grande & Senzala. 51a ed. rev. São Paulo: Global,
2006
LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército, 1961
SIMMEL, Georg. Sociologia da refeição. Estudos Históricos, v. 33, p. 159- 166, 2004.