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LITERATURA COMESTÍVEL NA OBRA DE JORGE AMADO

A INFLUÊNCIA DA COMIDA DETERMINANDO ATOS E FATOS NO


COMPORTAMENTO DOS PERSONÁGENS DA OBRA TIETA DO
AGRESTE

Paulo Sergio Azevedo Rocha


Licenciado em Letras

RESUMO

Esse artigo surge da observação das obras do autor Jorge Amado, em que ao longo de
sua trajetória de escritor, determinou o movimento de seus personagens em diversas
movimentações de ordem cultural, sempre apresentando um objeto de vislumbre
categoricamente regionalista. Uma das expressões mais marcantes de seus livros, foi a
comida como objeto de sena ou de influência aos personagens de suas tramas,
personagens que diversas vezes trocaram de humor e de atitudes, diante de pratos e
mesas bem postas, com os perfumes culinários recendentes, sobre os humores mais
complexos. Para tanto, fez-se uma investigação na obra Tieta do Agreste, para
exemplificar fatos importantes na obra do autor, como o uso de receitas culinárias em
cada obra, diferenciada pelo costume regionalista, sempre caminhando em paralelo com
a função psicológica dos personagens, concluindo nessa leitura, a disposição proposital
do autor Jorge Amado em aplicar receitas em suas obras, motivando o universo de suas
criações, conferindo autenticidade ao povo brasileiro, sempre representado em
premesses culturais, que se distinguem de outras culturas.

Palavras-chave: Literatura Comestível. Alimento. Tieta do Agreste. Cultura Brasileira.

1. INTRODUÇÃO

Nesta dissertação fez-se um estudo sobre o uso costumas de receitas de


alimentos nas obras do autor Jorge Amado, para tanto foram feitas inferências em
diversas obras e tendo como escolha como principal objeto de análise, a obra Tieta do
Agreste, e tal observação fez surgir questões como: Em que proporção as receitas
culinárias são utilizadas nas suas obras e qual a importância para tal fator se configurar
uma constante nas obras Amadianas?.
Foram feitas leituras da história das influencias dos povos que colonizaram o
país, fundamentalmente ajudando a moldar os critérios culinários vigentes no Brasil e m
conseqüência, sugeriram ao autor Jorge Amado, as disposições de suas escolhas,
veementes às logísticas regionais e às conhecidas realidades dos povos que emergem
nos seus contos.
Muito além de simples objeto de cenário, a comida surge como elemento de
articulação de expressão de arte conceitual, via regionalismo e com força de
movimentação do caráter de protagonistas e antagonistas. Dei-me conta que o material é
muito mais rico do que imaginava e que valeria à pena identificar não somente os pratos
da culinária baiana, mas tudo que se come e bebe, seja vatapá, acarajé, jaca, cachaça,
champanhe, seja terra, rato, gente (COSTA, 1994, p. x).
De início, foi observado a referencia da autora Paloma amado, que apresentou
dados inestimáveis, vindo da intimidade da família, e que generosamente dividiu as
porções de seu conhecimento pessoal do autor, e de sua publicações voltadas para a
culinária e para a incidência das receitas nas obras de Jorge Amado.

Inútil pensar que o alimento contenha apenas os elementos


indispensáveis à nutrição. Contém substâncias imponderáveis e
decisivas para o espírito, alegria, disposição criadora, bom
humor (CASCUDO, 2004, p. 348).

Como aporte teórico, resgatamos as idéias do escritor etnólogo e crítico literário,


Luís da Câmara Cascudo, contribuição pertinente à análise crítica e folclórica, quando
se trata de comida e sociedade, e outros autores, que chancelam a idéia do alimento não
somente como simples amostra de objeto estático, ou mera composição de mesa, mas de
um signo de contundência que pode influenciar decisões, modificar ações e reger novos
caminhos de atitudes desenhadas por personagens literários.

CAPÍTULO 2 CENÁRIO GASTRONÔMICO BRASILEIRO

Influenciados pela multiplicidade de culturas e povos que colonizaram o Brasil ou


que sugeriram suas idéias de forma direta ou indireta, dentro de uma composição
multifacetada de línguas e credos, a alegria de um povo miscigenado, que desde o
começo de sua colonização não teve medo de ousar, e de aproveitar os ricos
ensinamentos de povos visitantes, e com a coragem de transformar pinceladas de
culturas estrangeiras em tesouro gastronômico nacional, apresentados na melhor
tradição culinária brasileira, com alta representação e diferenciais em cada estado que
compõe a nação brasileira.

(...) existem as contribuições que oferecem um caráter de


sistema, isto é, que correspondem à maneira própria que cada
sociedade escolheu para se exprimir e satisfazer o conjunto das
aspirações humanas (STRAUSS, 2003, p. 21).
Temos o cenário geral brasileiro com pratos ricos em diversidade cultural, que
mais do que uma abrangência culinária regional, se manifesta na identidade nacional,
expondo a diversidade de temperos e a sensibilidade palatar de um povo que não abre
mão de sua soberania, principiada na paixão pela liberdade de criação e na
representabilidade de suas manifestações culturais ricas e exuberantes, acompanhadas
de um frescor natural de frutas e carnes, que dinamizam as sensações e o prazer
sensorial, trazendo divisas econômicas e abrangência regional turística.
Na região sudeste como na centro oeste, ou sul, temos as mudanças nos pratos,
com representações em cores e modos, onde as uvas e os queijos do sul, se contrastam
com a tapioca e a pimenta do nordeste, uma enriquecedora porção de hábitos
diferenciados e que só engrandecem o cenário brasileiro da gastronomia, parte
importante de uma influência que se reflete também na cultura literária brasileira, e que
será vista na apresentação desse trabalho.
Atualmente o Brasil vive um período em que podem ser encontrados todos os
tipos de frutas e legumes. O cenário gastronômico conhece um apogeu que cresce cada
vez mais com a difusão da mídia e da rede mundial, atraindo expectantes de diversos
países, abrindo portas a nossa cultura, que agora pode ser encontrada em países antes
nunca imaginados

CAPÍTULO 3 O SER HUMANO E A COMIDA

Café é indispensável e o tempo todo, café pequeno, é claro. Café


completo, com leite, pão, manteiga, queijo, uns biscoitinhos,
alguns bolos de aipim ou carimã, fatias de cuscuz com ovos
estrelados, isso, só de manhã e para quem atravessou ali a
madrugada. O melhor é manter a água na chaleira para não faltar
café; sempre está chegando gente. Bolachas e biscoitos
acompanham o cafezinho; uma vez por outra uma bandeja com
salgados, podendo ser sanduíches de queijo, presunto,
mortadela, coisas simples, pois de consumição já basta e sobra
com o defunto (AMADO, 1966, p. 3).
No fragmento do livro de Jorge Amado, ¨ Dona Flor e seus dois Maridos¨, é
descrito um ritual comum nas sociedades, especificamente em algumas regiões do
Brasil, como no nordeste, se mantém como tradição neste caso, o velório realizado em
casa de família, um cerimonial que denota uma intimidade, tanto da família como dos
vizinhos que ajudam os familiares neste momento de dor.
Em respeito às visitas, o cerimonial inclui uma refeição farta, com bebidas, pães,
carnes e queijos, tudo dentro das possibilidades da família, e essa presença de alimentos
servidos é tão importante, que em caso de desfavorecimento financeiro da família, os
amigos e vizinhos contribuem com pratos prontos.
A importância do alimento nessas relações vem ao encontro da necessidade de
suprir a fome das visitas, que muitas vezes passam a noite velando o corpo, e essa
atenção aos visitantes, tem um cunho social que vai da consideração ao respeito por
aqueles que vem consolar os familiares.
A comida nas relações humanas tem um papel fundamental e com sua função
vital para a sobrevivência e saúde, o alimento vai além, configurando práticas sociais e
atribuindo significados às relações.

Comer: nada de mais vital, nada de tão íntimo. "Íntimo" é o


adjetivo que se impõe: em latim, intimus é o superlativo de
interior. Incorporando os alimentos, nós os fazemos aceder ao
auge da interioridade. [...] O vestuário, os cosméticos, estão
apenas em contato com o nosso corpo; os alimentos devem
ultrapassar a barreira oral, se introduzir em nós e tornar-se nossa
substância íntima.(MACIEL, 2001 Apud FISCHLER, 2001, p. 7).

Intimidade é o termo mestre que descreve as emanações da gastronomia presente


nas famílias e nas sociedades, sentimentos anexos e memórias que evocam os desejos
mais profundos que regem as condutas dos seres humanos, marcas de sentimentos e
pensamentos muito pessoais. “A exclusiva fatalidade, a única tara que pode afligir um
grupo humano e impedi-lo de realizar plenamente a sua natureza, é estar só”
(STRAUSS, 2000, p.20).

Entretanto essas correlações, não se inserem sozinhas, há uma necessidade expressa de


se unir pessoas a grupos menores, e, por conseguinte, grupo a grupo, e em sociedades
maiores que vão crescendo, de elementos familiares a extensões sociais, tal qual
comunidades de estados e países

Inútil pensar que o alimento contenha apenas os elementos


indispensáveis à nutrição. Contém substâncias imponderáveis e
decisivas para o espírito, alegria, disposição criadora, bom
humor. (CASCUDO, 2004, p. 348).

Muitas dessas unidades não se conheceriam se não fosse a necessidade de trocas


de alimentos, ou de relações financeiras que se movimentassem através das
necessidades humanas, o alimento vem como ponto de intersecção de diversas culturas,
que de outra forma ou por outras necessidades talvez não migrassem para outras regiões
ou não interagissem.

CAPÍTULO 4 TIETA DO AGRESTE

4.1 História de Mangue Seco

Cidade portuária, referência em comercialização de produtos alimentícios no século


XIX, Mangue Seco conheceu a falência de suas avenidas e portos através da fúria do mar e
da invasão da areia em suas ruas e praças, trazidas pela impetuosidade dos ventos, que logo
passaram a ditar as regas da cidade.
Durante a construção da estrada de ferro os veios comerciais marítimos se deslocaram
para um ponto entre Sergipe e Bahia, conhecido como Mangue Seco, tornando-se uma rota
isolada, sendo a única opção para as regiões vizinhas.
Os navios que outrora traziam seus produtos passaram a seguir outras rotas e a cidade
tornou-se pouco a pouco reclusa, longe da rota marítima, os alimentos que antes eram
comercializados na região tornaram-se escassos, o turismo foi prejudicado, as casas de
pensão foram desaparecendo até sobrar somente a pensão de Dona Amorzinho.

O visitante chegando a essas ruas mortas nos dias de hoje, exausto


com a travessia na marineti de Jairo, entupiu de poeira, hospede da
pensão de Dona Amorzinho, não acreditará que antes da construção
da estrada de ferro ligando Bahia e Sergipe, agreste foi terra de muito
progresso. (...) Naquela época, a prosperidade presidia os destinos do
cafundó-do-Judas (AMADO,1977, p. 85).
Contudo, a riqueza natural dos mangues e dos coqueirais permanece, suas frutas
coloridas e abundantes, bem como os peixes e mariscos, mantiveram os poucos moradores
que se recusavam a abandonar tal paraíso natural.

(...) de raros navios e escunas desembarca apenas contrabando e


mesmo assim sem outro lucro para o agreste além da paga recebida
pelos pescadores de Mangue Seco, pois não é do município que os
gêneros tomam destino (AMADO, 1977, p. 86).

A efervescente Santana do Agreste que antigamente contava com mais de dez


pensões repleta de comerciantes e caixeiros viajantes, contava também com armazéns e lojas,
não davam conta de tanta freguesia e frequentadores que vinham fazer uso de diversões
como as casas de entretenimentos com mulheres dispostas a oferecer seus préstimos sexuais,
devidamente remuneradas, lugar de ostentação de ricos e viajantes que traziam novas
tecnologias do sul como pianos e gramofones, e retratos coloridos encomendados.“A rodovia
tornou-se um produto da engenharia local, atravessando 48 km de poeira e lama, (...)
reduzida à mandioca e às cabras” (AMADO, 1977, p. 87).
Entre os moradores, vê-se a presença do Sr. Pirica, que mesmo com a decadência do
comércio na região, se recusa a sair do local, com um olhar apaixonado nas iguarias da
região que serve em seu barco.
Em matéria de comida nada se compara a um escaldado de
caranguejo com pirão de farinha de mandioca, verde escuro, pirão de
lama como se chama aqui. (...) é de lamber os dedos; come-se com a
mão, ensopando-se o pirão na gordura verde do molho, na lama
incomparável do caranguejo (AMADO, 1977, p. 86).

Tendo como paisagem uma beleza fulgurante que remete o leitor às dunas de Mangue
Seco e traz à lembrança os últimos respiros de uma cidade que já conhecera a prosperidade
em tempos idos e que agrega a beleza de suas praias e a sensualidade nordestina
representada pelos personagens, como Tieta, também conhecida como a cabrita do agreste
que se deixava levar pela beleza e pelos encantos das dunas que se movimentavam com os
ventos e pela naturalidade das cabras que procriavam nas pedras e nas areias, ensinando a
curiosa menina os fazeres e as necessidades do amor, mesmo representados na forma de
animais caprinos, que corriam soltos e que faziam parte do cenário de abundante beleza e
expressividade da natureza.
Eu era uma cabra com vários bodes, montada por esse ou por aquele,
no chão de pedras, em cima do mato, na beira do rio, na areia da
praia. Para mim, prazer de homem, só isso e nada mais: deitar no
chão e ser coberta (AMADO, 1979, p. 122).

Para Tieta, o desejo e a beleza faziam parte da natureza como um todo, e pouco se
importava com o fato de chamarem-na de cabrita, já que essa era a sua realidade correr pelas
dunas e banhar-se num mar que alimentava sua alma com vida, vida essa que logo seria
criticada por muitos e que a faria ser expulsa da cidade pelo seu pai, mas mesmo todo seu
sofrimento não destruiu o seu espírito livre, que anos depois a fez voltar para Santana do
agreste.
E na experiência de dona Eufrosina, que desde cedo à fez pensar nas questões de
pecado e do amor, e dos artifícios que as mulheres podiam aprender para conquistar um
homem, através dos temperos.

Pra ser coberta, outra coisa não sabia. Quando ele veio com os dedos
me tocar, com a boca me beijar o corpo inteiro, a lamina da língua e o
hálito quente, quis impedir, sem entender. Com ele aprendi, na cama
do doutor e Dona Eufrosina, os molhos e os temperos, e soube que
homem não é apenas bode. Com ele virei mulher. Mas penso que até
hoje há em mim uma cabra solta que ninguém domina (AMADO,
1977, p. 123).

Na obra, a personagem Tieta se propõe a seguir os instintos mais carnais e humanos,


dispersa de seu rebanho de católicas fanáticas ou de beatas que pairavam pelas praças da
cidade e sempre contando com a inveja de sua irmã, que não se sentia desejada por nem um
homem.
Ao contrário da irmã Perpétua, Tieta corria livre, tendo a certeza do desejo dos
homens e na sua pureza não enxergava ou não compreendia os limites que lhe eram impostos
pela família ou pela moral da cidade. Esse era o perfil da menina que crescia solta como uma
cabra nas dunas de Mangue Seco, e crescia cada vez mais no desejo e aos olhos dos homens
famintos por prazer.

Quando pela primeira vez pulou a janela, invadiu o quarto, subiu na


cama e suspendeu a saia, era uma cabra em cio, faminta de homens,
ignorante de tudo o mais. Lucas entendeu e riu. Vou te ensinar a
amar, prometeu e ensinou do a ao zê, passando pelo ipicilone
(AMADO, 1977, p. 126).
Uma característica da obra Tieta do Agreste, é como o autor Jorge Amado apresenta a
vida corriqueira dos personagens e a naturalidade das expressões diante dos hábitos sociais e
do cotidiano das famílias e das casas.
A comida sempre é apresentada como parte do cenário ou indiretamente propõe a
visão de comportamento dos personagens, interagindo não somente como objeto de cena,
mas como tema de modificação de conduta, que configura um importante modo de se
representar o caráter de um personagem ou de reconhecer suas características marcantes,
como sua dependência dos prazeres sensoriais que a comida confere.
A exemplo temos a mulher que cuida da casa e dos filhos e prepara os pratos simples
e saborosos, que encantam a família e seduz o vizinho com o cheiro da carne assada, cheiro
esse que será sempre referência da personagem que o produziu, como a personagem
Gabriela, conhecida não só pela sua beleza, mas pelos seus dotes culinários.
Cenário onde diversas discussões podem acontecer, a conversa pertinente e íntima de
casais que esperam pelo café que está coando no coador de pano, ou na lembrança da louça
suja de gordura da carne, que o marido deixou manchada na toalha da mesa ao limpar a boca,
como no caso da cena que passa na página 20, quando Elisa e Perpétua comentam sobre o
sumiço de Tieta e na possibilidade de sua morte, tendo em vista a falta do tão esperado
cheque que sempre foi símbolo de seu cuidado pela família, mesmo estando distante ou
tendo sido escorraçada da cidade pela família.
Anos e anos sustentando os familiares sem falhas ou atrasos, Elisa aponta Perpétua
como responsável pela expulsão de Tieta, e Perpétua mostra-se preocupada com a fortuna da
irmã falecida.
Em meio às observações das personagens, uma pausa exata sobre a toalha de mesa é
feita, trazendo ao leitor a imagem do personagem Astério, esposo de Elisa, homem
trabalhador e sério, mas que tem como hábito deixar a bagunça feita, sem se ater aos detalhes
de uma mesa limpa, como é caracterizado pela esposa Elisa.

Elisa estende sobre a mesa a toalha manchada de azeite, de feijão, de


café. __Astério tem mão podre, não sabe se servir sem derramar
caldos e molhos, o infeliz (AMADO, 1977, p. 20).

Elisa arruma a mesa reclamando do desleixo do marido, e ouve a irmã murmurar


sobre a fortuna da falecida, enquanto Elisa a convida pra ficar e comer, mas Perpétua casta
como pretende se mostrar diante de Deus e dos homens, logo se mostra indignada por ter que
comer carne numa sexta-feira.

__Por que não fica para almoçar? O que dá pra dois, dá pra
três.__Eu? Comer carne em dia de sexta feira? Tu bem sabe que é
pecado. È por isso que vocês não vão para a frente. Não Cumprem a
lei de Deus (AMADO, 1977, p. 24).

Curiosamente a comida aparece aqui como forma de expressão cultural, de


característica regional, que se manifesta na ótica religiosa de uma beata, com a mais
fremente e arraigada expressão de sua tradição religiosa, sendo católica fervorosa, Perpétua
se aplica a tradição de não comer carne numa sexta-feira e a comida nesse momento da obra
mostra-se como objeto de cunho religioso que determina a conduta da beata.
Perpétua configura uma personagem representativa da verossimilhança de beatas e
religiosas austeras, que são muito comuns no nordeste.

Na véspera, na mesa do almoço, Astério, comilão e apresado, a boca


cheia, mastigando feijão e palvras, repetira pergunta e lamúria:__Por
que tanta demora?Logo em novembro, mês de pouca venda, quase
nenhuma. Que diabo pode ter acontecido? (AMADO, 1977, p. 25).

Aqui a presença mais do que familiar do feijão coroando a mesa dos personagens,
dando primor a energia e a força física dispersada por Astério para exercer suas funções.
Seus modos em sua casa, diante de sua esposa, sua preferência pelo tempero de Elisa, que
apesar de jovem já traz consigo além de uma beleza jovial, os critérios de uma boa esposa
que inclui o manuseio da culinária e traz a maestria do cuidado pelo seu marido, que deve
estar sempre bem alimentado.

4.2 Água-de-flor

“Dona Carmosina toma da moringa e enche o copo, (...)


__Botei duas gotas de água-de-flor. Faz bem pros nervos. Elisa
bebe em pequenos goles. Dona Carmosina retoma a narrativa”
(AMADO, 1977, p. 32).

Diante da possibilidade de ter perdido a irmã, Elisa procura o consolo da personagem


Carmosina, antiga amiga de Tieta e funcionária do correio. Diante das lamúrias e
preocupações de Elisa, Carmosina lhe serve uma água fresca com gotas de água-de-flor para
acalmá-la.
O carinho e o cuidado para com a amiga, mostrando-se receptiva e carinhosa, traz
todo o diferencial de uma amizade desinteressada, que tem a sensibilidade de preparar um
néctar raro, quase desconhecido, que se torna um consolo para a jovem, que sem perceber
viaja no frescor dos seus sentidos palatais, quase imperceptíveis que a acalmam.
Sentidos que se abrem pela boca, em um simples e desinteressado gesto, que flui pela
introspectiva perseverança em deixar a amiga confortada.

O coletor recolhe as cartas, olha através dos envelopes contra a luz,


quem pode impedir que dona Carmosina saiba e comente a vida
alheia, não passam por suas mãos (e vistas) telegramas e cartas? (...)
Dona Carmosina é de bom tempero, famosa no pirão de leite e no
molho pardo. E o cuscus de milho? (AMADO, 1977, p. 33).

Como toda boa filha do nordeste, Carmosina faz parte de uma categoria muito
comum de mulheres solteiras que se mantém filiadas aos familiares e aos amigos, cuidando e
protegendo e em seus dotes, estão inclusos a culinária mais diversificada, considerada como
um verdadeiro dom divino, que a despeito da diversidade de materiais e frutas exóticas
existentes no nordeste, nem toda mulher possui a sensibilidade para manipular os diversos
temperos aprovados e provados pelos paladares mais exigentes, Carmosina possui esse
diferencial herdado por sua mãe.

4.3 Recordação de Tieta

Conforme Amado (1977), Tieta usa a comida como analogia de prazer e sexo, quem
primeiro lhe ensinou os pratos finos, os que alimentam a gula, que em vez de saciá-la, foi
Lucas, na cama do finado Dr. Fulgêncio.
Na lembrança de seus episódios de infância, Dr. Lucas passou a ser o único médico
da região, após envelhecimento e morte do seu antecessor, Dr. Lucas tornou-se o último
médico ativo da cidade usando seu conhecimento local de remédio natural, como óleo de
rícino e chá de sabugueiro.

Dr. Fulgêncio andava pela cidade tratando os males do agreste, com a sua morte a
consideração de pessoas importantes como dona Eufrosina, que era a viúva do Dr. Fulgêncio,
focou-se no Dr. Lucas, tratando-o como a um filho e preparando-lhe iguarias que lhe eram
famosas, como a galinha de parida, o escalfado de pitú com ovos e carne de sol com pirão de
leite.
Conforme Amado (1977), na falta de médico, os petiscos, os doces e as frutas, agiam
como remédios para os moradores da pequena cidade. Tieta se refere à comida, fazendo uma
analogia ao provimento sensorial do sexo e aos molhos e sabores da comida, vindo ao
encontro da satisfação e do desejo que se auto alimenta, tendo o objeto de provisão sexual,
como as secreções dos corpos e os perfumes do sexo, tal quais os molhos que temperam e
que confluem nas misturas de temperos que enriquecem a comida.

4.4 Filantropia e personalidade

(...) durante a semana, as famílias guardam as sobras de pão, as


bolachas envelhecidas, restos de comida da véspera, frutas
amassadas, algumas moedas, para a multidão de esmoleres a invadir
a cidade, vindo quem sabe de onde. Seu Agostinho da padaria
fornece por preço de ocasião sacos cheios de pão dormidos, duros
como pedras, de bolachões moles, de bolos mofados, filantropia a
preço módico (AMADO, 1977 p. 133).

Nas cidades do nordeste do Brasil são muito comuns reuniões de confraternização


entre povos que se ajudam em festejos religiosos, onde se manifesta a filantropia e onde se
juntam roupas e alimentos para serem entregues aos pobres.
O autor mostra a visita de retirantes pobres que vão até Mangue Seco, receber ajuda
dos moradores, e o alimento nesta cena se mostra como provedor das características de
personalidade de seus moradores, que generosamente recolhem alimentos velhos e
estragados para os pobres.
O padeiro se propõe a oferecer iguarias que segundo a sua concepção, e nesse caso é
compartilhada pela cidade, tais alimentos são dignos dos pobres, já que nada tem para comer,
certamente se portariam com gratidão diante das doações.
Entre os alimentos analisados pelos beneficiários, são entregues frutas locais, como
mangas, cajus e bananas, o que causa grande indignação entre os pobres, que são orgulhosos
em aceitar frutas como esmolas.

__ Não aceitam nem mangas nem cajus, dizem que ninguém


compra, que tem demais, manga não é esmola que se dê, já viu?
Mesmo banana, torcem a cara. Não tem um trocado?Querem
dinheiro. Outro dia um me chamou de canguinha (AMADO,
1977 p. 134).

4.5 Eleonora do Sul para a feira do Agreste

No passeio na feira da cidade, Eleonora se encontra com a diversidade jamais vista


por ela em terras do sul, as goiabas vermelhas e brancas que são imediatamente comparadas
com as do sul em tamanhos e gostos, os cajus e seus benefícios salutares, o belo jenipapo
conhecido por produzir um dos melhores e mais famosos licores do nordeste, as mangabas e
os cajás, as cajaranas e os umbus, as pitangas e todas as variedades de mangas que ele jamais
pensara existir.
Um verdadeiro paraíso de frutas tropicais lhe assombram os sentidos e os perfumes
que lhe dão água na boca, além de todas as frutas de cores vivas, e assim Eleonora se
compraz em provar os frutos da farinha de mandioca, a puba que produz bolos deliciosos e o
bejú que tomado com café de coador de pano com manteiga batida, ou molhado no leite de
coco, ou queijo de coalho, se tornam sublimes ao paladar (AMADO, 1977 p. 135).
Tudo ali, ao alcance da sua mão, para o regalo dos olhos virginais que nunca
conheceram tão diversificadas iguarias, até aquele momento.

4.6 Barro, mau humor e Pitus fritos

Na produção do asfalto onde seriam colocados os postes de luz, na ocasião da


construção da hidrelétrica que traria o progresso ao agreste, a companhia baiana de
engenharia e projetos, enviou o distinto engenheiro-chefe, conhecido como Doutor Remo
Quarantini, que tinha um humor ácido e silencioso, sempre reclamando de tudo e fazendo
apimentadas observações sobre o lugar, seja pelo excesso de lama na avenida, ou como se
referia as ruas como caminhos de mulas que não mereciam ser tratadas sequer de estrada
carroçável, vistas como trilhas incertas, com picadas repletas de lombadas e lamaçais, valetas
e etc, em suma, uma escrotidão (AMADO, 1977, p. 397).
Ainda assim Ascânio Trindade se mobilizou para recebê-lo bem e tratá-lo com
esmero cuidado por parte das autoridades locais e do povo do município.

“Olhando-o, ninguém diria tratar-se de emérito contador de anedotas: careca, barbas loiras,
longas e emaranhadas, cara típica de que comeu merda e não gostou silencioso” (AMADO,
1977, p. 397).
Mas a despeito da ironia do fiscal da obra, Ascânio vai até a pensão de dona
Amorzinho, e encomenda a comida para os trabalhadores e para o fiscal, e logo os visitantes
percebem que na cidade havia mais do que barro e buracos.

(...) ao meio dia,os dois engenheiros e o fiscal da obra, comem o


melhor almoço de suas vidas: pitus fritos, aferventados, escalfados
com ovos, moqueca de peixe, galinha de molho pardo, cabrito
assado, carne de sol com pirão de leite. Doces de sabores raros: de
jaca, carambola, groselha araçá-mirim, passas de caju e jenipapo
(AMADO, 1977, p. 399).

O Fiscal comeu tanto que ficou com as faces rubras e viçosas, esticando-se numa rede
e dormindo até o fim da tarde, acordando apenas no limiar do fim dos trabalhos, muito
diferente do estressado profissional, sempre preocupado em cumprir as metas e horários da
empresa.

Tem pressa (...) todas as demais pessoas ligadas ao progresso não


admitem perder tempo, estão sempre correndo, impacientes.
Seguindo o careca para o jipe, Ascânio comprova que ele próprio
deve mudar de ritmo (AMADO, 1977, p. 398).

Numa forma muito direta, o autor Jorge Amado, deixa claro a importância da
alimentação nas relações de seus personagens, e no capítulo que ele apresenta como ¨Das
Preciosas Raridades¨, uma cena interessante da visita do importante advogado baiano,
Doutor Hélio Colombo.
Eminente jurista catedrático da faculdade de direito da universidade federal da Bahia,
chefe do mais importante escritório de advocacia da Bahia, e sendo recebido pelo tabelião,
mostra-se cansado, e não menos decepcionado pela poeira da estrada que o acompanhou até
Mangue Seco. “Sinto que depois desta viagem jamais voltarei a ser eu mesmo. Tenho a alma
envolta em poeira para sempre” (AMADO, 1977, p. 503).
Sacode a camisa de casimira inglesa, enxuga o suor do rosto, olha em volta e
amaldiçoa o pessoal da Brastânio, empresa que o fez se dispor a tal viagem, comparando o
lugar a uma tapera.
A esposa do Dr. Franklin, tabelião de Santana do Agreste, prepara um almoço que a
seu ver, não era digno de tão importante autoridade, mas o Doutor Hélio Colombo, cansado e
faminto, se deleita com seus quitutes que para si não tem nada de trivial.

Os pitus, o peixe ensopado, a frigideira de guaiamus, o lombo de


cabrito assado. Ao atingir a sobremesa, o mau humor do grande
homem se dissolvera; tornando-se amável e fitando o casal com
simpatia (AMADO, 1977, p. 505).

Nota-se a importante mudança no temperamento do arrogante advogado, que teve sua


resistência vencida pelas iguarias da comida regional, e quanto a comida contribuiu para que
o mesmo se acalmasse, abrandando a decisão que posteriormente deverá se manifestar,
acerca da finalidade de sua visita.
“Doutor Colombo suspira ao provar a primeira colherada de ambrosia: incomparável!
Ainda no prazer da degustação, passa a comandar as perguntas (...)” (AMADO, 1977, p.
505).
Mostra a relevância da comida na atitude calma, no pensamento reflexivo, que se
mostrará na sobremesa, provando colheradas de ambrosia, e na ação cautelosa do
personagem ao responder com paciência a investigação do indiscreto anfitrião, já que antes
do almoço, o personagem pretendia vingar-se da afronta de ter que se apresentar em um
lugar, que conforme sua ótica era pobre e sem atrativos.

4.7 Um prêmio para Perpétua

Usando a escola do seu filho como pretexto para visitar Aracajú, Perpétua aproveita
para visitar o juiz da cidade. Tendo como objetivo, saber sobre a sua pretensa parte na
fortuna de sua irmã, que até então, acreditava estar morta.
Mostrando-se afável à família, Perpétua aparenta preocupação pelo bem estar da
família e seu futuro. Como protetora que se achava, tomara as rédeas da família, afinal,
crianças e um velho, ou mesmo uma irmã mais nova, sem condições de resolver tal questão,
não poderiam tomar a frente de tudo.

(...) Para mim não quero nada, Meritíssimo, mas pelo direito dos
meus filhos, da minha irmã e de meu velho pai brigo até morrer.
Pobre, sozinha e desprendida. O juiz se impressionou e Dona Guta,
empolgada, serviu à corajosa viúva bolo de aipim e licor de pitanga
(AMADO, 1977, p. 78).

Um verdadeiro brinde às bem aventuranças do caráter e do amor familiar, Dona Guta,


como dona de casa exímia e boa em receber, como era adequado a uma senhora da
sociedade, serve uma iguaria, como forma de demonstrar seu apreço a tão dedicada e
corajosa viúva, a comida apresenta-se na cena como prêmio, devidamente reconhecido pela
Perpétua como merecido.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Passeando pelas obras do autor brasileiro Jorge Amado, é impossível não notar a sua
paixão pela comida, e como a presença da comida nas obras se torna significativa,
transformando a gastronomia como representação de costumes e religiosidade, e sua
influente força no atos dos personagens.
A preciosidade de receitas antigas, oriunda dos escravos, que colonizaram a Bahia
com seus costumes e crenças, legaram ao povo brasileiro a originalidade das receitas, que
não possuem paralelos em outros países e muitas vezes nem mesmo podem ser traduzidas,
como a palavra vatapá, que não possui semelhantes termos que levem aos povos de outras
línguas identificar sua receita.
Para tanto, Jorge Amado resgatou em seus livros algumas receitas, que talvez
ficassem esquecidas nos recantos da Bahia, ou na lembrança de velhas cozinheiras, que se
escondem nos restaurantes de bares ou cozinhas simples, mas que possui uma riqueza
cultural, trazida pelos africanos e distribuída entre as diversas culturas existentes no Brasil.
Um regalo ao desejo e ao paladar, tais receitas de doces e bolos podem ser copiadas e
feitas, saboreadas e repetidas, através da literatura Amadiana, que não abre mão de dividir os
segredos antigos dos prazeres culinários.
Dentro do contexto literário da obra geral do autor Jorge Amado, a comida aparece
como meio de reformulação de contextos sociais e de modificação das relações entre
personagens e seus critérios de socialização.
Numa perspectiva longitudinal, foi observada na obra amadiana o fenômeno da
incidência de receitas em sua literatura, sendo segundo sua filha Paloma Amado, uma
exigência do próprio autor, como relatou em seu livro ¨As Frutas de Jorge Amado¨, que fazia
questão de aprovar cada receita, ou de tê-las expressas em suas obras, alimentando
personagens e leitores.
Não somente como objeto de cena, mas como elemento modificador do caráter
expresso pelo temperamento de cada personagem, tendo em qualquer gênero escrito em todo
o corpus da obra Amadiana, uma receita de comida ou de bebida, que interagem com seus
protagonistas, fato este que merece uma avaliação de analistas literários, tendo em vista a
importância do tema para o estudo da produção e crítica textual.
A partir das considerações observadas durante a produção desse trabalho, notou-se
que desde a primeira obra escrita pelo autor, até a última, há sempre um ponto que leva o
leitor a conhecer a sensibilidade dos aromas e sabores de uma culinária característica de um
contexto de época ou local.
Assenta-se desta forma, a possibilidade de outros trabalhos analíticos, fundamentados
na curiosidade e na crítica literária, por parte de alunos ou pesquisadores, tendo em vista a
novidade inexplorada do tema, e nesta perspectiva, a culinária e o alimento evidenciam sua
posição como fator de movimento de cultura e influência nos personagens da obra do autor
Jorge Amado.
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publicação é parte da Biblioteca Virtual de Ciências Humanas do Centro Edelstein de
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STEURER, F. Especiarias: Aplicações e Propriedades. 2008. 30f. Trabalho Acadêmico


(Bacharelado em Química de Alimentos), Universidade Federal de Pelotas, Pelotas.
PAULO SERGIO AZEVEDO ROCHA

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