Você está na página 1de 5

Campus Arapiraca

Unidade de Educacional Penedo


Curso de Bacharelado em Turismo
Disciplina: Gastronomia
Docente: Profº. Rafael Arruda
Discente(s): Fabiana Vieira de Souza

Estômago é o tipo de filme que nos pega de surpresa e que pelo qual nos apaixonamos
de imediato. É uma obra que certamente merece ser vista por qualquer brasileiro, por
dialogar perfeitamente com a nossa sociedade e nos entregar um olhar visceral e
perturbador sobre ela. Ao término da projeção, somos deixados estáticos, tentando
processar tudo aquilo que vimos e, é claro, nos lembrando das ótimas falas que,
certamente, merecem se tornar “internas” em círculos de amizade

No dia-a-dia, é frequente escutarmos que isso ou aquilo é


“questão de gosto”, ao que segue a sentença: “gosto não se
discute”. Como se no comportamento de consumo das pessoas
não houvesse nada de interessante ou importante para ser
refletido do ponto de vista social e objetivo, por tratar-se de algo
dado naturalmente por fatores de ordem individual e subjetiva.
Em oposição a essa ideia, argumenta-se, seguindo Bourdieu
(1983), que o gosto, especificamente o gosto alimentar, é
constituído socialmente e tem função importante na diferenciação
social, na medida em que por meio dele formam-se estratégias de
distinção, que exprimem diferentes estilos de vida e posições
hierárquicas na estrutura de classes.

Antes de qualquer coisa, é importante notar que a palavra gosto


tem, pelo menos, dois significados. O primeiro refere-se
diretamente ao sabor como atributo sensorial de alguma coisa
(alimento), já o segundo à disposição de um indivíduo em realizar
determinadas escolhas a partir das condições com que se depara,
como sua posição de classe. De acordo com Seymour (2005, p.3), o
conceito bourdiesiano de habitus “representa a ligação entre os
componentes subjetivos e objetivos da classe, ou seja, classe como
fruto de fatores amplamente econômicos, e classe como um
conjunto de práticas, predisposições e sentimentos” tipicamente
característicos de determinadas coletividades humanas. Assim
o habitus, enquanto um conjunto de predisposições, propensões e
tendências a pensar, comportar-se e agir de maneira que os
membros pertencentes a uma determinada classe social
consideram natural, óbvia e sensata, e não de outra, considerada
inadequada, é um elemento que condiciona os gostos e as
escolhas individuais.

Em contexto bastante distinto daquele apresentado no filme Vatel,


a questão do poder e da sociabilidade também aparece no
filme Estômago. Na falta absoluta de capital econômico, o
protagonista Raimundo Nonato soube utilizar muito bem sua
sorte, talento e sensibilidade inata para adquirir capital cultural e
simbólico por meio do aprendizado da arte culinária. Esse trunfo
permitiu-lhe ascender socialmente e alcançar a realização de
alguns de seus desejos, como a relação com a prostituta Iria. Mas
essa paixão levou Raimundo Nonato à desgraça – do mesmo
modo que levou o maître Vatel, apaixonado pela bela Anne, à
própria morte por suicídio. Nonato foi preso por assassinar, com
requintes de crueldade, a prostituta Iria e seu amante – Giovanni,
patrão de Raimundo no restaurante onde trabalhava –, que o
traiam em plena noite de seu noivado. Na prisão, ele também
conseguiu adquirir status, prestígio e poder por conta de seu
talento gastronômico, cozinhando para os seus companheiros de
cela e ascendendo na hierarquia.
“Se o ‘homem é aquilo que come’, o que gosta de comer
representa seu caráter, portanto, se gosta de alimentos refinados,
seu gosto lhe confere qualidade e distinção” (PILLA, 2005, p.62).
Assim, o “bom gosto”, valor socialmente construído desde o século
XVII, converte-se em uma importante virtude social, reconhecida
por quem a possui e pelos outros, tanto seus pares como aqueles
de quem ele se distingue, pois representa demonstração de
superioridade em termos de capital cultural ou mesmo
econômico, pois “ter bom gosto sai caro”. Como bem observou
Pilla (2005, p.68), “os banquetes das sociedades ocidentais, desde
há muito, contribuem para manifestar publicamente o lugar dos
que neles participam. A ostentação está tanto no efeito visual
como na qualidade dos alimentos oferecidos. Os modos de vestir,
de falar, as habilidades à mesa, a postura, a composição e as
opções de cardápio e as predileções alimentares podem classificar
os indivíduos”.

Podemos constatar, então, que a universalidade do tema, bem


como a tática de co-produção foram elementos que garantiram uma
boa recepção desse longa-metragem, elevando a expressividade do
cinema paranaense e incluindo-o no que pode ser entendido como um
“gênero da comida”. Já com relação à historiografia, essa obra
permitiu um trabalho que abrangeu desde as condições da indústria e
do mercado cinematográfico contemporâneo, às representações que o
filme traduz e introduz na sociedade. Além disso, mostrou que o
cinema se constitui num prato cheio enquanto fonte histórica.

Descrito na sinopse do site oficial como “uma fábula nada


infantil sobre poder, sexo e culinária”357, o filme narra a história de
um retirante que chega na cidade grande sem perspectivas mas que,
como foi dito, conquista, ao longo da trama, posições de prestígio por
conta de suas habilidades culinárias, que vão desde a cozinha de
boteco à famosa culinária italiana. Essas habilidades lhe rendem um
emprego e uma paixão, servindo de base para suas relações sociais.
Parte do filme se passa na cela da penitenciária que detém Nonato - a
narrativa não-linear intercala presente (cadeia) e passado
(boteco/restaurante) -, e lá, também, ele conquista o respeito e uma
posição de destaque entre os presos por transformar (quase que
milagrosamente) aquilo que recebiam como alimento em verdadeiros
quitutes. Nesse sentido o filme nos traz dois temas universais: a
comida e o poder.

Bourdieu tem o mérito de desvelar de maneira voraz, destarte, que a igualdade de


oportunidades e a importância do sistema escolar – ideologicamente incentivadas pelo
regime republicano – não garantem, necessariamente, igualdade social a todos.

A posição socialmente ocupada pelos agentes detentores de um poder


específico em um campo particular de existência depende, antes de qualquer
coisa, dos capitais objetivados nas práticas distinguidos em três dimensões
"clássicas": o econômico, o cultural e o social. É a forma assumida pelos
capitais objetivados em uma relação e incorporados (habitus) que determinam
as classes sociais e, conseqüentemente, constituem as práticas que
classificam as distinções.
O habitus é, com efeito, responsável pelas práticas objetivamente
classificáveis, sem, contudo, deixar de ser um sistema de classificação. O
mundo social, por seu intermédio, é representado nos espaços ou nas posições
ocupadas pelos agentes e é ele que estrutura os estilos de vida do campo
simbólico. No habitus encontra-se inserida toda a estrutura do sistema de
condições ou disposições possíveis, fundamentando as estruturas das
diferenças. O habitus é o que faz um agente ser detentor de um gosto, porque
as preferências estão associadas às condições objetivas de existência.

Os agentes apreendem os objetos ofertados simbolicamente através dos


esquemas de percepção e de apreciação de seus habitus. Por isso, é de suma
importância deixar claro que cada agente confere sentidos e significados
distintos a suas práticas. Praticar a mesma atividade física ou consumir os
mesmos estilos de filmes não denota, jamais, que o habitus seja gerador de
tendências irredutíveis. Bourdieu se defende de uma possível visão
determinista contida em sua obra, afirmando que as práticas das diferentes
classes ou frações de classes, distribuem-se ao longo de um campo infinito de
possibilidades, de tal modo que o número de espaços de preferências será tão
grande quanto o universo de possibilidades objetivas.

Em torno dos conceitos de habitus e campo reside uma contribuição importante


de Bourdieu ao pensamento sociológico. Tais conceitos têm sido utilizados
como instrumentos conceituais que possibilitam pensar as relações entre os
condicionamentos sociais exteriores e as subjetividades dos agentes. Eles
adquirem um alcance universal na apreensão de certa homogeneidade nas
disposições ou nos gostos em matérias que podem ir, por exemplo, da música
sertaneja aos hábitos alimentares, das cirurgias estéticas ao comportamento
político, das preferências religiosas aos conflitos urbanos juvenis, pois
procedem ao reconhecimento dos processos históricos que demarcam a
gênese e ampliação das práticas culturais na modernidade.

Note-se que aqui estamos entendendo a comida não


somente pelo seu caráter nutricional, mas também inserida em uma
cultura, cercada de sociabilidades e imbricadas na História. Ou seja:
“alimentar-se é um ato nutricional, comer é um ato social, pois
constitui atitudes, ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e
situações”359.

Estômago
insinua alguns aspectos que reconhecemos enquanto brasileiros, como
o êxodo rural e a figura do nordestino no personagem principal
Raimundo Nonato. A lotação do sistema carcerário (um dos cenários
de filme) também é mostrada. Mas isso é secundário no conjunto da
obra, não há uma problematização centrada nesses aspectos,
evidenciando que a questão do cozinheiro é que ganha o papel
principal.
PILLA, Maria Cecília Barreto Amorim. Gosto e deleite: construção e
sentido de um menu elegante. História: Questões & Debates,
Curitiba, n. 42, 2005, p.53-69.

Você também pode gostar