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CULTURA E LINGUAGEM

AULA 1

CONVERSA INICIAL

As ciências sociais, de uma forma geral, estão preocupadas em descrever e

compreender as relações humanas. Estas se desdobram em múltiplas direções:

políticas, sociais, econômicas, culturais etc. Tais dimensões abarcam a totalidade


da produção da vida humana para além dos elementos biológicos e naturais.

A vida humana, com isso, não é apenas um fenômeno evolutivo natural, mas

uma produção constante de maneiras de bem viver, que estabelecem limites,

normas, percepções, regras morais, definições do “belo”, enfim, modos de vida.

Fica claro que essas relações apresentam capacidades únicas do humano, como

a produção de um universo compartilhado de símbolos, significados e práticas


de transformação da natureza, tudo isso levando à vida em sociedade.

Com isso, podemos perceber que o ser humano não é um ente isolado de

seu meio, ele está em constante contato com os outros e compartilha meios

comuns de produzir sua vida, perceber seu papel social e construir determinados

valores, ainda que tácitos, que vão reger sua presença no mundo social. O

elemento implícito dessas relações pode ser chamado de cultura, pois se trata de

uma forma de vida que está para além de uma percepção consciente dos seres

humanos envolvidos nas relações, apontando para uma dimensão “espiritual” das

relações, ou seja, dimensões da produção das artes, das ideias, da ciência,


literatura e representações sociais.
Essa é uma forma de abordar a cultura e, podemos dizer, que poucos

conceitos são tão complexos nas ciências sociais como este. Há uma explosão de

sentidos da palavra no mundo atual. Falamos em “cultura empresarial”, “cultura

das periferias”, “cultura literária”, “científica”, “cultura de massas”, “cultura

popular” etc. Tais usos cotidianos apontam para a complexidade do tema e a


forma como ele vem sendo tratado em seus sentidos sociais.

Nosso objetivo é contribuir para o entendimento dos diferentes sentidos de

cultura nas ciências sociais, apresentando as relações entre a cultura e a natureza,


a multiplicidade das culturas e sua relação com as artes de uma forma geral.

Com tais definições esperamos que vocês compreendam não apenas o

processo de produção sócio-histórico da cultura, a forma como ela engendra

diferentes modos de vida, mas, sobretudo, compreender o papel que ela

desempenha no mundo contemporâneo. Todos esses elementos têm em comum

a linguagem, pensada para além do uso da língua materna, ou seja, em sua


dimensão de produção de significado para nossas práticas sociais.

Por fim, traremos definições das ciências sociais para definirmos com alguma

precisão o conceito e, a partir disso, refletir sobre as relações estabelecidas com


a psicanálise, em especial o texto O Mal-estar na Civilização (Freud, 2010 [1930]).

TEMA 1 – A IDEIA DE CULTURA

O debate sobre a cultura enquanto um conceito das Ciências Sociais é

relativamente recente na história do pensamento. Ele nos remete aos primórdios

da modernidade (séc. XVI), em especial o período de nascimento do capitalismo

e os contatos com populações não europeias que levaram a um debate sobre

seus modos de vida. Mas é somente com a Revolução Industrial, nos séculos XVIII
e XIX, que a cultura entra como uma palavra a ser debatida, passando assim por
uma transformação semântica.

Segundo Santos (1983):

Cultura é palavra de origem latina e em seu significado original está ligada às atividades agrícolas. Vem

do verbo Latim “colere”, que quer dizer cultivar. Pensadores romanos antigos ampliaram essa

significação e a usaram para se referir ao refinamento pessoal, e isso está presente na expressão cultura

da alma. (p. 27)

Podemos perceber, com essa definição, que a cultura, em seus sentidos

originais, estava ligada diretamente a uma ação feita sobre a natureza, ligada

diretamente às sociedades rurais. Nesse aspecto, a cultura estaria ligada ao

cultivo da terra para as plantações, por exemplo. O sentido da palavra vai

mudando historicamente ao ser aplicada a novos objetos. Os romanos, conforme

nos diz Santos (1983), vão aplicá-lo ao cultivo de si, ao cultivo das boas ideias, do
bom comportamento e da boa vida.

Tais elementos permanecem subjacentes à ideia moderna de cultura, mas

apontam para outras questões. No século XIX, com o grande crescimento das

cidades e da indústria, isto é, do que ficou conhecido como civilização, ela ganha

novos contornos. Tal mudança na ordem social gera impacto nos modos de vida

dos sujeitos, que assumem posturas ora críticas, ora elogiosas sobre a forma de
vida nascente.

Há, na ideia de cultura, uma duplicidade, o primeiro sentido que a liga à

natureza, portanto enquanto uma questão orgânica e natural, e a segunda, que

aponta para os sentidos daquilo que é produzido pelos seres-humanos em seus

grupos sociais, o que podemos chamar de produções do “espírito”, aqui

entendido como as produções artísticas, morais, científicas, em suma, produções


intelectuais.
O que trouxemos até o momento ainda não dá conta da questão

fundamental a ser respondida: afinal, o que é cultura? Olhar para essa

transformação dos sentidos da palavra nos dá pistas sobre a forma como ela será

definida e as maneiras como ela se relaciona como todos os aspectos da vida


humana.

A partir do que dissemos até o momento, podemos dizer que:

Com base em suas raízes etimológicas no trabalho rural, a palavra primeiro significa algo como

"civilidade", depois no século XVIII, torna-se mais ou menos sinônima de civilização, no sentido de um

processo geral de progresso intelectual, espiritual e material. Na qualidade de ideia, civilização

equipara significativamente costumes e moral: ser civilizado inclui não cuspir no tapete assim como

não decapitar seus prisioneiros de guerra. (Eagleton, 2000, p. 19)

Há, com isso, uma abertura que faz com que a cultura possa der definida de

diferentes formas que estão em disputa pela sociedade como um todo. Podemos

dizer que cultura é aquilo que separa o ser humano da natureza, isto é, as

sociedades, as formas de produzir o mundo, material ou simbolicamente, ela

significa, aqui, a separação que há entre os animais e os humanos. Além disso,

ela se desdobra em dois elementos, o primeiro como um elogio das conquistas

da civilização, seja nos aspectos da racionalidade, das artes, ou da ciência. O

segundo como uma crítica a essa mesma civilização, numa tentativa de retorno a

um suposto momento em que os sujeitos ainda não haviam sido corrompidos

pela sociedade moderna e viviam em comunidades orgânicas e em relações de


proximidade.

Todos esses elementos se fazem presentes quando falamos de cultura, eles

situam os sentidos que ainda hoje são produzidos em nossa sociedade. Portanto,

podemos dizer que a ideia de cultura é um objeto de luta política, já que nela
vivemos e, a partir dela percebemos os acontecimentos do mundo e nos situamos
e situamos os outros na sociedade.

Contudo, este é apenas o primeiro passo para entendermos a questão, é

preciso ir além e aprofundarmos em alguns desses termos. O primeiro deles é a

relação cultura-natureza. Uma dicotomia clássica que está na origem não apenas
do debate, mas situa as definições daquilo que podemos chamar de ser humano.

TEMA 2 – CULTURA E NATUREZA

Quando falamos da relação entre cultura e natureza, adentramos em uma

questão insolúvel, ela nos leva a uma pergunta filosófica que muitas vezes recai

na metafísica ou em respostas místicas, afinal, o que é o ser humano? Como, em

que momento, nos descolamos do mundo animal e nos tornamos seres de

linguagem e cultura, que falam, vivem juntos, se entendem e se desentendem?

Qualquer resposta a essa pergunta, sobre as origens do ser humano enquanto

animal social, recai em especulação. Rousseau dizia que antes vivíamos em um

“estado de natureza” em que os seres humanos eram felizes e bondosos, estando

aqui a origem do “bom selvagem”, e que a instauração da cultura e da civilização


corrompeu nossa bondade natural.

Hobbes busca uma solução diferente, dizendo que o “estado de natureza”


era um momento de guerra de todos contra todos e que a essência humana é

perversa, no qual o homem é o lobo do homem, em que a sociedade surge para


regular os excessos e evitar regular os comportamentos em sociedade.

Esses dois exemplos nos mostram que esse descolamento da natureza não

tem uma resposta fácil. Mas também nos mostra as formas como a cultura

ocidental trata do tema das origens e destinos do humano, sendo estes também
temas culturais.
Porém, há um fato inescapável, vivemos em um mundo cultural, que definiu

a forma das relações sociais e os valores morais que guiam nossos

comportamentos, ainda que não tenhamos participado de sua elaboração. Ou

seja, ao nascermos, adentramos em um mundo de valores, linguagem e relações

(três elementos fundamentais da cultura) que existiam antes de nós e continuarão

a existir depois de nossa morte. Mas, afinal, como chegamos a esse estado? O

que motivou com que vivêssemos juntos e produzíssemos a vida material da

forma como a produzimos? O primeiro ponto a ser destacado sobre essa questão
vem de Freud (2010 [1930]):

O que buscam os homens? É difícil não acertar a resposta; eles buscam a felicidade, querem se tornar

e permanecer felizes. Essa busca tem dois lados, uma meta positiva e uma negativa; quer a ausência

de dor e desprazer e, por outro lado, a vivência de fortes prazeres. (p. 29-30)

As hipóteses de Freud sobre o mal-estar na cultura (ou civilização) partem

da percepção de que o ser humano, no processo de seu desenvolvimento, se

depara com elementos incontroláveis, sejam eles provenientes da natureza, do

próprio corpo ou das relações que estabelece com outras pessoas. Para o autor,

os homens buscam maximizar seu prazer e, ao mesmo tempo, reduzir seu


desprazer.

Tal meta de maximização do prazer possui seus limites, já que ela depende

sempre de objetos – e aqui entendemos objeto como aquilo que está fora do

sujeito, podendo ser outro sujeito, ou objetos da natureza. Essa relação com os
objetos é onde está, na hipótese freudiana, o surgimento da cultura.

Para ele, o que motiva a produção da cultura é a angústia ante o inesperado,


ele afirma:

O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que, fadado ao declínio e à dissolução,

não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode
se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com

os outros seres humanos. (Freud, 2010[1930] p. 31)

A cultura surge, portanto, de um duplo movimento. O primeiro a partir de

um descolamento do humano da natureza. Os objetos se apresentam em estado

bruto e são transformados em outros objetos, a madeira que, a partir do trabalho

é transformada em uma mesa, por exemplo. A essa mesa é dada uma função,

essa função, que já não é mais do tronco da árvore, é imbuída de sentido –

significado – fazendo com que aquilo dado de início naturalmente se torne outra
coisa.

Tais transformações fazem com que a natureza animal do homem seja

desnaturalizada, fazendo com que se produza um novo ritmo de produção da

vida, o tempo do trabalho, da caça, do lazer, dos cuidados etc. Esses novos ritmos

não são dados isoladamente, o desenvolvimento da cultura a partir da angústia

ante o inesperado, a necessidade de controle sobre a natureza faz com que os

humanos se aproximem, criando comunidades e construindo uma vida em


comum.

A produção da cultura, segundo Freud, é uma forma de proteção ante ao

descontrole inerente ao mundo natural, é a produção humana de todo um modo

de vida em comum, a partir da transformação da natureza. Tal processo gera o

mundo humano, feito de linguagem, relações sociais, hierarquias e controle de


comportamentos.

Isso não quer dizer que há aqui uma evolução, isto é, que todas as culturas

levam a um mesmo fim. Cada cultura teve seus modos específicos de produzir

sentido para as relações, sejam humanas ou com a natureza. O que se pode dizer

é que a cultura produz modos de vida, maneiras coletivas de encarar os desafios


impostos pelo mundo e de regular as relações e produções humanas. “Assim, a
cultura diz respeito à humanidade como um todo e ao mesmo tempo a cada um
dos povos, nações, sociedades e grupos humanos” (Santos, 1983, p. 8).

Para concluir, com Freud (2010[1930]), a cultura foi construída na tentativa

de proteção e controle ante ao intempestivo e ela não foi feita sem um preço a

ser pago. A saída do mundo natural gerou seus efeitos, colocando como centro
do processo as relações humanas.

TEMA 3 – CULTURA COMO MODO DE VIDA

Conforme vimos no tema anterior, na hipótese freudiana a Cultura surge a

partir da necessidade de autoproteção humana em relação às intempéries da

vida. Com isso, se formam famílias, clãs, comunidades, enfim, agrupamentos


humanos de ordem maior que os indivíduos.

Tais agrupamentos criam suas formas específicas de produzir riqueza,

controlar as relações sociais e proteger seus membros. Pensada dessa forma, a

cultura aponta para todo um modo de vida histórico construído pelos seres
humanos que está na base de toda a sociedade.

Enquanto modo de vida, podemos dizer que a cultura é aquela que

disponibiliza valores (morais, éticos e estéticos) para todos os indivíduos. Tais

valores se materializam em instituições, em regras tácitas de comportamento e

constroem a identidade dos sujeitos sociais que vivem sob uma determinada

cultura. Pensar a cultura como modo de vida é, portanto, uma maneira de

perceber a diversidade cultural presente no mundo, bem como a diversidade

interna à sociedade em que vivemos. Ela nos convida a nos percebermos em


sociedade e reconhecer as diferenças como constitutivas do mundo social.

A riqueza de formas das culturas e as suas relações falam bem de perto a cada um de nós, já que

convidam a que nos vejamos como seres sociais, nos fazem pensar na natureza de todos os seres
sociais de que fazemos parte, nos fazem indagar das razões da realidade social de que partilhamos e

das forças que a mantém e transformam. (Santos, 1983. p. 9)

Dessa forma, ela nos leva a considerar tal processo não como uma evolução

linear da humanidade que nos levaria a um modo de vida único, mas nas

especificidades históricas que levaram determinados grupos a produzirem sua

vida social de determinada forma e não de outra. Além disso, olhar para a

diversidade dos modos de vida presentes no mundo nos apresenta a

desigualdade das relações entre culturas e sujeitos na sociedade, ao processo de

dominação e de relações de poder que fazem com que determinados grupos

tenham acesso ou não aos aparelhos institucionais de controle da cultura. Um


exemplo desse processo é de se pensar o racismo no Brasil como um processo

de dominação cultural que tende a apagar em nossa historiografia as tradições


africanas e indígenas que estão na base de nosso modo de vida.

Como diz Eagleton, “a cultura [...] não significa uma narrativa grandiosa e

unilinear da humanidade em seu todo, mas uma diversidade de formas de vida


específicas, cada uma com suas leis evolutivas próprias e peculiares” (2000, p. 24).

Essa é a definição que nos permite falar de, por exemplo, cultura indígena,

cultura Maia, enfim, a cultura articulada como a identidade de um povo, seus

mitos, suas histórias, seu modo de vida como um todo. Além disso, olhar as

especificidades históricas de cada uma dessas populações faz com que possamos

também relativizar o nosso modo de vida, calcado na chamada civilização

ocidental e perceber que ela é também produto de relações históricas, políticas

e sociais. “Definir o próprio mundo da vida como uma cultura é arriscar relativizá-

la. Para uma pessoa, seu próprio modo de vida é simplesmente humano; são os

outros que são étnicos, indissiocráticos, culturalmente pecualiares” (Eagleton,


2000, p. 43).
Chegamos, assim, ao cerne da questão, a cultura como modo de vida parte

do reconhecimento da diversidade, deslocando nosso olhar para o nosso próprio

modo de vida e relativizando supostos valores universais da civilização. Ela nos

mostra que não há processo evolutivo linear, mas que existem diferentes formas

de se produzir aglomerados humanos, com diferentes valores e percepções do

mundo, o que nos leva a considerar a pluralidade de comunidades e identidades


como o único elemento universal presente no mundo da vida.

Conforme dissemos, os valores de uma cultura se materializam na sociedade

de determinada forma. Nesse ponto, ela é um dos elementos articulados na

noção moderna de Estado-Nação. Se desmembramos as duas palavras, podemos


dizer que o Estado é aquele que comporta as instituições responsáveis por

manter as normas sociais, como o judiciário, responsável pela aplicação e

cumprimento das leis, as instituições políticas que organizam as formas de


participação social e econômicas, que regulam as maneiras de se produzir bens.

A Nação abarcaria com isso os valores que movem determinado país. Isto é,

definiria a identidade cultural, os símbolos da pátria, os heróis e os mitos. Isso

pode ser pensado quando falamos de Identidade Brasileira, que é um conjunto


de valores compartilhados socialmente que dizem o que é ser um bom brasileiro,

estipula valores positivos ou negativos para determinados comportamentos

como o “jeitinho brasileiro”, ou seja, disponibiliza uma narrativa sobre o nosso


passado, o presente e as perspectivas de futuro.

Por fim, precisamos destacar que a cultura, enquanto modo de vida, está

sempre atravessada por relações de poder. Há uma cultura dominante em toda a

sociedade, fazendo com que existam relações de desigualdade entre os seres

humanos, fazendo com que determinadas formas de vida sejam desvalorizadas e

marginalizadas. Isso gera disputas de poder para mudanças na cultura e que as


instituições absorvam essas demandas. Dessa forma, podemos citar a luta, como
exemplo, as lutas pelos direitos civis dos negros nos EUA, que levaram ao

reconhecimento da cultura negra e a integração dessas comunidades na

sociedade americana. Esse aspecto nos mostra que a cultura é um elemento

dinâmico da sociedade e, além disso, ela contribui de maneira fundamental em


nossa percepção sobre nós mesmos e nossas relações com o mundo.

TEMA 4 – CULTURA E CIVILIZAÇÃO

Nas discussões que fizemos até o momento fica patente que a cultura é um

dos elementos-chave para a compreensão da sociedade. Além disso, podemos

observar que ela está calcada sempre na relação com o "outro”, seja este a
natureza ou a sociedade.

Quando falamos de civilização, o que se torna central são as questões em

relação ao outro enquanto humano e social. Ela é, com isso, a amalgama de

valores que media e controla essas relações. Além disso, em uma sociedade que

carrega os valores civilizacionais (Estado, Direito, Modo de Produção Capitalista,

Laicidade), como a nossa, ela também aponta para as relações de poder que
sustentam a hierarquia social. De acordo com Freud (2010[1930]):

A palavra civilização designa a inteira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida

daquela de nossos antepassados animais, e que servem para dois fins: a proteção do homem contra a

natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si. (p. 49)

Contudo, quando pensamos na “civilização” enquanto um modo de vida,

conforme visto anteriormente, percebemos que essa forma de organização social

é apenas mais uma dentre várias outras que se estabeleceram historicamente.

Esse fato aponta para uma das contradições da civilização, ela estipula um

pensamento universal sobre o humano, baseado em valores locais –


especialmente na Europa – e faz com que esse particular ganhe área de universal,
concretizando um processo de poder e dominação que esteve na base do
colonialismo.

Dessa forma, ela aponta para dois aspectos: o primeiro para a ciência

antropológica, que busca conhecer esse “outro” da sociedade, e o segundo para

o projeto de dominação política de diferentes povos, que esteve na base dos


processos coloniais (Santos, 1983). Temos, portanto, o seguinte cenário:

Cultura pode por um lado referir-se à alta cultura, à cultura dominante, e por outro, a qualquer cultura.

No primeiro caso, cultura surge em oposição à selvageria, à barbárie; e cultura é então a própria marca

da civilização. Ou ainda, a alta cultura surge como marca das camadas dominantes da população de

uma sociedade; se opõe à falta de domínio da língua escrita, ou à falta de acesso à ciência, à arte e à

religião daquelas camadas dominantes. No segundo caso, pode-se falar de cultura a respeito de

qualquer povo, nação, grupo ou sociedade humana. Considera-se como cultura todas as maneiras de

existência humana. (Santos, 1983, p. 35)

Com isso, temos que a cultura como civilização aponta para dois aspectos.

Um de caráter normativo, no qual diz-se que determinado povo, ou camada da

população, não possui cultura, ou só tem acesso àquilo que de pior foi produzido

por ela mesma. Está na base disso os julgamentos estéticos e éticos sobre essas

camadas sociais, independentemente de pertencerem a outros países ou não. Ela

é uma das bases, por exemplo, do racismo, que visa tratar a população negra de
determinada sociedade como inferiores.

O outro ponto é de caráter descritivo, ao mostrar que olhar para a nossa

sociedade a partir das lentes da cultura é uma forma de compreendê-la a partir

do processo histórico, social, político e econômico que a criou e que sustenta a

hierarquia social e determinadas formas de dominação. Essa concepção está na

base de um pensamento crítico sobre a sociedade, que busca mostrar a não


universalidade dos preceitos civilizacionais e que a civilização é uma das formas
de dominação de uma camada social por outra. Ela está na base das discussões

atuais sobre gênero e sexualidade, identidade cultural e comportamentos típicos


de diferentes estratos sociais.

Esse segundo ponto é o que mais se aproxima das definições de Freud sobre

a relação complexa que temos com a civilização. Se uma das origens dos conflitos

são as relações humanas, e estas são mediadas pelos valores culturais dominantes

de uma determinada época, logo sempre há uma certa insatisfação em relação


ao mundo.

Para ele dois são os valores que estão na base da civilização enquanto

cultura. Os padrões de ordem, ou seja, uma certa previsibilidade nas relações, o

ordenamento jurídico que estipula uma igualdade formal e os padrões de

higiene, que se articulam com a ordem, em especial a urbana. Ambas dizem

respeito à noção de segurança contra o acaso da vida e do mundo e são balizas


das relações humanas criadas a partir dos vínculos de proteção.

Com isso, Freud (2010 [1930]) está dizendo que, ao adentrarmos no mundo

da cultura, estamos fazendo uma troca. Isto é, trocamos uma porção de nossa

liberdade irrestrita, e individual, de satisfação dos instintos por uma porção de


segurança, fazendo com que a liberdade seja limitada em prol do coletivo.

Esse aspecto é fundamental para o entendimento dos vínculos sociais e para

os conflitos culturais. Já que é por meio deles que articulamos nossas identidades

com os outros, a quem consideramos como iguais, mas também nossos


antagonismos com outros grupos.

Por fim, este é um aspecto importante, já que os vínculos estão na base da

produção de nossas identidades. As identidades nos constituem enquanto

sujeitos, já que incorporamos os valores sociais a nós mesmos, em especial pela


linguagem, e vivemos em um mundo social de forma a não percebermos
completamente os elementos que estão na base dessa constituição.

TEMA 5 – A CULTURA E SUA RELAÇÃO COM A


LINGUAGEM

Vimos até agora que a cultura é todo um modo de vida que produz sentido

para aqueles que vivem na sociedade. Esse processo, que se materializa em

práticas sociais, instituições e modos de produção está intimamente atrelado ao


que podemos chamar de linguagem.

Aqui é preciso fazermos uma definição mais ampla do que seja a linguagem.

Quando falamos nesse termo, não estamos reduzindo-o apenas à língua nacional

que os povos falam, a linguagem é um elemento mais amplo dessa realidade, ela

se materializa não apenas na língua, mas nos rituais, nos sinais de trânsito, nos

processos jurídicos, nas artes audiovisuais, enfim em todo o processo simbólico

que produz reconhecimento dos sujeitos enquanto pertencentes a uma mesma


comunidade.

Esse processo de simbolização da cultura é fundamental para a compreensão

do modo de vida das sociedades, pois é ele que está na base da compreensão do

mundo, produzindo sentido para a vida em seu todo e regulando o

funcionamento das relações sociais. Segundo Santos (1983): “É a simbolização

que permite que o conhecimento seja condensado, que as informações sejam

processadas, que a experiência acumulada seja transmitida e transformada” (p.


42).

Provém daí a importância da linguagem, as tradições precisam ser passadas


de geração em geração para se estabilizar o modo de vida, os valores precisam
ser incorporados aos sujeitos para que eles se reconheçam enquanto
pertencentes à sociedade. Sem a simbolização – o que podemos chamar também

de produção de sentido – não há construção de uma memória coletiva, narrativas


não são compartilhadas e as estruturas sociais não podem se reproduzir.

Contudo, esse processo de troca simbólica que sustenta a cultura não é algo

estanque na sociedade, ele está em disputa e podemos dizer que a cultura de um

povo, de uma comunidade ou de uma nação, se dá por um processo de luta pela

imposição de valores de determinado grupo. Esse é caso da nossa civilização que,

após as revoluções burguesas, a vitória dessa classe social fez com que seus

valores fossem universalizados. Podemos citar como valores de base da cultura

burguesa hegemônica em nossa sociedade as ideias do indivíduo como o único


responsável pelo seu destino e sucesso, o trabalho como categoria central para

o reconhecimento social, o estabelecimento da igualdade formal perante a lei no


sistema jurídico, o liberalismo econômico e a democracia parlamentar.

Tal forma de organização se propõe universal – e de fato possui elementos

de universalidade, mas sua origem está ligada aos valores em disputa contra a

aristocracia reinante no período pré-moderno. Nessas disputas, comparece

também o simbólico como aquele que sustenta a percepção sobre a sociedade e


a luta por reconhecimento da existência de diferentes estratos sociais. Podemos

citar de exemplo as lutas feministas, que buscam a integração da mulher no

mercado de trabalho, as quais buscam alterar os sentidos do que é ser mulher na

sociedade na busca pela igualdade de condições de trabalho e salário, ou seja,


uma luta cultural por reconhecimento.

Além desses exemplos, se nos voltarmos para o sujeito e sua relação com a

linguagem, é a cultura que contribui para a autopercepção do lugar social que

ocupamos na sociedade, a forma como expressamos nossos sentimentos, e

muitas vezes como os sentimos, enfim, a forma como lemos e expressamos o


mundo está profundamente relacionada ao processo de simbolização da cultura.
O estudo dos processos de simbolização, ou seja, de processos de substituição de uma coisa por aquilo

que a significa, que permitem, por exemplo, que uma ideia expresse um acontecimento, descreva um

sentimento ou uma paisagem; ou então que a distribuição de pessoas numa sala durante uma conversa

formal possa expressar as relações de hierarquia entre elas. (Santos, 1983. p. 41-42)

Por fim, é possível afirmar que a cultura está na base do processo social

enquanto uma forma de simbolizar essa vida, isto é, à forma como se produz
sentido para o mundo, tendo a linguagem como seu fundamento principal.

NA PRÁTICA

Pensemos na identidade nacional. O que é ser brasileiro? Quais são as

práticas sociais características de nosso país? Quais as histórias que contamos

que fundamentam a nossa percepção enquanto pertencentes a este país? Além

disso, é possível dizer que o discurso sobre “ser brasileiro” possui elementos de

dominação de uma região determinada do país em relação às outras? Quais

seriam esses elementos? Discuta com seus colegas sobre o processo histórico da
formação da identidade nacional.

FINALIZANDO

Vimos nesta unidade que a cultura é um todo complexo de produção de

sentido que está na base das nossas relações sociais. Ela foi a responsável por

nos separar do estado de natureza e a fazer com que o humano produzisse algo
que estava para além do natural.

Com isso, uma série de questões e desentendimento é colocada para nós,

como a regulação da vida em comum, a construção dos laços sociais, as práticas


materiais que as sustentam e as instituições que se materializam para regular
esses vínculos.
Além disso, a cultura enquanto civilização pode ser percebida enquanto uma

construção histórica, na qual um estrato social obteve hegemonia sobre os outros

na determinação da forma como tais vínculos seriam regulados. A civilização,

dessa forma, ganha uma duplicidade, ao mesmo tempo em que aponta para um

sentido normativo sobre o que é “ser civilizado”, sobre o bom e o belo, ela tem

caráter descritivo sobre um modo de vida específico dominante de uma


determinada sociedade.

O mais importante que precisamos ficar atentos é que a cultura não é algo

estanque, ainda que sua mudança seja um processo longo e demorado, ela é de

ordem histórico-social e diferentes grupos estão em constante conflito na luta


por reconhecimento ou por uma mudança radical nos padrões culturais
dominantes de determinada conjuntura.

CULTURA E LINGUAGEM
AULA 2
Prof. Cícero Costa Villela

CONVERSA INICIAL

CULTURA E REPRESENTAÇÃO

A cultura pode ser definida como um conjunto de práticas, dentre essas

práticas temos uma que é de importância central para o entendimento da forma

como produzimos os sentidos para o mundo. Estamos falando da prática da

linguagem, esta entendida como algo mais amplo que a língua, que abarca

imagens visuais, conceitos, rituais, enfim, toda e qualquer prática simbólica que
sustenta os significados compartilhados em nossa sociedade.

Nesta etapa vamos aprofundar o debate sobre essa relação, buscando

compreender como se dão esses entrelaçamentos entre as duas práticas, além

do papel da circulação das representações sociais para a mudança e a


manutenção de valores culturais.

Debater a cultura enquanto um sistema representacional nos coloca no cerne

da análise dos conflitos culturais no mundo contemporâneo. Além disso, nos abre

a possibilidade de, no futuro, debatermos a questão dos sujeitos sociais, suas


lutas por reconhecimento e as disputas de poder por meio da linguagem que
sustentam grande parte do debate atual.

Nosso objetivo é, portanto, iniciar o debate sobre a relação entre cultura e

linguagem a partir do entendimento da relação de ambas enquanto sistemas

representacionais (Hall, 2016). Sistemas esses que circulam dentro da sociedade,

mas que levam ao questionamento da suposta homogeneidade que se poderia


pressupor.
Não podemos esquecer que trabalhar tal relação dessa forma retoma a

definição de cultura enquanto “modo de vida” de determinada população,

comunidade ou estrato social, como afirma Hall (2016), tratá-las dessa forma é
entrar naquilo que há de mais atual no debate sobre a cultura,

Nos últimos anos, porém, a palavra “cultura passou a ser utilizada para se referir a tudo o que seja

característico sobre o “modo de vida” de um povo, de uma comunidade, de uma nação ou de um

grupo social – o que veio a ser conhecido como definição “antropológica”. Por outro lado, a palavra

também passou a ser utilizada para descrever os “valores compartilhados” de um grupo ou de uma

sociedade – o que de certo modo se assemelha à definição antropológica, mas com uma ênfase

sociológica maior”. (Hall, 2016, p.19)

Com isso, devemos ter claro que, a partir de agora, sempre que nos

referirmos à cultura, estaremos falando da conjunção entre “modo de vida” e

“valores compartilhados”, pois são eles que nos permitem pluralizar a abordagem

sobre a cultura e que abrem espaço para um trabalho mais amplo das relações
com a linguagem.

TEMA 1 – O CIRCUITO DA CULTURA

O advento da modernidade, com o crescimento das cidades, a revolução

industrial e o desenvolvimento econômico, gerou impactos no modo de vida da


sociedade. Nesse período, meados do século XIX, houve também o início de uma
grande expansão do sistema cultural.

Estamos chamando de sistema cultural todo um aparato de circulação da

cultura, de valores sociais, que foram fundamentais para o desenvolvimento do

consumo da cultura. Trata-se de jornais, revistas, museus, romances literários,

enfim, todo um aparato de transmissão e consumo que deslocou as culturas


tradicionais, integrando-as – não sem um processo de dominação – aos valores
da civilização.

O século XX foi ainda mais longe com o desenvolvimento do cinema,

televisão, rádio e, atualmente, das redes sociais, ampliando o sistema de

produção e consumo cultural, fazendo com que determinados valores circulem

de maneira irrestrita por todo o globo. Estamos aqui no cerne daquilo que

Adorno (1994) chamava de Indústria Cultural. Vivemos, com isso, em meio a todo

um circuito da cultura massificado, produzindo seus efeitos e transformando


relações.

A Indústria Cultural é a articulação do processo industrial de produção, com

seus produtos homogeneizados, voltados para um público amplo, com o

processo cultural de produção e circulação de valores sociais. Ou seja, o que a

Indústria Cultural vende é o que podemos chamar de “Cultura de Massa”, esta


que está embebida de valores sociais da classe dominante.

A tese de Adorno (1994) de que a Indústria Cultural seria responsável pela

alienação dos sujeitos sociais se sustenta apenas até determinado ponto, já que

o autor não leva em conta os processos culturais que mediam o consumo e

apropriação desses valores pelas pessoas. Além disso, ele desconsidera que há

produções culturais que se situam à margem do sistema. Nesse aspecto,

precisamos ampliar essa percepção para entendermos que onde há poder, há

resistência, e que os sujeitos se apropriam dessa cultura de maneiras diferentes.

Esse é ponto que Du Gay et al. (1997) vão abordar, eles nos falam de um circuito
cultural, conforme a figura a seguir:

Figura 1 – O Circuito da Cultura


Fonte: Du Gay et al., 1997.

A articulação desses cinco elementos da cultura nos coloca no cerne da

questão da representação, já que ela é o meio privilegiado de produção e

circulação de valores sociais, tendo como base a linguagem. Nesse aspecto, entra

um novo ponto na definição da cultura enquanto um modo de vida que se

sustenta em “significados compartilhados” por meio da linguagem, já que ela é

“o meio privilegiado pelo qual ‘damos sentido’ às coisas, onde o significado é

produzido e intercambiado. Significados só podem ser compartilhados pelo


acesso comum à linguagem” (Hall, 2016, p. 17).

Nessa interpretação, os objetos culturais perdem a centralidade dada por

Adorno (1994) e ganha destaque a representação, já que, ao articular identidade,

regulação, consumo e produção, ela coloca como questão o sujeito e os grupos

sociais, e o uso que estes fazem desses produtos. Tais usos que são de ordem

prática, de apropriação, tendo a prática significante (sentido) da linguagem como

seu fundamento. É por compartilharem sentidos sobre o mundo que os sujeitos


podem dizer que pertencem a uma mesma cultura.
Basicamente, a cultura diz respeito à produção e ao intercâmbio de sentidos – o “compartilhamento

de significados” – entre os membros de um grupo ou sociedade. Afirmar que dois indivíduos

pertencem à mesma cultura equivale a dizer que eles interpretam o mundo e maneira semelhante e

podem expressar seus pensamentos e sentimentos de forma que um compreenda o outro. (Hall, 2016,

p. 20)

Estamos dizendo que a prática da linguagem, a produção de sentido, é o que

permite que construamos nossas identidades, nossa noção de pertencimento a

determinado grupo, cidade, país etc. Ela que sustenta as histórias que contamos,

a forma como lemos e interpretamos o mundo e como situamos os sujeitos na


sociedade.

O sentido é sempre um diálogo, isto é, uma forma de travar contato com

outro e, por isso, passível de ser parcialmente compreendido, mas sustentado em

uma troca desigual. Esse elemento serve, por exemplo, para pensarmos as

concepções que sustentam algumas práticas da sociedade. Quando perguntamos

“qual o papel da mulher na sociedade?” estamos fazendo uma pergunta cultural

que aponta para os sentidos do que é ser “mulher” e “seu lugar na sociedade”.

Tal resposta está embebida em um sistema de valores que situa relações de poder
e discrimina os sujeitos sociais.

Essas relações sociais, baseadas na desigualdade, são constitutivas de nosso

modo de vida. Elas circulam em representações midiáticas, artísticas, discursos

políticos e produzem identificações (identidades), fazendo com que os sujeitos

se vejam, ou não, na sociedade. Essa circulação é fundamentalmente uma

circulação de linguagem, que é o elemento fundamental na “captura” e


construção dessas identificações.

TEMA 2 – CULTURA E REPRESENTAÇÃO


Ao falarmos da cultura enquanto compartilhamento de sentidos,

significados, entramos no âmbito da representação. Falar em representação é

falar em algo que se coloca no lugar de outra coisa, por exemplo, uma palavra

que designa um objeto, um sentimento ou descreve um acontecimento. Dessa

forma, falar em representação é falar de todo o sistema simbólico que regula as

relações sociais e, ao mesmo tempo, produz o laço social. Como afirma Hall (2016,

p. 20), “os significados culturais não estão somente na nossa cabeça – eles

organizam e regulam práticas sociais, influenciam nossa conduta e


consequentemente geram efeitos reais e práticos”.

Há, com isso, todo um processo de compartilhamento social do sistema


simbólico que (re)produz valores sociais e que são inculcados historicamente em

nossa mente. É preciso ressaltar o fato de a cultura ser uma produção

eminentemente humana e que descola os humanos da natureza, por isso o

funcionamento da cultura não é marcado biologicamente, mas funciona a partir

de sua naturalização, isto é, um certo funcionamento inconsciente, no qual nossos

julgamentos estão incluídos, mas não necessariamente passam por um crivo


racional do indivíduo.

Nesse ponto se situa o fato de que todos os eventos, objetos e pessoas

possuem suas representações sociais, ou seja, estão marcadas por um certo


circuito que faz funcionar uma série de expectativas em relação ao sujeito social.

Em parte, nós damos significados a objetos, pessoas e eventos por meio de paradigmas de

interpretação que levamos a eles. Em parte damos sentidos às coisas pelo modo como as utilizamos

ou as integramos em nossas práticas cotidianas. É o uso que fazemos de uma pilha de tijolos com

argamassa que faz disso uma “casa”; e o que sentimos, pensamos ou dizemos a respeito dessa “casa”

um “lar”. Em outra parte ainda, nós concedemos sentido às coisas pela maneira como

as representamos – as palavras que usamos para nos referir a elas, as histórias que narramos a seu
respeito, as imagens que delas criamos, as emoções que associamos a elas, as maneiras como a

classificamos e a conceituamos, enfim, os valores que nelas embutimos. (Hall, 2016, p. 21)

O processo descrito por Hall nos mostra como essas representações são

deslocadas de uma função inicial a partir de seus usos e associações. No caso em

questão ele fala da passagem da “casa” para o “lar”, ambas que designam o

mesmo objeto no mundo, mas que representam para os sujeitos diferentes


relações com aquilo sobre o que se fala.

Esse é um fenômeno fundamental da representação e de sua relação com a

cultura, a prática simbólica – que podemos usar como sinônimo de representação

– situa os objetos para além deles mesmos, ou seja, não há o objeto em si, sua

existência é condicionada a sua função dentro do sistema simbólico da cultura,

eles valem por essas relações. Estas que permitem a construção de diferentes

sistemas de interpretação da realidade e que são responsáveis pela manutenção


dos laços sociais, bem como pelos conflitos culturais.

A representação, enquanto sons, gestos, expressões, roupas, imagens são

parte do nosso cotidiano, está entremeada de signos que expressam os

significados e os valores sociais com os quais nos associamos, eles “funcionam

como símbolos que representam ou conferem sentido (isto é, simbolizam) às


ideias que desejamos transmitir” (Hall, 2016, p. 24).

Ao abordamos a cultura, dessa forma estamos abrindo ainda mais o campo

de estudos, já que agora olhamos para a heterogeneidade da cultura dentro de

um ambiente social, e não mais para os elementos homogêneos. Pensemos em

uma cidade como São Paulo, repleta de tribos urbanas,

como punks, hipsters, empreendedores, religiosos etc. Cada um desses grupos

compartilha determinados valores entre si, estes estão situados em um espectro


mais amplo, ou seja, os valores do Estado, da cidadania e dos direitos e deveres.
Porém, ao mesmo tempo, compartilham diferentes valores entre si, em seus

modos de vestir, de interpretar o mundo, de se apresentarem socialmente. Essas

diferentes formas significam diferentes práticas de vida, pois elas se materializam

em seus comportamentos e na forma como eles se apresentam socialmente. São,

por isso, culturas diferentes, já que produzem e representam sentidos sociais


diferentes sobre a vida e a sociedade.

Tal abordagem da cultura, enquanto representação, é uma virada

fundamental nas ciências sociais e traz para o centro do debate a questão da

linguagem. É exatamente por esse motivo que ela é de relevância para a

psicanálise, já que os processos simbólicos são fundamentais na constituição do


sujeito, sendo o campo de compartilhamento de valores e da forma como os

sujeitos enxergam a si mesmos, a cultura, enquanto modo de vida, ganha

elementos mais amplos, já que passa a ser definida em referência à


representação.

[...] a cultura é definida como um processo original e igualmente constitutivo, tão fundamental quanto

a base econômica ou material para a configuração de sujeitos sociais e acontecimentos históricos – e

não uma mera reflexão sobre a realidade depois do acontecimento. (Hall, 2016, p. 26)

Olhar para a cultura a partir da representação é uma virada fundamental para

seu estudo, já que ela traz de volta a dimensão do sujeito, dos usos que ele faz

dos diferentes sentidos produzidos e compartilhados socialmente e intervém na

disputa por novos significados sociais para determinados grupos e sujeitos, até
então apartados, ou não reconhecidos, pela vida comum da sociedade.

A linguagem se torna, portanto, o paradigma central de avaliação e estudo

da cultura, já que, agora, ela vai buscar compreender o sistema simbólico em seu

todo, tendo como fundamento o estudo da vida das representações sociais no


seio da sociedade.
TEMA 3 – SENTIDO E LINGUAGEM

Ao adentrarmos na discussão sobre a cultura como representação,

chegamos na consideração do papel central que a linguagem tem para a

produção dos vínculos sociais e os nexos de pertencimento a uma cultura. Essa

afirmação nos coloca no cerne do paradigma da semiótica – ciência que estuda


a vida dos signos na sociedade.

O falarmos sobre sentido e linguagem estamos no campo da linguagem

enquanto uma prática, como já ressaltamos, e, por isso, ela transborda a descrição

da língua somente. Quando falamos em língua nos limitamos ao sistema de

representação do mundo por meio das palavras – sejam faladas ou escritas –, já

quando falamos de linguagem ampliamos a questão para todos os objetos e


práticas que produzem sentido no mundo social.

Todavia, o funcionamento da linguagem é similar ao da língua, ambas são


sistemas de representação, isto é,

podemos afirmar que essas práticas funcionam ‘como se fossem línguas’ não porque elas são escritas

ou faladas (elas não são), mas sim porque todas se utilizam de algum componente para representar

ou dar sentido àquilo que queremos dizer e para expressar ou transmitir um pensamento, um conceito,

uma ideia, um sentimento. (Hall, 2016, p.23-24)

O sentido e a linguagem, com isso, ligam-se à cultura por meio da

representação. Esta é construída no compartilhamento de signos e de sistemas

de interpretação da realidade pelos membros de uma mesma cultura. Além disso,

é ela, ao ser a materialização do sistema simbólico como um todo, que possibilita

que nos reconheçamos enquanto cidadãos e pertencentes a determinadas

comunidades, ou seja, ela é o processo pelo qual a identidade dos sujeitos é


produzida.
Pensemos, por exemplo, na representação da cruz para os cristãos. Enquanto

objeto material ela é apenas a disposição perpendicular de duas tábuas de

madeira. Mas quando inserida no contexto da fé, ela se torna outra coisa, ela

passa a representar a crucificação, a salvação da humanidade pelo sacrifício de

Jesus etc. Ou seja, um objeto é investido de significado e passa a simbolizar toda

uma história. Essa simbolização gera reconhecimento dos laços de pertencimento

à comunidade cristã, ela é um dos elementos que produz o laço entre esses
sujeitos.

A produção de sentido por meio das práticas de linguagem, o que estamos

chamando de representação, é o que une os conceitos, a linguagem e o mundo


dos objetos (físicos ou não). Existem, com isso, dois processos de representação
que estão articulados. Como afirma Hall (2016),

Primeiro, há o “sistema” pelo qual toda ordem de objetos, sujeitos e acontecimentos é correlacionada

a um conjunto de conceitos ou representações mentais que nós carregamos. Sem eles jamais

conseguiríamos interpretar o mundo de maneira inteligível. (p. 34)

Esse primeiro sistema se dá por um processo de similaridade, quando vemos

ou presenciamos um acontecimento, ou descrevemos um sentimento, todo um

sistema de sentidos é posto em circulação e faz com que identifiquemos o lugar

que esse elemento ocupa. Pensemos, por exemplo, em conceitos abstratos como

a “amizade”, ou a “guerra”, elas não são coisas materiais como “mesas” ou

“telefones”, mas podemos produzir sentidos sobre essas práticas a partir de

conceitos formados em nossa mente – lembre-se, tais conceitos não são

individuais, mas produzidos pelo sistema cultural que nós incorporamos em


nossa vida.

Esse sistema de representação se organiza a partir da relação com a cultura,


ela que dispõe as maneiras de agrupar, organizar e classificar os acontecimentos,
os indivíduos e estabelece relações entre eles. O ponto que devemos destacar é

que não se trata de uma coleção aleatória de conceitos, mas que todo o processo

de organização deles que está baseado nas relações que estabelecemos entre
nós e os fenômenos do mundo.

O sentido funciona, pois depende da relação entre as coisas do mundo –

sejam elas reais, ficcionais, pessoas, objetos e acontecimentos – e o mapa

conceitual determinado pela cultura que carregamos em nós. Esse é o motivo

pelo qual conseguimos estabelecer comunicação, gerar entendimentos, pois os

sujeitos pertencentes a uma mesma cultura carregam consigo praticamente os

mesmos mapas conceituais em si. “Uma vez que nós julgamos o mundo de forma
de maneira relativamente similar, podemos construir uma cultura de sentidos

compartilhadas e, então, criar um mundo social que habitamos juntos” (Hall,


2016, p. 36).

Mas carregar apenas os mapas conceituais em nossa mente não é o

suficiente. Uma cultura é feita de compartilhamento de sentidos, daí a

importância do segundo sistema, que é a “linguagem”, ou seja, a prática social de

troca de signos que gera o (re)conhecimento dos sujeitos entre si e possibilita a


materialização dos sentidos nas representações.

A linguagem é um bem comum, todos nós a possuímos, ela é, como diz

Saussure (1916), “um tesouro social depositado na mente dos falantes”. Isso

significa que temos uma dupla articulação, as representações mentais que temos

em nossa mente somente ganham vida na sociedade, ou seja, no

compartilhamento delas no mundo. Com isso, não há linguagem individual, ela é

sempre pública, no sentido de que os sentidos não são determinados

individualmente, mas preexistem a nós mesmos, fazendo com que, ao

representarmos o mundo, ele sempre está já relacionado a códigos culturais e


sentidos que estão para além da vontade individual.
É por esse motivo que não há existência do sujeito fora da cultura, já que a

realidade do pensamento só é possível porque há um sistema de

correspondências na linguagem que permite que os sentidos sejam sempre

compartilhados, mesmo quando discordamos há um sistema comum que nos

coloca nessa posição, já que para discordamos é preciso que todos estejamos
imersos na linguagem.

TEMA 4 – OS CÓDIGOS CULTURAIS

O tratamento da linguagem enquanto sistema de representação desloca

uma certa concepção referencialista da linguagem. Isso significa que não estamos
mais lidando com a relação referencial entre linguagem e coisa, mas com

processos de semelhança e articulação de sentidos que têm o sujeito e sua


relação com o mundo como um dos elementos fundamentais.

A interpretação do mundo passa, com isso, necessariamente pela linguagem

compartilhada entre as culturas. Ela estabelece padrões de interpretação para o

mundo, isso ocorre pelo processo de introjeção do sistema simbólico pelos

sujeitos, fazendo com que surja em meio ao processo as identidades culturais e


o sentimento de pertencimento a determinado grupo social.

Esse deslocamento entre coisa e representação coloca a noção de sentido


como algo mutável, ou seja, o que estabelece determinado padrão de

interpretação, ou a nomeação de um acontecimento no mundo se dá por um

processo de produção social do sentido. A relação entre signo e referente se

torna menos clara, fazendo com que um mesmo acontecimento possa ser

nomeado de maneiras diferentes. Um exemplo desse processo está na forma

como os jornais nomeiam as lutas por terra do Movimento dos Trabalhadores


Sem-Terra (MST). O grupo tem como prática a ocupação de fazendas
improdutivas, “ocupação” é o termo que o próprio grupo usa para designar sua
ação, enquanto os jornais os nomeiam como “invasão”.

Temos, nesse caso, instalado uma disputa de sentido em relação a uma

mesma ação que pode ser nomeada de maneiras positivas ou negativas. Isso

afeta a percepção pública sobre o evento, seus sujeitos, tendo por base diferentes
códigos culturais que sustentam essas percepções.

Os códigos culturais, portanto, são formas de estabilizar os sentidos do

mundo, já que se levarmos ao extremo esse deslizamento entre signo e referente,

a comunicação entre os sujeitos seria impossibilitada. O sentido desses códigos


não está no objeto, na pessoa, no acontecimento, ou mesmo na palavra.

Somos nós quem fixamos o sentido tão fortemente que, depois de um tempo, ele parece natural e

inevitável. O sentido é construído pelo sistema de representação. Ele é constituído e fixado pelo código,

que estabelece a correlação entre nosso sistema conceitual e nossa linguagem, de modo que, a cada

vez que pensamos em uma árvore, o código nos diz para usar palavra em português ÁRVORE, ou a

palavra inglesa TREE. (Hall, 2016, p. 41-42)

Podemos definir os códigos culturais como o universo simbólico

compartilhado pelas comunidades que estabilizam as relações entre o elemento

externo da linguagem, ou seja, as representações, a língua e os mapas conceituais


que incorporamos em nós no processo de transmissão da cultura.

É preciso levar em conta que esses mapas conceituais não são determinados

biologicamente, eles são sistemas de convenções que aprendemos em nosso

desenvolvimento, em especial no contato com a linguagem. Esse processo de

significação também não se dá por decreto, ele é resultado de um acordo tácito

entre os membros da cultura. No seu processo de socialização, as crianças, por

exemplo, internalizam, inconscientemente, esses códigos, que vão permitir a


expressão das ideias por meio das representações.
O código está, com isso, intimamente relacionado com a língua. Esta é um

sistema de signos arbitrários, isto é, a razão de se referirem a determinada coisa

não possui uma relação necessária. A princípio, qualquer relação de sons e letras

pode se referir a determinada coisa. O que conta nos códigos culturais é a relação
que sons, letras, conceitos estabelecem entre si.

Dessa forma, podemos dizer que a língua tem íntima relação com tais

códigos e que todas as línguas expressam valores de diferentes formas,

relacionadas com os códigos culturais aos quais pertencem. Um exemplo desse

processo pode ser visto na linguagem dos esquimós. Enquanto em nossa língua

temos três palavras para fenômenos da água em estado sólido (gelo, neve e
granizo), eles, por viverem nesse clima, desenvolveram um vocabulário que é
capaz de diferenciar múltiplos aspectos de tal estado.

Figura 2 – Termos inuítes para neve e gelo


Fonte: Hall, 2016.

Percebemos com isso que a relação entre língua e cultura se dá por meio

dos códigos compartilhados pelas comunidades humanas. Estes são os

responsáveis por todo o sistema simbólico que produz sentido e se materializa


nas práticas representacionais da linguagem.

TEMA 5 – TEORIAS DA REPRESENTAÇÃO

Em termos gerais, podemos dizer que existem três diferentes enfoques para

explicar como a representação do sentido funciona por meio da linguagem. Cada

uma delas visa responder às seguintes perguntas: “De onde vêm os significados?”;

“Como podemos saber dizer o significado verdadeiro de uma palavra ou


imagem?”.

As diferentes respostas a essas questões apontam para essas diferentes

teorias, podemos chamar a primeira de abordagem reflexiva, a segunda de


abordagem intencional e a terceira de abordagem construtivista.

Na perspectiva reflexiva, o sentido é pensado como repousado, ou

pertencente ao objeto, pessoa ou evento. A linguagem funcionaria, dessa forma,

como um reflexo do sentido verdadeiro que já estaria dado no mundo. Ela

repousa sobre a noção grega de mimesis, ou imitação, já que pensa a linguagem


enquanto uma imitação da verdade do mundo real.

Tal teoria funciona muito bem na abordagem de imagens realistas, por

exemplo, já que nossos mapas conceituais conseguem reconhecer em um quadro

a imagem de uma cabra, por exemplo, contudo ela não aborda o fato de que tal

imagem é na verdade um signo e que suas relações com mundo real são apenas

uma das quais ela estabelece na produção de sentido, já que ela também se
articula com os outros signos visuais apresentados na imagem. Hall (2016) vai
utilizar a rosa como exemplo para tal funcionamento,

É claro, podemos usar a palavra rosa para fazer referência à planta real e verdadeira crescendo no

jardim, como dissemos antes. Mas isso funciona porque eu conheço o código que liga o conceito a

uma palavra ou imagem particular. Eu não posso pensar, falar ou desenhar com uma rosa verdadeira.

(p. 47)

Esse caso nos coloca o fato de que a diferença de códigos culturais vai fazer

com que nomeemos os objetos da realidade de formas diferentes, ou seja, cada


cultura as olha de uma determinada forma, estando ambas corretas.

A segunda corrente, chamada intencional, vai tentar resolver esse problema

afirmando que o mais importante na representação dos sentidos é a intenção do

falante. As palavras vão significar aquilo que o autor pretende que elas
signifiquem.

Essa teoria funciona até determinado ponto, obviamente quando

designamos ou falamos sobre um evento temos uma intenção em dizê-lo e, ao

mesmo tempo, de sermos compreendidos em nossas intenções. Contudo, o

funcionamento do sentido na cultura extrapola a intenção individual. A língua,

por exemplo, está para além dos significados privados que damos aos objetos,

ela é pública, fazendo com que os sentidos preexistam àquilo que falamos. Ou

seja, a linguagem é sempre social, os sentidos não são produzidos de maneira


adâmica pelos locutores individuais.

A linguagem é um sistema social por completo. Isso significa que nossos pensamentos privados

precisam negociar com todos os sentidos das palavras ou imagens guardadas na linguagem que o uso

do nosso sistema inevitavelmente desencadeará. (Hall, 2016, p. 48)


Por fim, e esta abordagem esteve no centro de nossa discussão em nossas

etapas, temos a abordagem construtivista. Ela vai afirmar que nem as coisas, nem

as intenções individuais podem fixar os significados das coisas no mundo. O

mundo não possui significado em si mesmo, somos nós que construímos e

compartilhamos sentidos, criando laços e colocando o sistema simbólico em


funcionamento.

São os atores sociais que usam os sistemas conceituais, seja a língua ou outro

sistema de representação, fazendo com que ele seja compreensível e, com isso,

possa ser comunicado com os outros. Olhada por esse aspecto, a linguagem é

vista como um sistema simbólico, no qual os diferentes signos se relacionam com


os outros na produção do sentido. E nesse processo de construção coletiva dos
sentidos o laço social se realiza.

Olhar para a representação, a cultura e a linguagem, dessa forma, é

fundamental, pois não há produção de significado para o mundo de forma

isolada, ela é sempre assujeitada pelo sistema da língua e da cultura que preexiste

a nós, mas é ela também que possibilita a mudança – sempre coletiva – dos

significados sociais. É por meio desse sistema que construímos laços, que nos
aproximamos uns dos outros, mas que também se estabelecem conflitos e

antagonismos. Sendo esse aspecto fundamental para a compreensão do sujeito,


seus conflitos e sua relação com o outro.

NA PRÁTICA

Abra o jornal ou algum portal de notícias de alcance nacional. Nesse site

busque as notícias relacionadas às favelas. Olhe para o texto e para as imagens

presentes. Agora, responda: quais são as representações que os jornais


constroem sobre as favelas? Como elas são vistas? Quais são os sujeitos passíveis
de serem encontrados em tais ambientes urbanos? Ao fazer tal análise leve em
conta que os jornais são um dos meios de circulação das representações e que,
com isso, constroem uma percepção pública sobre a vida na cidade.

FINALIZANDO

Nesta unidade nos dedicamos a olhar mais de perto a relação entre

linguagem e cultura, tendo como eixo explicativo a noção de representação.

Vimos que a representação é um elemento fundamental na compreensão do


processo de produção de significado para o mundo social.

Além disso, tal processo é a base para o entendimento da cultura como

compartilhamento de significados, ou seja, uma forma de ler, perceber e

interpretar o mundo a partir de determinados signos socialmente


compartilhados.

A linguagem deve ser vista enquanto uma prática social, que produz e altera

o sentido das coisas do mundo, produz laço e possibilita a comunicação. Além

disso, ela é um elemento social, “um tesouro social depositado na mente dos

falantes”, que se inserem num mundo de sentidos que já existam antes deles. Tal

prática da linguagem está no cerne do sistema simbólico que estrutura a nossa


percepção do mundo e nossas relações com os outros.

Tal sistema se sustenta nos códigos culturais atrelados à nossa língua e as

representações que construímos do mundo. Daí a importância de olharmos para

uma teoria da representação construtivista, que coloca as relações sociais como

fundamentais na produção de significado para o mundo, afastando assim


hipóteses da linguagem enquanto imitação ou pura intencionalidade do sujeito.

CULTURA E LINGUAGEM
AULA 3
Prof. Cícero Costa Villela

CONVERSA INICIAL

O que veio primeiro, a cultura ou a linguagem? Tal pergunta permeia todo o

pensamento filosófico desde a Antiguidade. Com esta, outras perguntas também

surgem: como a língua representa a realidade? O que é a língua? Como surgiu a


capacidade humana da linguagem?

Até aqui traçamos esboços de respostas sobre essas perguntas, tomando a

cultura como foco e a representação como aquela que tem por papel ligar cultura,

língua à realidade. Nesta etapa, vamos passar para o outro lado da questão e

abordar as concepções de língua e linguagem que abriram a questão para a


cultura e que deslocaram uma concepção naturalista do signo linguístico.
Teremos como enfoque dois autores fundamentais para o pensamento

contemporâneo e que se situam nessa interface com questões relativas ao sujeito

e à sociedade e, por consequência, à cultura. Abordaremos a concepção de língua

de Ferdinand de Saussure, pai da linguística moderna, responsável pelo estatuto

científico da linguística e pensador fundamental do campo do pensamento


psicanalítico sobre a linguagem.

Além dele, veremos as relações entre língua e poder por meio da perspectiva

discursiva de Michel Foucault. Tal filósofo foi o responsável por deslocar as

noções estruturais do signo e trazer para cena a questão do sujeito, do poder e


do discurso.

Nosso objetivo é mapear os principais conceitos desses pensadores para nos

municiar de perspectivas sólidas sobre os estudos da linguagem que se abrem


para a discussão das relações entre sujeito, cultura e realidade.

TEMA 1 – SIGNO E REALIDADE

O fato de Ferdinand de Saussure ser considerado o pai da linguística

moderna não significa que a linguagem tenha se tornado objeto de reflexão

apenas da parte dele. Pelo contrário, os filósofos da Antiguidade clássica, da

Idade Média e do princípio da modernidade também se debruçaram sobre a


relação entre língua e mundo, sobre a origem da língua e sobre como esse

sistema funciona. A gramática, a retórica, a poética e a lógica sempre estiveram

presentes nessas reflexões, contudo, sempre atreladas a concepções metafísicas


sobre o ser humano.

Com isso, se pode dizer que a reflexão sobre a linguagem estava

subordinada à discussão sobre a consciência do “ser”, colocando o papel


do logos, das ideias da mente dos falantes, como central. Nesse primeiro tema,
vamos fazer um breve esboço histórico sobre as reflexões acerca da linguagem

em diferentes momentos históricos para, com isso, situarmos o debate e as


elaborações de Saussure.

No século I a.C., os estoicos elaboraram uma teoria da linguagem. Segundo


eles:

A razão recebe as ideias mediante as sensações, a memória e a experiência. Daí nascem os conceitos.

A representação, sendo intelecção pela qual se reconhece a verdade das coisas, permite que haja

assentimento, compreensão e pensamento. O pensamento é enunciativo, exprime com palavras o

material recebido da representação, que são as proposições completas em si, podendo ser verdadeiras

ou falsas porque dizem algo sobre o que foi expresso. No processo de significação, há três elementos:

o significado, o signo e a coisa, que pode ser uma entidade física, uma ação, um acontecimento.

(Araújo, 2004. p. 19-20)

Podemos perceber que essas ideias se relacionam com as questões de

representação, já que a língua está sempre atrelada ao mundo, isto é, à “coisa”,

sendo que as palavras e as expressões proferidas necessitam ser verificadas de

sua realidade por meio do apontamento da coisa no mundo. É o que podemos

chamar de uma teoria veritativa, ou seja, a língua está ligada às condições de

verdade de suas expressões que são atestadas empiricamente por meio do olhar,
do sentimento e da elaboração. Só há significados porque há fatos significativos.

Essa forma de tratar a língua perdura até o século XIX, e ainda hoje tem seus

defensores. Entretanto, ela já aponta para a existência do signo. Por exemplo,

quando falamos o nome “João”, para os estoicos o signo é a palavra da forma

como está aqui, a significação é o processo mental que se estabelece quando se


diz ou ouve a palavra e a coisa é como ela se apresenta no mundo.

Um avanço sobre esse debate acontece com Santo Agostinho (354-430). Na


obra O Mestre, ele vai considerar que falar é exteriorizar a vontade por meio da
articulação do som. A linguagem serve, portanto, para ensinar ou para recordar,
para a “fala interior” que é o pensamento aderido à memória.

A grande novidade em Agostinho é sua concepção de que os signos são

formas de relação, em que as palavras seriam sinais verbais que remeteriam a

outros sinais. “As orações se compõem de nomes, e a presença do verbo assegura

que se trata de uma proposição. Enquanto a palavra resulta da verbalização, isto

é, o que se entende quando alguém fala ou escreve algo, o nome relaciona-se ao


que o espírito compreende ou conhece” (Araújo, 2004, p. 21).

Tal concepção ainda permanece atrelada à noção de referência, isto é, à

“coisa”, já que para haver significado é preciso que a palavra aponte para coisas

do mundo. O conhecimento verdadeiro seria somente aquele em que as palavras

poderiam apontar para elementos realmente existentes na realidade. Dessa

forma, o aprendizado da língua não se dá por meio do aprendizado dos sons,

estes não tinham significado antes de apontarem para algo. O significado das
palavras só será aprendido ao sabermos ao que elas se referem.

Essa tradição de pensamento produziu ótimas análises da linguagem, mas

sempre atreladas à questão da realidade. Não há aqui uma autonomia da língua,

ela ainda está subordinada a uma relação entre sujeito e coisa mediada por uma

certa universalidade de que, ao se apontar para uma coisa no mundo, todos as

reconhecem como a mesma. Ou seja, a noção de que as culturas afetam a


percepção e a produção da língua ainda não estão presentes nessas reflexões.

O avanço da modernidade faz com que algumas concepções de língua

avancem. A noção do cogito cartesiano abre a possibilidade de separação entre

sujeito e objeto, radicalizando a separação entre mundo e língua, ou entre ideia


e realidade.
Foi com a gramática de Port-Royal (1660) que tal concepção tomou forma.

Para esse grupo de pensadores, há de um lado as ideias e de outro lado o mundo,

a realidade a ser captada por essas ideias. A linguagem é o elemento que media

esse contato, interferindo na relação entre pensamento e ser das coisas. Nesse

caso, a linguagem é um elemento útil, mas imperfeito, já que não consegue

captar plenamente o significado das coisas, isto é, não atinge a essência do


mundo ao se falar sobre ele.

Há, contudo, a reflexão de que a língua é um sistema de signos, fato que será
importante para o pensamento contemporâneo.

Para Port-Royal, a língua é um sistema de signos. As palavras ou expressões são invólucros das ideias.

Apenas as ideias ligam-se aos objetos. O nível mais elaborado é o nível lógico das ideias, a língua

exterioriza essa lógica, que é o fundo comum por detrás da diversidade linguística, daí a gramática

fundir-se com a lógica. As palavras são sons distintos e articulados que se transformam em signos,

encarregados de traduzir o que se passa no pensamento, isto é, as operações lógicas, tais como

conceber, julgar, raciocinar. As palavras apenas marcam essas operações. (Araújo, 2004, p. 24)

O que podemos perceber nessa forma de pensar a língua é um

deslocamento das coisas para o sujeito. A língua não é mais uma forma de captar

a realidade das coisas, mas a forma como o sujeito expressa, por meio de seu

pensamento, o seu raciocínio sobre o mundo. A relação entre língua e referência


é dependente da intenção do sujeito e não mais do conhecimento do mundo.

Tal forma de enxergar a língua subsiste ainda em concepções centradas no

indivíduo, no qual a língua é uma forma de julgar a realidade do mundo, de

produzir juízos, colocando o indivíduo como o criador supremo da linguagem


que, com base em sua experiência individual expressa o significado do mundo.

Existem ainda outros pensadores que trazem questões relevantes sobre a


linguagem, como Hobbes e Locke, mas não abordaremos suas concepções, pois
elas também estão articuladas com a base das que já vimos até aqui. Se trata de

duas formas, uma eminentemente empírica, na qual o significado é produzido do

mundo exterior, e outra racionalista, na qual é a elaboração do sujeito sobre o


mundo que cria a realidade.

Essas duas formas de ver a língua caem ao adentrarmos no pensamento de

Saussure, já que, para esse linguista, ao se elaborar a ciência da língua a questão


da referência do signo se torna menos importante. É o que veremos a seguir.

TEMA 2 – SAUSSURE E SIGNO LINGUÍSTICO

Saussure é por muitos considerado o pai da linguística moderna, a ciência

que estuda a língua. Seu projeto de pesquisa, publicado com base em notas de

seus alunos no Curso de Linguística Geral, visava criar um campo autônomo de

estudo sobre a língua e a linguagem deslocado das questões filosóficas e


gramaticais que o precederam.

Essa perspectiva se afastava da gramática à medida que o estudo da língua

não estava voltado para o uso normativo, regras do bem dizer, ou uso correto da

língua; seu projeto era estudar a língua no seio do sistema social. Pelo lado

filosófico, o pensador retira as discussões sobre o ser e a relação entre língua e

coisa da reflexão, tomando a língua enquanto um sistema autônomo e que


poderia ser estudada por si mesma.

Apesar de ter como foco principal de estudo a língua, Saussure abre espaço

para o estudo da linguagem de forma geral, o que ele chama de Semiologia, ou


o estudo da vida dos signos na sociedade.

Pode-se conceber uma ciência que estuda a vida dos signos no seio da vida social; ela formaria uma

parte da psicologia social, e por conseguinte da psicologia geral; nós a chamaremos de semiologia (do

grego semeion, “signo”). Ela nos diria em que consistem os signos, que leis os regem. Já que ela ainda
não existe, não se pode dizer o que ela será; mas ela tem o direito à existência, seu lugar está

previamente determinado. A linguística é apenas uma parte dessa ciência geral; as leis que a semiologia

descobrir serão aplicáveis à linguística, e esta se encontrará assim ligada a um campo bem definido no

conjunto dos fatos humanos. (Saussure, 1975, p. 33, grifos do autor)

Mas como Saussure cria essa ciência? O primeiro ponto, que já mostramos,

é o entendimento de que o estudo da língua é parte da Semiologia e que estuda

os sistemas de signos na sociedade. A ideia de signo como algo que se coloca no

lugar de alguma coisa não é nova, como pudemos ver anteriormente, mas na

linguística, ao menos na saussuriana, ele perde a relação com a coisa, passando

a ter outro funcionamento descritivo. Pensar as linguagens dessa forma abre


espaço para o estudo das culturas.

O gesto que possibilita tal autonomia do estudo da língua é a separação

entre linguagem, língua e fala. Já vimos a definição de linguagem, como o sistema


de signos, mas o que a diferencia da língua? Vamos ao próprio autor:

Mas o que é a língua? Para nós ela não se confunde com a linguagem: ela é apenas uma parte

determinada da linguagem, essencial, é verdade. É ao mesmo tempo um produto social da faculdade

da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social, para permitir o

exercício dessa faculdade entre os indivíduos. Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme a

heterogênea, situada em vários campos; ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, pertence ao

domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria dos fatos

humanos, porque não se sabe como depreender a sua unidade. A língua, ao contrário, é um todo em

si e um princípio de classificação. Logo que lhe damos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem,

introduzimos uma ordem natural em um conjunto que não se presta a nenhuma outra classificação.

(Saussure, 1975, p. 25)

Podemos depreender duas questões. A linguagem é formada


de signos, assim como a língua. Tais signos fazem parte de convenções adotadas
pelo corpo social, contudo, também tem seus aspectos individuais. A língua é

vista como um princípio de classificação, isto é, um sistema que funciona não

para designar aspectos do mundo real apenas, mas que funciona com autonomia
em relação à coisas do mundo.

Com isso, temos dois aspectos. A língua enquanto princípio de classificação

em si, que tem como referência o social, isto é, ela está para além das vontades

individuais, e a fala, que se liga às realizações individuais do sistema da língua.

Dessa forma, o foco do estudo da linguística será a língua, pois essa é passível de

sistematização, para além dos usos individuais, já que estes apenas reproduzem
em ato o sistema linguístico ao qual pertencem.

Definimos assim a primeira dicotomia de Saussure, mas ainda há algo que

resta a ser dito. Falamos que a língua é composta por signos e, além disso,

dissemos que essa noção em linguística não é a mesma dos filósofos da

linguagem, já que há um gesto de exclusão feito pelo linguista; aqui o signo não
está mais colado à coisa, isto é, a língua não é um sistema de nomenclatura.

O signo, unidade fundamental para a linguística, é composto por duas faces,

ele une “um conceito e uma imagem acústica” (Saussure, 1975, p. 98). O conceito,

podemos definir como a imagem mental, que é produzida ao se falar um

determinado som, ou se escrever uma palavra; ele é também designado como

o significado. Essa noção está para além da coisa, já que, por exemplo, o

significado da letra “A” vai depender de onde ela se situa em uma fala, de modo

a ter significado de artigo definido ou marcador de feminino em determinados


substantivos.

A imagem-acústica, nós podemos associar à forma material com que o signo

aparece, seja ela por som ou escrita; é o que o autor chama de significante.
Retomando o exemplo anterior, a letra “A” não aponta para uma realidade
exterior, para uma coisa, mas para seu funcionamento em relação aos outros

elementos que se associam a ela no processo de produção do som ou da frase.

Podemos dizer, com isso, que o signo é um elemento fundamental da língua,


representado da seguinte forma (Figura 1).

Figura 1 – Signo linguístico

Fonte: elaborado com base


em Saussure, 1975.

Fica claro agora que o signo não aponta para uma relação externa à língua,

esta é composta pela articulação dos signos. A relação entre significado e


significante é eminentemente arbitrária, isto é, não há uma motivação exterior

que justifique que uma palavra se conecte a uma determinada ideia. “Assim, a

ideia de soeur (“irmã”, em francês) não está ligada por nenhuma relação interior

com a sequência de sons s-ö-r (escrita fonética) que lhe serve de significante; ele
poderia também ser representado por qualquer outra” (Saussure, 1975, p. 100).

Tanto ela é arbitrária que, ao falarmos sobre o que é soeur, a traduzimos para

o português “irmã”. Ou seja, a mesma realidade é designada por diferente signo,


sem que haja uma relação necessária entre imagem acústica e palavra; elas são o
que são, e esse é um postulado da linguística.

Dessa forma, Saussure abre o caminho para o estudo da língua por si só,

separando os fenômenos passíveis de estudo sistemático, como a língua, dos

usos cotidianos e comuns da fala. Ele entende que esse estudo não é histórico,

isto é, não se olha para a mudança histórica da língua, o que ele chama de

“diacronia”, mas para o estado da língua no presente, na forma como esses signos

se articulam no agora, é o que ele chama de “sincronia”. Olhar para a sincronia

partindo do fato de a língua ser um sistema de classificação em si mesmo


demanda que entendamos como funciona a língua.

TEMA 3 – LÍNGUA COMO SISTEMA DE SIGNOS E


NOÇÃO DE VALOR

Os signos não aparecem isolados na realidade, eles estão sempre articulados,

em palavras, frases, textos, sons. Por isso, é fundamental que compreendamos

como se constroem os sentidos das coisas, já que, nessa concepção, elas estão
apartadas da noção de “coisa” ou “referente”.

Em seu funcionamento, a língua é um sistema de puro valor. Dizer que elas

são “valor” significa que só se pode analisar uma língua por meio da relação que
os signos estabelecem entre si.

Voltemos ao exemplo da letra “A”. Se ela aparece na sequência “A, E, I, O, U”,

diremos que seu significado é ser uma vogal. É do sistema de vogais de nossa

língua, na relação que ela tem com “E”, o fato de ela ser “não E”, que faz com que

determinemos seu valor. Quando ela aparece da seguinte forma: “A dentista”, ela
agora se torna um artigo definido. Isso se dá pela relação que ela estabelece com
o substantivo “dentista”, que demanda que o artigo seja feminino; quando essa
mesma letra aparece em “jogadora”, temos que o “A” é designativo do gênero

feminino na palavra. É importante perceber que a letra não tem sentido por si só,

ela só pode ser determinada por meio da análise do conjunto no qual ela se
articula. Essa é a ideia de valor para Saussure.

A ideia de valor, assim determinada, nos mostra que é uma grande ilusão considerar um termo

simplesmente como a união de um certo som com um certo conceito. Defini-lo assim seria isolá-lo do

sistema do qual faz parte; seria acreditar que se pode começar pelos termos e construir o sistema

fazendo a soma destes, ao passo que, ao contrário, é do todo solidário que se deve partir, para obter,

por análise, os elementos que ele encerra. (Saussure, 1975, p. 157)

Essa ideia de valor faz com que consideremos a língua como um sistema de

diferenças. Nela não há uma identidade do signo consigo mesmo, sua identidade

é dada por meio da cadeia em que ele se insere no sistema da língua. O exemplo

de Saussure é entre sheep (“carneiro”) e mutton (“carne de carneiro”); o inglês faz

essa diferenciação do estado do carneiro, vivo ou morto, enquanto no francês

temos apenas mouton, que é válido para ambos os casos. A diferença de valor

entre as duas expressões na língua está em que, no inglês, temos associado

a mutton a palavra sheep, enquanto no francês esse valor não se realiza. Ou seja,
é da relação interna ao sistema que os signos valem. Como diz o autor:

Na língua só há diferenças. E não é só isso: uma diferença supõe, em geral, termos positivos entre os

quais ela estabelece; mas na língua, há apenas diferenças sem termos positivos. Quer se tome o

significado, quer o significante, a língua não comporta nem ideias nem sons que preexistiriam ao

sistema linguístico, mas somente diferenças conceituais e diferenças fônicas provenientes desse

sistema. (Saussure, 1975, p.166, grifos do autor)

Esse sistema de diferenças e articulações vai ser descrito por Saussure por

meio de dois eixos. O primeiro deles é chamado de eixo dos sintagmas, que se dá
por intermédio das relações que os elementos consecutivos de um discurso
estabelecem entre si. Essas relações podem se dar desde a palavra, como em

“amaremos”, em que temos o verbo “amar” como radical e “emos” como

designativo do tempo verbal, ou uma frase, como “Eu sou forte”, em que temos
as relações entre pronome, verbo e predicativo do sujeito.

Essa cadeia sintagmática se dá em razão do caráter linear do significante na

cadeia da fala ou da escrita. Não há a possibilidade de dizermos duas palavras ao

mesmo tempo e, na cadeia da frase, precisamos que as palavras se articulem de

determinada forma – é importante percebermos que nos exemplos o próprio

caráter sistemático da língua não possibilita qualquer construção. Esse sistema

linear de encadeamento, em que palavras levam a outras produzindo frases,


também pode ser chamado de eixo das combinações.

Além das relações em presença de um signo com os outros na cadeia falada,

temos o chamado eixo dos paradigmas; este é estabelecido por relações em

ausência. São possibilidades de substituição de um termo por outro, em especial

pelo caráter de semelhança tanto do significado quanto do significante. Quando

dizemos, por exemplo, “Eu peguei”, temos no eixo paradigmático outras

possibilidades como “Você pegou”, “Eu fumei” ou “Eu pequei”, no qual, temos a
primeira pela semelhança do significado, alterando-se o pronome, a segunda

pela semelhança do significado enquanto o tempo verbal utilizado, e a terceira

em pura semelhança sonora do significante. Este é o que se pode chamar de eixo

das seleções, já que ele disponibiliza as palavras que podemos utilizar para
determinadas situações.

Essas relações de seleção e combinação estão na base de qualquer análise

linguística, é por meio delas que conseguimos estabelecer os valores e a forma

como as ideias se encadeiam em uma língua. Elas também estão na base das
noções de Metáfora e Metonímia.
Roman Jakobson (2008), ao analisar questões de afasia, afirma que o

funcionamento básico da língua se dá por intermédio desses dois tropos. A

metáfora, para ele, se relaciona ao eixo da seleção, é um processo de substituição

de uma palavra por outra, logo, podemos chamar o eixo paradigmático de eixo

das metáforas. O eixo dos sintagmas estará associado à figura da metonímia, ou

seja, a um processo de encadeamento e combinação dos signos, logo poderá ser


chamado de eixo das metonímias.

É importante ressaltar que, em linguística, essas duas figuras não são vistas

como figuras de estilo, como na literatura, mas como constituintes do próprio

sistema linguístico. Entendê-las dessa forma é fundamental, já que tal leitura dos
eixos, enquanto metáfora e metonímia, estará na base na leitura que Lacan fará
de Freud em conjunto com a linguística saussuriana.

TEMA 4 – MICHEL FOUCAULT E ANÁLISE DO


DISCURSO

A perspectiva de Saussure, comentada no tópico anterior, abriu as portas

para uma série de análises não apenas linguísticas, mas de todos os sistemas de

signos que circulam em uma sociedade. Todavia, tal perspectiva deixa algumas

questões de fora, tais como as relações sociais, os processos de enunciação, a

história e as relações de poder que se dão por meio da linguagem. Podemos dizer

que a Semiologia foi uma forma de olhar os signos em sua dimensão poética, isto

é, em seu processo de produção enquanto sistema, mas apartada, de certa forma,

de seu funcionamento real nos agrupamentos humanos. Ao assumir a perspectiva

da sincronia como momento privilegiado de estudo, a língua apartada da fala e

o sistema funcionando apenas em relação a si mesmo, o autor deixou de fora

elementos fundamentais da linguagem, como a questão da referência e do


discurso.
O movimento de Michel Foucault vai exatamente na tentativa de trazer essas

dimensões para o estudo da linguagem, em especial as considerações sobre a


história e o poder, tendo como elemento central a noção de discurso.

Antes de entrarmos em algumas definições, é preciso lembrar que Foucault

não era um linguista, mas um filósofo e historiador. Isso significa que sua

concepção de língua, como discurso, não está preocupada com a questão

puramente formal e sistêmica da estrutura. Pelo contrário, ele está interessado

em analisar como as coisas são ditas e o que possibilita que elas sejam ditas em

determinados momentos históricos, tomando o discurso enquanto uma prática

que não apenas molda, mas que está atrelada à história e às relações de poder
que se materializam. A noção de discurso, com isso, extrapola os limites da língua

e os materiais em que ela circula (textos, pronunciamentos, propagandas etc.). Ele

está, para além disso, se atrelando à dimensão do sentido. “O discurso tem a ver

com a produção de sentido pela linguagem. Contudo […], uma vez que todas as

práticas sociais implicam sentido, e sentidos definem e influenciam o que

fazemos – nossa conduta – todas as práticas têm um aspecto discursivo” (Hall,


2016, p. 80).

Dessa forma, ele rompe com a separação entre aquilo que diz e aquilo que

se faz, considerando que o discurso é toda a materialização de sentido nas

práticas sociais em seu todo. Ele se materializa em instituições, como a prisão, a

escola e o Estado, que são entidades que funcionam pelo domínio de certo saber

sobre a sociedade e os sujeitos que nela vivem e que, ao mesmo tempo, detém
poder sobre o que tomam como objeto de discurso.

Ele desloca a concepção de Saussure ao colocar, para além da relação

significado e significante, a noção de sentido, esta que oportuniza a produção e

a circulação do discurso, possibilitando a mudança na forma como se percebe o


mundo e se fala sobre ele. Há aqui toda uma concepção que possibilita a
ampliação dos estudos da linguagem.

A de que falar não é apenas combinar signos numa sintaxe, nem relacionar palavras e coisas, nem um

modo de comportamento reproduzido em atos de fala; falar é mais que produzir enunciados em

situação, comunicar. Foucault introduz uma dimensão em que falar é criar uma situação, é investir a

fala como prática entre outras práticas. (Araújo, 2004, p. 217, grifo do autor)

Mas se os discursos se materializam em uma diversidade de práticas, como

analisá-los? Há dois conceitos que precisamos mobilizar para lidar com esse tipo

de análise. O primeiro diz respeito ao campo da Enunciação e o segundo às


chamadas “formações discursivas”.

Os enunciados se ligam a um processo histórico que possibilita que os

dizeres sobre determinados objetos, ou o funcionamento de determinadas

práticas sejam de determinadas formas e não de outras. O exemplo de Foucault

é a loucura. Segundo o autor, a noção de loucura não era a mesma na Idade

Média e na Idade Moderna. Ela se torna o objeto de saber com a configuração

atual a partir do momento em que se faz objeto do saber médico. O louco, na

Idade Média, poderia ser lido e interpretado como aquele que diz a verdade para

além das convenções, ou como o portador de uma palavra mística que revela
coisas sobrenaturais.

Com o desenvolvimento do saber médico, os sentidos e, por consequência,

os discursos mudam. São instituídas práticas de aprisionamento, de

medicalização, de descrição e de controle dessa população. Todos esses

elementos estão atrelados a formas de produção de saber sobre esses sujeitos e

seu lugar na sociedade. Ou seja, se analisa as condições de produção desses

dizeres, de ordem históricas e sociais, e como ela possibilita que determinados


objetos do discurso sejam definidos de uma forma ou de outra. Esse sistema do
discurso que possibilita determinadas enunciações sobre os temas do discurso.
Como diz o próprio Foucault (2005, p. 61-62):

As condições para que se apareça um objeto de discurso, as condições históricas para que se possa

dizer algo […] são numerosas e pesadas. O que significa que não se pode falar de qualquer coisa em

qualquer época […]; não basta abrir os olhos, prestar atenção ou tomar consciência para que novos

objetos de repente se iluminem […]. Ele existe sob as condições positivas de um feixe complexo de

relações. Estas relações são estabelecidas entre instituições, processos econômicos e sociais, formas

de comportamento, sistemas de normas, técnicas, tipos de classificação […]. Elas não definem sua

constituição interna, mas o que lhes permite aparecer.

É importante perceber que, em Foucault, o sujeito que conhece e fala sobre

algo não é a origem dos sentidos, mas o suporte. Ele é assujeitado pelos dizeres

que circulam na sociedade, daí que nem tudo possa ser dito em qualquer época
histórica.

O que sustenta esse fato é a noção de Formação Discursiva (FD). As FDs são

princípios de dispersão e aglutinação do discurso. São de dispersão, pois

diferentes discursos podem aparecer em diferentes domínios ou registros, é

possível ver discursos médicos em revistas científicas, ou de cotidiano e até

mesmo em revistas em quadrinhos. Daí sua dispersão, ela não está atrelada a
apenas um registro dos discursos.

Ela é um princípio de aglutinação, pois ela pode ser vista como um processo

de repetição de enunciados sobre determinados objetos. Se tomarmos, por

exemplo, o discurso sobre a criminalidade e os sujeitos que são passíveis de

serem enquadrados como criminosos, veremos que há uma repetição dos


discursos que vão designar esses objetos de uma forma e não de outra.

Podemos dizer, com isso, que a formação discursiva é um princípio de


produção dos sentidos, é ela que possibilita que os dizeres ocorram, ela está na
origem do sentido, pois ela recorta um processo de memória – pensada aqui em

sua dimensão coletiva e social – que disponibiliza os dizeres que são

reproduzidos pelos sujeitos. Olhando dessa maneira, podemos dizer que os


discursos estão atrelados sempre às relações de poder e dominação social.

TEMA 5 – DISCURSO E PODER

Ao falarmos das Formações Discursivas, chegamos na questão da relação

entre discurso e poder, já que a produção de sentido para e pelas práticas sociais

estão sempre relacionadas a formas de conhecimento e, com isso, permeadas por


relações de poder.

Quando falamos de discurso, portanto, estamos falando de poder, de formas

de dominação que se articulam pelos sistemas de enunciação, pelas falas e pelas

relações sociais. O discurso, pensado enquanto o sistema que possibilita que as

coisas sejam ditas de determinada forma, produz regimes de verdade que, por

sua vez, estão atrelados a determinados dispositivos de saber que falam sobre a

sociedade e os indivíduos e, com isso, instituem dispositivos de controle da


sociedade.

O poder, dessa forma, não se dá somente como um processo de dominação

de cima para baixo, ele circula nas falas cotidianas, em nossas práticas mais
comuns que reproduzem essas estruturas, é a concepção da microfísica do poder.

O poder é da ordem das estratégias de dominação dos indivíduos e o que

determina as desigualdades de acesso ao poder é, além de sua forma de


distribuição, o domínio que é exercido pelos conhecimentos.

Essa concepção possibilita que olhemos para as relações como revestidas de

poder, para além das intenções dos sujeitos, mas articulada aos efeitos que são
produzidos. Isso afeta o modo como se faz uma análise de discurso, já que ela
[…] dispensa toda e qualquer subjetividade fundadora. Ao contrário das análises sociológicas ou

psicológicas da evolução das mentalidades e das filosofias do logos, das teleologias da razão, Foucault

vê os discursos em sua exterioridade, em sua irrupção de acontecimento, definindo o lugar possível

para os sujeitos, que não é sujeito soberano do “eu disse”, nem aquele que fala, nem aquele que se

esconde na fala ou sofre um “efeito de ilusão” [sic], como se expressam algumas analistas de discurso.

Para Foucault, ao contrário, não há uma voz anônima por detrás, mas um domínio no qual alguém

pode dizer o que diz, e assim imbui-se da função de sujeito, e o que diz ganha uma certa positividade

ou efetividade. (Araújo, 2004, p. 234)

O discurso, com isso, não é um pensamento revestido por signos que

buscam representar o mundo de determinada maneira. Ele é uma prática que cria
a realidade, recorta os objetos, estabelece o que é verdadeiro, produz saber e,
com isso, se reveste de poder e autoridade para dizer o verdadeiro.

A relação entre discurso e saber/poder estabelece o “regime de verdade” de

determinadas épocas, fazendo com que alguns tipos de discurso tenham mais

poder e reconhecimento para falar sobre o mundo. Um exemplo é o discurso

médico, que se tornou fundamental para a modernidade, colocando tais figuras

como detentores do saber sobre o corpo humano e a saúde, criando instituições


como o hospital, no qual se observa os estados de adoecimento (além da cura,

obviamente), enfim que, por meio do reconhecimento, dessa forma, de saber

sobre o humano se revestiu de todo um poder de domínio de certos saberes. Isso

ocorre porque há toda uma forma de reconhecimento social de saberes mais ou


menos verdadeiros e os recortes sobre o que esses domínios podem ou não falar.

O poder, com isso, deve ser visto como relacional. Ele não opera

exclusivamente pela dominação ou pela imposição, ele opera por meio de todo

um processo de “normalização”, isto é, produzindo reconhecimento social – daí

seu caráter contraditório – ao mesmo tempo que busca produzir sujeitos dóceis,
medicalizados, enfim, que não representem de alguma forma uma ameaça ao
discurso sobre a “normalidade” da sociedade, pois ele também gera dominação
sobre esses corpos.

Controlar os discursos, suas forças, suas ameaças, demanda todo um sistema

de controle institucional que autoriza que determinados sujeitos possam falar. As

instituições representam esse papel de controle do discurso, distribuindo as vozes

autorizadas, colocando uma forma de dizer a verdade como a única possível. É o

caso da escola, da mídia e das instituições médicas, todas detêm um domínio de

verdade, são legitimadas socialmente, estão na posição de dizer uma verdade

sobre os fatos, ao mesmo tempo que (re)produzem uma dominação em relação

aos sujeitos, fazendo com que determinadas vozes tenham mais legitimidade do
que outras.

NA PRÁTICA

Vamos pensar os discursos sobre as mulheres na música brasileira. Vamos

ouvir a música “Pra que mentir”, de Noel Rosa, e “Dom de Iludir”, de Caetano

Veloso. Em um primeiro momento, vamos analisar as músicas por meio das

perspectivas de Saussure, buscando identificar como elas representam as

mulheres, quais as palavras estão associadas ao significante “mulher”. Uma vez

feito esse processo, vamos retornar às músicas e buscar pensar em como esses

dizeres sobre as mulheres criam o “sujeito mulher”, ou seja, para além do que elas

dizem, o que possibilita no contexto das duas músicas que a mulher seja dita
daquela forma.

FINALIZANDO

Nesta etapa, buscamos compreender a linguística de Saussure e a Análise de

Discurso de Foucault. Vimos a importância de se analisar a forma como os


enunciados são produzidos na relação que os signos estabelecem entre si. Além
disso, estudamos o signo e a revolução que a concepção saussuriana causou nos
estudos da linguagem ao excluir o referente das considerações analíticas.

Essa forma de conceber a língua foi fundamental para vários autores da

década de 1960, entre eles Lacan, que tomaram a linguística como uma ciência

fundamental para se descrever e analisar a vida humana e as formas de expressão


que ela toma.

O pensamento de Foucault desloca algumas questões da linguística,

trazendo para o centro da questão a história e o sujeito. Ao pensar em discurso,

ele formula que este está ligado ao sentido, algo ligado às práticas sociais. Este

sustenta as possibilidades de emergência do discurso, que cria a realidade,


reproduz relações de poder e estabelece regimes de verdade.

O discurso não a fala, mas o sentido se materializa em instituições, práticas,

enunciações. Além disso, está sempre atrelado ao processo de produção de saber

sobre o mundo, que acarreta, ao mesmo tempo, a produção de poder sobre esses

objetos. O discurso é objeto de luta constante na sociedade e estabelece a

autoridade sobre os dizeres, produzindo, assim, os sujeitos autorizados a falarem


sobre algo ou não autorizados a falarem.

CULTURA E LINGUAGEM
AULA 4
Prof. Cícero Costa Villela

CONVERSA INICIAL

LINGUAGEM E PSICANÁLISE

As décadas de 1950 e 1960 do século XX foram fortemente marcadas pelo

pensamento estruturalista, que tomava por base o pensamento de Ferdinand de

Saussure, como vimos anteriormente. O pensamento estrutural estudava os

elementos mínimos da linguagem, colocando o sistema de relações e valores

como central e excluindo o sujeito da fala, tornando-se fundamental para todas

as ciências sociais. É o momento da antropologia estrutural de Levy-Strauss, que

busca olhar os mitos indígenas com base em seus elementos fundamentais, e a


semiologia, que vai estudar a cultura por meio dos princípios linguísticos.

Além disso, o estruturalismo vai abrir a possibilidade de releitura de autores

clássicos pelos pressupostos desse novo pensamento. Roland Barthes vai

procurar olhar o processo de leitura como uma escritura; Althusser vai reler Marx

na busca dos elementos fundacionais do materialismo dialético; e, Lacan, faz o

chamado retorno a Freud, trazendo elementos da linguística em busca da


compreensão do pensamento freudiano.
Tal momento possibilita essa renovação das leituras de autores

fundamentais dos séculos XIX e XX, tomando por base o pensamento linguístico

em suas elaborações. É nesse contexto que tentaremos entender termos,


conceitos e relações que a psicanálise estabelece com os estudos da linguagem.

Nosso objetivo, portanto, é mostrar os processos de linguagem mobilizados

nesse “retorno a Freud” feito por Lacan, mostrar seus deslocamentos e as

possibilidades de compreensão do sujeito e do inconsciente por essas relações


com a linguística.

Desse modo, passaremos pela reflexão sobre retornar a Freud, a lógica do

significante, os processos de metáfora e metonímia – tendo por base a leitura de


Lacan –, buscando também em Freud os fundamentos dessa relação.

TEMA 1 – O RETORNO A FREUD

Qualquer texto que busque falar da relação entre psicanálise de linguagem

precisa passar pela reflexão do retorno a Freud proposto por Lacan em seus

seminários e escritos. Tal retorno não é fortuito, buscando ressituar o debate

sobre o sujeito e a linguagem no contexto dessa intervenção. Além disso, tal

retorno dá consistência a uma série de elaborações de Freud acerca da


linguagem.

Conforme nos diz Dör (1989, p. 11), o retorno a Freud

é, antes de mais nada, referência a um certo modo de apreensão e de intelecção do inconsciente e, ao

mesmo tempo, a um certo tipo de prática codificada em relação a um princípio de de investigação que

– hoje em dia – dificilmente se prestaria a uma confusão quanto ao corte que inaugura. Trata-se de

situar de imediato, sem equívoco, o que é da ordem de uma prática autenticamente psicanalítica em

relação a outros procedimentos de investigação do inconsciente que, embora se arvorem em

procedimentos psicanalíticos, parecem ter perdido completamente esse sentido.


Retornar ao pai da psicanálise diz respeito, portanto, a estabelecer uma

relação direta com a letra freudiana, ir aos textos e extrair deles os elementos que

constituem a prática psicanalítica, as relações que estão em causa nesse processo

e, acima de tudo, olhar para o descentramento que a descoberta do insconsciente


produz no sujeito.

Tal leitura de Freud faz frente a procedimentos psicanalíticos que entravam

em voga na época, que tendiam a biologizar a leitura de Freud ou tomavam

o Ego como elemento fundamental da intervenção analítica. Lacan produz uma

mudança de terreno nessa leitura, ao tomar por base a linguagem como o

elemento central para o estudo do sujeito, ressituando a descoberta freudiana


como uma descoberta de linguagem.

Lacan relaciona a linguística estrutural com as dimensões de linguagem que

dão suporte ao inconsciente que “esclarecem o fato de que o fenômeno

fundamental da revelação analítica é essa relação de um discurso a um outro que

o toma como suporte” (Auroux, 2001, p. 261, grifos nossos). Dessa forma, ele vai

recorrer às descobertas da linguística para dar fundamento à lógica do


significante e a definição do “inconsciente estruturado como uma linguagem”.

Com isso, Lacan vai produz um duplo movimento ele traz a dimensão da

linguagem e da palavra como elementos essenciais para a prática analítica, ao

mesmo tempo que produz um deslocamento na linguística estrutural, ao trazer o

sujeito do inconsciente para a reflexão sobre a língua, especialmente a dimensão

da fala. Como ele mesmo vai dizer em seu seminário sobre as psicoses: “A

psicanálise deveria ser a ciência da linguagem habitada pelo sujeito. Na

perspectiva freudiana, o homem é o sujeito tomado e torturado pela linguagem”


(Lacan, 2002, p. 276).
Portanto, há, nesse retorno, um olhar para a dimensão estruturante da

linguagem no sujeito e, ao mesmo tempo, o olhar para o funcionamento das

relações que se estebelecem entre os sujeitos por meio da palavra. Essa dimensão

relacional é a do significante (falaremos sobre isso em breve), pois é por ela que

o sujeito se coloca na fala, fazendo com que a relação entre e sujeito e linguagem
tenha uma dimensão fundadora para o primeiro.

Todavia, o retorno a Freud não pode ser apenas resumido a um processo de

deslocamento por meio da linguística. Ele é também a releitura de Freud em seus

apontamentos que possibilitam uma relação mais próxima com a linguagem.

Com isso, Lacan retoma elementos de A interpretação dos sonhos (1900), como
as figuras da condensação e do deslocamento, trazendo a relação entre

linguagem e desejo. Além disso, há a consideração sobre a relação de


transferência, central para a prática analítica.

Sobre a relação linguagem e desejo, por A interpretação dos sonhos,

podemos dizer que ela é fundamental para tal retorno a Freud, já que as figuras

analisadas no sonho se apresentam, na visão de Lacan, como um texto dado pelo


relato e pela livre associação do analisando.

O sonho é apenas o objeto provilegiado da investigação analítica; ele fornece assim o modelo de todas

as formas de expressão substitutivas do desejo. A interpretação, na técnica freudiana, incide não sobre

o próprio sonho, mas sobre a narração do sonho. Trata-se de um texto no qual o sujeito busca a fala

que coincidiria com a expressão primitiva do desejo engajado no conflito inconsciente que é sua

origem. O objeto da análise é então a linguagem do desejo mais do que o desejo enquanto tal. É nesse

sentido que o sonho pode funcionar como paradigma psíquico de todas as representações simbólicas

do desejo, escondidas atrás das formas deslocadas e disfarçadas do chiste e do lapso, do mito e da

obra de arte, da ilusão religiosa etc. (Auroux, 2001. p. 262)


Esse elemento da narração do texto do sonho como elemento de análise e

interpretação nos coloca diretamente na dimensão da linguagem como elemento

fundamental, já que o processo de análise é uma prática de linguagem. Com isso,

entramos na dimensão da transferência como o segundo elemento do retorno a

Freud. A transferência, ou seja, a relação estabelecida entre analista e analisando,

se dá em uma cena de relação entre ambos, cujo elemento central no


estabelecimento do laço é a palavra.

Ao trazer a transferência como uma prática de linguagem, retorna, portanto,

a dimensão da fala e da enunciação, dimensão esta que marca, na língua, a

posição do sujeito, estabelecendo a relação entre o eu e o tu, que produz uma


cena que implica relações entre os participantes e aquilo que é narrado.

Olhar dessa forma a relação transferencial, bem como a relação entre desejo

e linguagem, permite a Lacan reler Freud em conjunto com a linguística, pois

quando falamos no processo de funcionamento da língua, estamos falando no

uso de signos e, principalmente, na dimensão material desse signos – que é o


significante.

É a partir do retorno a Freud nesses termos que Lacan vai poder defender

duas de suas teses mais famosas. A primeira, da primazia do significante; e, o


aforismo do “inconsciente estruturado como uma linguagem”.

o inconsciente é estruturado como uma linguagem; sob condição de previamente explorar o que, na

própria obra de Freud, justifica seu princípio e sua pertinência. Por ser A interpretação dos

sonhos designada como a pedra fundamental de tal obra, é a partir de algumas dessas articulações, as

mais fundamentais, que tal iniciativa será iniciada. (Dör, 1989, p. 15)

Retomar os dois conceitos centrais de A interpretação dos sonhos se faz

fundamental para o entendimento do retorno a Freud proposto por Lacan. São


as figuras do deslocamento e da condensação que vão permitir a construção do
edifício teórico que relaciona Linguagem e Psicanálise pelo psicanalista francês.

TEMA 2 – O TRABALHO DO SONHO

Conforme dissemos no tema anterior, o retorno a Freud empreendido por

Lacan se dá por dois funcionamentos descritos pelo pai da psicanálise, ambos


passíveis de uma leitura com base na nascente ciência da linguagem.

A primeira delas reside na noção de trabalho do sonho; tal hipótese se

arvora, desde a primeira abordagem dos sonhos, em 1900, nos mecanismos que
sustentam o processo primário do inconsciente.

Em sua descrição do trabalho do sonho, Freud se depara com o fato de que

o conteúdo manifesto dos sonhos possuía um volume muito menor do que os

pensamentos latentes. Dessa forma, lança-se a hipótese de que o sentido do

sonho se disfarça e se esconde, fazendo com que sua manifestação seja um

fenômeno com duas ordens. Tais ordens de fenômenos, Freud vai chamar
de condensação e deslocamento.

O fenômeno da condensação se dá quando o conteúdo menifesto do sonho

se condensa em uma imagem, uma palavra, ou uma junção de palavras e de

pessoas no sonho. Se pensarmos no fato de que o sonho é o guardião do sono,

esse processo se dá na tentativa de censurar com que conteúdos que possam

causar alguma perturbação do sujeito se apresentem de forma dissimulada, de

maneira que não haja o reconhecimento imediato dos pensamentos

inconscientes que foram recalcados. Freud vai descrever algumas formas de


condensação:

Em primeiro lugar, a condensação por omissão, de que temos o excelente exemplo na análise do sonho

da “monografia botânica” [ver A interpretação dos sonhos], onde a restituição dos pensamentos
latentes é muito lacunar ao nível do conteúdo manifesto. Um outro tipo de condensação procede por

meio da fusão, superposição do material latente. A ilustração mais espetacular deste tipo de

condensação é apresentada pela elaboração das pessoas coletivas ou pela criação de neologismos

obtidos por combinações e fusões sucessivas. (Dör, 1989, p. 19)

Estamos aqui em um processo de linguagem, no qual há relações entre

significantes que se fundem, mudam e aparecem de formas variadas. Tal

funcionamento também se dá nos lapsos, nos chistes, nas tiradas espirituosas e

nos trocadilhos. Essas dimensões revelam que o processo de linguagem no

inconsciente só se revela de maneiras disfarçadas. Todavia, ainda não há em

Freud uma teoria linguística para a descrição, com base na linguagem, desses
fenômenos.

A segunda forma de manifestação do inconsciente pela linguagem se dá

pelo processo de deslocamento. Esse processo se dá por meio de um

obscurecimento, ou de uma inversão de valor e sentido, entre os conteúdos

latentes e os manifestos. Sua descrição se aproxima da que fizemos do processo

anterior: há um processo de recalque que afeta a linguagem, fazendo com que

sua manifestação no sonho seja obscura e apareça como um enigma. Apenas o


processo de análise é capaz de restituir os sentidos de tais sonhos, não por um

poder mágico, mas pelo acesso à palavra que a relação de transferência

proporciona, fazendo com que os conteúdos latentes sejam ditos de alguma

forma e possam ser acessados no processo da análise. Freud ([1900] 1996, p. 265-
266) afirma:

Somos, assim, conduzidos a pensar que no trabalho do sonho manifesta-se um poder psíquico que,

de um lado, despoja elementos de alto valor psíquico de sua intensidade e, por outro lado, graças à

sobredeterminação, dá um valor maior a elementos de menor importância, de modo que estes possam

penetrar no sonho. Pode-se, desde então, compreender a diferença entre o texto do conteúdo do

sonho e o texto dos pensamentos; houve, na formação do sonho, transferência e deslocamento das
intensidades psíquicas dos diferentes elementos. Este processo é parte essencial do sonho. Ele pode

ser chamado de deslocamento.

Esses dois elementos, conforme dissemos, vão ser centrais para o

entendimento da relação entre linguagem e psicanálise. São fenômenos

eminentemente de linguagem, trabalham com signos e com elementos


significantes que não cessam de se apresentar de alguma forma.

A formulação dada por Lacan a cada um deles vai se relacionar a dois

processos de linguagem: a metáfora e a metonímia. Ambas vão permitir a

relação de Freud e Saussure, por meio de Lacan, mas que possuem como

elemento central a releitura que Lacan faz da linguística ao estipular o primado


do significante.

TEMA 3 – NAS TRAMAS DO SIGNIFICANTE

O grande deslocamento provocado por Lacan na Linguística diz respeito à

forma como ele vai olhar o signo linguístico. Estudamos anteriormente que, para

Saussure, o signo linguístico é constituído por uma relação arbitrária entre

o conteúdo/significado e a imagem acústica/significante. O que determina

seu sentido, ou sua delimitação como elemento de uma cadeia de signos, é a

relação que ele estabelece com outros signos dessa cadeia, o que se chama
de valor. O signo pode ser representado pelo seguinte algoritmo: Sa/Sg (onde Sa

é o significante, e Sg, o significado). Eles são separados por uma barra que
estabelece a relação arbitrária entre eles.

Segundo Saussure, essa relação entre Sa e Sg é simétrica, isto é, não se pode

alterar o significante sem que isso produza uma mudança no significado, e vice-

versa; conforme dissemos, o que delimita sua identificação é o sistema de


diferenças, ou de relações, próprio da língua.
Podemos identificar esse processo como um corte das duas massas amorfas
dos significados e dos significantes.

Figura 1 – Massas amorfas do significado e significante

Fonte:
Saussure, 1975.

Essa imagem pode ser descrita como uma cadeia de fala e significação, na

qual os signos só podem ser delimitados pelos cortes que se estabelecem. Em

cima, há uma cadeia de imagens acústicas; embaixo, uma de conceitos; as linhas

pontilhadas recortam determinados segmentos dessa massa amorfa na qual

podemos identificar um signo. Ela também ilustra o sistema de diferenças, ao

apontar que tais cortes delimitam a relação entre os sons/palavras/letras em


relação aos outros elementos.

O elemento do corte é fundamental na virada que Lacan promoverá no signo

linguístico, ao falar sobre o primado do significante. O primeiro gesto do

psicanalista francês é ler as duas cadeias de massas amorfas por meio da noção

de corte. Pois, “Se o surgimento do significante provém de um tal corte, não

existe, portanto, na realidade um ‘fluxo de significantes’. É a intervenção do corte


que faz nascer a ordem significante, ao mesmo tempo em que o associa a um
conceito” (Dör, 1989, p. 38).

Está dado, com isso, o primeiro passo para o primado do significante, já que

sua delimitação é feita pelo corte nas relações da materialidade acústica. É ele

que determina o que vai aparecer na fala e, portanto, é a relação entre os


significantes que será primordial para a observação da linguagem.

Lacan, com isso, inverterá a ordem do algoritmo saussuriano; em vez de uma

relação unívoca entre Sa e Sg, dá-se agora maior destaque para o significante,

não mais preso a um significado, mas recortado de uma relação com outros Sa.

Além disso, o significante que vai governar o discurso do sujeito, ou seja, o sujeito

é dito pelo significante que se recorta em sua fala, e não nos conceitos que

subjazem na mente deste. Podemos dizer que o que aparece no sonho, na fala

analítica, ou na livre associação, é sempre da ordem do significante, e que o

sujeito se emaranha nas palavras, nas quais, em vez de dizê-las (ele efetivamente
as diz), ele é dito por elas.

Tal leitura do corte feita por Lacan, que dá uma relativa autonomia ao

significante em relação ao significado, é o que permite sua leitura literal da barra

no signo saussuriano. A barra que separa Sa e Sg é uma forma de resistir à

significação. Essa resistência está na base dos fenômenos da metáfora e da


metonímia nos processos do inconsciente que veremos no próximo tema.

Em geral, é sempre o significado que colocamos no primeiro plano de nossa análise, porque

seguramente é o que há de mais sedutor e que, numa primeira abordagem, parece ser a dimensão

própria da investigação simbólica da psicanálise. Mas, ao desconhecer o papel mediador primordial do

significante, ao desconhecer que o significante é, na realidade, o elemento guia, não somente

desequilibramos a compreensão original dos fenômenos neuróticos, a própria interpretação dos


sonhos, mas também tornamo-nos absolutamente incapazes de compreender o que se passa nas

psicoses. (Lacan, 2002, p. 250)

É importante ressaltar que tal leitura feita por Lacan ressitua a análise da

linguagem. Não se trata mais de buscar uma significação oculta por trás da fala

do sujeito, mas de perceber como ele se revela na fala. Como a trama dos

significantes se articulam na produção da posição desse sujeito em relação ao

seu discurso, ou seja, um sujeito dividido. O que vai contar na observação da

linguagem, portanto, com essa leitura, não é mais o sistema totalmente

autônomo da língua, mas a forma como o sujeito se relaciona com o Outro,


especialmente a linguagem.

A linguagem vai ser um elemento central para a gênese do sujeito em sua

relação com o Outro. Isso pode ser visto no texto sobre o “estádio do espelho”.
Segundo Auroux (2001, p. 266),

A linguagem, que dá forma à gênese do sujeito (o “cenário familiar”) é o meio no qual o indivíduo é

mergulhado desde o nascimento. Um meio que o sujeito deverá subjetivar, onde ele deverá se

reencontrar nele em sua própria história, e que Lacan designa como o lugar do Outro. A linguagem é

então, originariamente, menos um meio de comunicação do que uma função que permite a

identificação do sujeito no reconhecimento dos traços que definem a condição de um ser ao mesmo

tempo sexuado e mortal. O Outro, no qual o sujeito se aliena como Eu de um modo imaginário, é

definido pelas leis próprias do significante.

Olhar para as tramas do significante em que emerge o sujeito é uma

consideração linguística fundamental, já que Lacan reinsere o sujeito na trama da

língua. Não se trata de um sujeito senhor de seus domínios, produtor autônomo

da linguagem; mas este, ao falar, se aliena dos sentidos e se mostra nas relações

significantes; por isso, ele pode dizer que o sujeuto representa um significante
para outro significante. Como o próprio Lacan (1985, p. 130) afirma no Seminário,
livro 20: Mais, ainda:

O significante é signo de um sujeito. Enquanto suporte formal, o significante atinge um outro que não

aquele que é cruamente, ele, como significante, um outro que ele afeta e que é de fato sujeito, ou ao

menos que passa por sê-lo. É nisso que o sujeito se encontra ser, e somente para o ser falante, um

ente cujo ser está sempre alhures como mostra o predicado. O sujeito é sempre pontual e

desvanecedor, porque ele é sujeito através de um significante, e para outro significante.

Lacan, com isso, vira a linguística de cabeça para baixo, renova a noção de

sujeito e, ao mesmo tempo, permite uma retomada de Freud pelo campo da

linguística estruturalista, olhando para a linguagem como um sistema capaz de

explicar e descrever as relações do sujeito com outro, sendo este da ordem da


linguagem, ou do inconsciente.

TEMA 4 – METÁFORA E METONÍMIA

Lacan reintroduz o sujeito no aparato linguístico estruturado por Saussure;

todavia, tal sujeito não é mais o sujeito da razão, cartesiano, mas o sujeito do
inconsciente, imerso na linguagem que fala, e é falado pelo sistema significante.

Observamos, com isso, como Lacan estruturou sua leitura da primazia do

significante, da imagem-acústica, da forma como elemento central para a leitura

das figuras da condensação, e do deslocamento propostos por Freud. Vamos

agora ver como esse processo funciona por meio das noções
de metáfora e metonímia, como postos pelo psicanalista francês.

Estamos habituados a ver a metáfora como uma figura linguagem, em que

se produz uma descrição, ou uma comparação, para se falar de outra coisa.

Podemos falar da metáfora do iceberg para descrever o inconsciente, em que


apenas uma parte se mostra, enquanto todo o resto fica submerso. Olhar a
metáfora dessa maneira, a insere nas figuras de linguagem, mais próximas da
literatura, em que se procura construir uma outra forma de falar de algo.

Alguns desses elementos, como a comparação e a substituição, permanecem

na forma como Lacan vai olhar para a metáfora. Contudo, apesar de ainda manter

alguns desses elementos, ao falarmos de metáfora em linguística, e na leitura feita

pela psicanálise, estamos tratando de uma estrutura fundamental da linguagem,


e não de uma figura de estilo.

A ideia da metáfora como constitutiva da linguagem está associada àquilo

que Saussure chama de eixo dos paradigmas ou eixo das similaridades (como

estudamos anteriormente). A metáfora vai ser definida por Lacan como um

processo de substituição de uma palavra por outra, ou, para sermos mais

precisos, a substituição de um significante por outro. Segundo Dör (1989, p. 43):

“Na medida em que a metáfora mostra que os significados extraem sua coerência

unicamente da rede de significantes, o caráter dessa substituição significante


demonstra a autonomia do significante em relação ao significado”.

Estamos falando, portanto, do fato de a rede de metáforas estar associada

não a um certo conteúdo (significado), mas à forma como se dá o encadeamento

e a articulação entre significantes, pois são eles que governam o discurso do

sujeito. Vamos usar o exemplo do uso metafórico do termo “peste” para designar
a “psicanálise”.

Figura 2 – Processo metafórico


Fonte: Dör, 1989.

Há, na Figura 2, dois signos: o de “psicanálise” e o de “peste”, aparentemente

sem nenhuma relação entre eles. Ao estabelecermos uma relação entre eles, algo
muda: haverá uma substituição significante conforme a Figura 3.

Figura 3 – Continuação do processo metafórico

Fonte: Dör, 1989.

Perceba que, no processo de produção da metáfora, o que ocorre é uma

passagem dos significantes S2 e S1 para cima da barra que os separa dos

respectivos significados em seus signos originais. É importante notar que não se

trata de uma substituição de um signo por outro, mas de um significante por

outro. As imagens acústicas de psicanálise e de peste se encontram sobre o

significado da psicanálise, fazendo com que o significado de peste, como doença,


seja excluído.
O processo metafórico está associado, com isso, à condensação, já que, em

sua forma manifesta, no caso dos sonhos, o que aparece é sempre um elemento

que condensa elementos latentes que só podem ser retomados por meio das
associações significantes.

Esse eixo da metáfora funciona pelas similaridades, sejam de som, sejam de

semântica, e somente a retomada das cadeias associativas pode ser capaz de

evidenciar como se opera a metáfora na condensação dos conteúdos manifestos.

O importante a termos em mente quando pensamos sobre a metáfora, é que ela

mostra que o significante governa a rede de significados; é sempre a cadeia das


palavras que abarca ou exclui determinado significante em detrimento de outro.

Na metonímia, por seu turno, temos outro processo nos eixos da linguagem.

Se a metáfora opera por uma substituição significante no eixo das substituições,

a metonímia funciona no eixo dos sintagmas, ou das combinações. Uma

metonímia é um processo de transferência de denominação, no qual se podem

estabelecer relações de designação de determinado objeto por uma parte dele,

como olhar “uma vela no horizonte” para designar um barco que se afasta do
cais.

Contudo, essa relação de metonímia não é um processo de pura substituição,

já que o novo significante que aparece possui uma relação de contiguidade com

aquele que é substituído. Vejamos como ela acontece como processo de


linguagem:

Figura 4 – Processo metonímico


Fonte: Dör, 1989.

Vejamos o caso da relação entre “análise” e “divã”. Há, entre os dois signos,

uma relação de contiguidade. Podemos dizer que estar no divã é estar em análise:

a relação metonímica vai introduzir uma relação entre eles, na qual vamos
substituir S1 por S2.

Figura 5 – Continuação do processo metonímico

Fonte: Dör, 1989.

Perceba que, diferentemente da metáfora, na qual o significante substituído

não passa para a parte de cima da barra que separa significado e significante, na

metonímia, as relações são mantidas entre os significantes, mas também em

associação a um significado que sustenta tal relação, enquanto o outro, é


excluído. Ela sustenta as relações, sem a produção de um novo sentido.

De fato, a função de manutenção da barra é, na metonímia, prova de uma resistência à significação, na

medida em que essa figura de estilo apresenta-se sempre como um não sentido aparente (não “se está

num divã”, faz-se uma análise sobre um divã). Em outras palavras, uma operação de pensamento é

sempre necessária para apreender o sentido da expressão metonímica, restabelecendo as ligações de


conexão entre S e S’. Em contrapartida, na metáfora, se o surgimento de sentido é imediato, é

precisamente porque uma transposição da barra se produziu. (Dör, 1989, p. 49)

A metonímia está, com isso, associada ao processo de deslocamento

proposto por Freud. No processo de deslocamento metonímico, são sempre

importantes as relações estabelecidas entre os significantes, mas que podem

apontar para relações que não produzem mudança de significação. Tal processo

se dá tanto no sonho, como inversão de valores, como no processo de livre

associação do paciente. O que ela coloca em causa, é o fato de que há resistência

à produção de novos sentidos, e que novas articulações nem sempre representam

a produção de algo novo, mas que os significantes se articulam sob um mesmo


significado.

TEMA 5 – REAL, SIMBÓLICO E IMAGINÁRIO

Dentro de toda a teorização de Lacan acerca das relações entre linguagem e

psicanálise, e linguagem e inconsciente, a tríade “real, simbólico e imaginário” é

a mais fundamental, pois permite uma visão mais completa dos processos de
linguagem que descrevemos nos temas anteriores.

O pensamento lacaniano acerca desses três elementos é a linha mestra de

sua leitura do inconsciente e do sujeito freudianos como ele mesmo afirma: “o


confronto desses três registros, que são registros essenciais da realidade humana,

registros muito distintos e que se chamam: o simbólico, o imaginário e o real”


(Lacan, 1953).

Podemos perceber que a relação entre esses três registros está na base da

realidade humana – realidade aqui possui um sentido muito específico, que

extrapola uma mera definição empírica de realidade como a percebemos em sua


“pureza”. A realidade se estrutura já enquanto uma relação dessa tríade, com
significado, subjetivando o indivíduo e sempre com elementos que escapam ao

sujeito. Tal afirmação nos permite passar à definição específica de cada um desses
elementos.

O que é o real? Em Lacan o real é tudo aquilo do sujeito que escapa de uma

ordem e que não está na ordem da possibilidade de controle pelo sujeito. O real

acontece para além das vontades ou desejos: ele produz um furo na ordem do

sujeito. Além disso ele é impossível de ser simbolizado, retornando sempre ao

mesmo lugar. Podemos associar o real ao trauma, o acontecimento intempestivo

que abala a realidade do sujeito e, ao mesmo tempo, possibilita uma reordenação


de significantes nas cadeias estruturantes desse mesmo sujeito.

Ao real se relaciona o simbólico. Podemos dizer que este trata do campo da

palavra e do saber do campo do sujeito. O simbólico pode ser aproximado às

questões culturais, mas, principalmente, ao significante e à linguagem, pois é ele

que produz o laço e a relação com o outro. Ele é da ordem da lei subjetivada pelo

indivíduo por meio dos símbolos e da linguagem; é ele que articula as relações

com o real e com o imaginário. O simbólico, podemos dizer, é o que procura

preencher o buraco deixado pelo real, muitas vezes sem sucesso, podendo
apenas lhe fazer borda, mas que insere a linguagem no cerne do sujeito. Lacan

vai dizer que “quando se trata do simbólico, isso diz respeito àquilo no qual o
sujeito se compromete numa relação propriamente humana [...]” (Lacan, 1953).

O imaginário está na ordem das imagens, surgindo para descrever o ciclo

instintual dos animais em suas relações. Ele comparece no humano como um

elemento que precede a simbolização, já que ele coloca em questão a relação de

dois – os elementos que aparecem em um disputa, na marcação do sujeito

enquanto “eu”. O imaginário, podemos dizer, está na ordem do ego, do ideal do

eu. Somente a inserção do sujeito no simbólico, como um terceiro, permite a


entrada na comunidade humana, pois se desloca a relação de “dois” para uma
relação de “três”, com a linguagem como mediadora.

Esses três registros se articulam de maneira fundamental e possuem a

linguagem como elo. O sujeito – em Lacan, sempre dividido –, emerge da cadeia

significante, das articulações desses elementos. Podemos dizer que o sujeito

representa o lugar do simbólico na articulação entre real e imaginário. Por um

lado, quando voltado para o real, o simbólico é da ordem significante, trazendo

para o centro a dimensão de evocação da linguagem, isto é, aquela que, pela

palavra, torna presente algo. Quando voltado para o imaginário, ele nos coloca

na relação com o caráter sígnico da linguagem, como um código que estabelece


os lugares dos elementos.

Conforme afirmamos, esses três elementos serão a chave de leitura de Lacan

para os fenômenos analíticos, como a transferência, a constituição do sujeito e a

linguagem. No que nos interessa acerca desse tema, podemos dizer que os

efeitos desse pensamento para se pensar a linguagem é fundamental. Com essa

tríade, o psicanalista francês traz de volta a dimensão da fala como constitutiva

do sujeito, permitindo pensar as relações simbólicas que se formam para além da


relação de dois; o simbólico, como aquele que faz laço, vai nos permitir trazer

para a reflexão o sujeito do inconsciente, e também o papel do reconhecimento


pela linguagem.

Esse último elemento é fundamental para fecharmos esta etapa. Quando

falamos da relação entre psicanálise e linguagem, há uma reinterpretação

profunda sobre o papel da linguagem. Ela agora não é mais um meio de

comunicação, no qual os “erros” os “ruídos” seriam problemas resolvidos; para

Lacan, a linguagem não serve para comunicar, ainda que nos comuniquemos por

ela; ela serve para produzir reconhecimento – o que significa aqui que estamos
colocando, no cerne do pensamento, não mais a comunicação que alcança seu
alvo, mas o processo em que o sujeito é produzido nas tramas desses

significantes. A linguagem, portanto, é da ordem do desentendimento; ela traz


consigo o real, de elementos que escapam, mas que produzem algo.

NA PRÁTICA

Leia, no livro A interpretação dos sonhos, de Freud, os trechos referentes aos


sonhos da “injeção de Irma”, e o da “monografia botânica”.

Com base nessa leitura, aplique os conceitos de condensação/metáfora e de

deslocamento/metonímia, buscando a trama de significantes que sustenta as

possibilidades de análise desses sonhos, identificando pelo menos um processo


metafórico e um processo metonímico em cada um deles.

FINALIZANDO

Nesta etapa, estudamos a relações entre linguagem e psicanálise com base

no “retorno a Freud” proposto por Lacan, tentando identificar os elementos que


possibilitaram essa releitura por meio de elementos da linguística.

Estudamos que Lacan retorna a Freud pelos elementos “condensação” e

“deslocamento” na análise dos sonhos. Deles, Lacan vai aproximar as noções de

metáfora e metonímia provenientes da linguística estrutural, que os define como


elementos fundamentais de qualquer língua. Tal leitura vai permitir a Lacan

descrever processos inconscientes com base em noções da linguística, relidas


pelo campo da psicanálise.

Esse processo vai também deslocar o pensamento linguístico. Lacan dará

primazia ao significante e à palavra e, desta, vai tirar as consequências teóricas

em relação ao sujeito, já que é na trama dos significantes, em suas articulações,


que se situa o sujeito. Não é mais o signo linguístico o elemento central, mas sua
materialidade, forma e, sobretudo, sua articulação com os outros significantes.

Por fim, esses elementos estão sempre relacionados à realidade, isto é, ao

processo que articula o real, o simbólico e o imaginário. Tal processo nunca se dá

isoladamente: a entrada no simbólico é a entrada no campo do outro, do terceiro

que media a relação entre dois, permeada pelo imaginário. O real é aquele que

escapa: a falha, o tropeço, aquele elemento que funda a ordem do mundo para
além dos sujeitos.

CULTURA E LINGUAGEM
AULA 5

Prof. Cícero Costa Villela


CONVERSA INICIAL

SUJEITO E IDENTIDADE CULTURAL

O que é a identidade? Como nos tornamos sujeitos sociais? O que há de

diferente nas identidades contemporâneas em relação às identidades construídas

durante a modernidade? Essas questões vão guiar nossa reflexão nesta etapa.
Afinal, não vivemos mais no mesmo mundo que os nossos antepassados.

A questão da identidade, enquanto uma categoria que situa o sujeito

socialmente, sofreu diversas transformações concomitantemente com as

mudanças na cultura do mundo ocidental. Os modos de produção de

mercadorias mudaram, as formas de produção de laço social perderam seus


caracteres locais e, hoje, vivemos nosso “eu” de forma cada vez mais fragmentada.

A mudança da percepção na identidade decorre das mudanças culturais que

passamos durante o século XX. Os novos meios de comunicação, as lutas por

independência das antigas colônias europeias na África, a mudança nos modos

de produção, enfim, a globalização como um todo deslocou as dimensões do


sujeito que pareciam ser estáveis até pouco tempo. Como diz Hall,

[...] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio,

fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito

unificado. A assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de

mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando

os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (Hall,

2015, p. 9)

Tais mudanças afetam diretamente a forma como os sujeitos se situam no

mundo, se percebem e percebem o outro, gera conflitos e, além disso, trazem


novas questões para as formas de adoecimento mental no mundo
contemporâneo.

Com isso, nosso objetivo é definir o que é identidade, apontar as questões

que entram em jogo nessa redefinição, entender o que possibilita essa nova

configuração sócio-cultural e, assim, apontar para os efeitos que estão sendo


produzidos no sujeito com essas mudanças.

TEMA 1 – TRÊS CONCEPÇÕES DE IDENTIDADE

Quando falamos em três concepções de identidade, estamos ao mesmo

tempo apontando para três diferentes momentos históricos que moldaram o que

se entendia por sujeito, sua forma de conhecer o mundo, seu papel nele e sua

relação com a cultura e a linguagem. Pensar dessa forma pode parecer, em algum

momento, um contrassenso, já que temos por óbvia a ideia de que somos já

sujeitos, isto é, pessoas situadas no mundo, que vivem e pensam de determinada


forma.

Todavia, apesar de nos sentirmos sujeitos e nos vermos como

individualizados, o que a realidade empírica confirma, tal categoria não é natural.

Ela foi objeto de diferentes debates filosóficos que tiveram como pano de fundo

formas dissonantes de se pensar tal questão. O sujeito pensado por Freud não é
o mesmo daquele pensado por Descartes, isso pelo fato das transformações

históricas-culturais que possibilitaram novos desenvolvimentos teóricos e


descrições de quem é esse sujeito.

Na sociologia da cultura contemporânea, a ideia de identidade - como um

elemento fundador do sujeito e de como ele estabelece suas relações com o

outro – é central. Por meio dela se pode pensar o sujeito situado no mundo e, ao
mesmo tempo, produto e produtor da realidade em que vive. Conforme
dissemos, nem sempre se pensou o sujeito da mesma forma, por isso, destacamos

três momentos centrais desse processo. Sendo estes: a) o sujeito do iluminismo;


b) o sujeito sociológico; c) o sujeito pós moderno (Hall, 2015).

O sujeito do Iluminismo teve como seu principal autor o filósofo Renè

Descartes, que se baseava em sua máxima do “penso, logo existo”, extraindo disso

uma concepção que colocava o indivíduo como autocentrado, ou seja, como uma

totalidade, unificado, sem contradições, capaz de se utilizar da razão para


construir o mundo, prenhe de consciência e senhor absoluto de suas ações.

Tal forma de conceber o sujeito pode ser chamada de individualista, já que

a pessoa nasce dotada de razão, esta que se desenvolve com o amadurecimento

do indivíduo, mas de forma com que ele seja sempre igual a si mesmo. Isso

significa que ele é sempre o mesmo, se mantém durante toda a sua existência da

mesma forma, independente da linguagem ou da cultura, já que esse indivíduo é


o criador do mundo, independente dos outros.

Essa concepção do sujeito foi a base do racionalismo da idade moderna, bem

como abriu o flanco para o pensamento utilitarista – baseado na concepção de

que o indivíduo age para maximizar seus interesses. Apesar de importante para

o desenvolvimento das ciências, ela mantém de fora elementos fundamentais da

vida, como a coletividade, os valores sociais compartilhados e o processo de

incorporação desses valores na sociedade, fazendo com que o indivíduo se baste


a si mesmo.

No século XIX, com o desenvolvimento da sociologia, ganha forma uma nova

concepção de sujeito, não pensado mais como isolado e criador autocentrado,


mas que está sempre em contato com o “outro”.

A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência

de que esse núcleo interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas era formado na relação
com “outras pessoas importantes para ele”, que mediavam para o sujeito os valores, os sentidos e os

símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava (Hall, 2015. p. 11)

Dessa forma, a identidade não vai ser mais pensada como um processo único

de cada indivíduo, esse “interior” que se sustenta apesar dos acontecimentos

“exteriores”. Ela passa a ser pensada como um processo de interação entre o “eu”

e a sociedade (Goffman, 1985). Há um “eu” real, interior, mas este se modifica de

acordo com os contatos com o “outro”, com a sociedade, com a cultura, que
disponibilizam as identidades.

Pensar a identidade a partir dessa perspectiva produz um descentramento

do sujeito, já não mais senhor de si, mas marcado pelo fato da identidade

preencher o espaço entre o “dentro” e o “fora” do sujeito. Pode-se dizer que nós

projetamos nosso eu no mundo de determinada maneira, estas que são

disponibilizadas pela sociedade e pela cultura. Isto é, nós produzimos nossa

identidade a partir do papel social que assumimos no mundo, a partir de uma

relação com os valores sociais que estão presentes na cultura. A identidade se dá

no processo de incorporação desses valores culturais pelo sujeito, fazendo com


que eles sejam “parte de nós”.

Com isso, a forma como nos vemos e como agimos no mundo está marcada

sempre pela relação que estabelecemos com outros sujeitos, a forma como

somos socializados. O papel que ela cumpre é de dar estabilidade para o sujeito
ao se ver pertencente a determinado grupo ou comunidade.

Só foi possível pensar o sujeito dessa forma devido à sociedade de massas

emergente com a revolução industrial. Esse processo de estabilização do sujeito

e suas relações rompe com o legado das pequenas comunidades, possibilitando

que os indivíduos se situem para além dos contatos imediatos, ainda que estes
permaneçam importantes na incorporação de valores culturais.
O mundo atual, em especial com a globalização, faz com que essa suposta

estabilidade da identidade sofra alguns baques. O crescimento dos meios de

comunicação, das redes sociais, faz com que os reconhecimentos de base dos

sujeitos sociológicos se situem para além da socialização primária, provocando a


passagem do sujeito por um novo descentramento.

A identidade do sujeito pós-moderno é, portanto, móvel, passando mais pela

forma como nos reconhecemos nas representações sociais do que por um certo
núcleo duro no qual incorporamos os valores sociais. Ela

É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em

diferentes momentos, identidades que não são unificados ao redor de “eu” coerente. Dentro de nós

há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas

identificações estão sendo continuamente deslocadas. (Hall, 2015, p. 12)

Com isso, o sujeito contemporâneo é constituído a partir das formas como

ele é interpelado pela cultura e pelos sistemas de significação. Esses elementos

passam pela mídia, por exemplo, ao estabelecer determinados padrões de

comportamento ou dizer o que é ou não saudável. Essa multiplicação dos

sistemas de significação faz com que, a cada momento, nos confrontemos com
identidades possíveis e, de alguma forma sejamos capturados por elas.

TEMA 2 – AS MUDANÇAS NO MUNDO


CONTEMPORÂNEO

Terminamos o tópico anterior falando das mudanças ocorridas nas

identidades culturais no mundo atual. Vamos, com isso, aprofundar nosso debate

sobre essas mudanças que permitiram a emergência de novas questões sobre o


sujeito e sua identidade.
O período da modernidade, especialmente o século XIX, fez com que as

formas de socialização comunitárias e tradicionais perdessem força, gerando uma

aceleração e colocando como elemento central a mudança, levando a uma certa

instabilidade à forma como os sujeitos se viam no mundo. Como afirmam Marx


e Engels,

[é o ] permanente revolucionar da produção, o abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a

incerteza e o movimento eternos... Todas as relações fixas e congeladas, com seu cortejo de vetustas

representações e concepções, são dissolvidas, todas as relações recém-formadas envelhecem antes de

poderem ossificar-se. Tudo que é solido se desmancha no ar. (Marx; Engels, 2009, p. 70)

Essa constante mudança no mundo moderno, acelerado com o processo de

globalização, a partir da década de 60 do século XX, faz com que os sujeitos

percam suas raízes, se vejam cada vez menos dependentes de suas relações
locais, gerando, com isso, uma sensação de vazio ou de angústia.

Tal processo está marcado pela aceleração provocada pelos meios de

comunicação, ou como diz Hall (2015), uma compressão do espaço-tempo, no

qual as relações passam a ser mediadas pelas técnicas comunicacionais, fazendo

com que as identidades não mais sejam construídas apenas a partir da

incorporação de valores da comunidade mais próxima, mas que se relacionem


com os valores que circulam no mundo interconectado, independente do local.

Há aqui todo um caráter de mudança na cultura do mundo ocidental, que

alterou seu modo de produção. O trabalho material deixou de ser elemento

fundamental, passando agora a ocupar outro espaço, mais fragmentado, com


menos possibilidades da construção de uma cultura local.

Pode-se dizer que houve um deslocamento dos centros de poder. Se na

modernidade havia uma liderança, fosse o dono do local de trabalho, ou mesmo


lideranças locais e até o Estado nacional, na pós-modernidade esse centro fica
disperso, exatamente pelo caráter de compreensão do espaço-tempo, fazendo
com que as relações de poder sejam descentralizadas.

Pensar na descentralização do poder é trazer mais um elemento para a

questão das identidades. Isto é, quando falamos em cultura agora não estamos

apenas falando de valores culturais supostamente neutros, mas de que a cultura,


a linguagem e as identidades são questões políticas.

É preciso que fiquemos atentos que, ao falarmos sobre a cultura e a

identidade como questões políticas, não estamos reduzindo a política ao sistema

eleitoral, mas pensando-a como constitutiva da sociedade, já que esta é sempre


permeada por relações de poder.

Esse deslocamento nos possibilita o entendimento das reivindicações

contemporâneas de grupos minoritários, como a população LBTQIA+,

movimento negro, os movimentos ecológicos e o movimento feminista. Pois, se

na modernidade havia uma possibilidade de unificação das pautas em torno das

reivindicações sobre melhorias nas condições de trabalho, hoje, com o

deslocamento das questões da identidade para a representação, a luta passa a

ser por reconhecimento e integração ao sistema jurídico, ou seja, reconhecimento

de modos de vida diferentes dos hegemônicos. Hall vai definir esse momento ao
retomar o pensamento de Ernesto Laclau, ao dizer:

As sociedades na modernidade tardia [ou pós-modernidade como estamos dizendo], argumenta ele,

são caracterizadas pela “diferença”; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos

sociais que produzem uma variedade de diferentes “posições sujeito” – isto é, identidades – para os

indivíduos. (Hall, 2015, p. 14)

O que vemos com isso, portanto, é uma mudança na forma de percepção do

sujeito, cuja própria existência se torna um elemento de luta política de


reconhecimento. Além disso, não é mais possível falar de uma identidade estável,
há, na verdade, uma série de identificações, muitas vezes contraditórias,

disponíveis socialmente, que capturam o sujeito de determinada forma. O sujeito

é, com isso, uma posição social de caráter móvel. O sujeito muda e carrega

consigo essas identificações, buscando alinhavar, de alguma forma, as


contradições que o movem.

TEMA 3 – AS COMUNIDADES IMAGINADAS

Finalizamos o tópico anterior falando que carregamos identidades muitas

vezes contraditórias em nós mesmos. A pergunta que fica é: como conseguimos

lidar com isso? Quais estratégias adotamos para conseguirmos construir nossas
identidades em um mundo no qual a impermanência é uma constante?

A resposta a essa questão parte do trabalho do conceito de Comunidades

Imaginadas, de Benedict Anderson (2008). Ele vai dizer que as culturas nacionais

são formadas por um tipo de vínculo que não é natural, mas que se dá a partir

de narrativas produzidas sobre a nação, seus heróis, suas tradições, seu mito

fundador. Esse é o caráter da comunidade imaginada, que é sempre uma

articulação de histórias e discursos que criam o pertencimento à nação. Essa

narrativa cria uma amálgama de pertencimento de grupos heterogêneos, sendo

que o caráter dessa criação nem sempre é pacífico, basta lembrarmos o número

de indígenas mortos no processo de colonização no Brasil para o


estabelecimento da história do “descobrimento” do país.

É importante repararmos que o argumento de Anderson se volta para a

nação, ou seja, a um momento histórico em que ainda se pensava na noção de

pertencimento de forma estável. A questão a ser destacada é que tal processo de

amalgamar histórias e produzir uma narrativa coerente sobre si e o mundo é o


que possibilita a estabilidade na pluralidade de identidades do mundo
contemporâneo.
Essa forma de organizar discursos historicamente, de se produzir coerência
é a base das identidades plurais que:

Em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos pensá-la como constituindo

um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são

atravessadas por profundas divisões internas, sendo “unificadas” apenas através do exercício de

diferentes formas de poder cultural. (Hall, 2015, p. 36)

Pensemos nesse aspecto, portanto, a partir de um fenômeno específico: as

identidades empresariais. Elas vão nos permitir ver a existência dessas

multiplicidades de identidades que estão atreladas a relações de poder que


incorporamos em nosso cotidiano.

Em toda empresa há a chamada “carta de princípios”, na qual se declara os

valores defendidos pela corporação. Tais valores constituem a base do perfil de

funcionário desejável e que, por sua vez, vai “vestir a camisa” do trabalho. O

sujeito funcionário fica em impasse: se adaptar a valores que poderia não

acreditar ou simplesmente se reconhecer nesses valores e automaticamente viver

a cultura da empresa e defender seus valores. Obviamente o segundo perfil é

mais desejável, ele pode ser considerado o perfil ideal dessa identidade. Sua

jornada de descoberta de identidade na empresa se dá não pela construção de


algo novo, mas pelo reconhecimento daqueles valores em si mesmo.

Percebam que esse movimento não é simples, já que há conflitos envolvidos

nisso e que há no cotidiano desse funcionário pequenos poderes que o levam a

tomar determinada atitude, ou se comportar de determinada forma. São os micro

controles cotidianos que levam tanto à adaptação em um caso, ou ao

reconhecimento no outro. O funcionário é livre, desde que siga a cartilha da

empresa. Essa é a contradição constitutiva de toda e qualquer identidade, se é


apenas livre a partir do momento em que se incorpora os mandamentos morais
de determinada comunidade.

Tal processo não é exclusivo das identidades empresariais. Os movimentos

sociais também funcionam nessa lógica de reconhecimento e adaptação, todavia

voltadas para outras questões. Quando se pergunta o que é a mulher, o

homossexual ou o negro, há variadas respostas, mas todas com uma certa


coerência em relação a valores defendidos pelos grupos em questão.

Essa relação entre liberdade e cultura é uma questão incontornável e

possivelmente sem solução, pois somente somos livres de maneira limitada, pois

para cada um de nós é fundamental se reconhecer socialmente em uma, ou


algumas, identidade(s).

Esse movimento de reconhecimento por meio das representações sociais é

que marca a identidade e a diferença, já que só há identidade quando há

diferença. Ou seja, ela é sempre uma marca de diferenciação em relação a um

outro, ao mesmo tempo em que marca a igualdade com tantos outros. Nessa

relação entre “nós” e “eles” entra o sentido político das reivindicações, já que em

sociedades desiguais, como a nossa, é sempre preciso a busca pelo


reconhecimento de direitos em relação ao Estado.

Com isso, podemos dizer que, ao construírem suas histórias, suas narrativas

e suas memórias, os diferentes grupos de identidades formam uma comunidade

imaginada. Esta não está mais presa a um território, mas se multiplica, já que as

relações não dependem mais do contato face a face, elas circulam, gerando

reconhecimento em diferentes lugares, mas fazendo com que diferentes pessoas

se identifiquem aos mesmos valores culturais, independente do lugar em que


habitam.
TEMA 4 – UMA QUESTÃO PRÁTICA DE IDENTIDADE

Falamos, até o momento, do processo teórico de como se estabelecem as

identidades sociais. Mostramos seu caráter cultural politico e de como as

contradições são absorvidas na construção de narrativas coerentes sobre a


identidade e o pertencimento a determinados segmentos sociais.

Todavia, tal processo é contraditório e coloca os sujeitos em impasses nas

lutas cotidianas de reconhecimento. Vamos com isso trazer um exemplo concreto

nesse tópico, para vermos como essas questões permeiam a sociedade. Retiro o
exemplo de Hall (2015).

Em 1991, o presidente americano Bush indica para a Suprema Corte o juiz

Clarence Thomas. Seu objetivo era restaurar uma maioria conservadora na casa

judicial e, ao mesmo tempo, buscar representatividade, já que o Juiz Thomas era

um negro. Tal movimento do presidente americano vem como resposta às

acusações de que ele era racista e que jamais indicaria um juiz negro para a

Suprema Corte. Sua tentativa foi de ganhar apoio em relação aos conservadores

americanos, já que Thomas defendia tais pautas e acenava também aos

movimentos negros a o apoiarem, pois se tratava de um homem negro,

proveniente de uma parte da população que sofre com o racismo na sociedade.

Bush estava, com isso, jogando o jogo das identidades com tal aceno
contraditório.

Durante as audiências no Senado para a indicação de Thomas, o Juiz foi

acusado de assédio sexual por uma mulher negra, Anita Hill, uma ex-colega dele.

As acusações causaram um grande escândalo e polarizaram a sociedade

americana em torno da questão. Alguns homens negros apoiaram Thomas,

baseados nas questões de raça, outros se opuseram a ele devido à questão


sexual.
As mulheres negras também ficaram divididas em relação à questão, a

depender de qual identidade prevalecesse na análise do problema, a racial ou a

de gênero. Mulheres e homens brancos também ficaram divididos, de acordo

com as identidades conservadoras ou liberais em relação ao tema. Muitas pessoas

o apoiaram por se tratar de um juiz alinhado aos valores conservadores. Além

disso, Anita Hill era uma funcionária subalterna, enquanto o Juiz era da elite

judiciária americana, fato que também mexeu no jogo político das identidades, a
partir das questões de classe.

O que é importante perceber neste caso não é se Thomas era inocente ou

culpado, mas como as posições em torno da questão giraram ao redor das


identidades em jogo. Além disso, há aqui não apenas valores culturais, mas todo

um jogo político em relação às posições dos sujeitos, permitindo com que eles

façam uma leitura da disputa política a partir das leituras de mundo que as
identidades disponibilizam para os indivíduos.

Esse exemplo nos leva a considerar a questão a partir dos seguintes


elementos:

- As identidades eram contraditórias. Elas se cruzavam ou se deslocavam mutuamente.

- As contradições atuavam tanto “fora”, na sociedade, atravessando grupos políticos estabelecidos,

quanto “dentro” da cabeça de cada indivíduo.

- Nenhuma identidade singular – por exemplo, de classe social – podia alinhar todas as diferentes

identidades com uma “identidade mestra” única, abrangente, na qual se pudesse, de forma segura,

basear uma política. As pessoas não identificam mais seus interesses sociais exclusivamente em termos

de classe; a classe não pode servir como um dispositivo discursivo ou uma categoria mobilizadora

através da qual todos os variados interesses e todas as variadas identidades das pessoas possam ser

reconciliadas e representadas. [...]


- Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou

representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida. Ela tornou-se

politizada. (Hall, 2015, p. 15-16)

Estamos, portanto, no momento de maior descentramento do sujeito, que

vive sua contradição na busca de uma identidade possível para produzir sentido

para o mundo. Essas que estão sempre em jogo politicamente, afetadas pelas

relações de poder e, ao mesmo tempo, constitui a forma como o sujeito percebe


a si mesmo e ao mundo em que vive.

Esses elementos contraditórios ganham várias faces, como vimos no

exemplo do juiz Thomas, mas também possibilitam a compreensão das relações

que a globalização permite, bem como as contradições que ela engendra em


relação às culturas locais.

TEMA 5 – O GLOBAL E O LOCAL

Vimos até aqui o fato da multiplicação das identidades, do descentramento

do sujeito e o jogo político em que sujeitos e suas identidades entram. Esse

elemento é acelerado pelo processo de globalização, especialmente quando


olhamos para a comunicação e as redes sociais que atuam de forma global.

Hoje, as identidades são construídas pelas identificações com comunidades

imaginadas que circulam pelo mundo nas redes. É possível ter uma posição

acerca da guerra na Ucrânia, se identificar e se manifestar a favor de povos

oprimidos na Síria e, ao mesmo tempo, consumir produtos voltados para nichos

de mercado. A globalização, em sua forma econômica, também faz o jogo político


das identidades por meio do consumo.
Esse elemento é fundamental para olharmos o quanto os sujeitos, à deriva,

se engajam em causas e ao mesmo tempo reproduzem uma lógica cultural


dominada por valores ocidentais.

Durante toda a década de 90, o debate sobre a globalização afirmava um

medo da homogeneização cultural dos países ao redor do globo, havia um medo

de que ela fosse capaz de solapar culturas locais e, com isso, colocar em risco a
“unidade” das culturas nacionais.

Porém, não foi esse o movimento que ocorreu. O que se observa é que há

uma grande capacidade de adaptação do mercado global na construção de

nichos de consumo, voltados para públicos locais, adaptados às demandas de

determinados países, ao mesmo tempo em que mantém seu movimento


enquanto uma cultura hegemônica.

Com isso, podemos dizer que a globalização possui a tendência contraditória

de tentar homogeneizar, mas enfrenta como reação a construção de novas

culturas locais que se dão por meio dela. É possível afirmar então que as culturas

locais se apropriam de uma cultura global e, a partir dela, refazem seus laços não
apenas localmente, pois se inserem em um movimento global.

Vale destacar que quando falamos de “local” não estamos falando de

comunidades tradicionais, isoladas, mas de comunidades imaginadas que se

situam em Estados nacionais, em clases sociais, em movimentos sociais etc. Todos

estamos nesse processo de captura por representações globais, de identificação

com valores que circulam globalmente, mas que ganham características locais
próprias.

Esse elemento de pressão feito pela globalização sobre as culturas gera dois

tipos de fenômenos. O primeiro deles diz respeito a um fortalecimento dos


nacionalismos. Com o aumento do fluxo de pessoas e informações, há uma
tendência a autoproteção das culturas nacionais, gerando muitas vezes discursos

xenófobos e racistas. Um exemplo desse fenômeno pôde ser visto durante o

governo Trump nos Estados Unidos, que foi fortemente baseado em discursos

anti-migração, de construção de muros nas fronteiras em nome de uma certa


cultura norte-americana.

Tal fenômeno é mundial, pois, dado o processo de expansão da globalização

em sua via multicultural, há sempre alguma resistência em relação ao

reconhecimento do outro enquanto membro de uma comunidade. Há aqui

questões políticas graves, já que muitas vezes o processo identitário se dá de

maneira tão forte que alguns sujeitos são capazes de matar ou morrer em nome
desses valores.

Por outro lado, há também a valorização de culturas que antes sequer

podiam ser reconhecidas e que ganharam visibilidade em sua luta. Podemos citar

como exemplo os protestos em 2020 no Chile, que levaram à convocação de uma

constituinte que passa a reconhecer as populações indígenas em suas


especificidades.

Um outro exemplo de movimento mundial de reconhecimento se deu pelas

identidades que emergiram em torno do significante black. Segundo Hall, ela


fornece

[...] um novo foco de identificação tanto para as comunidades afro-caribenhas quanto para as asiáticas

[poderíamos dizer para as latinas também]. O que essas comunidades têm em comum, o que elas

representam através da apreensão da identidade black, não é que elas sejam cultural, étnica, linguistica

ou mesmo fisicamente a mesma coisa, mas que elas são vistas e tratadas como a “mesma coisa” (isto

é, não brancas, como outros) pela cultura dominante. (Hall, 2015, p.51)

Tais lutas, como o black, as identidades de gênero e o feminismo são frutos


dessa nova formulação das identidades que passam pela conquista e a luta de
direitos de minorias sociais em busca de reconhecimento pelo Estado em suas

especificidades. Tais lutas ganham amplitude com a globalização, já que ela


possibilita uma unificação das pautas para além de questões locais.

Contudo, elas também enfrentam a resistência das novas formas de

nacionalismo que são frutos do mesmo processo global. Esse processo

contraditório de luta de identidades é que caracteriza a dinâmica social e política

hoje. É em torno delas que o debate público e os conflitos inerentes ao social, em


especial na sua face cultural, se fazem.

NA PRÁTICA

Em 2016, o jogador de futebol americano Colin Kaepernick se ajoelhou

durante a execução do hino nacional americano em uma partida. Seu gesto,

segundo ele mesmo, foi feito como forma de denúncia aos abusos cometidos por

policiais em relação à população negra americana. A partir disso, busque

matérias online e procure identificar como se deu o debate acerca das

identidades “negra” e “americana” com o gesto de Colin. Quais foram os termos

do debate? Como cada um dos grupos designavam os outros? Quais foram os

efeitos sociais desse processo, tanto para sociedade quanto para Colin
Kaepernick?

FINALIZANDO

Durante essa etapa estudamos o processo de produção e desconstrução das

identidades modernas, buscando compreender quais foram as condições sociais

de emergência de novas identidades e a forma como elas são moldadas na


atualidade.
Vimos que a globalização gera efeitos tanto para o avanço de pautas

civilizatórias, quanto para seu recuo. Ela gera consequências de expansão das

lutas e ao mesmo tempo resistência na forma de nacionalismos, xenofobia e


racismos.

Pudemos perceber que as identidades são históricas, construídas por meio

de comunidades imaginadas que se multiplicam no mundo atual e que buscam

articular as contradições a partir de narrativas e discursos. Com isso, a identidade

se torna uma questão de representação, fazendo com que o sujeito veja a si

mesmo e a sociedade a partir das diferentes identidades que ele assume em sua
trajetória.

Tais representações e identidades possuem alcance mundial, fazendo com

que haja uma articulação em níveis globais que pressionam as culturas locais à

mudança. Estas, por sua vez, se apropriam dessa cultura global à sua forma,
gerando novas formas de vida e identidade.

Em meio a todo esse processo, o sujeito vai se produzindo, a partir das

interpelações feitas pela cultura, nas quais ele se reconhece. Tal fato nos mostra

que o sujeito, seus valores e sua forma de enxergar o mundo é limitado pela

cultura, pela sociedade e pelos valores que absorvemos durante todo esse
processo de contato com o outro.

CULTURA E LINGUAGEM
AULA 6
Prof. Cícero Costa Villela

CONVERSA INICIAL

Vimos na etapa passada que a globalização alterou as peças do jogo social,

fragmentando identidades, exercendo pressões culturais e, dessa forma, gerando

novas formas de conflitos políticos e culturais. Mas não são apenas esses os
efeitos e as causas do descentramento do sujeito, em suas contradições.

Atrelada a esse processo, há a mudança no modo de produção capitalista,

chamada de neoliberalismo, que potencializou o individualismo, flexibilizou leis

trabalhistas, gerando a figura do empreendedor autônomo desregulamentado e


alterou os termos da produção de laços sociais.

Podemos dizer que o Mal-Estar analisado por Freud, em 1930, adquire hoje

novos contornos para os sujeitos e para a sociedade, gerando novos mal-estares

e alterando as relações que se estabelecem com o outro na sociedade. Estamos

em meio à produção de uma nova cultura que, ao mesmo tempo, produz novas
formas de mal-estar. Se em Freud se falava da troca de um punhado de liberdade
por um pouco de segurança, hoje a ordem da equação se inverteu. De acordo
com Bauman (1998, p. 10):

os homens e mulheres pós-modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por

um quinhão de felicidade. Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança

que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-

modernidade provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança

individual pequena demais.

Esses novos contornos culturais geraram efeitos nos sujeitos, produziram

novas formas de viver e novos sofrimentos. Achataram a dimensão social,

trazendo-a para a dimensão individual. A flexibilização do trabalho alterou as

formas de projeção do futuro dos sujeitos, já que as garantias de emprego se

tornam cada vez mais escassas, as possibilidades de se narrar e projetar a vida


também se tornaram rarefeitas (Sennet, 1999; 2006).

Além disso, o processo de aceleração do consumo produziu novas

identidades, cada vez mais instáveis, gerando um processo de exclusão de

sujeitos do mundo atual (Bauman, 1998). Esse processo de individualização

atrofiou a possibilidade de compartilhamento da dor com outro, jogando o

sujeito em um processo de perda simbólica na elaboração de seu sofrimento


(Birman, 2012).

Por fim, o modo de produção neoliberal introduz novas técnicas de poder

sobre o sujeito, permeado pelo processo de isolamento individualista, que leva à


emergência de novas configurações do sofrimento humano (Han, 2018).

Essas questões serão objeto dessa etapa. Falaremos sobre cada uma delas,

com o objetivo de compreensão do mundo contemporâneo, de sua cultura e da

emergência de novos sofrimentos para os sujeitos. Consideramos esses


elementos fundamentais para a compreensão não apenas da sociedade, mas
também para se escutar as novas configurações de mal-estar que emergem na
atualidade.

TEMA 1 – PUREZA E IMPUREZA

Em conteúdos anteriores, vimos a análise feita por Freud do Mal-Estar na

Civilização. Nela, o psicanalista austríaco apresentava o fato de que havia valores

de base na cultura ocidental. Estas estavam ligadas a, pelo menos, dois valores

de base: a pureza e a ordem. Vamos comentar rapidamente cada uma delas e


mostrar como elas se alteraram no mundo contemporâneo.

Quando falamos de pureza e ordem, estamos em duas discursividades que

se tocam. O processo civilizador coloca elementos como a higiene e a

organização como centrais para seu desenvolvimento. Estabelece-se uma ordem

social, padrões de limpeza urbana, locais específicos para depósito dos rejeitos.

Além disso, é na modernidade que se desenvolve a medicina, como aquela que

busca purificar o corpo de suas mazelas e a ordem como um dos elementos do


belo e das artes.

A pureza é uma visão das coisas colocadas em lugares diferentes dos que elas ocupariam, se não

fossem levadas a mudar para outro, impulsionadas, arrastadas ou incitadas; e é uma visão da ordem

— isto é, de uma situação em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro. (Bauman,

1998, p. 14)

Esse processo, à primeira vista, é benéfico para a cultura humana, mas ele

engendra uma contradição. Podemos colocá-la a partir da seguinte questão: o

que ocorre quando esses valores deixam de ser pensados somente em relação a

si e aplicado ao outro? Tal pergunta nos permite pensar a cultura ocidental e seus
“outros”.
Como vimos, toda cultura é uma particularidade. A novidade da cultura

ocidental, ou civilização, é o fato de ela buscar universalizar suas particularidades.

Em seus sentidos de ordem e pureza, ela engendra um processo de organização

social que, em suas fundações, exclui alguns atores sociais. Podemos dizer que

ela é basicamente uma cultura europeia, branca e masculina. Isso significa, que

em seu funcionamento, ao menos inicial, indígenas, negros e mulheres eram


excluídos de sua ordem.

Se olharmos para discursos sobre os negros no século XIX, veremos os

apontamentos de que são desorganizados, que mulheres não são racionais e que

indígenas não possuem higiene básica. Tais estereótipos mostram que o processo
de exclusão social (podemos falar de discursos racistas, xenófobos e misóginos)

passa por um certo sonho de pureza, em que essas categorias sociais foram
consideradas impuras e, por isso, passíveis de exclusão.

Historicamente, há dois fenômenos que materializam o sonho de pureza da

cultura europeia. O colonialismo, que dizimou milhares de indígenas e negros

para impor a cultura europeia ao redor do globo e o fascismo, que também

dizimou milhares de judeus na Europa, a partir da justificativa de que era uma


raça impura.

É importante percebermos que há aqui a articulação de pureza e ordem e

que isso permitiu a classificação dos sujeitos entre os “puros” e os “impuros”. Os

puros sendo aqueles que vivem dentro dos ordenamentos e os impuros, seus

outros, ou aqueles que habitam o campo da diferença. Estes foram vistos como
obstáculos à civilização. Ainda segundo Bauman (1998, p. 17),

entre as numerosas corporificações da “sujeira” capaz de minar padrões, um caso — sociologicamente

falando — é de importância muito especial e, na verdade, única: a saber, aquele em que são outros

seres humanos que são concebidos como um obstáculo para a apropriada “organização” do ambiente;
em que, em outras palavras, é uma outra pessoa ou, mais especificamente, uma certa categoria de

outra pessoa, que se torna “sujeira” e é tratada como tal.

Esses caracteres emergiram na modernidade, mas ganharam diferentes

contornos no mundo contemporâneo. Com o avanço das lutas por

reconhecimento das identidades, mulheres, negros, pupulações LBTQIA+,

conquistam direitos e passam a ser menos ameaçados em sua existência (ou, ao

menos parte deles). A questão que se coloca é quem são os “impuros” do mundo
contemporâneo. Ou seja, como se dá a relação com o “outro” na sociedade?

É preciso lembrar que a grande mudança ocorrida nos últimos 50 anos está

atrelada ao mundo do consumo. Este se tornou um elemento central na vida de

todos. Além disso, o avanço tecnológico e a desregulamentação do trabalho

criaram uma grande massa de desempregados, jogando milhares de sujeitos na

rua, sem capacidade de consumir, tendo de viver de esmolas. Essa perda de

garantias sociais dadas pelo Estado faz com que a ordem seja pensada de outra

forma. Os novos-puros são os que jogam o jogo do consumo, e os novos-


impuros são aqueles apartados desse processo.

Uma vez que o critério da pureza é a aptidão de participar do jogo consumista, os deixados de fora

como um “problema”, como a “sujeira” que precisa ser removida, são os consumidores falhos —

pessoas incapazes de responder aos atrativos do mercado consumidor porque lhes faltam os recursos

requeridos, pessoas incapazes de ser “indivíduos livres” conforme o senso de “liberdade” definido em

função do poder de escolha do consumidor. São eles os novos “impuros”, que não se ajustam ao novo

esquema de pureza (Bauman, 1998, p. 24)

É importante percebermos que o critério do consumo permeia todas as lutas.

Percebam que quanto maior a capacidade de consumo de uma população, ou de

um sujeito pertencente a um grupo minoritário, menor será a possibilidade de


ele sofrer algum tipo de ataque.
O consumo passa a balizar o funcionamento da sociedade na tentativa de se

livrar das mazelas que ela mesma produziu. Esse novo sistema de exclusão

engendrado no mundo contemporâneo se justifica, muitas vezes, a partir de uma

responsabilização individual daquele que está excluído. Discursos sobre falta de

esforço, sobre o mérito, são mobilizados para justificar socialmente a grande


gama de excluídos produzidos nas condições de produção atual.

Tal individualização é fundamental para o funcionamento do mundo atual,

no qual os problemas se reduzem, no discurso oficial, ao indivíduo. Este vai ser o

elemento central na mudança que houve com as formas de se lidar com o “outro”
que falaremos mais no próximo tema.

TEMA 2 – OS “OUTROS” DA SOCIEDADE

Toda forma de ordenamento social e cultural cria seus “outros”, isto é,

sempre que se estabelecem padrões culturais, estes estabelecem quem pertence

e quem não pertence a determinado grupo. Tal criação não é algo nem positivo

nem negativo, ela simplesmente acontece a partir dos processos de identificação


entre os sujeitos em sua busca por proteção.

Todavia, o “outro” nem sempre é uma figura facilmente lidável para o sujeito.

Ele é incorporado em sistemas imaginários que o situam na sociedade, em relação


aos outros grupos, podendo ser incluído de determinadas formas ou excluído.

Quando pensamos no mal-estar contemporâneo, olhamos para o registro

do sujeito, sua forma de incorporação dos valores simbólicos e,

consequentemente, a forma como o outro na sociedade passa a ser encarado. Já

mencionamos, quando falamos de pureza, as maneiras como os modernos

lidaram com essa questão, e agora vamos aprofundar esse debate acerca da
relação “eu”-“outro”.
Conforme nos diz Bauman (1998, p. 27),

[A sociedade] Ao mesmo tempo que traça suas fronteiras e desenha seus mapas cognitivos, estéticos

e morais, ela não pode senão gerar pessoas que encobrem limites julgados fundamentais para sua vida

ordeira e significativa, sendo assim acusadas de causar a experiência do mal-estar como a mais

dolorosa e menos tolerável.

No primeiro momento, tais fronteiras entre os pertencentes a determinados

grupos e os outros foram administradas pelo Estado. A criação do Estado-Nação

fez com que se aglutinassem, de diferentes formas, mais ou menos violentas,

grupos sociais de valores relativamente parecidos, mas que se identificavam com


as narrativas sobre a nação em que viviam.

O Estado erigiu um ordenamento que colocou os sujeitos em seus lugares,

posições de poder, trabalho, garantias individuais, direitos etc. Esse ordenamento

possibilitou toda a construção de uma previsibilidade para o sujeito, que podia

criar perspectivas de futuro, este quase sempre compartilhado, já que outros se


encontravam na mesma situação social.

A identidade para o sujeito, nessa conjuntura, era uma questão de atribuição,

de inserção no social, compartilhamento de planos e possibilidades coletivas.

Com a mudança de paradigma do Estado, a partir do regime neoliberal, que

buscou potencializar o indivíduo, algo mudou. A identidade fragmentada, como

vimos, passou a circular por outros espaços, gerando uma certa instabilidade para

os sujeitos, ao mesmo tempo em que o Estado reduz o seu tamanho e sua

possibilidade de oferecimento de garantias sociais. A identidade agora passa a

ser uma questão de realização, tornando-a tarefa exclusiva do indivíduo (Bauman,


1998).

Tal processo de desregulamentação social, fazendo com que os valores


sociais passem a estar sujeitos às concepções de mercado, isto é, a uma lógica de
troca e uma moral utilitarista, fez com que as relações sociais se tornassem mais

instáveis. Tal fenômeno é o que o autor chama de relações líquidas, que passam

a se estabelecer por uma moral individual, na qual cada indivíduo retira seu valor
não mais da comunidade, mas a partir daquilo que ele pode oferecer.

Os laços sociais se enfraquecem, segundo essa concepção, ao mesmo tempo

em que o indivíduo se torna o elemento soberano da sociedade. As

consequências para o sujeito desse processo se liga a um constante sentimento

de abandono, já que parece não haver uma ordem compartilhada de sofrimentos.

Além disso, a lógica do mercado faz com que se apaguem as noções de garantias

fundamentais para os sujeitos, fazendo com que situações como desemprego e


pobreza sejam interpretadas como falhas morais individuais.

A responsabilização individual pelo sofrimento é uma consequência desse

processo de desregulamentação da vida social e, concomitantemente, sustenta a

posição de que toda a produção do laço social é feita apenas por encontros

momentâneos, feitos para não durar. Perde-se a dimensão temporal para o

sujeito, empobrecendo-o das dimensões simbólicas da vida e relegando seu


papel ao imaginário.

Nesse mundo, os laços são dissimulados em encontros sucessivos, as identidades em máscaras

sucessivamente usadas, a história da vida numa série de episódios cuja única consequência duradoura

é a sua igualmente efêmera memória. (Bauman, 1995, p. 36)

A relação com o outro, com isso, se empobrece. Não se trata mais da criação

de um mundo compartilhado, mas apenas de encontros instantâneos que deixam

de fazer sentido logo após se desfazerem. Os sujeitos ficam em desalento,

abandonados à própria sorte, voltados apenas para si mesmos e às imagens que


fazem de si.
Tal fenômeno foi chamado por Lasch (1983) de Cultura do Narcisismo, no

qual o sujeito volta-se apenas para si mesmo, fazendo com que a relação com o

outro seja sempre mediada pela representação de ameaça que ele traz às
próprias certezas do indivíduo.

Tais certezas são do campo imaginário, este que toma a centralidade das

relações sempre instantâneas, sem perspectiva simbólico-temporal;

empobrecendo o sujeito, gerando relações menos significativas e, ao mesmo

tempo, gerando sofrimentos ligados à sensação de abandono ou narcísicos. O


sujeito, nesse novo mundo, vale mais pela imagem que constrói de si.

Como tudo o mais, a imagem de si mesmo se parte numa coleção de instantâneos, e cada pessoa deve

evocar, transportar e exprimir seu próprio significado, mais frequentemente do que abstrair os

instantâneos do outro. Em vez de construir sua identidade, gradual e pacientemente, como se constrói

uma casa — mediante a adição de tetos, soalhos, aposentos, ou de corredores —, uma nova série de

“novos começos”, que se experimentam com formas instantaneamente agrupadas mas facilmente

demolidas, pintadas umas sobre as outras: uma identidade de palimpsesto. (Bauman, 1995, p. 36)

Esse fenômeno pode ser observado no cotidiano das redes sociais, onde

sempre se expõe uma imagem de si, onde o diálogo fica quase impossibilitado e

cujas relações podem ser desfeitas na velocidade de um clique. O outro, em sua

dimensão assustadora, passa a ser apenas um instrumento de satisfação imediata,

ou de medo, em que o compartilhamento de experiências e a criação de uma


região em comum passa a ser quase impossível.

TEMA 3 – SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS

A aceleração dos processos sociais, a corrosão da estabilidade de

identidades compartilhadas e o apagamento da dimensão do outro nas relações


mediadas pela imediaticidade têm efeitos diretos no sujeito e no aparecimento
novas formas do adoecer, e de lidar com a doença, no mundo contemporâneo.

Quando as relações passam a ser líquidas, o efeito mais imediato é a

sensação de que se vive em um eterno presente. A aceleração do espaço-tempo

dada com a globalização abarca o sujeito de forma em que a dimensão temporal,

isto é, aquela mais ligada ao simbólico e aos processos de introjeção de valores

culturais compartilhados, se reduz, fazendo com que o sujeito viva em função da


dimensão do espaço, este podendo ser entendido como um aqui e agora eterno.

Tudo se passa, segundo Birman (2012, p. 7), de forma em que “quase tudo

se revela de maneira imprevisível e intempestiva, o efeito mais evidente disso, no

sujeito, é a vertigem e a ameaça do abismo”. Ao vivermos em uma dimensão que

reduz a vida ao imediato, as dimensões do passado e do futuro se borram. A

angústia, proveniente da ameaça ante a um futuro imprevisível, ganha novos

contornos, se voltando para o registro da repetição, impossibilitando o sujeito a


imaginação de um futuro diferente.

Nesse processo, ganha centralidade o registro do imaginário, aquele voltado

para a imagem de si em um campo de visibilidade. A experiência subjetiva, ao se

restringir do contato com outro, cria para si um espaço de segregação, impedindo

a alteridade e produzindo para o outro apenas imagens de si. Para o autor, há

duas lógicas que se cruzam na produção das imagens de si. A lógica do

narcisismo, que já comentamos, e a lógica do espetáculo, no qual o elemento


central é a visibilidade, ou o esgotamento da imagem em si e para si.

O crescimento da dimensão espacial, atrelado ao campo da imagem, faz com

que o imaginário se torne o todo poderoso para o sujeito contemporâneo, os


laços sociais, como já dissemos, se tornam frágeis.
Os laços sociais se restringiriam ao campo da imagem, de maneira que a cena social se reduziria à

retórica do narcisismo. Seria a produção e a exaltação desenfreada das imagens de si mesmo, para o

deleite do outro, num campo sempre imantado pela sedução, o que passaria a das as cartas do jogo

na estética performática do espetáculo. (Birman, 2012. p. 55)

Birman, com isso, traz novos elementos para os conflitos apontados por

Freud. Se em Freud o mal-estar está centrado no conflito entre as pulsões e as

interdições morais, no mundo atual, ele se esboça por meio da dor, tendo como

elementos o corpo, a ação e as intensidades. Vamos comentar brevemente cada

um deles, tendo como ponto central a questão do espaço e do imaginário como


fundamentais para tal leitura.

O principal elemento a ser visto pelo outro é o nosso corpo. Além disso, é

ele que desempenha funções no mundo, que trabalha e é objeto de discursos

sobre saúde, bem-estar e beleza. O corpo possui sua dimensão imaginária, pois
é afetado pelos discursos que se fazem sobre ele e sua performance no mundo.

Com isso, somos afetados pelos discursos de melhoria das performances.

Basta vermos propagandas de vitaminas que buscam melhorar o rendimento no

trabalho, remédios para evitar a dor e medicamentos para a melhoria da

performance sexual. Todos eles articulam dois elementos apontados por Birman:
o da imagem do corpo saudável e produtivo, ideal para a realização do trabalho.

O efeito de tal discurso sobre o corpo é o adoecimento, em especial o

estresse pela sobrecarga de trabalho, a fadiga crônica e a síndrome do pânico

quando o olhar do outro se torna central para o sujeito que se supõe avaliado o
tempo todo (Birman, 2012).

Como a dimensão do espaço é central, a busca da cura passa

necessariamente pelo alívio imediato, a medicalização do corpo, o controle das


emoções de forma a gerar resultados imediatos, sem levar em conta o processo
simbólico-temporal de elaboração do sujeito e dos sintomas.

Quando falamos da dimensão da intensidade, Birman nos mostra que

estamos o tempo todo sendo incentivados à ação. O sujeito não mais lido como

um registro interior de pensamento, mas como aquele que age, que performa de
determinada maneira no mundo.

No incentivo à ação, basta vermos a proliferação de terapias que buscam

impulsionar o indivíduo a agir mais e pensar menos; está no registro de que toda

e qualquer experiência individual precisa ser intensa, marcante. Os mal-estares

dessa categoria variam como questões relativas à hiperatividade, à cultura do

consumo de drogas com efeitos cada vez mais potentes. Muitas vezes atreladas

à melhoria dos desempenhos individuais. Um exemplo desse caso pode ser visto

no filme O Lobo de Wall Street, ao articular a performance no mercado de ações


ao consumo de cocaína, no discurso de “estar sempre ligado”.

A ação e as intensidades se articulam em diversos sintomas e adoecimentos

contemporâneos. Birman fala dos comportamentos compulsivos, seja no

consumo alimentar, de drogas ou de emoções. Todos eles se articulam com

dimensão do espaço e do imaginário, que ao reduzirem o processo simbólico

colocam a compulsão à repetição como central para a subjetividade


contemporânea.

Esse retorno a si mesmo individualizado, apartado do outro, e vivendo

sempre intensamente o aqui e agora, faz com que a vivência dessas dores perca

sua dimensão compartilhada de experiência, saindo do registro do sofrimento


para o da dor.

TEMA 4 – SOFRIMENTO E DOR


O apagamento da dimensão do tempo e a contrapartida do crescimento da

dimensão do espaço levam a uma certa impossibilidade de produção de laços

sociais, conforme estamos dizendo a partir de Birman (2012) e Bauman (1998).

Tal dimensão é fundamental para a elaboração da experiência do sujeito nos


registros do real, do imaginário e do simbólico.

Vamos elaborar isso de maneira mais precisa. Em todo acontecimento, a vida

do sujeito necessita de elaboração para que ele faça sentido. O que acontece é

que, num primeiro momento da dimensão do real, ele simplesmente acontece e

não tem sentido em si mesmo. Somente quando o capturamos a partir de

imagens mentais e o inserimos em um contexto, ou seja, quando entramos na


dimensão do imaginário e do simbólico, é que podemos elaborar a experiência
vivida.

A elaboração no nível do imaginário está atrelada à dimensão da presença,

do aqui e agora e do indivíduo. Ela se elabora no espaço, sem uma dimensão de

compartilhamento. Somente no nível simbólico é que se torna possível uma

elaboração que não esteja restrita ao indivíduo, pois ao colocarmos em

linguagem o acontecido, saímos do nível das imagens mentais e o inserimos em


uma cadeia significante que não pertence a um único sujeito. Ela chega, portanto,
à dimensão do tempo, da história.

Quando se fala no fechamento do sujeito em si mesmo, na cultura

contemporânea, estamos falando que ele sempre se volta para si, isto é, ao invés

de construir pontes com o outro, ele se fecha e constrói um muro de proteção


em torno de seu eu.

Birman (2012) vai falar que há aqui duas dimensões que sofrem impacto com

o individualismo contemporâneo, ambas atreladas ao trauma: a dor e o


sofrimento. Segundo o autor,
De fato, se a dor evidencia uma posição solipsista do sujeito e o seu fechamento em face do outro, o

sofrimento seria algo da ordem arbitrária, que pressuporia o apelo e a demanda endereçada ao outro.

Portanto, o sofrimento como marca das tormentas do sujeito implicaria uma transformação do registro

da dor, que seria sempre permeada pela simbolização e temporalização desta. (Birman, 2012. p. 9)

A dor, enquanto experiência, é sempre da ordem do fechamento do sujeito.

Vive-se tal experiência a partir de um certo isolamento na tentativa de sua

diminuição. Para Birman, vive-se hoje a dimensão da dor como um dos efeitos da

fragmentação do sujeito e da cultura do narcisismo. Tal dimensão se fecha no

espaço do sujeito. Este busca elaborar o acontecimento, mas sem o campo do

outro sua gramática se empobrece pela falta de um apelo ao simbólico. Ela


reaperece nos sintomas, na somatização, nos sonhos, como uma tentativa de
produção de sentido para o sujeito.

O fechamento do sujeito em relação ao outro empobrece, portanto, a

possibilidade de elaboração dos acontecimentos, pois é somente ao transformá-

lo em sofrimento que o sujeito consegue produzir sentido para o ocorrido. A

passagem da dor para o sofrimento é a construção de um campo de

compartilhamento com o outro. Os sofrimentos são da ordem do coletivo, têm


sentidos para além da dor e permitem, a partir do apelo ao outro, a produção da
vida em conjunto.

O preço da abertura para o sofrimento, segundo Birman (2012), no registro

do sujeito é o reconhecimento do desamparo. Ela é a condição para a

simbolização da dor e sua consequente transformação em sofrimento, pois é


somente reconhecendo o vazio deixado que se pode apelar a dimensão do outro.

Por conseguinte, a não transformação da dor em sofrimento se registra na

experiência do desolamento, já que se corta a possibilidade de elaboração


simbólica do acontecimento.
A dimensão da dor é hoje predominante, já que o fechamento em relação

ao outro se tornou um dos principais elementos do mundo contemporâneo. Na

gramática do mundo contemporâneo, o espaço da dor e do sofrimento se resolve

a partir da medicalização, sempre voltada para a produção do sujeito bem


adaptado ao mundo e livre de todos os males da existência.

O fechamento do sujeito o empobrece simbolicamente, fazendo com que

ele não mais possa reconhecer ou diferenciar as dimensões da dor e do

sofrimento. A partir dessa impossibilidade, ele fica à mercê dos discursos sobre a
existência forjados pelo individualismo do mundo atual.

TEMA 5 – A PSICOPOLÍTICA

Podemos resumir o que dissemos até agora ao afirmarmos que na passagem

do mundo moderno para o mundo contemporâneo, deu-se um processo de

hiper-individualização do sujeito em nome de sua liberdade. Han (2014, p. 9)

afirma que “o ‘eu’ como projeto, que acreditava ter se libertado das coerções

externas e das restrições impostas por outros, submete-se agora a coações


internas, na forma de obrigações de desempenho e otimização”.

Tal afirmação significa que houve uma inversão na ordem do poder, em que

não há mais uma figura hierárquica que obriga ao trabalho, mas que agora é o
próprio sujeito que incorpora as ordens em si. Tal fenômeno é o que ele chama

de “psicopolítica”, que é da ordem de uma mudança nos modos de produção,

conforme destacamos, em que o sujeito ao se dizer na livre, na verdade está

sendo vítima de sua própria opressão. Esse é o paradoxo do mundo atual para o
autor.

O mundo neoliberal colocou a liberdade como central, mas tal liberdade não
é em abstrato, está inserida numa série de significantes que afirma que todos
somos livres para vendermos nossa força de trabalho como bem entendermos.

Atrelado a isso, veio o processo de flexibilização de leis trabalhistas, justificadas


no fato de que agora todos os sujeitos são empreendedores de si mesmos.

Tal afirmação coloca novamente no centro a questão do mal-estar

contemporâneo, pois ela articula um sistema de valores e uma forma de vida.

Enquanto sistema de valores, o sujeito “como empreendedor de si mesmo é

incapaz de se relacionar livre de qualquer propósito. Entre empreendedores não


surge amizade desinteressada” (Han, 2014, p.11).

Enquanto sistema de valores, este discurso estabelece que a relação com o

outro se dá sempre por algum tipo de interesse, ou de que este outro é sempre

um concorrente disposto a ameaçar meu sucesso. Retorna, portanto, a dimensão


de isolamento do sujeito e as dimensões patológicas atreladas a isso.

Enquanto modo de vida, o empreendedor de si mesmo responde somente a

si mesmo. Ele é o responsável por sua disciplina de trabalho, ele faz seu próprio

horário e também define o quanto ganha em um dia. Com isso, temos uma nova

forma de adoecimento, já que essa liberdade, que seria oposta à coerção do


outro, também produz suas próprias coerções.

Para Han (2014, p. 10),

Doenças psíquicas, como depressão ou burnout são expressões de uma profunda crise da liberdade:

são sintomas patológicos de que hoje ela se transforma muitas vezes em coerção. O sujeito do

desempenho, que se julga livre, é na realidade um servo: é um servo absoluto, na medida em que, sem

um senhor, explora voluntariamente a si mesmo. Nenhum senhor o obriga a trabalhar.

Na verdade, não é que nenhum senhor o obrigue a trabalhar, mas a própria

sobrevivência demanda que o sujeito trabalhe de alguma forma, ainda que sem
condições dignas para isso. E para que possa sobreviver, há sobrecarga de
trabalho imposta por si mesmo. Esse é o caso do que hoje se chama uberização
do trabalho, com os trabalhos por aplicativo e remunerações flexíveis.

O que entra em jogo aqui é uma nova forma de subjetivação, de produção

de sujeitos em que uma certa forma de individualismo toma o centro da questão.

Esse individualismo se atrela a todo um processo de manipulação dos desejos do

sujeito por meio dos dispositivos de poder, emergindo daí os valores sociais que
já mencionamos anteriormente.

Quando falamos em manipular os desejos do sujeito é que entramos no

campo da psicolítica de maneira mais detalhada. Para Han (2014), somos


capturados nas diversas tecnologias emergentes na contemporaneidade.

O exemplo utilizado pelo autor é o das redes sociais, onde entregamos

nossas informações pessoais para grandes corporações e trabalhamos de graça,

produzindo informações para eles, que serão vendidas para outras corporações.

Esse é o caso dos algoritmos das redes que nos mostram exatamente o que

queremos ver, a partir do monitoramento de nosso comportamento on-line,

antecipando muitas vezes desejos de compras que teremos. Além disso, o

compartilhamento faz com que estejamos sendo monitorados o tempo todo, já


que nossos dispositivos estão conectados na rede.

Ou seja, para Han (2014), em nome de uma certa liberdade, estamos

entregando nossa vida cotidiana para o controle de outros e vivendo uma

sociedade de vigilância descentralizada e competição recorrente, que funciona

por meio da mobilização de emoções que consumimos on-line e ditam aquilo


que podemos ou devemos desejar.

NA PRÁTICA
Segundo dados da OMS, no Brasil, 30% dos profissionais sofrem da

Síndrome de Burnout. Além disso, 47,3% dos trabalhadores apresentaram

sintomas de ansiedade e depressão durante a pandemia. Desse total, 27,4%

apresentam os dois distúrbios ao mesmo tempo. Além disso, 44,3% abusam do

consumo de bebidas alcoólicas, 42,9% tiveram mudanças nos hábitos de sono e

30,9% foram diagnosticados ou tiveram que tratar de doenças mentais em 2020.

Analise os dados a partir do debate que fizemos sobre os mal-estares

contemporâneos, levando em conta as condições de isolamento do sujeito e a


emergência do empreendedor de si mesmo.

FINALIZANDO

Nesta etapa, tivemos como enfoque a análise dos mal-estares

contemporâneos. Tomamos como enfoque inicial as condições culturais da

emergência de novos sofrimentos a partir das relações que estabelecemos com


o outro, a partir de Bauman (1998).

No segundo momento, buscamos compreender os efeitos psíquicos desse

mal-estar e a emergência do sujeito da dor, apartado das dimensões do

sofrimento. O crescimento da dimensão do espaço em relação ao tempo gera

impactos no processo de elaboração das experiências de vida pelo sujeito,


gerando isolamento e fechamento em relação ao outro.

Por fim, falamos brevemente da psicopolítica (Han, 2014), como uma nova

forma de controle dos sujeitos submetidos a novas condições de trabalho e que

vivem o paradoxo da liberdade do mundo atual, tomando forma de

adoecimentos relacionados ao trabalho e o seu monitoramento por meio das


redes.

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