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Signo e cultura

Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Reconhecer o conceito semiótico de cultura.


 Delimitar a cultura como objeto de estudo da semiótica e também
a semiótica como ferramenta de análise cultural.
 Relacionar a teoria dos códigos de Umberto Eco e a sua aplicação no
campo dos fenômenos culturais.

Introdução
Você já parou para pensar na diversidade de práticas simbólicas que a
humanidade elaborou ao longo de sua história? O número de religiões,
rituais, práticas artísticas e costumes cotidianos é quase infindável. E não
precisamos ir muito longe no tempo para notar essa diversidade: ela está
presente nos dias de hoje, por meio do que chamamos de diferentes
culturas.
Neste texto, você vai conhecer o modo como a semiótica trabalha
com o estudo dessas diferentes práticas culturais. A semiótica, como o
campo que analisa as práticas simbólicas das sociedades, encontra no
funcionamento das diferentes culturas um campo privilegiado para ela-
borar suas análises e aclarar como, em diferentes contextos, a humanidade
conseguiu criar uma rica e diversa herança cultural.

O conceito semiótico de cultura


Um fenômeno bastante comum na sociedade globalizada em que vivemos são
as eventuais falhas de comunicação que existem quando encontramos algum
estrangeiro. Seja quando estamos viajando, seja quando estamos no nosso
próprio país, cada vez mais somos confrontados com diferentes maneiras de
se comunicar a partir de hábitos cotidianos.
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Essa atitude aponta para uma questão semiótica: por que atribuímos signi-
ficados distintos para práticas semelhantes? Uma resposta possível para essa
questão é de que a comunicação se trata de uma prática cultural. Como que
a semiótica trabalha nesse registro? É o que você vai descobrir neste capítulo.
Mas antes de entrar nas particularidades do conceito semiótico de cultura,
cabe uma breve incursão sobre as formas como esse conceito foi tratado de
forma geral. Pois, como você deve imaginar, o conceito de cultura é escorre-
gadio: ele pode significar muitas coisas diferentes, em diferentes situações.
Por exemplo, pode ser usado como um xingamento (“Você não tem cultura!”)
ou como justificativa para alguma prática (“Ele fez isso pois faz parte de sua
cultura”). Da mesma forma, valorizamos enquanto sociedade a cultura, tanto
que temos políticas de defesa do nosso “patrimônio cultural” e também leis
de “incentivo à cultura”. Parece que estamos falando de coisas bastante
diferentes, não é mesmo?
Podemos iniciar nossa discussão do conceito de cultura a partir de sua
perspectiva histórica. Pois, curiosamente, não é desde sempre que a palavra
cultura circula na sociedade. Inclusive, podemos traçar sua gênese para um
período bastante recente, em meados do século XVIII. O conceito de “cultura”
começa a ser utilizado no período da revolução burguesa e do Iluminismo, na
Europa Central. Se apropriando do sentido de cultivo (como em agricultura), a
burguesia ascendente começou a tratar a palavra cultura como um conceito que
denominaria um cultivo do espírito. Seria cultura tudo aquilo que escaparia
ao mundano: o que não fosse trabalho ou da ordem das relações econômicas
ou afetivas, estaria no universo da cultura.
Nesse período, a cultura se torna um sinônimo da apreciação das belas
artes: a pintura, a poesia, a música. Foi uma estratégia da classe burguesa
de alcançar sua autonomia: por um lado, se distancia da nobreza que só se
preocupava com disputas de poder; por outro, se diferencia do proletariado,
acusados de brutos e incautos. Para se tornar um cidadão integrado a socie-
dade, era preciso ser cultivado: ter um conhecimento e uma sensibilidade que
iam além dos meros afazeres cotidianos. Até os dias de hoje esse conceito
de cultura é corrente, podendo ser observado desde chamar alguém de culto
(alguém que é bem lido, que conhece as artes, que se interessa por questões
intelectuais) e também em políticas públicas de incentivo à cultura, que se
referem em geral a produção artística.
Um conceito mais contemporâneo de cultura é o chamado conceito antro-
pológico. Nessa perspectiva, cultura é tudo aquilo produzido pela humanidade
que vá além de seus instintos mais básicos de sobrevivência e preservação
da espécie. Note que esse é um conceito muito mais amplo de cultura, que
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abarca todas as manifestações simbólicas e tecnológicas produzidas pela


humanidade. Não por acaso, é a partir desse conceito que se cria a célebre
oposição entre natureza/cultura. Cultura é tudo aquilo que não pertence ao
mundo natural. Aí podemos incluir as religiões, os mitos, a linguagem, as
artes, as formações sociais, etc.
Por esse ponto de vista, o conjunto das manifestações simbólicas criadas
por uma determinada sociedade ou coletivo humano é a sua cultura. Essa é
a razão pela qual ouvimos que é preciso “respeitar a cultura do outro”, pois
suas manifestações simbólicas podem não ser as mesmas que as nossas. Assim,
vemos que antropologicamente não há um tipo de atividade humana que é
compreendida como cultural, mas sim que cada sociedade, etnia, religião ou
qualquer outro sistema organizado possui a sua cultura, que pode ser estudada
como um objeto científico. Pense na ideia de cultura árabe, cultura negra,
cultura indígena; mas também na cultura clássica dos gregos e romanos,
cultura medieval e cultura renascentista.
Ambos esses conceitos de cultura são correntes em nossa sociedade.
Entretanto, nas duas perspectivas temos a visão da cultura como uma
unidade. O sociólogo francês Edgar Morin (2002, p. 16) compreende que
a sociedade contemporânea é policultural. Para ele, uma cultura é “[...]
um corpo de símbolos, mitos e imagens concernentes à vida prática e à
vida imaginária, um sistema de projeções e de identificações específicas
[...]” (MORIN, 2002, p. 21). Ou seja, não mais compreendemos a cultura
como um bloco de costumes, mas sim criamos distinções entre diferentes
manifestações e sistemas simbólicos que possuem seu conjunto próprio
de funcionamento.
Podemos notar como não mais falamos na cultura específica de uma de-
terminada sociedade, mas sim nas diversas culturas que povoam e organizam
a vida social. Podemos destacar alguns tipos de culturas. A cultura nacional,
que se refere aos costumes e práticas diárias do povo de um país, como o
brasileiro, e a cultura religiosa, que diz respeito ao conjunto de crenças de um
determinado indivíduo, como ser cristão ou muçulmano. Note que é possível
ser um brasileiro (dividir uma cultura com todos que nasceram aqui) e ser
cristão (dividir uma cultura com todos os cristãos, não apenas os brasileiros).
Ao mesmo tempo, um brasileiro muçulmano irá dividir alguns traços culturais
com um brasileiro cristão, mas nem todos.
Junto a cultura nacional e a cultura religiosa, podemos incluir outras tantas:
cultura erudita, cultura local, cultura de massa, etc. O importante é destacar
essa policultura, essa coexistência de sistemas culturais distintos dos quais
fazemos parte.
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Você deve estar se perguntando: onde entra a semiótica nisso tudo? Assim
como existem diferentes correntes que conceituam a cultura, a semiótica
também estabelece para ela um conceito particular. A cultura é determinante
nos estudos semióticos pois, como afirmou Morin (2002), ela se organiza
como grandes sistemas simbólicos. Ou seja, a cultura funciona dentro do
paradigma da significação e do sentido. Inclusive, grande parte dos processos
de significação ocorrem em uma relação direta com o contexto imediato no
qual estão inseridos.
Por exemplo, pense num dos mais importantes símbolos da nossa cultura:
uma cruz. Se pensarmos na ideia de policultura, de Morin (2002), identificamos
que há um processo de significação específico da cruz no âmbito da cultura
religiosa cristã: Jesus Cristo e todo o conjunto de crenças dessa religião. Agora,
se transpormos o mesmo símbolo para outra cultura religiosa (a cultura hindu,
por exemplo), não teremos o mesmo significado, ou até mesmo significado
nenhum dentro do contexto religioso.
Usando o vocabulário específico da semiótica, você pode observar que
o mesmo significante pode assumir diferentes significados em diferentes
culturas. Isso quer dizer que, para além da relação própria do signo, existe
também um sistema que une determinados significantes a determinados
significados a partir de uma convenção.
A palavra convenção é importante nessa reflexão, por dois motivos: o
primeiro, é o de reforçar o caráter arbitrário que o signo mantém entre
significante e significado. O segundo, pois são justamente essas conven-
ções, ou sistemas simbólicos que produzem uma significação específica,
que a semiótica vai chamar de cultura. A cultura, portanto, é um sistema
semiótico de convenções que articula relações específicas entre significantes
e significados.
Podemos empreender um estudo semiótico da cultura a partir de dois
lados distintos:

a) Estudo de diferentes sistemas de signos no interior de uma cultura e


o modo como contribuem para sua constituição mais geral. Exemplo:
estudar a cultura religiosa do Brasil de forma a entender como ela
contribui para a formação da cultural nacional.
b) Estudar uma cultura como um sistema de signos para desvendar com-
portamentos e experiências individuais e/ou coletivas. Exemplo: o estudo
semiótico de culturas indígenas ou culturas já extintas.
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Há uma corrente da semiótica que estuda especificamente os fenômenos da cultura,


mas que não será abordada neste capítulo, a chamada Semiótica da Cultura. Formada
por autores soviéticos como Iuri Lotman e Yvan Bystrina, a Semiótica da Cultura possui
uma vasta tradição de estudos semióticos voltados a textos culturais. Para saber mais,
confira o livro Escola de Semiótica, de Irene Machado (2003).

O autor que mais se destacou na elaboração de uma perspectiva semiótica


para o estudo da cultura é o semioticista italiano Umberto Eco, cujas ideias
você vai conhecer na próxima seção.

A cultura como objeto da semiótica


Umberto Eco foi um dos mais proeminentes estudiosos da cultura sob a
perspectiva semiótica. Para Nöth (1996, p. 185), inclusive, a semiótica de Eco
seria uma espécie de “teoria da cultura”. Em sua célebre formulação, Eco
(2002, p. 5) afirma que a semiótica “[...] estuda todos os processos culturais
como processos de comunicação [...]”. Isso quer dizer que não apenas a cultura
funciona semioticamente através de processos de comunicação, como cabe à
semiótica descrevê-los e demonstrar como funcionam.
Para Eco (2002), a semiótica tem a possibilidade de estudar todos os objetos
culturais, desde práticas religiosas até filmes de Hollywood. Nada que faz parte
da cultura escapa ao campo semiótico. Isso pode parecer curioso, pois é difícil
imaginar algo de nossas vidas cotidianas que não seja, em algum nível, um
processo cultural. Eco (2002) diz que há uma tendência a um “imperialismo”
semiótico, que teria condição de colonizar toda a experiência humana sob
o domínio de uma única disciplina. Contra a noção de imperialismo, ou de
ciência que estuda e explica tudo, Eco vai fazer um esforço para delimitar
um campo de estudos da semiótica. Ele afirma que todo objeto cultural pode
ser estudado pela semiótica, mas que existem relações nesses objetos que não
são da competência de uma análise sígnica (ECO, 2002).
Podemos demonstrar isso a partir de um exemplo bastante corrente: a moda.
Nós, seres humanos, usamos roupas para nos abrigar do frio como necessidade
fisiológica pelas limitações de nossos corpos. Entretanto, não usamos todos
as mesmas roupas. Usamos casacos de diferentes cores, estilos e materiais.
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Alguns casacos, inclusive, são produzidos por grifes famosas e custam pe-
quenas fortunas (Figura 1). A explicação semiótica para essa diversidade de
casacos para além de sua função fisiológica, é que usar uma determinada peça
de roupa também comunica algo. Se uso um casaco rosa, estou dizendo algo
com isso; se uso um casaco de pele, expresso um tipo de condição monetária
elevada; se uso um caso de uma marca famosa e em evidência, comunico
que sou uma pessoa consciente das tendências do vestuário. Essa dimensão
comunicacional que constitui o campo semiótico de Eco. O fato das pessoas
usarem casacos para se proteger do frio é um fato cultural, mas não semiótico.
Essa relação faz parte da cultura, mas não recai num processo comunicativo
que cabe a semiótica analisar.

Figura 1. Casaco de pele como símbolo de status social.


Fonte: Natalia Seregina/Shutterstock.com

A partir dessa lógica, Eco (2002) estabelece uma definição curiosa,


mas muito importante: a semiótica como teoria da mentira. Tudo aquilo
que pode ser usado para mentir é objeto de estudo da semiótica. Posso
comprar um casaco de pele para aparentar ser uma pessoa de status social
elevado, apesar de ter gasto todas as minhas economias nessa peça de
roupa. Mas não posso andar de camiseta em um dia frio, pois é inegável
que nosso corpo possui uma necessidade fisiológica de proteção contra as
intempéries do clima.
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A teoria da mentira de Eco (2002) é baseada na proposição de que a cultura


é um sistema de convenções, reconhecidas por todos os integrantes dessa
cultura, que pode ser manipulado para COMUNICAR uma determinada coisa,
sendo ela verdade ou não. Como bem afirma, “[...] a semiótica tem muito a
ver com o que quer que possa ser assumido como signo. É signo tudo quanto
possa ser assumido como um substituto significante de outra coisa qualquer
[...]” (ECO, 2002, p. 4). Nesse caso, o casaco de pele vira um signo, intencio-
nalmente substituindo o conceito de “status social” pelo próprio casaco, tendo
isso lastro na realidade ou não. Assim, Eco (2002, p. 4) define a semiótica
como “[...] a disciplina que estuda tudo quanto possa ser usado para mentir [...]”.
A intenção de comunicar algo é determinante para a semiótica cultural de
Eco. Mas é preciso definir mais precisamente o conceito de comunicação de
Eco. Para o autor italiano (ECO, 2002), há comunicação toda vez que um sinal
(que pode ou não ser signo) é enviado por um emissor e recebe uma resposta
da parte de um receptor. A comunicação, assim definida, pode ocorrer em
processos naturais, como na relação entre as abelhas e o cheiro do pólen, ou
em processos maquínicos, como o apertar de um botão numa máquina. A
particularidade da comunicação humana, ou cultural, é que nesse caso um
sistema de comunicação não existe sem um sistema de significação: “[...]
todo processo de comunicação entre seres humanos pressupõe um sistema de
significação como condição necessária [...]” (ECO, 2002, p. 6).
Ao contrário do esquema mais básico de comunicação, onde o sinal funciona
como um estímulo para uma resposta, na comunicação humana se espera
que haja uma resposta interpretativa por parte do receptor. A interpretação
dessa mensagem depende de um sistema de significação, um “[...] construto
semiótico autônomo [...]” (ECO, 2002, p. 6) que prevê as regras e convenções
culturais para a interpretação da mensagem. Como destacamos anteriormente,
Eco (2002) afirma que um signo é um substituto significante de outra coisa
qualquer. O sistema de significação é o que define qual signo substitui qual
outra coisa qualquer, e cabe ao receptor conhecer essas regras arbitrárias.
Lembre do exemplo anterior: para usar uma roupa como uma prática co-
municativa, é preciso que haja um sistema de significação que preveja as
relações sígnicas necessárias para a interpretação.
Quer dizer, é preciso que haja um conjunto de regras, que tanto o emissor
quanto o receptor conheçam, para que o ato comunicativo seja efetivo. No caso
de nosso exemplo, há uma regra: casaco de pele = status social. É esse sistema
de comunicação, esse conjunto de regras e convenções, que Eco (2002) trata
por cultura. Imagine agora um ocidental indo visitar uma tribo na Mongólia
usando um casaco de pele. O significado “status social” não será comunicado,
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pois todos estarão usando casacos de pele! A convenção casaco de pele = status
social não está presente nessa relação, pois há outro sistema de significação
vigente nesse espaço. Há outra cultura (Figura 2).

Figura 2. Casaco de pele como vestimenta cotidiana.


Fonte: LMproduction/Shutterstock.com

Nöth (1996) sintetiza em três critérios o campo semiótico elaborado por


Eco para uma teoria geral da cultura:

 Cultural: é da competência da semiótica estudar apenas os fenômenos


humanos, não os naturais ou maquínicos.
 Mentiroso: a semiótica estuda apenas aquilo que pode ser usado para
mentir em uma determinada situação. Dessa forma, todos os proces-
sos culturais estudados pela semiótica são aqueles intencionais, pois
pressupõem uma manipulação da convenção (ou para mentir ou para
falar a verdade).
 Comunicativo: a semiótica estuda o processo comunicativo como
mensagens que estejam inscritas em um sistema de significação que
seja reconhecido por ambas as partes, emissor e receptor.

Dados esses critérios, podemos formular uma definição da relação entre


cultura e semiótica em duas vias complementares. A primeira, de que, para Eco
(2002, p. 21), a cultura é um “fenômeno semiótico”, pois em sua base estão
processos de sígnicos de significação e sentido. A segunda, de acordo com o
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próprio autor, é de que “[...] a cultura, em sua complexidade, pode ser entendida
melhor se for abordada de um ponto de vista semiótico.” (ECO, 2002, p. 21). Isso
quer dizer que a semiótica possui as ferramentas teóricas apropriadas para o
estudo de qualquer prática cultural. Ou seja, Eco (2002) define a cultura e a
semiótica como práticas recíprocas: define uma em relação à outra. Por isso
que a cultura se estabelece como objeto da semiótica, e a semiótica como um
referencial teórico para estudar a cultura.
A contribuição de Eco para elaborar esse referencial teórico para o estudo
da cultura é a sua chamada Teoria dos Códigos.

Código e cultura
Na seção anterior discutimos a cultura a partir de diversos termos: convenção,
conjunto de regras, sistema de significação. Eco (2002) estabelece um conceito
geral para dar conta desses termos sob uma única perspectiva teórica: o código.
Como afirma Nöth (1996, p. 195), “A semiótica de Eco é o estudo dos códigos
e um código tem sua base numa convenção cultural: semiótica é, portanto, o
estudo sígnico da cultura.”.
Antes de abordar a especificidade da teoria dos códigos de Eco, é preciso
definir preliminarmente o que é um código. A base do código é a sua con-
vencionalidade. É a convenção ou ACORDO entre dois ou mais indivíduos
para estabelecer uma espécie de substituição de linguagem. Você pode pensar
num código rudimentar para criptografar uma mensagem: você estabelece
que cada letra do alfabeto corresponde a um numeral, como no esquema A=1,
B=2, C=3 e assim por diante. A partir do estabelecimento desse código ou
regra, que não passa de uma convenção arbitrária, você pode escrever uma
mensagem linguística usando apenas numerais, como por exemplo 5 – 3 – 15.
Mas apenas alguém que conhece essa convenção, que tem o domínio das regras
do código, conseguirá interpretar corretamente a mensagem e saber que você
está se referindo ao grande teórico dos códigos semióticos: E (5) C (3) O (15).
Esse exemplo trata de um código rudimentar, limitado, mas serve para
demonstrar como Eco pensa os processos culturais. Para Eco (2002), todo ato
semiótico de comunicação tem por detrás de si um código que estabelece um
sistema de significação. De maneira geral, um código é um sistema de regras
fornecido por uma cultura que possibilita a comunicação e o entendimento entre
seus integrantes. Assim, o estudo semiótico da cultura é baseado na descrição
do funcionamento dos códigos que estão presentes e agem concretamente na
significação e nas práticas de sentido de uma sociedade.
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Para seguirmos em nosso exemplo da seção anterior, podemos dizer que em


nossa cultura há um código que relaciona “casaco de pele” a “status social”.
Como um código é uma convenção arbitrária, mais do que apenas descrever
como ele funciona, também podemos investigar as raízes de seu estabeleci-
mento. Um casaco de pele é um produto caro, que custa muito dinheiro. Poucas
pessoas têm a possibilidade de gastar tanto em um bem superficial. Quem
gasta é porque tem dinheiro sobrando. Em uma sociedade capitalista, são os
mais ricos que possuem uma posição social privilegiada. Portanto, aqueles
que podem comprar um casaco de pele têm uma posição social privilegiada.
Ocorre que podemos, a partir do código, resumir esse percurso pela subs-
tituição direta entre casaco de pele (significante) e status social (significado).
Não é necessário andar com um comprovante de conta bancária para comunicar
riqueza e status social. Essa análise de um código específico pode nos levar
a conclusões acerca de nossa cultura do ponto de vista mais geral como, por
exemplo, notar a valorização do dinheiro como traço de distinção social.
Essa breve análise de um código cultural abre o caminho para a discussão
de dois importantes conceitos na teoria dos códigos de Eco (2002): o conceito
de função sígnica e o de unidade cultural.
A função sígnica é a relação que se estabelece entre uma expressão e um
conteúdo, ou entre um significante e um significado. Para Eco (2002), essa
associação é sempre realizada por um código cultural. Isso quer dizer que não
há nada de natural nas relações sígnicas. Sempre há algo anterior ao signo – o
código – que estabelece as regras convencionais pelos quais um significante
se une a um significado, formando um signo. Ou seja, “[...] os signos são o
resultado provisório de regras de codificação que estabelecem correlações
transitórias em que cada elemento é, por assim dizer, autorizado a associar-se
com um outro elemento e a formar um signo somente em certas circunstâncias
previstas pelo código.” (ECO, 2002, p. 40).
Cabe destacar que é a função sígnica a responsável por operar o código no
interior do signo. Mas essas regras, como Eco (2002) deixa claro, são provi-
sórias, temporárias. Se transformam tanto do ponto de vista do tempo quanto
do espaço. Uma cultura vai, ao longo do tempo transformando seus códigos e
criando novas funções sígnicas. Da mesma forma, localidades distantes entre
si criam funções sígnicas muito específicas, que variam de acordo com sua
cultura. Os códigos estão em constante interação, tanto no interior de uma
mesma cultura quanto no contato com culturas distintas.
A transformação e a dinâmica da cultura não são limitadas pelo código ou
pela função sígnica, inclusive pelo contrário. Como o autor afirma, “[...] não
é correto afirmar que um código organiza signos; um código proveria regras
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para gerar signos como ocorrências concretas no curso da interação comuni-


cativa.” (ECO, 2002, p. 40). Se os códigos apenas organizassem os signos já
existentes, não haveria espaço para a transformação cultural, fenômeno que
ocorre continuamente. Os códigos são regras para criar signos, ou seja, são
também espaços de criação, a partir da interação comunicativa e também de
práticas de linguagem que criam seus próprios códigos e funções sígnicas,
como a arte por exemplo.
O outro conceito que iremos destacar nessa exposição da teoria dos códigos
de Eco é o de significado como unidade cultural. Para Eco (2002, p. 56-57),
“[...] em qualquer cultura, uma unidade cultural é simplesmente algo que aquela
cultura definiu como unidade distinta, diversa de outras, podendo ser uma
pessoa, uma localidade geográfica, uma coisa, um sentimento, uma esperança.”.
Isso quer dizer que cada cultura dispõe de unidades particulares que servem
para dar sentido a sociedade em que se encontra. Não há um mundo único,
com um número limitado de conceitos e significados, que cabe a cada cultura
organizar a sua maneira. Os códigos culturais, na verdade, criam percepções
acerca do mundo, o que faz com que pessoas de diferentes culturas quase
habitem mundos diferentes. É isso que Eco (2002) quis dizer com o fato de os
códigos não organizarem os signos, mas sim serem regras para criar signos.
Para exemplificar, Eco (2002, p. 57) usa o exemplo da unidade cultural
“cão”. Essa é uma unidade cultural intercultural, pois atravessa diferentes
culturas e idiomas. Dog (inglês) e perro (espanhol) tem a mesma unidade
cultural que “cão” como significado. Já aquilo que chamamos de “neve” em
nossa cultura tem pelo menos quatro unidades culturais distintas na cultura
dos esquimós canadenses. No caso do nosso já clássico exemplo do casaco de
pele, o que é distintivo em nossa cultura não o é no de uma tribo na Mongólia,
não constitui um significado ou unidade cultural passível de ser comunicada.
Ou seja, não apenas as culturas possuem códigos que unem significados a
significantes, como também discriminam aquilo que no mundo é distinto o
suficiente para que seja comunicado como um signo específico.
É por essa razão que o estudo semiótico da cultura é tão importante para
Eco. A linguagem e os sistemas de significação funcionam de forma quase
autônoma uns dos outros, e são responsáveis por produzir percepções acerca do
mundo que o moldam de maneira efetiva. Como os códigos estão em constante
interação e transformação, também está o nosso mundo. A cultura acaba sendo
o termo mediador dessas transformações, o resultado vivo dessa dinâmica. Cabe
a semiótica não apenas descrever o funcionamento dos códigos que animam
uma dada cultura e criam seus padrões de conduta e existência, mas também
apontar as ordens de interação e os vetores de sua possível transformação.
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Para conhecer exemplos de análises culturais sob o prisma da semiótica, uma das
melhores fontes é um livro do próprio Umberto Eco (1987), chamado Apocalípticos
e Integrados. Nesse livro, Eco empreende uma série de análises culturais que vão
desde os quadrinhos do Super-Homem até a série de romances Os Mistérios de Paris,
de Eugene Sue. É um trabalho vigoroso, que não apenas propõe diferentes visões
para a chamada “cultura de massas” como também coloca para funcionar todas as
ferramentas de sua teoria dos códigos.

1. Quando Morin afirma que a) A semiótica só estuda


vivemos em uma sociedade aquilo que na cultura é
“policultural”, ele quer dizer que: mentiroso ou ficcional.
a) Existem distintos sistemas b) A semiótica entende por
simbólicos culturais, como cultura todos os processos
o nacional ou o religioso, comunicativos, tanto entre
que coexistem no interior de seres humanos quanto entre
uma mesma coletividade. animais, plantas e máquinas.
b) As diferentes culturas c) Todo objeto criado pelo
não coexistem, formam homem é um objeto cultural
um mundo separado por e, portanto, pode ser estudado
diferentes regiões culturais. integralmente pela semiótica.
c) A cultura deve ser entendida d) A semiótica estuda tudo
apenas por seu ponto de vista aquilo que na cultura pode ser
histórico, sendo relacionada às assumido como signo, ou seja,
diferentes formas de Belas Artes. que possua uma intenção e lide
d) É preciso respeitar as com um sistema de significação.
diferentes culturas que existem e) A cultura, para a semiótica, é um
no mundo, entretanto a conjunto de mensagens que
distância e com cautela. variam de um contexto a outro.
e) Apesar de coexistirem, toda 3. A semiótica como campo de estudos
cultura possui seu espaço e da cultura só analisa fenômenos que:
sua delimitação específica em a) Possuam intencionalidade
um país ou região de origem. comunicativa, tenham origem
2. A semiótica delimita um em processos humanos
conceito bem preciso de e tenham uma ordem de
cultura. Qual a alternativa que convencionalidade.
melhor se aplica a ele? b) Sejam elaborações
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simbólicas de linguagem. d) A função sígnica se refere ao


c) Tenham origem em uma papel desempenhado pelo
mesma sociedade, pois signo para criar um código.
não há a possibilidade de e) A função sígnica diz respeito
comparar diferentes culturas. à independência do signo
d) Sejam semelhantes em em relação à cultura.
todas as culturas. 5. Sobre a dinâmica do
e) Tenham uma história codificada, significado como “unidade
ou seja, que não se transformam cultural”, Eco afirma que:
ao longo do tempo. a) Cada cultura cria significantes
4. O que é a função sígnica na para um conjunto estável
Teoria dos Códigos de Eco? de significados universais.
a) A função sígnica é a função b) Não há correspondências
que os signos desempenham possíveis entre unidades
na comunicação. culturais de culturas distintas.
b) A função sígnica é a função que c) Cada cultura discrimina unidades
faz com que o código funcione que são distintas o suficiente
no interior do signo e no entre si para que mereçam
processo de significação, ligando um significado próprio.
significante ao significado. d) Sempre haverá um significante
c) A função sígnica é o uso específico em cada cultura
cultural de um signo – por para uma unidade cultural.
exemplo, usar uma cruz para e) É o conjunto das práticas
afirmar que se é cristão. culturais de uma sociedade.

ECO, U. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1987.


ECO, U. Tratado geral de semiótica. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.
MACHADO, I. Escola de semiótica: a experiência de Tártu-Moscou para o estudo da
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