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Capa
34
Contracapa
Formatado
por
J.P.
35
InterSaberes
36
Folha de rosto
37
Catalogação
38
Sumário 1 de 3
39
Sumário 2 de 3
40
Sumário 3 de 3
41
Dedicatória
42
Apresentação 1 de 4
47
Apresentação 2 de 4
48
Apresentação 3 de 4
49
Apresentação 4 de 4
50
Parte 1
18
1
CONSIDERAÇÕES
INTRODUTÓRIAS
Começar uma obra não é exercício fácil. Compreender quais são as informações iniciais
que o leitor deve ter para poder seguir seus estudos e suas reflexões é tarefa talvez
mais difícil do que a produção do conteúdo em si.
Ao pensar nesse desafio, compreendemos que, antes de nos aprofundarmos no
fascinante universo cultural e religioso africano, afro-americano e indígena, era
importante definir os entendimentos de cultura e religião, bem como apresentar as
escolhas metodológicas para o estudo desses povos.
Neste primeiro capítulo, optamos, então, por conduzir uma discussão a respeito
dos conceitos de cultura e religião e da importância desses elementos para a formação
histórico-social dos espaços a serem estudados nesta obra.
Ainda neste capítulo, resgatamos os fundamentos, objetos e objetivos da
antropologia e da história, compreendendo-as como ciências complementares para a
análise a ser feita nesta obra.
Aqui, escrevemos, então, sobre conceitos, métodos e escolhas teóricas.
1.1 Conceitos
Cultura é um conceito central das ciências humanas e assumiu diferentes acepções nas
vozes de diversos intelectuais, escolas, espaços e momentos. Já foi compreendida como
erudição ou estágio de desenvolvimento individual e coletivo; especificada pelas
manifestações e produções artísticas, pelos hábitos e costumes de um povo;
classificada como conjuntos simbólicos que pairam acima das diferenças de um grupo,
como uma estrutura inconsciente que determina o modo de agir das pessoas, ou como
19
uma dimensão que perpassa todos os aspectos da vida social; e, também, definida de
forma geral, como toda a vivência dos homens. Independentemente da concepção,
dois aspectos estão sempre presentes: o humano e a experiência.
Neste livro, assumimos a acepção defendida por Mércio Pereira Gomes (2017),
de que a cultura é, na verdade, uma combinação de diferentes dimensões e, em sua
mais ampla compreensão,
Portanto, a cultura atua como um guia para a forma de viver de uma sociedade.
E se faz real quando experenciada no coletivo.
Esse coletivo justifica-se quando pensamos em um dos principais predicados da
cultura: sua transmissibilidade. Os elementos da cultura, seus valores e significados
perpassam gerações, reproduzem-se em diferentes espaços, misturam-se com outros,
adaptam-se a diferentes realidades. Dessa forma, não apenas se constituem de fato
como cultura, mas também permitem sua sobrevivência.
Essa tão necessária transmissão é possível pela presença de alguns itens
essenciais, a exemplo da língua e seu uso, que não apenas conferem identidade e
aproximam pessoas, mas são também responsáveis pela replicação de valores, ideias,
símbolos, memórias e tradições que compõem uma sociedade. Podemos identificar
aqui a língua, talvez mais apropriadamente a linguagem, como elemento fundador de
qualquer cultura. A linguagem não necessariamente (e praticamente nunca) apresenta-
se da mesma forma em diferente lugares e tempos, mas se replica, altera-se e adapta-
se sem perder o traço identitário entre os grupos.
Além da língua, a acepção de cultura ora adotada abarca uma infinidade de
componentes que conferem tangibilidade às sociedades. A cultura é expressa em
hábitos simples, como na produção de objetos, na agricultura, na culinária, no
20
PRESTE ATENÇÃO!
Émile Durkheim foi um cientista social francês que viveu entre os anos de 1858 e 1917.
Responsável pela formalização das ciências sociais como área de estudos, é
considerado um dos pais da sociologia. Entre seus muitos trabalhos estão as
importantes contribuições para a construção do método científico das ciências sociais,
para análise do trabalho e, também, para a análise das religiões. Durkheim foi um dos
primeiros antropólogos dedicados a analisar e sistematizar o sagrado nas diferentes
culturas. Nesse âmbito, destaca-se a obra As formas elementares da vida religiosa, cuja
primeira publicação data de 1912 (Castro, 2016; Eller, 2018).
do sentimento e entendem o discurso como intenção coletiva; por fim, as práticas são
o modo de realizar o discurso e de manifestar as crenças, a exemplo dos rituais.
De acordo com o antropólogo Jack David Eller (2018), ao extrapolar o caráter
cultural das religiões, é possível reconhecer nesse elemento seis importantes funções
sociais:
IMPORTANTE
Na década de 1830, o sociólogo Auguste Comte categorizou as religiões em três
estágios1:
1. Animista – Crença em espíritos presentes na natureza, cujas relações com os
seres humanos eram mediadas por xamãs e pajés. Essa categoria pode ser
encontrada nas religiões indígenas brasileiras e norte-americanas.
2. Metafísico – Crença em ancestrais que assumem a figura de deuses
antropomórficos organizados em um panteão de rígida hierarquia. Essa
categoria é bem exemplificada pelas sociedades egípcia e grega antigas. No
entanto, o metafísico pode ser encontrado em modelos politeístas e monoteístas,
sendo também exemplificada pelo cristianismo.
3. Positivo – No terceiro estágio, que seria a superação do estágio anterior, o ser
humano viria a encontrar sua dimensão sagrada na própria humanidade, sem
projetá-la em outras formas. o estágio positivo implicaria a organização de um
sistema de moral e de comportamentos racionais.
A proposta de Comte foi refutada por teóricos, mas especialmente por religiosos. No
entanto, mesmo questionada, os dois primeiros estágios aparecem com frequência nos
estudos que buscam categorizar as religiões.
1
As classificações de Comte aqui apresentadas encontram-se explicadas na obra de Gomes (2017).
24
INDICAÇÃO CULTURAL
São diversos os estudos que procuram definir o que é cultura. Indicamos aqui mais
uma obra que pode enriquecer essa compreensão e, por que não dizer, construção.
1.2 Métodos
A cultura ou, melhor dizendo, as culturas são o objeto de estudo da antropologia. E,
como as demais ciências, são estudadas com o uso de metodologias especificas que lhe
garantem cientificidade e acuracidade.
Para a instrução desses estudos, independentemente do método escolhido, dois
obstáculos devem ser superados: o primeiro é o encontro de uma linguagem comum,
entre estudiosos e estudados, que trate de conceitos e especificidades culturais. o
25
PRESTE ATENÇÃO!
O antropólogo polonês Bronislau Malinowski (1884-1942) desenvolveu trabalhos a
respeito dos povos da Nova Guiné e região. Seu mais importante estudo foi
Argonautas do Pacífico ocidental, de 1922, em que apresentou o método de pesquisa
de campo com observação participante, “no qual o pesquisador passa a conviver com
os nativos em suas aldeias por um longo período de tempo, aprende sua língua e vive
situações existenciais que apenas seriam possíveis com essa inserção” (Castro, 2016, p.
93).
Originalmente, o termo etnografia foi usado para o estudo e a descrição de um
povo ou de uma cultura. Embora se refira a um termo criado no século XVIII, adaptado
do grego para o alemão, e daí para outras línguas europeias, a etnografia ganhou status
na antropologia com os alunos de Malinowski, Alfred Radcliff-Brown (1881-1955) e
Franz Boas (1858-1942), os chamados pais da antropologia moderna.
Preferencialmente, deve tratar-se de um estudo completo de um povo, em todos os
seus aspectos sistemáticos, da economia à religião. A etnografia é o documento básico,
de cunho empírico, pelo qual a antropologia se legitima como disciplina (Gomes,
2017).
A etnografia, por determinado período, foi elemento que compôs os estudos
etnológicos, que faziam a comparação entre culturas. o método comparativo, no
entanto, mostrou-se limitado em sua essência, uma vez que buscava, por vezes até de
forma forçada, as mesmas causas para fenômenos similares. A limitação desse método
foi evidenciada por Franz Boas (2016), ao levantar questionamentos a respeito desses
fenômenos. Em seu famoso discurso de 1896, Boas demonstrou que podemos ter
resultados parecidos, e até mesmo iguais, mesmo partindo de origens (motivos)
27
IMPORTANTE
28
Marc Bloch foi um importante historiador que viveu entre os anos de 1886 a 1944 e,
junto a Lucién Febvre, deu início ao movimento Escola de Annales, no qual
defenderam a noção de que a história deveria ser estudada e desenvolvida em
conjunto com as demais ciências sociais, como a antropologia, a filosofia, a sociologia,
a fim de que esses estudos garantissem visões mais amplas de seus objetos e que
diferentes métodos contribuíssem para sua compreensão.
Na obra Apologia da historio ou o ofício do historiador, Bloch (1997) demonstra
qual é o objeto de estudo da história e o método ao qual essa ciência deve dedicar-se,
sem esquecer das formas de dialogar com as demais ciências. A obra é considerada o
“livro de cabeceira” obrigatório de todo historiador.
SÍNTESE
Neste primeiro capítulo, refletimos a respeito de cultura e religião, a fim de
compreender como esses dois conceitos podem ser analisados de forma
complementar. Observamos a importância da religião como parte fundamental de
diversas culturas e as funções sociais que ela pode exercer.
29
ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
A] F, F, V, V, F.
B] F, V, V, V, F.
C] V, F, V, F, F.
D] F, F, F, V, V.
E] V, V, F, V, F.
3. As tradições exprimem:
A] o modo de vida das sociedades antigas.
B] as práticas religiosas verdadeiras.
C] o conjunto de elementos culturais.
D] a relação entre o passado e o presente.
E] a única forma de reproduzir a cultura.
ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
Explique a afirmação final do trecho: “já que tal sentimento não deixa de ser humano,
por ser próprio das culturas”.
2
ÁFRICA IORUBÁ
A missão de estudar a África é grandiosa. Conhecemos alguns projetos que se
propuseram a conhecer o todo, em minúcias, desse vasto continente. Compreender
sua geografia, sua fauna, sua flora, sua política e geopolítica, e de forma ainda mais
ampla, suas culturas e histórias é um trabalho para mais de um pesquisador, ousamos
dizer que para mais de uma geração de pesquisadores. Além disso, é um trabalho já
bem representado nos estudos das humanidades2. Não nos propusemos aqui a fazer
algo de tamanha envergadura.
Nossa proposta é mais modesta. Definimos como objeto de estudos as
manifestações das religiões africanas na África e nas Américas. Assim, optamos por
um recorte espaço-temporal bastante específico (mas não menos complexo): ao pensar
na África, nossos estudos vão abranger a região do Golfo da Guiné e os povos que nele
se fixaram durante os séculos IX a XVIII.
Mas, como dissemos, a proposta é modesta. Ao estudar esse espaço, propomo-
nos a discutir o contexto histórico de forma ampla, como suporte à compreensão da
cultura e religião que ali se constituíram e de lá partiram para outras paragens.
2
Fazemos aqui referência à coleção da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura –
Unesco (2010), que explora a história da África desde a Pré-História até os dias atuais, passando por aspectos
geográficos, antropológicos, históricos e políticos de forma extremamente rica. Esse trabalho, se ainda não
conhecido, deve ser topo da lista de leituras de qualquer estudioso do continente e, felizmente, está disponível
gratuitamente na internet. Consulte, na Seção “Referências”: Unesco, 2010.
33
3
As nomenclaturas África Negra e África Branca são, atualmente, bastante contestadas em âmbito acadêmico,
considerando a possibilidade de carregarem preconceito e, por si, designarem a valorização das culturas
presentes em cada um desses espaços. Por se tratar de longa discussão, optamos, nesta obra, pelas
nomenclaturas África do Norte e África Subsaariana, que, em última instância, referem-se aos mesmos espaços.
36
37
IMPORTANTE
O estudo de espaços e povos que não replicam o modelo ocidental deve ser feito
cautelosamente, no sentido de não imprimir conceitos e valores ocidentais sobre essas
culturas. Esse cuidado deve ser assistido até mesmo no emprego de conceitos e
nomenclaturas que têm uma acepção bem definida nas culturas ocidentais e acabam
enrijecendo movimentos e práticas não ocidentais, que podem caracterizar-se de forma
menos definida e mais fluida.
Apesar de essa atenção parecer um tanto abstrata, ela pode ficar mais evidente
com exemplos práticos, como a definição de períodos históricos – a periodização
38
tradicional não se aplica à grande parte da África e da Ásia, por exemplo; assim como
títulos, como rei, rainha etc., são compreendidos com distinção na Europa e na África4.
2.2 Os iorubás
Os iorubás são, de certa forma, uma abstração. o que existe de fato são o reino, o povo
de Igé, de Oyo, de llesha, de Ketu etc.; todos eles produtos particulares de combinações
socioculturais ao longo de suas histórias (Woortmann, 1978).
A identidade iorubá como algo único e bem definido é uma invenção
relativamente recente. Os elementos constitutivos dessa cultura surgiram em diversos
povoados africanos, em diferentes espaços, mas que viveram e, em alguma medida,
conviveram na região do Golfo da Guiné, mesmo que com certa distância temporal,
desde o século VIII ou IX. Foi apenas a partir do século XVIII que começaram a ser
pensados e estudados de forma única, sob o espectro iorubá.
4
Para se aprofundar nessa metodologia, sugere-se a obra de Godoy (2008).
39
PRESTE ATENÇÃO!
A guerra entre os reinos iorubá e Daomé foi travada no final do século XVIII. Isso
ocorreu em razão da mudança na dinâmica comercial da região, uma vez que o reino
de Daomé passou a contribuir de forma protagonista com o comércio atlântico,
alimentando o tráfico de escravos pelo subjugo de outros povos da região. Importante,
ainda, salientar que o reino de Daomé também partilhava de elementos constituintes
da cultura iorubá.
Entre esses padrões culturais, o caráter urbano é uma das características mais
marcantes observadas entre os reinos. Apesar de apresentarem economias
basicamente agrícolas, os povos dessa região organizavam-se socialmente em espaços
urbanos. As regiões litorâneas ou mesmo às margens dos rios Níger e Benue contavam
com centros urbanos de pequeno e médio portes, com construções que geravam
impactante contraste visual com as florestas, a exemplo dos Impérios Mali e Songhai
(que exerceram maior hegemonia em alguns períodos). As praças mercantis
constituíram outro relevante elemento das vidas urbanas e refletiam a importância do
comércio para essas comunidades.
De forma geral, as cidades eram autônomas, com algumas cidades menores ou
aldeias sob sua influência. Esses agrupamentos constituíam os reinos. Alguns reinos
iorubás anteriores apresentaram maior organização e acabaram por exercer influência
social (e, por vezes, econômica) na região. Desse modelo, são destaques os reinos de
Ifé e de Oyo.
De acordo com a mitologia iorubá, Ifé foi o primeiro agrupamento populacional
– o local onde a humanidade foi criada e a partir de onde se “espalhou”.
Cientificamente, essa teoria não se comprova. Os estudos históricos e arqueológicos
sobre a região localizam a organização de Ifé como cidade apenas entre os séculos IX
e X. Sabemos, entretanto, que a humanidade teve sua origem muito antes disso. As
origens históricas e mitológicas de Ifé se cruzam e se confundem em vários aspectos.
Os historiadores que se dedicam à compreensão do povo iorubá afastam as concepções
de origem da Terra e do homem localizada na região. Buscam reconstruir essa história
por meio de fontes orais e de documentos como listagens de reis e dinastias. Esses
estudos demonstram que um modelo político mais forte surgiu quando Ifé optou pela
constituição de uma monarquia divina. Dessa forma, o poder político era chancelado
pela proximidade do monarca a Odudua, considerado o primeiro rei de Ifé e criador
da Terra. Essa aproximação entre mitologia e história repete-se nas cidades que
seguiram o modelo político de Ifé. Ao assumirem monarquias divinas, várias cidades
43
CURIOSIDADE
No Museu Britânico, em Londres, podem ser encontrados vários artefatos dos povos
iorubás, entre os quais se destaca a Cabeça de Bronze de Ori Olokun, escultura de 35
centímetros em cobre, desenterrada na região de Ifé, em 1938, e apreendida pelos
britânicos. A retirada de objetos sagrados de seu lugar de origem para a exibição em
museus de outros povos é uma prática polêmica, pois preserva o objeto ao mesmo
tempo que o retira de sua origem e de seu lugar de significado. Essa escultura
representa a divindade Odudua e, possivelmente, estava protegendo a região de Ifé.
THE BRITISH MUSEUM. Disponível em:
<https://www.britishmuseum.org>. Acesso em: 11 jan. 2021.
Tanto a mitologia, como a história dos iorubás, [sic] apontam para Ifé como um
ponto de difusão religiosa e de legitimidade política na região. Se na mitologia
essa cidade ocupa um papel central na explicação da origem do mundo, nos
estudos históricos tal fato se confirma. Até os dias de hoje, existe uma
vinculação importante entre as cidades e aldeias iorubás com Ifé. Mesmo que
estes vínculos fossem mais religiosos e políticos do que de origem histórica, em
quase todas elas, as linhagens de reis e chefias conduzem a antepassados que,
apesar de pertencerem muitas vezes a um tempo mitificado, foram associados
aos descendentes diretos dos filhos de Odudua e de Ifé. (Oliva, 2005, p. 15-16)
44
O QUE É
O domínio de alguns conceitos é necessário para a compreensão da relação entre as
culturas e religiões africanas com a formação sociocultural americana. Ao estudar a
história dessas sociedades, observaremos dinâmicas de aculturação, miscigenação
(étnica e cultural) e sincretismo.
▪ Aculturação: processo de mudança cultural de uma sociedade a partir do
contato (pacifico ou forçado) com elementos externos5.
▪ Miscigenação: mistura de características e elementos de diferentes culturas.
▪ Sincretismo: forma de mistura cultural que se associa ao campo religioso e é
caracterizada pela união de crenças e religiosidades de diferentes origens
culturais6.
SÍNTESE
5
O conceito de aculturação é bastante complexo. Para sua compreensão, consulte o artigo de Wachtel (1976).
6
Veja mais sobre esses conceitos em Silva e Silva (2006a, p. 15-18; 290-293).
47
ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
3. Comente como era expressa a influência do reino de Ifé sobre as demais cidades
iorubás.
3
MITOLOGIA IORUBÁ
Ao nos debruçarmos sobre os estudos das sociedades iorubás, frequentemente
encontramos resquícios (senão grandes porções) da mitologia como integrantes da
história desses povos. Uma história que prescinde de fontes e registros formais se faz
da tradição oral. E, na oralidade, não há bloqueio à mitologia.
A mitologia está presente em aspectos centrais (cuja categorização como mito é
mais simples) e em aspectos periféricos (nos quais surgem as dúvidas quanto ao que é
ou não real). Com essa perspectiva em mente, começamos a pensar sobre as demais
sociedades a que dedicamos estes estudos. Em todas elas, resquícios da mitologia
religiosa apresentam-se como parte da história, o que revela a importância dos mitos
para as pessoas e a função social que eles exercem.
IMPORTANTE
Da obra de Eller (2018), trazemos duas perspectivas presentes durante o estudo que
fizemos dessa mitologia, de seu panteão e dos ritos e símbolos que solidificam tal
cultura no cotidiano. De acordo com o autor, foi com o advento da psicanálise no
século XX que os mitos ocuparam papel significativo na compreensão do ser humano
51
e de sua mente. Em sua obra, Eller (2018) demonstra que, para Sigmund Freud, o mito
apresentou-se como elemento constitutivo do inconsciente coletivo. E uma forma que
“tende a falar a linguagem da história, ou moldar-se em termos históricos, mas os
acontecimentos históricos dos quais ele fala não são ocorrências específicas [...], mas
antes manifestações eternas de realidades constantes, intemporais” (Eller, 2018, p. 139).
Diferentemente da psicanálise, para a antropologia o estudo do mito
apresentou-se como recurso para o conhecimento social. Para os antropólogos, a
exemplo de Malinowski, o mito é uma narrativa, uma reflexão alegórica sobre a
existência, e a conformação de uma sociedade. Para Malinowski. “o mito não é uma
contação especulativa de histórias, ou um responder a perguntas, ou mesmo uma
história sagrada, [...] ele expressa, intensifica e codifica a crença; salvaguarda e reforça
as normas práticas para o homem se orientar” (Eller, 2018, p. 138).
Na perspectiva antropológica, compreende-se o mito de forma funcionalista, ou
seja, afirmando que todo mito tem uma função na sociedade, uma finalidade.
7
Os mitos e as informações a respeito da mitologia iorubá explorados nesta obra advém, em grande parte, da
obra de Ribeiro (1996).
52
CURIOSIDADE
Nas pinturas referentes ao panteão iorubá, Olodumare ê comumente representado ao
centro da imagem, assumindo o papel de provedor das demais divindades e dos
elementos naturais que são representados em sua companhia. Nessas obras de arte,
Olodumare costuma, ainda, ser iluminado por uma luz superior, simbolizando sua
forma divina.
Terra e a origem dos homens. A função desse mito, como ocorre também em outras
sociedades, é não somente de apresentar como se originou a humanidade, mas de
garantir segurança e conforto aos seres humanos, uma vez que demonstra a existência
de uma força, uma entidade de grande poder responsável por eles. Se é capaz de criá-
los, é também capaz de cuidá-los. O ser supremo Olodumare é aquele a quem os
iorubás são devotos e fiéis, a quem fazem preces e pedidos e a quem dedicam suas
conquistas e vidas.
A figura de Odudua. protagonista da segunda versão, é de grande importância
para os povos iorubás, por ser considerado o criador de Ifé. Observamos aqui que, no
mito da origem de Ifé, Odudua é masculino, é o antecedente comum de todos os
iorubás, aquele que lhes garantiu a criação. Assim como a Olodumare, os iorubás têm
grande devoção a Odudua e o compreendem como protetor de suas cidades, aldeias e
vidas.
Outra grande questão da humanidade, que costuma encontrar nas religiões sua
explicação e conforto, relaciona-se à morte. Outro trecho do mito de origem traz
algumas explicações sobre a morte – Iku, de género masculino em iorubá:
IMPORTANTE
Sobre a utilização de mitos como forma narrativa e explicativa nas religiões,
recorremos à análise proposta por Eller (2018, p. 137):
Essa leitura permite compreender os usos e os objetivos das narrativas míticas nas
religiões de forma geral e na iorubá em particular.
8
Nesse capítulo da obra de Eller é aprofundada a questão do mito e de como ele é explorado em diferentes
religiões.
55
▪ Orumilá (Exu) – Apesar de não ser consenso na tradição oral, esse orixá, para a
maior parte dos iorubás, é considerado a personificação do mal e é responsável
pelas situações de conflito e loucura. No panteão, Orumilá tem a atribuição de
preservar o axé.
9
Os orixás são relacionados à origem do mundo e à criação. Cabe a eles concretizar os anseios de Olodumare,
como observamos ao conhecer o mito de origem. As entidades originais são, por assim dizer, emanações de
Olodumare, ao passo que as deificadas são personificações de fenômenos e forças naturais. Aos orixás,
Olodumare concedeu o axé, que nada mais é do que poder divino com o qual eles podem realizar seus feitos
sobrenaturais.
10
Os ancestrais serão abordados mais adiante, mas, aqui, adiantamos que são entidades relacionadas à história
dos homens. São humanos que foram deificados em razão de suas vidas exemplares.
56
objetivam preparar esse ser para sua nova condição de existência. Aqueles que tiveram
uma boa vida, seguindo os princípios morais iorubás e finalizando sua jornada com o
que se compreende como a boa morte11, recebem ritos fúnebres adequados que os
auxiliam na transformação para entidades ancestrais.
Os ritos em si podem ser diferentes para cada um dos povos, mas a festa
fúnebre é uma tradição respeitada e replicada por todos os iorubás. Os que morrem
com idade avançada são homenageados com festas grandiosas, ocupando ruas e
reunindo multidões. Essas festas são realizadas após o enterro e devem ser fartas, com
muita comida, bebida, música e dança, podendo durar até 24 horas. No terceiro dia, os
vizinhos da família do falecido recebem presentes em homenagem ao morto. No oitavo
dia e no quadragésimo, devem ser repetidos os festejos. No quadragésimo d
celebrações são ainda maiores e recebem o nome de Festa Final. celebrações são
destinadas apenas àqueles que alcançaram a boa morte idosos mortos em qualquer
circunstância.
IMPORTANTE
Eller (2018) também apresenta uma importante análise a respeito do uso e da função
dos rituais. Após analisar uma série de definições e estudos antropólogos a respeito
dos rituais, conclui:
Por mais diferentes que sejam essas definições, elas revelam alguns traços
recorrentes. Realçam a ação (embora nem sempre uma a “prática” ou
“instrumental”), a padronização e a comunicação – mesmo que, pelo menos em
alguns casos, esta comunicação seja considerada “vazia”. (Eller, 2018, p. 175)
11
A boa morte ocorre por causas naturais, em idade avançada. Não se enquadram como boa morte as causadas
por suicídio, acidentes, loucura, doenças e as que acometem crianças, jovens e mulheres grávidas ou dando à luz
(Ribeiro, 1996).
59
12
Na sequência, abordaremos brevemente a ação de bruxas e feiticeiros.
13
Magos e médicos não são a mesma pessoa. Os médicos são aqueles conhecidos como curadores, que têm
conhecimento técnico e científico para diagnosticar moléstias físicas e administrar medicamentos e terapias
visando à cura. Os magos, por sua vez, têm poderes sobrenaturais e podem corrigir desequilíbrios e, até mesmo,
resgatar amores, prevenir acidentes etc. (Ribeiro. 1996).
60
magos. Esses saberes, por muito tempo, foram sequer questionados nas cidades e
aldeias iorubás. Na atualidade, ao mesmo tempo que alguns médicos ocidentais
questionam essas práticas, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estuda e analisa
práticas tradicionais (não apenas iorubás) a fim de incorporá-las aos sistemas de
primeiros cuidados.
Nos rituais, são utilizados também os encantamentos, ou ofo, na língua iorubá.
SÍNTESE
Neste capitulo, de forma descritiva e narrativa, destacamos a mitologia que compõe a
religião iorubá e a forma como ela se relaciona com a vida social desses povos. Ao
conhecer seus mitos, seus deuses, seus ritos e suas práticas, compreendemos de forma
mais profunda a construção social dos povos iorubás, suas relações pessoais e com o
14
Nesse trecho da obra de Ribeiro (1996) são resgatadas algumas posições de antropólogos a respeito da magia,
seja de sua simbologia, seja de seu uso nas sociedades. A opção pela compreensão de Lévi-Strauss justifica-se
pela forma como ele interpreta mais o modelo mental de compreensão da magia do que propriamente o uso
dela.
62
mundo, bem como com o universo espiritual, e de que forma isso pauta as diferentes
etapas de sua história.
É importante salientar que, por mais tradicionais que sejam os aspectos
apresentados, eles demonstram como a religião iorubá é intrínseca à cultura, com
capacidade de se alterar e se atualizar. Quando comentamos a relação entre a magia e
a ciência, ou mesmo quando descobrimos que um orixá é patrono de tatuadores,
podemos observar esse esforço de replicação e adequação da cultura.
ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
D] F, F, F, V, V, V.
E] V, V, F, V, F, V.
ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
4
DIÁSPORA NEGRA
E RELIGIOSIDADE
Na presente obra, nosso objetivo é analisar e discutir a cultura, em especial a
manifestação religiosa, especificamente na África e nos espaços americanos. Para isso,
é necessário compreender de que forma a cultura africana alcançou a América e
enriqueceu sobremaneira as sociedades que existiam e se formavam nesse continente.
Ao iniciar a análise desse processo, no entanto, sentimos a necessidade de
firmar sua gravidade e colocar em perspectiva a violência que o regeu. Falar sobre a
diáspora africana pode gerar sentimentos conflituosos. Em nossa percepção, a procura
pelo “copo meio cheio” dentro de uma das maiores, senão a maior, tragédia imprimida
a uma comunidade não só é frágil, mas também inadequada. O aprisionamento, a
separação dos grupos de convívio, o subjugo, a exploração, os maus-tratos e a
supressão de liberdades e de direitos em nenhum momento podem ter sua
importância subestimada.
A diáspora foi um movimento involuntário e resultante de extrema e continua
violência. As consequências desse ato são de grave impacto nas sociedades africanas,
cujos reflexos são sensíveis até os dias atuais. Ao estudar a configuração das
sociedades e culturas americanas, também significativamente afetadas por esse
processo, não devemos perder a perspectiva da tragédia.
Dito isso, apresentamos o objetivo deste capitulo: compreender como se
configurou a diáspora. de onde foram tirados os africanos e para onde foram levados,
a fim de, na sequência, entender de que forma a religião desses africanos se imprimiu
na cultura local.
66
15
Nesta obra, optamos pela utilização, quando adequada, da terminologia escravos, compreendendo sempre
que a escravidão é uma condição imposta violentamente às pessoas, e não uma característica definidora dessas
pessoas.
16
É de extrema importância compreender a diversidade africana que compôs o contingente de escravizados
transportado para a América. Essa diversidade foi protagonista tanto na possibilidade de escravizar essas pessoas
quanto na existência e contenção de resistências e, ainda, na formação cultural das sociedades americanas que
foram impactadas pela presença africana. Ainda a esse respeito, destacamos que a terminologia africanos é
usada no sentido apenas de designar pessoas vindas da África, e não um grupo com identidade comum.
17
O próprio termo escravidão não existia na África antes das investidas europeias. A prática africana era voltada
ao cativeiro, e não à exploração. Na África, existiam “cativos”, e não “escravos”. Ao apresentar essa distinção, no
entanto, não se está defendendo um modelo em relação a outro, pois compreendemos que ambas as práticas
imputavam violência às suas vítimas.
67
18
É importante lembrar que, em suas expedições marítimas, os europeus já faziam contatos com comerciantes
localizados na costa atlântica africana desde fins do século XIV. Esses contatos, no entanto, eram restritos à troca
de bens comerciais, como alimentos, marfim, entre outros objetos.
68
Nesse sentido, o termo “nação” foi utilizado nos séculos XVII e XVIII pelos
traficantes de escravos, os missionários e os administradores das colônias
escravagistas para designar as diferentes sociedades locais da África. No
contexto colônia europeu da época, a maioria nas nações europeias foram
governadas por monarquias. (Handerson, 2010, p 108)
19
Não objetivamos, nesta obra, discutir o conceito de nação, uma vez que essa discussão pode, por si. ser tema
de uma obra inteira. No entanto, é importante compreender que. nesse caso, a acepção de nação utilizada pelos
europeus sequer se assemelhava à compreensão que eles tinham das nações europeias. Veja mais sobre o
conceito de nação e suas compreensões em Hobsbawm (2012).
69
20
Antes do embarque, os africanos também eram marcados com ferrete quente, recebendo uma identificação
tal qual mercadorias.
21
Ideologicamente, os empreendimentos católicos (em especial portugueses e espanhóis) eram sempre
movimentos pelos preceitos cristãos e pela intenção da expansão da cristandade. Sendo assim, firmava-se que
os africanos deveriam ser convertidos ao catolicismo, uma vez que estivessem lotados na América. O batismo
era o primeiro passo. Eram distribuídos objetos como crucifixos e santos para que os africanos se familiarizassem
e se apegassem aos símbolos cristãos. E mesmo os princípios morais já lhes eram apresentados e cobrados.
70
Não obstante, foi a memória da África, como terra ancestral, que deu aos
cativos transportados para o Novo Mundo condições para sobreviver ao
processo de espoliação a que se viram submetidos e lhes oferecer alternativas
novas de convivência e de resistência. Privados da liberdade, restou-lhes a
lembrança de seu modo de vida e a vontade para, em outras terras, e com
outros povos, reinventar sua história. (Macedo, 2013, p. 117)
4.2 Diáspora
O tráfico de africanos para a América foi a maior diáspora da humanidade, pois
resultou da dispersão de mais de 10 milhões de africanos para diferentes espaços do
mundo. Os então escravos foram vendidos em todos os continentes, mas
massivamente para a América. O historiador Luiz Felipe de Alencastro (2000)
apresenta um estudo no qual identifica o contingente de pessoas destinado aos espaços
atlântico, europeu e americano, que pode ser observado na tabela apresentada a seguir.
O QUE É
Diáspora é um termo originariamente utilizado para designar a dispersão do povo
judeu pelo mundo. Na ciência histórica, esse termo passou a ser utilizado para
71
designar a dispersão de qualquer povo pelo mundo. Essas dispersões podem ser
motivadas por cativeiro, perseguição política, étnica ou religiosa.
SÍNTESE
Neste capitulo, objetivamos a explicação de como se configurou a diáspora africana e
a forma como esse movimento imposto pelos europeus impactou não só as sociedades
africanas, mas também as americanas.
A diáspora. no caso africano (como pode ter acontecido nos demais),
disseminou populações africanas em outros espaços do mundo e tentou esvaziar essas
pessoas de suas tradições e crenças. Esse esvaziamento não foi possível, pois os traços
culturais africanos se mostraram tão fortes que foram capazes de se replicar em outros
espaços e, indo além, de se transformar para adequar-se às novas realidades.
73
ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
D] I e III.
E] II e III.
ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
Não obstante, foi a memória da África, como terra ancestral, que deu aos
cativos transportados para o Novo Mundo condições para sobreviver ao
processo de espoliação a que se viram submetidos e lhes oferecer alternativas
novas de convivência e de resistência. (Macedo, 2013, p. 117)
76
5
A PRESENÇA AFRICANA
NAS ANTILHAS
O tráfico de pessoas escravizadas da África para a América impactou o
desenvolvimento das sociedades africanas, bem como a constituição das sociedades
americanas. Nos espaços que foram povoados por essas pessoas, é imprescindível
analisar a conformação cultural sempre considerando os elementos nativos, os
elementos coloniais e os elementos africanos. Essa miscigenação ê responsável pela
constituição de culturas extremamente ricas e particulares em cada um desses espaços.
77
22
Na literatura, encontramos diversas grafias para vudu: vudu, vodu, vodo, vodum, entre tantas outras. A opção
aqui foi pela grafia vudu. No entanto, sempre que uma obra citada apresentar outra grafia, será mantida a
original.
23
Sobre o princípio da colonização do Haiti, no trato espanhol, consulte: Schwartz; Lockhart (2002. p. 85-112).
78
açúcar e de café. A falta de mão de obra. todavia, era um problema permanente para a
economia da colônia.
A opção pela mão de obra escrava africana foi condizente com o contexto
colonial americano e foi reforçada pela alta produção agrícola implementada no Haiti.
A compra de escravos pela colônia francesa aumentava em milhares a cada ano, de
forma a fazer o espaço colonial ser povoado mais por africanos e seus descendentes do
que pelos próprios colonos. Essa proporção é elemento importante para compreender
o impacto dos movimentos rebeldes e de resistência na colônia.
Como já ressaltamos, os africanos escravizados eram desenraizados em dois
processos: um ainda na África e outro ao chegar à América. o desenraizamento
objetivava a separação das nações africanas e a perda da identidade por parte dos
africanos. Em uma escala ainda maior, a perda da identidade era uma forma de
prevenção às insurreições.
Os esforços dos traficantes e dos administradores de escravos, contudo, não
foram capazes de eliminar os vínculos dos africanos (histórias, memórias e tradições)
nem a relação com outros africanos, que, mesmo sem pertencer à mesma nação ou
grupo de origem, tinham traços culturais comuns e crenças próximas. A construção
desses laços deu início, no território haitiano, a uma nova identidade africana, ou afro-
americana.
INDICAÇÕES CULTURAIS
Para maior aprofundamento e compreensão da conexão entre o universo africano e a
história e a cultura afro-americana, sugere-se a leitura da seguinte obra:
THORTON, J. A África e os africanos na formação do mundo atlântico: 1400-1800.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
Ao explorar o mundo Atlântico e as interações que nele se estabeleceram, o autor
evidencia a riqueza sociocultural africana, refletida em suas estruturas políticas e
comerciais. É pelo reconhecimento dessa força social que se torna possível a
compreensão do protagonismo dos africanos nos processos que se desenvolveram a
partir do contato com os europeus, seja no comércio de escravos, seja na atuação na
79
América, não apenas como força de trabalho, mas também como agentes sociais e
culturais.
24
Na sequência, abordaremos com maior profundidade o sistema religioso vudu (deuses, ritos e demais
elementos) e suas transformações ao longo da história, além da distinção entre sistema religioso e religião. Aqui,
compreendemos ser necessário indicar que o vudu apresenta diversas origens étnicas, resultantes da
efervescência cultural vivida no Haiti (e na América como um todo). Também é importante, ainda, indicar que
esse aspecto espiritual, transcendental, foi de significativa relevância para a construção da identidade haitiana.
80
25
Nas páginas 47 e 48 da obra de Handerson (2010), há uma descrição do ritual vudu que deu início à insurreição
dos escravos contra seus senhores. De acordo com o relato, o ritual envolveu cânticos, encantamentos, ingestão
de sangue de porco e orações créoles (etnia).
81
mil escravos negros. Os embates tornaram-se cada vez mais frequentes e mais
violentos. A grande vitória dos negros ocorreu em 1793, quando foram libertados os
escravos e declarado o fim da escravidão no Haiti. Em 1804, a emancipação do país
também foi firmada26.
INDICAÇÃO CULTURAL
26
Essas e outras informações a respeito da sociedade haitiana podem ser encontradas na obra de James (2010).
82
IMPORTANTE!
O indigenismo existiu como movimento literário no Haiti já no século XIX. Nessa
manifestação, privilegiava-se a autonomia das culturas asiáticas e africanas, em
oposição (inclusive depreciativa) à cultura francesa. No século XX, todavia, esse
movimento extrapolou o âmbito literário, tomou formas de movimento político e
apropriou-se dos valores culturais nativo-americanos e resultantes da miscigenação,
83
O créole é uma língua afro-latina que combina o francês com dialetos africanos
e alguns gestos e maneirismos. Para a elite haitiana, essa forma de expressão sempre
gerou vergonha, mas em razão de sua presença proeminente no Haiti, em 1987, passou
a ser considerada, assim como o francês, língua oficial do país.
O sistema religioso vudu, por sua vez, sofreu, e ainda sofre, discriminação pela
sociedade haitiana (e não só por ela). Muitos compreendem o vudu como uma
superstição que deveria ser eliminada da sociedade haitiana, outros, como religião
pagã, e há até aqueles que associam as mazelas27 sofridas pela população haitiana à
permanência da prática vudu no país. No século XIX, essa associação era bastante forte
e relacionava a prática vudu à barbárie e à selvageria. Até meados do século XX, o
vudu era resumido à magia negra, responsável pelo subdesenvolvimento do país28.
Esse estigma não acompanhou apenas a religião vudu, mas todas as religiões e culturas
de matriz africana que se estabeleceram na América. O esforço de desmistificar o
caráter negativo dessas religiões foi abraçado pelos indigenistas e por muitas outras
gerações de pensadores e articuladores sociais ao longo dos séculos XX e XXI29.
Contudo, assim como o créole, o vudu teve reconhecida a importância que
exerce na cultura haitiana e, mais do que isso, o papel que desempenhou nas
insurreições escravas, na independência do país e em outros processos políticos, ao
passar, em 1987, a ser protegido pela constituição haitiana. Em 2003, o vudu foi
instituído como religião oficial do país.
27
No último século, o Haiti foi assolado por terremotos e furacões, bem como por doenças. Esses eventos
colocaram o país em situação de grande vulnerabilidade social. As causas para tais desastres podem ser
explicadas por meio de aspectos geográficos, históricos e sociais. No entanto, muitos têm na religião a
justificativa para essas e outras questões. Existem críticos da religião vudu que compreendem que são essas
práticas (ligadas à magia negra e à evocação de entidades da natureza) as responsáveis pela fragilidade haitiana
e pela recorrência dos desastres naturais.
28
Saiba mais sobre a imagem negativa do vudu em: Handerson (2010, p. 134).
29
E importante o reforço de que ainda no século XXI é necessário o combate aos estigmas imputados à
religiosidade de matriz africana.
84
De acordo com Handerson (2010, p. 65), o vudu é uma religião porque “tem
seus deuses e uma teologia, ou seja, um sistema de representação para explicar o
mundo, possuindo culto, com cerimonias dirigidas por um corpo sacerdotal
hierarquizado e assistida por uma sociedade de fiéis”.
Outros autores, no entanto, compreendem o vudu como um sistema, por não
ter um código escrito com as crenças, as determinações e as práticas da religião e por
apresentar muitas variações entre espaços e famílias, lias, em qualquer uma dessas
concepções, o vudu assume aspecto religioso por contar com um sistema integrado de
princípios que regem a conduta humana, uma visão de mundo que interliga seres
humanos, a natureza e o universo intangível.
No final das contas, já é mais do que comprovado serem, tanto o vodu quanto
o candomblé, práticas religiosas sincréticas. O vodu é o resultado de um
sincretismo de crenças, dos cultos daomeanos, cangoleses, Sudaneses e do
30
Nos capítulos anteriores, exploramos o iorubá dentro dos povos de Ifé e de Oyo e seus arredores. Essa opção
justifica-se por compreendermos, nesses reinos, a origem da cultura iorubá e a influência que esses povos
tiveram sobre os demais que vieram a compor essa cultura. Como lá apresentado, os reinos de Oyo e Daomé
foram rivais políticos, mas isso não impedia que vivenciassem práticas comuns, tampouco que dividissem
crenças. Muitos dos africanos escravizados levados às Antilhas vieram dessa região e, por vezes, já eram cativos
anteriormente ao tráfico atlântico, pela disputa entre Oyo e Daomé. Essa presença passa a se refletir, para muitos
estudiosos, como daomeana. Mas a referência que se deve firmar é que o daomeano é compreendido como
iorubá, lembrando que essa cultura e suas crenças não se constituíram de forma única em toda a região
(Ribeiro,1996).
85
Há uma hierarquia das forças e dos seres, em que tudo está incluído: deuses,
animais, plantas e minerais. Os praticantes da religião Vodu acreditam
profundamente na existência dos seres espirituais que vivem na natureza. [...]
o culto do Vodu na cultura haitiana está na base do desejo do haitiano de
reportar-se ao lugar em que os acontecimentos e o sentido das coisas têm
explicação e não devem ser separadas no seu próprio universo simbólico.
(Prospere; Gentini, 2013, p. 74)
31
O termo taíno refere-se aos grupos nativos da região das Antilhas, em especial presentes na Jamaica, Cuba,
Bahamas, República Dominicana, Haiti e Porto Rico. No que toca à espiritualidade desses povos, destaca-se o
culto às divindades que se relacionavam com a natureza e com a fertilidade.
86
SÍNTESE
Neste capítulo, analisamos o impacto da presença africana na América, em especial no
Haiti. Seguindo o caminho das religiosidades e de sua influência significativa nos
âmbitos sociais e culturais, ressaltamos o papel da religião vudu na conformação da
sociedade haitiana.
O primeiro aspecto estudado foi a importância do vudu na construção da
identidade haitiana. A vivência da religião permitiu o estabelecimento de laços
espirituais e culturais, que resgataram a memória africana, bem como propiciaram
novos espaços de convívio e de desenvolvimento de novas tradições.
Além da prática religiosa, esses espaços tornaram-se redutos de reflexão
política. Fosse pelo conhecimento de ideais que circulavam pelo mundo, fosse para a
compreensão da luta de classes estabelecida no Haiti, os rituais vudus permitiram a
organização desse povo com nova identidade e com aspirações comuns.
Nesse contexto, destacamos a importância do vudu nas insurreições e nos
movimentos de resistência escravos no Haiti, bem como seu protagonismo no alcance
de sua liberdade e, indo além, da soberania do país.
O papel exercido por essa religião e seus praticantes foi, por muito tempo,
negada na história do Haiti. As classes dominantes, envergonhadas dessa religião,
87
ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
D] Foi fortemente combatido pelas camadas sociais mais baixas que não se
viam representadas pela literatura.
E] Expandiu-se, defendendo não apenas a conformação cultural haitiana, mas
também as demais da América que absorveram as práticas vudus.
ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
6
90
MITOLOGIA VUDU
A aproximação de historiadores à sociedade haitiana costuma ocorrer em razão dos
estudos das revoluções escravas e dos movimentos de independência na América. O
estudo da cultura do país direciona ao conhecimento da constituição da identidade
desse povo, e não, de fato, à compreensão da cultura. Já os estudos dedicados à
elaboração desta obra indicaram outro caminho, afastando-nos do lugar comum e dos
preconceitos difundidos a respeito dessa cultura e, em especial, da religião vudu.
O universo vudu sempre nos pareceu bastante místico. Se buscarmos pelas
memórias advindas do imaginário coletivo, o vudu sempre esteve associado às
práticas de magia negra e encantamentos. O boneco vudu é a primeira imagem que
costuma vir à mente quando pensamos nessa religião, se é que a percebemos como
religião.
Quando começamos a nos aprofundar no universo religioso vudu, o místico
passou a dar espaço ao familiar. Ao olhar para os espaços próximos e para a
preocupação com questões bastante terrenas e cotidianas, a magia e o sobrenatural
deram lugar a ritos e festividades próximas às religiões mais populares no mundo,
como o próprio catolicismo. E a magia negra praticada com os bonecos vudus se quer
apresentou-se em meio aos diversos rituais voltados à saúde e à cura, ao cuidado com
o meio ambiente, entre tantos outros.
Neste capitulo, ao estudarmos a religião (ou sistema religioso) vudu, propomos
ao leitor o mesmo percurso que traçamos. Ao começar por um estudo de caso, vamos
observar a forma como essa religião é praticada atualmente na sociedade haitiana,
para, na sequência, conhecermos com mais profundidade algumas das crenças e dos
ritos do vudu e, por fim, as grandes preocupações as quais se direcionam as
encomendas e mesmo as divindades vudus.
32
Observamos aqui, a similaridade com a figura da bruxa da religião iorubá.
33
Iwa é o nome dado ao espírito ou aos espíritos e às entidades muito antigos. 0 iwa bitasyon é vinculado à terra,
o iwa fanmi é vinculado à família e o iwa heritage é vinculado à herança. A terminologia créole utilizada para se
referir aos espíritos é mystéres ou génies. No norte do Haiti, são utilizadas duas outras terminologias: saints e
anges.
34
Lakou é a palavra utilizada para remissão ao território da família, ou seja, a terra na qual se constroem as
relações e vínculos vudus. Esses espaços são habitados pelos vivos e pelos mortos.
92
pessoas mais próximas como, por exemplo, ela própria, a teriam alertado sobre
a possibilidade de perseguição, uma espécie de retaliação feita pelo Iwa
bitasyon diante de sua indiferença. (Dalmaso, 2018, p. 111)
35
“Compartilhar o alimento preparado nas casas é um elemento-chave para a criação e a preservação dos
vínculos de familiaridade e para o estabelecimento de fronteiras afetivas entre as pessoas” (Dalmaso, 2018, p.
102).
36
Esse conceito de vinculo é explicado, no Haiti, pela analogia à gosma do quiabo, que mantém o todo junto.
Que, ao mesmo tempo prende e desliza, é o que constituiu os vínculos, considerando as aproximações e os
distanciamentos de expectativas e afinidades nos cotidianos familiares (Dalmaso, 2018).
93
práticas cotidianas e por rituais nos quais são evocados os mortos e os iwas.
Encontram-se entre esses iwas os fundadores dos lakous.
De acordo com Dalmaso (2018, p. 104), “os lakou do início do séc. XX abrigavam
muitas casas em seu interior, constituindo verdadeiras instituições políticas,
econômicas, sociais e religiosas – uma espécie de fato social total – reguladas pela
autoridade de um chefe, o mèt lakou [...].”
Esses espaços, como podemos observar, não apenas abrigam as pessoas de uma
família, mas comportam as relações e têm uma importância na organização social
haitiana.
O terceiro aspecto que se evidencia na história de Liliane é o de herança, ou
eritaj. A herança vudu é composta de bens materiais e imateriais, entre os quais as
terras (lakous) e os espíritos (iwas) ocupam lugar de destaque, sendo deixados por uma
pessoa (após sua morte) aos descendentes consanguíneos. Isso porque, “o sangue tem
a capacidade de fluir em muitas direções, podendo ser associado não apenas às suas
propriedades físicas e materiais, mas também a uma conexão ancestral, como é o caso
da eritaj (Dalmaso, 2018, p. 106). O que o sangue carrega, junto aos laços de parentesco,
são as histórias familiares e o conhecimento acumulado por aquela família. São suas
relações. A terra, a família e os espíritos são, nessa concepção de herança, parte de
todos. Verificamos isso em um dizer haitiano: “nós somos a mesma herança”
(Dalmaso, 2018, p. 107).
Ao retornarmos à história de Liliane e à causa que foi atribuída às tragédias que
ela viveu, podemos compreender a importância das relações para a religião vudu, seja
com a terra, seja com a ancestralidade, seja com a herança da qual se faz parte. A
negação que Liliane fez do vudu quando se converteu ao cristianismo, de acordo com
o relato, pôde apresentar-lhe um novo caminho de como conduzir sua vida, mas não
uma ruptura com as relações que estabelecia com sua própria família, o que levou a
um reforço dos vínculos feito de forma traumática.
E os humanos são apenas sombras, cópias esmaecidas dos orixás dos quais
descendem. É por isso, no universo religioso do Vodu, que o bem e o mal se
correlacionam, os mesmos elementos podem servir para fazer o bem, ou serem
utilizados para exercer o mal. [...] É evidente o Vodu não ser um culto africano,
ele não tem a dimensão cósmica do modo africano nem do modo europeu,
cristão. Com isso queremos dizer que o Vodu é o resultado dessas duas
dimensões, e outras mais, portanto, é modo de viver próprio, é percepção
original do mundo. (Handerson, 2010, p. 125)
6.2.1 Deus
De acordo com Handerson, na religião vudu, como em muitas outras que a
influenciaram, há um deus criador do universo, o Granmèt 37 (ou Papa Blondie). Esse
deus é responsável pelos mundos terrestre e celeste, sendo um o reflexo do outro. Na
mitologia, Granmèt garante que todas as coisas que habitam esses mundos tenham
alma, não apenas as pessoas e as divindades. As plantas, as comidas e os objetos
sacralizados têm alma da mesma forma que os seres humanos. Ao deus vudu
associam-se, também, as noções de fatalidade e natureza, as quais são relacionadas às
ocorrências do cotidiano. Em termos das vivências dos seres humanos, à fatalidade
relacionam-se doenças comuns, como gripes, dores de cabeça, de barriga, tensão, entre
37
Granmèt significa “Grande Mestre” em créole.
95
6.2.2 Espíritos
A adoração38 dos vuduístas é ao deus Granmèt, mas as ações são dedicadas a servir
aos espíritos, considerados parte da família (como destacamos no estudo de caso da
Seção 6.1). Handerson (2010) afirma que as cerimônias vudus dedicam-se a honrar os
espíritos. Esses espíritos podem ser bastante antigos, confundindo-se com as
divindades africanas, ou os iwa. A esses últimos é que devem ser dedicadas as
cerimônias, as oferendas e os sacrifícios. Tais ritos também podem ser dedicados aos
Jumeaux – os gêmeos, detentores de grande poder –, assim como aos mortos, que
permanecem ligados às famílias.
Os espíritos não são apenas os familiares. São duas as categorias: os espíritos
frios (radas) são os familiares que já conhecemos, mais harmônicos e se afinam à magia
branca; os espíritos quentes (petros) são negativos e se afinam à magia negra. Na
tradição vudu, ambos podem cometer “maldades”, como a morte. No entanto, as
razões pelas quais as ações são praticadas diferem esses espíritos.
Ainda quanto aos espíritos, compreende-se que cada pessoa tem um espirito
principal, que a acompanha e, mais do que isso, a conduz ao longo de sua vida. Nesse
sentido,
38
Os vuduístas adoram, também, as divindades católicas. Jesus Cristo e Virgem Maria são parte significativa da
religião vudu. No entanto, encontram-se em nível hierárquico inferior a Granmèt e aos espíritos. Mesmo que em
menor escala, é possível observar imagens e estatuetas católicas nos altares e templos de adoração vudu.
96
IMPORTANTE!
É relevante destacar a questão da saúde e da cura na mitologia vudu. Esses elementos
são, talvez, os mais importantes da prática religiosa, pois busca-se o intermédio das
divindades e dos espíritos para curar os doentes. Para tal, podem ser misturados
saberes da medicina tradicional, que utiliza ervas e outros elementos da natureza, em
conjunto com cânticos e cerimônias de cura.
6.2.3 Rituais
Na religião vudu, existem diversos rituais domésticos e coletivos. Para organizá-los,
há a configuração de um clero, responsável pela preservação das tradições, replicando
rituais – músicas, encantamentos e orações – e mantendo a harmonia da comunidade,
de pessoas e espíritos. Esse clero ocupa-se, também, da condução dos rituais. É
composto de: houngans e manbos (de alta hierarquia e que têm as responsabilidades
supracitadas); e hounsis (que auxiliam nas cerimónias). Assim como na religião
católica, a profissão de houngan é ensinada por meses, e até mesmo anos, mas depende
da vocação daqueles que optam por exercê-la.
Fazem parte do clero, também, os hounguenikon quartier-maitre – pessoas
responsáveis pelo cuidado do quarto de oferendas. Ainda como responsáveis pelos
97
Essa alma entrará num lago ou num rio por alguns anos, e depois sairá com a
ajuda de parentes adeptos do Vodu. Essa alma irá diante de Deus para prestar
conta dos pecados cometidos pela pessoa no mundo terrestre. Para o
praticante do Vodu, pois, a morte não é morte, é uma etapa de sua existência
[...]. (Handerson, 2010, p. 126)
CURIOSIDADE
No universo vudu, existe também a feitiçaria, cujo exemplo mais conhecido é o ritual
que se utiliza dos bonecos vudus. Nessa prática, são confeccionados bonecos que
representam pessoas (por vezes, há um esforço para que os bonecos façam alguma
remissão física à pessoa em questão), e nele são espetadas agulhas, com a intenção de
afligir dores e sofrimento à pessoa representada. O zombi é outra forma de praticar a
magia negra. Um boker (feiticeiro)39, por meio de ervas, plantas e práticas de magia,
coloca o zombi em estado de sonolência profunda e constante. A família o vê como
morto e o sepulta. De acordo com a tradição, os zombis sentem todo o processo de
enterro, mas não conseguem fazer nada para impedi-lo. Após o enterro, os bokers
acordam o zombi, que, mesmo fora do estágio de letargia, continua “morto”, pois deixa
de ter autonomia e fica a serviço do boker.
SÍNTESE
Neste capítulo, apresentamos a forma como a religião vudu se constitui, por meio de
seu conhecimento sobre a origem, o universo mítico e a presença dela na sociedade
haitiana.
Abordamos as principais divindades vodus – deus e espíritos caracterizando
suas distinções e a maneira como se relacionam com a vida terrena e com as pessoas.
39
Os bokers podem ser chamados para praticar o bem ou o mal. Sua função é auxiliar as pessoas a alcançar
desejos e ambições na vida, para o bem ou para o mal. Eles atuam com maior frequência em rituais de cura, mas
alguns, que transformam a prática vudu em comércio, atuam para afligir o mal a outrem, para ganhos financeiros.
100
ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
D] I, II e IV.
E] I, II, III e IV.
5. Os rituais são uma parte significativa da religião vudu e podem acontecer nos
espaços familiares ou de formas coletivas. Sobre esses rituais, analise as
assertivas a seguir e assinale V para as verdadeiras e F para as falsas.
[ ] Os rituais podem ser conduzidos por qualquer pessoa da comunidade
vudu.
[ ] Nas cerimônias, são prestadas homenagens e evocados espíritos.
[ ] A dança e a música são elementos centrais das cerimônias, pois
desempenham papel de atração.
[ ] O transe vivido por vuduístas durante as cerimônias indica a presença
de espíritos quentes com más intenções.
[ ] Os ritos de morte têm por objetivo auxiliar na passagem da petit-bon-ange
ao plano espiritual.
[ ] Os rituais vudus relacionam-se com a magia negra, pois evocam espíritos
para agir em prol das intenções das pessoas.
Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência correta.
A] F, F, V, V, F, F.
B] F, V, V, F, V, F.
C] V, F, V, F, F, F.
D] F, F, F, V, V, V.
E] V, V, F, V, V, F.
103
ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
É evidente o Vodu não ser um culto africano, ele não tem a dimensão cósmica
do modo africano nem do modo europeu, cristão. Com isso queremos dizer que
o Vodu é o resultado dessas duas dimensões, e outras mais, portanto, é modo
de viver próprio, é percepção original do mundo. (Handerson, 2010, p. 125)
7
RELIGIOSIDADE AFRICANA
NO BRASIL
A presença africana no Brasil foi impulsionada da mesma forma que ocorreu no
restante da América: o tráfico atlântico trouxe forçadamente um grande número de
africanos para o país, para que fossem escravizados e explorados, a fim de garantir
lucros aos seus senhores. Os africanos que foram trazidos ao Brasil passaram também
pelo processo de desenraizamento, e aqui foram brutalmente oprimidos.
104
se. Não perderam o contato com a África, dada a imensa atividade comercial
entre a Bahia e a Costa Africana. (Ribeiro, 1996, p. 130)
40
De acordo com a historiografia, a experiência haitiana do final do século XVIII ecoou de forma assustadora no
restante da América. O temor de uma rebelião protagonizada por escravos que fosse bem-sucedida fez com que
diversos outros espaços na América buscassem formas de repressão cada vez mais violentas e que abarcassem
todos os aspectos de manifestação, fosse cultura, fosse política. Cânticos e danças africanos, que anteriormente
poderiam passar desapercebidos pelos senhores, começaram a ser observados com mais atenção e, sempre que
possível, suprimidos.
106
PRESTE ATENÇÃO!
Reflexo da importância da cultura iorubá no país foi o ato do governo estadual do Rio
de Janeiro, que, em 2018, tombou a língua iorubá como patrimônio imaterial do estado
(Rio de Janeiro, 2018).
41
Saiba mais sobre as irmandades negras consultando o verbete Irmandades”, em: Schwarcz; Gomes (2018, p.
268-274).
107
Angola, Jeje, Nagô, Ketu e Caboclo são as cinco nações candomblés no Brasil.
Além da questão linguística, há uma ordenação do conjunto de divindades e sua lógica
hierárquica particular em cada uma das nações. No entanto, por ser uma divindade
local, ameríndia, o caboclo é a divindade ancestral primordial de todos os brasileiros,
pois foi o primeiro a ocupar esse solo.
Alguns outros povos, não apenas de origens africanas, contribuíram para a
mistura que resultou no candomblé: povos muçulmanos e malês tiveram significativa
42
O candomblé original é conhecido como candomblé de caboclo. Na região de Pernambuco, no entanto,
desenvolveu-se uma modalidade específica de candomblé, com locais de culto e alguns rituais próprios, que se
trata do candomblé de xangô.
108
43
Essa tensão e as questões de legalidade e ilegalidade que envolvem a prática do candomblé no Brasil são
discutidas no artigo de Parés (2016).
109
IMPORTANTE!
De acordo com o art. 5º da Constituição Federal, encontram-se entre os direitos
fundamentais dos cidadãos a liberdade de consciência e de crença. Tal norma garante
o culto religioso para todos os brasileiros, de acordo com sua crença. A garantia
implica, ainda, a proteção de locais, símbolos e representantes sagrados de cada credo.
Mesmo protegidas por leis, as religiões de matriz africana são alvo de preconceito no
país e, por muitas vezes, vítimas das mais atrozes violências. A fim de conscientizar a
população da importância da defesa da liberdade religiosa, no dia 21 de janeiro é
celebrado o Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa. A escolha da data é um
memorial à lembrança de lyalorixá Mãe Gilda, que, no ano 2000, faleceu após seu
terreiro ser atacado e ela e outros seguidores serem agredidos (Brasil, 2019).
Destacamos, ainda, que mesmo com uma legislação definindo a liberdade de
culto e com os movimentos de conscientização a respeito desse direito, as religiões de
matriz africana continuam sendo as principais vítimas de intolerância e violência
44
A Revolução de 1930 foi um movimento oposicionista à política presidencial existente no Brasil, que
privilegiava os estados de Minas Gerais e de São Paulo, bem como suas economias. O movimento foi liderado
por Getúlio Vargas, que, então, assumiu o governo do país, quando teve início a Era Vargas. É característico da
política desse período o esforço pela valorização dos elementos de origem brasileira, que vieram a contribuir
com o sentimento nacionalista no país.
110
religiosa no Brasil. Apenas no Rio de Janeiro, entre 2012 e 2015, por exemplo, mais de
70% dos casos de atos violentos registrados no Rio de Janeiro foram infligidos contra
praticantes da umbanda e do candomblé (Puff, 2016). Nesse mesmo estado, foi
identificado um crescimento das denúncias contra esse crime no ano de 2020
(Mendonça, 2020).
45
Em casas comuns, o barracão era localizado aos fundos e coberto com palmas verdes, ou era utilizada a sala
de visitas.
46
Assim como no vudu, no candomblé os instrumentos tambor e atabaque têm local de destaque e são
considerados mais do que instrumentos, pois são dotados de almas. No candomblé, são considerados seres com
personalidade e podem até ser batizados.
111
união do mundo dos vivos, aiê, ao dos orixás, orum, será erguido o poste
central, chamado de “poto-mitan”, no Vodu do Haiti. (Handerson, 2010, p. 143)
47
As famílias de santos são encabeçadas por pais ou mães de santo, sem isso implicar uma estruturação
diferente. Ambos são dignos do mesmo respeito e poder na comunidade candomblé. Os pais e as mães de santo
representam o mesmo que os houngan no vudu haitiano.
112
48
Olôrún é a nomenclatura nagô. Nas demais, o deus é chamado Zaniapombo.
49
É importante reforçar que as duas crenças, candomblé e católica, são diferentes, e apresentam
particularidades. Não há necessidade de um correspondente para cada uma das divindades nas duas religiões.
Da mesma forma que é possível que um santo(a) corresponda a mais de um orixá.
113
Exu é uma das entidades mais populares do candomblé, e seu nome é utilizado
em diferentes situações, como é possível observar a seguir:
Quando se diz despachar o Exu, esse verbo está sendo utilizado no sentido de
enviar, mandar. Ele é o embaixador dos mortais, é o mensageiro. Tem por
objetivo realizar os desejos dos homens, sejam maus ou bons. Assim como
pode interceder junto aos orixás para o mal, também pode fazê-lo para o bem.
Depende daquela pessoa que pede a sua intercessão. (Handerson, 2010, p. 144)
IMPORTANTE!
Assim como na religião iorubá, no candomblé o axé é um elemento de grande
importância. No candomblé, pode ser designado como uma força invencível, mágica
e sagrada, que está presente em todas as divindades, mas não apenas nelas. O axé é a
força vital dos elementos naturais e de todos os seres. Contudo, é importante
compreender que, para estar presente nos seres não divinos, depende de rituais e
encantamentos para ser incorporado.
INDICAÇÃO CULTURAL
114
Para conhecer mais sobre a mitologia orixá, recomendamos a obra Mitologia dos
orixás, de Reginaldo Prandi. Nessa obra, o autor apresenta um compilado de 301 mitos
sobre orixás e sobre o sistema iorubá, junto a uma coleção de imagens de rituais.
PRANDI, R. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
SÍNTESE
A presença africana no Brasil foi maciça desde meados do século XVII, por conta do
violento processo de tráfico de pessoas e escravidão. As diversas formas de resistência
escrava deixaram marcas importantes na constituição da identidade brasileira e dessa
cultura. As manifestações de religiosidade apresentam-se como um dos principais
elementos dessa resistência.
Neste capítulo, começamos o estudo a respeito dessas religiosidades,
conhecendo a umbanda e, com mais profundidade, o candomblé.
Exploramos como essas duas religiões se organizaram e se difundiram no país
e, na sequência, as particularidades da mitologia candomblé: ritos, instituições,
divindades e relações entre divindades e seres humanos, vivos e mortos.
ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
E] Apenas IV.
4. O comando das cerimônias candomblés é feito por pais ou mães de santo. Sobre
a condução e as cerimônias, é correto afirmar:
A] As famílias de santo são definidas em conjunto e são responsáveis por toda
uma nação candomblé.
B] Os filhos e as filhas de santo podem assumir os cultos em caso de ausência
de pais e mães de santo.
C] Dos membros da família de santo são exigidas a confiança pessoal e religiosa
e o sigilo.
D] Os pais e as mães de santo são divindades e fazem parte do panteão
candomblé.
E] As cerimônias candomblé são conduzidas apenas pelos pais de santo, que
são aqueles capazes de incorporar os orixás.
ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
8
119
FEITIÇARIA NO BRASIL
DO SÉCULO XIX
No capítulo anterior, debruçamo-nos sobre os elementos fundamentais da constituição
da religião candomblé. Apresentamos e analisamos aspectos referentes à mitologia e à
ritualística candomblé para que fosse possível identificar a maneira como essa religião
compõe a cultura nacional e é praticada até os dias atuais. Contudo, não apenas o
candomblé e a umbanda, na condição de instituições, são representantes da
religiosidade africana no país.
Considerando o contexto em que a africanidade se constituiu no Brasil e o modo
como foi aceita, perseguida, combatida e assimilada, propomos, agora, a análise de
alguns casos da história do Brasil, no século XIX, nos quais a religiosidade africana,
sob o aspecto do que foi entendido como feitiçaria, impactou a sociedade brasileira.
Serão três os casos abordados. O primeiro, um estudo de Adrian Bernardo
Moraes Lima (2016), explora a relação entre feitiçaria e curandeirismo. O segundo, um
artigo de Luiz Alberto Couceiro (2016), analisa as relações entre feitiços e insurreições
em Itu. Por fim, no terceiro, pelo estudo de Cristina Tramonte (2016), poderemos
compreender como feiticeiros, curandeiros e benzedores atuavam em Santa Catarina
do século XIX.
Esses estudos, a nosso ver, permitirão tirar a religiosidade africana do espaço
mítico e abstrato e compreender sua lógica e seu funcionamento na sociedade
brasileira.
50
O conteúdo desta seção foi elaborado com base no artigo de Lima (2016).
120
A atuação dos curandeiros objetiva a proteção da saúde física e mental daqueles que
os consultavam. Serviços pelos quais recebiam bons pagamentos.
Sob a perspectiva africana e afrodescendente, a escravidão e todos os encalços
que ela contempla eram uma gravíssima moléstia sofrida por esse povo. Buscar um
sacerdote-curandeiro era uma das soluções encontradas pelos cativos. E um dos
principais instrumentos utilizados por esses curandeiros era o nkisi .
Essa descrição permite compreender que Joaquim Mina forneceu um nkisi aos
seus consulentes, que deveria ser enterrado em um dos caminhos utilizados pela
vítima, para que então se transformasse em uma cobra e o picasse. O objetivo, no
entanto, não era a morte do senhor Rodrigues e o início de uma insurreição, mas sim
a libertação dos escravos que haviam procurado Joaquim Mina como um curandeiro,
e não como um feiticeiro, pois o objetivo dele não era infligir o mal.
51
O conteúdo desta seção foi elaborado com base nos estudos de Couceiro (2016).
122
A repressão teve início com a prisão do negro José Cabinda, que recebia o Pai
Gavião e liderava o grupo religioso cujos adeptos eram chamados filhos das trevas. Essa
prisão e o interrogatório que a seguiu tiveram por objetivo desmoralizar José Cabinda
e as crenças e rituais que ele representava. Isso porque, como se podemos observar no
trecho citado, a organização dos escravos e ex-escravos era feita nos encontros
religiosos. Os espaços de crença assumiam papel político.
Nos cultos, os escravos levavam ao Pai Gavião suas angústias e seus
sofrimentos e esperavam da divindade, que estava incorporada em Cabinda, caminhos
e orientações para que encontrassem melhores condições de vida. As investigações e
123
A religião iorubá, assim como outras diversas praticadas na África, tem na cura um de
seus pilares rituais. A conexão com a natureza, o uso de plantas e minerais para a cura,
a evocação de deuses e espíritos, os cânticos e os encantamentos, em muitos casos,
tinham como principal objetivo a cura, física e espiritual, das pessoas. Nesse contexto
religioso é que se fortaleceu a figura do curandeiro.
Essa figura foi replicada na América e esteve presente em todas as regiões de
matriz africana. Entretanto, no Brasil, essas religiões e suas práticas, por muito tempo,
foram condenadas e perseguidas. O estudo de caso apresentado por Cristina Tramonte
(2016) explora a atuação dos curandeiros em Desterro, atual cidade de Florianópolis, e
a perseguição e o preconceito sofridos por eles.
Para compreender esse espaço em particular, a autora destaca a importância do
sincretismo na região, evidenciada na combinação das práticas de cura.
52
O conteúdo desta seção foi elaborado com base nos estudos de Tramonte (2016).
124
53
Esse trecho faz remissão, também, às irmandades católicas negras, que acabaram por se tornar importantes
espaços de sincretismo religioso.
125
54
As causas espirituais, claramente, não correspondem apenas aos aspectos que hoje consideramos
psicossomáticos. Tal abordagem de cura tinha uma visão mais ampla do que o estudo das causas físicas, que,
hoje sabemos, não são as únicas a resultar em doenças. Essa perspectiva, no catolicismo, pode ser encontrada
como medicina teológica.
126
INDICAÇÃO CULTURAL
Apresentamos, aqui, três dos dezenove casos presentes na obra Religiões negras no
Brasil: da escravidão à pós-emancipação, organizada por Valéria Costa e Flávio Gomes.
Recomendamos essa leitura para o conhecimento de diversas manifestações do
candomblé, da umbanda e de outras crenças de origem africana no território brasileiro.
COSTA, V.; GOMES, F. (Org.). Religiões negras no Brasil: da escravidão à pós-
emancipação. São Paulo: Selo Negro, 2016.
SÍNTESE
Neste capítulo, analisamos três casos nos quais as crenças religiosas de origem
africana, assim como os saberes culturais trazidos por esses povos, foram utilizadas no
Brasil e compreendidas por meio de preconceitos e interpretações equivocadas.
No primeiro caso apresentado, acompanhamos a história de Joaquim Mina, cuja
prática, que previa a cura dos males sofridos pelo grupo de escravos que o procurou,
foi interpretada como feitiçaria e intenção de fazer o mal. Nessa história, é interessante
destacar a escolha dos papéis de vítima para os senhores de escravos e de vilões para
os escravos e para aqueles que buscaram ajudar na resistência.
O segundo caso, por sua vez, traz a atuação do Pai Gavião – entidade
incorporada por José Cabinda – como articulador de uma grande
insurreição de escravos na região do oeste paulista. A atuação do Estado merece
destaque, nesse caso, ao compreender a necessidade de descredibilizar o líder religioso
(assim como as crenças candomblés) como único modo de desarticular a insurreição.
No último caso apresentado, voltamos às práticas de cura e seus usos na
sociedade de Desterro no século XIX. Com essa análise, inferimos a forma como os
127
rituais de cura eram percebidos pela sociedade, com foco maior em quem os praticava
do que na prática em si.
Os casos apresentados integram o imenso repertório de histórias da
religiosidade africana no país, mas que detonam dois relevantes pontos: (1) a presença
dos elementos culturais africanos em diferentes espaços e contextos da história de
nosso país e (2) a resistência na aceitação dessa cultura como importante em nossa
sociedade.
ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
9
RELIGIOSIDADE
INDÍGENA NO BRASIL
Ao longo desta obra, analisamos a função social das religiões, seus métodos de estudo,
o universo da religiosidade africana e suas manifestações na África e na América,
sempre priorizando algumas religiões em particular, compreendendo a inviabilidade
de estudar o todo. Destacamos que essas religiões veem o mundo de maneiras
130
Assim como no estudo das religiões africanas, é difícil, na América, delimitar uma
crença única ou de manifestação mais forte em todo o continente. No entanto, algumas
similaridades são encontradas na forma como vários povos espalhados por toda a
América compreendem o universo e as relações entre as diferentes dimensões dele.
Essas similaridades podem ser observadas nos mitos de origem e nas escolhas de
anciãos para orientar os povos e conduzir as práticas espirituais, como veremos a
seguir.
Os mitos nos quais esta ideia de transformação se baseia indicam que humanos
e animais tinham no princípio uma origem comum ou humanidade ancestral,
mas esta foi perdida. Hoje, embora conservem a mesma essência, sua
alteridade é dada pela forma. Oakdale descreve que em tempos míticos, de
acordo com os Kayabi, os humanos, os animais, os espíritos e, ainda, os objetos
não se distinguiam, sendo que aqueles que viviam no segundo céu eram
132
9.1.2 Os xamãs
Nas mitologias indígenas, os xamãs (ou pajés) são as pessoas que conseguem desvelar
os corpos e ver diretamente as almas dos seres. Eles têm a capacidade não apenas de
identificar os seres, mas também de interagir com as boas almas e com os espíritos
predadores. Esses espíritos não têm a mesma origem que os demais seres e nem
consciência e intencionalidade.
A interação dos xamãs com esses espíritos ocorre durante os sonhos e tem a
intenção de evitar que os espíritos predadores ajam contra os demais seres. Também
nos sonhos, os xamãs fazem o que chamam de jornadas de cura, buscando solucionar
problemas que estejam afetando as pessoas.
Os xamãs ainda são os responsáveis pela preservação do sagrado dentro das
comunidades indígenas. Comandam os rituais de cura, de homenagem e de prece
dentro das comunidades. Esse comando justifica-se por eles terem a habilidade de
fazer a comunicação entre as diferentes dimensões, bem como por concentrarem os
133
55
O conteúdo desta seção foi elaborado com base na obra de Rosalvo: Machado (2018).
56
Na colonização, seja da América portuguesa, seja da América espanhola, os nativos foram escravizados e,
quando compreendidos como “bons selvagens”, submetidos a processos forçosos de aculturação e de conversão
religiosa nas encomendas e reduções jesuíticas. A resistência a esses processos é evidente no movimento
contínuo aos quais se submeteram os guaranis.
134
além do mar (Atlântico), porém, poderia ser em outra direção, como a região
norte. (Rosalvo; Machado, 2018, p. 246)
De acordo com a crença guarani, a terra sem mal pode estar em diferentes
lugares, mas seria um espaço guardado e protegido, onde existem animais e plantas, e
tal espaço inspira a fertilidade e a espiritualidade.
O lugar poderia estar no além-mar, fora da Terra, em um espaço celeste etc.
Todos esses possíveis lugares, todavia, eram de difícil acesso, de modo que a
caminhada deveria ser acompanhada por danças, orações e cânticos que
demonstrassem o fervor religioso que motivava os caminhantes.
O relato a seguir é da experiência de Curt Nimuendaju, do período em que ele
conviveu com o grupo guarani, no início do século XX:
flutuou sobre a água, subiu e partiu. Finalmente chegaram à porta das esferas
celestes”. (Rosalvo; Machado, 2018, p. 251-252)
Então, a verdadeira vida está muito além das vicissitudes cotidianas, pois a vida
de um Mbya te e [...], aqui na terra, representa apenas uma fração da vida
verdadeira que se terá na terra perfeita e, por isso, a caminhada em direção à
morada divina. [...] o caminho se estende até onde seus pés conduzirem o
corpo. É sem fronteiras, pois a terra foi criada para ele caminhar e nhanderu
Tenonde (nosso pai primeiro) criou a terra caminhando. (Rosalvo; Machado,
2018, p. 251-258)
SÍNTESE
57
A prática desses rituais pode ser conhecida como ‘guaranizar”.
137
Neste capítulo, objetivamos fazer uma introdução ao rico universo cosmológico nativo
americano. Considerando a complexidade desse tema, mas sem descartar sua
importância na constituição cultural e religiosa americana, entendemos
necessária uma abordagem simples, porém representativa desses povos e dessas
categorias religiosas.
Em um primeiro momento, destacamos a perspectiva de universo das
comunidades indígenas americanas sob dois aspectos globalizantes: (1) as dimensões
mundanas e celestiais e como são percebidas; (2) a figura xamânica, responsável pela
ligação entre essas duas dimensões.
Na sequência, exploramos um rito guarani, de grande importância na
compreensão da religiosidade indígena brasileira no período colonial, bem como na
atualidade, considerando se tratar de um ritual que teve início no século XVII e, com
o passar dos séculos, ressignificou-se e representa de forma global a visão de mundo
desse povo indígena.
ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
1. O estudo de caso guarani apresenta apenas um dos muitos rituais religiosos que
se replicaram e se adequaram no Brasil pós-colonização. Pesquise a respeito de
outros rituais que denotam a permanência da cultura indígena no país.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BRASIL. Estado do Rio de Janeiro. Lei n. 8.085, de 28 de agosto de 2018. Diário Oficial
da União, 4 set. 2018. Disponível em: <https://leisestaduais.com.br/rj/lei-ordinaria-
n-8085-2018-rio-de-janeiro-declara-patrimonio-imaterial-do-estado-do-rio-de-janeiro-
o-idioma-em-ioruba-praticado-nas-reiigioes-afro-brasileiras>. Acesso em: 5 dez. 2020.
delegacia-templos-de-religioes-de-matriz-africana-sao-atacados-ate-durante-a-
pandemia-no-rj.ghtml>. Acesso em: 11 jan. 2021.
PRANDI, R. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
PUFF, J. Por que as religiões de matriz africana são o principal alvo de intolerância no
Brasil? BBC News, 21 jan. 2016. Disponível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160120_intolerancia_religioe
s_africanas_jp_rm>. Acesso em: 11 jan. 2021.
SILVA, K. V.; SILVA, li. H. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto,
2006a.
BIBLIOGRAFIA
COMENTADA
COSTA, V.; GOMES, F. (Org.). Religiões negras no Brasil: da escravidão à pós-
emancipação. São Paulo: Selo Negro, 2016.
A obra organizada por Costa e Gomes é de extrema riqueza para o estudo das religiões
de origem africana presentes no Brasil. Os organizadores apresentam um compilado
de estudos históricos, nos quais os aspectos cultural e religioso impactaram as
estruturas sociais brasileiras.
A obra é composta por 19 artigos que exploram as religiosidades candomblé,
umbandista, feiticeira, entre outras, por todo o território brasileiro ao longo do século
XIX. Nesses estudos, identifica-se o papel de resistência assumido pela religião, bem
como maneiras pelas quais esses elementos corroboraram a formação da cultura
nacional brasileira.
RESPOSTAS
Capítulo 1
ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. a
2. b
3. d
4. b
5. c
ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
Capítulo 2
ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. b
2. a
3. d
4. a
5. b
6. c
152
ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
Capítulo 3
ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. e
2. b
3. a
4. a
153
5. c
ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
1. A vida e a morte são marcos da passagem dos seres humanos pela dimensão
terrena. Os ritos, nascimento e morte, são feitos para celebrar esses marcos. No
nascimento, prepara-se o recebimento de um ser que estava na dimensão
espiritual e de lá traz mensagens e ensinamentos; na morte, comemora-se a
passagem por essa dimensão e prepara-se, quando é o caso, o falecido para a
vida ancestral.
2. A intenção da pesquisa é a compreensão do inconsciente coletivo e as
possibilidades de observações dos mitos de origem em diversos espaços.
3. É importante construir a relação com a quinta categoria apresentada pelo
antropólogo, na qual se explora a função da religião de garantir uma solução
aos problemas. O texto do capítulo nos traz essa reflexão a respeito do uso da
magia e oferece elementos para compreender como a solução apresentada
torna-se eficaz, em alguma medida.
1. Em uma sociedade cuja crença no poder das divindades é bastante forte e que
compreende a ação direta da magia em suas vidas, as pessoas se percebem como
parte dessa magia ao evocar os encantamentos, pois atuam como vetores para
essa manifestação.
Capítulo 4
ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
154
1. e
2. b
3. d
4. d
5. c
ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
Capítulo 5
ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. b
2. d
3. c
4. a
5. e
ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
1. Os dois principais elementos que devem ser explorados são a língua créole e a
religião vudu. A respeito do vudu, destacam-se: a importância de suas práticas
para a aproximação dos escravos, a busca por conforto e por objetivos comuns,
assim como a utilização dos espaços de rituais para a difusão de ideais
revolucionários e organização dos movimentos de resistência.
2. A miscigenação é um movimento involuntário de misturas étnicas e culturais.
Ela pode ser expressa por meio das variedades étnicas populacionais de uma
região (no Haiti, a presença de brancos, negros, pardos, mulatos etc.), bem como
da diversidade cultural que apresenta. No Haiti, dois elementos expressam a
miscigenação de forma evidente: a língua créole – resultado da mistura de
dialetos nativos, africanos e da língua francesa – e o vudu – religião sincrética,
resultante da mistura de credos nativo-americanos, africanos e
europeus(catolicismo).
Capítulo 6
ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. c
2. e
3. a
4. d
5. b
ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
1. Os três aspectos relacionam-se por meio dos vínculos entre pessoas, espíritos e
espaço. Nessa análise, é fundamental compreender que as experiências com
esses três aspectos não ocorrem separadamente. A compreensão de cada um
dos aspectos – família (laços consanguíneos, de afeto e de convívio entre
pessoas e entre pessoas e espíritos); terra (espaço de vivência e de manutenção
e serviço aos iwas); e herança (tudo aquilo que se transmite e que se partilha
entre gerações) – é necessária para a construção das relações mais completas
entre o todo.
2. O vudu é uma religião sincrética por essência. Não é possível defini-la como
mais próxima de uma ou de outra religião que “cedeu” elementos à sua
construção. A não existência de um mundo celestial, onde vivem os deuses, e
157
1. O objetivo dessa pesquisa é conhecer a variedade dos rituais vudus. Podem ser
pesquisados rituais de cura, de auxílio na passagem de espíritos mortos em
desastres naturais, de realização de desejos (como amor e dinheiro), com a
atuação dos bokos, entre tantos outros.
Capítulo 7
ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. d
2. b
3. c
4. c
5. e
ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
Capítulo 8
ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. d
2. a
3. c
4. e
5. a
ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
159
1. A pesquisa pode ser feita em meios escritos ou mesmo por relatos orais.
Capítulo 9
ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. c
2. a
3. b
4. b
5. c
ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
SOBRE A AUTORA
Lúcia Chueire é mestre em História pela linha de Espaço e Sociabilidades da
Universidade Federai do Paraná, onde também se graduou como bacharel e licenciada
em História. Na continuidade de seus estudos acadêmicos, realizou uma
especialização em história e cultura africanas e afro-brasileiras pelo Centro
Universitário Claretiano, e outra em Gestão, Produção e Promoção Cultural pela
Universidade Tuiuti do Paraná. Trabalha com pesquisa histórica e com a produção e
edição de obras didáticas de ciências humanas há 15 anos.
161