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J.P.
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InterSaberes
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Folha de rosto
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Catalogação
38

Sumário 1 de 3
39

Sumário 2 de 3
40

Sumário 3 de 3
41

Dedicatória
42

Como usar o livro 1 de 4


43

Como usar o livro 2 de 4


44

Como usar o livro 3 de 4


45

Como usar o livro 4 de 4


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Apresentação 1 de 4
47

Apresentação 2 de 4
48

Apresentação 3 de 4
49

Apresentação 4 de 4
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Parte 1
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1
CONSIDERAÇÕES
INTRODUTÓRIAS
Começar uma obra não é exercício fácil. Compreender quais são as informações iniciais
que o leitor deve ter para poder seguir seus estudos e suas reflexões é tarefa talvez
mais difícil do que a produção do conteúdo em si.
Ao pensar nesse desafio, compreendemos que, antes de nos aprofundarmos no
fascinante universo cultural e religioso africano, afro-americano e indígena, era
importante definir os entendimentos de cultura e religião, bem como apresentar as
escolhas metodológicas para o estudo desses povos.
Neste primeiro capítulo, optamos, então, por conduzir uma discussão a respeito
dos conceitos de cultura e religião e da importância desses elementos para a formação
histórico-social dos espaços a serem estudados nesta obra.
Ainda neste capítulo, resgatamos os fundamentos, objetos e objetivos da
antropologia e da história, compreendendo-as como ciências complementares para a
análise a ser feita nesta obra.
Aqui, escrevemos, então, sobre conceitos, métodos e escolhas teóricas.

1.1 Conceitos
Cultura é um conceito central das ciências humanas e assumiu diferentes acepções nas
vozes de diversos intelectuais, escolas, espaços e momentos. Já foi compreendida como
erudição ou estágio de desenvolvimento individual e coletivo; especificada pelas
manifestações e produções artísticas, pelos hábitos e costumes de um povo;
classificada como conjuntos simbólicos que pairam acima das diferenças de um grupo,
como uma estrutura inconsciente que determina o modo de agir das pessoas, ou como
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uma dimensão que perpassa todos os aspectos da vida social; e, também, definida de
forma geral, como toda a vivência dos homens. Independentemente da concepção,
dois aspectos estão sempre presentes: o humano e a experiência.
Neste livro, assumimos a acepção defendida por Mércio Pereira Gomes (2017),
de que a cultura é, na verdade, uma combinação de diferentes dimensões e, em sua
mais ampla compreensão,

é um sistema que ordena o pensar, mas também o agir, o modo de relacionar-


se de seus participantes e também os valores que justificam tudo isso. [...] a
cultura, que condiciona o comportamento e o pensar do homem, também lhe
dá liberdade para pensar diferente e comportar-se diferentemente. (Gomes,
2017, p. 38)

Portanto, a cultura atua como um guia para a forma de viver de uma sociedade.
E se faz real quando experenciada no coletivo.
Esse coletivo justifica-se quando pensamos em um dos principais predicados da
cultura: sua transmissibilidade. Os elementos da cultura, seus valores e significados
perpassam gerações, reproduzem-se em diferentes espaços, misturam-se com outros,
adaptam-se a diferentes realidades. Dessa forma, não apenas se constituem de fato
como cultura, mas também permitem sua sobrevivência.
Essa tão necessária transmissão é possível pela presença de alguns itens
essenciais, a exemplo da língua e seu uso, que não apenas conferem identidade e
aproximam pessoas, mas são também responsáveis pela replicação de valores, ideias,
símbolos, memórias e tradições que compõem uma sociedade. Podemos identificar
aqui a língua, talvez mais apropriadamente a linguagem, como elemento fundador de
qualquer cultura. A linguagem não necessariamente (e praticamente nunca) apresenta-
se da mesma forma em diferente lugares e tempos, mas se replica, altera-se e adapta-
se sem perder o traço identitário entre os grupos.
Além da língua, a acepção de cultura ora adotada abarca uma infinidade de
componentes que conferem tangibilidade às sociedades. A cultura é expressa em
hábitos simples, como na produção de objetos, na agricultura, na culinária, no
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vestuário; também no cotidiano e na replicação de rotinas de estudo, trabalho e


afazeres domésticos; em manifestações artísticas, sejam materiais (pinturas, esculturas
e arquitetura), sejam imateriais (dança, música e poesia); nas organizações sociais, na
formação do Estado e nas instituições jurídicas. Toda a vida em sociedade, nas
diferentes categorias, abriga ações, objetos e comportamentos que compõem a cultura.
Entre os hábitos, destacam-se as tradições comemorativas, facilmente
identificadas, que contribuem significativamente para a permanência cultural.
Celebrações de nascimento e casamento, festejos sociais, como carnaval e festas de
colheita, rituais de passagem, ou mesmo com outros intuitos constituem-se um
panteão das culturas, “uma dimensão temporal da cultura, que se reporta à sua
formação no passado” (Gomes, 2017, p. 48).
Outros elementos da cultura, no entanto, são mais intangíveis, mas tão ou mais
presentes do que os citados no trecho anterior. Entre eles, podemos falar de
sentimentos (como o nacionalismo e a xenofobia), de perfis e posturas frente ao mundo
(inovadores ou tradicionais, conservadores ou revolucionários). Compreendemos, no
entanto, que, no universo de elementos intangíveis, um deles ganha lugar de destaque,
por fazer parte de todas as sociedades (em alguma manifestação): a religião.
Em variadas culturas, em diferentes tempos e espaços, a religião não apenas
esteve presente, mas também ocupou lugar central, orientando pensamentos e ações
cotidianas, definindo tradições, ritos e celebrações e, até mesmo, constituindo
instituições. Essa afirmação pode ser ilustrada por sociedades como a egípcia antiga, a
europeia medieval e a iraniana islâmica atual.
Na cultura, a religião apresenta-se como elemento transumano, que está além
da vida cotidiana, mas ao mesmo tempo tão presente nela:

O importante é que em todas as culturas existe um sentimento que reconhece


algo que está além da materialidade dela própria, além da vida como é vivida.
Talvez possamos chamar o objeto desse sentimento de Absoluto ou
Transcendental, o além do humano, reconhecendo desde já que tal sentimento
não deixa de ser humano, por ser próprio das culturas. (Gomes, 2017, p. 134)
21

Ao analisarmos aspectos intangíveis da cultura, encontramos algo que vai além


da definição conceituai: o sentimento. Atribuímos à cultura a responsabilidade de
gerar o sentimento de pertencimento de um povo, ou de uma sociedade. o conjunto
composto pela língua, pelas tradições, pelos costumes etc. faz com que as pessoas
sintam-se parte de algo maior, que extrapole o indivíduo em direção à coletividade. A
religião surge como item ainda maior nesse composto cultural, capaz de mobilizar
sentimentos de forma mais extrema e até mesmo mais fiel.
Ao sistematizar as culturas a partir da distinção entre o profano e o sagrado, o
antropólogo Émile Durkheim (2016) compreendeu que, ao passo que o profano é
caracterizado pelas ações corriqueiras que focam no indivíduo, o sagrado é possível
apenas pela manifestação do coletivo e de seus interesses. o sagrado, afirma Durkheim,
tem sua essência em um sentimento, que garante o pertencimento.

PRESTE ATENÇÃO!
Émile Durkheim foi um cientista social francês que viveu entre os anos de 1858 e 1917.
Responsável pela formalização das ciências sociais como área de estudos, é
considerado um dos pais da sociologia. Entre seus muitos trabalhos estão as
importantes contribuições para a construção do método científico das ciências sociais,
para análise do trabalho e, também, para a análise das religiões. Durkheim foi um dos
primeiros antropólogos dedicados a analisar e sistematizar o sagrado nas diferentes
culturas. Nesse âmbito, destaca-se a obra As formas elementares da vida religiosa, cuja
primeira publicação data de 1912 (Castro, 2016; Eller, 2018).

Entre as muitas definições de religião, recorremos à de Clifford Geertz, que se


tornou consenso nas ciências humanas. Geertz compreende a religião como um
sistema de símbolos que geram motivação e outras sensações difusas e duradouras.
Além das sensações, os símbolos contribuem para a concepção de uma ordem à
existência humana (Eller, 2018).
Nas culturas, as religiões organizam-se a partir de três atributos centrais: (1) o
discurso; (2) as pessoas; e (3) as práticas. O primeiro atributo é o que sintetiza o
sentimento e traz finalidade à religião; o segundo são os membros que compartilham
22

do sentimento e entendem o discurso como intenção coletiva; por fim, as práticas são
o modo de realizar o discurso e de manifestar as crenças, a exemplo dos rituais.
De acordo com o antropólogo Jack David Eller (2018), ao extrapolar o caráter
cultural das religiões, é possível reconhecer nesse elemento seis importantes funções
sociais:

1. Satisfação de necessidades individuais – A religião dispõe-se a provocar conforto,


esperança, amor e, até mesmo, medo e desespero. Essa instigação de sentimentos
atende às necessidades de cada pessoa em diferentes momentos da existência.
2. Explicação de causas e origens – Sem deixar de ser uma forma de provocar
conforto, é nas religiões que boa parte da humanidade procura respostas para uma
série de questões, desde a origem da Terra até a causa de doenças, de tragédias e
de grandes conquistas.
3. Fonte de leis e normas – Como elemento fundante de culturas, as religiões
assumem papel de responsáveis pela ordem, definindo diretrizes e padrões e
garantindo autoridade àqueles que podem vigiar essa ordem e cobrá-la.
4. Fonte de sanções definitivas – Com as diretrizes e as normas, definem-se também
as recompensas e punições.
5. Solução de problemas imediatos – A confiança em uma força superior (em que,
mais uma vez, observamos a dimensão do conforto) auxilia na tomada de decisões,
pois essa força ilumina as pessoas, apresenta o melhor caminho, pode por si curar
etc.
6. Necessidades coletivas – Algumas práticas religiosas visam ao bem do todo. A
confiança na força/entidade superior faz com que decisões, que podem ser
prejudiciais a uma pessoa ou grupo, mas que atendam às necessidades do todo,
sejam tomadas com confiança. Há exemplos dessa função nos sacrifícios feitos para
garantir colheitas ou mesmo para livrar a humanidade do mal. Ao atender às
necessidades coletivas, as religiões trazem o sentimento de pertencimento e
unidade.
23

Aos antropólogos não cabe analisar ou julgar as religiões, tampouco questionar


a espiritualidade, a existência divina. Existem diversas propostas de categorização das
religiões – estudos etnográficos que buscam compreender como a fé se constrói e se
manifesta e análises de especificidades dentro de grupos sociais. Esses estudos seguem
uma premissa original: compreender de que forma a dimensão do sagrado atua sobre
os povos e as sociedades, incorpora-se às suas culturas e age dentro e sobre elas. Esse
é o desafio dos antropólogos.

IMPORTANTE
Na década de 1830, o sociólogo Auguste Comte categorizou as religiões em três
estágios1:
1. Animista – Crença em espíritos presentes na natureza, cujas relações com os
seres humanos eram mediadas por xamãs e pajés. Essa categoria pode ser
encontrada nas religiões indígenas brasileiras e norte-americanas.
2. Metafísico – Crença em ancestrais que assumem a figura de deuses
antropomórficos organizados em um panteão de rígida hierarquia. Essa
categoria é bem exemplificada pelas sociedades egípcia e grega antigas. No
entanto, o metafísico pode ser encontrado em modelos politeístas e monoteístas,
sendo também exemplificada pelo cristianismo.
3. Positivo – No terceiro estágio, que seria a superação do estágio anterior, o ser
humano viria a encontrar sua dimensão sagrada na própria humanidade, sem
projetá-la em outras formas. o estágio positivo implicaria a organização de um
sistema de moral e de comportamentos racionais.

A proposta de Comte foi refutada por teóricos, mas especialmente por religiosos. No
entanto, mesmo questionada, os dois primeiros estágios aparecem com frequência nos
estudos que buscam categorizar as religiões.

1
As classificações de Comte aqui apresentadas encontram-se explicadas na obra de Gomes (2017).
24

Crenças, costumes, rituais e comportamentos definidos dentro das religiões são


exemplos de cultura vivida e, por vezes, regem a construção cultural de uma
sociedade. Por agir de forma tão significativa sobre os comportamentos dos grupos, a
religião desvela as formas de trabalho, as relações sociais e, até mesmo, as relações
entre os povos. Ao atentarmos a essa função, podemos compreender que as religiões
têm grande força de resistência e de agente de manutenção cultural, pois sua
constituição, a partir de um sentimento, permite que se mantenham durante processos
de dominação e de imposição violenta e que sejam carregadas para diferentes espaços.
As religiões podem adaptar-se a diferentes realidades e assumir função de
instrumento de manutenção e reprodução cultural.
A seguir, propomos a compreensão do método de estudo das religiões e o
conhecimento de religiões originárias da África e da América, bem como suas
diferentes manifestações e seus processos de reprodução e de manutenção frente aos
desafios históricos que enfrentaram.

INDICAÇÃO CULTURAL

São diversos os estudos que procuram definir o que é cultura. Indicamos aqui mais
uma obra que pode enriquecer essa compreensão e, por que não dizer, construção.

EAGLETON, T. A ideia de cultura. Lisboa: Temas e debates, 2003.

1.2 Métodos
A cultura ou, melhor dizendo, as culturas são o objeto de estudo da antropologia. E,
como as demais ciências, são estudadas com o uso de metodologias especificas que lhe
garantem cientificidade e acuracidade.
Para a instrução desses estudos, independentemente do método escolhido, dois
obstáculos devem ser superados: o primeiro é o encontro de uma linguagem comum,
entre estudiosos e estudados, que trate de conceitos e especificidades culturais. o
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segundo obstáculo é o etnocentrismo – a visão pela qual o estudioso observa o mundo,


que é dominada por seus próprios valores.

Mas quando um determinado grupo, com traços culturais característicos e uma


visão de mundo própria entra em contato com outro grupo que apresenta
práticas culturais distintas, o estranhamento e o medo são as reações mais
comuns. O etnocentrismo nasce exatamente desse contato, quando a
diferença é compreendida em termos de ameaça à identidade cultural. (Silva;
Silva, 2006b, p. 127)

Considerando esses elementos, alguns métodos de pesquisa foram


desenvolvidos pelos antropólogos ao longo dos anos, os quais são explicados por
Castro (2016). É importante conhecer seus objetivos e suas aplicabilidades:

▪ Observação participante – Desenvolvido por Bronislau Malinowski, esse


método estabelecia que o conhecimento de uma cultura só poderia ser
alcançado pela sua vivência, ou seja, o pesquisador deveria viver com o grupo
de estudos por um significativo período de tempo, compartilhar os hábitos e o
cotidiano desse grupo, de forma a, em alguma medida, fazer parte dessa
cultura.
▪ Pesquisa de campo – Essa técnica tem premissas similares ao método anterior,
mas talvez não a mesma disponibilidade. Quando o pesquisador não tem
condições de incorporar-se à cultura estudada, a aproximação pode ser
garantida pela observação dos hábitos combinada a estudos bibliográficos e
arquivísticos.
▪ Genealógico – É o estudo das relações familiares e de proximidade por meio de
entrevistas, a fim de construir um quadro de parentesco. Essa construção é feita
com o levantamento e a análise de dados que formam o retrato da sociedade
em questão. Outra técnica que contribui para esse método é a história de vida,
que busca exemplos para elucidar determinada problemática.
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▪ Estudo de caso – Método voltado a dar “vida” à teoria. É a procura pela


aplicabilidade da teoria por meio da comprovação dos conhecimentos teóricos
em casos particulares.
▪ Etnografia – Método que garantiu a cientificidade necessária para que a
antropologia assumisse legitimidade acadêmica. A etnografia tem por principal
objetivo a descrição detalhada da cultura que se pretende descrever.

PRESTE ATENÇÃO!
O antropólogo polonês Bronislau Malinowski (1884-1942) desenvolveu trabalhos a
respeito dos povos da Nova Guiné e região. Seu mais importante estudo foi
Argonautas do Pacífico ocidental, de 1922, em que apresentou o método de pesquisa
de campo com observação participante, “no qual o pesquisador passa a conviver com
os nativos em suas aldeias por um longo período de tempo, aprende sua língua e vive
situações existenciais que apenas seriam possíveis com essa inserção” (Castro, 2016, p.
93).
Originalmente, o termo etnografia foi usado para o estudo e a descrição de um
povo ou de uma cultura. Embora se refira a um termo criado no século XVIII, adaptado
do grego para o alemão, e daí para outras línguas europeias, a etnografia ganhou status
na antropologia com os alunos de Malinowski, Alfred Radcliff-Brown (1881-1955) e
Franz Boas (1858-1942), os chamados pais da antropologia moderna.
Preferencialmente, deve tratar-se de um estudo completo de um povo, em todos os
seus aspectos sistemáticos, da economia à religião. A etnografia é o documento básico,
de cunho empírico, pelo qual a antropologia se legitima como disciplina (Gomes,
2017).
A etnografia, por determinado período, foi elemento que compôs os estudos
etnológicos, que faziam a comparação entre culturas. o método comparativo, no
entanto, mostrou-se limitado em sua essência, uma vez que buscava, por vezes até de
forma forçada, as mesmas causas para fenômenos similares. A limitação desse método
foi evidenciada por Franz Boas (2016), ao levantar questionamentos a respeito desses
fenômenos. Em seu famoso discurso de 1896, Boas demonstrou que podemos ter
resultados parecidos, e até mesmo iguais, mesmo partindo de origens (motivos)
27

diferentes. Esse questionamento ao método comparativo deu origem ao método


histórico.
Com o método histórico, Boas (2016) defendeu que os estudos das culturas, suas
etnografias, devem ser analisados em suas individualidades, pois diferentes origens,
diferentes processos históricos, podem resultar em fenômenos similares. Dessa forma,
ao antropólogo caberiam as pesquisas sobre as leis e os processos que regem o
desenvolvimento das sociedades, ou seja, questionar as origens desses elementos e a
forma como eles se refletem nas culturas.
O método histórico desenvolveu-se pelo isolamento de causas e fenômenos. Os
processos passaram a ser estudados dentro de sua historicidade.

Quando esclarecemos a história de uma única cultura e compreendemos os


efeitos do meio e das condições psicológicas que nela se refletem, damos um
passo adiante, pois podemos então investigar o quanto essas ou outras causas
contribuíram para o desenvolvimento de outras culturas. (Boas, 2016, p. 41)

No que se refere ao estudo das culturas, há outra abordagem que muito


contribui: o estudo histórico das sociedades. A compreensão dos contextos, fatores
internos e externos que agiram sobre as sociedades, auxilia no entendimento das
culturas, de suas formas de reprodução e, mais do que isso, da importância da
reprodução de seus elementos.
A história, como afirma Marc Bloch (1997), é a ciência do tempo e da mudança.
É por meio da história que se busca conhecer o presente pelo passado (assim como o
inverso, visto que é o presente que levanta os problemas). Os estudos históricos visam
capturar essa mudança, compreendê-la, levantando fontes, questionando-as,
contextualizando-as. Essa análise, no entanto, só se faz possível por meio de
abordagem interdisciplinar, que agregue os estudos e a potencialidade dos diferentes
aspectos das ciências humanas.

IMPORTANTE
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Marc Bloch foi um importante historiador que viveu entre os anos de 1886 a 1944 e,
junto a Lucién Febvre, deu início ao movimento Escola de Annales, no qual
defenderam a noção de que a história deveria ser estudada e desenvolvida em
conjunto com as demais ciências sociais, como a antropologia, a filosofia, a sociologia,
a fim de que esses estudos garantissem visões mais amplas de seus objetos e que
diferentes métodos contribuíssem para sua compreensão.
Na obra Apologia da historio ou o ofício do historiador, Bloch (1997) demonstra
qual é o objeto de estudo da história e o método ao qual essa ciência deve dedicar-se,
sem esquecer das formas de dialogar com as demais ciências. A obra é considerada o
“livro de cabeceira” obrigatório de todo historiador.

1.3 Combinação de métodos nesta obra


Considerando os diferentes métodos de estudo das culturas e sociedades e definindo
claramente o objetivo desta obra – o estudo das religiões originais africanas e sul-
americanas, e suas formas de manutenção e reprodução utilizaremos a combinação de
dois métodos para alcançar o objetivo: (1) a etnografia; (2) os estudos históricos.
A combinação escolhida compreende que a antropologia e a história
apresentam-se como ciências complementares, cujas produções a respeito desses
temas conversam e contribuem para a prática acadêmica aqui proposta.
Dos estudos etnográficos e suas ricas descrições, aproveitaremos, em especial,
as manifestações religiosas, como crenças, rituais e valores. Da abordagem histórica,
iremos nos valer do estudo dos contextos que contribuíram não apenas para a
existência, mas principalmente para a reprodução e adaptação dos elementos
religiosos, seja no espaço africano, sejam nos espaços americanos.

SÍNTESE
Neste primeiro capítulo, refletimos a respeito de cultura e religião, a fim de
compreender como esses dois conceitos podem ser analisados de forma
complementar. Observamos a importância da religião como parte fundamental de
diversas culturas e as funções sociais que ela pode exercer.
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Para instrumentalizar o estudo das religiões, propusemos o conhecimento dos


objetos de estudo de dois importantes campos das ciências humanas – a antropologia
e a história – e, com base nos métodos dessas duas ciências, apresentamos a abordagem
histórico-antropológica que adotaremos para a análise do tema das religiões africanas
e ameríndias.

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO

1. Analise as assertivas a seguir e assinale V para as verdadeiras e F para as falsas.


[ ] Compreende-se por cultura o conjunto de manifestações artísticas de
uma sociedade.

[ ] Uma cultura forte é aquela que não apresenta modificações ao longo do


tempo e em diferentes espaços.

[ ] As culturas são compostas por elementos tangíveis e intangíveis.

[ ] Por meio dos aspectos que as compõem, as culturas criam o sentimento


de pertencimento a uma sociedade.

[ ] As culturas são hierarquizadas dentro dos diferentes estágios de


evolução das sociedades.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência correta:

A] F, F, V, V, F.
B] F, V, V, V, F.
C] V, F, V, F, F.
D] F, F, F, V, V.
E] V, V, F, V, F.

2. A respeito do conceito de cultura, assinale a alternativa correta:


A] A cultura é uma manifestação individual.
B] A cultura orienta a forma de viver de uma sociedade.
C] A cultura é imposta pelas classes superiores.
D] A cultura só é real em sua materialidade.
E] A coletividade pode destruir culturas originais.
30

3. As tradições exprimem:
A] o modo de vida das sociedades antigas.
B] as práticas religiosas verdadeiras.
C] o conjunto de elementos culturais.
D] a relação entre o passado e o presente.
E] a única forma de reproduzir a cultura.

4. São atributos centrais das religiões:


A] individualismo, rituais, discurso de fé.
B] discurso, pessoas, práticas.
C] cultura, discurso, coletividade.
D] pessoas, deuses, moral.
E] costumes, práticas, rituais.

5. Sobre a relação entre cultura e religião, analise as assertivas a seguir e assinale


V para as verdadeiras e F para as falsas.
[ ] As religiões são elementos presentes em quase todas as culturas.

[ ] Religiões manifestam-se alheias às culturas.

[ ] As religiões contribuem para a orientação do modo de vida das


sociedades.

[ ] As tradições religiosas distanciam-se das tradições culturais.

[ ] As culturas podem constituir-se sem religiões.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência correta:


A] F, F, V, V, F.
B] F, V, V, V, F.
C] V, F, V, F, V.
D] F, F, F, V, V.
E] V, V, F, V, F.
31

6. As religiões têm importante função nas sociedades. Sobre essas funções, é


correto afirmar:
A] São as únicas responsáveis pela constituição das instituições de justiça.
B] Compreendem símbolos que atuam no desenvolvimento da ordem pela
definição de leis e normas.
C] Definem os critérios para os que devem viver e morrer.
D] Priorizam as necessidades individuais frente às necessidades coletivas da
sociedade.
E] Atuam exclusivamente como fonte de conforto, afastando a humanidade da
razão e da ordem.

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão

1. Ao considerar a história dos povos africanos e os processos de dominação e


expatriação sofridos, explique a importância da cultura.
2. Apesar de intangível, a religião é um aspecto cultural de grande destaque em
diversos povos e sociedades. o que lhe confere tal importância?
3. Analise a categorização das religiões em três estágios (animista, metafísico e
positivo) proposta por Auguste Comte, mencionado na obra de Gomes (2017).
Em seguida, avalie o motivo pelo qual determinadas religiões a descartam.
4. De que forma os métodos antropológico e histórico podem ser trabalhados ao
explorar o estudo das religiões africanas e ameríndias?

Atividade aplicada: prática

1. Leia o trecho a seguir.

O importante é que em todas as culturas existe um sentimento que reconhece


algo que está além da materialidade dela própria, além da vida como é vivida.
Talvez possamos chamar o objeto desse sentimento de Absoluto ou
32

Transcendental, o além do humano, reconhecendo desde já que tal sentimento


não deixa de ser humano, por ser próprio das culturas. (Gomes, 2017, p. 134)

Explique a afirmação final do trecho: “já que tal sentimento não deixa de ser humano,
por ser próprio das culturas”.

2
ÁFRICA IORUBÁ
A missão de estudar a África é grandiosa. Conhecemos alguns projetos que se
propuseram a conhecer o todo, em minúcias, desse vasto continente. Compreender
sua geografia, sua fauna, sua flora, sua política e geopolítica, e de forma ainda mais
ampla, suas culturas e histórias é um trabalho para mais de um pesquisador, ousamos
dizer que para mais de uma geração de pesquisadores. Além disso, é um trabalho já
bem representado nos estudos das humanidades2. Não nos propusemos aqui a fazer
algo de tamanha envergadura.
Nossa proposta é mais modesta. Definimos como objeto de estudos as
manifestações das religiões africanas na África e nas Américas. Assim, optamos por
um recorte espaço-temporal bastante específico (mas não menos complexo): ao pensar
na África, nossos estudos vão abranger a região do Golfo da Guiné e os povos que nele
se fixaram durante os séculos IX a XVIII.
Mas, como dissemos, a proposta é modesta. Ao estudar esse espaço, propomo-
nos a discutir o contexto histórico de forma ampla, como suporte à compreensão da
cultura e religião que ali se constituíram e de lá partiram para outras paragens.

2
Fazemos aqui referência à coleção da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura –
Unesco (2010), que explora a história da África desde a Pré-História até os dias atuais, passando por aspectos
geográficos, antropológicos, históricos e políticos de forma extremamente rica. Esse trabalho, se ainda não
conhecido, deve ser topo da lista de leituras de qualquer estudioso do continente e, felizmente, está disponível
gratuitamente na internet. Consulte, na Seção “Referências”: Unesco, 2010.
33

Essa localização geográfica e temporal, então, permitirá conhecermos a origem


dos povos iorubás e dos elementos que, ao longo dos anos, conferiram-lhes uma
identidade firmada em preceitos religiosos e com ecos nas histórias africanas e
americanas.

2.1 África subsaariana


O continente africano tem uma área de mais de 30.300 km2 e se espalha entre Ocidente,
Oriente, Norte e Sul do planeta. A imensidão territorial abriga grande diversidade
geográfica, de paisagens, climas, biomas e vegetações. Desertos, florestas e savanas
ocupam a vastidão territorial. Assim como a ocupam diversas etnias, povos e culturas.
Observe o mapa a seguir, no qual se apresenta a organização política atual do
continente africano.
34
35

Para estudar e entender esse continente, foram propostas diferentes


regionalizações, entre as quais a de localização geográfica (África Setentrional,
Ocidental, Central, Oriental e Meridional) e a que, geograficamente, divide o
continente de acordo com as preeminências étnicas e culturais: a África do Norte –
também conhecida como África Branca, formada pelos países do norte do continente
mais a Mauritânia e o Saara – e a África Subsaariana – também conhecida como África
Negra3, composta pela maioria dos países africanos.
É essa proposta de regionalização que será adotada para fins de estudo nesta
obra. Os critérios étnicos e culturais considerados nessa regionalização apresentam
significativo impacto na constituição dos povos e de suas religiões, bem como na
disseminação dessas religiões pelo mundo. A África do Norte tem sua cultura antiga
bastante conhecida e difundida pelo mundo. As histórias fenícias, mesopotâmicas,
egípcias e hebraicas fazem parte do consciente coletivo da humanidade. As
características culturais desses povos – as primeiras organizações de cidades; as
grandes construções; as habilidades comerciais; os elementos religiosos, como os
panteões e ritos grandiosos e mesmo a influência monoteísta – são amplamente
conhecidas não só no Ocidente como no Oriente. Observe, a seguir, o mapa do
continente africano, no qual se apresenta a regionalização África do Norte e África
Subsaariana.

3
As nomenclaturas África Negra e África Branca são, atualmente, bastante contestadas em âmbito acadêmico,
considerando a possibilidade de carregarem preconceito e, por si, designarem a valorização das culturas
presentes em cada um desses espaços. Por se tratar de longa discussão, optamos, nesta obra, pelas
nomenclaturas África do Norte e África Subsaariana, que, em última instância, referem-se aos mesmos espaços.
36
37

A África Subsaariana, no entanto, não foi tão exposta às luzes do conhecimento


ocidental. Entre tantos motivos possíveis – alguns exemplos: a perspectiva
eurocêntrica de estudos, que marginalizou as culturas distantes desse continente; a
maciça presença negra nessa porção do continente, que gerou elevado preconceito por
parte de inúmeras outras culturas; os poucos registros formais, uma vez que muito
dessas culturas se constituiu e se propagou pela oralidade demorou muito para o
restante do mundo conhecer e direcionar estudos para esse espaço africano. Por serem
estudos mais recentes, podemos dizer que pouco se conhece da história e da cultura
subsaariana, mas já podemos afirmar que ambas são extremamente ricas e complexas
e, mais do que fazerem parte do conjunto histórico-cultural africano, são porções
essenciais da história não só da América, mas de toda a humanidade.
À medida que os espaços ao sul do deserto começaram a ser estudados de forma
mais sistemática e profunda, muito de sua cultura e história passou a ganhar vida. As
formas de organização dos povos ao sul do Saara apresentam- se bastante diferentes
do que foi instituído no norte do continente. Os povoados e as cidades se formaram
em diferentes momentos, com variadas organizações políticas, diversas práticas
econômicas e, mais do que tudo, elementos culturais e religiosos bastante específicos.
Esses elementos não são importantes apenas para compreender esses povos, mas
também são considerados fundantes de todos os povos com os quais esses africanos
tiveram contato a partir dos movimentos de diáspora.

IMPORTANTE
O estudo de espaços e povos que não replicam o modelo ocidental deve ser feito
cautelosamente, no sentido de não imprimir conceitos e valores ocidentais sobre essas
culturas. Esse cuidado deve ser assistido até mesmo no emprego de conceitos e
nomenclaturas que têm uma acepção bem definida nas culturas ocidentais e acabam
enrijecendo movimentos e práticas não ocidentais, que podem caracterizar-se de forma
menos definida e mais fluida.

Apesar de essa atenção parecer um tanto abstrata, ela pode ficar mais evidente
com exemplos práticos, como a definição de períodos históricos – a periodização
38

tradicional não se aplica à grande parte da África e da Ásia, por exemplo; assim como
títulos, como rei, rainha etc., são compreendidos com distinção na Europa e na África4.

Ao iniciar o estudo desses povos, deparamo-nos com a mistura quase que


intrínseca de mitologia e história. A tradição oral que sustenta esses estudos é
permeada de referências mitológicas, que reforçam a importância da religião na
constituição dessas culturas.
O espaço africano que aqui será estudado restringe-se às áreas de atuação
iorubá – comunidades ligadas por uma língua comum e por histórias que se cruzaram,
porém que não se organizaram sob uma única égide e ou domínio político e social.
Foi dessa África que, ao longo dos séculos XV a XIX, muitas pessoas foram
retiradas e levadas para a América. Nesse sentido, é essencial compreender a diáspora
africana como um movimento forçado, que não carregou para os demais países apenas
força de trabalho. As pessoas que foram vítimas do comércio atlântico levaram consigo
a cultura, a história e os valores de suas terras e, junto aos europeus e nativos
americanos, construíram a história do novo continente. Nessa história, imprimiu-se e
ressignificou-se a África Subsaariana.

2.2 Os iorubás
Os iorubás são, de certa forma, uma abstração. o que existe de fato são o reino, o povo
de Igé, de Oyo, de llesha, de Ketu etc.; todos eles produtos particulares de combinações
socioculturais ao longo de suas histórias (Woortmann, 1978).
A identidade iorubá como algo único e bem definido é uma invenção
relativamente recente. Os elementos constitutivos dessa cultura surgiram em diversos
povoados africanos, em diferentes espaços, mas que viveram e, em alguma medida,
conviveram na região do Golfo da Guiné, mesmo que com certa distância temporal,
desde o século VIII ou IX. Foi apenas a partir do século XVIII que começaram a ser
pensados e estudados de forma única, sob o espectro iorubá.

4
Para se aprofundar nessa metodologia, sugere-se a obra de Godoy (2008).
39

Esses estudos, mais do que compreender a história dessa região, objetivaram a


construção da identidade iorubá, suprimindo as diferenças étnicas e regionais a fim de
imputar maior robustez a esse então grupo. No século XVIII, os iorubás buscavam
formas de defender-se da ação escravista e das investidas do Reino de Daomé, que se
fortalecia na região. Observe, no mapa a seguir, a região do Golfo da Guiné, na porção
oeste do continente africano.
40

A mudança na dinâmica social e comercial experimentada a partir do século


XVII e fomentada pelo tráfico atlântico criou a necessidade de fortalecimento da
cultura local. Mais do que isso, a necessidade de compreensão desse espaço, que
passou a receber grande número de estrangeiros, ser influenciado por essas culturas e
– de forma inesperada, porém bastante coerente – também passou a influenciá-las.

PRESTE ATENÇÃO!
A guerra entre os reinos iorubá e Daomé foi travada no final do século XVIII. Isso
ocorreu em razão da mudança na dinâmica comercial da região, uma vez que o reino
de Daomé passou a contribuir de forma protagonista com o comércio atlântico,
alimentando o tráfico de escravos pelo subjugo de outros povos da região. Importante,
ainda, salientar que o reino de Daomé também partilhava de elementos constituintes
da cultura iorubá.

Os povos habitantes da região do Golfo da Guiné nunca se organizaram sob


uma administração única, não compuseram um grande império que conquistou e
subjugou parte do continente africano, tampouco firmaram parcerias com
comerciantes europeus a fim de enriquecer e ganhar poder por meio do comércio
atlântico. Esses povos estabeleceram-se nessa região dividindo a mesma língua e
alguns costumes e crenças. Organizaram-se em cidades e aldeias em meio às florestas
e savanas e tinham a agricultura como principal atividade econômica. Além disso,
sempre foram autônomos entre si.
É possível, no entanto, identificar traços culturais comuns entre esses povos e o
exercício de influência, proposital e acidental, de alguns reinos sobre outros. Aqueles
reinos que se organizaram anteriormente e definiram suas formas políticas, relações
sociais e tradições exerceram influência sobre os povos mais “jovens”, que utilizaram
seus modelos administrativos, reconheceram suas divindades e espiritualidades como
legitimas e replicaram seus ritos e suas tradições. Isso, contudo, não impediu esses
reinos mais novos de construírem suas próprias tradições e terem sua própria
expressão.
41

No entanto, foram esses traços similares que, quando aglutinados, permitiram


a leitura de uma identidade cultural na região. Essa identidade, iorubá, tem como
elemento mais forte a religiosidade, mas é produto de relações e historicidades
complexas. A seguir, apresentaremos a origem e a história dessa identidade e dessa
rica cultura.

2.2.1 Ifé e Oyo


A identidade iorubá, como vimos, foi construída e delimitada pela necessidade de
firmar e fortalecer a cultura dos povos que viviam na região do Golfo da Guiné. Apesar
da construção identitária ser localizada no século XVIII, é possível apontar elementos
fundantes dessa cultura em períodos muito mais distantes.
Estudos linguísticos reconhecem as primeiras origens da língua iorubá na
região florestal do Golfo da Guiné, antes do ano 1000. Ao longo dos anos, essa língua
passou por diversas alterações. A partir do século VIII, aproximou-se da constituição
iorubá como conhecemos, após o contato com os povos emigrados do nordeste
africano, a exemplo da presença árabe (que se efetivou ao sul do Saara por meio do
comércio). o aspecto linguístico, como é possível analisar, é um importante indicador
da miscigenação cultural que resultou na identidade iorubá.
Por muito tempo, a língua foi o principal elemento de ligação entre os povos
que habitavam a região. Fixados nas florestas e savanas do Golfo da Guiné, os povos
iorubás não apresentavam um governo centralizado, tampouco uma unidade política.
Cada um dos povos compreendia-se em suas particularidades sem se entender parte
de uma “comunidade iorubá”. No entanto, a língua e os padrões culturais presentes
em vários desses povos aproximavam os reinos independentes e foram evocados
quando da necessidade de fortalecer essa região.

A reunião, sob fronteiras inventadas, de grupos étnicos e religiosos diversos,


causa ainda hoje uma série de momentos explosivos e de intolerância, assim
como de extrema riqueza e complexidade. Ao mesmo tempo, essas fronteiras
revelam a invenção histórica que fomentou a construção da Nigéria sob a tutela
42

da colonização. Nesse contexto, os iorubás desempenham um papel de grande


relevância. (Oliva, 2005, p. 5)

Entre esses padrões culturais, o caráter urbano é uma das características mais
marcantes observadas entre os reinos. Apesar de apresentarem economias
basicamente agrícolas, os povos dessa região organizavam-se socialmente em espaços
urbanos. As regiões litorâneas ou mesmo às margens dos rios Níger e Benue contavam
com centros urbanos de pequeno e médio portes, com construções que geravam
impactante contraste visual com as florestas, a exemplo dos Impérios Mali e Songhai
(que exerceram maior hegemonia em alguns períodos). As praças mercantis
constituíram outro relevante elemento das vidas urbanas e refletiam a importância do
comércio para essas comunidades.
De forma geral, as cidades eram autônomas, com algumas cidades menores ou
aldeias sob sua influência. Esses agrupamentos constituíam os reinos. Alguns reinos
iorubás anteriores apresentaram maior organização e acabaram por exercer influência
social (e, por vezes, econômica) na região. Desse modelo, são destaques os reinos de
Ifé e de Oyo.
De acordo com a mitologia iorubá, Ifé foi o primeiro agrupamento populacional
– o local onde a humanidade foi criada e a partir de onde se “espalhou”.
Cientificamente, essa teoria não se comprova. Os estudos históricos e arqueológicos
sobre a região localizam a organização de Ifé como cidade apenas entre os séculos IX
e X. Sabemos, entretanto, que a humanidade teve sua origem muito antes disso. As
origens históricas e mitológicas de Ifé se cruzam e se confundem em vários aspectos.
Os historiadores que se dedicam à compreensão do povo iorubá afastam as concepções
de origem da Terra e do homem localizada na região. Buscam reconstruir essa história
por meio de fontes orais e de documentos como listagens de reis e dinastias. Esses
estudos demonstram que um modelo político mais forte surgiu quando Ifé optou pela
constituição de uma monarquia divina. Dessa forma, o poder político era chancelado
pela proximidade do monarca a Odudua, considerado o primeiro rei de Ifé e criador
da Terra. Essa aproximação entre mitologia e história repete-se nas cidades que
seguiram o modelo político de Ifé. Ao assumirem monarquias divinas, várias cidades
43

da região apresentavam seus monarcas como descendentes de Odudua. De acordo


com a mitologia, os filhos desse deus saíram de Ifé para governar as cidades próximas.

CURIOSIDADE
No Museu Britânico, em Londres, podem ser encontrados vários artefatos dos povos
iorubás, entre os quais se destaca a Cabeça de Bronze de Ori Olokun, escultura de 35
centímetros em cobre, desenterrada na região de Ifé, em 1938, e apreendida pelos
britânicos. A retirada de objetos sagrados de seu lugar de origem para a exibição em
museus de outros povos é uma prática polêmica, pois preserva o objeto ao mesmo
tempo que o retira de sua origem e de seu lugar de significado. Essa escultura
representa a divindade Odudua e, possivelmente, estava protegendo a região de Ifé.
THE BRITISH MUSEUM. Disponível em:
<https://www.britishmuseum.org>. Acesso em: 11 jan. 2021.

Dessa relação tão intrínseca entre mitologia e história, é possível compreender


o tamanho do poder de influência de Ifé na região do Golfo da Guiné. Mesmo sem
responderem politicamente a Ifé, os governos das cidades circunvizinhas procuravam
sua legitimidade em elementos definidos por ela, não apenas a escolha da divindade
(o que qualifica o caráter mitológico), mas também a definição do modelo de governo
(o que qualifica o caráter histórico).

Tanto a mitologia, como a história dos iorubás, [sic] apontam para Ifé como um
ponto de difusão religiosa e de legitimidade política na região. Se na mitologia
essa cidade ocupa um papel central na explicação da origem do mundo, nos
estudos históricos tal fato se confirma. Até os dias de hoje, existe uma
vinculação importante entre as cidades e aldeias iorubás com Ifé. Mesmo que
estes vínculos fossem mais religiosos e políticos do que de origem histórica, em
quase todas elas, as linhagens de reis e chefias conduzem a antepassados que,
apesar de pertencerem muitas vezes a um tempo mitificado, foram associados
aos descendentes diretos dos filhos de Odudua e de Ifé. (Oliva, 2005, p. 15-16)
44

Durante os séculos IX a XVI, foram várias as cidades iorubá que “surgiram” na


região. A partir do século XIV, os reis fundadores buscaram vincular as origens de
suas cidades a Ifé, a fim de garantirem sua legitimidade. A procura por origens comuns
não apenas fortalecia os laços culturais entre essas cidades, mas também contribuía
para o estabelecimento de relações econômicas, políticas e espirituais entre os reinos.
A historiografia destaca que a influência exercida pelo reino de Ifé na região do
Golfo da Guiné foi de maior amplitude religiosa e cultural – mas vemos, também, que
não é possível desvincular esses dois campos dos demais aspectos que compõem a
sociedade e de forma mais robusta entre os séculos IX e XIV.
Já a partir do século XVII, outra cidade se destacou e assumiu o papel de
baluarte iorubá, com grande expressividade nos aspectos políticos e econômicos. Essa
cidade foi Oyo.
Contudo, é importante reforçar: embora não se tratasse exatamente de domínio,
esses dois reinos exerceram forte influência nas cidades da região: militar, econômica,
política ou religiosa. Mesmo que em alguns períodos algumas dessas cidades se
aliassem, em momento algum a região consolidou- se como um grande império
dominado por Ifé ou Oyo.
A influência de Oyo (reino existente desde o século XI) concretizou-se em razão
de seu desenvolvimento econômico ocorrido a partir do século XV. A agricultura foi a
principal força motriz da economia, mas atividades como a tecelagem e a metalurgia
também contribuíram para que o reino pudesse investir em atividades mercantis. A
atuação comercial não apenas fortaleceu o reino, como o transformou em agente
comunicador na região, o que garantiu sua presença em diferentes espaços, bem como
a difusão de sua cultura.
A monarquia de Oyo, assim como ocorria em Ifé, era de ordem divina, mas a
associação dos governantes aos deuses não assegurava completa blindagem. Os
governantes eram responsabilizados por desacertos e condenados por desvios
cometidos em suas gestões. A organização política de Oyo – na qual o rei era
assessorado por um conselho de anciãos, tinha um tempo limite de governo, bem como
modelos sucessórios definidos – foi replicada em povoados próximos a Oyo, de forma
a ressaltar o poder de influência desse reino.
45

Essa organização político-social foi ameaçada pela presença europeia e pelo


exponencial crescimento do comércio atlântico. Nesse contexto, alguns reinos
africanos se fortificaram, travando boas relações com os europeus e contribuindo de
forma significativa para o comércio. Outros foram atacados
pelos europeus e tornaram-se, de forma involuntária, fornecedores desse comércio.
Como vimos, o reino de Daomé aliou-se ao propósito europeu e, como seu parceiro,
investiu contra os reinos de Ifé e Oyo, entre outros.
Entre os muitos impactos gerados pelo tráfico atlântico nas realidades africanas
e na história desses povos, um foi inesperado: a difusão da cultura iorubá pelo mundo.
Na América, são muitos os elementos iorubás presentes. Encontrados, em especial, nas
46

Américas do Sul e Central, mesclaram-se com tradições, crenças e valores de outros


povos, criando culturas, mas sem perder a já forte identidade iorubá.
Se, no continente africano, história e mitologia se confundem para contar a
história desses povos, na América essa dinâmica não é diferente. Podemos ver a
presença da religião iorubá (e suas versões) em diversos aspectos das sociedades,
manifestando-se não apenas nos ritos espirituais, mas também no convívio com
diferentes povos e, de maneira bastante surpreendente e não menos interessante, na
organização dos movimentos de resistência contra a opressão sofrida pelos africanos
e seus descentes nesse continente.
Conhecer a religião iorubá, seus mitos, ritos e panteão possibilita uma
compreensão mais completa da história da humanidade (ao nos aprofundarmos na
história africana) e das histórias e culturas americanas, tão fortemente influenciadas
por ela. Nos próximos capítulos, abordaremos os elementos que constituíram essa
religião, suas formas aculturadas, miscigenadas e sincréticas.

O QUE É
O domínio de alguns conceitos é necessário para a compreensão da relação entre as
culturas e religiões africanas com a formação sociocultural americana. Ao estudar a
história dessas sociedades, observaremos dinâmicas de aculturação, miscigenação
(étnica e cultural) e sincretismo.
▪ Aculturação: processo de mudança cultural de uma sociedade a partir do
contato (pacifico ou forçado) com elementos externos5.
▪ Miscigenação: mistura de características e elementos de diferentes culturas.
▪ Sincretismo: forma de mistura cultural que se associa ao campo religioso e é
caracterizada pela união de crenças e religiosidades de diferentes origens
culturais6.

SÍNTESE

5
O conceito de aculturação é bastante complexo. Para sua compreensão, consulte o artigo de Wachtel (1976).
6
Veja mais sobre esses conceitos em Silva e Silva (2006a, p. 15-18; 290-293).
47

Neste capítulo, analisamos alguns aspectos geográficos da África, abordagem que se


justifica para a compreensão da escolha pela regionalização da África, que, ao priorizar
aspectos étnicos e culturais, divide-se entre África do Norte e África Subsaariana. No
espaço subsaariano, iniciou-se o estudo dos povos que viveram no Golfo da Guiné
entre os séculos IX e XVIII, suas formas políticas, administrativas e as relações que
travaram entre si e com outros.

A compreensão dessas organizações e relações faz-se essencial para a análise da


chamada identidade iorubá – construção recente que definiu a cultura e a religião, que
serão exploradas na sequência.

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO

1. A respeito dos critérios utilizados para regionalização do continente africano,


assinale a alternativa correta:
A] A regionalização africana é definida exclusivamente por critérios
econômicos do próprio continente.
B] Em razão de ser possível utilizar variados critérios, o continente apresenta
diversas formas de regionalização complementares.
C] As diferentes regionalizações do continente consideram os aspectos hídricos
e topográficos.
D] O deserto do Saara é elemento fundamental em todas as possíveis
regionalizações feitas para o continente.
E] Aspectos como etnia, cultura e economia são tradicionalmente excluídos de
categorizações e regionalizações no mundo.
2. Sobre o espaço no qual viveram os povos iorubás, analise as assertivas a seguir
e assinale V para as verdadeiras e F para as falsas.
[ ] As cidades e aldeias eram exclusivamente litorâneas.
[ ] Eram predominantemente desérticos.
[ ] Beneficiavam-se de rios e do mar, tendo terras férteis.
[ ] Mesclavam elementos urbanos com grandes florestas.
48

[ ] Eram urbanizados e altamente desmatados.


Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência correta:
A] F, F, V, V, F.
B] F, V, V, V, F.
C] V, F, V, F, F.
D] F, F, F, V, V.
E] V, V, F, V, F.

3. A partir do século IX, os iorubás constituíam:


A] um império cuja administração centralizava-se na cidade de Ifé.
B] uma cultura única que juntava as várias aldeias do Golfo da Guiné.
C] um grupo de sacerdotes responsáveis pela disseminação e crença da
religião.
D] um grupo de cidades e aldeias com traços culturais que os aproximavam.
E] cidades política e economicamente autônomas, mas com a mesma religião.

4. Sobre a língua iorubá, é correto afirmar:


A] É fruto de processos de miscigenação na região e influenciada pela presença
árabe.
B] Compreende a miscigenação com os povos europeus no período do
comércio atlântico.
C] Manteve-se intacta desde sua origem, antes do ano 1000.
D] É originária de Oyo e, em razão das relações comerciais, difundiu-se na
região.
E] Foi trazida do Norte da África pelos árabes e substituiu a linguagem local.

5. Os reinos de Ifé e Oyo exerceram grande importância na região do Golfo da


Guiné. Sobre essa expressividade, analise as assertivas a seguir e assinale V para
as verdadeiras e F para as falsas.
[ ] Os dois reinos protagonizaram guerras e adquiriram aliados,
constituindo dois grandes impérios na região.
49

[ ] Ao passo que Ifé exerceu significativa influência religiosa, Oyo


apresentou-se como força política.
[ ] Ambos os reinos eram governados por monarquias divinas e tiveram
esse modelo replicado por outras cidades.
[ ] Oyo tinha em sua administração, além do monarca, um conselho de
anciãos que auxiliava a governar e escolher futuros reis.
[ ] Ifé sobrepôs-se a Oyo a partir do século XV por ter sua economia
fortalecida pelo comércio atlântico.
Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência correta:
A] F, F, V, V, F.
B] F, V, V, V, F.
C] V, F, V, F, F.
D] F, F, F, V, V.
E] V, V, F, V, F.

6. Entre os padrões culturais que compuseram a identidade iorubá, apresentam-


se:
A] a língua, o modelo rural e as festividades.
B] a língua, o perfil militar expansionista e a arquitetura.
C] a língua, a religião e a economia agrícola e comercial.
D] a língua, a arte e a política expansionista.
E] a religião e a organização campestre rural.

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão

1. Leia a afirmação de Klass Woortman e explique-a com suas palavras: “Os


iorubás são, de certa forma, uma abstração.” (Woortman, 1978, p. 12).
2. Tanto Ifé quanto Oyo foram impactadas pela presença europeia. Qual reino se
destacou entre os séculos XVII e XVIII e por quê?
50

3. Comente como era expressa a influência do reino de Ifé sobre as demais cidades
iorubás.

Atividade aplicada: prática

1. A África Subsaariana tem como mais importante fonte de história os relatos


orais. Nesses relatos, no entanto, elementos históricos, tradicionais e
mitológicos se confundem. Apresente um exemplo dessa mistura e explique por
que isso acontece.

3
MITOLOGIA IORUBÁ
Ao nos debruçarmos sobre os estudos das sociedades iorubás, frequentemente
encontramos resquícios (senão grandes porções) da mitologia como integrantes da
história desses povos. Uma história que prescinde de fontes e registros formais se faz
da tradição oral. E, na oralidade, não há bloqueio à mitologia.
A mitologia está presente em aspectos centrais (cuja categorização como mito é
mais simples) e em aspectos periféricos (nos quais surgem as dúvidas quanto ao que é
ou não real). Com essa perspectiva em mente, começamos a pensar sobre as demais
sociedades a que dedicamos estes estudos. Em todas elas, resquícios da mitologia
religiosa apresentam-se como parte da história, o que revela a importância dos mitos
para as pessoas e a função social que eles exercem.

IMPORTANTE
Da obra de Eller (2018), trazemos duas perspectivas presentes durante o estudo que
fizemos dessa mitologia, de seu panteão e dos ritos e símbolos que solidificam tal
cultura no cotidiano. De acordo com o autor, foi com o advento da psicanálise no
século XX que os mitos ocuparam papel significativo na compreensão do ser humano
51

e de sua mente. Em sua obra, Eller (2018) demonstra que, para Sigmund Freud, o mito
apresentou-se como elemento constitutivo do inconsciente coletivo. E uma forma que
“tende a falar a linguagem da história, ou moldar-se em termos históricos, mas os
acontecimentos históricos dos quais ele fala não são ocorrências específicas [...], mas
antes manifestações eternas de realidades constantes, intemporais” (Eller, 2018, p. 139).
Diferentemente da psicanálise, para a antropologia o estudo do mito
apresentou-se como recurso para o conhecimento social. Para os antropólogos, a
exemplo de Malinowski, o mito é uma narrativa, uma reflexão alegórica sobre a
existência, e a conformação de uma sociedade. Para Malinowski. “o mito não é uma
contação especulativa de histórias, ou um responder a perguntas, ou mesmo uma
história sagrada, [...] ele expressa, intensifica e codifica a crença; salvaguarda e reforça
as normas práticas para o homem se orientar” (Eller, 2018, p. 138).
Na perspectiva antropológica, compreende-se o mito de forma funcionalista, ou
seja, afirmando que todo mito tem uma função na sociedade, uma finalidade.

As perspectivas são diferentes, mas, a nosso ver, complementares. Muitos dos


mitos que vamos estudar na sequência apresentam importantes funções para os povos
iorubás – como explicar sua origem e dar significado aos acontecimentos mundanos
(nascimento e morte, por exemplo) –, mas não deixam de ser participes do inconsciente
coletivo, ao passo que trazem em si diversos elementos também encontrados em outras
mitologias religiosas ao redor do mundo.

3.1 Mitos de origem


Em todas as religiões encontram-se mitos que respondem aos grandes
questionamentos da humanidade: De onde viemos? Para onde vamos? Qual o objetivo
de nossa existência? Na religião iorubá não é diferente. Esses mitos foram
continuamente replicados na tradição oral e, por isso, apresentam algumas versões
diferentes, entre as quais duas se destacam7.

7
Os mitos e as informações a respeito da mitologia iorubá explorados nesta obra advém, em grande parte, da
obra de Ribeiro (1996).
52

A primeira delas traz o ser supremo Olodumare como articulador de toda a


existência. De acordo com esse mito, existia o céu, onde habitava o panteão, e abaixo
dele, água e um deserto pantanoso.

CURIOSIDADE
Nas pinturas referentes ao panteão iorubá, Olodumare ê comumente representado ao
centro da imagem, assumindo o papel de provedor das demais divindades e dos
elementos naturais que são representados em sua companhia. Nessas obras de arte,
Olodumare costuma, ainda, ser iluminado por uma luz superior, simbolizando sua
forma divina.

Olodumare delegou ao deus Orixalá o plano de povoar esse espaço com


divindades e outros seres vivos. Para isso, Orixalá “desceu” com uma galinha branca
e uma pomba, que, ao ciscarem, permitiram que o terreno pantanoso tivesse partes
mais secas, montanhas e vales. O próprio Orixalá povoou esse espaço com aves e
árvores e, com o pó da terra, modelou os homens. A esses, o sopro da vida foi dado
por Olodumare.
Com a Terra povoada, começou a convivência entre homens e deuses de forma
harmônica, e as duas formas de vida podiam transitar nos dois espaços. No entanto,
quando uma mulher tocou o céu com suas mãos sujas, foi criada uma barreira entre o
céu e a Terra para que os homens não tivessem mais acesso ao céu. Com esse ato,
findou-se a harmonia entre o céu e a Terra.
Outra versão do mito de origem, também bastante difundida entre os iorubás,
conta que o primeiro orixá criado por Olodumare, Obatalá, foi incumbido de criar o
mundo, mas embriagou-se e caiu em sono profundo. Foi então que Odudua lhe roubou
o saco da criação e assumiu a tarefa, espalhando na Terra a fertilidade. Nessa versão,
Odudua é uma figura feminina, ligada à maternidade e à origem, e Obatalá (a quem
coube a atribuição de dar o sopro da vida aos homens) é uma figura masculina, ligada
à responsabilidade. Foi por essa união que se fez possível a origem da Terra e da vida.
As duas versões do mito de origem apresentam similaridades, não apenas entre
si, mas com outros mitos, de religiões ao redor do mundo, que explicam a origem da
53

Terra e a origem dos homens. A função desse mito, como ocorre também em outras
sociedades, é não somente de apresentar como se originou a humanidade, mas de
garantir segurança e conforto aos seres humanos, uma vez que demonstra a existência
de uma força, uma entidade de grande poder responsável por eles. Se é capaz de criá-
los, é também capaz de cuidá-los. O ser supremo Olodumare é aquele a quem os
iorubás são devotos e fiéis, a quem fazem preces e pedidos e a quem dedicam suas
conquistas e vidas.
A figura de Odudua. protagonista da segunda versão, é de grande importância
para os povos iorubás, por ser considerado o criador de Ifé. Observamos aqui que, no
mito da origem de Ifé, Odudua é masculino, é o antecedente comum de todos os
iorubás, aquele que lhes garantiu a criação. Assim como a Olodumare, os iorubás têm
grande devoção a Odudua e o compreendem como protetor de suas cidades, aldeias e
vidas.
Outra grande questão da humanidade, que costuma encontrar nas religiões sua
explicação e conforto, relaciona-se à morte. Outro trecho do mito de origem traz
algumas explicações sobre a morte – Iku, de género masculino em iorubá:

Quando Olorum procurava matéria apropriada para criar o homem todos os


ebora partiram em busca de tal matéria. Trouxeram diferentes coisas, mas
nenhuma era adequada [...] Então Iku, ojegbe-alaso-ona, apareceu, apanhou
um pouco de lama – eerupe – e não teve misericórdia de seu pranto. Levou-a a
Olodumare, e este pediu a Orisala e a Olugama que a modelassem e foi Ele
mesmo quem lhe insuflou seu hálito. Mas Olodumare determinou a Iku que,
por ter sido ele a apanhar a porção de lama, deveria recolocá-la em seu lugar a
qualquer momento. E é por isso que Iku sempre nos leva de volta para a lama.
(Santos, citado por Ribeiro, 1996, p. 81)

O retorno à lama relaciona-se também com possíveis renascimentos, pois a


morte é um instrumento de restituição, que se explica da seguinte forma:
54

O nascer e o renascer podem ser entendidos como um processo de


desprendimento de uma porção da matéria-massa de origem, o que determina
a perda de axé dessa massa genitora. A restituição exige transformação: de
existência individualizada a genérica, passando pela morte e, na outra via, de
existência genérica a individualizada, no nascimento e no renascimento de
descendentes porções, cada qual parte integrante de um único todo. (Ribeiro,
1996, p. 86)

Na perspectiva freudiana, os mitos são compreendidos como elementos que


regem o inconsciente coletivo e encontram, novamente, similaridades com outras
explicações a respeito da morte, de onde viemos e para onde vamos.

IMPORTANTE
Sobre a utilização de mitos como forma narrativa e explicativa nas religiões,
recorremos à análise proposta por Eller (2018, p. 137):

Um mito é um tipo particular de história, especificamente uma história que


envolve os feitos dos espíritos ou dos ancestrais humanos. Numa palavra, os
mitos são narrativas a respeito das atividades e aventuras desses seres [...] Por
conseguinte, os mitos são frequentemente histórias da criação ou da origem,
nas quais seres sobre-humanos são os personagens e protagonistas. [...] Os
mitos, portanto, não apenas representam uma explicação das coisas, mas
também, como muitos símbolos religiosos, uma hierofania, uma aparição do
sagrado no meio do profano ou mundano8

Essa leitura permite compreender os usos e os objetivos das narrativas míticas nas
religiões de forma geral e na iorubá em particular.

8
Nesse capítulo da obra de Eller é aprofundada a questão do mito e de como ele é explorado em diferentes
religiões.
55

3.2 Panteão iorubá


A religião iorubá é de extrema riqueza. São muitos os mitos, as divindades, os rituais
e as práticas. Aproveitamos agora para estudar com maior profundidade esse panteão.
Ele é composto pelo ser supremo, Olodumare – que tem as atribuições de criador, rei,
onipotente, juiz e ser eterno – e pelos seus orixás9 e ancestrais10.
De acordo com Ribeiro (1996, p. 60. grifo do original): “As entidades que
habitam a dimensão suprassensível são denominadas irunmale e entre elas incluem-
se os irunmale-divindades associados à criação e cujo axé advém de emanações
diretas de Olodumare e os irunmale-ancestrais associados à história dos seres
humanos”.
Os orixás, que são divindades primordiais ou forças naturais, estão à disposição
do ser supremo e devem servir à vontade divina no mundo. Entre essas entidades
destacam-se: Odudua. Obatalá (também conhecido como Orixalá ou Oxalá), Orumilá
(também conhecido como Exu), Xangô. Obaluaiye. Ogun. Iemanjá e Oxum.
Na cultura iorubá, cada localidade tem uma “arquidivindade” que rege o
panteão. Nessa localidade, esse orixá é a divindade mais importante, abaixo apenas do
ser supremo. Um exemplo é o que vemos em Ifé, onde Odudua é a divindade mais
importante.
A seguir, veremos com mais detalhes alguns desses orixás, conforme observado
em Ribeiro (1996):

▪ Orumilá (Exu) – Apesar de não ser consenso na tradição oral, esse orixá, para a
maior parte dos iorubás, é considerado a personificação do mal e é responsável
pelas situações de conflito e loucura. No panteão, Orumilá tem a atribuição de
preservar o axé.

9
Os orixás são relacionados à origem do mundo e à criação. Cabe a eles concretizar os anseios de Olodumare,
como observamos ao conhecer o mito de origem. As entidades originais são, por assim dizer, emanações de
Olodumare, ao passo que as deificadas são personificações de fenômenos e forças naturais. Aos orixás,
Olodumare concedeu o axé, que nada mais é do que poder divino com o qual eles podem realizar seus feitos
sobrenaturais.
10
Os ancestrais serão abordados mais adiante, mas, aqui, adiantamos que são entidades relacionadas à história
dos homens. São humanos que foram deificados em razão de suas vidas exemplares.
56

▪ Obatalá – Foi a divindade à qual o ser supremo designou a criação da Terra


sólida, de povoá-la e de modelar os seres humanos. Essa atribuição o fez ser
conhecido como representante de Olodumare na Terra. Apesar de ser uma
importante divindade para todos os iorubás, é a arquidivindade da cidade de
Igno. Por ser considerado o criador da humanidade, ele é cultuado também
pelas mulheres estéreis, que o procuram em busca de ajuda para engravidar. E
também referência quanto ao senso de moralidade, por ser puro e correto.
▪ Obaluaiye – É a divindade que se relaciona à Terra e às doenças, em especial, à
varíola. Por essa característica, ele é temido, uma vez que utiliza a doença para
punir os que agem de forma incorreta. Sobre a varíola, há um fato curioso:
“quando alguém morre de varíola, sua morte não deve ser lamentada. Pelo
contrário. Deve ser aceita com alegria e gratidão” (Ribeiro, 1996, p. 69). Esse
orixá é também conhecido por condenar a mentira, o envenenamento e a magia
negra.
▪ Ogum – Essa é a divindade do ferro, da guerra e da caça. É patrono dos homens
que exercem atividades ligadas a esses elementos. Hoje, tornou- se patrono
também dos policiais, cirurgiões e tatuadores.
▪ Xangô – Foi o quarto rei de Oyo e enfrentou uma série de problemas em seu
governo, o que o levou ao suicídio. Aqueles que lhe eram fiéis, para defendê-lo,
acabaram por incendiar a cidade. A fim de apaziguar os ânimos, a população
tornou-se adoradora de Xangô e o divinizou. o culto a Xangô espalhou-se pelo
restante dos espaços iorubás, e sua figura foi associada à cura, à fartura e à
justiça.
▪ Oyá – Orixá dos ventos, dos raios, dos relâmpagos e das tempestades.
▪ Iemanjá – Orixá das águas de mares e rios, dos metais nobres, da fertilidade e
da prosperidade.
▪ Oxum – Orixá da fertilidade e da saúde das crianças. É a arquidivindade da
cidade de Osogbo e Abeokuta.

Como já ressaltamos, não só de orixás o panteão iorubá é composto. Há também


entidades ancestrais – seres humanos cujas histórias foram tão exemplares que após a
57

morte foram deificados e ingressaram no panteão. Os poderes ancestrais podem ser


femininos ou masculinos. A entidade lyami simboliza coletivamente o poder ancestral
feminino. Seu culto objetiva favorecer a fertilidade e a fecundidade, assim como
reforça as normas de conduta social adequada às mulheres, de modo que também se
responsabiliza por acalmar o furor feminino. A Gelede, como também é conhecido o
poder ancestral feminino, é celebrada anualmente em um festival de colheita, o que
reforça sua relação com a fertilidade, não apenas das mulheres.
A Gelede é um dos muitos exemplos de celebrações dedicadas ao panteão
iorubá e presentes na tradição cultural desses povos, como veremos a seguir.

3.3 Ritos de passagem


Os ritos dedicados às divindades iorubás, a exemplo da Gelede, foram e ainda são
replicados em diversos espaços. Outros, no entanto, assumem características
diferentes de acordo com a cidade onde ocorrem. Uma celebração dedicada a Xangô,
por exemplo, assume diferente importância em Oyo do que em Ifé. Os ritos de
passagem, por sua vez, mesmo podendo apresentar características distintas em suas
práticas, têm acepções bem definidas que regem esses momentos, sempre interligados
ao espiritual.
Na mitologia iorubá, compreende-se o período entre a vida e a morte dos seres
humanos como parte de uma existência maior. Dessa forma, esses dois marcos na
existência (a vida e a morte) são celebrados como ritos de passagem.
No que toca ao nascimento um importante rito é o da descoberta do nome. O
significado do termo descoberta é bastante revelador, pois o ser que nasce não é um
“produto” apenas do pai e da mãe, mas sim alguém que está vindo da existência
espiritual e trazendo consigo mensagens, ensinamentos etc. A visita ao oráculo auxilia
os pais a conhecerem a procedência espiritual da criança e a descobrirem o nome dela.
Chamar a nova criança pelo nome é uma forma de convidá-la ao mundo dos homens
e saudar-lhe a vinda.
A morte, por sua vez, é compreendida como o retorno à dimensão espiritual.
Essa passagem é marcada por uma série de ritos de grande complexidade, os quais
58

objetivam preparar esse ser para sua nova condição de existência. Aqueles que tiveram
uma boa vida, seguindo os princípios morais iorubás e finalizando sua jornada com o
que se compreende como a boa morte11, recebem ritos fúnebres adequados que os
auxiliam na transformação para entidades ancestrais.
Os ritos em si podem ser diferentes para cada um dos povos, mas a festa
fúnebre é uma tradição respeitada e replicada por todos os iorubás. Os que morrem
com idade avançada são homenageados com festas grandiosas, ocupando ruas e
reunindo multidões. Essas festas são realizadas após o enterro e devem ser fartas, com
muita comida, bebida, música e dança, podendo durar até 24 horas. No terceiro dia, os
vizinhos da família do falecido recebem presentes em homenagem ao morto. No oitavo
dia e no quadragésimo, devem ser repetidos os festejos. No quadragésimo d
celebrações são ainda maiores e recebem o nome de Festa Final. celebrações são
destinadas apenas àqueles que alcançaram a boa morte idosos mortos em qualquer
circunstância.

IMPORTANTE
Eller (2018) também apresenta uma importante análise a respeito do uso e da função
dos rituais. Após analisar uma série de definições e estudos antropólogos a respeito
dos rituais, conclui:

Por mais diferentes que sejam essas definições, elas revelam alguns traços
recorrentes. Realçam a ação (embora nem sempre uma a “prática” ou
“instrumental”), a padronização e a comunicação – mesmo que, pelo menos em
alguns casos, esta comunicação seja considerada “vazia”. (Eller, 2018, p. 175)

3.4 A medicina e a magia

11
A boa morte ocorre por causas naturais, em idade avançada. Não se enquadram como boa morte as causadas
por suicídio, acidentes, loucura, doenças e as que acometem crianças, jovens e mulheres grávidas ou dando à luz
(Ribeiro, 1996).
59

A mitologia iorubá, conforme destacamos, é de grande riqueza e per diversos aspectos


da vida desses povos. Conhecemos aqui alguns de mitos, parte de seu panteão e os
ritos de passagem. Mas, pensando no imbricamento de mitologia e vida cotidiana,
percebemos a necessidade de explorar aspectos relacionados à saúde. Isso porque, ao
analisar o continente africano e as relações entre saúde, medicina e doenças, não se faz
possível a exclusão de noções que regem a vida social. Entre essas noções, a medicina
tradicional exerce grande influência.
Para os iorubás, medicina e magia recebem a mesma denominação (oogun), visto
que ambas as práticas correspondem à “arte ou à ciência de preservar ou restaurar a
saúde, através de recursos e forças naturais” (Ribeiro, 1996, p. 87). As duas se
encontram sob a égide da divindade Osanyin. Nesse sentido, observamos que as
práticas têm a mesma intenção, mas a identificação e a categorização do problema
definirão a “arte ou ciência” que deve ser utilizada. E o tratamento, muitas vezes, é
uma combinação dos saberes científicos e da magia.
Segundo Ribeiro (1996), a cura, de acordo com a crença iorubá, ê sempre
auxiliada por divindades e espíritos, que orientam o tratamento, seja por uso de
substâncias da natureza, seja por meio de tratamentos físicos, ou por encantamentos
que podem contribuir na resolução de problemas de outra ordem, que não apenas
física. Isso porque as moléstias podem ser geradas por diferentes causas, categorizadas
como: naturais ou físicas (causam doenças comuns); sobrenaturais (geradas por
bruxarias e feitiçarias) 12; místicas (quando espíritos e ancestrais geram desequilíbrios).
A doença, ou moléstia, é diagnosticada pelo mago/médico13 e, então, define-se
a forma de tratamento, que pode ser simultaneamente biológica e espiritual. O uso de
medicamentos pode ou não fazer parte dos rituais de tratamento. Os medicamentos
usados nesses rituais pertencem, em grande parte, ao que se compreende como
medicina tradicional iorubá. que se utiliza de ervas, plantas, ossos, pequenos animais,
entre outros objetos, cujas propriedades medicinais são conhecidas pelos médicos e

12
Na sequência, abordaremos brevemente a ação de bruxas e feiticeiros.
13
Magos e médicos não são a mesma pessoa. Os médicos são aqueles conhecidos como curadores, que têm
conhecimento técnico e científico para diagnosticar moléstias físicas e administrar medicamentos e terapias
visando à cura. Os magos, por sua vez, têm poderes sobrenaturais e podem corrigir desequilíbrios e, até mesmo,
resgatar amores, prevenir acidentes etc. (Ribeiro. 1996).
60

magos. Esses saberes, por muito tempo, foram sequer questionados nas cidades e
aldeias iorubás. Na atualidade, ao mesmo tempo que alguns médicos ocidentais
questionam essas práticas, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estuda e analisa
práticas tradicionais (não apenas iorubás) a fim de incorporá-las aos sistemas de
primeiros cuidados.
Nos rituais, são utilizados também os encantamentos, ou ofo, na língua iorubá.

Ofo é o termo genérico empregado pelos iorubás para designar encantamento.


Pode ser definido como a palavra falada que se acredita possuidora de força
mágica ou capaz de produzir efeitos mágicos quando recitada ou cantada sobre
objetos mágicos ou na ausência destes. Os encantamentos, utilizados em todas
as esferas da atividade humana, em particular na prática médica, são
considerados pelos iorubás, como o principal poder por eles adquirido durante
seu desenvolvimento espiritual. (Ribeiro, 1996, p. 88-89)

Os ofos podem acontecer de diversas formas e têm diferentes finalidades – a


homenagem a poderes espirituais, a remoção de veneno, a potencialização de ações
medicinais, entre tantos outras –, mas não são funcionalidades apenas benéficas. Os
encantamentos também são utilizados em práticas que visam ao mal.
A magia e os encantamentos apresentam-se como parte do sistema simbólico
que compõe a religião iorubá. As pessoas recorrem ao uso da magia em busca de
respostas aos problemas que estão enfrentando e obtêm resultados. A magia, como
podemos constatar, é um compilado de diversos saberes constituídos coletivamente e
que fazem parte da tradição. Por meio dela, os conhecimentos tradicionais são
colocados em prática, visando à cura e à recuperação. Dessa forma, podemos observar
um elemento da cultura iorubá que atende a uma ou mais das funções da religião
dentro da sociedade.
Nessa análise, Ribeiro (1996) resgata a conclusão de Lévi-Strauss a respeito da
magia. Lévi-Strauss entendeu que magia e ciência são “dois sistemas de pensamento
independentes e articulados, semelhantes quanto ao tipo de operações mentais que
61

exigem e diferentes quanto ao tipo de fenômenos a que se aplicam”14 (Ribeiro, 1996, p.


92).
Ao falar sobre magia, surge a curiosidade a respeito de seus usos para o mal.
Na religiosidade iorubá, a magia pode ser boa ou má, lícita ou ilícita. A bruxaria e a
feitiçaria são formas ilícitas da prática da magia, pois não buscam a cura, as reparações
ou qualquer fim positivo, mas são praticadas com vistas à destruição de uma pessoa
ou de um grupo.
A bruxaria é uma prática de mulheres e, de acordo com a crença iorubá, age
diretamente sobre as almas de outras pessoas, retirando a energia vital das vítimas. As
bruxas podem nascer bruxas ou adquirir seus poderes ao longo da vida, até mesmo
por meio de compra. Duas curiosidades sobre a forma que executam a magia: deixam
o corpo dormindo para que as almas saiam de forma suspensa para atacar; e podem
também utilizar o corpo de animais para se locomover.
A feitiçaria, por sua vez, é praticada por homens e exige uma série • técnicas,
instrumentos, objetos e procedimentos para ser desenvolvida. A feiticeiros associa-se
a imagem de Exu, ou Orumilá, orixá conhecido como personificação do mal, que é
evocado pelos feiticeiros para que cause danos suas vítimas. Para essa evocação, os
feiticeiros fazem um boneco de argila (o sigidi) e o guardam em um santuário dedicado
ao orixá. Quando precisam q uma ação seja realizada, transferem ao boneco poder
sobrenatural e recite encantamentos com o nome da vítima, para que Exu possa causar
mal a ela.

SÍNTESE
Neste capitulo, de forma descritiva e narrativa, destacamos a mitologia que compõe a
religião iorubá e a forma como ela se relaciona com a vida social desses povos. Ao
conhecer seus mitos, seus deuses, seus ritos e suas práticas, compreendemos de forma
mais profunda a construção social dos povos iorubás, suas relações pessoais e com o

14
Nesse trecho da obra de Ribeiro (1996) são resgatadas algumas posições de antropólogos a respeito da magia,
seja de sua simbologia, seja de seu uso nas sociedades. A opção pela compreensão de Lévi-Strauss justifica-se
pela forma como ele interpreta mais o modelo mental de compreensão da magia do que propriamente o uso
dela.
62

mundo, bem como com o universo espiritual, e de que forma isso pauta as diferentes
etapas de sua história.
É importante salientar que, por mais tradicionais que sejam os aspectos
apresentados, eles demonstram como a religião iorubá é intrínseca à cultura, com
capacidade de se alterar e se atualizar. Quando comentamos a relação entre a magia e
a ciência, ou mesmo quando descobrimos que um orixá é patrono de tatuadores,
podemos observar esse esforço de replicação e adequação da cultura.

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO

1. A respeito do mito de origem iorubá, analise as assertivas a seguir e assinale V


para as verdadeiras e F para as falsas.
[ ] Olodumare é o ser supremo, responsável pela criação do universo.
[ ] A convivência entre os seres do céu e da Terra era permitida.
[ ] Os seres humanos foram feitos a partir da imagem de Olodumare.
[ ] O mito iorubá é uma adaptação do cristão.
[ ] O envolvimento dos orixás acontece em razão das emanações do ser
supremo.
Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência correta:
A] F, F, V, V, F.
B] F, V, V, V, F.
C] V, F, V, F, F.
D] F, F, F, V, V.
E] V, V, F, F, V.

2. Assinale a alternativa que indica orixás primordiais na religião iorubá:


A] Iemanjá, Exu e Xangô.
B] Odudua, Obatalá, Orumilá.
C] Odudua, lyami e Xangô.
D] Iemanjá, Oxum, Odudua.
E] Olodumare, Oxum, Obatalá.
63

3. A ciência e a mitologia mais uma vez se cruzam ao pensar a saúde e a cura. De


acordo com a tradição iorubá, a medicina e a magia:
A] são parte da ação de cura e podem ser utilizadas de forma separada ou
complementar.
B] são excludentes, tendo em vista que, após o diagnóstico, a delas pode ser
praticada.
C] são excludentes, uma vez que a magia se vale apenas exercer a cura.
D] são complementares, mas apenas as práticas científicas a resultados
comprovados.
E] são praticadas separadamente e não são aceitas por toda a sociedade.

4. A respeito dos aspectos da mitologia iorubá, analise as assertivas a seguir e


assinale V para as verdadeiras e F para as falsas.
[ ] Elemento central da religião, a magia é sempre manifesta pelos orixás e
demais seres divinos.
[ ] As divindades iorubás são todas descendentes do ser supremo
Olodumare e fazem parte do panteão desde antes da origem do mundo
terreno.
[ ] Os rituais de passagem demarcam uma fase da existência dos seres, que
podem transitar entre as dimensões terrenas e espirituais.
[ ] A magia manifesta pelos iorubás pode ser boa ou má, manifesta por
magos, bruxas e feiticeiros e é sempre lícita.
[ ] Muitas das crenças iorubás se baseiam em saberes que, por sua eficácia,
são replicados há várias gerações.
[ ] Os saberes tradicionais apresentam elementos que podem ser
comprovados e contribuir com a ciência médica.
Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência correta:
A] F, F, V, F, V, V.
B] F, V, V, V, F V.
C] V, F, V, F, F, F.
64

D] F, F, F, V, V, V.
E] V, V, F, V, F, V.

5. Considerando o poder exercido por bruxas e feiticeiros, assinale a alternativa


correta:
A] Toda a magia exercida tem o objetivo de prejudicar um indivíduo ou povo
inimigo.
B] A magia é sempre vinculada aos orixás, que garantem sua eficácia.
C] A magia pode ou não precisar de objetos e orixás para ser executada.
D] Assim como o mago, o feiticeiro utiliza magia para auxiliar em processos de
cura.
E] Bruxas sempre nascem com o poder que lhes permite realizar as magias.

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão

1. O mito de origem explora em sua narrativa questões sobre a vida e a morte.


Explique qual a compreensão da religião iorubá a esse respeito e relacione-a
com os ritos de passagem.
2. Pesquise a respeito da acepção freudiana de mito e registre suas conclusões a
respeito da importância dessa acepção e de como ela pode ser observada nos
mitos de origem.
3. Qual a relação entre a magia e as funções sociais da religião, categorizadas por
Jack Eller (2018)?

Atividade aplicada: prática

1. Leia a citação a seguir e escreva seu entendimento sobre o significado do texto.

Os encantamentos, utilizados em todas as esferas da atividade humana, em


particular na prática médica, são considerados pelos iorubás como o principal
65

poder por eles adquirido durante seu desenvolvimento espiritual. (Ribeiro,


1996, p. 92)

4
DIÁSPORA NEGRA
E RELIGIOSIDADE
Na presente obra, nosso objetivo é analisar e discutir a cultura, em especial a
manifestação religiosa, especificamente na África e nos espaços americanos. Para isso,
é necessário compreender de que forma a cultura africana alcançou a América e
enriqueceu sobremaneira as sociedades que existiam e se formavam nesse continente.
Ao iniciar a análise desse processo, no entanto, sentimos a necessidade de
firmar sua gravidade e colocar em perspectiva a violência que o regeu. Falar sobre a
diáspora africana pode gerar sentimentos conflituosos. Em nossa percepção, a procura
pelo “copo meio cheio” dentro de uma das maiores, senão a maior, tragédia imprimida
a uma comunidade não só é frágil, mas também inadequada. O aprisionamento, a
separação dos grupos de convívio, o subjugo, a exploração, os maus-tratos e a
supressão de liberdades e de direitos em nenhum momento podem ter sua
importância subestimada.
A diáspora foi um movimento involuntário e resultante de extrema e continua
violência. As consequências desse ato são de grave impacto nas sociedades africanas,
cujos reflexos são sensíveis até os dias atuais. Ao estudar a configuração das
sociedades e culturas americanas, também significativamente afetadas por esse
processo, não devemos perder a perspectiva da tragédia.
Dito isso, apresentamos o objetivo deste capitulo: compreender como se
configurou a diáspora. de onde foram tirados os africanos e para onde foram levados,
a fim de, na sequência, entender de que forma a religião desses africanos se imprimiu
na cultura local.
66

4.1 Escravidão e desenraizamento


A colonização europeia da América apresentou, a partir do século XVI, uma nova
realidade não só para esses dois continentes, mas também para a África. Para suprir a
demanda por grande quantidade de mão de obra no território americano, os europeus
escolheram investir na escravização15 (de variadas origens)16 e na venda de africanos,
dando início a uma nova lógica comercial e, principalmente, social entre os povos
desses três continentes.
Ao analisar a organização do comércio de escravos africanos, o primeiro
exercício é a desmitificação de que os próprios africanos se escravizavam e que essa
prática foi apenas replicada e corroborada pelos europeus. O modelo de escravidão
existente na África antes do século XVI em nada se assemelha à proposta europeia.

Ao estudarmos os povos iorubás, compreendemos que se organizavam de


forma autónoma, cultural, política e socialmente. Essa autonomia não era característica
exclusiva desse povo. Por todo continente africano, encontrava-se uma enorme
diversidade cultural, étnica e política, sem haver, no entanto, qualquer unidade.
Portanto, os africanos não se encontravam sob a “égide africana”, não compartilhavam
uma única identidade. Isso é importante para a compreensão de que os africanos não
escravizavam a si mesmos, pois a categoria “africano” não existia. Firmada essa
premissa, há ainda a diferença de modelo de escravização17 praticado entre os povos
africanos, antes da investida europeia no continente.

15
Nesta obra, optamos pela utilização, quando adequada, da terminologia escravos, compreendendo sempre
que a escravidão é uma condição imposta violentamente às pessoas, e não uma característica definidora dessas
pessoas.
16
É de extrema importância compreender a diversidade africana que compôs o contingente de escravizados
transportado para a América. Essa diversidade foi protagonista tanto na possibilidade de escravizar essas pessoas
quanto na existência e contenção de resistências e, ainda, na formação cultural das sociedades americanas que
foram impactadas pela presença africana. Ainda a esse respeito, destacamos que a terminologia africanos é
usada no sentido apenas de designar pessoas vindas da África, e não um grupo com identidade comum.
17
O próprio termo escravidão não existia na África antes das investidas europeias. A prática africana era voltada
ao cativeiro, e não à exploração. Na África, existiam “cativos”, e não “escravos”. Ao apresentar essa distinção, no
entanto, não se está defendendo um modelo em relação a outro, pois compreendemos que ambas as práticas
imputavam violência às suas vítimas.
67

Na África, indivíduos podiam ser reduzidos em cativeiro em três situações


principais: por compra e venda, por dívida ou por guerra. Não resta dúvida de
que, dos três, o mais frequente era a guerra. E preciso compreender que os
povos africanos encontravam-se organizados em sociedades hierarquizadas, e
que ao lado de camponeses, criadores de animais, artesãos e mercadores, as
castas privilegiadas eram aquelas compostas por caçadores e guerreiros.
(Macedo, 2013, p. 101)

O cativeiro imposto a essas pessoas não tinha o objetivo de explorá-las para


ganhos econômicos de alta escala, de privar-lhes completamente de suas liberdades e,
ainda mais importante, não previa sua desumanização, como ocorreu no modelo
escravista europeu. Em alguma medida, capturados e cativos em guerra eram
integrados ao grupo social vencedor. Eles podiam estabelecer laços familiares e sociais
dentro dos grupos que os compravam/ganhavam até alcançar a autonomia e se
tornarem membros integrais dessas sociedades, abandonando completamente a
posição de cativos.
A escravidão imposta pelos europeus aos povos africanos operou de forma
bastante diferente. A regularidade e a intensidade do comércio escravocrata atlântico
impedem a comparação com outros modelos de escravidão anteriormente praticados,
mesmo na própria Europa. O volume de pessoas que foi deslocado de seus locais de
origem, subjugadas e exploradas criou uma categoria social na América que,
completamente privada de direitos e liberdades, compunha a base econômica da
sociedade. Para evitar que esse grupo viesse a se tornar uma ameaça, o
desenraizamento cultural e social das pessoas que o compunham se fez de extrema
importância.
A utilização da mão de obra de origem africana, para os europeus modernos,
era justificada por se tratar de seres humanos menores. Os negros, nessa sociedade,
eram vistos como menos desenvolvidos e passíveis de ser tratados como “coisas', como
força de trabalho. As relações comerciais18 que os europeus já vinham desenvolvendo
com alguns mercadores africanos contribuíram para que se apostasse em um novo

18
É importante lembrar que, em suas expedições marítimas, os europeus já faziam contatos com comerciantes
localizados na costa atlântica africana desde fins do século XIV. Esses contatos, no entanto, eram restritos à troca
de bens comerciais, como alimentos, marfim, entre outros objetos.
68

produto. Por fim, as ações dedicadas ao desenraizamento das pessoas escravizadas


também favoreceram o sucesso do empreendimento europeu.
No empreendimento do tráfico negreiro, os europeus tiveram dificuldades em
compreender o espaço africano e a organização sociocultural que ocupava esse espaço.
Diante desse cenário, designaram as diferentes culturas como noções19.

Nesse sentido, o termo “nação” foi utilizado nos séculos XVII e XVIII pelos
traficantes de escravos, os missionários e os administradores das colônias
escravagistas para designar as diferentes sociedades locais da África. No
contexto colônia europeu da época, a maioria nas nações europeias foram
governadas por monarquias. (Handerson, 2010, p 108)

A acepção de nação africana remete ao aspecto de identidade. E essa identidade


pode ser constituída por diferentes elementos: origem, proximidade territorial, linha
política, linguística, religiosa, entre tantas outras. A partir desse conceito de nação é
que começaram a ser construídas as identidades africanas, a exemplo da construção
iorubá, como vimos no Capitulo 2.
No processo imputado pelos europeus, utilizou-se o tráfico de cativos como
forma de desagregar as comunidades africanas. O que se observou foi o afastamento
dos recém-escravizados de seus povos de origem, antes mesmo de que fossem
embarcados nos navios negreiros. Com isso, reduziam-se, já na África, as
possibilidades de resistência por parte dos cativos. Essa foi a primeira ação no esforço
de desenraizamento dos escravizados africanos. A segunda ação para garantir esse
processo ocorria na chegada à América. Os escravos eram reinseridos em outros
grupos sociais, em posição de subordinação e sem vínculos de convivência com
aqueles que o cercavam.

19
Não objetivamos, nesta obra, discutir o conceito de nação, uma vez que essa discussão pode, por si. ser tema
de uma obra inteira. No entanto, é importante compreender que. nesse caso, a acepção de nação utilizada pelos
europeus sequer se assemelhava à compreensão que eles tinham das nações europeias. Veja mais sobre o
conceito de nação e suas compreensões em Hobsbawm (2012).
69

Dois rituais, praticados antes do embarque20 dos escravos, evidenciam o ataque


às culturas e às religiões originais dessas pessoas. O primeiro deles era o batismo
cristão e o recebimento dos símbolos dessa religião21. O segundo rito propunha-se a
eliminar a memória da coletividade de que faziam parte.

Conta-se que no forte de Uidá, na atual República do Benin, os cativos prestes


a serem embarcados eram obrigados a dar um certo número de voltas em torno
de uma árvore, que ficou conhecida como “árvore do esquecimento” Era um
ritual de separação a partir do qual o indivíduo seria considerado
simbolicamente morto, para que sua alma não voltasse e se vingasse dos que
ali permaneceram. (Macedo, 2013, p. 117)

Esses dois rituais imprimem a importância da religiosidade no processo de


enraizamento e desenraizamento cultural. A religião, por contribuir para a construção
do sentimento de pertença nas sociedades, é atacada e extirpada quando se propõe à
eliminação desse vinculo. Não apenas no caso dos africanos na América, mas também
das populações nativas do continente, a cristianização foi usada como recurso para
afastar as pessoas de suas comunidades originais e incorporá-las na sociedade que se
pretendia construir. Nessa incorporação, essas pessoas não eram vistas como iguais
aos colonizadores, mas como membros menores dessa sociedade.
Após a travessia atlântica, era continuado o processo de desenraizamento, com
a segunda ação. Nos mercados de escravos, os africanos eram postos à venda
separadamente, para que qualquer laço de convivência fosse rompido. Uma vez
compradas, essas pessoas eram inseridas em uma localidade nova para e,
consequentemente, no convívio com pessoas com as quais, na maior parte das vezes,
não partilhavam sequer a língua, em uma lógica econômica e social que desconheciam,

20
Antes do embarque, os africanos também eram marcados com ferrete quente, recebendo uma identificação
tal qual mercadorias.
21
Ideologicamente, os empreendimentos católicos (em especial portugueses e espanhóis) eram sempre
movimentos pelos preceitos cristãos e pela intenção da expansão da cristandade. Sendo assim, firmava-se que
os africanos deveriam ser convertidos ao catolicismo, uma vez que estivessem lotados na América. O batismo
era o primeiro passo. Eram distribuídos objetos como crucifixos e santos para que os africanos se familiarizassem
e se apegassem aos símbolos cristãos. E mesmo os princípios morais já lhes eram apresentados e cobrados.
70

em que eram explorados e violentados. Ao analisar essa operação durante a


escravização, constatamos a necessidade de desenraizar socioculturalmente as
pessoas, a fim de lhes retirar a condição humana.

Não obstante, foi a memória da África, como terra ancestral, que deu aos
cativos transportados para o Novo Mundo condições para sobreviver ao
processo de espoliação a que se viram submetidos e lhes oferecer alternativas
novas de convivência e de resistência. Privados da liberdade, restou-lhes a
lembrança de seu modo de vida e a vontade para, em outras terras, e com
outros povos, reinventar sua história. (Macedo, 2013, p. 117)

Como esclarece Macedo (2013) no trecho ora citado, as repetidas tentativas de


desenraizamento foram infrutíferas.

4.2 Diáspora
O tráfico de africanos para a América foi a maior diáspora da humanidade, pois
resultou da dispersão de mais de 10 milhões de africanos para diferentes espaços do
mundo. Os então escravos foram vendidos em todos os continentes, mas
massivamente para a América. O historiador Luiz Felipe de Alencastro (2000)
apresenta um estudo no qual identifica o contingente de pessoas destinado aos espaços
atlântico, europeu e americano, que pode ser observado na tabela apresentada a seguir.

O QUE É
Diáspora é um termo originariamente utilizado para designar a dispersão do povo
judeu pelo mundo. Na ciência histórica, esse termo passou a ser utilizado para
71

designar a dispersão de qualquer povo pelo mundo. Essas dispersões podem ser
motivadas por cativeiro, perseguição política, étnica ou religiosa.

De acordo com os dados apresentados na tabela, cerca de 40% pessoas retiradas


da África foram vendidas e escravizadas no Brasil, desembarcando na Bahia, em
Pernambuco e no Rio de Janeiro. Entretanto, identifica-se, também, um número
significativo de pessoas destinadas às Antilhas Britânicas, Francesas e Holandesas.
As origens dos africanos são variadas. Ao longo dos séculos, diferentes portos
e entrepostos comerciais foram explorados pelos traficantes, em especial os portos do
Golfo da Guiné e da África Central. Os primeiros grandes contingentes foram retirados
da África Ocidental e revendidos na Europa e nas Ilhas Atlânticas. A partir do século
XVII, a África Central assumiu o papel principal de fornecedora de escravos, em
especial para a região das Antilhas. Já no século XVIII, o Brasil tornou-se o principal
destino dos navios negreiros, e os portos do Golfo da Guiné, os principais pontos de
embarque na África. O mapa apresentado a seguir indica os fluxos do tráfico Atlântico.
72

A análise dessas movimentações é essencial para compreendermos dois


importantes pontos da presença das culturas e religiões africanas na América:

1. diversos os povos e as etnias carregados da África para o Brasil, a fim de


trabalhar no território e, que, por consequência, disseminaram diferentes
elementos culturais;
2. os povos originários e os elementos religiosos que foram transmitidos para os
diferentes espaços americanos.

Essa compreensão nos leva a uma diferente acepção do conceito de diáspora:

o deslocamento maciço das populações africanas, a escravidão e o tráfico de


escravos deram origem a um novo fenômeno: o da transposição de elementos
das culturas africanas e a consequente interação entre as experiências
socioculturais africanas e as experiências socioculturais existentes nos locais
para onde os africanos e afrodescendentes foram levados, num fenômeno
conhecido como diáspora africana. (Macedo, 2013, p. aoo-101)

Essa concepção, portanto, vai além do deslocamento das pessoas, perpassando


pela transmissão daquilo que carregam consigo.

SÍNTESE
Neste capitulo, objetivamos a explicação de como se configurou a diáspora africana e
a forma como esse movimento imposto pelos europeus impactou não só as sociedades
africanas, mas também as americanas.
A diáspora. no caso africano (como pode ter acontecido nos demais),
disseminou populações africanas em outros espaços do mundo e tentou esvaziar essas
pessoas de suas tradições e crenças. Esse esvaziamento não foi possível, pois os traços
culturais africanos se mostraram tão fortes que foram capazes de se replicar em outros
espaços e, indo além, de se transformar para adequar-se às novas realidades.
73

Analisaremos essas adaptações nos próximos capítulos, nos quais abordaremos


a forma como as religiões africanas atravessaram o Oceano Atlântico e se
estabeleceram na América. Esse estudo será feito por meio do reconhecimento e da
análise das religiões de matriz africana presentes na América.

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO

1. A diáspora africana foi um movimento com significativos impactos no mundo.


Sobre ele, é correto afirmar:
A] Foi impulsionado pela prática escravista preexistente na África, praticada
pelos próprios africanos.
B] Teve como principal motivação a transmissão cultural africana para o
restante do mundo.
C] Objetivou levar a mão de obra africana à América, garantindo a manutenção
das tradições desses povos.
D] Aproveitou-se de instituições escravistas internas e replicou o modelo de
subjugo, apenas movimentando as populações.
E] Apresentou um novo modelo de cativeiro e escravidão e subjugou as
pessoas, com intuito de lhes retirar a humanidade.

2. Sobre o desenraizamento cultural, analise as afirmações a seguir.


I. Foi um processo construído na América, onde os africanos foram
separados de seus grupos de origem e inseridos em uma nova cultura.
II. Praticado na África e na América, visava cortar os laços culturais dos
cativos e forçá-los a esquecer de sua origem.
III. Não tinha objetivo claro, uma vez que ocorreu de forma involuntária e
não foi percebido pelos europeus.
Estão corretas as afirmativas:
A] apenas I.
B] apenas II.
C] I e II.
74

D] I e III.
E] II e III.

3. O tráfico negreiro movimentou cerca de 10 milhões de africanos para outros


espaços, entre os quais as Ilhas Atlânticas, a Europa e a América. Considerando
esse processo, analise as assertivas a seguir e assinale V para as verdadeiras e F
para as falsas.
[ ] O tráfico atuou de forma expressiva no século XVI, mas foi reduzindo ao
longo dos séculos.
[ ] O Brasil foi o local que recebeu o maior número de africanos,
concentrando cerca de 40% dos cativos.
[ ] A origem dos africanos foi o Golfo da Guiné, de onde foram tiradas cerca
de 10 milhões de pessoas.
[ ] O maior contingente de escravos foi transportado para a América, tendo
Europa e Ilhas Atlânticas uma demanda menor de mão de obra.
Agora, assinale a que apresenta a sequência correta:
A] F, F, V, V.
B] F, V, V, F.
C] V, F, V, F.
D] F, F, F, V.
E] V, V, F, V.

4. A respeito do conceito de diáspora, é correto afirmar:


A] Compreende movimentos migratórios voluntários de grupos étnicos.
B] Restringe-se à abordagem dos movimentos praticados pelos judeus.
C] Imprime a movimentação de pessoas e o abandono de suas tradições.
D] Compreende movimentos migratórios forçados por violências ou ameaças
ao povo em questão.
E] Restringe-se à movimentação de pessoas que carregam consigo elementos
culturais.
75

5. Analise as afirmações a seguir.


I. A organização africana em grandes impérios atraiu a presença europeia.
II. Os negros eram compreendidos como inferiores aos brancos e, por isso,
utilizados como mão de obra.
III. Os africanos encontraram formas de preservar suas tradições e crenças
mesmo após batizados.
Estão corretas as afirmativas:
A] apenas I.
B] apenas II.
C] II e III.
D] I e III.
E] apenas III.

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão

1. Comente o modelo de escravidão existente na África antes da chegada europeia


e aponte as diferenças em relação ao novo modelo que foi imposto.
2. Explique a inexistência de uma identidade africana.

Atividade aplicada: prática

1. Leia o trecho apresentado a seguir e explique o papel da memória.

Não obstante, foi a memória da África, como terra ancestral, que deu aos
cativos transportados para o Novo Mundo condições para sobreviver ao
processo de espoliação a que se viram submetidos e lhes oferecer alternativas
novas de convivência e de resistência. (Macedo, 2013, p. 117)
76

5
A PRESENÇA AFRICANA
NAS ANTILHAS
O tráfico de pessoas escravizadas da África para a América impactou o
desenvolvimento das sociedades africanas, bem como a constituição das sociedades
americanas. Nos espaços que foram povoados por essas pessoas, é imprescindível
analisar a conformação cultural sempre considerando os elementos nativos, os
elementos coloniais e os elementos africanos. Essa miscigenação ê responsável pela
constituição de culturas extremamente ricas e particulares em cada um desses espaços.
77

Nas Antilhas, e em especial no Haiti, não poderia ser diferente. O país de


colonização espanhola (em primeiro contato), e depois colonizado pela França (a partir
de 1697), recebeu um grande contingente de africanos escravizados a partir de meados
do século XVII. dos quais a maior parte veio da região do Golfo da Guiné. Essas
pessoas trouxeram consigo heranças culturais e crenças religiosas, que, em espaço
bastante adverso, encontraram formas de se disseminar e se adaptar.
E nesse universo sincrético que reside o objeto de estudos deste capítulo. Ao
analisarmos a presença africana no território, não conseguimos afastar os movimentos
de resistência e de conformação social do Haiti das práticas religiosas, que vieram a
compor a religião vudu22.
Com o objetivo de compreender de que forma essa religião e as características
de espiritualidade e religiosidade se constituíram na sociedade haitiana, propomos
aqui um estudo com duas abordagens.
Na primeira delas, sob perspectiva histórica, apresentamos a chegada dos
africanos no território e a organização como força de trabalho e como força de
resistência. Na segunda, propomos o conhecimento mais profundo da religião vudu,
para que seja possível compreender a sociedade haitiana e a configuração e a função
de algumas de suas práticas.

5.1 Resistência africana


Após a Espanha ceder o território haitiano à França, depois de 30 anos de embates
violentos entre espanhóis, franceses e ingleses, é que teve início o processo de
colonização do território23. Com o conhecimento das condições de solo e de clima da
região. bem como dos interesses do mercado europeu, a colônia francesa teve sua
economia organizada em torno da produção de cacau, primeiro, e. depois, de anil e
algodão. Nos anos que se seguiram, os franceses investiram nos cultivos de cana-de-

22
Na literatura, encontramos diversas grafias para vudu: vudu, vodu, vodo, vodum, entre tantas outras. A opção
aqui foi pela grafia vudu. No entanto, sempre que uma obra citada apresentar outra grafia, será mantida a
original.
23
Sobre o princípio da colonização do Haiti, no trato espanhol, consulte: Schwartz; Lockhart (2002. p. 85-112).
78

açúcar e de café. A falta de mão de obra. todavia, era um problema permanente para a
economia da colônia.
A opção pela mão de obra escrava africana foi condizente com o contexto
colonial americano e foi reforçada pela alta produção agrícola implementada no Haiti.
A compra de escravos pela colônia francesa aumentava em milhares a cada ano, de
forma a fazer o espaço colonial ser povoado mais por africanos e seus descendentes do
que pelos próprios colonos. Essa proporção é elemento importante para compreender
o impacto dos movimentos rebeldes e de resistência na colônia.
Como já ressaltamos, os africanos escravizados eram desenraizados em dois
processos: um ainda na África e outro ao chegar à América. o desenraizamento
objetivava a separação das nações africanas e a perda da identidade por parte dos
africanos. Em uma escala ainda maior, a perda da identidade era uma forma de
prevenção às insurreições.
Os esforços dos traficantes e dos administradores de escravos, contudo, não
foram capazes de eliminar os vínculos dos africanos (histórias, memórias e tradições)
nem a relação com outros africanos, que, mesmo sem pertencer à mesma nação ou
grupo de origem, tinham traços culturais comuns e crenças próximas. A construção
desses laços deu início, no território haitiano, a uma nova identidade africana, ou afro-
americana.

INDICAÇÕES CULTURAIS
Para maior aprofundamento e compreensão da conexão entre o universo africano e a
história e a cultura afro-americana, sugere-se a leitura da seguinte obra:
THORTON, J. A África e os africanos na formação do mundo atlântico: 1400-1800.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
Ao explorar o mundo Atlântico e as interações que nele se estabeleceram, o autor
evidencia a riqueza sociocultural africana, refletida em suas estruturas políticas e
comerciais. É pelo reconhecimento dessa força social que se torna possível a
compreensão do protagonismo dos africanos nos processos que se desenvolveram a
partir do contato com os europeus, seja no comércio de escravos, seja na atuação na
79

América, não apenas como força de trabalho, mas também como agentes sociais e
culturais.

Essa nova identidade teve como aspecto fundamental a religião vudu.


Compreendemos o vudu24 como um sistema religioso, com deuses, teologias, crenças,
ritos e cultos, que se constituíram a partir da miscigenação de religiões africanas,
indígenas-americanas, católica e de princípios pagãos europeus. Esse sistema
concebeu a organização dos africanos afrodescendentes em torno de objetivos
próprios, relacionados aos seus direitos, às suas liberdades e ao que compreenderam
ser sua nação e seu território.

Assim, percebemos o quanto a questão da cultura se mostrou influente no


contexto da resistência negra. Somente buscando entender o universo cultural
da sociedade haitiana da época, podemos encontrar respostas indagações
levantadas ao longo desta pesquisa. Pois a cultura, neste caso especial, a
religião Vodu no Haiti, atua na produção e no reforço do sentimento de
comunhão e de identificação, de maneira que os indivíduos possam constituir-
se como sociedade, ou ainda melhor, como comunidade e lutar pela
materialização desse universo na vida cotidiana. (Handerson, 2010, p. 78)

A Revolução Haitiana (1789-1791) teve uma série de impulsos e motivações que


resultaram na emancipação da ilha em relação à metrópole francesa e dos escravos em
relação aos seus senhores. A participação de negros libertos e cativos na fase mais
importante da revolução (que teve início em 1791) teve a religiosidade vudu como
elemento determinante.
Os diferentes grupos de africanos e de seus descendentes encontraram na
religião um ponto comum, um aspecto identitário que lhes permitiu a união, o
encontro de similaridades culturais, assim como a partilha de interesses.

24
Na sequência, abordaremos com maior profundidade o sistema religioso vudu (deuses, ritos e demais
elementos) e suas transformações ao longo da história, além da distinção entre sistema religioso e religião. Aqui,
compreendemos ser necessário indicar que o vudu apresenta diversas origens étnicas, resultantes da
efervescência cultural vivida no Haiti (e na América como um todo). Também é importante, ainda, indicar que
esse aspecto espiritual, transcendental, foi de significativa relevância para a construção da identidade haitiana.
80

Como culto familiar e coletivo, o vodu é a prática, por excelência, na qual o


haitiano se esforça para encontrar a identidade perdida com a separação da
África e a opressão socioeconômica que o persegue da escravidão até hoje. [...]
Um estudo comparativo entre os costumes fon e iorubá mostraria, com
certeza, a força da africanidade do haitiano. (Handerson, 2010, p. 46)

A crença vudu era manifesta em diferentes dimensões da vida social dos


escravos, mas particularmente forte nas ações voltadas à procura de conforto e de
acolhimento. A fé em seus orixás e espíritos contribuía para que os escravos
acreditassem na possibilidade de salvação. A prática vudu, para esses homens e essas
mulheres, constituiu-se como uma fuga do cativeiro e uma resposta à exploração social
e cultural que sofriam.
Segundo Prospere e Gentini (2003, p. 75), “Na verdade, a prática do vudu nas
colônias, [sic] significava, desde cedo, uma linguagem própria, mediante a tomada de
consciência da diferença que existia entre o mundo dos oprimidos (escravos) e dos
opressores (senhores).”
Os autores afirmam ainda que, mais do que identidade, conforto e esperança, o
vudu exerceu um importante papel político na organização da revolução. Ao buscar o
conforto nos rituais, os negros encontraram uma forma de trazer para a realidade
terrena seus anseios dirigidos ao mundo espiritual. Os espaços de culto vudu foram,
assim, usados para dialogar politicamente, conhecer os princípios revolucionários
franceses e, então, mascarar e difundir a conspiração negra que se conformava no
contexto revolucionário. Foi por meio de um ritual vudu, em agosto de 1791, que os
negros se engajaram na luta contra seus opressores, estimulando-os a responder às
humilhações, aos trabalhos forçados e ao preconceito25. Nesse episódio, vários
senhores de escravos foram mortos, com o intuito de findar a opressão aos negros.
Os números da população haitiana contribuíam para o fortalecimento das
insurreições. No contexto revolucionário, opuseram-se cerca de 35 mil brancos a 400

25
Nas páginas 47 e 48 da obra de Handerson (2010), há uma descrição do ritual vudu que deu início à insurreição
dos escravos contra seus senhores. De acordo com o relato, o ritual envolveu cânticos, encantamentos, ingestão
de sangue de porco e orações créoles (etnia).
81

mil escravos negros. Os embates tornaram-se cada vez mais frequentes e mais
violentos. A grande vitória dos negros ocorreu em 1793, quando foram libertados os
escravos e declarado o fim da escravidão no Haiti. Em 1804, a emancipação do país
também foi firmada26.

INDICAÇÃO CULTURAL

Sobre a participação dos negros na Revolução Haitiana, recomendamos a leitura da


seguinte obra:
JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São
Domingos. São Paulo: Boitempo, 2010.
Ao explorar a função histórica da escravidão e a função social da opressão dos
africanos, o autor contesta teorias de supremacia racial e apresenta o negro como ator
protagonista de diversos movimentos sociais, culturais e econômicos.

Na obra de Suchodolski (Figura 5.1), é possível observar a presença maciça dos


negros haitianos na batalha que definiu os rumos da revolução.

26
Essas e outras informações a respeito da sociedade haitiana podem ser encontradas na obra de James (2010).
82

5.2 Cultura e religião


Assim como outras culturas que se desenvolveram no continente americano, a cultura
haitiana formou-se como resultado da mistura de diversas matrizes. Entre a elite
colonial, era grande a presença de elementos europeus (franceses e espanhóis). Já nas
classes intermediárias e baixas, esses elementos europeus mesclavam-se à cultura
marginal, vinda das comunidades indígenas nativas e das escravas. Nesse composto
cultural, estão presentes danças e músicas de origens africanas que se popularizaram
no país. A miscigenação foi responsável por dois dos principais aspectos da cultura
haitiana: o idioma créole e o sistema religioso vudu.
Os dois aspectos foram longamente rejeitados pelas elites haitianas, mas
percorrem toda a sociedade já há três séculos. A rejeição ocorreu tanto por serem o
idioma e o sistema religioso “nascidos” nas classes mais baixas quanto pela força de
resistência de ambos, por terem sido essenciais como instrumentos de coesão e de
unidade haitianos, no momento em que essa unidade previa a oposição à metrópole e
às elites econômicas e exploradoras da mão de obra escrava.
Entretanto, no princípio do século XX, foram estabelecidos movimentos
culturais no Haiti que objetivavam reconhecer e valorizar a identidade cultural do
país, dentro de sua miscigenação e complexidade. O indigenismo, como ficou
conhecido o movimento, propôs-se a tirar esses elementos culturais da margem da
sociedade e a incorporá-los na cultura formal do país. Ao longo do século XX, essas
ideias sofreram críticas e foram combatidas, mas ao final do século obtiveram o
reconhecimento devido.

IMPORTANTE!
O indigenismo existiu como movimento literário no Haiti já no século XIX. Nessa
manifestação, privilegiava-se a autonomia das culturas asiáticas e africanas, em
oposição (inclusive depreciativa) à cultura francesa. No século XX, todavia, esse
movimento extrapolou o âmbito literário, tomou formas de movimento político e
apropriou-se dos valores culturais nativo-americanos e resultantes da miscigenação,
83

pelos quais lutou, nos âmbitos social e político, em prol da valorização e do


reconhecimento dessas culturas. Alguns nomes importantes desse movimento são
Jean Price-Mars, Osvald Durand, Edwidge Denticat e Anténor Firmin.

O créole é uma língua afro-latina que combina o francês com dialetos africanos
e alguns gestos e maneirismos. Para a elite haitiana, essa forma de expressão sempre
gerou vergonha, mas em razão de sua presença proeminente no Haiti, em 1987, passou
a ser considerada, assim como o francês, língua oficial do país.
O sistema religioso vudu, por sua vez, sofreu, e ainda sofre, discriminação pela
sociedade haitiana (e não só por ela). Muitos compreendem o vudu como uma
superstição que deveria ser eliminada da sociedade haitiana, outros, como religião
pagã, e há até aqueles que associam as mazelas27 sofridas pela população haitiana à
permanência da prática vudu no país. No século XIX, essa associação era bastante forte
e relacionava a prática vudu à barbárie e à selvageria. Até meados do século XX, o
vudu era resumido à magia negra, responsável pelo subdesenvolvimento do país28.
Esse estigma não acompanhou apenas a religião vudu, mas todas as religiões e culturas
de matriz africana que se estabeleceram na América. O esforço de desmistificar o
caráter negativo dessas religiões foi abraçado pelos indigenistas e por muitas outras
gerações de pensadores e articuladores sociais ao longo dos séculos XX e XXI29.
Contudo, assim como o créole, o vudu teve reconhecida a importância que
exerce na cultura haitiana e, mais do que isso, o papel que desempenhou nas
insurreições escravas, na independência do país e em outros processos políticos, ao
passar, em 1987, a ser protegido pela constituição haitiana. Em 2003, o vudu foi
instituído como religião oficial do país.

27
No último século, o Haiti foi assolado por terremotos e furacões, bem como por doenças. Esses eventos
colocaram o país em situação de grande vulnerabilidade social. As causas para tais desastres podem ser
explicadas por meio de aspectos geográficos, históricos e sociais. No entanto, muitos têm na religião a
justificativa para essas e outras questões. Existem críticos da religião vudu que compreendem que são essas
práticas (ligadas à magia negra e à evocação de entidades da natureza) as responsáveis pela fragilidade haitiana
e pela recorrência dos desastres naturais.
28
Saiba mais sobre a imagem negativa do vudu em: Handerson (2010, p. 134).
29
E importante o reforço de que ainda no século XXI é necessário o combate aos estigmas imputados à
religiosidade de matriz africana.
84

De acordo com Handerson (2010, p. 65), o vudu é uma religião porque “tem
seus deuses e uma teologia, ou seja, um sistema de representação para explicar o
mundo, possuindo culto, com cerimonias dirigidas por um corpo sacerdotal
hierarquizado e assistida por uma sociedade de fiéis”.
Outros autores, no entanto, compreendem o vudu como um sistema, por não
ter um código escrito com as crenças, as determinações e as práticas da religião e por
apresentar muitas variações entre espaços e famílias, lias, em qualquer uma dessas
concepções, o vudu assume aspecto religioso por contar com um sistema integrado de
princípios que regem a conduta humana, uma visão de mundo que interliga seres
humanos, a natureza e o universo intangível.

5.3 Aspectos originais e sincretismo


As práticas vudus são originárias dos povos iorubás, em especial dos reinos de Oyo e
Daomé30. Podemos classificá-las, originalmente, como teísto-animistas, ou seja, o culto
aos antepassados, pela crença de que é necessário regular os vínculos de uma
comunidade com aqueles que já fizeram parte dela e que se conectam por laços de
parentesco. Na América, as práticas vudus assumiram formas diferentes nas Antilhas
e no Brasil, sendo adaptadas às realidades sociais e espirituais vivenciadas em cada
um desses espaços.

No final das contas, já é mais do que comprovado serem, tanto o vodu quanto
o candomblé, práticas religiosas sincréticas. O vodu é o resultado de um
sincretismo de crenças, dos cultos daomeanos, cangoleses, Sudaneses e do

30
Nos capítulos anteriores, exploramos o iorubá dentro dos povos de Ifé e de Oyo e seus arredores. Essa opção
justifica-se por compreendermos, nesses reinos, a origem da cultura iorubá e a influência que esses povos
tiveram sobre os demais que vieram a compor essa cultura. Como lá apresentado, os reinos de Oyo e Daomé
foram rivais políticos, mas isso não impedia que vivenciassem práticas comuns, tampouco que dividissem
crenças. Muitos dos africanos escravizados levados às Antilhas vieram dessa região e, por vezes, já eram cativos
anteriormente ao tráfico atlântico, pela disputa entre Oyo e Daomé. Essa presença passa a se refletir, para muitos
estudiosos, como daomeana. Mas a referência que se deve firmar é que o daomeano é compreendido como
iorubá, lembrando que essa cultura e suas crenças não se constituíram de forma única em toda a região
(Ribeiro,1996).
85

catolicismo com influência dos elementos taínos31. E, em paralelo com o Brasil,


um sincretismo daomeano-nagô-bantu- espírito-católico. (Handerson, 2010, p.
120)

No Haiti, o vudu apresenta representações coletivas marcadas por três


dimensões: a ecológica, a dos ritos e a das cerimônias. Essas três dimensões
apresentam o africanismo e a herança iorubá de forma bastante premente, mas, se
analisadas de forma mais minuciosa, reconhecemos diversos elementos católicos em
suas manifestações. Os espaços de adoração, encomenda e agradecimento (dimensão
ecológica) são ocupados por objetos animistas, como velas, garrafas e loas, bem como
por imagens e estatuetas de santos católicos. As festas (dimensão de ritos e cerimônias)
coincidem com o calendário de celebração católico, contemplando a quaresma, o dia
dos mortos e o Natal, além das correspondências vudus para os santos católicos.
Compreendidas as dimensões da religião e sua construção sincrética,
apontamos a necessidade de entender o arcabouço de interações previstas no universo
vudu. Mais do que uma religião, o vudu apresenta-se como um sistema de cuidados
com a saúde, com práticas de cura e prevenção a doenças. Outro aspecto da religião é
a estreita ligação com a natureza, ou seja, a compreensão de que esta faz parte dos
outros elementos (seres humanos, espíritos e deuses) com os quais se constituem os
vínculos e, portanto, deve ser tratada da mesma forma que eles.

Há uma hierarquia das forças e dos seres, em que tudo está incluído: deuses,
animais, plantas e minerais. Os praticantes da religião Vodu acreditam
profundamente na existência dos seres espirituais que vivem na natureza. [...]
o culto do Vodu na cultura haitiana está na base do desejo do haitiano de
reportar-se ao lugar em que os acontecimentos e o sentido das coisas têm
explicação e não devem ser separadas no seu próprio universo simbólico.
(Prospere; Gentini, 2013, p. 74)

31
O termo taíno refere-se aos grupos nativos da região das Antilhas, em especial presentes na Jamaica, Cuba,
Bahamas, República Dominicana, Haiti e Porto Rico. No que toca à espiritualidade desses povos, destaca-se o
culto às divindades que se relacionavam com a natureza e com a fertilidade.
86

A associação com a natureza expressa-se na procura por um equilíbrio. Como


foi apresentado, a religião vudu apresenta uma dimensão ecológica, em cujas práticas
e rituais há o uso de objetos. Os objetos utilizados em oferendas devem ser passíveis
de absorção pela natureza, ou seja, propõe-se sempre o uso de materiais
biodegradáveis para que os ritos não ofendam o espaço natural.
Ainda de acordo com Propere e Gentini (2013), outra interação prevista atua de
forma significativa no espaço da economia: o kombit. Essa prática prevê a disseminação
da partilha no lugar das interações de compra e venda. Essa interação prevê a
autossuficiência dentro dos espaços (e com os espaços vizinhos). Menos replicada do
que outros modelos de interação que veremos, o kombit mostra-se fundamental nas
comunidades agrícolas haitianas.

SÍNTESE
Neste capítulo, analisamos o impacto da presença africana na América, em especial no
Haiti. Seguindo o caminho das religiosidades e de sua influência significativa nos
âmbitos sociais e culturais, ressaltamos o papel da religião vudu na conformação da
sociedade haitiana.
O primeiro aspecto estudado foi a importância do vudu na construção da
identidade haitiana. A vivência da religião permitiu o estabelecimento de laços
espirituais e culturais, que resgataram a memória africana, bem como propiciaram
novos espaços de convívio e de desenvolvimento de novas tradições.
Além da prática religiosa, esses espaços tornaram-se redutos de reflexão
política. Fosse pelo conhecimento de ideais que circulavam pelo mundo, fosse para a
compreensão da luta de classes estabelecida no Haiti, os rituais vudus permitiram a
organização desse povo com nova identidade e com aspirações comuns.
Nesse contexto, destacamos a importância do vudu nas insurreições e nos
movimentos de resistência escravos no Haiti, bem como seu protagonismo no alcance
de sua liberdade e, indo além, da soberania do país.
O papel exercido por essa religião e seus praticantes foi, por muito tempo,
negada na história do Haiti. As classes dominantes, envergonhadas dessa religião,
87

procuraram, de todas as formas, enfraquecê-la e marginalizá-la. Mas, com apoio de


movimentos culturais, o vudu obteve seu reconhecimento em finais do século XX.
Por fim, abordamos a origem da religião, suas principais dimensões, os espaços
que abrange como prática e o que é compreendido como seu universo. Construída essa
base para a compreensão da religião, abordaremos, no próximo capítulo, as premissas
mitológicas do vudu e nos aprofundaremos no estudo de suas práticas no território
haitiano.

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO

1. A respeito do processo de desenraizamento e reconstrução de vínculos entre os


africanos, analise as afirmativas a seguir.
I. O desenraizamento ocorria de forma involuntária, pois não era possível
manter famílias e comunidades em uma única fazenda na América.
II. O esforço em desenraizar os africanos era uma prevenção às
organizações e aos movimentos de resistência à condição escrava.
III. A pesar de serem submetidos ao processo de desenraizamento, as
memórias e as similaridades culturais aproximavam os escravos
africanos.
IV. A aproximação entre os africanos na América se dava tanto por
memórias quanto por objetivos comuns de sobrevivência.
Estão corretas as afirmativas:
A] apenas I.
B] II, III e IV.
C] II e IV.
D] apenas IV.
E] I e III.

2. A religião vudu exerceu algumas funções sociais. Não é uma delas:


A] a criação da identidade haitiana.
B] o espaço de aproximação e conforto.
88

C] a explicação de origem e de causas.


D] o espaço de conformação com a condição escrava.
E] o espaço de cura e troca espiritual.

3. Sobre a posição social do vudu na sociedade haitiana, analise as assertivas a


seguir e assinale V para as verdadeiras e F para as falsas.
[ ] A religião vudu resultou de uma mistura de crenças possível pelo
convívio entre pessoas de diferentes origens culturais.
[ ] A miscigenação presente no Haiti ocorreu em todas as camadas sociais,
de forma que a diversidade cultural sempre foi aceita.
[ ] O papel exercido pelo vudu na Revolução Haitiana contribuiu para sua
aceitação como religião oficial do país.
[ ] Por muito tempo marginalizada, a religião vudu passou a ser defendida
por movimentos culturais que buscavam seu reconhecimento.
[ ] Culpa-se a religião vudu pela violência extrema que foi utilizada no
processo de independência do Haiti.
Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência correta:
A] F, F, V, V, F.
B] F, V, V, V, F.
C] V, F, V, V, F.
D] F, F, F, V, V.
E] V, V, F, V, F.

4. O indigenismo foi um movimento de luta pelo reconhecimento da cultura


constituída no Haiti. Sobre ele, é correto afirmar:
A] Teve origem na literatura, com objetivo de valorizar as culturas africanas e
asiáticas em oposição à europeia.
B] Teve origem na Revolução Haitiana e na busca por reconhecimento social,
político e cultural por parte dos escravos.
C] Restringiu-se ao âmbito literário e à defesa da língua créole, compreendendo-
a como elemento de identidade haitiano.
89

D] Foi fortemente combatido pelas camadas sociais mais baixas que não se
viam representadas pela literatura.
E] Expandiu-se, defendendo não apenas a conformação cultural haitiana, mas
também as demais da América que absorveram as práticas vudus.

5. São aspectos fundantes da religião vudu:


A] a organização das práticas em um código e o distanciamento da religião
católica.
B] a origem iorubá e a manutenção de elementos puros dessa religião.
C] a mistura de elementos culturais nativos e africanos como forma de
resistência ao catolicismo.
D] a crença em um único deus que demarca a forte aproximação com o
catolicismo.
E] a origem iorubá e a apropriação de elementos católicos misturados a práticas
africanas e nativo-americanas.

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão

1. Quais elementos auxiliaram na construção de uma identidade haitiana? Qual a


importância deles?
2. O que é miscigenação?

Atividade aplicada: prática

1. Pesquise a respeito das diferenças entre uma religião e um sistema religioso e


explique o tema de forma comparativa.

6
90

MITOLOGIA VUDU
A aproximação de historiadores à sociedade haitiana costuma ocorrer em razão dos
estudos das revoluções escravas e dos movimentos de independência na América. O
estudo da cultura do país direciona ao conhecimento da constituição da identidade
desse povo, e não, de fato, à compreensão da cultura. Já os estudos dedicados à
elaboração desta obra indicaram outro caminho, afastando-nos do lugar comum e dos
preconceitos difundidos a respeito dessa cultura e, em especial, da religião vudu.
O universo vudu sempre nos pareceu bastante místico. Se buscarmos pelas
memórias advindas do imaginário coletivo, o vudu sempre esteve associado às
práticas de magia negra e encantamentos. O boneco vudu é a primeira imagem que
costuma vir à mente quando pensamos nessa religião, se é que a percebemos como
religião.
Quando começamos a nos aprofundar no universo religioso vudu, o místico
passou a dar espaço ao familiar. Ao olhar para os espaços próximos e para a
preocupação com questões bastante terrenas e cotidianas, a magia e o sobrenatural
deram lugar a ritos e festividades próximas às religiões mais populares no mundo,
como o próprio catolicismo. E a magia negra praticada com os bonecos vudus se quer
apresentou-se em meio aos diversos rituais voltados à saúde e à cura, ao cuidado com
o meio ambiente, entre tantos outros.
Neste capitulo, ao estudarmos a religião (ou sistema religioso) vudu, propomos
ao leitor o mesmo percurso que traçamos. Ao começar por um estudo de caso, vamos
observar a forma como essa religião é praticada atualmente na sociedade haitiana,
para, na sequência, conhecermos com mais profundidade algumas das crenças e dos
ritos do vudu e, por fim, as grandes preocupações as quais se direcionam as
encomendas e mesmo as divindades vudus.

6.1 reflexões sobre um estudo de caso


91

A antropóloga Flávia Dalmaso tornou-se referência em estudos a respeito da religião


vudu. No artigo “Heranças de família: terras, pessoas e espíritos no sul do Haiti”
(Dalmaso, 2018), a pesquisadora apresenta, a partir de um estudo de caso, a forma
como a religião vudu se manifesta no Haiti atual e como influencia diversos aspectos
da vida social.
O estudo de Dalmaso (2018) tem início com os acontecimentos que levaram à
morte da menina Bina, de 5 anos, que, acometida por uma enfermidade e tratada por
um mestre de folhas, morreu sem conseguir chegar a um hospital na cidade de Jacmel.
O que poderia ser compreendido como apenas uma tragédia, havia sido sonhado por
um tio de Bina, que suspeitou que não se tratava de uma doença, mas sim que Bina
fora vítima de um iougawou – entidade, costumeiramente mulher, que deixa sua pele
e, ao se transformar em um animal, desloca-se para se alimentar de crianças32. Com o
passar dos dias, o restante da família (pai e irmãos) de Bina adoeceu, e a crença na ação
de um iougawou foi deixada de lado. Contudo, a dificuldade em diagnosticar a doença
que acometia toda a família fez de novo com que a atenção fosse voltada ao espiritual.
Familiares e demais pessoas próximas concluíram que Liliane (mãe de Bina) estava
sendo perseguida pelo iwa33 de sua família e pelo lakou34 no qual vivia. Isso porque
Liliane, apesar de ter origem vudu por parte de mãe, era batista e renegava toda a
religião vudu, com a qual não queria ter nenhum vínculo. Iwa era o espírito da família
materna de Liliane, e a recusa e o desdém dela teriam resultado nos acontecimentos
citados.

A situação se torna ainda mais evidente quando recuperamos alguns


acontecimentos vivenciados pela família e que passaram a ser relembrados a
partir daquele momento. Cerca de dois anos antes, Liliane perdera um de seus
filhos algumas poucas semanas após o parto. Segundo Claire [cunhada],

32
Observamos aqui, a similaridade com a figura da bruxa da religião iorubá.
33
Iwa é o nome dado ao espírito ou aos espíritos e às entidades muito antigos. 0 iwa bitasyon é vinculado à terra,
o iwa fanmi é vinculado à família e o iwa heritage é vinculado à herança. A terminologia créole utilizada para se
referir aos espíritos é mystéres ou génies. No norte do Haiti, são utilizadas duas outras terminologias: saints e
anges.
34
Lakou é a palavra utilizada para remissão ao território da família, ou seja, a terra na qual se constroem as
relações e vínculos vudus. Esses espaços são habitados pelos vivos e pelos mortos.
92

pessoas mais próximas como, por exemplo, ela própria, a teriam alertado sobre
a possibilidade de perseguição, uma espécie de retaliação feita pelo Iwa
bitasyon diante de sua indiferença. (Dalmaso, 2018, p. 111)

O fato de a mãe e a avó de Liliane serem vudus e terem criado e cultivado os


iwa na terra em que viviam (lakou) vincularam Liliane a esses espíritos e a essa religião.
Na crença vudu, não é possível quebrar essa relação. Uma vez que os iwa não
encontraram a correspondência de Liliane ao vinculo existente, passaram a persegui-
la, transformando a relação, mas ainda a mantendo. O caso aconteceu em 2017
(Dalmaso, 2018).
A história de Liliane e de sua família revela diversos aspectos da mitologia
vudu, além de comprovar a forte presença da religiosidade na sociedade haitiana
atual.
O primeiro aspecto a ser explorado é a noção de vínculo. Na sociedade haitiana,
são diversas as possíveis associações entre pessoas. A família, pessoas com as quais se
têm os vínculos originais de sangue, pode expandir-se àqueles com os quais se mantém
vínculos de sangue e afinidade, ou seja, àqueles com os quais se partilham refeições35,
divide-se uma casa ou mesmo uma vizinhança. Essas relações, no vudu, tornam-se
vínculos, de forma que, sem perder sua individualidade, as pessoas passam a fazer
parte de algo maior, e seu universo passa a ser composto por outras pessoas com as
quais se dividem laços de afeto e expectativas, sem os quais a vida em si não é
possível36. Esse vínculo não é circunscrito ao universo dos vivos, inclui os mortos e os
espíritos.
O segundo aspecto presente na história de Liliane é o lakou, termo utilizado para
designar o espaço em que os vínculos são construídos e reforçados por meio de

35
“Compartilhar o alimento preparado nas casas é um elemento-chave para a criação e a preservação dos
vínculos de familiaridade e para o estabelecimento de fronteiras afetivas entre as pessoas” (Dalmaso, 2018, p.
102).
36
Esse conceito de vinculo é explicado, no Haiti, pela analogia à gosma do quiabo, que mantém o todo junto.
Que, ao mesmo tempo prende e desliza, é o que constituiu os vínculos, considerando as aproximações e os
distanciamentos de expectativas e afinidades nos cotidianos familiares (Dalmaso, 2018).
93

práticas cotidianas e por rituais nos quais são evocados os mortos e os iwas.
Encontram-se entre esses iwas os fundadores dos lakous.
De acordo com Dalmaso (2018, p. 104), “os lakou do início do séc. XX abrigavam
muitas casas em seu interior, constituindo verdadeiras instituições políticas,
econômicas, sociais e religiosas – uma espécie de fato social total – reguladas pela
autoridade de um chefe, o mèt lakou [...].”
Esses espaços, como podemos observar, não apenas abrigam as pessoas de uma
família, mas comportam as relações e têm uma importância na organização social
haitiana.
O terceiro aspecto que se evidencia na história de Liliane é o de herança, ou
eritaj. A herança vudu é composta de bens materiais e imateriais, entre os quais as
terras (lakous) e os espíritos (iwas) ocupam lugar de destaque, sendo deixados por uma
pessoa (após sua morte) aos descendentes consanguíneos. Isso porque, “o sangue tem
a capacidade de fluir em muitas direções, podendo ser associado não apenas às suas
propriedades físicas e materiais, mas também a uma conexão ancestral, como é o caso
da eritaj (Dalmaso, 2018, p. 106). O que o sangue carrega, junto aos laços de parentesco,
são as histórias familiares e o conhecimento acumulado por aquela família. São suas
relações. A terra, a família e os espíritos são, nessa concepção de herança, parte de
todos. Verificamos isso em um dizer haitiano: “nós somos a mesma herança”
(Dalmaso, 2018, p. 107).
Ao retornarmos à história de Liliane e à causa que foi atribuída às tragédias que
ela viveu, podemos compreender a importância das relações para a religião vudu, seja
com a terra, seja com a ancestralidade, seja com a herança da qual se faz parte. A
negação que Liliane fez do vudu quando se converteu ao cristianismo, de acordo com
o relato, pôde apresentar-lhe um novo caminho de como conduzir sua vida, mas não
uma ruptura com as relações que estabelecia com sua própria família, o que levou a
um reforço dos vínculos feito de forma traumática.

6.2 Deuses e rituais


94

Para compreendermos a religião vudu, é preciso ter algum afastamento dos


paradigmas que definem universos nos quais os mundos terrestre e celeste existem em
separado e permitem correlações entre humanos e divindades. Esse modelo é
observado no catolicismo, nas antigas religiões grega e romana, assim como na
mitologia originária iorubá.

E os humanos são apenas sombras, cópias esmaecidas dos orixás dos quais
descendem. É por isso, no universo religioso do Vodu, que o bem e o mal se
correlacionam, os mesmos elementos podem servir para fazer o bem, ou serem
utilizados para exercer o mal. [...] É evidente o Vodu não ser um culto africano,
ele não tem a dimensão cósmica do modo africano nem do modo europeu,
cristão. Com isso queremos dizer que o Vodu é o resultado dessas duas
dimensões, e outras mais, portanto, é modo de viver próprio, é percepção
original do mundo. (Handerson, 2010, p. 125)

No trecho citado, é possível observar que os adeptos da religião vudu veem O


mundo como um só, onde o natural e o sobrenatural coexistem e se relacionam.

6.2.1 Deus
De acordo com Handerson, na religião vudu, como em muitas outras que a
influenciaram, há um deus criador do universo, o Granmèt 37 (ou Papa Blondie). Esse
deus é responsável pelos mundos terrestre e celeste, sendo um o reflexo do outro. Na
mitologia, Granmèt garante que todas as coisas que habitam esses mundos tenham
alma, não apenas as pessoas e as divindades. As plantas, as comidas e os objetos
sacralizados têm alma da mesma forma que os seres humanos. Ao deus vudu
associam-se, também, as noções de fatalidade e natureza, as quais são relacionadas às
ocorrências do cotidiano. Em termos das vivências dos seres humanos, à fatalidade
relacionam-se doenças comuns, como gripes, dores de cabeça, de barriga, tensão, entre

37
Granmèt significa “Grande Mestre” em créole.
95

outras; à natureza relacionam-se as grandes catástrofes, como tsunamis, terremotos,


tempestades e ciclones. Nos dois casos, fatalidades e desastres naturais, a
responsabilidade é do bom deus, e não dos espíritos (Handerson, 2010).
As criações de Granmèt são permeadas de dualidade. Os dois mundos, o bem
e o mal, são exemplos, assim como o fato de as pessoas terem duas almas: o petit-bon-
ange, que seria como um anjo da guarda; e o gros-bon-ange, que carrega os pensamentos,
os sentimentos e as memórias das pessoas. Este último deixa o corpo das pessoas
enquanto dormem para explorar e observar os dois mundos. É dessa observação que
resultam os sonhos.

6.2.2 Espíritos
A adoração38 dos vuduístas é ao deus Granmèt, mas as ações são dedicadas a servir
aos espíritos, considerados parte da família (como destacamos no estudo de caso da
Seção 6.1). Handerson (2010) afirma que as cerimônias vudus dedicam-se a honrar os
espíritos. Esses espíritos podem ser bastante antigos, confundindo-se com as
divindades africanas, ou os iwa. A esses últimos é que devem ser dedicadas as
cerimônias, as oferendas e os sacrifícios. Tais ritos também podem ser dedicados aos
Jumeaux – os gêmeos, detentores de grande poder –, assim como aos mortos, que
permanecem ligados às famílias.
Os espíritos não são apenas os familiares. São duas as categorias: os espíritos
frios (radas) são os familiares que já conhecemos, mais harmônicos e se afinam à magia
branca; os espíritos quentes (petros) são negativos e se afinam à magia negra. Na
tradição vudu, ambos podem cometer “maldades”, como a morte. No entanto, as
razões pelas quais as ações são praticadas diferem esses espíritos.
Ainda quanto aos espíritos, compreende-se que cada pessoa tem um espirito
principal, que a acompanha e, mais do que isso, a conduz ao longo de sua vida. Nesse
sentido,

38
Os vuduístas adoram, também, as divindades católicas. Jesus Cristo e Virgem Maria são parte significativa da
religião vudu. No entanto, encontram-se em nível hierárquico inferior a Granmèt e aos espíritos. Mesmo que em
menor escala, é possível observar imagens e estatuetas católicas nos altares e templos de adoração vudu.
96

cada pessoa é considerada como tendo um relacionamento especial com um


espírito particular, o qual é dito “possuir sua cabeça”. Assim, uma pessoa pode
ter um loa, que possui sua cabeça, ou “mèt tèt” podendo ou não ser ele o
espírito mais ativo na vida de alguém, de acordo com os haitianos. Ao servir os
espíritos, o vuduísta busca conseguir a harmonia com sua própria natureza
individual e o mundo em torno dele, manifestado como fonte de poder pessoal
relacionado à vida. (Handerson, 2010, p. 130)

A harmonia necessária e buscada pelos vuduístas, como observamos na história


de Liliane, é a preservação dos vínculos familiares, de terra e de herança, no contexto
familiar e nas comunidades em que vivem.

IMPORTANTE!
É relevante destacar a questão da saúde e da cura na mitologia vudu. Esses elementos
são, talvez, os mais importantes da prática religiosa, pois busca-se o intermédio das
divindades e dos espíritos para curar os doentes. Para tal, podem ser misturados
saberes da medicina tradicional, que utiliza ervas e outros elementos da natureza, em
conjunto com cânticos e cerimônias de cura.

6.2.3 Rituais
Na religião vudu, existem diversos rituais domésticos e coletivos. Para organizá-los,
há a configuração de um clero, responsável pela preservação das tradições, replicando
rituais – músicas, encantamentos e orações – e mantendo a harmonia da comunidade,
de pessoas e espíritos. Esse clero ocupa-se, também, da condução dos rituais. É
composto de: houngans e manbos (de alta hierarquia e que têm as responsabilidades
supracitadas); e hounsis (que auxiliam nas cerimónias). Assim como na religião
católica, a profissão de houngan é ensinada por meses, e até mesmo anos, mas depende
da vocação daqueles que optam por exercê-la.
Fazem parte do clero, também, os hounguenikon quartier-maitre – pessoas
responsáveis pelo cuidado do quarto de oferendas. Ainda como responsáveis pelos
97

espaços de rituais, há os la-place – os mestres de cerimônia dos rituais. Esse espaço é o


santuário, também chamado de confraria.
Do lado de fora da confraria, há um terreiro (péristyle), onde ocorrem as
cerimônias.

No centro de um “péristyle” há um “poteau-mitan” (poste), pivô e centro das


danças rituais que recebe várias homenagens durante as cerimônias. “É ele que
liga o céu e as profundezas da terra e à sua volta se desenvolvem todos os
ritos”. (Hurbon, 1987, p. 82). O lugar ocupado no ritual se explica pela sua
função: ele é “caminho dos espíritos”, ou a escada que os espíritos descem
quando são invocados no “péristyle”. Na base do poteau-mitan, um móvel em
forma cônica serve de mesa para os objetos usados durante a cerimônia. No
solo, o oficiante traça os símbolos dos loas que farão sua aparição. Os símbolos
traçados no chão são chamados de veve, é o desenho simbólico do loa, sua
função é comparável à da imagem ou estátua de santo. (Handerson, 2010, p.
123-124)

Na figura a seguir, podemos observar alguns detalhes do péristyle, como


imagens homenageadas, objetos da cerimônia, tambores e espaço para danças e ritual.
98

Um importante objeto utilizado nos rituais no péristyle é o tambor. Na tradição


vudu, os tambores não são apenas instrumentos musicais. Guardam também uma
dimensão sagrada – têm alma e são dignos de oferendas e sacrifícios. Os tambores são
utilizados para reger as cerimônias. Os ritmos e as danças atraem os espíritos que
participarão do ritual. Alguns participantes entram em transe com a chegada dos
espíritos.
Por se tratar de uma religião que valoriza os espíritos e aqueles que já não se
encontram mais no plano terreno, a ocasião da morte é amplamente celebrada.
Quando um membro de uma família vuduísta morre, todos os familiares se reúnem,
com as demais pessoas de convívio e da vizinhança, para rezar por nove dias após o
enterro, pois é esse o período necessário para que o petit-bon-ange deixe o mundo
terrestre.

Essa alma entrará num lago ou num rio por alguns anos, e depois sairá com a
ajuda de parentes adeptos do Vodu. Essa alma irá diante de Deus para prestar
conta dos pecados cometidos pela pessoa no mundo terrestre. Para o
praticante do Vodu, pois, a morte não é morte, é uma etapa de sua existência
[...]. (Handerson, 2010, p. 126)

Assim, a transição de um mundo para outro não é um processo simples para a


alma.

6.2.4 Magia negra


Uma religião marginal, praticada pelas classes mais baixas de uma sociedade, com
elementos herdados de culturas africanas (também marginalizadas) e a presença de
espíritos frios e quentes, bons e maus, já tem, apenas por essas características, um
estigma negativo, que gera preconceito pela própria sociedade em que se estabelece,
como por estrangeiros que não se permitem conhecer os reais elementos dessa religião.
Duas imagens vudus foram fortemente difundidas pelo mundo: o transe
(característica ritual associada à presença de espíritos) e o boneco vudu (relacionado à
99

magia negra). Contudo, como já destacamos, a religião vudu é extremamente


abrangente. Preza pelo equilíbrio e pela harmonia entre diversos elementos
(espirituais, terrenos e vinculados à natureza e à saúde etc.). A prática de magia negra
é um uso possível das crenças vudus, que representa uma parcela muito pequena da
comunidade vudu. A relação direta entre vudu e magia negra seria o mesmo que
relacionar diretamente candomblé e macumba, o que sabemos que também acontece,
mas, como veremos no próximo capítulo, não se confirma.

CURIOSIDADE
No universo vudu, existe também a feitiçaria, cujo exemplo mais conhecido é o ritual
que se utiliza dos bonecos vudus. Nessa prática, são confeccionados bonecos que
representam pessoas (por vezes, há um esforço para que os bonecos façam alguma
remissão física à pessoa em questão), e nele são espetadas agulhas, com a intenção de
afligir dores e sofrimento à pessoa representada. O zombi é outra forma de praticar a
magia negra. Um boker (feiticeiro)39, por meio de ervas, plantas e práticas de magia,
coloca o zombi em estado de sonolência profunda e constante. A família o vê como
morto e o sepulta. De acordo com a tradição, os zombis sentem todo o processo de
enterro, mas não conseguem fazer nada para impedi-lo. Após o enterro, os bokers
acordam o zombi, que, mesmo fora do estágio de letargia, continua “morto”, pois deixa
de ter autonomia e fica a serviço do boker.

SÍNTESE
Neste capítulo, apresentamos a forma como a religião vudu se constitui, por meio de
seu conhecimento sobre a origem, o universo mítico e a presença dela na sociedade
haitiana.
Abordamos as principais divindades vodus – deus e espíritos caracterizando
suas distinções e a maneira como se relacionam com a vida terrena e com as pessoas.

39
Os bokers podem ser chamados para praticar o bem ou o mal. Sua função é auxiliar as pessoas a alcançar
desejos e ambições na vida, para o bem ou para o mal. Eles atuam com maior frequência em rituais de cura, mas
alguns, que transformam a prática vudu em comércio, atuam para afligir o mal a outrem, para ganhos financeiros.
100

Na sequência, tratamos da organização dos rituais, incluindo a constituição do


clero, os elementos utilizados nas cerimônias e os objetivos delas. Verificamos que se
atribui diferente importância aos rituais que celebram a morte das pessoas, a fim de
compreender como, após a morte, as pessoas tornam-se espíritos familiares.
Por fim, dedicamos um espaço para o conhecimento de duas práticas da magia
negra: o boneco vudu e o zombi. Esse espaço, mais do que sanar curiosidades, teve por
objetivo dissociar a magia negra do vudu. Não por não fazer parte dele, mas por não
ser o que há de mais importante e mais presente nessa religião.
Contudo, antes da abordagem sobre as características dessa religião,
verificamos um estudo de caso bastante recente, ocorrido em Jacmel, no Haiti, em 2017.
A história de Liliane e de sua família permitiu a compreensão de como a religião vudu
se coloca na sociedade haitiana e quais os principais aspectos dela, não apenas como
prática religiosa, mas também como prática social: a família, a terra e a herança.

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO

1. O estudo de caso de Flávia Dalmaso (2018) apresenta a história de Liliane, que


teve sua família acometida por uma doença. Esse estudo permite observar qual
aspecto da religião vudu?
A] A atuação de espíritos voltados à cura.
B] A presença de espíritos bons e maus.
C] A presença de vínculos inquebráveis.
D] Os sonhos considerados premonições.
E] O sacrifício de membros da família pela fortuna.

2. Sobre os aspectos principais da prática da religião vudu, analise as assertivas a


seguir e assinale V para as verdadeiras e F para as falsas.
[ ] Os vínculos são criados entre pessoas, lugares e espíritos e não podem
ser violados.
[ ] A ancestralidade é um componente de grande importância na tradição
101

vudu, pois os antepassados mortos continuam fazendo parte das


famílias.
[ ] Lakous são espaços nos quais se praticam os rituais vudus comandados
por houngans e manbos.
[ ] O conceito de herança refere-se a todos os bens materiais, inclusive o
lakou, que são passados para uma geração seguinte, após a morte.
[ ] Os aspectos de família, terra e herança se interligam na religião vudu,
constituindo parte dos vínculos.
[ ] A família é composta apenas por pessoas com laços consanguíneos, pois
é pelo sangue que são transmitidas as heranças.
Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência correta:
A] F, F, V, V, F, F.
B] F, V, V, V, F, F.
C] V, F, V, F, F, V.
D] F, F, F, V, V, V.
E] V, V, F, F, V, F.

3. A religião vudu é composta por um deus principal, Granmèt, ao qual os


vuduístas dedicam adoração. Analise, a seguir, as afirmativas a respeito dessa
divindade.
I. Granmèt é responsável pela criação e pela origem de todas as coisas.
II. Os eventos compreendidos como fatalidades ou grandes ações da
natureza são atribuídos a Granmèt.
III. A devoção a Granmèt é refletida nos ritos vudus, em que ele é sempre a
figura principal.
IV. As almas são concedidas por Granmèt apenas às pessoas, de forma a
constituir uma hierarquia no universo.
Estão corretas as afirmativas:
A] I e II.
B] I, II e III.
C] I e III.
102

D] I, II e IV.
E] I, II, III e IV.

4. A respeito dos espíritos, é correto afirmar:


A] São sempre familiares, ligados às famílias por laços de ancestralidade.
B] São dotados de duas almas, a petit-bon-ange e a gros-bon-ange.
C] Escolhem as pessoas que querem conduzir ao longo da vida.
D] Podem ser frios e harmônicos ou quentes e negativos.
E] Suas ações são boas, com a intenção de ajudar seus familiares.

5. Os rituais são uma parte significativa da religião vudu e podem acontecer nos
espaços familiares ou de formas coletivas. Sobre esses rituais, analise as
assertivas a seguir e assinale V para as verdadeiras e F para as falsas.
[ ] Os rituais podem ser conduzidos por qualquer pessoa da comunidade
vudu.
[ ] Nas cerimônias, são prestadas homenagens e evocados espíritos.
[ ] A dança e a música são elementos centrais das cerimônias, pois
desempenham papel de atração.
[ ] O transe vivido por vuduístas durante as cerimônias indica a presença
de espíritos quentes com más intenções.
[ ] Os ritos de morte têm por objetivo auxiliar na passagem da petit-bon-ange
ao plano espiritual.
[ ] Os rituais vudus relacionam-se com a magia negra, pois evocam espíritos
para agir em prol das intenções das pessoas.
Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência correta.
A] F, F, V, V, F, F.
B] F, V, V, F, V, F.
C] V, F, V, F, F, F.
D] F, F, F, V, V, V.
E] V, V, F, V, V, F.
103

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão

1. Após analisar a história de Liliane, quais são os aspectos de família, local e


herança e como eles se relacionam?
2. Leia o trecho a seguir e explique, com exemplos, o significado desta citação:

É evidente o Vodu não ser um culto africano, ele não tem a dimensão cósmica
do modo africano nem do modo europeu, cristão. Com isso queremos dizer que
o Vodu é o resultado dessas duas dimensões, e outras mais, portanto, é modo
de viver próprio, é percepção original do mundo. (Handerson, 2010, p. 125)

Atividade aplicada: prática

1. Os rituais vudus podem ter diferentes objetivos e, para tal, configuram-se de


diferentes formas. Neste capítulo, você conheceu rituais de homenagens, de
morte e até de feitiçaria. Pesquise em livros e reportagens outras práticas rituais
e seus objetivos.

7
RELIGIOSIDADE AFRICANA
NO BRASIL
A presença africana no Brasil foi impulsionada da mesma forma que ocorreu no
restante da América: o tráfico atlântico trouxe forçadamente um grande número de
africanos para o país, para que fossem escravizados e explorados, a fim de garantir
lucros aos seus senhores. Os africanos que foram trazidos ao Brasil passaram também
pelo processo de desenraizamento, e aqui foram brutalmente oprimidos.
104

Nesse contexto é que se construiu a história da resistência negra no Brasil,


repleta de suicídios, fugas, motins, insurreições e revoltas. E, indo além, cimentando
cada um desses tijolos, essa resistência foi construída pela cultura. As músicas, as
danças, os festejos e as comidas são parte essencial dessa cultura, que serviam como
elementos de constituição identitária aos povos negros e, pouco a pouco, passaram a
se mesclar com elementos de origem colonial e nativa. Os elementos da cultura negra
formaram uma resistência ainda mais expressiva: tornaram-se parte, elemento
originário, do que se compreende por cultura nacional brasileira. Por conseguinte, a
resistência se faz na permanência.
Nossa afirmação não significa, no entanto, que todos os elementos culturais
africanos e afro-brasileiros foram incorporados em sua totalidade e abraçados pela
sociedade como um todo.
Ao adentrar um espaço que nos é mais familiar, propomo-nos a desvelar como
as matrizes africanas foram expressas nas religiões brasileira e de que maneira essas
religiões se inseriram em nossa sociedade.
O caminho que insuflamos aqui é um breve reconhecimento do contexto dessas
religiões, considerando que o contexto escravista brasileiro é de ciência mais
generalizada. Na sequência, exploraremos a configuração das religiões de matriz
africana no Brasil, com foco na umbanda, em geral, e no candomblé, em particular.

7.1 Africanos no Brasil


Para o Brasil, vieram africanos de diferentes grupos étnicos, mas em sua maioria
tiveram origem banto e nagô. Os nagôs, como foram chamados no Brasil, tinham
origem iorubá (em sua maioria, do reino de Daomé e Oyo).

Durante o último período da escravatura, os iorubás foram concentrados nas


zonas urbanas, então em pleno apogeu; nas regiões suburbanas ricas e
desenvolvidas do Norte e Nordeste, particularmente em Salvador e no Recife.
Ligados pela origem mítica comum, pela prática religiosa e semelhança nos
costumes, rapidamente os diversos grupos nagôs passaram a inter-relacionar-
105

se. Não perderam o contato com a África, dada a imensa atividade comercial
entre a Bahia e a Costa Africana. (Ribeiro, 1996, p. 130)

Entre os variados elementos constituintes da cultura iorubá (ou, como já


estudamos, das culturas), foi a religião o que mais se revelou e se disseminou entre os
africanos e seus descendentes que habitaram o Brasil. Por meio da religião iorubá, foi
conservada a relação com a memória e as tradições africanas, cultivando as raizes
culturais desses povos e contribuindo para a formação de uma identidade afro-
brasileira. As doutrinas e as crenças iorubás regularam suas atividades. Essa presença,
apesar de ocorrer em todo o território brasileiro, fez-se mais intensa na Bahia, onde a
adaptabilidade ocorria, mas se observou significativa fidelidade aos valores
específicos da cultura de origem.
Isso pode ser explicado em razão do grande número de iorubás na região e
mesmo pela maneira como essa religião influenciava as demais, ampliando-se sem
abandonar divindades e cultos. A religião iorubá perdurou no Brasil mesmo após a
“extinção” dos velhos africanos, pois se consolidou como referencial da cultura
africana entre aqueles que buscaram, pela permanência, resistir à imposição cultural
colonial, europeia e mesmo brasileira branca.
De acordo com Ribeiro (1996, p. 130), “a função social das práticas rituais
religiosas: impossibilitados de oferecer resistência legal a níveis econômico e político,
os africanos criaram seu espaço de resistência cultural e luta social, nas relações de
grupo estabelecidas em torno das práticas religiosas”.
Essa resistência não passou despercebida na sociedade brasileira. o Estado
apoiou a repressão às práticas religiosas não católicas e, mais do que isso, estimulou a
criação de irmandades católicas que incorporassem negros (escravos ou livres) para
que se afastassem das religiões originárias da África, o que evitaria a aproximação
identitária e a possível formação de grupos de resistência e de insurreições40.

40
De acordo com a historiografia, a experiência haitiana do final do século XVIII ecoou de forma assustadora no
restante da América. O temor de uma rebelião protagonizada por escravos que fosse bem-sucedida fez com que
diversos outros espaços na América buscassem formas de repressão cada vez mais violentas e que abarcassem
todos os aspectos de manifestação, fosse cultura, fosse política. Cânticos e danças africanos, que anteriormente
poderiam passar desapercebidos pelos senhores, começaram a ser observados com mais atenção e, sempre que
possível, suprimidos.
106

As irmandades foram essenciais para a disseminação da fé católica na América


portuguesa. E, desde o princípio da colonização, não eram apenas espaços para o culto
católico entre os colonos; objetivavam agremiar discípulos entre os escravos e seus
descendentes libertos ou livres. A mais antiga irmandade católica é do Rio de Janeiro
e foi fundada em 1639. A partir dela, diversas irmandades negras foram fundadas,
considerando o grande número de negros que residia no território (e só aumentava),
o preconceito que eles sofriam em outros espaços de fé e a possibilidade de
manifestarem suas devoções de forma legal nesses espaços. Participar de uma
irmandade lhes garantia a “boa morte” e, por consequência, funerais, enterros e
missas, assegurando a passagem para o mundo dos mortos.
Essas irmandades, mesmo carregando a insígnia católica e se dedicando a essa
fé, não estavam isentas de miscigenação e passaram a ser espaços onde o sincretismo
religioso se fez bastante presente. Algumas irmandades absorviam as designações de
nações; outras, junto às festividades católicas, realizavam celebrações aos orixás e,
nesses espaços, forjavam-se alianças entre as
crenças africanas e a católica. A liberdade da qual esses espaços usufruíam os
tornavam atrativos aos negros, que não necessariamente deixavam suas crenças, mas
as ressignificavam41.
Mesmo nesses espaços, percebemos a permanência iorubá, com mais força, e de
outros grupos étnicos africanos, firmando essa resistência, que se colocou como parte
indissociável da cultura brasileira. Segundo Ribeiro (1996, p. 134), “A ancestralidade
africana determina significativamente a constituição da identidade nacional brasileira,
apesar da negação de fato”.

PRESTE ATENÇÃO!
Reflexo da importância da cultura iorubá no país foi o ato do governo estadual do Rio
de Janeiro, que, em 2018, tombou a língua iorubá como patrimônio imaterial do estado
(Rio de Janeiro, 2018).

41
Saiba mais sobre as irmandades negras consultando o verbete Irmandades”, em: Schwarcz; Gomes (2018, p.
268-274).
107

7.2 Umbanda e candomblé


De acordo com os estudos sobre as religiões de matriz africana no Brasil, elas se
organizam em duas vertentes: o candomblé42 e a umbanda. A terminologia candomblé
é utilizada para designar cultos e orações que envolvem danças religiosas e profanas.
A terminologia umbanda indica, por sua vez, o desenvolvimento em contexto urbano
e a presença de influências católicas e kardecistas.
Os cultos religiosos, os rituais mágicos e as danças sempre fizeram parte da vida
dos africanos no Brasil. Essas práticas, influenciadas por outras crenças, deram origem
ao candomblé no país. Sua origem é localizada em 1830, no Engenho Velho (BA), onde
três mulheres negras passaram a conduzir cultos e rituais, proibidos pelas autoridades,
de forma oculta. A disseminação desses rituais assumiu alguns aspectos diferentes em
cada um dos locais de credo, e cada um desses candomblés particulares foi designado
como uma nação.

A identificação das nações de candomblé baseia-se no reconhecimento do


idioma utilizado: nomes dos deuses, alimentos e roupas, cânticos rituais e
histórias apresentando elementos do idioma ewe, indicam tratar-se de nação
jeje; se em vez de ewe, usam-se elementos do iorubá, sua identidade é ketu e
nagô. (Ribeiro, 1996, p. 111)

Angola, Jeje, Nagô, Ketu e Caboclo são as cinco nações candomblés no Brasil.
Além da questão linguística, há uma ordenação do conjunto de divindades e sua lógica
hierárquica particular em cada uma das nações. No entanto, por ser uma divindade
local, ameríndia, o caboclo é a divindade ancestral primordial de todos os brasileiros,
pois foi o primeiro a ocupar esse solo.
Alguns outros povos, não apenas de origens africanas, contribuíram para a
mistura que resultou no candomblé: povos muçulmanos e malês tiveram significativa

42
O candomblé original é conhecido como candomblé de caboclo. Na região de Pernambuco, no entanto,
desenvolveu-se uma modalidade específica de candomblé, com locais de culto e alguns rituais próprios, que se
trata do candomblé de xangô.
108

participação na constituição dos cultos candomblés, com elementos de sua cultura


incorporados nos cânticos, nas línguas, na designação das divindades etc.

Assim, a tradição Candomblé se constrói no final do século XIX e, a partir daí,


começa a ocorrer o processo de legitimação baseada numa antiguidade
(re)encontrada ou (re)inventada. [...] Não são, em momento algum,
transculturações puras ou simples; são expressões e cargas culturais de certos
grupos que viveram encontros aculturativos intra e interétnicos, tanto nas
regiões de origem quanto na acelerada dinâmica de formação da chamada
cultura afro-brasileira. (Handerson, 2010, p. 114)

O reconhecimento do candomblé ocorreu de forma parcial no Brasil, e não sem


sofrer preconceito. No século XX, como afirma Parés (2016), alguns terreiros e símbolos
foram valorizados e vistos como elementos essenciais da identidade nacional, pois
apresentavam uma parte da herança africana que construiu o Brasil. Esse projeto de
construção da identidade nacional, baseado na ideologia de mestiçagem e democracia
racial, contudo, não abarcava o todo. Enquanto alguns terreiros recebiam esse
reconhecimento, o controle e a perseguição a muitas outras casas de santo não apenas
continuava, como crescia. Parés (2016) compreende esses movimentos como um
conflito entre o ideal de modernidade e o perfil conservador das elites nacionais43.
A umbanda, por sua vez, tem matriz africana, mas resulta do encontro de
diversas origens étnicas e religiosas. Os ritos e os espaços de preces e oferendas contam
com imagens cristãs, budistas, africanas, indígenas (nativas americanas), ciganas, de
crianças, marinheiros e pretos velhos. Junto aos cânticos a orixás ocorrem orações
cristãs. Essa mistura de credos não implica a descrença nos antigos rituais africanos,
tampouco no espiritismo kardecista. Trata-se do resultado de um processo de
adaptação e reconstrução pelo qual passam diversas culturas, a fim de se replicar e se
manter em diferentes tempos e lugares.

43
Essa tensão e as questões de legalidade e ilegalidade que envolvem a prática do candomblé no Brasil são
discutidas no artigo de Parés (2016).
109

As manifestações de religiões africanas eram proibidas no Brasil, mas as danças,


os batuques e as músicas, assim como as confrarias e as cerimônias mortuárias, eram
permitidos e possibilitavam encontros nos quais as pessoas trocavam suas memórias
e experiências e relembravam suas tradições. A espiritualidade era manifestada em
espaços católicos, de modo que essas muitas dimensões – a espiritual e a profana, a
africana e a europeia, a iorubá e a kardecista – mesclaram-se, dando aos ritos, mitos e
símbolos novos significados. Surgiu assim, na década de 1920, a umbanda.
A prática ganhou força com a Revolução de 193044 e durante o governo Vargas,
pois representava a valorização da cultura nacional em um momento em que a política
pregava o nacionalismo. Durante a ditadura civil-militar (196A- 1985), a umbanda
obteve reconhecimento oficial e foi legitimada como religião, demonstrando um forte
vínculo com o Estado-nação brasileiro.

IMPORTANTE!
De acordo com o art. 5º da Constituição Federal, encontram-se entre os direitos
fundamentais dos cidadãos a liberdade de consciência e de crença. Tal norma garante
o culto religioso para todos os brasileiros, de acordo com sua crença. A garantia
implica, ainda, a proteção de locais, símbolos e representantes sagrados de cada credo.
Mesmo protegidas por leis, as religiões de matriz africana são alvo de preconceito no
país e, por muitas vezes, vítimas das mais atrozes violências. A fim de conscientizar a
população da importância da defesa da liberdade religiosa, no dia 21 de janeiro é
celebrado o Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa. A escolha da data é um
memorial à lembrança de lyalorixá Mãe Gilda, que, no ano 2000, faleceu após seu
terreiro ser atacado e ela e outros seguidores serem agredidos (Brasil, 2019).
Destacamos, ainda, que mesmo com uma legislação definindo a liberdade de
culto e com os movimentos de conscientização a respeito desse direito, as religiões de
matriz africana continuam sendo as principais vítimas de intolerância e violência

44
A Revolução de 1930 foi um movimento oposicionista à política presidencial existente no Brasil, que
privilegiava os estados de Minas Gerais e de São Paulo, bem como suas economias. O movimento foi liderado
por Getúlio Vargas, que, então, assumiu o governo do país, quando teve início a Era Vargas. É característico da
política desse período o esforço pela valorização dos elementos de origem brasileira, que vieram a contribuir
com o sentimento nacionalista no país.
110

religiosa no Brasil. Apenas no Rio de Janeiro, entre 2012 e 2015, por exemplo, mais de
70% dos casos de atos violentos registrados no Rio de Janeiro foram infligidos contra
praticantes da umbanda e do candomblé (Puff, 2016). Nesse mesmo estado, foi
identificado um crescimento das denúncias contra esse crime no ano de 2020
(Mendonça, 2020).

7.3 Mitologia candomblé


Nesta seção, apresentaremos os elementos que compõem a prática da religião
candomblé, trazidos da África, absorvidos das religiosidades nativa-americana e
europeia, além dos já criados dentro dessa religião afro-brasileira.

7.3.1 As cerimônias e a família de santo


As festas e as cerimônias candomblés ocorrem no barracão45 – uma construção ao
fundo ou um dos cômodos da casa. O barracão é retangular, com poucas portas e
janelas. Ostenta um chifre de boi, um arco ou uma quartilha de barro sobre a porta
principal, homenageando a divindade protetora da casa. Pode haver, ainda, uma cruz
de madeira sobre a porta. Pelo barracão são dispostas cadeiras e poltronas para receber
os visitantes ilustres. Em um dos lados, há um cercado de madeira destinado aos
tambores e atabaques – importantes objetos do rito candomblé46. Do lado oposto aos
instrumentos, encontra-se o altar com imagens de santos e outros objetos, símbolos de
religiosidades variadas. Ao centro, ocorrem as danças.

No chão do barracão ou no lugar onde acontecem as celebrações, será


cerimoniosamente plantado, antes da instalação, o Axé, concentrando a força
vital da própria casa e da comunidade. Ligando o piso ao teto, como símbolo de

45
Em casas comuns, o barracão era localizado aos fundos e coberto com palmas verdes, ou era utilizada a sala
de visitas.
46
Assim como no vudu, no candomblé os instrumentos tambor e atabaque têm local de destaque e são
considerados mais do que instrumentos, pois são dotados de almas. No candomblé, são considerados seres com
personalidade e podem até ser batizados.
111

união do mundo dos vivos, aiê, ao dos orixás, orum, será erguido o poste
central, chamado de “poto-mitan”, no Vodu do Haiti. (Handerson, 2010, p. 143)

Essa passagem da obra de Handerson revela mais do que descrições do espaço


ritual candomblé. Compreendemos, a partir daqui, que os adeptos dessa religião
creem nos orixás. A seguir, serão apresentados os principais.
Os rituais e as cerimônias são conduzidos pela convencionalmente chamada
família de santo47. Os filhos e as filhas são iniciados no candomblé, e deles se esperam
obediência e cooperação. Com o tempo, esses “aprendizes” vão ganhando mais
responsabilidades e posições de controle. Para essas posições, é indispensável a
confiança pessoal e religiosa (conhecimento profundo do candomblé e dos trabalhos
realizados nas cerimônias) e o sigilo (referente às informações de membros do culto e
dos detalhes das liturgias).
Após anos de treinamento, as filhas ou os filhos podem assumir a função de
mãe ou pai de santo, tornando-se a principal autoridade espiritual e moral da
comunidade.
Handerson (2010) recorre ao antropólogo Luis Nicolau Parés para explicar o
que significa e como ocorre a iniciação dos filhos e das filhas de santo:

A iniciação de adeptos para sua consagração às divindades constitui


uma das características centrais do Candomblé e comporta uma
mudança do papel e status do indivíduo em relação ao grupo social. [...]
podemos dividir o processo de iniciação em três estágios: separação,
transição (oposição, marginalidade ou liminaridade) e posterior
reintegração social. (Parés, citado por Handerson, p. 147)

Dessa forma, podemos entender que adentrar a comunidade candomblé e, mais


do que isso, fazer parte dos rituais implica que a pessoa renuncie sua função social e
aceite uma nova, com responsabilidades perante a religião.

47
As famílias de santos são encabeçadas por pais ou mães de santo, sem isso implicar uma estruturação
diferente. Ambos são dignos do mesmo respeito e poder na comunidade candomblé. Os pais e as mães de santo
representam o mesmo que os houngan no vudu haitiano.
112

7.3.2 Deuses e orixás


Na religião candomblé, acredita-se em um deus supremo, Ôlôrún48. Esse deus
supremo dialoga com a figura do deus cristão, onipresente, responsável por toda a
criação e superior às demais divindades. Na hierarquia divina candomblé, abaixo de
Ôlôrún encontram-se os orixás ou santos, que são espíritos ancestrais. São muitas as
divindades presentes no panteão candomblé, e grande parte delas tem
correspondentes (ou similares) entre os santos católicos, embora algumas
nomenclaturas possam ser diferentes, dependendo do estado em que se pratica a
religião. Handerson (2010) apresenta as divindades em sua obra e, na sequência,
veremos algumas delas de acordo com sua descrição:

▪ Xangô – Divindade que representa tempestades, raios e trovões. Na


aproximação com o catolicismo, pode corresponder a Santa Bárbara ou a São
Pedro.
▪ Ogum – É o deus do ferro, da metalurgia e da guerra. Por ser relacionado a
ferramentas com foice, machado, enxada, é também protetor das lavouras. Na
atualidade, assumiu o cuidado também de mecânicos e motoristas. Na
aproximação com o catolicismo, seria Santo Antônio.
▪ Iemanjá – É a divindade das águas e talvez a figura mais conhecida fora dos
cultos candomblés. Na aproximação com o catolicismo, seria Nossa Senhora da
Conceição.
▪ Oxum – É a deusa das fontes e das correntes de água. Oxum, assim como
Iemanjá, aproxima-se à Nossa Senhora da Conceição49.
▪ Exu – É o senhor das encruzilhadas e dos lugares perigosos do mundo. No
universo católico, é o diabo. Não é, de fato, um orixá, mas sim um intermediário
entre os seres humanos e os orixás.

48
Olôrún é a nomenclatura nagô. Nas demais, o deus é chamado Zaniapombo.
49
É importante reforçar que as duas crenças, candomblé e católica, são diferentes, e apresentam
particularidades. Não há necessidade de um correspondente para cada uma das divindades nas duas religiões.
Da mesma forma que é possível que um santo(a) corresponda a mais de um orixá.
113

Exu é uma das entidades mais populares do candomblé, e seu nome é utilizado
em diferentes situações, como é possível observar a seguir:

Quando se diz despachar o Exu, esse verbo está sendo utilizado no sentido de
enviar, mandar. Ele é o embaixador dos mortais, é o mensageiro. Tem por
objetivo realizar os desejos dos homens, sejam maus ou bons. Assim como
pode interceder junto aos orixás para o mal, também pode fazê-lo para o bem.
Depende daquela pessoa que pede a sua intercessão. (Handerson, 2010, p. 144)

IMPORTANTE!
Assim como na religião iorubá, no candomblé o axé é um elemento de grande
importância. No candomblé, pode ser designado como uma força invencível, mágica
e sagrada, que está presente em todas as divindades, mas não apenas nelas. O axé é a
força vital dos elementos naturais e de todos os seres. Contudo, é importante
compreender que, para estar presente nos seres não divinos, depende de rituais e
encantamentos para ser incorporado.

As práticas e os ritos candomblés buscam, em alguma medida, estabelecer o


equilíbrio na relação entre orixás e seres humanos. No que diz respeito ao axé, esse
equilíbrio pode ser compreendido pelas condições de corpo fechado e corpo aberto. O
corpo fechado é aquele imune ao mal, pois cumpre suas obrigações religiosas, o que
lhe garante saúde e equilíbrio do axé. O corpo aberto, por sua vez, é o que está
momentaneamente sujo, que pode ter perdido o axé, por meio da menstruação ou de
relações sexuais. Esse corpo está enfraquecido e suscetível às práticas religiosas
voltadas ao mal, a exemplo de feitiços e magias (vulgar e erroneamente conhecidos
como macumba) que objetivam infligir o mal e perturbar ainda mais o equilíbrio das
pessoas.

INDICAÇÃO CULTURAL
114

Para conhecer mais sobre a mitologia orixá, recomendamos a obra Mitologia dos
orixás, de Reginaldo Prandi. Nessa obra, o autor apresenta um compilado de 301 mitos
sobre orixás e sobre o sistema iorubá, junto a uma coleção de imagens de rituais.

PRANDI, R. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

7.3.3 Orixás e praticantes


Como podemos observar, duas referências teóricas predominam na análise
apresentada do vudu e do candomblé: os estudos de Ribeiro (1996) e de Handerson
(2010). A tese de Handerson tem por objetivo compreender como essas duas religiões
se estabeleceram e se propagaram na América. Indo além, Handerson dedica parte de
sua análise às aproximações entre os cultos das duas religiões.
Essa aproximação, conforme Handerson (2010), reforça-se por três elementos
principais:

1. possessão – ritual no qual as divindades tomam posse dos corpos dos


seguidores, utilizando-os como instrumento de comunicação entre os mortos e
os vivos;
2. individualidade das divindades – não são todos que serão possuídos, apenas
aqueles escolhidos por elas;
3. oráculos e mensageiros – Ifá e Exu (respectivamente, oráculo e mensageiro) são
divindades presentes nas religiões originais africanas e em suas versões
americanas.

Essas similaridades dos cultos, em ambas as religiões, têm o objetivo de


aproximar vivos e mortos; estes últimos são responsáveis por resolver problemas,
conceder graças, curar, dar consolo, entre tantas outras atribuições, por meio de sua
sabedoria e de seu axé. Destacamos que essas práticas ditam o tom das religiões de
matriz africana ao evidenciar a importância da ancestralidade e da profunda conexão
entre esses dois universos: vivos e mortos, divino e sagrado.
115

SÍNTESE
A presença africana no Brasil foi maciça desde meados do século XVII, por conta do
violento processo de tráfico de pessoas e escravidão. As diversas formas de resistência
escrava deixaram marcas importantes na constituição da identidade brasileira e dessa
cultura. As manifestações de religiosidade apresentam-se como um dos principais
elementos dessa resistência.
Neste capítulo, começamos o estudo a respeito dessas religiosidades,
conhecendo a umbanda e, com mais profundidade, o candomblé.
Exploramos como essas duas religiões se organizaram e se difundiram no país
e, na sequência, as particularidades da mitologia candomblé: ritos, instituições,
divindades e relações entre divindades e seres humanos, vivos e mortos.

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO

1. Analise as afirmativas a seguir a respeito da presença africana no Brasil e suas


formas de resistência.
I. Os africanos escravizados no Brasil eram todos de origem nagô ou
iorubá.
II. As memórias e as tradições iorubás foram resgatadas no Brasil e serviram
à construção da identidade negra.
III. As formas de manifestações religiosas não católicas não foram
compreendidas em sua resistência e autorizadas pelo Estado.
IV. O candomblé e a umbanda são religiões de matriz africana, mas contam
com importantes elementos do catolicismo e do espiritismo em suas
práticas.
Estão corretas as afirmativas:
A] Apenas I.
B] I, III e IV.
C] II, III e IV.
D] II e IV.
116

E] Apenas IV.

2. Sobre a umbanda, é correto afirmar:


A] É um sistema religioso do período colonial brasileiro, resultante do
sincretismo.
B] Constituiu-se a partir de elementos do catolicismo, do espiritismo, do
budismo e de religiões africanas e indígenas.
C] É uma das vertentes do candomblé, com práticas voltadas à magia negra e à
macumba.
D] Foi fortemente combatida pelo Estado brasileiro desde sua conformação na
década de 1920.
E] É aceita pela população brasileira porque, mesmo carregando elementos
africanos, afasta-se da cultura negra.

3. A respeito das divindades candomblés, analise as assertivas a seguir e assinale


V para as verdadeiras e F para as falsas.
[ ] Os praticantes do candomblé são devotos das mesmas divindades
existentes no panteão iorubá.
[ ] Existem divindades que representam elementos da natureza e outras
compreendidas como mensageiros entre os dois mundos.
[ ] Todas as divindades candomblés são inspiradas nos santos católicos.
[ ] Exu é o orixá representante do mal e responsável pelas ações que
infligem dor e sofrimento às pessoas.
[ ] No panteão candomblé, há um deus supremo e, abaixo dele, um grupo
de orixás aos quais as pessoas são devotas.
Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência correta.
A] F, F, V, V, F.
B] F, V, V, V, F.
C] F, V, F, F, V.
D] F, F, F, V, V.
E] V, V, F, V, F.
117

4. O comando das cerimônias candomblés é feito por pais ou mães de santo. Sobre
a condução e as cerimônias, é correto afirmar:
A] As famílias de santo são definidas em conjunto e são responsáveis por toda
uma nação candomblé.
B] Os filhos e as filhas de santo podem assumir os cultos em caso de ausência
de pais e mães de santo.
C] Dos membros da família de santo são exigidas a confiança pessoal e religiosa
e o sigilo.
D] Os pais e as mães de santo são divindades e fazem parte do panteão
candomblé.
E] As cerimônias candomblé são conduzidas apenas pelos pais de santo, que
são aqueles capazes de incorporar os orixás.

5. Analise as afirmativas a seguir a respeito da relação entre as pessoas e os orixás.


I. O axé é repassado pelos orixás aos homens de corpo fechado, dignos de
receber essa graça.
II. Apenas pais e mães de santo podem evocar feitiços e magias do mal
como parte das cerimônias nos barracões.
III. A possessão é a forma de os orixás utilizarem os vivos como instrumento
de comunicação entre as duas dimensões.
IV. Exu é uma divindade menor, pois não é considerado orixá, mas é o
responsável pela comunicação entre vivos e mortos.
V. As cerimônias no barracão são as únicas formas de conexão pessoas e
seus orixás.
Estão corretas as afirmativas:
A] I e II.
B] I, III e IV.
C] III, IV e V.
D] II e IV.
E] III e IV.
118

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão

1. Qual a importância da cultura como elemento de resistência no contexto


escravista brasileiro?
2. O trecho apresentado a seguir traz elementos de uma cerimônia candomblé.
Após a leitura, reflita sobre as similaridades de símbolos e significados entre o
candomblé e o vudu.

No chão do barracão ou no lugar onde acontecem as celebrações


cerimoniosamente plantado, antes da instalação, o Axé, concentrando a força
vital da própria casa e da comunidade. Ligando o piso ao teto, como símbolo de
união do mundo dos vivos, aiê, ao dos orixás, orum, será erguido o poste
central, chamado de “poto-mitan”, no Vodu do Haiti. (Handerson, 2010, p.
143).

Atividade aplicada: prática

1. A possessão é uma prática de grande importância na tradição candomblé, no


entanto, é vista com bastante preconceito pela comunidade externa. Nesse
ritual, as divindades tomam posse do corpo de seus fiéis e os utilizam como
instrumento de comunicação entre as dimensões dos vivos e dos mortos. Sobre
essa prática, faça um estudo de caso e procure conversar com membros da
comunidade candomblé para compreender como é o rito, a fim de eliminar
possíveis preconceitos.

8
119

FEITIÇARIA NO BRASIL
DO SÉCULO XIX
No capítulo anterior, debruçamo-nos sobre os elementos fundamentais da constituição
da religião candomblé. Apresentamos e analisamos aspectos referentes à mitologia e à
ritualística candomblé para que fosse possível identificar a maneira como essa religião
compõe a cultura nacional e é praticada até os dias atuais. Contudo, não apenas o
candomblé e a umbanda, na condição de instituições, são representantes da
religiosidade africana no país.
Considerando o contexto em que a africanidade se constituiu no Brasil e o modo
como foi aceita, perseguida, combatida e assimilada, propomos, agora, a análise de
alguns casos da história do Brasil, no século XIX, nos quais a religiosidade africana,
sob o aspecto do que foi entendido como feitiçaria, impactou a sociedade brasileira.
Serão três os casos abordados. O primeiro, um estudo de Adrian Bernardo
Moraes Lima (2016), explora a relação entre feitiçaria e curandeirismo. O segundo, um
artigo de Luiz Alberto Couceiro (2016), analisa as relações entre feitiços e insurreições
em Itu. Por fim, no terceiro, pelo estudo de Cristina Tramonte (2016), poderemos
compreender como feiticeiros, curandeiros e benzedores atuavam em Santa Catarina
do século XIX.
Esses estudos, a nosso ver, permitirão tirar a religiosidade africana do espaço
mítico e abstrato e compreender sua lógica e seu funcionamento na sociedade
brasileira.

8.1 Feitiçaria e curandeirismo 50

Na década de 1830, um grupo de escravos cativos de engenhos da região do oeste


paulista contratou um velho negro, Joaquim Mina, para auxiliá-los a matar seu senhor.

50
O conteúdo desta seção foi elaborado com base no artigo de Lima (2016).
120

João da Mina comprometeu-se, mediante o pagamento, a cuidar de tudo e dar-lhes


uma arma para que executassem seu senhor. Na segunda visita feita pelos escravos,
Joaquim Mina lhes deu a arma, garantiu que a ação não falharia e que, em poucos dias,
mandaria um ajudante à fazenda onde eles trabalhavam.
Os capatazes da fazenda, no entanto, estranharam a movimentação e
prenderam os escravos que consideraram ansiosos. Postos à prova e castigados, os
escravos entregaram o plano de insurreição e, mais do que isso, afirmaram estar sendo
coordenados pelo negro liberto, Joaquim Mina, que vivia na região. O caso foi levado
à delegacia, e as investigações sobre Joaquim Mina envolveram muitos depoentes.
Médicos, fazendeiros e moradores da região depuseram contra Joaquim Mina.

É conhecido como turbulento e insubordinado, e como por seu exemplo vicioso


e contaminador de escravos, é capaz de os desmoralizar a ponto de os tornar
incorrigíveis. [...] qualquer cidadão de bem na cidade poderia confirmar as
acusações que pesavam sobre aquele indesejável indivíduo, pois este vivia
dizendo, com assustadora ousadia, que se orgulhava “de ser o centro de uma
guerra sistemática contra os homens de raça branca”. (Lima, 2016, p. 113)

Finalizadas as investigações, concluiu-se que Joaquim Mina, um africano já


idoso, de fato, liderou e orientou o plano de assassinato do senhor de engenho Antônio
Joaquim Rodrigues, oferecendo a seguinte arma aos escravos: um pauzinho entalhado,
de um palmo e meio de comprimento, envolto em linhas brancas e pretas e com um
pedaço de vidro incrustado. A arma usada para dar início à insurreição fora um objeto
mágico.
A história de Joaquim Mina começa na África, passa pelos tumbeiros e pelos
trabalhos forçados em uma fazenda, até que conseguiu comprar sua alforria. Já liberto,
seguiu trabalhando na mesma fazenda até o momento em que foi preso por injúria.
Isso porque respondeu de forma verbalmente violenta a uma vizinha que o acusou de
ser feiticeiro. Para ele, um grande insulto.
Joaquim era curandeiro. Essa prática foi aprimorada ao longo dos anos, ao tratar
as enfermidades de seus conviveres de cativeiro usando saberes tradicionais africanos.
121

A atuação dos curandeiros objetiva a proteção da saúde física e mental daqueles que
os consultavam. Serviços pelos quais recebiam bons pagamentos.
Sob a perspectiva africana e afrodescendente, a escravidão e todos os encalços
que ela contempla eram uma gravíssima moléstia sofrida por esse povo. Buscar um
sacerdote-curandeiro era uma das soluções encontradas pelos cativos. E um dos
principais instrumentos utilizados por esses curandeiros era o nkisi .

Basicamente, um nkisi era constituído de uma figura antropomórfica talhada


em madeira [...] a figura tinha que ser levada a um nganga para que ele pudesse
colocar força vital no amuleto. Eram introduzidas na figura de madeira [...]
substâncias medicinais de origem orgânica ou mineral. Compostos
medicamentosos eram preparados com elementos do corpo humano (cabelo,
unha), de animais (peles, dentes, ossos, patas, olhos) e da natureza (raízes,
folhas, cascas, sementes, além de terra e variados tipos de minérios). O
preparado era então fechado na cavidade com uma tampa de material
refletivo, geralmente vidro ou metal. O nganga terminava de confeccionar a
figura com ornamentos e, em alguns casos, pintando sua face. Com a figura
pronta ele conduzia um ritual específico a cada situação a fim de invocar os
espíritos tutelares. Desse modo, o sacerdote-curandeiro buscava o auxílio das
divindades e dos antepassados para controlar e combater as forças maléficas
que causavam transtornos na vida de seus consulentes. (Lima, 2016, p. 121)

Essa descrição permite compreender que Joaquim Mina forneceu um nkisi aos
seus consulentes, que deveria ser enterrado em um dos caminhos utilizados pela
vítima, para que então se transformasse em uma cobra e o picasse. O objetivo, no
entanto, não era a morte do senhor Rodrigues e o início de uma insurreição, mas sim
a libertação dos escravos que haviam procurado Joaquim Mina como um curandeiro,
e não como um feiticeiro, pois o objetivo dele não era infligir o mal.

8.2 Pai de santo e insurreição escrava 51

51
O conteúdo desta seção foi elaborado com base nos estudos de Couceiro (2016).
122

No século XIX, o Estado brasileiro temia que insurreições escravas assumissem


proporções tão grandes quanto à ocorrida no Haiti, a fim de evitar e perseguir
quaisquer tipos de reunião de negros, escravos ou libertos, em especial as que
consideravam possível o uso da magia causar malefícios ao sistema escravista.
Quando se ouviam indícios de uma possível organização de escravos ou de uma
presença espiritual de grande influência, já eram iniciadas contenções e investigações.
Foi isso que ocorreu em 1854, na região de Itu, quando se soube que, sob a
influência do Pai Gavião – entidade que incorporava o grande mestre do terreiro –,
uma significativa insurreição de escravos tomaria parte em vários engenhos
coordenadamente. A rebelião aconteceria nas cidades de São Roque, Campo Largo e
Itu, todas com grandes contingentes de escravos, mas nas quais homens livres que
fossem seguidores dos Filhos das Trevas – o grupo de seguidores do Pai Gavião –
também poderiam tomar parte.

As informações eram de que estes pertenceriam a vários senhores e estar-se-


iam comunicando de uma forma que eles e aquelas autoridades ainda não
haviam descoberto. Foi por esse motivo que o Correio paulistano enviou um
“correspondente” que acabou descobrindo a existência de Pai Gavião, de seus
“filhos”, do tal “plano” e das “reuniões” ou “sessões” comandadas por aquele.
(Couceiro, 2016, p. 212- 213)

A repressão teve início com a prisão do negro José Cabinda, que recebia o Pai
Gavião e liderava o grupo religioso cujos adeptos eram chamados filhos das trevas. Essa
prisão e o interrogatório que a seguiu tiveram por objetivo desmoralizar José Cabinda
e as crenças e rituais que ele representava. Isso porque, como se podemos observar no
trecho citado, a organização dos escravos e ex-escravos era feita nos encontros
religiosos. Os espaços de crença assumiam papel político.
Nos cultos, os escravos levavam ao Pai Gavião suas angústias e seus
sofrimentos e esperavam da divindade, que estava incorporada em Cabinda, caminhos
e orientações para que encontrassem melhores condições de vida. As investigações e
123

os estudos desse caso levam a crer que o nível de reclamação e de insatisfação


extrapolou o aceitável para os senhores e capatazes, de tanto que os escravos
depositavam sua confiança no Pai Gavião em busca de uma solução. E tal solução veio
em um plano de insurreição escrava, que deveria derrubar os senhores locais.
Para o sucesso desse movimento, encantamentos, orações e rituais foram
dedicados. Pai Gavião manejava objetos, utilizava algumas substâncias e gritava
palavras de ordem. Ações ritualísticas foram confundidas com feitiçaria. A crença nos
poderes de Pai Gavião não era circunscrita apenas aos escravos. Membros da elite local
também acreditavam nesses poderes, mas, com o intuito de descredibilizá-los, não
assumiam tal crença.
A insurreição foi suprimida antes mesmo de começar, quando foi preso José
Cabinda e foram entregues os planos de motim.

8.3 Medicina alternativa 52

A religião iorubá, assim como outras diversas praticadas na África, tem na cura um de
seus pilares rituais. A conexão com a natureza, o uso de plantas e minerais para a cura,
a evocação de deuses e espíritos, os cânticos e os encantamentos, em muitos casos,
tinham como principal objetivo a cura, física e espiritual, das pessoas. Nesse contexto
religioso é que se fortaleceu a figura do curandeiro.
Essa figura foi replicada na América e esteve presente em todas as regiões de
matriz africana. Entretanto, no Brasil, essas religiões e suas práticas, por muito tempo,
foram condenadas e perseguidas. O estudo de caso apresentado por Cristina Tramonte
(2016) explora a atuação dos curandeiros em Desterro, atual cidade de Florianópolis, e
a perseguição e o preconceito sofridos por eles.
Para compreender esse espaço em particular, a autora destaca a importância do
sincretismo na região, evidenciada na combinação das práticas de cura.

Essas expressões do catolicismo popular praticadas pelos negros são


fundamentais para compreender a origem da formação das religiões afro-

52
O conteúdo desta seção foi elaborado com base nos estudos de Tramonte (2016).
124

brasileiras em Desterro, atual Florianópolis. O Cacumbi, por exemplo,


caracteriza-se pela intercalação de temas católicos com o uso de palavras
africanas, o que permanece na formação do sincretismo religioso afro-
brasileiro. A contribuição das manifestações do catolicismo popular em
Florianópolis ocorreu principalmente no sentido de abrir caminhos à expressão
religiosa dos negros, mais tarde diversificada e autônoma em relação à Igreja
Católica, como o Candomblé e alguns segmentos da umbanda. (Tramonte,
2016, p. 248)53

Como já mencionado, a religiosidade africana no Brasil apresentou-se com


aspecto terapêutico, voltada à saúde psicológica e física. Mais tarde, no entanto, esse
aspecto desvelou a face filosófica e espiritual das religiões africanas e suas variações.
Em Desterro, os pobres não podiam arcar com os custos exigidos pela medicina
alopata e, quando enfermos, procuravam benzedeiras que os tratavam com rezas e
ervas. Os médicos alopatas só eram procurados quando o uso das ervas medicinais e
os rituais de cura não faziam qualquer efeito.
Os profissionais atuantes nessa medicina alternativa, contudo, eram vistos
como charlatões, e sua procura era associada à ignorância das pessoas mais pobres. Na
sociedade de Desterro, as práticas médicas eram norteadas por um código de conduta
que não apenas deixava de contemplar a medicina alternativa, africana e indígena,
como também a penalizava com multas. Essa política reforçava as intenções, até
mesmo econômicas, das elites (segmento no qual se concentravam os médicos), o que
impulsionou, também, a perseguição às benzedeiras, aos curandeiros e aos feiticeiros
que tratavam a população com métodos alternativos.
Nesse contexto, causas de doenças nunca eram investigadas pela perspectiva
psicossomática, apenas as causas cientificamente comprovadas eram consideradas nos
tratamentos da medicina tradicional. O olhar excludente dessa medicina contribuía
ainda mais para o preconceito com curandeiros e benzedores, que viam, em muitos

53
Esse trecho faz remissão, também, às irmandades católicas negras, que acabaram por se tornar importantes
espaços de sincretismo religioso.
125

casos, “causas espirituais”54 para as doenças e se dedicavam a tratá-las com a mesma


medida que eram tratadas as causas físicas.
Em Desterro do século XIX, esses grupos de “curadores” eram bastante
diferenciados entre si. Entre os benzedores não havia negros, o que tornava a prática
mais bem aceita pela sociedade. Os negros, usando as mesmas ações fitoterápicas,
eram nominados curandeiros ou feiticeiros.

Os benzedores são vistos com simpatia e benevolência, retratados como


integrantes de variadas camadas sociais dos centros urbanos, adeptos de uma
prática conciliadora que evita conflitos com a medicina oficial. [...] Assim, não
ameaçando os campos de domínio e o poder material e sobrenatural, podem
sobreviver como grupo atuante. [...] Igual condescendência e incipiente
reconhecimento não são creditados aos denominados “feiticeiros e
curandeiros” geralmente oriundos do grupo negro. (Tramonte, 2016, p. 257)

Observamos, então, que, mais do que uma dúvida quanto à eficácia e à


seriedade das práticas de cura, o que se questionava era o executor dessas práticas. Em
uma sociedade na qual o preconceito com africanos e seus descendentes, bem como
com os indígenas nativos, era premente, reconhecer-lhes habilidades e, mais do que
isso, garantir-lhes espaço de atuação e convívio com as demais classes era uma ação
proibitória.
O fato de os três grupos exercerem a medicina da mesma maneira
(medicamentos terapêuticos naturais, rezas e cantos) e com o mesmo objetivo (a cura)
os afasta em apenas um aspecto: a sociedade de Desterro não avaliava se curandeiros,
benzedores e feiticeiros atuavam para o bem ou para o mal, mas sim se estavam
alinhados com o credo católico e, também, se eram brancos.

54
As causas espirituais, claramente, não correspondem apenas aos aspectos que hoje consideramos
psicossomáticos. Tal abordagem de cura tinha uma visão mais ampla do que o estudo das causas físicas, que,
hoje sabemos, não são as únicas a resultar em doenças. Essa perspectiva, no catolicismo, pode ser encontrada
como medicina teológica.
126

Trata-se de compreendera base cultural que lhes deu origem e as práticas


diferenciadas que daí advieram, cuja diversidade é exatamente sua riqueza. [...]
O que podemos destacar, isto sim, é que a repressão, principalmente a policial,
intensificou-se quando se tratava das religiões afro-brasileiras, praticadas por
negros a princípio e depois por não negros. (Tramonte, 2016, p. 261)

INDICAÇÃO CULTURAL
Apresentamos, aqui, três dos dezenove casos presentes na obra Religiões negras no
Brasil: da escravidão à pós-emancipação, organizada por Valéria Costa e Flávio Gomes.
Recomendamos essa leitura para o conhecimento de diversas manifestações do
candomblé, da umbanda e de outras crenças de origem africana no território brasileiro.
COSTA, V.; GOMES, F. (Org.). Religiões negras no Brasil: da escravidão à pós-
emancipação. São Paulo: Selo Negro, 2016.

SÍNTESE
Neste capítulo, analisamos três casos nos quais as crenças religiosas de origem
africana, assim como os saberes culturais trazidos por esses povos, foram utilizadas no
Brasil e compreendidas por meio de preconceitos e interpretações equivocadas.
No primeiro caso apresentado, acompanhamos a história de Joaquim Mina, cuja
prática, que previa a cura dos males sofridos pelo grupo de escravos que o procurou,
foi interpretada como feitiçaria e intenção de fazer o mal. Nessa história, é interessante
destacar a escolha dos papéis de vítima para os senhores de escravos e de vilões para
os escravos e para aqueles que buscaram ajudar na resistência.
O segundo caso, por sua vez, traz a atuação do Pai Gavião – entidade
incorporada por José Cabinda – como articulador de uma grande
insurreição de escravos na região do oeste paulista. A atuação do Estado merece
destaque, nesse caso, ao compreender a necessidade de descredibilizar o líder religioso
(assim como as crenças candomblés) como único modo de desarticular a insurreição.
No último caso apresentado, voltamos às práticas de cura e seus usos na
sociedade de Desterro no século XIX. Com essa análise, inferimos a forma como os
127

rituais de cura eram percebidos pela sociedade, com foco maior em quem os praticava
do que na prática em si.
Os casos apresentados integram o imenso repertório de histórias da
religiosidade africana no país, mas que detonam dois relevantes pontos: (1) a presença
dos elementos culturais africanos em diferentes espaços e contextos da história de
nosso país e (2) a resistência na aceitação dessa cultura como importante em nossa
sociedade.

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO

1. A respeito da prática das figuras do feiticeiro e do curandeiro, assinale a


alternativa correta:
A] As duas figuras têm a mesma função, mas nomes diferentes em alguns
lugares.
B] A diferença na atuação não se relaciona às figuras, mas a quem encomenda
a ação.
C] Feiticeiros têm conexão com divindades, e curandeiros utilizam a natureza.
D] Feiticeiros atuam para infligir o mal, e curandeiros atuam para solucionar
problemas.
E] As duas figuras atuam em vítimas escolhidas por seus clientes, a fim de
ajudá-las ou prejudicá-las.

2. Sobre o caso de Joaquim Mina, analise as assertivas a seguir e assinale V para


as
verdadeiras e F para as falsas.
[ ] Joaquim Mina inspirou e liderou a insurreição escrava contra o senhor
Rodrigues.
[ ] Joaquim Mina conquistou sua alforria ao ganhar dinheiro praticando
feitiçaria nas fazendas.
[ ] Joaquim Mina era um curandeiro e utilizava seus saberes para livrar os
clientes de mazelas.
128

[ ] A cultura e a religião africana eram compreendidas, nesse contexto, como


resistência escrava.
Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência correta:
A] F, F, V, V.
B] F, V, V, V.
C] V, F, V, F.
D] F, F, F, V.
E] V, V, F, V.

3. A insurreição no oeste paulista foi articulada:


A] pelos pretos livres.
B] pelos feiticeiros da região.
C] pelos escravos e por Pai Gavião.
D] pelo pai de santo do terreiro.
E] pelos escravos curandeiros.

4. Sobre benzedores, curandeiros e feiticeiros em Desterro, analise as assertivas a


seguir e assinale V para as verdadeiras e F para as falsas.
[ ] Os três grupos exerciam as mesmas práticas.
[ ] Os benzedores não eram perseguidos por serem brancos.
[ ] Curandeiros e feiticeiros faziam rezas e cantos durante os tratamentos,
assustando os pacientes.
[ ] Benzedores tratavam apenas as dores e as doenças cujas c eram físicas.
[ ] Os três grupos sofreram discriminação e foram perseguidos pela polícia.
Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência correta:
A] F, F, V, V, F.
B] F, V, V, V, F.
C] V, F, F, F, V.
D] F, F, F, V, V.
E] V, V, F, F, F.
129

5. A medicina alternativa praticada pelos curandeiros e benzedores:


A] utilizava rezas, ervas e plantas nos tratamentos.
B] dependia da validação dos profissionais formados em medicina.
C] era aplicada forçadamente nos pacientes.
D] dependia da crença dos pacientes para serem eficazes.
E] valia-se de técnicas científicas e corroboradas por médicos.

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão

1. Qual a necessidade de descredibilizar José Cabinda?


2. Considerando as práticas terapêuticas apresentadas no caso d« quais os pontos
positivos e negativos da medicina alternativa da medicina tradicional?

Atividade aplicada: prática

1. Pesquise a respeito de tradições terapêuticas de origem africana que ainda são


praticadas no Brasil.

9
RELIGIOSIDADE
INDÍGENA NO BRASIL
Ao longo desta obra, analisamos a função social das religiões, seus métodos de estudo,
o universo da religiosidade africana e suas manifestações na África e na América,
sempre priorizando algumas religiões em particular, compreendendo a inviabilidade
de estudar o todo. Destacamos que essas religiões veem o mundo de maneiras
130

diversas, mas sempre buscando um entendimento abrangente, no qual os aspectos


mundanos e divinos se complementam.
Seguindo o caminho proposto para essas reflexões, nos últimos capítulos, ao
explorarmos as manifestações africanas percebemos como as tradições africanas –
cultura e história – encontraram maneiras de se adaptar às realidades haitiana e
brasileira, dando-lhes continuidade. Evidenciamos, também, como tais religiosidades
(e demais traços da cultura africana) tornaram-se parte constituinte dessas culturas
americanas, não apenas se adaptando, na condição de africanas, mas se
ressignificando, como americanas.
No entanto, para pensar a constituição cultural brasileira, especialmente as
manifestações de religião, há outro(s)grupo(s) protagonista(s): os indígenas.
Nosso intuito, contudo, a esta altura de nossos estudos, não é tratar de todas as
particularidades da religiosidade dos diversos povos indígenas da América.
Entretanto, entendemos que, ao pensar nas religiosidades de nosso país, é impossível
não os mencionar, principalmente a fim de compreendermos essa participação na
construção da cultura nacional brasileira.
Vamos, então, introduzir alguns conceitos da cosmologia indígena americana,
visando identificar traços de familiaridade com o que consideramos cultura e
religiosidade americana. Reforçamos que, tendo em vista a imensa diversidade étnica
e cultural, selecionamos apenas dois elementos dessa cosmologia: (1) a visão de
mundo; (2) a figura de liderança. Esses dois elementos, no entanto, ajudam-nos a obter
uma visão ampla do universo religioso indígena.
Por fim, examinaremos um estudo de caso do povo guarani, por meio do qual
conheceremos um aspecto da religiosidade e a relação que essa etnia traz com a
atualidade social indígena do Brasil. A escolha desse caso justifica-se pela
compreensão, dentro de uma etnografia, de uma visão ampla da comunidade k
indígena.

9.1 A perspectiva indígena do universo


131

Assim como no estudo das religiões africanas, é difícil, na América, delimitar uma
crença única ou de manifestação mais forte em todo o continente. No entanto, algumas
similaridades são encontradas na forma como vários povos espalhados por toda a
América compreendem o universo e as relações entre as diferentes dimensões dele.
Essas similaridades podem ser observadas nos mitos de origem e nas escolhas de
anciãos para orientar os povos e conduzir as práticas espirituais, como veremos a
seguir.

9.1.1 A origem e as almas


Para compreendera cosmologia nativo-americana, por meio de uma perspectiva
antropológica, analisamos o artigo de Denise Gomes (2012), no qual a autora se dedica
a investigar as constituições estéticas dos povos ameríndios.
A perspectiva explorada pela autora reflete o entendimento de que os nativos
americanos compreendem uma relação social entre os seres humanos e os seres não
humanos, que ela caracteriza como sociocosmológica. Dessa sociedade, fazem parte os
seres humanos, os espíritos da floresta, os deuses, os animais, os espíritos dos mortos,
os mestres dos animais, os fenômenos naturais e mesmo alguns objetos, todos dotados
de almas, considerados pessoas, componentes do universo e orientadores de seus
movimentos. “Estes diferentes seres são dotados de consciência e intencionalidade e
se percebem como humanos, tendo as suas próprias casas, roças e outros atributos
culturais da vida humana” (Gomes, 2012, p. 135).
Nessa concepção de universo, os corpos (humanos ou de animais) são apenas
“roupas” que cobrem as almas.

Os mitos nos quais esta ideia de transformação se baseia indicam que humanos
e animais tinham no princípio uma origem comum ou humanidade ancestral,
mas esta foi perdida. Hoje, embora conservem a mesma essência, sua
alteridade é dada pela forma. Oakdale descreve que em tempos míticos, de
acordo com os Kayabi, os humanos, os animais, os espíritos e, ainda, os objetos
não se distinguiam, sendo que aqueles que viviam no segundo céu eram
132

simultaneamente animais e pessoas. Este modo de existência, no qual todos os


seres do cosmos viviam em harmonia, terminou quando estes perceberam que
eram diferentes uns dos outros. (Gomes, 2012, p. 135)

Por essa passagem, é possível compreender dois aspectos da religiosidade


nativo-americana: (1) a origem comum de todos os seres, o que deve implicar o
respeito e a preservação de todos em mesma escala; e (2) a mitologia de origem, que
indica, como em outros casos, não só a origem, mas o momento em que tudo começou
a mudar, dando fim à harmonia.
Alguns sistemas de crenças e mitos apresentam um universo menos horizontal,
no qual há uma hierarquia mais bem definida entre os seres divinos, os humanos e os
elementos naturais. Essa hierarquia pode ser reconhecida no cotidiano, nos assuntos
mundanos e até mesmo nos julgamentos morais, ainda que não sejam explícitas nos
mitos de origem. Contudo, nessa hierarquia, mantém-se o respeito pelo universo,
compreendendo que a preservação é essencial para a harmonia e para a vida.

9.1.2 Os xamãs
Nas mitologias indígenas, os xamãs (ou pajés) são as pessoas que conseguem desvelar
os corpos e ver diretamente as almas dos seres. Eles têm a capacidade não apenas de
identificar os seres, mas também de interagir com as boas almas e com os espíritos
predadores. Esses espíritos não têm a mesma origem que os demais seres e nem
consciência e intencionalidade.
A interação dos xamãs com esses espíritos ocorre durante os sonhos e tem a
intenção de evitar que os espíritos predadores ajam contra os demais seres. Também
nos sonhos, os xamãs fazem o que chamam de jornadas de cura, buscando solucionar
problemas que estejam afetando as pessoas.
Os xamãs ainda são os responsáveis pela preservação do sagrado dentro das
comunidades indígenas. Comandam os rituais de cura, de homenagem e de prece
dentro das comunidades. Esse comando justifica-se por eles terem a habilidade de
fazer a comunicação entre as diferentes dimensões, bem como por concentrarem os
133

saberes e a história desses povos. São eles que resguardam as tradições e a fé da


comunidade.

9.2 A terra sem mal 55

A colonização do Brasil foi especialmente traumática para as populações indígenas


que aqui viviam. Os processos de escravização e de catequização, além da
disseminação de doenças, entre tantos outros fatores, foram responsáveis pela morte
de um número bastante expressivo de indígenas, bem como pelo desenraizamento
cultural desses povos, que se viram forçados a assumir posturas europeias e cristãs em
um primeiro momento. Na sequência, por perderem seus espaços de vivência e de
cultura, eles foram absorvendo os modos de vida de colonizadores, contribuindo para
a construção de uma cultura nacional, que, em alguma medida, incorporou elementos
indígenas
Assim como a africana, a cultura indígena é observada em diversos aspectos da
cultura brasileira – alimentos, práticas terapêuticas, relacionamento com a natureza,
entre outros. Não foi diferente com a religiosidade. No entanto, a religiosidade não
aparece na cultura nacional de modo institucionalizado, mas sim em práticas e hábitos
e na maneira de encarar o mundo em algumas situações.
O povo guarani ficou conhecido pelos colonizadores da América como um
grupo em constante fuga. Para os guaranis, entretanto, esse movimento de fuga era
diferente do observado pelos europeus. O “estar em movimento” revelava (e ainda
revela) a maneira como veem o mundo e o que buscam em sua existência: a procura
da terra sem mal.
Essas migrações tinham causas variadas (econômicas, demográficas,
interétnicas) e se justificavam pela nova compreensão do espaço vivido e do papel
social pelo guarani. Após a colonização, o subjugo e a catequização56 os guaranis

55
O conteúdo desta seção foi elaborado com base na obra de Rosalvo: Machado (2018).
56
Na colonização, seja da América portuguesa, seja da América espanhola, os nativos foram escravizados e,
quando compreendidos como “bons selvagens”, submetidos a processos forçosos de aculturação e de conversão
religiosa nas encomendas e reduções jesuíticas. A resistência a esses processos é evidente no movimento
contínuo aos quais se submeteram os guaranis.
134

começaram a ressignificar o espaço, para o qual a acepção de lugar de morada se


mostra mais ampla do que o lugar de residência. A morada devia trazer-lhes segurança
e paz, e não apenas fixação.
Nesse cenário, mais do que as diversas causas que podiam levar à migração,
compreendemos que a motivação espiritual é o mais forte impulsionador desse
movimento. As pessoas que se dispunham a abrir os caminhos, resistindo à opressão
colonizadora, poderiam encontrar um espaço de terra fértil, prosperidade e segurança,
onde teriam felicidade. “Desse modo, a busca da Terra sem mal adquire as feições de
um misticismo religioso, transformando os deslocamentos em momentos de eclosão
social” (Rosalvo; Machado, 2018, p. 249).
Surgidas no contexto colonial brasileiro, essas caminhadas perpassaram
gerações e permanecem como elemento da cultura e da religiosidade guarani. A
procura de terra sem mal é a caminhada que levará ao paraíso.
O paraíso, para os guarani, poderia assumir muitas configurações: ser o lugar
de encontro com a mãe celestial, ser o local de reencontro com familiares, ser um lugar
de paz e distanciamento do homem branco ou de grupos rivais. Os diferentes perfis
desses espaços indicam que são lugares que, de fato, não existem.
Mais do que a terra sem mal, o misticismo apresenta-se na caminhada, durante
a qual os homens e as mulheres devem enfrentar provações de todos os tipos e aqueles
que as superarem e se mantiverem fiéis à crença guarani terão as direções reveladas.
Os espaços por onde passam os guaranis devem ser cultivados e humanizados. E a
caminhada deve ser conduzida pelos líderes espirituais desse povo, garantidores da
manutenção dos modos de vida desejados pelas divindades.

Nesse contexto de sair em caminhada em busca da Yvy Marãe'y (terra sem


mal), coloca-se em evidência a importância dos orientadores religiosos, como
Nhanderu (nosso pai), Opyguá (pertencente à Opy), Karai (homem bendito,
sagrado), Nhandesy (nossa mãe), Kunha Karai (mulher bendita, sagrada), cuja
orientação guiava os passos do guarani na direção da terra sem mal que, a
princípio, tinham a sua localização indicada pela tradição como sendo o leste,
135

além do mar (Atlântico), porém, poderia ser em outra direção, como a região
norte. (Rosalvo; Machado, 2018, p. 246)

De acordo com a crença guarani, a terra sem mal pode estar em diferentes
lugares, mas seria um espaço guardado e protegido, onde existem animais e plantas, e
tal espaço inspira a fertilidade e a espiritualidade.
O lugar poderia estar no além-mar, fora da Terra, em um espaço celeste etc.
Todos esses possíveis lugares, todavia, eram de difícil acesso, de modo que a
caminhada deveria ser acompanhada por danças, orações e cânticos que
demonstrassem o fervor religioso que motivava os caminhantes.
O relato a seguir é da experiência de Curt Nimuendaju, do período em que ele
conviveu com o grupo guarani, no início do século XX:

depois de terem se recuperado e dominado razoavelmente o medo diante da


visão inusitada do mar, adentraram novamente as matas a beira mar,
levantaram uma Opy (casa ritual) retomando com todo fervor os rituais que
incluíam Jeroky (dança), Mboraei (cantar), e as Nhembo e (orações),
objetivando encontrar o caminho para a Yvy marãe y (terra sem males), através
da água. Durante a caminhada, procurando a terra sem males, eles são
acometidos pelo sentimento de frustração e com isso a convicção que a
destruição do mundo se aproximava é reforçada e que o mesmo é inevitável.
(Rosalvo; Machado, 2018, p. 251)

A visão do fim do mundo e o desfecho da caminhada são descritos na sequência:

A terra tinha desabado a Oeste e ardia em chamas. E logo uma inundação


ocorreria, portanto os indígenas do litoral deviam estar preparados para fazer
frente à catástrofe eminente. Então, construíram uma casa de madeira,
entraram nela e começaram a dançar e cantar enquanto a terra era inundada.
“Nosso pai” lhes recomendou “cuidem-se, para não ter medo” e eles resistiram
com coragem às águas que inundaram a terra. “A casa se moveu. Girou e
136

flutuou sobre a água, subiu e partiu. Finalmente chegaram à porta das esferas
celestes”. (Rosalvo; Machado, 2018, p. 251-252)

A narrativa permite observar três importantes elementos da crença guarani: (1)


a importância da conexão com as divindades e a ritualística necessária para tal; (2) a
abertura de caminhos desconhecidos para o alcance da terra sem males; (3) o
atendimento às preces por parte das divindades, o que vem a reforçara espiritualidade
do povo guarani.
O trecho a seguir apresenta a compreensão dos guaranis a respeito de sua
existência:

Então, a verdadeira vida está muito além das vicissitudes cotidianas, pois a vida
de um Mbya te e [...], aqui na terra, representa apenas uma fração da vida
verdadeira que se terá na terra perfeita e, por isso, a caminhada em direção à
morada divina. [...] o caminho se estende até onde seus pés conduzirem o
corpo. É sem fronteiras, pois a terra foi criada para ele caminhar e nhanderu
Tenonde (nosso pai primeiro) criou a terra caminhando. (Rosalvo; Machado,
2018, p. 251-258)

A caminhada guarani é, também, uma analogia à vida ou à existência dos seres


no plano terreno e à possibilidade de uma boa vida nesse plano, não
necessariamente no plano celestial. Viver bem na Terra, de acordo com a tradição,
consiste em usá-la conscientemente, respeitando a natureza, sob os princípios de
reciprocidade, e não sob o modelo de exploração econômica implantado pelos
colonizadores. A caminhada corresponderia a esse aperfeiçoamento, à iluminação, que
permitirá viver bem na Terra e até mesmo curá-la dos males sofridos com a prática dos
rituais57.

SÍNTESE

57
A prática desses rituais pode ser conhecida como ‘guaranizar”.
137

Neste capítulo, objetivamos fazer uma introdução ao rico universo cosmológico nativo
americano. Considerando a complexidade desse tema, mas sem descartar sua
importância na constituição cultural e religiosa americana, entendemos
necessária uma abordagem simples, porém representativa desses povos e dessas
categorias religiosas.
Em um primeiro momento, destacamos a perspectiva de universo das
comunidades indígenas americanas sob dois aspectos globalizantes: (1) as dimensões
mundanas e celestiais e como são percebidas; (2) a figura xamânica, responsável pela
ligação entre essas duas dimensões.
Na sequência, exploramos um rito guarani, de grande importância na
compreensão da religiosidade indígena brasileira no período colonial, bem como na
atualidade, considerando se tratar de um ritual que teve início no século XVII e, com
o passar dos séculos, ressignificou-se e representa de forma global a visão de mundo
desse povo indígena.

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO

1. A respeito da espiritualidade indígena americana, é correto afirmar:


A] Segue um sistema cosmológico similar ao iorubá.
B] Apresenta um panteão definido e louvado em todo o território americano.
C] Apresenta algumas similaridades entre os diferentes grupos, como a
existência do xamã.
D] Tem no xamã a figura que unifica as diversas crenças presentes no território.
E] Tem na natureza a divindade suprema que deu origem à Terra.

2. De acordo com a cosmologia indígena, é correto afirmar:


A] Todos os seres dotados de alma têm o mesmo valor.
B] Animais e objetos que têm almas são deificados pelos homens.
C] Há uma divindade original, o xamã, que é superior às demais.
D] Os espíritos ancestrais são evocados pelos xamãs para dar vida aos novos
homens.
138

E] O universo está em constante desequilíbrio pela presença de seres impuros.

3. Analise as assertivas a seguir e assinale V para as verdadeiras e F para as falsas.


[ ] A caminhada guarani era uma prática frequente do grupo desde sua
origem.
[ ] A procura pela terra sem mal pode refletir-se na busca por fertilidade e
segurança.
[ ] As migrações guaranis podem ser compreendidas em seu pragmatismo.
[ ] A caminhada guarani é conduzida por líderes espirituais e reforçada por
orações e cânticos.
[ ] O fim da caminhada é a transição dos indígenas para o mundo celestial.
Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência correta:
A] F, F, V, V, F.
B] F, V, F, V, F.
C] V, F, V, F, F.
D] F, F, F, V, V.
E] V, V, F, V, F.
4. São manifestações da religiosidade guarani:
A] a fuga dos colonizadores europeus e da catequização e os conflitos
interétnicos indígenas.
B] o cultivo e o respeito ao percurso caminhado e a entonação de cânticos para
a sobrevivência.
C] a conversão ao catolicismo e o cultivo e o respeito ao percurso caminhado.
D] a resistência à opressão europeia e os conflitos interétnicos indígenas.
E] a entonação de cânticos para a sobrevivência e a fuga dos colonizadores
europeus e da catequização.
5. Analise as afirmativas a seguir.
I. As migrações indígenas são eventos recorrentes na América, pois se trata
de povos caçadores e coletores.
II. As migrações guaranis foram as únicas formas encontradas para a
sobrevivência e preservação cultural desse povo.
139

III. As migrações guaranis foram ressignificadas ao longo da história,


adequando-se ao contexto vivido pelas populações indígenas.
IV. As migrações guaranis têm diversas causas, mas são motivadas e
conduzidas por sua religiosidade.
Estão corretas as afirmativas:
A] I, III e IV.
B] apenas III.
C] III e IV.
D] I e IV.
E] apenas IV.

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão

1. A respeito da cosmologia indígena americana, explique a dificuldade para uma


visão geral e comente as similaridades apresentadas.
2. Qual é a concepção de resistência presente no rito guarani de procura da terra
sem mal?

Atividade aplicada: prática

1. O estudo de caso guarani apresenta apenas um dos muitos rituais religiosos que
se replicaram e se adequaram no Brasil pós-colonização. Pesquise a respeito de
outros rituais que denotam a permanência da cultura indígena no país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O grande desafio do estudo das religiões e religiosidades é garantir uma análise


distanciada, tanto dos objetos em questão quanto de crenças particulares. Nosso
objetivo, nesta obra, foi adentrar em diferentes universos cosmológicos, conhecer
mitos e divindades e analisá-las sob uma perspectiva cultural, e não espiritual. Por esse
140

motivo, a combinação dos métodos histórico e antropológico apresentou-se como ideal


instrumentalização a esse processo de estudos e escrita.
Destacamos, mais do que a atenção ao método e ao distanciamento, o
aprofundamento em sistemas religiosos tratados, em âmbito gerai, como marginais e
que, mais do que parte das culturas e dos elementos constituintes da espiritualidade
dos povos em questão, assumem papéis políticos quando de sua manifestação e
permanência.
Assumidos os desafios dessa temática, esta obra foi organizada propondo o
seguinte caminho: a compreensão do objeto de estudos, os conceitos trabalhados e o
método de análise escolhido, para, então, adentrar no espaço das religiosidades que
podemos chamar de ancestrais. O primeiro olhar foi voltado à África e à constituição
de uma identidade cultural em torno dos elementos religiosos. Seguimos o destino dos
africanos para a América, voltando o olhar para a maneira como a espiritualidade
africana se colocou nesse espaço e como foi ressignificada. Por fim, tratando da
América, aproximamo-nos da religiosidade ameríndia, que, junto à africana e à
europeia, constituiu não apenas a religiosidade americana, mas também as culturas e
as sociedades desse continente.
Destacamos os conceitos de cultura e religião, perpassando por um repertório
clássico e moderno de autores que se dedicaram a discutir e a compreender esses
aspectos fundamentais da vida em sociedade. Fixamo-nos na proposta de definição de
cultura de Mércio Pereira Gomes (2017), a qual compreende um sistema que rege o
modo de pensar, as ações e também as relações para com os outros, sejam eles vivos,
sejam eles mortos ou divinos (o que nos aproxima das religiões). O estudo do conceito
de religião, por sua vez, contemplou, além da sua definição, a compreensão do modus
operandi e da função social. Também apresentamos os métodos de trabalho da
antropologia e da história, que, combinados, garantiriam a melhor análise possível dos
objetos de estudo.
Já no espaço africano, ressaltamos a constituição da identidade e da religião
iorubás. Optamos por uma explicação da regionalização e da compreensão histórica
do espaço em que os diversos povos iorubás habitaram. Essa análise histórica nos
permitiu compreender quais grupos e elementos culturais vieram a compor a
141

identidade iorubá, construída no século XIX com objetivos de preservação cultural e


proteção dos povos em questão.
Ainda na África, propusemos um estudo da mitologia iorubá: os mitos de
origem, o panteão iorubá e as relações entre divindades e seres humanos. Dando
sequência ao conhecimento desse universo religioso, apresentamos os ritos de
passagem e as práticas de magia e cura comuns nessa religião, por vezes, interpretados
erroneamente. E discorremos sobre a bruxaria e a feitiçaria, elementos que,
responsáveis por parte do preconceito sofrido pela religião, costumam ter mais
evidência.
Atravessando o Oceano Atlântico, demos espaço ao estudo histórico da
diáspora africana. Esse processo, que ocorreu por séculos e causou impactos graves na
identidade africana, no desenvolvimento socioeconômico do continente, assim como
nas vidas dos africanos e seus descendentes explorados na América, foi analisado em
sua conjuntura histórica, bem como cultural e religiosa, com destaque aos ritos e às
práticas de desenraizamento.
Iniciando o estudo das religiões de matriz africana na América, analisamos a
presença africana no Haiti e a resistência desse grupo social à opressão sofrida na
colônia francesa. Tratamos de um importante contexto histórico, a Revolução Haitiana,
e do protagonismo assumido pelos africanos e seus descendentes, bem como o papel
que a religiosidade exerceu nesse evento.
Ainda no Haiti, realizamos um estudo aprofundado da religião vudu,
começando com um estudo de caso datado de 2017, a fim de aprofundar a mitologia
vudu. Examinamos, então, os deuses, os espíritos, os rituais e a magia negra, à qual
costumeiramente se associa o vudu, mas que, na verdade, tem pouca
representatividade nesse sistema religioso.
Entramos no espaço brasileiro, onde verificamos religiões de matriz africana
institucionalizadas no país: a umbanda e o candomblé. Ao candomblé, por sua
historicidade, demos mais espaço e estudamos as cerimônias e as famílias-de-santo, o
panteão com deuses, espíritos e orixás, bem como a relação entre eles e os vivos.
142

Por meio de três estudos de caso, apresentamos outras práticas religiosas de


matriz africana não institucionalizadas. Essas práticas envolvem as temáticas de cura,
feitiçaria, possessão e insurreição.
Por fim, propusemos uma aproximação ao universo cosmológico indígena, a
fim de considerá-lo na construção da identidade religiosa americana em geral e
brasileira em particular. Após a análise de dois elementos considerados gerais para a
visão de mundo dessas comunidades (a perspectiva cosmológica e a figura xamânica),
destacamos um ritual guarani que expressa não só a visão de mundo dessa
comunidade, mas, principalmente, as formas de ressignificação cultural e religiosa no
espaço brasileiro.
Nosso percurso cultural e espiritual permitiu o conhecimento das religiosidades
africana e indígena sob os panoramas de construção e reconstrução aos quais foram
submetidas, de maneira a garantir uma aproximação com os elementos míticos e
simbólicos dessas crenças, bem como com sua função social e com o papel exercido na
resistência à opressão e ao subjugo.
Ao estudar as religiões africanas, na África e na América, e a religiosidade
indígena, foi possível ir além de seus panteões e de seus ritos e aprofundar seus
significados no contexto das comunidades historicamente marginalizadas.
Observamos, por meio desse estudo, que, entre as muitas funções sociais que
são praticadas pelas religiões, a pertença e o conforto se provam como elementos
fundantes da construção de identidades, bem como para sua manutenção. O aspecto
religioso dos povos aqui estudados se mostra essencial à sobrevivência deles.

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BIBLIOGRAFIA
COMENTADA
COSTA, V.; GOMES, F. (Org.). Religiões negras no Brasil: da escravidão à pós-
emancipação. São Paulo: Selo Negro, 2016.
A obra organizada por Costa e Gomes é de extrema riqueza para o estudo das religiões
de origem africana presentes no Brasil. Os organizadores apresentam um compilado
de estudos históricos, nos quais os aspectos cultural e religioso impactaram as
estruturas sociais brasileiras.
A obra é composta por 19 artigos que exploram as religiosidades candomblé,
umbandista, feiticeira, entre outras, por todo o território brasileiro ao longo do século
XIX. Nesses estudos, identifica-se o papel de resistência assumido pela religião, bem
como maneiras pelas quais esses elementos corroboraram a formação da cultura
nacional brasileira.

DALMASO, F. Heranças de família: terras, pessoas e espíritos no sul do Haiti. Revista


Mana, Rio de Janeiro, n. 24, 2018.
O artigo de Damaso apresenta um estudo que, em sua sutileza, é um bom primeiro
contato com a religião vudu. A partir de um estudo de caso, na cidade de Jacmel, no
sudeste do Haiti, que acompanha a família de Bina, é possível conhecer as diferentes
dimensões dessa religião: as maneiras como são entendidas as relações e os vínculos
entre pessoas e espíritos: os conceitos de terra, família e herança: os ritos familiares;
entre tantos elementos dessa religião, sem depender do entendimento da abstração,
uma vez que são apresentados dentro de um evento familiar.
148

ELLER, J. D. Introdução à antropologia da religião. Petrópolis: Vozes, 2018.


Para aqueles que se propõem a estudar as religiões pelo mundo, a obra de Eller é
indispensável. O autor apresenta conceitos da antropologia e métodos de estudo,
sempre trazendo exemplos e breves estudos de caso.
Ao explorar temas do campo religioso, como as crenças, os símbolos, as
linguagens, os mitos e as práticas, entre tantos outros, o autor apresenta religiões
americanas, africanas, asiáticas, neozelandesas e australianas, contribuindo de forma
capital para a construção de um repertório cultural, religioso e para a formação
antropológica do leitor.

GOMES, D. M. C. O perspectivismo ameríndio e a ideia de uma estética americana.


Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, v. 7, n. 1, p. 133-159, jan./abr. 2012.
Nesse artigo, a autora apresenta um panorama da compreensão de mundo dos povos
indígenas espalhados pela América e a maneira como essa visão foi expressa nas
produções materiais desses povos. É interessante, na leitura, identificar as
similaridades na visão de cada um dos povos.

GOMES, M. P. Antropologia. São Paulo: Contexto, 2017.


A obra de Gomes pode ser estudada como um manual de referência da antropologia.
Nela, o autor apresenta a ciência – objeto, objetivos e método – e comenta o trabalho
de pensadores que auxiliaram a constituir a área.

HANDERSON, J. Vudu no Haiti Candomblé no Brasil: identidades culturais e


sistemas religiosos como concepções de mundo afro-latino-americano. Dissertação
(Mestrado em Ciências Humanas) – Universidade Federai de Pelotas, Pelotas, 2010.
A tese de doutoramento de Handerson apresenta um panorama bastante amplo das
manifestações religiosas de origem (ou matriz) africana na América, combinando o
estudo dos processos históricos, das organizações sociais e das próprias religiões e
sistemas religiosos em questão.
A riqueza da abordagem verifica-se na compreensão de dois diferentes
sistemas, o vudu e o candomblé, e o modo como foram atuantes nas organizações
149

sociais americanas e, mais do que isso, protagonistas na preservação de identidades


africanas e afrodescendentes.

JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros: Toussaint L'Ouverture e a revolução de São


Domingos. São Paulo: Boitempo, 2010.
Na obra, exploram-se a função histórica da escravidão e a função social da opressão,
traçando uma análise ampla de todos os agentes sociais desses processos e do
protagonismo negro nas conformações social e cultural americana.

OLIVA, A. R. A invenção dos iorubás da África Ocidental: reflexões e apontamentos


acerca do papel da história e da tradição oral na construção da identidade étnica.
Revista de Estudos Afro-Asiáticos, v. 27, n. 1-3, p. 141-179, 2005.
Produto de sua tese de doutorado, o artigo de Oliva propicia a ambientação com o
universo iorubá ao apresentar e analisar a organização dos povos no Golfo da Guiné e
discorrer a respeito da construção intencional de uma identidade iorubá por parte dos
estudiosos, de forma que os estudos acabaram por sobrepor-se à realidade social
desses povos.
Enriquece a abordagem de Oliva o constante diálogo entre história e mitologia.
Este último, elemento fundamental da identidade iorubá.

RIBEIRO, R. I. Alma africana no Brasil: os iorubás. São Paulo: Oduduwa, 1996.


A obra de Ribeiro é referência nos estudos da cultura iorubá. Apresentada sob
perspectiva antropológica, na primeira parte a autora detalha a mitologia, assim como
uma série de aspectos geográficos e históricos que auxiliam a compreendera
sociedade.
Na segunda parte da obra, é apresentado um profundo estudo da diáspora
africana, além de considerações sobre como esses povos trouxeram de suas terras
elementos que se consolidaram na formação sociocultural brasileira.

ROSALVO, I. O.; MACHADO, A. Na estrada sem mal guarani: história, memória e


cosmologia. Faces da História, Assis, v. 5, n. 2, p. 244-261, jul./dez. 2018.
150

Esse artigo é revelador na compreensão da religiosidade indígena no Brasil. As autoras


escolheram um rito guarani que se constrói em um paralelo entre passado e presente,
desvelando as crenças, a concepção cosmológica e a visão de mundo desse povo.

RESPOSTAS

Capítulo 1

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. a
2. b
3. d
4. b
5. c

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão

1. Ao analisar a história dos povos africanos sob a perspectiva da violência sofrida,


tanto na África quanto nos espaços para os quais os africanos foram levados,
podemos compreender o “estado de guerra” e a função da cultura para esses
povos. Esperamos que você faça uma reflexão a respeito da manutenção e da
adaptabilidade da cultura desses povos, ou seja, sobre o que garantiu a
permanência deles.
2. Reflita sobre o fato de que um único aspecto cultural (a religião) pode ser
responsável por exercer a função principal da cultura, de acordo com o conceito
adotado para esta obra: a orientação da forma de viver das sociedades. A
reflexão pode perpassar as diferentes acepções de religião e as formas como esse
elemento se comporta e é usufruído dentro das sociedades.
151

3. A atividade explora a formação de opiniões e argumentos. Considere a acepção


de que as religiões passam por estágios evolutivos e que, em seu estágio mais
avançado, a razão assume posição de destaque em relação à fé, uma vez que
são descartados os elementos supra-humanos.
4. Você deve analisar diferentes métodos antropológicos apresentados no
capítulo, bem como o estudo histórico, a fim de compreender a escolha feita
nesta obra de combinar a etnografia com a história, opção que enriquece o
estudo, pois permite a análise dos detalhes e das particularidades das culturas
e religiões exploradas, sem deixar de lado a compreensão dos contextos em que
se formaram e dos impactos que causam nas sociedades em questão.

Atividade aplicada: prática

1. O trecho exposto na atividade faz parte também do corpo teórico do capítulo.


A afirmação sobre a qual se pede reflexão é bastante precisa ao firmar a
necessidade do humano na cultura, que não é feita de objetos ou escritos
aleatórios com valor em si, mas sim da apropriação desses e de outros
elementos (também da religião) pelas pessoas, exigindo o caráter de
humanidade.

Capítulo 2

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO

1. b
2. a
3. d
4. a
5. b
6. c
152

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão

1. As reflexões propostas por Woortmann (1978) permitem compreender que a


construção da identidade iorubá não foi proposta pelos povos iorubás, que não
se identificavam como um grupo identitário africano, mas apenas pelos
estudiosos.
2. O reino de Daomé, que se aliou aos europeus e, por meio de guerras com os
demais reinos e cidades da região, contribuiu com a escravização dos africanos
e com a diáspora desses povos.
3. A influência não ocorria por meio do domínio e subjugo das demais cidades,
mas sim pelo exemplo e pela disseminação de traços culturais. O modelo
político é um dos exemplos de influência, bem como a necessidade de legitimar
os demais governantes à dinastia de Ifé.

Atividade aplicada: prática

1. O exemplo citado pode ser a origem de Ifé. A mistura entre elementos


mitológicos (origem da Terra, deuses etc.) e históricos (listas dinásticas e relatos
orais) ocorre, em princípio, em razão de a religião ser característica essencial
desses povos.

Capítulo 3

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO

1. e
2. b
3. a
4. a
153

5. c

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão

1. A vida e a morte são marcos da passagem dos seres humanos pela dimensão
terrena. Os ritos, nascimento e morte, são feitos para celebrar esses marcos. No
nascimento, prepara-se o recebimento de um ser que estava na dimensão
espiritual e de lá traz mensagens e ensinamentos; na morte, comemora-se a
passagem por essa dimensão e prepara-se, quando é o caso, o falecido para a
vida ancestral.
2. A intenção da pesquisa é a compreensão do inconsciente coletivo e as
possibilidades de observações dos mitos de origem em diversos espaços.
3. É importante construir a relação com a quinta categoria apresentada pelo
antropólogo, na qual se explora a função da religião de garantir uma solução
aos problemas. O texto do capítulo nos traz essa reflexão a respeito do uso da
magia e oferece elementos para compreender como a solução apresentada
torna-se eficaz, em alguma medida.

Atividade aplicada: prática

1. Em uma sociedade cuja crença no poder das divindades é bastante forte e que
compreende a ação direta da magia em suas vidas, as pessoas se percebem como
parte dessa magia ao evocar os encantamentos, pois atuam como vetores para
essa manifestação.

Capítulo 4

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
154

1. e
2. b
3. d
4. d
5. c

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão

1. O modelo de cativeiro existente anteriormente na África não previa a


escravidão propriamente dita. Às pessoas apresadas ou compradas era
permitido o ingresso ao grupo social e a participação em alguma medida. Não
eram compreendidos como menores, tampouco eram privados totalmente de
liberdades e direitos. O modelo europeu, de forma mais agressiva, previa não
apenas a exploração como a desumanização das pessoas, que passaram a ser
tratadas como “coisas”, “peças”.
2. O caso iorubá deve ser considerado ao se analisar a existência ou não de uma
identidade africana. Do mesmo modo que os iorubás não se viam em uma
unidade identitária, tampouco agiam dessa forma. A África encarava a mesma
realidade: grupos com culturas e políticas diversas, autônomos entre si e sem
se organizarem sob a égide de uma identidade.

Atividade aplicada: prática

1. No trecho citado, a memória é apresentada como elemento de unidade étnica e


de resgate cultural. É a memória que permite a replicação das tradições e, assim,
sua sobrevivência. No caso da diáspora africana, foi a memória de sua história
e cultura, a replicação de suas tradições e a permanência do credo religioso que
permitiram não apenas a organização cultural e a adequação da cultura africana
na América, mas também levaram à organização da resistência.
155

Capítulo 5

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO

1. b
2. d
3. c
4. a
5. e

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão

1. Os dois principais elementos que devem ser explorados são a língua créole e a
religião vudu. A respeito do vudu, destacam-se: a importância de suas práticas
para a aproximação dos escravos, a busca por conforto e por objetivos comuns,
assim como a utilização dos espaços de rituais para a difusão de ideais
revolucionários e organização dos movimentos de resistência.
2. A miscigenação é um movimento involuntário de misturas étnicas e culturais.
Ela pode ser expressa por meio das variedades étnicas populacionais de uma
região (no Haiti, a presença de brancos, negros, pardos, mulatos etc.), bem como
da diversidade cultural que apresenta. No Haiti, dois elementos expressam a
miscigenação de forma evidente: a língua créole – resultado da mistura de
dialetos nativos, africanos e da língua francesa – e o vudu – religião sincrética,
resultante da mistura de credos nativo-americanos, africanos e
europeus(catolicismo).

Atividade aplicada: prática


156

Algumas das diferenças estão expressas no conteúdo do capítulo, ao explicarmos o


porquê o vudu pode ser compreendido de ambas as formas. É importante que se
reconheça que essa denominação não advém do reconhecimento formal de uma
religião ou de sua oficialização. A obra de Eller (2018), indicada na seção “Referências”,
contribui para essa compreensão.

Capítulo 6

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO

1. c
2. e
3. a
4. d
5. b

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão

1. Os três aspectos relacionam-se por meio dos vínculos entre pessoas, espíritos e
espaço. Nessa análise, é fundamental compreender que as experiências com
esses três aspectos não ocorrem separadamente. A compreensão de cada um
dos aspectos – família (laços consanguíneos, de afeto e de convívio entre
pessoas e entre pessoas e espíritos); terra (espaço de vivência e de manutenção
e serviço aos iwas); e herança (tudo aquilo que se transmite e que se partilha
entre gerações) – é necessária para a construção das relações mais completas
entre o todo.
2. O vudu é uma religião sincrética por essência. Não é possível defini-la como
mais próxima de uma ou de outra religião que “cedeu” elementos à sua
construção. A não existência de um mundo celestial, onde vivem os deuses, e
157

um terreno, dos homens, é um exemplo que denota essa particularidade,


considerando que, nas religiões originais que influenciaram o vudu, seja o
iorubá, seja o catolicismo, esses espaços são claramente delimitados.

Atividade aplicada: prática

1. O objetivo dessa pesquisa é conhecer a variedade dos rituais vudus. Podem ser
pesquisados rituais de cura, de auxílio na passagem de espíritos mortos em
desastres naturais, de realização de desejos (como amor e dinheiro), com a
atuação dos bokos, entre tantos outros.

Capítulo 7

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO

1. d
2. b
3. c
4. c
5. e

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão

1. O comparativo entre os cenários haitiano e brasileiro é bastante produtivo para


essa análise. Nos dois casos, os elementos culturais e religiosos contribuíram
para a formação identitária. No entanto, no Haiti verificou-se um avanço no
campo político, no qual a presença negra resultou em vitórias para a categoria,
bem como para o país. No Brasil, a força política dos movimentos negros foi
menos resolutiva, mas a cultura como elemento de resistência fortaleceu- se ao
158

longo do tempo, resultando na construção da identidade e culturas nacionais,


bem como em vários movimentos de contestação.
2. São muitas as similaridades entre o barracão e o pátio. Mas, no texto em
questão, o principal destaque é o poste, existente nas cerimônias das duas
crenças. Mesmo com nomes diferentes, esse símbolo tem a mesma função:
canalizar as energias e unir os mundos dos vivos e dos mortos. Nessa atividade,
outras similaridades apresentadas ao longo do capítulo podem ser indicadas,
como a possessão, os oráculos e o Exu, o uso dos tambores etc.

Atividade aplicada: prática

1. Para essa atividade, sugerimos uma atuação protagonista na construção do


conhecimento. A ideia é que seja consultada uma comunidade candomblé na
cidade em que você vive. A conversa pode ser com um pai ou uma mãe de santo
ou mesmo com membros frequentadores dos cultos que já presenciaram
possessões.

Capítulo 8

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO

1. d
2. a
3. c
4. e
5. a

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
159

1. A fé no pai de santo e em seus poderes “mágicos” movia os escravos da região,


que se reuniram em seu entorno em busca de melhorias em suas condições de
vida, da solução de suas aflições. Descredibilizar essa figura foi a maneira
encontrada para reduzir a fé e a unidade desse grupo.
2. Medicina tradicional: positivos – tratamento com bases científicas, investigação
de todas as causas físicas; negativos – não exploravam possíveis causas
psicossomáticas. Medicina alternativa: positivos – busca pelo tratamento mais
amplo, investigando causas não físicas e o uso de medicamentos naturais;
negativos – os tratamentos não tinham eficácia comprovada e as doenças
podiam piorar com a demora do tratamento adequado.

Atividade aplicada: prática

1. A pesquisa pode ser feita em meios escritos ou mesmo por relatos orais.

Capítulo 9

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO

1. c
2. a
3. b
4. b
5. c

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão


160

1. É importante que o contexto indígena americano seja compreendido na leitura


do capítulo. Isso quer dizer a variedade étnica e cultural, bem como a imensidão
do território ao qual se direciona o estudo. As similaridades que devem ser
comentadas são a concepção da presença de almas e de horizontalidade, a
importância igualitária de todos os elementos que compõem o cosmos e a
presença da figura xamânica em diferentes povos.
2. A resistência pode ser evidenciada em dois aspectos que compõem esse ritual.
A primeira, mais óbvia talvez, é a fuga. Os guaranis, por meio de seu ritual,
encontraram uma forma de se afastar não apenas de outras etnias que poderiam
ameaçá-los, mas, principalmente, da colonização europeia e do subjugo físico e
cultural ao qual foram submetidos. O segundo aspecto da resistência revela-se
nos elementos culturais: permanência, replicação e adaptação.

Atividade aplicada: prática

1. Em sites como o do Museu do índio (2021), do PIB Socioambiental (2021), assim


como em variadas literaturas e artigos acadêmicos, é possível conhecer a
respeito dos ritos de passagem, dos rituais funerários e das festividades
indígenas que ocorrem no Brasil na atualidade.

SOBRE A AUTORA
Lúcia Chueire é mestre em História pela linha de Espaço e Sociabilidades da
Universidade Federai do Paraná, onde também se graduou como bacharel e licenciada
em História. Na continuidade de seus estudos acadêmicos, realizou uma
especialização em história e cultura africanas e afro-brasileiras pelo Centro
Universitário Claretiano, e outra em Gestão, Produção e Promoção Cultural pela
Universidade Tuiuti do Paraná. Trabalha com pesquisa histórica e com a produção e
edição de obras didáticas de ciências humanas há 15 anos.
161

Todos os povos apresentam


elementos culturais formadores de
sua identidade. O estudo do universo
religioso, como parte indissociável da
composição cultural, permite acessar
a história desses povos e entender
as reinterpretações e ressignificações
que suas religiões sofreram e sofrem.
Amparada pelas perspectivas
teórico-metodológicas da antropologia
e da história, esta obra propõe uma
reflexão a respeito das religiosidades
africanas e de suas manifestações na
África e na América, em interação com
a cosmologia indígena americana.
Os conceitos de cultura e de religião
são interpretados à luz de suas funções
político-sociais, de modo a desabstrair
os sistemas religiosos do campo
estritamente espiritual e contextualizá-los
no espaço e nas relações sociais.

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