Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Para Boutaud (2011), “não se trata só de comer, mas também de saber comer
em comum, de ser visto comendo, sob o olhar dos outros. Todo o ambiente se torna um
cenário, a encenação da refeição, a encenação de si.” (BOUTAUD, 2011.pág. 1213).
O lugar social do sujeito é sempre questionado ou reforçado na mesa, a imagem que
construímos socialmente é cotidianamente atualizada na relação com o outro a partir da
mesa ou do local social da refeição. A comensalidade sempre está atrelada ao olhar do
outro, mesmo que o comensal não queira comer à mesa. Uma cena comum como uma
família comendo numa praça de alimentação de um shopping pode passar despercebida,
mas se é uma família de obesos certamente os olhares em volta serão diferenciados.
São muitos os filmes que retratam o lugar social do sujeito num almoço, as
interdições culinárias de uma cultura, o conflito de geração nos modos de comer, a gula,
o excesso ou o seu oposto, a anorexia e os transtornos alimentares. Assim como também
expõe com muita clareza e de forma caricata os sentidos atribuídos à gordura ou
magreza, ao refinamento ou à ausência de conhecimento das regras sociais, os conflitos
familiares presentes em um simples jantar, os conflitos causados pela fome ou pela gula,
pela carência de alimentos ou pela opulência, ou seja, são inúmeros exemplos para
pensarmos a comensalidade em suas diferentes vertentes e aplicações do conceito.
1
No filme “Falstaff”, de Orson Welles, um roteiro adaptado de “Henrique V”, uma das obras mais
famosas de William Shakespeare (1564-1616), temos a representação daquele que é considerado um dos
mais importantes monarcas ingleses. No início do filme ele ainda é o Príncipe Hal (interpretado por Keith
Baxter), herdeiro do trono da Inglaterra, ao lado do personagem principal, o cavaleiro bêbado e obeso Sir
John Falstaff (interpretado pelo próprio Orson Welles). Juntos os dois se divertem, correm riscos, bebem
ao lado de nobres e plebeus, aprontam e desenvolvem uma intensa relação. Quando Hal assume o trono e
se torna Henrique V, Falstaff pensa que irá obter vantagens junto ao monarca, mas a vida segue o seu
curso “natural” dos códigos sociais e os dois amigos se afastam. Não podem mais sentar na mesma mesa.
deles. Acreditamos que a comensalidade que é representada no cinema não é apenas
ficção, ela é a representação da realidade na tela.
Nos filmes também podemos ver uma cena típica de família contemporânea com
os todos os comensais nos seus celulares, ou uma cena da família tradicional com todos
na mesa, os jantares românticos e amorosos ou os conflitos familiares mais tensos e
dramáticos. Podemos ver também a comensalidade entre crianças, adolescentes, idosos
ou turistas de todas as idades, sempre de forma lúdica e aparentemente simples,
traduzindo a vida cotidiana em imagens que captam a essência dos relacionamentos
humanos, com toda a grandiosidade e fraqueza que estas cenas permitem. Sendo a
comida e os modos do comer à mesa algo que aparentemente passa despercebido na
narrativa, mas que foi construído de maneira meticulosa pelo diretor e o roteirista. A
cena do almoço familiar aparece de forma tão “natural” que esquecemos que tudo foi
feito em um estúdio com dezenas de pessoas em volta.
Um bom exemplo desta comensalidade familiar e cotidiana pode ser visto nos
filmes do cineasta japonês Iasujiro Ozu (1903-1963). Nos seus filmes, por trás da
simplicidade da vida cotidiana, Ozu mostra um conjunto de imagens que ultrapassa a
linguagem cinematográfica, da pura representação, e se confunde com algo
inconsciente, familiar, criando uma atmosfera que lembra o cotidiano de qualquer
família, capturando aquela atmosfera de prazer e tensão de cada encontro familiar. Ozu
trata de temas humanos comuns a todos nós, capturando de uma maneira muito sutil e
delicada a essência das alegrias e frustrações, interesses nobres ou mesquinhos, assuntos
omitidos ou proibidos, sempre revelando o cuidado ou a desatenção familiar em gestos
banais, enfim, ele fala de algo que é atemporal e comum nas relações familiares, os
afetos silenciosos (NOVIELLI, 2007).
O ritmo lento das cenas lembra o ritmo monótono do cotidiano, onde as coisas
aparentemente não mudam, permanecem do mesmo jeito por anos, com pequenas
mudanças imperceptíveis ao olho nu. Os assuntos cotidianos são naturalizados,
aparecem sob a forma de temas banais e corriqueiros, revelando as relações familiares
com toda a sua trama de afetos, compromissos e mágoas, amor e ódio, trazendo à tona
toda a generosidade e mesquinhez das relações familiares. Mas chama a atenção que
muitas cenas e diálogos marcantes das tramas acontecem em momentos de
comensalidade, em torno de um almoço ou jantar em família, num lanche no parque,
num restaurante que é frequentado cotidianamente ou nos momentos de comemoração,
na casa de um vizinho, amigo ou parente distante, ou seja, nos locais onde a vida real
acontece.
Um dos filmes clássicos de Ozu, intitulado “Era uma vez em Tóquio”, trata da
chegada dos pais que moram no interior e vão visitar os filhos na cidade grande após
muitos anos. Neste filme, Ozu nos mostra o papel central da comida e das relações
humanas em torno da mesa, revelando a generosidade, a avareza ou o descaso ao servir
um prato, do cuidado com o outro ao oferecer o que se tem de melhor ou oferecer
“qualquer coisa”, revelando sentimentos ocultos, às vezes dissimulados e às vezes de
uma sinceridade profunda. Oferecer comida pode ser um gesto de carinho ou apenas um
gesto formal e mecânico, e é isso que nos captura, a semelhança com aquilo que é banal,
que é tão familiar que nem parece cinema, parece a vida acontecendo na tela. Ao ver a
generosidade à mesa, ou o seu oposto, o gesto mecânico do filho que leva os pais para
jantar por pura formalidade, nós percebemos não o cinema, os atores, a trama, o roteiro
ou a locação, nós percebemos a nós mesmos, percebemos algo familiar e nos
reconhecemos naquela maneira banal que pode estar acontecendo neste exato momento
em alguma família. Uma cena tão humana que nem parece cinema.
De outro modo, com o advento dos canais a cabo, é possível que diferentes
pessoas, em diferentes países, gostem dos mesmos programas de receitas e atividades
gastronômicas e compartilhem pratos, receitas, dicas, e, por que não, o “convívio”
virtual à mesa. No Século XXI a comensalidade sai da mesa e vai para a tela da TV, do
computador ou para a palma da mão. Posso comer acompanhado estando só, ou posso
comer em grupo e conversar com uma pessoa do outro lado do planeta sem me
comunicar com o comensal ao lado. Os diferentes modos como a comensalidade se
manifesta cada vez mais incorpora as transformações da sociedade da informação. O
crescimento da indústria cultura em sua vertente gastronômica é visível, são muitos os
programas (em várias línguas) nos canais de TV à cabo para satisfazer todos os gostos.
Voltando aos dias atuais, para Ariès (1997), o ritual da mesa coloca em jogo
dois eixos fundamentais (horizontal e vertical) para a compreensão das relações sociais.
O eixo horizontal é aquele no qual a comunidade se encontra, voluntariamente ou não,
compartilha seus códigos, seus vínculos a determinados grupos, revela possibilidades de
interação, agradáveis ou não, come lado a lado e faz parte de um grupo sem muitas
distinções à mesa. Uma praça de alimentação de um shopping, ou uma loja de fast food,
como as lojas das redes MacDonald’s, Burger King, Subway ou Domino’s pizza, por
exemplo, criam certa indistinção entre os participantes e todos ali estão para comer sem
necessariamente querer conversar, se conhecer, ver ou ser visto, sem se preocupar com
as outras mesas do ambiente. Pode-se até compartilhar uma mesma mesa sem conversar
com a pessoa ao lado, pelo contrário, se alguém puxar conversa pode ser mal
interpretado.
O eixo vertical, pelo contrário, reforça as relações sociais ao expor claramente as
hierarquias, os lugares definidos, os papéis sociais, o reconhecimento dos códigos de
conduta, os gostos refinados, valoriza a grandiosidade das festas, dos banquetes
oferecidos aos chefes de estado, dos encontros políticos, artísticos, científicos,
empresariais, etc.. Os lugares no evento são muitas vezes pré determinados, as
conversas, as comidas, os olhares e as trocas que se estabelecem nessas ocasiões e os
contatos e negócios que são feitos, dão outro tom ao jantar. Ao compartilhar a mesa o
sujeito compartilha um lugar no jogo social e convém que ele saiba o seu lugar social e
a dinâmica do jogo, sob pena de ser mal interpretado e sofrer um desgaste caso se
comporte de forma inadequada. Os comensais estão ali para ver e serem vistos, para
ficar em exposição, para participar do jogo social e, preferencialmente, tirar vantagem
dele. Um jantar pode mudar o rumo da vida, da carreira profissional ou política, dos
interesses geo políticos de um grupo ou nação, enfim, o jantar é o lugar para fazer
contatos e fazer negócios, a comida é apenas um detalhe.
O ato de comer deixa de ser algo biologicamente significativo, a não ser que o
que se come possa gerar várias curtidas e comentários no Facebook ou no Instagram. A
noção de individualidade ou de comportamento em grupo também assume novos
contornos, pois as pessoas estão comendo juntas, mas cada uma pode estar conectada a
pessoas em lugares distantes da mesa, ou então, podem trazer pessoas distantes para
compartilhar o que está se passando na mesa. O caráter ritual e social da comida ganha
outro status e se afasta do compartilhamento tradicional e simbólico da comida.
Segundo Cyrulnik,
Por outro lado, o ato de comer isoladamente, fora do convívio social, também
sofre restrições e nem sempre é bem visto. Ao comer só o comensal cria para si uma
aura de restrição, de dificuldade de conviver com o outro, de impossibilidade de
convívio social, sendo inclusive chamado de anti-social, passando a ser visto com
preconceito e um certo desprezo. Para o senso comum, uma “pessoa normal” gosta de
comer em companhia de outras pessoas, gosta de compartilhar a mesa, ver e ser visto
socialmente. Compartilhar a mesa é sinônimo de compartilhar a vida, sem reservas, sem
nada a esconder, pelo contrário, comer com os pares é sinônimo de respeito mútuo.
A comensalidade no cinema
Todos os exemplos de comensalidade citados acima foram abordados de alguma
forma em filmes recentes. Outros exemplos de modos mais tradicionais de comer
também já foram explorados pela indústria do cinema, desde os modos de comer dos
homens das cavernas (no filme “A guerra do fogo”, de Jean Jacques Annaud), os
banquetes dos reis (no filme Vatel – um banquete para o rei”, de Roland Joffé) , a gula
dos padres medievais (no filme “O nome da Rosa, também de Jean-Jacques Annaud) , a
fome e a peste no mesmo período (no filme “O sétimo selo”, de Ingmar Bergman), os
rituais sociais da corte com suas regras rígidas de etiqueta (no filme “Ligações
perigosas”, de Stephen Frears), as tramas da corte e jogos de poder da corte europeia
(no filme Barry Lyndon, de Stanley Kubrick), os jantares entre amigos (no filme “Jantar
entre amigos”, de Norman Jewison), jantares entre mafiosos (nos filmes de Martin
Scorcese e Francis Ford Copola), prisioneiros (no filme nacional “Estômago”) ou nos
diferentes momentos da vida de uma criança que passa pela adolescência e entra na
universidade (no filme “Boyhood: Da Infância à Juventude, de Richard Linklater).
Todos esses momentos de comensalidade foram retratados nas telas e temos nos filmes
um bom acervo para perceber, identificar e analisar os modos como a comensalidade se
manifesta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS