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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE LETRAS

Ludmila Pereira de Almeida

METAPRAGMÁTICA, METADISCURSO E PERFORMATIVIDADE NO


SERIADO TODO MUNDO ODEIA O CHRIS

Goiânia - GO

2014
LUDMILA PEREIRA DE ALMEIDA

METAPRAGMÁTICA, METADISCURSO E PERFORMATIVIDADE NO


SERIADO TODO MUNDO ODEIA O CHRIS

Monografia de conclusão de curso apresentada


ao Curso de Graduação em Bacharelado em
estudos linguísticos da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Goiás como requisito
parcial à conclusão do curso.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Joana Plaza Pinto

Goiânia – GO

2014
AGRADECIMENTOS

A Deus, por ser minha base de tudo.

A todos os familiares e amigas/os pela compreensão sempre que estive ausente.

À professora e orientadora desta monografia, Prof.ª Dra. Joana Plaza Pinto, pela

dedicação, pela grande paciência, pelo profissionalismo, pelos questionamentos que me

fizeram crescer e descobrir novos olhares para o mundo.

As/Os integrantes do Grupo de Estudos Pós-Estruturalistas e Práticas identitárias que,

junto comigo, refletiram sobre questões de fundamental importância para o

desenvolvimento deste trabalho. E a todas/os as/os colegas que me auxiliaram nos

momentos de dúvida.

À Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás, especialmente às/os

professoras/es que de alguma forma contribuíram em minhas reflexões e para meu

crescimento ao longo do curso.

À Prof.ª Ms.Paula de Almeida Silva, ao Prof.º Ms. Wilton Divino da Silva Júnior e a

Prof.ª Dr.ª Kátia Menezes de Sousa, por aceitarem fazer parte de minha banca de

Bacharelado em Estudos Linguísticos.

Enfim, a todas/os que torceram ou não por mim.


Seja a mudança que você quer ver no mundo! [...] O ser
transcende a aparência assim que você começa a descobrir o
ser que há por trás de um rosto muito bonito ou muito feio, de
acordo com seus conceitos e preconceitos, as aparências
superficiais somem até simplesmente não importarem mais!

A Cabana
SUMÁRIO

RESUMO.........................................................................................................................6

INTRODUÇÃO...............................................................................................................7

1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA............................................................................12

2. DISCUSSÃO E ANÁLISE GERAL.........................................................................17

2.1. Todo mundo odeia o Chris, o Narrador em off e a


metapragmática.............................................................................................................17

2.2. Metadiscurso em Todo mundo odeia o Chris


.........................................................................................................................................25

3. RACISMO NO BRASIL E O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL..................27

3.1 Historicizando o conceito de racismo.....................................................................27

3.2. A construção do racismo no Brasil.......................................................................32

3.3. Racismo espirituoso................................................................................................38

3.4. Corpo negro e performatividade identitária........................................................43

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................49

REFERÊNCIAS.............................................................................................................52
RESUMO

Temos como principal objetivo analisar e discutir como se constituem as diferenças


sociais tanto no micro contexto do nosso corpus, o seriado Todo mundo odeia o Chris,
quanto no contexto macro, de uma sociedade colonizada como o Brasil. O seriado Todo
mundo odeia o Chris é baseado na história de vida do comediante norte americano
Chris Julius Rock III. A série conta a história de um menino negro, Chris, que vive com
sua mãe Rochelle, seu pai Julius, sua irmã Tonya e com seu irmão Drew. Além disso,
retrata sua vida na escola primaria Corleone e no ensino médio no Colégio Tataglia.
Chris é o único negro da escola. Ele mora em Bed-stuy, bairro central do Brooklyn na
cidade de Nova York, o qual é considerado muito perigoso. Discutimos como as
diferenciações de racismo e suas intersecções, se constroem metapragmáticamente, pela
interpretação do Narrador em off, dentro de regimes e lutas metadiscursivas,
performando então uma identidade marcada por estigmatizações sedimentadas ao longo
da história. Nossa fundamentação teórica se pauta nos estudos sobre metapragmática de
Signorini (2008) que discute a metapragmática e os regimes metadiscursivos que
normatizam por meio de correções semânticas e indexicais o uso discursivo ao
enquadrar os sentidos aos valores culturais de uma sociedade; Austin (1998) e
Blommaert (2005) apontam que os discursos falam por si e são constituídos por
determinadas ações de acordo com o objetivo da comunicação e o contexto em que se
encontram o enunciador e o enunciatário; Em relação a discussão do racismo no Brasil e
a piada racista seguiremos a perspectiva de Santos (1984) e Sales (2006) que criticam o
racismo espirituoso e o seu não dito pelo mascaramento do riso; Dahia (2008) que
associa o riso e a piada racista, a uma prática de discriminação do outro por meio da
destruição pelo poder e pela infantilização do objeto risível; Pennycook (2008) que
afirma que as identidades são construtos performáticos e não pré-formados, somos
construídos pelos discursos, pelos atos performativos que o outro faz de nós, e mediante
a essa visão, somos representados nas relações sociais. Assim, quando analisado o
seriado Todo mundo odeia o Chris aponta para cristalizações de concepções sobre o
negro que são indexicalizadas pelos atos de fala dos personagens e que se remetem a
construção de um contexto social, histórico e culturalmente marcado pela colonização.
Podemos observar a ação metapragmática, principalmente, no Narrador em off do
seriado, que recontextualiza algumas cenas (1ª plano de análise) fazendo a correção
indexical/semântica dos enunciados em um 2ª plano de análise. Isso será legitimado ao
olharmos para o discurso central do seriado que gira em torno das lutas discursivas do
racismo e sua colonialidade de saber e o antirracismo e a crítica ao preconceito.
Procedendo dessa forma, ao se analisar a performatividade da linguagem no seriado
Todo mundo odeia o Chris, podemos perceber como o preconceito pode ser construído
e normatizado metapragmáticamente por um metadiscurso articulado em implícitos
linguísticos ligados ao humor racista. Trazendo à tona como as ideologias raciais
continuam atuantes pelo mito da democracia racial. Com isso, marcando e ao mesmo
tempo questionando, pela repetição midiática a verdade do dominante que dita o negro
como um “problema social”.

Palavras-chave: Metapragmática; Metadiscurso; Performatividade; Racismo brasileiro;


Humor racista.
INTRODUÇÃO

Neste trabalho, temos como perspectiva de linguagem a pragmática, que nos


direciona a visão de que é na e pela língua que se materializam os discursos e são
construídas características que constituem cada sociedade e seu povo através de
sedimentações históricas, culturais e sociais. E a interação entre os sujeitos proporciona
comunicação que só pode ser obtida pela formação de significados e sentidos, mas esses
não são únicos, não são intrínsecos às palavras e nem permanentes, assim como os
sujeitos, que são mutáveis, constituídos e reconstituídos pelo meio, pelas experiências
que modificam a linguagem aos seus diferentes usos. O contexto é, portanto, a condição
intrínseca pela qual emerge tal produção discursiva, é onde os sentidos serão produzidos
e interpretados. Por isso, neste trabalho observamos e procuramos esquematizar como
são articulados os objetivos da comunicação e como os usuários da língua a usam em
suas práticas sociais para produzirem significados, símbolos que se formam nas práticas
linguísticas.
O corpus desta pesquisa é o seriado norte-americano Todo mundo odeia o
Chris, que tem como suporte de transmissão a televisão - um veículo midiático que
possui um papel definidor de identidades sociais, já que é um dos importantes meios de
persuasão da atualidade. E é por esse meio que discursos normatizadores são
performatizados podendo influenciar seus expectadores a um modo de vida que
determina a linguagem, os comportamentos, as relações sociais, dentre outros. Assim,
os seriados televisivos desde 1951 vem compondo o cenário cultural, causando muitas
vezes um forte impacto social por atingirem um grande público no mundo inteiro.
O seriado Todo mundo odeia o Chris é baseado na história de vida do
comediante norte americano Chris Julius Rock III. A série se passa na década de 1980 e
conta a história de um menino negro, o Chris, que vive com sua mãe Rochelle, seu pai
Julius, sua irmã Tonya e com seu irmão Drew. Além disso, retrata sua vida na escola
primaria Corleone e no ensino médio no Colégio Tataglia. Chris é o único negro das
duas escolas. Ele mora em Bed-stuy, bairro central do Brooklyn na cidade de Nova
York, considerado um bairro muito perigoso, onde praticamente não existiam pessoas
brancas.
Cada episódio retrata experiências que Chris passa no dia a dia, seja na
escola, no trabalho, na rua, na qual a sua cor negra é sempre lembrada e ligada a
estereótipos. Além disso, temos o Narrador em off, que conduz as cenas sem interferir
diretamente nelas, ele nos atenta para o discurso racista e discriminador, interpretando,
corrigindo e desmascarando as ações dos personagens ao revelar o não dito de suas
falas.
O seriado em análise pode também ser classificado como um sitcom, mas se
diferencia dos modos tradicionais desse por não ser apresentado em frente a uma plateia
ao vivo com a utilização de “sacos de risadas”.

Os sitcoms não visam, basicamente, [a] fazer o público rir. É uma forma de o
escritor passar a um grande público suas ideias e opiniões sobre a sociedade
em que está inserido. A graça, o riso fácil, é consequência de um texto bem
escrito e personagens bem elaborados dentro de um contexto bem
apresentado. Os sitcoms, retratando o cotidiano de uma família típica de uma
sociedade, trazem drama, humor, aventura, ficção e todas as demais
abordagens imagináveis, mas acabam, também, assumindo a obrigação de
fazer rir. De forma satírica, ele diz a verdade sobre questões sociais, políticas
e familiares de uma determinada cultura (FURQUIM, 1999, p. 8).

Foster (1985, p. 221) afirma que “a mídia transforma os signos singulares de


discursos sociais contraditórios numa narrativa normal, neutra, que nos fala. (...). Desta
forma, os grupos sociais são silenciados”, o que nos instiga para sabermos como e por
que os discursos sociais são reformulados e cristalizados ao serem representados ou
traduzidos na mídia. Mesmo assim podemos observar como a realidade é construída no
seriado em análise que performa o que podem ser as situações sociais, trazendo então
um formato de verdade sobre o que se diz. Para isso, trabalharemos então com a função
metapragmática e os regimes metadiscursivos, que nos atentam a normatizações
estabelecidas por meio de correções linguísticas e semânticas/indexicais, que se
configuram no uso da linguagem e na produção de discursos, direcionando os sentidos a
se adequarem aos valores culturais de uma sociedade (SIGNORINI, 2008).
E esses recursos linguísticos revelam hierarquias e indexicalizam diferenças
ao estabelecer marcações constituindo posições sociais por meio de estratégias
discursivas, nos diferentes contextos. Temos então que esses discursos são atos de fala
que performam determinadas ações de acordo com o objetivo da comunicação e o
contexto em que se encontram o enunciador e o enunciatário. Essa performatividade da
linguagem nos abre espaço para discutir questões de diferença e discriminação, e como
elas são construídas discursivamente e estabelecidas como parte de uma cultura, como
uma verdade, de maneira naturalizada, fortalecendo relações de poder e posições sociais
no momento em que são enunciadas. Assim, é por meio da linguagem que somos
constituídos e constituímos os outros e é pelo contexto que essas práticas são validadas.
Por isso, Pennycook (2008) nos diz que, as identidades sociais são construtos
performados e não pré-formados, somos construídos pelos discursos, pelos atos
performativos que o outro faz de nós e mediante a essa visão somos representados nas
relações sociais. Somos um corpo marcado por performances culturais e sociais, e são
por elas que somos definidos em termos de classe, raça e gênero e outras marcas de
diferença.
As relações de poder ganham características específicas no decorrer da
história, por meio de discursos e práticas ideológicas. Assim, para Foucault (1995),
essas relações de poder interessam uma vez que os enunciados apontam para posições-
sujeito, e essas posições são marcadas por relações de poder que se opõem. O que
constitui o racismo que segundo Santos (1984) é um sistema que afirma a superioridade
racial de um grupo sobre outros, ele também é considerado um fenômeno universal por
se encontrar nas bases de discriminação com o outro. Ainda segundo o autor, o racismo
não faz parte da “natureza humana”, ele nasce de uma necessidade de defender o seu
espaço a partir de uma concepção de mundo etnocentrista.
E quando nos voltamos para as Américas, sociedades colonizadas e
escravocratas, temos uma diferença que permitiu a manifestação racista com
perspectivas que levaram a práticas distintas, porém com o mesmo foco discriminador.
Nos EUA, o racismo gerou a chamada segregação racial, que restringiu os negros a
ficarem juntos com negros, se segregarem em bairros que só haviam negros, assim
também acontecia com os brancos, asiáticos, era a divisão espacial de raças, e o negro
tinha poucos direitos, a supremacia branca era forte. O que fomentou o surgimento em
1866 de movimentos contra a abolição da escravatura, como os Ku Klux Klan, que
pregavam a superioridade da raça branca. Em relação ao Brasil, Santos (1984) afirma
que o racismo não se encontra assumido, oficializado, todavia ele se disfarça em nossas
atitudes.
Assim, o autor elenca cinco tipos de diferentes modalidades de racismo no
Brasil que consiste em: “nos acostumamos a ver, e a tratar, o povo como bichos” (p.
65); “achamos, sinceramente, que os brancos são melhores que os não brancos” (p. 66);
a “ideia negativa que fizemos das pessoas de cor” (p. 76); “a ideia de que não somos
racistas” (p. 78); e “olharmos os não brancos como não-brasileiros” (p. 80). Carneiro
(2002) também diz que o mito da democracia racial produziu no Brasil a mais nova e
sofisticada forma de racismo no mundo, que é normatizada pelos discursos de paraíso
racial, porque nosso ordenamento jurídico assegurou uma igualdade formal, que dá a
todos uma suposta igualdade de direitos e oportunidades, e liberou a sociedade para
discriminar impunentemente.
Também temos no Brasil a chamada “cordialidade racial” ou racismo
“cordial” (SALES JR., 2006), o qual é utilizado para designar a estabilidade que há nas
relações raciais no que diz respeito às desigualdades e hierarquias sociais, amenizando o
nível de tensão, por exemplo, entre brancos e negros. Sales Jr. (2006, p. 236) afirma que
“no racismo cordial, o terror racial toma a forma de ironia ou sarcasmo; a tragédia racial
torna-se comédia ou humorismo”, e tudo isto, em outras palavras, se materializa em
racismo espirituoso. O não dito, o discurso implícito, através da estigmatização pelo
humor, brinca com fatos sociais de maneira mascarada. Conforme se pode verificar em
Almeida (2003), o discurso do não-dito é o que propicia a existência da estigmatização,
sendo este discurso caracterizado pelo uso de piadas, injúrias, trocadilhos, provérbios,
ironias, etc. O fenômeno da estigmatização é resultante de um racismo denominado de
“racismo espirituoso” (SALES JR., 2006), caracterizando o “estigma” como uma
“marcação e demarcação do corpo sem a necessidade de violência física, em que, por
exemplo, a injúria se transforma em açoite e a piada em impressão a fogo” (SALES JR.,
2006, p. 236).
Posto isso, o estigma se comporta como um “ato ou transformação
incorporal” dos corpos, os modificando e os significando. E “é o expresso de uma
proposição e o atributo de um corpo, sendo a instantaneidade a marca de sua realização,
pois é no momento mesmo de sua enunciação que se produz o efeito sobre os corpos”
(ALMEIDA, 2003, p. 72). Em termos psicanalíticos, a estigmatização conduz o negro a
um “corpo masoquista” (DELEUZE, 2006, p. 10 apud SALES JR, 2006, p. 234), pois
se acredita que este mesmo corpo negro é o lugar da subordinação ou da exclusão, e que
a constituição de um sujeito passa pela negação do corpo, ou de parte dele, segundo
parâmetros dominantes.
Tendo em vista a história do racismo, principalmente no Brasil, e como ele
se manifesta no uso da linguagem, procuraremos então responder às seguintes perguntas
com base no seriado Todo mundo odeia o Chris e sua relação com o contexto social:
como são constituídos metapragmaticamente e metadiscursivamente as ordens
indexicais de diferenças sociais que constroem a noção de raça, gênero e corpo no
seriado e como essas diferenças são indexicalizadas em 2º plano, fora das cenas, pelo
Narrador em off ? Como o seriado pode desconstruir as noções de cordialidade e
democracia racial quando o relacionamos ao racismo brasileiro? Como é constituída
performativamente as relações raciais no seriado?
Temos como principal objetivo então analisar e discutir como se constituem
as diferenças sociais tanto no micro contexto do seriado quanto no contexto macro, de
uma sociedade colonizada. Faremos isso ao descrever a voz social do Narrador em off e
como ele pode modelar metapragmaticamente a interpretação de discursos racializados
no seriado Todo mundo odeia o Chris. Também vamos descrever como o preconceito e
os estereótipos se inserem na performatividade da identidade negra no seriado de forma
a relacionar o metadiscurso racializado e a indexicalização do ser negro ao discurso
brasileiro de “paraíso racial”, já que o seriado foi transmitido aqui em canal aberto de
TV. Trabalharemos com o seriado Todo mundo odeia o Chris, dublado (2006) em
português, que possui 4 temporadas com 22 episódios cada. Os episódios estão todos
disponíveis online pelo Youtube. E ainda que já tivéssemos assistido a todos os
episódios pela transmissão na TV Record, para fins de análise foram usados os
episódios postados no Youtube, já na versão dublada em português1. Este trabalho tem
dois capítulos principais, no primeiro analisaremos no seriado a metapragmática, o
metadiscurso e a performatividade dos personagens com enfoque nas questões de raça,
corpo e gênero. Segundo, analisaremos o metadiscurso do seriado em relação ao
discurso de democracia racial no Brasil.

1
Todos os episódios podem ser acessados em: https://www.youtube.com/user/TOPTVSERIADOS
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Antes de adentrarmos ao que venha a ser metapragmática, é necessário


falarmos um pouco sobre o campo de estudo linguístico da pragmática, pois é com essa
visão de linguagem que seguiremos nossa análise. A Pragmática estuda, além da língua
em si, também o extralinguístico, o uso que os falantes fazem com a língua. Esse uso
linguístico e o objetivo que os falantes têm na comunicação ocorrem dentro de um
contexto de produção discursivo que possibilita que tal enunciação aconteça,
estabelecendo então uma relação entre sujeitos e objetos que culminam na formação do
signo. Isso se relaciona à tríade pragmática em que o signo, o objeto (índice) e o
interpretante formam um sistema semiótico do qual Pierce procurou destacar “[...] a
necessidade de se teorizar a linguagem levando-se em conta o que sempre foi lembrado
na linguística, ou seja, o sinal, mas também aquilo a que este sinal remete e,
principalmente, a quem ele significa” (PINTO, 2000, p. 51). Quem fornece o
significado de um signo e o situa no mundo é seu interpretante, sendo que esse
significado não é fixo, e sim mutável de acordo com o contexto. O que temos então é
que o signo só pode ser denominado assim quando se une a um objeto, algo sem
significado a priori, com seu interpretante, o sujeito que dita a função do objeto no
mundo o transformando em signo e o indexicando a uma significação.
Dessa forma, a pragmática “é um estudo sistemático da relação entre signos
e seus interpretes. Trata-se de saber o que fazem os interpretes-usuários, que atos eles
realizam pelo uso de certos signos” (ARMENGAUD, 2006, p. 100), e são esses atos
que John L. Austin irá estudar, focando nas ações que os enunciados podem produzir
conforme o contexto de produção, que é o lugar em que se indicia tal significado.
Austin então desenvolve a teoria dos atos de fala e divide o ato em três níveis de ação
linguística simultânea: atos locucionários, ilocucionários e perlocucionários. O primeiro
é “o lugar em que se dá a significação” (OTTONI, 1998, p. 35), o segundo é “o ato de
realização através de um enunciado” (p. 35) e o terceiro é “o ato que produz efeito sobre
o interlocutor” (p. 35). E para separar os tipos de enunciados que praticam ação no
mundo dos que só descrevem, Austin (1998) os divide em constativos e performativos.
Os constativos são afirmações que descrevem algo no mundo e que eram classificados
em verdadeiros ou falsos. Por exemplo, “Chris levou um soco de Caruso”, essa
afirmação será verdadeira se ela estiver de acordo com os fatos do mundo e será falsa se
não estiver de acordo com esses fatos. Os enunciados performativos realizam ações que
são classificadas em felizes, quando a ação é realizada, ou infelizes, quando a ação não
se realiza. As infelicidades, segundo Ottoni (1998), são divididas em nulidade ou sem
efeito, em que o enunciador não possui autoridade para efetuar tal ato; abuso da fórmula
ou falta de sinceridade, quando se realiza o ato de fala sem a intenção de que a ação se
realize; e a quebra de compromisso, quando ao dizer não estabeleço atitudes para que a
ação se complete. Por exemplo, “Declaro o acusado culpado de ser um adolescente
negro no tribunal da lei”, é uma fala que leva ao ato de condenar, esse foi um enunciado
feliz, pois no seriado quem o disse é um juiz em um tribunal, ou seja, um sujeito que
está em posição de realizar tal ação, portanto, naquele contexto, o ato não é nulo.
Mas J. L. Austin em seus estudos percebeu que os enunciados constativos
também eram performativos e então ele quebra a dicotomia constativo-performativo, e
considera o constativo como um performativo mascarado, já que “por detrás de cada
afirmação há um performativo não explicitado” (OTTONI, 2002, p. 129). Com isso,
entra em vigor uma nova concepção de linguagem que aponta para uma visão
performativa, em que não há distinção entre descrição e ação, “as afirmações agora não
só dizem sobre o mundo como fazem algo no mundo. Não descrevem a ação, praticam-
na” (OTTONI, 1998, p. 37). Quando falamos, produzimos efeitos sobre o mundo, esses
são determinados conforme as práticas discursivas e a posição de cada sujeito na
enunciação, no contexto. Os enunciados performativos constroem visões de mundo e
quando observados mostram como essas podem ser normatizadas nos discursos,
trazendo para a análise da linguagem a reflexão de como e por que são realizadas tais
ações e não outras. Isso também aponta para como se performam as identidades e de
como elas funcionam em cada contexto.
Para Austin, segundo Ottoni (1998, p. 36) o enunciado performativo “é o
próprio ato de realização da fala-ação”, em que a ação é realizada pelo discurso e seu
efeito, durante a interação, onde se estabelecem relações de poder e são visíveis
perspectivas ideológicas e aspectos de convenções culturais. Por isso, “para dar as
condições de performatividade de um enunciado, Austin identifica um enunciado com
um “sujeito falante” para que possa praticar uma ação” (OTTONI, 1998, p. 37), esse
sujeito ao dizer e estabelecer interação gera um efeito sobre seu interlocutor
proporcionando a formação de sentidos para tal dizer dentro do contexto da enunciação.
Conforme Ottoni (1998) a visão performativa da linguagem se baseia em realizar uma
análise que se observa o sujeito vinculado ao objeto fala, e vice-versa, sendo que essa
muitas vezes se localiza à margem de várias teorias linguísticas que focam apenas a
língua em situações ideais, se desvinculando da discussão em relação ao uso da
linguagem em situações reais de produção. Direcionaremos então o olhar de que “as
afirmações agora não só dizem sobre o mundo como fazem algo no mundo. Não
descrevem a ação, praticam-na” (OTTONI, 1998, p. 37), dessa forma, ao dizer algo
expressamos aspectos do nosso meio social, cultural e histórico, praticamos uma ação
na qual se poderá identificar como se comporta determinada sociedade, e como os
sujeitos constroem políticas identitárias. Assim Austin (1990, apud PINTO, 2000, p. 57)

concebe a linguagem como uma atividade construída pelos/as


interlocutores/as, ou seja, é impossível discutir linguagem sem considerar o
ato de linguagem, o ato de estar falando em si – a linguagem não é assim
descrição do mundo, mas ação.

Outro aspecto que é de importância para uma visão de linguagem


pragmática é o contexto. É nele que está a concretização dos enunciados, possibilitando
uma análise mais detalhada de como se performam as interações socias. Essa visão
diferencia-se de teorias linguísticas que lidam com um ideal de língua e deixam fora de
seus estudos o extralinguístico, não se atentando aos fatores culturais, sociais e
históricos que levaram a constituição de tal situação e sentido. Esse tipo de exclusão do
extralinguístico provoca uma deficiência de entendimento do como e por que foram
realizados certos usos linguísticos e não outros. “As histórias têm um “conteúdo”
particular que se relaciona (e se indexa) a um momento social, político e histórico
particular” (BLOMMAERT, 2008, p.112), de maneira que contexto e signo não podem
se desvincular, pois o primeiro situa o segundo, fornecendo então sua função na
situação. Além disso, eles também apontam para um interpretante que dará significação
a esse signo dentro da fala-ação, revelando um modo de se ver determinado dado
linguístico em sua relação com outros signos. Podemos dizer que o contexto é o
universo simbólico no qual cada objeto poderá obter uma significação que se difere em
cada universo, é onde o signo é atualizado para se tornar parte de uma sociedade.
Ainda segundo Blommaert (2008, p. 112) “as concepções de contexto podem ser
críticas, [quando] são vistas como condições para a produção do discurso e para a forma
de entendê-lo”. Pois é por meio da compreensão de como tal discurso se formou e o
porquê dele estar sendo dito em determinado momento, que nós podemos compreender
como pode ter se dado o percurso de construção de uma concepção de mundo. Em vez
de somente adotarmos pensamentos de uma visão hegemônica que se repete e é tida
como verdadeira, mas que apenas mostra um ponto de vista e o recorte de um contexto
que se compõe de diversas ideologias. Como é o caso da construção de discriminação
social pela diferença, em que temos o uso de apenas um ponto de vista, o daquele que é
considerado de melhor prestígio, no caso o europeu, tido como detentor do saber.
Ocultando a voz dos que são marginalizados, classificados como não autorizados, não
agentes sociais, por não estarem dentro de categorias de aceitação para o posto de porta
voz da verdade.
E é importante observar quem são as pessoas consideradas à margem desse
tipo de sociedade: quem é tido como gordo, negro, negra, morador de favela,
homossexual, em que nas práticas sociais percebemos que esses se opõem ao ideal
branco de beleza e de comportamento. E esse ideal é que pressiona quem está fora a se
alinhar ao padrão, para que, assim, possam ser inseridos na sociedade e caso não se
alinhem estão sujeitos a sofrerem punição social para que siga o sistema daquele meio.
Este sistema é a todo instante reforçado por uma visão de mundo que ainda procura
colonizar dominando pelo poder de saber, mudando e reconstruindo as epistemologias
das sociedades e grupos tidos como minoritários. Exemplo disso é a disseminação da
cultura norte americana pelo mundo, que está unificando o modo de pensar ao ser posta
como “a melhor e a da moda” classificando quem a adere como uma pessoa atualizada.
Uma pessoa que domina o idioma inglês é vista diferentemente de uma pessoa que
domina diversas outras línguas, menos o inglês, como os que moram em países
africanos. O que constrói então a noção política que determina o que é língua,
fornecendo a ela um dado status social. Assim, também ocorre com a cultura, com o que
deve ser consumido e até pensado ideologicamente, pois
A suposta adoção de aspectos culturais “estrangeiros”, então, nunca é uma
simples assimilação, uma vez que, ao serem transpostos, estes são alterados,
adaptados, ressignificados, ainda que muitas vezes de forma inconsciente ou
mesmo contrária à vontade dos sujeitos (SCHULTZ, 2013, p. 26).

O que temos então é a hierarquização cultural, de uma ideologia, de um


modo de perceber o mundo e dizer sobre ele, isto é, somos direcionados a um discurso
metapragmático, que corrige o modo de interpretar o mundo e o enquadra a um sistema
de comportamento hegemônico norte americano. Isso envolve processos de
entextualização que “se refere ao processo por meio do qual os discursos são sucessiva
ou simultaneamente descontextualizados e metadiscursivamente recontextualizados”
(BLOMMAERT, 2005, p. 47). Trechos recortados de discursos, ao serem deslocados de
um contexto para outro, recontextualizam-se e recontextualizam os contextos prévios de
onde vieram. No seriado Todo mundo odeia o Chris percebemos essa relocação de
textos e ideologias, durante as calibragens metapragmáticas que corrigem pela
recontextualização e indexicalização o lugar social dos sujeitos não só durante a
enunciação, mas também de acordo com as normas sociais. Por isso,
de fato conforme aponta Silverstein (1993), o “caráter inerentemente
indexical de toda comunicação linguística” é o que permite ao falante ancorar
e (des) alinhar suas ações, ou seja, calibrá-las não só em função de evento em
curso (calibragem reflexiva), quanto em função de outros eventos e
referências distintas no tempo e no espaço (calibragem êmica), de modo a
garantir a coerência de seu discurso (SIGNORINI, 2008, p. 139).

Enquanto a pragmática tem a ver com o uso linguístico em determinado


contexto, a metapragmática então tem a ver com como é enquadrado esse uso
linguístico a modos de uso que seguem regras sociais. A função “tanto de descrever e
avaliar quanto de condicionar e orientar os usos da língua na interação oral ou escrita”
(SIGNORINI, 2008,p. 117) possibilita que estudemos como uma língua pode carregar
em sua estrutura configurações sociais que só fazem sentido dentro de contextos
específicos. Apesar de se ter uma diversidade de formas como podemos usar a
linguagem, ainda assim somos direcionados a usá-la conforme normas estabelecidas
socialmente. O que pode ser uma forma de unificar o modo de uso linguístico pelo
dominante, já que com isso a propagação e fixação de ideologias se torna maior
chegando até a uma dominação da subjetividade do sujeito, interferindo no seu modo de
se ver e ser visto, e de sua construção identitária. Então, não podemos analisar o uso
linguístico (pragmática) sem passar pela análise da avaliação reflexiva e enquadre do
uso (metapragmática), ambas se completam, pois só observamos como os usos da
linguagem são construídos mediante sua reflexão e enquadramento das formas usuais de
acordo com o contexto.
2. DISCUSSÃO E ANÁLISE GERAL

2.1 Todo mundo odeia o Chris, o Narrador em off e a metapragmática

Realizamos atos metapragmáticos o tempo todo, desde uma correção da fala


“errada” de alguém até o modo como uma pessoa se comporta em determinado meio.
Isso ocorre devido à repetição de atos que estabelecem e sedimentam os sentidos para o
que pode e não pode ser dito, do certo e do errado no uso linguístico, a fim de que se
tenha uma coerência dos enunciados dentro do contexto. A metapragmática tem a ver
com o nível em que se calibra a comunicação, através dessa reflexão sobre o ato
pragmático, para determinadas produções de sentido tanto dentro da situação entre o eu
e tu quanto para com o contexto social, histórico e cultural que os sujeitos estão. Como
por exemplo, temos no episódio Todo mundo odeia a formatura (3ª Temporada – 22º
Episódio), durante uma cena em que um Entrevistador vai à casa do Chris conversar
com a família para avaliar se ele atende às condições para obter vaga na “curva de
minoria” de uma escola que ele almeja, a seguinte metapragmática explícita realizada
pelo Narrador em off:

Entrevistador: Isso é apenas uma formalidade e eu vou fazer algumas


perguntas.
Rochelle: Sem problemas, não temos o que esconder.
Entrevistador: Há quanto tempo a senhora é viciada em heroína?
Rochelle: Como é que é?
Entrevistador: Bom, eu soube que tem lutado contra as drogas e o álcool a
maior parte de sua vida.
Narrador em off: Deve tá confundindo ela com a Lindsay Lohan.
Rochelle: Não, não, não, não, você deve tá me confundindo com outra
pessoa, é ridículo.
Entrevistador: Bom, estou vendo que é um tema doloroso. Vamos em frente.
Tem três filhos não é? Quais os nomes dos pais deles?
Rochelle: Julius. Os pais deles? Não, eles têm um pai só.
Entrevistador: Sabe o nome dele?
Rochelle: Onde andou se informando sobre nós?
Narrador em off: Eu sei onde.
[Nesse momento, corta a cena do diálogo entre Rochelle e o Entrevistador e
se inicia outra cena]
Srtª Morello [falando em direção à câmera]: Infelizmente acho que o Chris é
um filho da droga, a mãe dele tem alucinações o cérebro foi afetado por anos
e usos de drogas e excesso de vinho barato. Ela está mesmo convencida de
que tem um marido que trabalha em dois empregos e de que eles têm uma
casa no gueto. Não acredite em nada do que ela disser.
As imagens que aparecem na cena do diálogo deste episódio:

Rochelle e Chris Srtª Morello Entrevistador

A metapragmática direciona a pragmática, se valendo de regras de usos


linguísticos que apontam para reflexões de normas e leis sociais, mostrando como uma
sociedade constitui sua cultura e as hierarquias. Nesse trecho do seriado, temos a
regulação da fala de Rochelle sendo enquadrada num dado estereótipo de mulher negra
pobre e dependente de drogas (“não acredite em nada do que ela disser”). Isso nos é
oferecida pela avaliação metapragmática do Narrador em off, que traz a fala da Srtª
Morello, professora de Chris, branca, que representa um grupo de pessoas que tem o
pensamento racista e que sugeriu para o entrevistador como ele deveria ouvir a família
do Chris. Assim, a Srtª Morello procura indexicar as falas da família do Chris a uma
identidade negra estereotipada, tornando-a desacreditada.
O Narrador em off do seriado possui função metapragmática na medida em
que ele se vale dos usos linguísticos dos personagens e realiza correções desse uso, ou
seja, percebemos que há uma entextualização-recontextualização das cenas que geram,
com isso, correções indexicais que direcionam o telespectador do seriado a compreender
o episódio de acordo com a avaliação que esse Narrador faz dos usos dos demais
personagens. Como podemos ver na retomada discursiva que aponta Lindsay Lohan,
branca e conhecida pelas polêmicas causadas pela sua dependência química, em
oposição a uma pré-construção normativa do negro como sendo o sujeito “adequado” ao
vício. Assim, o Narrador realiza uma entextualização que funciona quando realiza ações
que apontam para
processos de extrair o texto do contexto, posicionando-o em outro contexto e
adicionando qualificações metapragmáticas a ele, de forma a especificar as
condições pelas quais os textos deveriam ser compreendidos, o que eles
querem dizer e o que significam, e assim por diante (Cf. Silvernstein &
Urban, 1996) (BLOMMAERT, 2008, p. 99).
Quando o Narrador realiza comentários, criticas, molda o texto produzido
no plano pragmático das cenas dos episódios e realiza então uma recontextualização do
texto, o colocando agora no nível metapragmático, em que serão ajustadas as
calibragens que produzem uma linha de interpretação da relação dos personagens dentro
daquele contexto. Além disso,

Briggs (1997a) argumenta que justamente esse movimento de textos entre


diferentes contextos - práticas de reentextualização – envolve questões
cruciais de poder. Nem todo contexto é/está acessível a todos, e práticas de
reentextualização dependem de quem tem acesso a qual espaço contextual
(BLOMMAERT, 2008, p. 107).

As falas dos personagens se recontextualizam pela ação do Narrador, que é


a voz do próprio ator Chris Rock, portanto supostamente é o personagem Chris adulto.
Isso só foi possível pelo fato do Chris Rock estar agora empoderado para realizar tal
ação de interferir nas cenas e recontextualizá-las, pois sendo o seriado supostamente
baseado nas experiências de vida do ator quando adolescente, agora por ser um
comediante norte americano famoso possui voz social e pode então recontextualizar seu
contexto passado, modificá-lo, adicionando avaliações reflexivas a ele.
Além da recontextualização, também observamos no seriado a correção
indexical, que se refere à performance do Narrador para corrigir determinada cena após
ela ser recontextualizada, fornecendo a significação das ações dos personagens para a
leitura do telespectador a respeito de tal cena. Esse Narrador em off aponta como a
atividade reflexiva [...] está presente também nas ações sociointeracionais do
cotidiano, na medida em que os interactantes assumem a responsabilidade de
sinalizar como devem ser interpretadas as formas que produzem e também
como estão interpretando/avaliando as produzidas por outrem (SIGNORINI,
2008, p. 121)

O Narrador ao interpretar as ações procura indexar o signo a um sentido


conforme a situação proposta, modelando e regimentando, no nível metapragmático, o
uso linguístico. Um exemplo de correção indexical e recontextualização explícita pode
ser percebido no episódio Todo mundo odeia a prisão (1ª Temporada - 21º Episódio),
que mostra o momento em que Chris está preso por ter mentido que estava vendendo
biscoitos roubados e dentro da delegacia ele explica ao delegado o que realmente
aconteceu. Mas Chris, por ser negro, corresponde ao suposto perfil de uma testemunha
de roubo de caminhão de biscoitos que aconteceu na cidade, o que faz então de Chris
um suspeito. Após isso o Narrador em off nos traz a cena que mostra o roubo do
caminhão de biscoitos, do qual Chris era suspeito, e um policial falando com uma
testemunha
Narrador: Eu podia ter só 13 anos, mas já sabia como o preconceito
funcionava. Olha o que a testemunha disse.
Testemunha: Ele era um homem negro, de pele chocolate, cerca de dois
metros, pesava mais de 100 kg, tinha olhos castanhos, estava usando
uniforme de escoteiro com boina amarela, ele usava calças escuras e sapatos
pretos tamanho 44, ele tinha um sinal no pulso esquerdo, ah e ele mancava
muito também.
Narrador: Mas foi isso que o cana dura ouviu.
Testemunha: Ele era negro, e negro negro negro e negro negro muito negro
mesmo e usava negro, mancava muito negro, e aqui também negro e andava
negro.

Imagem da cena

Testemunha e policial na cena do episódio.

Temos nesse trecho uma correção indexical, em que o Narrador em off


corrige o modo como o policial, de Nova York, ouviu o depoimento da testemunha.
Mas isso só é possível ser compreendido por estarmos dentro de um contexto
apresentado pelo seriado, já que em outros episódios temos a descrição de como age a
polícia de nova York em relação a cidadãos negros, tratando com desigualdade ao
privilegiar o atendimento a pessoas brancas. É o caso do episódio Todo mundo odeia
Gretzky (3ª Temporada - 15º Episódio), em que Chris e Drew vão conhecer o jogador de
hóquei Gretzky, mas não avisam a seus pais e esses pensam que seus filhos
desapareceram. Preocupada, Rochelle decide pedir ajuda à polícia de Nova York, mas
Julius alerta dizendo “a polícia de Nova York?”; nesse instante a cena muda e o
Narrador mostra como seria uma cena hipotética em que Rochelle telefonasse aos
policiais, que perguntariam como eram os garotos e quando ouvissem que eram negros,
desligariam o telefone. Mesmo com Julius dizendo que não seria uma boa ideia,
Rochelle liga para a polícia e esses pedem para descrever os meninos, então Rochelle
responde que são brancos, imediatamente um policial bate à sua porta.
A indexicalidade orienta como um signo linguístico deve se comportar em
dada enunciação contextualizada. Blommaert (2005, p. 253), a respeito de ordens de
indexicalidade, diz que elas podem ser definidas como “padrões estratificados de
significados sociais frequentemente denominados ‘normas’ ou ‘regras’, pelos quais as
pessoas se orientam quando se comunicam”. A indexicalidade constitui uma ordem que
situa o signo em contexto, de maneira que esse mesmo signo ao se deslocar de contexto
pode também deslocar seu significado. Ainda segundo o autor, as ordens de
indexicalidade não funcionam de forma neutra, mas ocorrem inseridas em relações de
poder, de modo que são hierarquizadas, ou seja, algumas são mais socialmente
reconhecidas do que outras. Por isso Blommaert (2005) não fala em “línguas”, mas em
recursos semióticos que são utilizados pelos falantes para realizarem determinadas
funções no mundo social, construindo e indexicando significados conforme as
necessidades e limites sociais dos falantes, pois “esses recursos não carregam
significado em si mesmos; os significados são projetados no interior de ordens de
indexicalidade” (SCHULTZ, 2013, p. 63).
O termo ‘ordens de indexicalidade’ é, segundo Schultz (2013), derivado do
conceito foucaultiano de “ordens do discurso”, que aponta como a construção do
discurso é permeada por regras a fim de controlar e impor limites ao que é e como é
produzido. Assim, “os processos sociais de co-construção do significado não são livres
ou aleatórios; são regidos pelas regras das ordens de indexicalidade nas quais ocorrem”
(SCHULTZ, 2013, p. 63), é o contexto regido por políticas de produção discursiva que
irá performar na enunciação os limites de sentido que serão indexicados com tal
situação.
Então ao observar o contexto do episódio Todo mundo odeia a prisão
percebemos que a repetição da palavra “negro” é indexicalizadora, pois marca o sujeito
ladrão que está sendo descrito de uma forma pela testemunha, porém é entendido pelo
policial com outro sentido que remete ao resgate de aspectos históricos de
comportamento estereotipado de que “todo negro é ladrão” e “não há diferenças entre
negros”. Esse policial indicia uma situação de criminalidade atrelada a um sujeito negro,
isso ocorre devido à historicização de uma sociedade colonializada que leva o negro a
ser marginalizado e inferiorizado socialmente, sendo assim é ele que supostamente vai
contra as leis, contra as normas da sociedade, o que culmina em uma atitude racista por
parte do policial.
No seriado, também temos vários outros exemplos de ordens de
indexicalidade, como no episódio Todo mundo odeia o dia dos namorados (1ª
Temporada – 14ª Episódio), em que temos a indexicalixação de gênero. Nesse episódio,
Tônia quer dar um cartão do dia dos namorados para um menino e Julius fica curioso
para saber quem é esse menino, e chama a atenção de Rochelle para isso, mas Drew é
elogiado pelo pai por receber muitos cartões de mulheres. Após essa cena, Julius dá um
cartão do dia dos namorados para Rochelle e ela retribui com um beijo, nesse instante
Julius diz:
Julius: Tá vendo só, Rochelle, é por ver essas coisas que a Tônia anda por ai
falando para as pessoas que tem um namorado.
Rochelle: Mas, Jullius ela só tem dez anos, ele só é um garoto da turma dela,
nada mais.
Julius: Rochelle, você não vê os noticiários? As meninas estão tendo filhos
aos dez anos.
Narrador em off: E netos aos 20.
Rochelle: É com o Drew que você precisa ficar preocupado.
Julius: Pra quê? E daí que as garotas gostam dele, não há nada de errado
nisso.
Rochelle: Ele tem 11, ele só tem um ano a mais que a Tônia, qual é a
diferença?
Julius: Ela é menina.

O que temos é que a metapragmática é um dos elementos que participam da


normatização de como deve se comportar o menino e a menina, o que pode ou não
pode, compondo então o discurso do Julius. Isso nos aponta para o que é gênero,
segundo Butler (2003, p. 26), ele é “uma realização performática” que se estabelece pela
“repetição estilizada de atos” e se reflete na materialidade dos corpos, os tornando
“naturais pelo sexo”, o que os delimita, padroniza e os essencializa devido às
imposições performáticas culturais. Então a noção que temos sobre o que compõe o
comportamento de menina/mulher e menino/homem se indicia ao que é norma para
cada sexo, seja para se adaptar a tais normas seja para contestá-las. E isso é percebido
pelo corpo, pois é nele que os processos culturais são materializados, é onde se indexam
conjuntos de discursos que alinham a sociedade a uma dada ideologia hegemônica.
Sendo assim, “o corpo só ganha significado no discurso no contexto das relações de
poder” (BUTLER, 2003, p. 137). É pela linguagem que a ideologia dominante é
constituída, e com isso, a construção da identidade de gênero é alinhada com a ordem
indexical do sexo, que deve estar de acordo com os valores ideológicos sociais, que
impõem regras de diferenciação e enquadramentos corporais a fim de manter as relações
de poder. Por isso, são pelas repetições discursivas nos textos de circulação social que
fortalecem, disseminam e enraízam na cultura esse pensamento discriminador, pois
o sujeito não é determinado pelas regras pelas quais é gerado, porque a
significação não é um ato fundador, mas antes um processo regulado de
repetição que tanto se oculta quanto impõe suas regras, precisamente por
meio da produção de efeitos substancializantes (BUTLER, 2003, p. 209).

Além de encontrarmos ordens de indexicalidade que se voltam para a raça e


o gênero no seriado em análise, também podemos observar o de classe, através do
personagem Golpe-baixo, um mendigo que alega ter problemas mentais e que vive nas
ruas do Brooklyn por opção, pois sua mãe é muito rica e mora em um bairro de alta
classe, como mostra no episódio Todo mundo odeia o natal (2ª Temporada - 10º
Episódio). Nesse episódio, Chris visita a casa da mãe do Golpe-baixo e ela dá uma mala
de dinheiro para seu filho, que não atribui valor àquilo e até oferece a mala a Chris, que
então recusa. O personagem Golpe-baixo pode ser também uma contradição da ordem
indexical, em que mesmo ele a todo instante sendo colocado como mendigo, que por
isso não possui capacidade mental para ser um sujeito são e conviver normalmente em
sociedade, muitas vezes se mostra ser o contrário já que ele é por herança rico, consegue
resolver questões difíceis, como o cubo mágico, se mostrando ser um gênio apesar da
aparência. Assim, temos um exemplo de desordem indexical pelo personagem Golpe-
baixo, pois o estereótipo que compõe um mendigo é desconstruído quando símbolos de
riqueza e inteligência são apropriados pelo personagem, desprezando as normas e os
papéis sociais. Essas indexicalizações nos ajudam a perceber que são conjuntos de
fatores e categorias de intersecção que se articulam para formar ordens indexicais e
padrões sociais, em que as diferenças se tornam formas de hierarquias para relações de
poder.
As desordens indexicais se tornam então desvios de acordo com o parâmetro
tido como padrão, constituindo outra ordem indexical dentro de contextos específicos,
que qualificam os comportamentos, já que a noção binária do “é ou não é” se aplica
como maneira de tirar qualquer ambiguidade de enquadramento nas regras. Outros
exemplos de desordem indexical se encontram nas quebras de estereótipos como nas
características atribuídas ao personagem Chris, que é negro, estuda em uma escola em
que a maioria das pessoas são brancas, não usa drogas, tem pai e mãe presentes, não
passa fome, não é criminoso, entre outros. Mas apesar disso, ele é o tempo todo
indiciado como “ser negro”, sendo direcionado a todo instante a se enquadrar dentro das
relações de poder que o classificam por estereótipos, de maneira a fixar e perpetuar uma
verdade, a da visão dominante. Por isso,
(...) em uma sociedade como a nossa, mas no fundo em qualquer sociedade,
existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e
constituem o corpo social e que estas relações de poder não podem se
dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produção, uma acumulação,
uma circulação e um funcionamento do discurso. Não há possibilidade de
exercício do poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que
funcione dentro e a partir desta dupla exigência. Somos submetidos pelo
poder à produção da verdade e só podemos exercê-lo através da produção da
verdade. (...) somos obrigados pelo poder a produzir a verdade, somos
obrigados ou condenados a confessar a verdade ou a encontrá-la. O poder não
para de nos interrogar, de indagar, registrar e institucionalizar a busca da
verdade (FOUCAULT, 1979, p. 101).

Nesse sentido, a metapragmática se mostra como um recurso para análise no


sentido de abrir espaços para a compreensão de como as vontades de verdade se
articulam dentro das estruturas de relações de poder. E de como podemos perceber a
construção da diferença em torno do que seja “certo” e “errado”, “bonito” e “feio”,
dentro de parâmetros historicamente repetidos e reatualizados. Então a metapragmática
se vale dos recursos de recontextualização e indexicalização para apontar, calibrar e
ordenar as ações de acordo com a ideologia dominante que direciona a produção
discursiva a obedecer a padrões estratificados que se fortalecem pela aceitação da
sociedade e pela força política atribuída aos atos de fala.
O que significa dizer, então, que as especificidades culturais constituem os
processos de textualização (produção) e de (re) contextualização
(interpretação) do linguístico discursivo, na medida em que definem os
“padrões locais de co-presença ou relevância” que vão ancorar
contextualmente as formas indexicais. (SIGNORINI, 2008, p. 138)

enquadrando e moldando metapragmáticamente de acordo com os discursos vigentes e a


luta ideológica entre eles, ocasionando então no metadiscurso que legitima tal discurso e
sua produção dentro de um processo contextual.
Vale lembrar que a metapragmática ocorre, em sua maior parte,
implicitamente, de maneira indireta, quando cada sujeito realiza a correção das ações do
outro, sejam elas linguísticas, culturais, históricas, políticas, revelando como esse
sujeito é performado pelas ações discursivas que constroem sua subjetividade e o seu
modo de interferir no mundo. Em Todo mundo odeia o Chris, a metapragmática direta e
explícita é dada pelo Narrador em off, mas o telespectador também realiza sua própria
metapragmática, tanto dos comentários feitos pelo Narrador, o que pode gerar uma
meta-análise, quanto pelas cenas em que o Narrador apenas descreve o que acontece,
mas na qual se realizam ações que falam por si dentro daquele contexto.
Por exemplo, nas cenas do seriado em que podemos realizar uma análise
metapragmática observando o contexto em que ela foi produzida. Ao sermos retirados
da ação no fluxo do seriado, somos levados então a uma recontextualização para análise
crítica, enquadrando, moldando e indexicando sentidos produzidos historicamente sobre
o negro e o porquê, por exemplo, dele estar levando um soco de uma pessoa branca.
Relaciona-se, então, a linguagem, seja ela verbal ou não verbal, ao contexto micro e
macro, tanto das cenas quanto dos aspectos da sociedade em que o seriado foi produzido
e que nesse caso é a violência física que indexicaliza Chris ao racismo.

Episódio Todo mundo odeia o Caruso EpisódioTodo mundo odeia o Chris – O piloto

2.2 Metadiscurso Em Todo Mundo Odeia O Chris

Dentro das ações metapragmáticas, temos em jogo, ou melhor, em luta vários


discursos que legitimam as avaliações metapragmáticas, fornecendo base contextual
para sua produção discursiva. O metadiscurso então situa a metapragmática dentro de
uma possibilidade de acontecimento em que há “disputas de natureza política e
ideológica na descrição e regulamentação dos usos linguísticos por grupos e indivíduos
diferentemente posicionados em estruturas e redes sociais de poder e autoridade.”
(SIGNORINI, 2008, p. 119).
As funções metapragmáticas revelam lutas metadiscursivas ao apontarem
para como funcionam as avaliações e correções semânticas/linguísticas/indexicais
constituem dadas ideologias. Já que “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz
as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do
qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 1996, p. 10), há o embate entre os
discursos que se originam através de estruturas diferentes para objetivos diferentes, em
que um quer se sobrepor ao outro na dita busca pela verdade. Signorini (2008) nos diz
que os metadiscursos são conjuntos de discursos e dispositivos epistemológicos que
caracterizam o contexto histórico social e os discursos vigentes em dada época, que
traduzem diferentes conhecimentos e visões de mundo que, muitas vezes, levam a
conflitos.
Os discursos surgem na resposta a outro discurso, provocando efeitos
ideológicos sobre os sujeitos. O metadiscurso se manifesta no seriado Todo mundo
odeia o Chris tanto em contexto micro como em macro, nas cenas e em todo o seriado,
considerando que este é um universo discursivo em que a luta discursiva principal gira
em torno do racismo e do antirracismo. E apesar do seriado em análise ter origem norte-
americana, ele obteve grande audiência no Brasil na sua versão dublada em português,
transmitida em 2006 pela TV Record. Por isso discutiremos metadiscursivamente o
seriado, observando como as ações performadas também remetem a como o racismo se
constitui no Brasil, mostrando discursos que fazem parte das relações de poder de nossa
cultura. Já que “o metadiscurso se caracteriza por uma auto-reflexividade discursiva, ou
seja, o discurso dobra-se sobre si mesmo, referenciando-se” (JUBRAN, 2009, p. 294),
isso ocorre no seriado em análise na performance do Narrador em off, que faz uma
espécie de parênteses interpretativo entre e dentro das cenas, o que direciona os atos
metapragmáticos a favor de certa coerência metadiscursiva.
Blommaert (2005) diz que o metadiscurso é formado pela indexicalização de
discursos moldados por formas de usos linguísticos performados pelos falantes através
de metapragmáticas. Por isso, temos em Todo mundo odeia o Chris o metadiscurso, que
organiza todo o seriado como sendo o embate entre o discurso racista, pela ideologia de
uma colonialidade do poder, e o antirracista, que se mostra pelas críticas e
interpretações do narrador em off. E para compreender a legitimidade e o sentido de tais
discursos em torno do racismo temos que nos remeter à historicidade do conceito de
raça. O preconceito racial que existe nos dias atuais não surgiu de um dia para o outro,
ele foi, e ainda continua sendo, construído histórico-socialmente através de discursos
dominantes e hierarquizadores, que cristalizaram a permanência do racismo
principalmente nas Américas. Para discutirmos o percurso histórico em que se baseia a
noção de racismo, de como ele ocorre no Brasil e qual a relação de tudo isso com o
seriado Todo mundo odeia o Chris, vamos primeiro partir do termo “raça”, de onde e
para quê ele se origina.
3. RACISMO NO BRASIL E O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL

3.1 Historicizando o conceito de racismo

De acordo com Munanga (2003), o termo raça foi usado primeiramente para
classificar um determinado grupo que possuía características semelhantes
geneticamente. Em 1684, o antropólogo e médico francês François Bernie usa o termo
‘raça’ para classificar a diversidade humana conforme suas diferenças físicas, o que até
então se restringia a animais e plantas, conforme era realizado pelo naturalista sueco
Lineu (1707-1778) dividiu os humanos em Americano, Asiático, Africano e Europeu,
ditando características psicológicas, de cor de pele, inteligência, cultura para cada uma
das raças, fazendo isso de maneira hierarquizante por observação. Considerando essa
classificação feita por um europeu, temos então a valorização desse em contraste com o
africano. O europeu para Lineu é “branco, sanguíneo, musculoso, engenhoso, inventivo,
governado pelas leis, usa roupas apertados” (MUNANGA, 2003, p. 9), é adjetivado
expressando qualidades positivas. Já o africano é “negro, flegmático, astucioso,
preguiçoso, negligente, governado pela vontade de seus chefes, unta o corpo com óleo
ou gordura, sua mulher tem vulva pendente [...]” (MUNANGA, 2003, p. 9), aqui ocorre
o contrário, são adjetivações negativas que caracterizam os negros e muitas dessas ainda
permanecem no imaginário social.
Assim, o termo que compunha apenas o campo semântico da Biologia,
passou posteriormente a ser justificativa de diferenciação social. No século XX, com o
surgimento da Genética Humana se afirma então que a noção de raças humanas,
classificando os humanos dentro de categorias biológicas de acordo com as visões
Determinista e do Evolucionismo, com a noção de darwinismo social que determinava
por características biológicas e sociais a superioridade de uma pessoa sobre a outra, não
poderiam ser sustentadas porque os fatores genéticos dos humanos, além de não serem
estanques, não obtêm diferenças biológicas significativas para separar os humanos em
raças diferentes. A partir disso, a ciência e a biologia, segundo Leandro Carvalho
(2014), com o Projeto Genoma, afirmaram que não existem raças humanas, mas apenas
uma espécie: a do ser humano. Porém, mesmo o discurso científico, que possui valor de
verdade, não conseguiu apagar completamente o efeito que a afirmação da existência de
“raças humanas” provocou; é como se o eco do passado racista não pudesse ser contido.
Mas isso também nos leva a questionar: Por que mesmo a ciência afirmando que não
existem raças humanas, a sociedade continuou afirmando isso? E quem sustenta tal
discurso?
O que gerou essa perpetuação da diferença não foi só o fato de classificar os
seres humanos em determinadas raças, o que de alguma forma contribuiu para
observarmos a diversidade humana. Para entendermos a gênese dessa ideia de raça e a
ideologia de superioridade racial, nos atentemos ao que diz o cientista social Moore
(2007), que faz um percurso histórico e político do racismo desde a antiguidade.
Segundo ele, o racismo advém do pensamento xenofóbico do patriarcalismo, de
sociedades em que os homens comandavam e que se localizavam no berço setentrional
– Europa mediterrânea englobando o Oriente Médio semita de onde mais tarde surgiria
a civilização grega. As diferenças fenotípicas como, por exemplo, a forma do nariz e a
cor da pele, que são formas de adaptação ao ambiente, se tornaram características de
exclusão. A ideia de inferiorização de um povo se configurava, e ainda é predominante
esse pensamento, de acordo com um tipo de determinismo biológico, que decidia se
você era oprimido ou opressor dentro de um sistema que essencializava os sujeitos. Por
isso,
Raça é um conceito, uma construção, que tem sido às vezes definida segundo
critérios biológicos. Os avanços da ciência nos últimos cinquenta anos do
século XX clarificaram um grave equívoco oriundo do século XIX, que
fundamenta o conceito de “raça” na biologia. Porém, raça existe: ela é uma
construção sociopolítica, o que não é o caso do racismo. Racismo é um
fenômeno eminentemente não conceitual; ele deriva de fatos históricos
concretos ligados a conflitos reais ocorridos na História dos povos.
(MOORE, 2007, p. 23)

Ainda segundo Moore (2007), a origem da humanidade se deu em


continente africano, local com bastante incidência de raios solares e consequentemente
calor, por isso os primeiros homos tinham a pele escura para se protegerem de
queimaduras do sol. Na medida em que começaram a migrar para outras áreas do globo,
como as extremidades frias, a cor da pele foi se adaptando ao meio e se tornando clara,
já que nessas áreas os raios solares eram bem menos intensos. Enquanto o globo era
explorado, formas de defesa eram criadas e com elas a briga pelo território. A
classificação de pessoas em raças se deve além da diferenciação do eu com o outro, do
medo de quem é o outro e da identificação de fatores que dão vantagens para exercer
poder, resultando no racismo como forma de enfrentamento. Diop (1976, p. 386 apud
MOORE, 2007, p. 120) diz que acredita “ser o racismo uma reação ao medo,
especialmente quando inconfesso. O racista é alguém que se sente ameaçado por
alguma coisa ou alguém que ele não pode ou consegue controlar.” Daí se criam
mecanismos ideológicos de exclusão que classificam um povo como superior, como
ocorreu na antiguidade com os gregos que tinham a vantagem de terem armas de maior
qualidade e experiências em guerras, o que os favoreciam para dominarem outros
povos, diferente dos povos norte-africanos que apenas detinham o conhecimento
artístico e tecnológico da época. Essa ideologia pregada pelos gregos foi um fator que
mais tarde contribuiu para o surgimento do pensamento eurocentrista, do Nazismo,
apartheid, colonização, escravidão. Então,
Quando evocamos o racismo na Antiguidade, é importante entender que o
racismo como conhecemos em nossos dias não poderia ser expresso da
mesma maneira em face aos negros, pela simples razão que eram os negros
que haviam monopolizado o conhecimento técnico, cultural e industrial até
então. As outras raças tinham que modelar seu desenvolvimento tecnológico,
cultural e religioso segundo a tecnologia, a ciência, a cultura e a arte egípcias.
Os Gregos foram forçados a vir humildemente e beber na fonte da cultura
egípcia. Por conseguinte, naquela época, o respeito devido ao homem negro
era imenso. (Diop, 1976, p. 386)

O ódio de natureza cultural, que é apontado por Moore (2007), possibilita


que o racismo como sistema seja disseminado como pensamento compartilhado por
uma sociedade, se tornando durante a história arraigado a uma cultura como
característica inerente. Não deixando brechas para indagações que busquem a origem
dessa ideologia discriminatória, como ocorreu com gregos e bárbaros, colonizadores e
escravos, sendo que os segundos eram povos tidos como não-civilizados por não
pertencerem ao povo dominante. Ideologias como essa forneceram estruturas para a
constituição do racismo que conhecemos nos dias de hoje e que é resultado de processos
históricos e conceitos que categorizam e selecionam os humanos ao domínio.
E, apesar do preconceito por características físicas diferentes ocorrer entre
os europeus, esse tipo de pensamento se intensificou e se fortaleceu ainda mais quando
o assunto se voltou para o descobrimento de terras e sua dominação, que significava
expansão dos domínios de uma dada nação. Quijano (2005) diz ser o nascimento da
América e o surgimento do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado, a origem de
um novo padrão de poder e saber mundial. Quijano propõe o conceito de colonialidade
para referir-se a essa situação, uma estrutura que submeteu a dominação das Américas,
África e Ásia, a partir da conquista, “a colonialidade é um dos elementos constitutivos e
específicos do padrão mundial do poder capitalista. Se funda na imposição de uma
classificação racial/étnica da população mundial como pedra angular deste padrão de
poder” (QUIJANO, 2007, p. 93). O autor também fala de colonialidade do saber e do
poder, o primeiro termo faz alusão à invasão do imaginário do outro, ou seja, sua
ocidentalização. É um discurso que se insere no mundo do colonizado, destruindo o
imaginário do outro, invisibilizando-o, reafirmando o imaginário do opressor,
transformando a colonialidade em violência, dominando atos ideológicos dos
colonizados e instituindo formas de pensamento subalternizados.
A colonialidade do poder domina o território do opressor, seus habitantes e
o seu modo de interação com o meio, ao afirmar o seu poder hierarquicamente como o
de melhor prestigio devido à carga político-ideológica de seu discurso. Daí vai se
construindo a naturalização do imaginário do invasor europeu, a subalternização
epistêmica do outro e a negação e o esquecimento de processos históricos não-europeus.
Isso podemos ver claramente na história do Brasil que conhecemos, e que é transmitida
pela maioria dos livros, em que temos uma grande exaltação dos feitos portugueses, e
de outros europeus, e suas explorações marinhas pelo mundo, descobertas de novas
terras, trazendo até um tom heroico para o feito. Porém, nesse mesmo livro a história de
outros povos, como os índios e negros, é ocultada ou contada de forma a inferiorizá-los,
tratando os como empecilhos durante a colonização. O ponto de vista do oprimido não é
retratado, e se mostrado é posto conforme tradução de terceiros, ou seja, a narrativa da
história é feita de um ponto de vista hegemônico unilateral e não pela voz do oprimido.
Isto é, em sua maior parte somos interpelados pela ideologia que privilegia um ponto de
vista da história: a do europeu. Podemos ver outro exemplo dessa imposição simbólica
na literatura infantil clássica, resquícios da construção discriminatória pela cor, em que
as protagonistas se encaixam em padrões de beleza europeu, expondo, desde cedo, as
crianças a uma ideologia de que são pessoas brancas que podem ser princesas felizes
para sempre.
A sedução pela cultura colonialista, o fetichismo cultural que o europeu
criou em torno de sua cultura, estimulando forte aspiração à cultura europeia por parte
dos sujeitos subalternizados, tornou o eurocentrismo não apenas uma perspectiva
cognitiva dos europeus, mas também a perspectiva de mundo daqueles educados sob
sua hegemonia. Nesse sentido, pode-se afirmar que a colonialidade construiu, o que
Fanon (2008) chama de a subjetividade do subalternizado. Isto é, ainda continuamos
sendo a todo instante colonizados por pensamentos e atitudes hierárquicas que apontam
o que é “o melhor”, “a melhor língua”, “a melhor cultura”, “a melhor ciência”, “o
melhor corpo”, o que faz com que a subjetividade do subalternizado seja construída pela
visão do opressor que o inferioriza e o trata como um não sujeito.
E uma das marcas fundamentais do padrão de poder de colonização foi a
“classificação social da população mundial a partir da ideia de raça, uma construção
mental que expressa a experiência básica da dominação colonial” (QUIJANO, 2000, p.
1), noção constituída pelo dominante. Assim, se estabelece relações de poder, em que o
homem branco é o dominador, o dito “homem universal”, branco, europeu, de classe
alta e heterossexual, promovendo uma hierarquização a fim de manter o dominio sobre
o outro, mantendo também o poder capitalista de exploração. Essa ideia teve grande
repercussão e influência nas formas de poder e domínio mundial que perduram até os
tempos atuais, onde ganhou novas formas de se manifestar, principalmente quando
olhamos para o Brasil. Então,
o processo colonial inicial projetado para “modernizar”, cristianizar e
civilizar o mundo, transformou-se no último quartel do século 20 em um
processo que objetivava “mercadizar” o mundo, e não mais civilizá-lo ou
cristianizá-lo. Nesse domínio global, a colonialidade continua a ser uma
silenciosa e anônima força motriz de modernização e de mercado.
(MIGNOLO, 2003, p. 300).

A noção de raças se tornou justificativa para a exploração dos negros e


alguns índios a serem obrigados a exercer trabalho escravo, culminando no construto de
ações racistas que permanecem até hoje. Santos (1984) aponta que o racismo é um
“sistema que afirma a superioridade racial de um grupo sobre outros, pregando, em
particular, o confinamento dos inferiores numa parte do país (segregação racial)”
(SANTOS, 1984, p.10). A segregação é uma forma de separação dos ditos humanos dos
não-humanos, como ocorreu de forma nítida nos EUA e na Africa do Sul com o
Apartheid. Também, podemos dizer que no Brasil a segregação ocorreu e ainda ocorre,
como um apartheid simbólico e sutil, que promove um sistema de opressão
imperceptivel e naturalizado. Isto é, “não usamos impunemente a linguagem do
vencedor. Acabamos por assimilá-la e passamos a viver conforme o modelo que ele nos
dá” (KLEMPERER, [1947]2009, p. 309 apud RAJAGOPALAN, 2012, p. 276).
Guimarães (2003, p. 99) afirma que “muitos autores, [...] afirmam que o
racismo e a ‘raça’ são produtos da modernidade, ou seja, que a ideia de raça não
existiria fora da modernidade.” Foi a partir da modernidade que a necessidade de criar
argumentos e justificativas de que uma raça é melhor do que a outra e por isso, um deve
se subjugar ao outro, se tornou precisa para o acontecimento da escravidão. Conforme
Moore (2007), o sistema capitalista, visando sempre lucrar e avançar em suas
invenções, chega a usar a mão de obra escrava, principalmente negra, para atingir seu
objetivo de forma rápida e com baixo custo. A justificativa se voltava novamente para a
questão da cor da pele e do destino inerente a ela, tanto que a Igreja proibiu somente a
escravidão dos índios tidos como primitivos com almas e que deveriam ser
catequizados. O negro africano, considerado o Outro Total segundo Moore (2007), já
nascia condenado à servidão e a não-salvação divina, seguindo os princípios do
determinismo biológico e das causas religiosas. No século XX, como já mencionamos,
essa classificação de raças passa a ser uma pseudociência, em que a ciência afirma a não
existência de raças humanas por estes não serem estáveis geneticamente, daí o conceito
passa a ser sociológico e insiste em permanecer nas práticas sociais.
Na Segunda Guerra Mundial, o termo “raça” tornou-se ainda mais
pejorativo devido ao discurso nazista e sua defesa da raça ariana o que fez com que
“raça” fosse trocada pela palavra “etnia”. E por isso “enquanto o racismo clássico se
alimenta na noção de raça, o racismo novo se alimenta na noção de etnia definida como
um grupo cultural, categoria que constituí um [item] lexical mais aceitável que a raça
(falar politicamente correto)” (MUNANGA, 2003, p. 11).
O uso do que seja caracterizado como “politicamente correto” não resolveu
em nada o preconceito, apenas desvia a atenção de se discutir um problema social. Não
adianta colocar um termo novo numa sociedade já sistematizada por ideologias velhas,
isso só favorece uma forma implícita do racismo, que pode até se tornar mais eficiente
que o racismo explícito e direto, pois o sujeito que sofre com o preconceito tem mais
dificuldade de questionar o opressor pelo fato deste não ter dito algo explicitamente.
Assim, “... quanto a Lei, as pessoas que praticam o racismo escancarado só são punidas
quando se consegue demonstrar que o ato em questão se caracteriza como “injúria”
(RAJAGOPALAN, 2012, p.276), quando alguém atribui qualidades negativas ao outro
ofendendo sua honra, o que torna mais difícil a punição de quem comete racismo pelo
não dito e pelo humor, como ocorre no racismo brasileiro.

3.2. A construção do racismo no Brasil

A colonização dos portugueses no Brasil gerou mortes de índigenas e


objetificação dos negros escravizados, e essa convivência de povos diferentes formou a
base para a miscigenação ocasionando a ideia de “paraíso racial”. Isso nos levou ao
termo ‘Democracia racial’, estabelecido em 1943 por Arthur Ramos e se determinou em
1981 como a “igualdade de todos os brasileiros”, se confirmando, no âmbito da lei, na
Constituição Brasileira de 1988 e que indica uma suposta igualdade entre todos os
brasileiros, não havendo separação racial já que todos são descendentes da
miscigenação.
Com isso, discutir racismo no Brasil é algo à primeira vista inútil, mas é
justamente isso e o fator histórico um dos motivos que contribuem para mascarar a
discriminação racial no Brasil e o torná-lo parte da cultura. Será que a simples
miscigenação de raças seria suficiente para se ter uma nação igualitária racialmente? Por
isso, o racismo é praticado no Brasil de maneira velada, nas artimanhas da linguagem e
se difere do modelo de discriminação separatista de países como África do Sul com o
Apartheid e nos Estados Unidos com o Ku Klux Klan. No Brasil o que temos é “um
preconceito de afirmar o preconceito”, como diz Fernandes (1965), é uma forma
particular de racismo que discrimina por estereótipos, pela estigmatização, pelo humor e
mesmo assim nega o preconceito.
A estrutura política e sistemática do racismo no Brasil se fortalece, segundo
Santos (1984), à medida em que se afirma que no Brasil não existe racismo, todavia ele
se disfarça em nossas atitudes. Explicando melhor o que já resumimos na Introdução, há
cinco diferentes modalidades de racismo no Brasil que consistem em, primeiro: “Nos
acostumamos a ver, e a tratar o povo como bichos” (SANTOS, 1984, p. 65), não
havendo respeito pelo outro, afirmando o não pertencimento do negro à sociedade como
cidadão, isso pode ser observado nas rondas policiais em que, frequentemente, o negro e
o pobre são abordados de forma violenta, como se já fossem criminosos por natureza.
Santos (1984) diz que pessoas pobres no Brasil estão ligadas historicamente ao negro,
isso porque se observarmos nossa história e o que ocorreu com a libertação dos escravos
em 1888, veremos que muitos ex-escravos não tinham para onde ir, então se
aglomeraram nas periferias das cidades, lugar considerado fora da sociedade,
marginalizado e temido por não se enquadrar nos modos de vida tradicional da grande
cidade.
A segunda modalidade do racismo no Brasil é de “achamos, sinceramente,
que os brancos são melhores que os não brancos” (SANTOS, 1984, p.66), a ideia
eurocêntrica, própria da colonialidade do saber, de que tudo relacionado ao ser humano
branco é melhor, sua cultura possui mais valor e o seu conhecimento é tido como
válido, ao contrário do que acontece com a aceitação das culturas negra e indígena, que
precisa de políticas de inclusão para serem vistas. Isso é reforçado a todo instante nos
discursos, a presença do branco ocorre de maneira marcante na mídia que propaga um
padrão de beleza, de língua, de moda, e o negro se encontra anulado disso, sendo
impedido de mostrar seu ponto de vista, não tendo voz socialmente. Culminando na
terceira modalidade de racismo de que fala Santos (1984, p. 76), que é a “ideia negativa
que fizemos das pessoas de cor”, ligada principalmente aos estereótipos raciais, que
ditam e perpetuam a concepção de que o negro é favelado, pobre, perigoso, ladrão, um
ser não social.
A quarta modalidade é a “a ideia de que não somos racistas” (SANTOS,
1984, p. 78), pois estaríamos em um “paraíso racial” em que não há separação racial,
por sermos historicamente formados por diversas raças. Isso leva as minorias raciais a
serem barradas ao reivindicar contra os preconceitos sofridos, já que provas
materialmente explícitas ocorrem em poucos casos, mas a ofensa se configura nessa
linguagem que esconde a forma opressora do discurso. E a última modalidade apontada
pelo autor é a de “olharmos os não brancos como não brasileiros” (SANTOS, 1984, p.
80), a ideia de homem universal, europeu e “puro geneticamente”, vai contra as
características que compõem um sujeito brasileiro mestiço. O índio e o negro são tidos
então como povos à parte por serem apenas mão de obra para a colonização e expansão
de territórios pelo europeu. O que nos faz lembrar Gilberto Freyre e sua exaltação do
branco considerado um herói por trazer o progresso às terras brasileiras (PINHO, 2004),
como se isso fosse recompensa e justificação para os mais de trezentos anos de
escravização de negros e mortes de índios, sem falar da destruição de várias culturas
que existiam.
Sueli Carneiro (2002) diz que o mito da democracia racial produziu no Brasil a
mais nova e sofisticada forma de racismo no mundo, porque nosso ordenamento
jurídico assegurou uma igualdade formal, que dá a todos uma suposta igualdade de
direitos e oportunidades, e liberou a sociedade para discriminar impunemente. O que
aponta para o funcionamento da democracia racial, sendo então ela uma idealização, um
mito, uma máscara que encobre a desigualdade do Brasil para o mundo, no entanto,
mesmo estando
morta a democracia racial, ela continua viva enquanto mito, seja no sentido
de falsa ideologia, seja no sentido de ideal que orienta a ação concreta dos
atores sociais, seja como chave interpretativa da cultura, seja como fato
histórico. Enquanto mito continuará viva ainda por muito tempo como
representação do que, no Brasil, são as relações entre negros e brancos, ou
melhor, entre as raças sociais (WAGLEY, 1952) – as cores – que compõem a
nação (GUIMARÃES, 2002, p. 51).
E mesmo com essa utopia de democracia racial, ela ainda permanece como
uma representação do Brasil. De acordo com D’Adesky (2004) há três motivos que
fazem esse mito perdurar até os dias de hoje. O primeiro motivo é a esperança de um
“futuro de igualdade para todos, ocultando a realidade presente de desigualdades raciais,
colocando em evidencia a mestiçagem real da população” (p. 72), a ideia de que a
diversidade é o motivo para a igualdade, é algo que deve ser reformulado, pois foi por
esse motivo que se houve a sistematização de hierarquias sociais. E recorrer a medidas
de políticas de inclusão das minorias na sociedade pode ser o começo para se assumir a
desigualdade e realizar algo que supra esse desastre histórico. Outro motivo é a
“dificuldade de se falar abertamente sobre as desigualdades raciais no Brasil, já que este
era considerado uma espécie de tabu ou falso problema” (p. 72), a concepção de que no
Brasil não existe racismo, fecha muitas portas para a discussão aprofundada e aberta
com apoio dos governantes, não fornecendo, muitas vezes, oportunidades para se falar e
expor o ponto de vista do negro, que é o maior discriminado.
E “a ideologia da democracia racial continua tendo seus adeptos e também
defensores entre os intelectuais e acadêmicos brasileiros” (p. 73), isto é, muitos ainda
acreditam na ideologia disseminada principalmente por Gilberto Freyre e sua exaltação
ao europeu por proporcionar a diversidade brasileira. Muitos intelectuais que defendem
essa ideia conseguem adentrar na mídia impressa e eletrônica, no debate das ideias,
além de deterem ainda uma forte posição hegemônica no meio universitário, obtendo
maior facilidade para divulgar suas opiniões em revistas acadêmicas.
Trata-se, pois, na “democracia racial”, de impedir que as relações raciais se
apresentem como relações políticas nos espaços de debate público, nos
discursos formais e institucionais de forma explícita. A expressão
“democracia racial” é uma contradictio in adjecto, isto é, uma contradição
nos termos, pois só há democracia sob a condição de não ser “racial”.
Entenda-se essa afirmação na ambiguidade que lhe é própria, significando, ao
mesmo tempo, que a verdadeira democracia é anti-racialista (não fala de
“raças” ou de “relações raciais”) e que relações raciais democráticas são
impossíveis. Em outras palavras, a “democracia racial” constitui-se por um
ato de exclusão das relações raciais (SALES, 2006, p. 254).

O que Sales (2006) está destacando é que se a democracia fosse de fato


praticada politicamente, não precisariamos de denominá-la racial, pois a própria ideia
desse modelo de sociedade integra e dá voz a todos os seus cidadãos, independente das
diferenças. O que caracteriza o problema do racismo como algo a ser resolvido apenas
pelo oprimido, por aquele que sofre o preconceito, e em meio a tudo isso o ser branco é
neutralizado, ele é colocado à parte e “se constitui num sujeito quase invisível, não
questionado, não “desmascarado” na sua hegemonia pretensa e silenciosa de si mesmo
como um problema” (MAIA, 2012, p. 312). Percebemos isso quando o racismo é
questionado, pois é um tema considerado tabu para a elite branca, esse problema sempre
se encontra direcionado para o negro, que sofre com tal preconceito, sendo o dever dele
discutir isso. O que nos faz desviar de quem é o causador do problema, as ideologias do
branco, que formam as causas que levaram historicamente à atual realidade de
discriminação. “Uma verdadeira democracia racial só existe sob a condição de lidar
com as relações raciais e resolver publicamente os conflitos raciais, mediante um
processo articulatório sempre provisório e parcial” (SALES JR., 2006, p. 254).
Para vetar a afirmação do racismo, o brasileiro desenvolveu um
comportamento que se direciona a uma dita cordialidade, que segundo Sales Jr. (2006),
consiste na convivência pacífica entre negros e brancos, sendo a violência justificada
mediante a agressão de uma das partes. A cordialidade racial não é para negros
impertinentes, ela procura mostrar as relações de poder e sustentar as discriminações,
fortalecendo um racismo “justificado” pela defesa pessoal. “As relações cordiais são
fruto de regras de sociabilidade que estabelecem uma reciprocidade assimétrica que,
uma vez rompida, justifica a ‘suspensão’ do trato amistoso e a adoção de práticas
violentas” (SALES JR., 2006 p. 230). A imagem de igualdade brasileira é mantida desde
que cada um fique em seu lugar social, em ocorrendo o contrário ofensas e violência são
tidas como válidas, porém são elas que revelam a profundidade dos argumentos e ações
discriminatórias que pretendem exercer no outro a inferiorização.
O contexto midiático atual traz para a tela representações que retomam a
todo instante formas de discriminação racial, que muitas vezes nem percebemos pela
sua naturalização. Por exemplo, quantas apresentadoras/es de televisão negras se
encontram em horários nobres? Quantas empregadas brancas existem nas telenovelas?
Quantos negros aparecem em propagandas de beleza, cosméticos, cremes dentais etc.?
Um caso que retrata o ideal representativo, e a dita democracia racial, se encontrou
presente na escolha que a FIFA fez por um casal com características brancas (Fernanda
Lima e Rodrigo Hilbert) em vez de um casal com características negras (Camila Pitanga
e Lazaro Ramos) para levar a bandeira do Brasil durante a Copa do Mundo de 2014,
representando um país que possui a segunda maior população negra do mundo. E
quando perguntaram a FIFA o porquê da escolha, apenas afirmaram que os escolheram
pelo fato daqueles já terem tido boas experiências na copa de 2010.
O ideal ainda se perpetua de forma marcante quando nos voltamos,
principalmente, para os concursos de beleza, apenas uma vez durante o concurso miss
Brasil uma negra gaúcha ganhou a competição, no ano de 1986, isso sem falar da
escassez de mulheres negras nos concursos de miss, como no Estado da Bahia onde
mais de 80% da população é negra e a grande maioria das mulheres classificadas para o
concurso são brancas. Isso se configura, segundo Mauss (1974), pela chamada
“imitação prestigiosa” em que os indivíduos de cada cultura constroem seus corpos e
comportamentos, que variam dependendo do contexto histórico e cultural, e que são
imitados, repetidos e padronizados ao serem considerados atos bem sucedidos. Dessa
forma, o corpo brasileiro na mídia tem sido representado ainda com ideais do branco,
ocultando a realidade mestiça massiva.
Outra causa da não explicitação de uma discussão sobre o racismo no Brasil
se deve à criação do termo “mulato/a” que se aplica como o intermédio entre o branco e
o negro. Então, tendo o mulato como a representação mais original dessa miscigenação
no Brasil, ele é considerado por Pinho (2004, p. 98) “o símbolo da mobilidade social”,
que foge da estagnação de modelos corporais, trazendo a modernidade pela mistura
racial. Porém, esse discurso “desqualifica qualquer autenticidade cultural
afrodescendente” (p. 100), que mais uma vez reafirma a negação do negro, do preto e da
divisão racial para se repetir o discurso da democracia racial. Assim, o que temos é uma
dita banalização do racismo pela sua aceitação e prática, pois mesmo havendo
consciência de que as relações raciais funcionam por definições performáticas de papéis
sociais historicamente marcados, temos um comodismo por ambas às partes e quando se
há questionamento a voz de quem fala é velada pelo dominante que a categoriza como
sem fundamento para se levar a maior discussão.
A banalização do racismo visa criar a impressão de que “tudo anda bem” na
sociedade, imprimindo um caráter banal às distorções sócio-econômicas entre
as populações de diferentes “raças”. Os que acreditam no contrário podem ser
julgados “revoltosos”, “inconformados” e, até mesmo, “racistas às avessas”.
Contra estes, a “boa sociedade” estaria legitimada a organizar vigorosas
ações de repressão. Essa expansão e aceitação do racismo conduzem,
inexoravelmente, à sua banalização (MOORE, 2007, p. 16).

O racismo se instala institucionalmente barrando direitos básicos de garantia


a vida, escolhendo pelas categorias de diferenciação quem pode ou não ter acesso a
dada instituição. Jaccoud (2009) diz que esse racismo institucional não se expressa em
atos explícitos ou declarados de discriminação, mas extrapola as relações interpessoais e
instaura-se no cotidiano institucional, interferindo até na implementação efetiva de
políticas públicas e inclusão de grupos marginalizados, alcançando um maior nível de
desigualdades pelo poder político, ao atuar de forma a controlarem a distribuição de
serviços, benefícios e oportunidades de maneira igualitária aos diferentes segmentos da
população. Em pesquisa da ONU no final de 2013
a participação dos afrodescendentes na economia nacional é de apenas 20%
do PIB, apesar de representarem mais da metade da população do Brasil. O
desemprego é 50% maior entre os "afro-brasileiros" do que entre os
descendentes de europeus, enquanto a média salarial entre os
afrodescendentes é de US$ 466, quase metade dos US$ 860 dos descendentes
de europeus (G1, 2014, s/p).

O racismo, sendo um conjunto de práticas criado para controle político,


serve como aparato para manter o sistema político-econômico capitalista, ao se utilizar
do biopoder como norma que dita a função dos sujeitos na sociedade mediante suas
características biológicas, transformando o que é biológico para o caráter ideológico de
controle social. Por isso, para se manterem cristalizadas as diferenças sociais e se
garantir a subordinação das camadas oprimidas, o direito e a democracia a favor destes
são manipulados. Então “o biopoder foi elemento indispensável ao desenvolvimento do
capitalismo, que só pode ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no
aparelho de produção e [...] ajustamento [da] população aos processos econômicos”
(FOUCAULT, 1988, p.132). O que leva à discriminação racial que localiza os grupos
em seus locais, tanto físico quanto simbólico, de exclusão, que colocam negros e pobres
em favelas e ricos e brancos no centro da cidade, além de criarem uma barreira que
impede que os de classe baixa alcancem funções de poder social.

3.3 Racismo espirituoso

Em lugares de prestígio social, o negro se encontra excluído, mas quando


passamos para programas humorísticos encontramos de forma intensa a imagem do
negro e associações a ele ocorrendo de forma estereotipada. Esses são produzidos ao se
personificar a personagem negra de maneira cómica, de forma a construir uma imagem
que inferioriza e reflete as consequências produzidas no período colonial. No humor
quase tudo é permitido, o ridículo se torna cômico e o sentido do riso só é possível ao
ser ele construído em uma dada situação ou contexto. O riso passa a ser como uma
“proteção” diante de qualquer mal-entendido, ele tira o tom de acusação racista que
possa atingir as pessoas que riem. O humor é gerado pela piada que se refere ao outro,
expressando hierarquia e favorecendo o poder catártico e de anulação preconceituosa do
riso. O riso pode ser entendido como uma aceitação das afirmações cômicas que se
baseiam na realidade social e seus desvios de conduta tradicionais que quebram com a
expectativa humanística do público. Assim, Fonseca (1994, p. 53) diz que “os grupos
sociais quando riem de determinada piada, demonstram que estão aparentemente de
acordo com suas mensagens, que elas encontram eco na sociedade”. Dahia (2008)
associa o riso e a piada racista, a uma prática de discriminação do outro por meio da
destruição pelo poder e pela infantilização do objeto risível, e ainda afirma que o riso
representa um jogo de forças que se tornou um dos modos de exclusão social.
Isso se configura no chamado “racismo espirituoso” (SALES JR., 2006),
que age por meio do humor, através, principalmente, de trocadilhos, ironias e piadas,
gerando a estigmatização pelo não dito e, quando dito, é encoberto e anulado pelo
cômico. O racismo espirituoso promove uma “espiritualização da crueldade” que,
segundo Sales Jr. (2006), marca e demarca o corpo do outro sem o uso direto da
violência física. Acerca do não dito, Ducrot (1987) diz que
[...] é saber como se pode dizer alguma coisa sem, contudo, aceitar a
responsabilidade de tê-la dito, o que, com outras palavras, significa
beneficiar-se da eficácia da fala e da inocência do silêncio. [...] A
significação implícita, por sua vez, pode, de certo modo, ser posta sob a
responsabilidade do ouvinte: este é tido como aquele que a constitui por uma
espécie de raciocínio, a partir da interpretação literal da qual, em seguida, ele
tiraria, por sua conta e risco, as consequências possíveis (DUCROT, 1987,
p.20).

No seriado Todo mundo odeia Chris, o suporte é um meio de comunicação


midiático, a televisão, que é fonte de entretenimento, informação e diversão, controlada
pela elite por ideologias que favorecem esta, e, muitas vezes, retratam imagens
estereotipadas e cômicas do negro, afirmando através de repetições discursivas um
modelo pejorativo da identidade do negro na sociedade. Dahia (2008, p. 706) diz que “o
não-dito serve como recurso de ‘invisibilização’ do preconceito” já que por meio de
piadas o conteúdo que a compõe não se torna passível de crítica pois não é “sério”, o
que leva então a perpetuação desse tipo de humor como apenas entretenimento. Ainda
conforme Dahia (2008, p. 709) “o chiste permite o resgate de conteúdos proibidos”, mas
que estando amparado pelo riso não se tornam uma transgressão da lei, o que contribui
para o prazer do riso provocado pelo mascaramento do desvio das regras sociais que
condenam a prática de não respeito ao outro. Fortalece-se “a representação do conflito
permanente num nível inconsciente, ocultando, também a razão do prazer a ele
vinculado” (DAHIA, 2008, p. 712) e se continua velando qualquer preconceito que a
piada e sua aceitação possam provocar.
Assim, sendo o riso o fator que faz de Todo mundo odeia o Chris um
seriado de comédia é, conforme Lorenz (1974) uma sanção a toda “quebra de
expectativa” não perigosa à integridade orgânica ou da identidade social dos que riem.
Com isso, segundo Sales (2006), a estigmatização pelo não dito (piadas, injúrias,
trocadilhos, provérbios, ironias...) marca e demarca o corpo sem o uso direto da
violência física, por meio do açoite da injúria e da impressão a fogo pela piada.
Portanto, o estigma é um “ato ou transformação incorporal” dos corpos: atribui-se aos
corpos, modifica-os, mas se distingue deles, caracterizando-se por uma dupla face: “É o
expresso de uma proposição e o atributo de um corpo, sendo a instantaneidade a marca
de sua realização, pois é no momento mesmo de sua enunciação que se produz o efeito
sobre os corpos” (Almeida, 2003, p. 72). As situações apresentadas no seriado a respeito
de Chris são baseadas em estereótipos e em sua quebra, personificando na personagem
de atos cômicos, de forma a construir uma narrativização de acordo com o pré-
construído de um contexto social de uma sociedade pós-colonial.
Isso pode se mostrar através de chistes, ironias, provérbios, trocadilhos.
Observamos isso em alguns recortes de falas da série que se reportam ao personagem
negro Chris. No episódio Todo mundo odeia a formatura temos uma conversa entre a
Srtª Morello e Chris.
Srtª Morello : Chris, já sabe para qual colégio você vai?
Chris: Ah! Quero ir para a Academia de ciências do Bronx com o Greg
Srtª Morello: Olha Chris, você se formou no ensino médio, não vamos ser
pretensiosos, a Academia do Bronx é para estudantes exemplares, você
deveria pensar em alguma coisa mais realista.

Nesse diálogo, a Srtª Morello expressa sua opinião baseada no determinismo


biológico e em estereótipos do negro que justificam o motivo de Chris não poder ir para
o Bronx onde se têm “estudantes exemplares”. O Narrador em off completando aponta a
fala dela para o não dito que a Academia do Bronx é uma Instituição para estudantes
“brancos” e não negros favelados, explicitando uma estigmatização simbólica que
marca Chris como fora dos padrões para o Bronx.
No episódio Todo mundo odeia o dia dos namorados, o personagem Joe
Caruso diz em um cartão: - Batatinha quando nasce se esparrama pelo chão, volte para
África com seu pai, sua mãe e seu irmão. Neste excerto de trocadilho racista que
exprime a não aceitação do negro em território, predominantemente, do branco, como é
o colégio Corleone, temos uma agressão simbólica, que baseia a agressão física
frequente de Caruso, um garoto branco, que pela violência procura provocar o medo e
manter o seu poder.
A estigmatização também ocorre pelo ato de nomear o outro usando de
palavras que adquirem sentido pela repetição de seu uso em diversos contextos, fixando
no nomeado a representação daquele nome. Durante os episódios do seriado Todo
mundo odeia o Chris, encontramos diversas nomeações, apelidos racistas, direcionadas
ao negro como: asfalto, petróleo, neguinho, chimpanzé, feijão, fumaça, pneu, carvão,
urubu, sola de sapato, isolante, lama de poço, frigideira, chocolate, marrom... são todos
“nomes injuriosos [que] têm uma história[..] invocada e reconsolidada no momento da
fala, mas não é dita explicitamente” (BUTLER, 1997, p. 36), performando a
estigmatização pelo ato da comunicação, provocando então efeito sobre o outro, ao
indexicar um dado significado que afirma a subalternidade.
Os atos violentos, mesmo às vezes estando somente no nível discursivo,
segundo Sales Jr. (2006), apontam para as formas de discriminação racial, que também
se efetivam através da injúria racial, a qual não se apresenta somente através da
violência física, que é o resultado de todo um processo de subjugação do outro pela
violência simbólica. Sales Jr. (2006, p. 233) ainda afirma ser a estigmatização racial um

exercício de uma vigilância difusa e ciosa da hierarquia e da dominação


raciais, provocando intensidades de dor nem sempre corpóreas, mas que
repercutem no corpo, mutilando-o, esfolando-o, fragmentando-o,
codificando-o, semiotizando-o, não apenas simbolicamente ou
imaginariamente.

Em termos psicanalíticos, a estigmatização conduz o negro a um “corpo


masoquista” (Deleuze apud SALES JR., 2006), pois se acredita que o corpo negro é o
próprio lugar da subordinação ou da exclusão, é um corpo destinado a servir e que a
constituição desse sujeito passa pela negação do seu próprio corpo, ou de parte dele. No
episódio Todo Mundo Odeia o Baile da Nona Serie (3ª Temporada – 20ª Episódio),
Chris que não tinha ninguém para ir ao baile, decide então falar com Carry, uma menina
branca que não tinha muitos amigos e que aceita ser o par de Chris para o baile. Para se
conhecerem melhor, começam a conversar e um dia quando estavam comendo juntos
algumas pessoas ao seu redor falavam sobre eles uns com outros:
Personagem 1: Porque ela vai ao baile com ele? Ele é tão sujo.
Personagem 2: Acho que ele tá chantageando ela, ele é tão ignorante.
Personagem 3: Qualquer um seria melhor do que ele, ele é tão... ordinário.
Narrador: Essa foi a forma delicada de falar, o que elas queriam mesmo dizer
era:
Personagem 1: O que ela tá pensando? Ele é tão neguinho.
Personagem 2: Ela ficou maluca? Ele é neguinho.
Personagem 3: Alguém acertou a cabeça dela com um bastão de beisebol,
arrancou os olhos e entupiu ela de drogas? Ela não sabe que ele é neguinho?

Imagens da cena

Chris e Carry Personagem 1

Personagem 2 Personagem 3

Percebemos nesse trecho que Chris é marcado historicamente por


preconceitos ligados à sua pele, seu corpo é estigmatizado pela ironia das três
personagens que julgam o porquê Carry decidiu acompanhar Chris ao baile, o tratando
como um ser fora do padrão que não possui poder para tal relação social. No momento
que o Narrador faz as avaliações metapragmáticas sobre o que as personagens “queriam
realmente dizer”, a identidade de Chris é mais uma vez construída por atos de fala que
então provocam ações, o classificando como alguém não socializável por ser
“neguinho”. Segundo Santos (2012, p. 32) “Austin (1976, p. 30) afirma, numa nota de
rodapé, que “muitos desses possíveis procedimentos e fórmulas seriam desvantajosos se
fossem reconhecidos” e que, portanto os atos de fala
têm uma eficácia maior quando o propósito da ação não é declarado. Tentar
enganar alguém dizendo “Eu engano você” seria no mínimo engraçado,
embora não tenhamos dúvida de que esse efeito posso ser obtido
verbalmente, por meio de uma narrativa ardilosa, por exemplo.

O propósito da ação de insultar só pode ser percebido ao relacionarmos o contexto e a


finalidade dos enunciados, e é pelo Narrador em off, constituído historicamente,
socialmente e culturalmente, que esses propósitos são revelados, direcionados e
enquadrados metapragmaticamente pelos contextos interpretativos, indexicalizando
então a ação do enunciado ao resgatar discursos naturalizados a tais práticas sociais. Por
isso, “nomear atividades de fala, explicitar enunciados e expressar intenção
ilocucionária são ações metadiscursivas” (SANTOS, 2012, p. 33), que são realizadas no
seriado em análise pelo Narrador em off que dita, interpreta e liga as ações, não
deixando espaço para possíveis outras interpretações, refletindo sobre os discursos,
complementando também para a finalidade humorística do discurso. Ainda conforme
Santos (2012, p. 33), “a pessoa que nomeia uma atividade de fala age como um(a)
intérprete. A depender do poder que ela tem na interação, ela pode manipular ou impor
uma interpretação”. Isso é o que ocorre nas cenas de Todo mundo odeia o Chris,
mediante o silenciamento das personagens, que “também pode ser citado como um
efeito do insulto, que retira da pessoa insultada a capacidade de reagir” (SANTOS,
2012, p.80), como por exemplo, o que ocorre com o protagonista Chis, que geralmente
não questiona as práticas racistas sofridas, sendo essa ação questionada pelo Chris
adulto – Chris Rock, voz do Narrador do seriado, empoderado para realizar tal ação por
ocupar um lugar social de prestígio nos dias atuais. Isto é, devido às condições de estar
em um patamar social de elite, agora ele tem voz para falar sobre suas próprias
experiências e de como elas continham conteúdos racistas.

3.4 Corpo negro e performatividade identitária

Para Caldwell (2000), o corpo é um traço de nossa identidade social que nos
posiciona em determinado lugar na sociedade. Os indivíduos exercem um controle
sobre os corpos uns dos outros de modo que cada um deve adotar ações com seu próprio
corpo segundo os padrões culturais. O corpo é uma construção social, é a materialidade
cultural e é onde os discursos se cruzam na construção de identidades, sendo que esse
discurso “é produzido nas e por meio das práticas sociais, instituições e ações”
(KUMARAVADIVELU, 2006, p. 140), é uma ação que um sujeito exerce no e sobre o
mundo social, sobre os outros e, consequentemente, sobre si mesmo.
o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as
relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam,
o dirigem, o suplicam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias,
exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo
relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é numa boa
proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de
poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de
trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição onde a
necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado,
calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo
corpo produtivo e corpo submisso. Essa sujeição não é obtida só pelos
instrumentos da violência ou da ideologia; pode muito bem ser direta, física,
usar a força contra força, agir sobre elementos materiais sem no entanto ser
violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode ser
sutil, não fazer uso de armas nem do terror, e no entanto continuar a ser de
ordem física. Quer dizer que pode haver um “saber” do corpo que não é
exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle de suas forças que
é mais a capacidade de vencê-las: esse saber e esse controle constituem o que
se poderia chamar a tecnologia política do corpo (FOUCAULT, 1987, p. 26).

Cada corpo deve produzir um discurso de acordo com o contexto de que faz
parte e esse discurso deve se adequar aos padrões com penalidade de sofrer sanções
sociais que o pressionam para se alinhar à ideologia dominante. E quando olhamos para
o corpo negro surgem diferentes questões que transgridem o considerado “corpo belo”,
isso devido a construções ideológicas de hierarquização dos corpos. Os discursos
midiáticos têm importante contribuição na construção social de identidade,
principalmente dos tidos como subalternos. Esses discursos seguem a visão de negritude
como essência, consideram haver uma natureza própria do ser negro, que se opõe à
normatividade social, cuja matriz é a branquitude. Segundo Foucault (1987), o poder
disciplinar se aplica aos corpos a fim de adestrar e alinhar os sujeitos a assumirem
determinados papeis sociais, isso faz com que adquiram uma dita identidade essencial,
já formulada pelo outro e afirmada historicamente por repetições e pela não contestação
de sua posição subalterna. A constituição do corpo é transformada em um ato político
de significação prévia desde o nascimento.
O corpo negro é moldado por categorias de interseccionalidade de gênero,
raça, classe, que constroem o lugar dos sujeitos e situam suas ações, é nele que se
marcam as diferenças e as classificações sociais, culturais e históricas de identificação.
“Para a teoria dos atos de fala, tal qual a entendo aqui, o corpo tem seus limites
irredutíveis porque nele estão inscritas as regulações sociais, não como representações
das estruturas de poder, mas como parte dessas estruturas.” (PINTO, 2007, p. 13). É no
corpo que se afirmam as regras, podemos dizer que ele é a representação material de
como tal sociedade funciona, realizando uma metapragmática explícita da cultura e
quem não se enquadra no modelo normativo é então corrigido por coerções sociais.
O corpo negro construído historicamente como subalterno pode se
configurar entre a concepção de um corpo submisso e erotizado. O corpo feminino
negro foi submetido à servidão sexual ao seu senhor, destinada ao prazer, ao pecado,
diferente da mulher branca que se destina a ser esposa e é tida como imaculada. Como
já vimos, no episódio Todo mundo odeia a formatura (3ª Temporada – 22º Episódio),
temos a concepção de mulher negra, representada por Rochelle, que é marcada de início
como “certamente” tendo muitos filhos de pais diferentes além de viciada, se
configurando nos preconceitos de uma mulher negra do gueto que não pode e não tem
legitimidade para falar por si.
Entrevistador: [...] Vamos em frente. Tem três filhos não é? Quais os nomes
dos pais deles?
Rochelle: Julius. Os pais deles? Não, eles têm um pai só.
Entrevistador: Sabe o nome dele?
Rochelle: Onde andou se informando sobre nós?
Narrador: Eu sei onde.
[Nesse momento é chamada outra cena explicativa que não faz parte do fluxo
do 1º plano de cenas]
Srtª Morello: Infelizmente acho que o Chris é um filho da droga, a mãe dele
tem alucinações, o cérebro foi afetado por anos e usos de drogas e excesso de
vinho barato. Ela está mesmo convencida de que tem um marido que trabalha
em dois empregos e de que eles têm uma casa no gueto. Não acredite em
nada do que ela disser.

A mulher negra no Brasil tem sua identidade social construída por um


imaginário que a molda a partir de discursos dominantes e europeus de beleza, que
muitas vezes reafirmam a rejeição da noção subalterna da negra preta e para fugir dessa
noção se denominam então mulatas, um termo que se situa no entremeio da nem preta,
nem branca. Caldwell (2000) usa o conceito de imagens controladoras, proposto por
Collins, para discutir que o que sustenta a imagem nacional brasileira de “democracia
racial” são formas de desigualdade de raça e gênero estruturadas historicamente,
representadas pela mulata e a “globeleza”, e pela mãe preta como símbolos de
submissão aos desejos do seu senhor, se repetem nos discursos de forma a naturalizar
práticas de dominação que fortalecem relações de poder. De acordo com Souza (2009),
Fanon aponta que o homem negro, no imaginário ocidental, não é um homem, antes ele
é um negro e como tal não tem sexualidade, tem sexo, que o emascula ao mesmo tempo
em que o assemelha a um animal em contraste com o homem branco.
No seriado Todo mundo odeia o Chris, temos essa representação do homem
negro erotizado e fruto de desejo, o que o faz oscilar entre um corpo marcado pela
subalternidade de sua identidade e símbolo exótico sexual. No episódio Todo mundo
odeia a BedStuy (3ª Temporada 6º Episódio), a Srtª Morello, mulher branca e racista,
classifica os negros de maneira estereotipada, apesar de negar que realiza tal ato, mas se
mostra interessada nos dotes físicos dos homens negros. O episódio conta sobre Chris
ter entrado para jornal da escola e escreve um texto que não foi aceito por Lisa, que é a
editora do jornal, então Chris mostra o texto para a Srtª Morello que diz:

Srtª Morello: Lisa tem razão, isso não é bom.


Chris: O quê que tem de errado?
Srtª Morello: Chris, não há nada pior que estereótipos raciais, nós já vimos
isso mil vezes, homem negro alto sem camisa, com o vocabulário cheio de
gírias, o corpo suado do trabalho no campo, a testa marcada com um brilho
ardente... onde eu estava?

E no episódio Todo Mundo Odeia o Novato (3ª Temporada – 9º Episódio), em que a Srtª
Morello conta a Chris sobre como ele deve estar feliz com a chegada de mais um negro
na escola, ela compara sua felicidade com o encontro de dois conhecidos jogadores
negros de beisebol americano Jackie Robinson e Lerry Doby.

Chis: Quem é Lerry Doby?


Srtª Morello: Ele foi o segundo negro no beisebol, mas ele era mais alto do
que o Jack e mais... encorpado, tinha ombros fortes e um perfil de novio2, o
uniforme do Cleveland Indians fazia jus a pele caramelada dele, e o jeito que
ele balançava o taco...
Narrador: Nada de febre da selva, ela tava tendo um ataque selvagem.

A Srtª Morello relaciona o corpo do homem negro a aspectos eróticos de


virilidade que o constrói ao mesmo tempo como um corpo excluído socialmente por ser
negro e destinado à servidão, mas que se direciona a ser um padrão de beleza masculino
em disputa com o homem branco. Ligado à força, o corpo negro masculino é marcado
pela hipersexualização que expressa pelo poder a constituição do ser homem, mas que é
vigiado socialmente a manter essa masculinização bem definida, a fim de que seja
“homem de verdade”.

Uma outra representação é a do Negão, ele é o oposto do Neguinho na sua


preocupação com a virilidade, ele seria fisicamente forte e dotado com uma
excepcional capacidade sexual. Ele é ameaça ao homem branco por seu
apetite sexual insaciável e pela sua diabólica sensualidade, irresistível para a

2
Sic. Isso pode estar relacionado à noção de romântico e sensual indexicados culturalmente aos sujeitos
latinos.
mulher branca, este mito do homem negro hipersexualizado é veiculado
exaustivamente pela TV (SOUZA, 2009, p. 104).

E no seriado Todo mundo odeia o Chris, podemos perceber ao menos três


representações de homens negros: o personagem Chris representa a fuga do dito padrão
sexuado de homem negro, ele é magro, não desejado pelas mulheres e não possui
nenhuma habilidade esportiva. O personagem Drew desde pequeno é desejado pelas
mulheres, tem muitas habilidades, é maior e mais encorpado que seu irmão mais velho
Chris. E o personagem de Julius que representa o corpo masculinizado, musculoso,
desejado pelas mulheres e destinado ao trabalho duro.

Chris Drew Julius

O corpo é performado pela cultura e materializa a identidade social do


sujeito. Segundo Hall (2007), as identidades invocam uma origem que residiria em um
passado histórico, com o qual elas continuam a manter certa correspondência. Elas são
construções históricas performadas em contextos específicos de comunicação,
representando a produção cultural não daquilo que somos, mas daquilo que nos
tornamos pelas interações sociais. O contexto histórico é um importante fator na
composição de uma identidade social, é onde são processadas ideologias que compõem
o sistema e o funcionamento de um povo que resultam de uma complexa composição de
escolhas lideradas pelo poder hegemônico. E sendo a mídia de massa liderada por
ideologias dominantes a fim de manter a permanência de seus domínios, ela se esquiva
de propagar a voz daquele que é oprimido. Então constrói uma realidade unilateral, que
se repete firmando comportamentos que provocam efeitos de verdade, estabilizando
identidades dentro de estereótipos.
Considerando que “a performatividade é o que permite e obriga o sujeito a
se constituir enquanto tal” (PINTO, 2007, p. 13), os efeitos das construções discursivas
colonizam o corpo do outro a todo instante, o colocando a serviço das normas sociais,
usando a divisão racial como parâmetros de ser que privilegiam o colonizador. Por isso,
para Hall (2007), as identidades são construídas dentro dos discursos e não fora deles,
percebemos que nossa identidade é fruto das práticas coloniais, pela subordinação do
outro como não-humano e que então pode ser animalizado e objetificado para a
servidão. É então pelo processo de alteridade que características são atribuídas a dados
corpos e historicamente nomeados conforme padrões dominantes que promovem a
reatualização do poder hierárquico.
E de acordo com Derrida (apud SILVA, 2007) a constituição de uma
identidade está sempre baseada no ato de excluir algo e de estabelece uma violenta
hierarquia entre os dois polos resultantes como, por exemplo, homem/ mulher,
branco/negro. Em que o “homem” e o “branco” são equivalentes a “seres humanos” e
que “mulher” e “negro”, são tidos como marcas, em contraste com os termos não
marcados “homem” e “branco”. Essa marcação se percebe, por exemplo, na literatura,
em que temos literatura negra, feminista, surda em oposição as dominantes que não
necessitam serem marcadas. A identidade negra é apresentada no seriado Todo mundo
odeia o Chris através de uma série de marcadores de poder, como os nomes injuriosos e
estigmatizadores, que colocam o negro em posição de inferioridade, um ser fora da
sociedade, localizado em contextos marginais, oprimido pelo social e o ser branco como
o dito normal.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Qualquer tentativa de descrição da comunicação que exclua aspectos sociais


é considerada inócua e ineficiente para a pesquisa pragmática. A linguagem
não é, portanto, meio neutro de transmitir ideias, mas sim constitutiva da
realidade social. Não sendo a “realidade social” um conceito abstrato, mas o
conjunto de atos repetidos dentro de um sistema regulador, a linguagem é sua
parte presente e legitimadora, e deve ser sempre tratada nesses termos.
(PINTO, 2000, p. 63)

Todo mundo odeia o Chris se configura dentro de uma historicização do que


é ser negro e de como isso interfere nas relações sociais de uma sociedade capitalista,
escravista, estereotipada e preconceituosa. Por isso, não podemos analisar a linguagem
sem olharmos primeiro, mas concomitantemente, para a trajetória histórica dos
discursos e de como eles se configuraram. Temos então que o modo como nos situamos
dentro de uma cultura e olhamos o mundo é construído pela convergência histórica de
nossa colonização, que sedimentaram ao logo do tempo diferentes formas de exercer
atos discriminatórios, que se aperfeiçoam mediante a repetição de esquemas
hierárquicos.
Para se fortalecerem, os discursos racistas utilizam, por exemplo, de
recursos linguísticos como o não dito, que transferem para o nível do implícito a prática
discriminatória, a fim de que não se tenha punição conforme a lei, já que a ofensa não
foi posta claramente. Assim, se compõe também o humor de base racista, que
estigmatiza fatos sociais ao tornar cômico o outro, em que o riso significa a aceitação da
subordinação por características que partem do fisiológico chegando ao nível subjetivo
do oprimido. A piada possui significação simbólica que por convenção forma uma
imagem que faz sentido a quem ri por este estar no mesmo contexto de criação da piada.
E é performado no momento da enunciação da piada um perfil de sujeito negro, que tem
o corpo marcado pela diferença em comparação ao padrão normativo branco e europeu.
O seriado em análise ao ter elementos que o colocam como um sitcom tem
então em sua formação efeitos de verdade por procurar retratar as situações de maneira
realista, o que possibilita sua análise em comparação ao contexto macro, fora da ficção
do seriado, pois “há regiões onde esses efeitos de verdade são perfeitamente
codificados, onde o procedimento pelos quais se pode chegar a enunciar as verdades são
conhecidos previamente, regulados” (FOUCAULT 2006, p.233), são contextos de
enunciação que indexam uma visão de como a sociedade funciona. Então, Todo mundo
odeia o Chris ao ser pautado em experiências autobiográficas do autor, reforça a noção
de uma realidade em meio à ficção “porque foi pronunciado daquela maneira, naquele
tom, por aquela pessoa, naquela hora” (p.233) dentro de formações discursivas que
fornecem força para as ações e os efeitos dos enunciados, que se fortalecem pela
repetição de concepções.
Possibilitou-nos, então, uma reflexão analítica sobre os discursos
produzidos nesse sitcom e sua relação com o contexto macro, nos direcionando também
ao racismo brasileiro e sua negação do preconceito, por meio dos recursos
metadiscursivos que emergem de lutas discursivas entre o discurso racista e não-racista.
Valemo-nos de uma análise metapragmática, de como os sujeitos usaram a linguagem
para provocarem ações de maneira a recontextualizar e indexicar significados que
constroem o modo como se comporta uma sociedade. Essas categorias funcionam em
Todo mundo odeia o Chris através de três planos que partem da pragmática, dos
processos de textualização dos signos e produção dos enunciados, que são
recontextualizados e corrigidos indexicalmente no segundo plano de análise da
metapragmática, formando ideologias que são legitimadas em um terceiro plano, o do
metadiscurso. Resultando no esquema interpretativo abaixo para o seriado:

Metapragmática
(Modelização dos atos de fala como racistas)

Enunciado - Recontextualização
Pragmático
(signo) Correção indexical

Metadiscurso (Racismo)

Esses níveis acontecem nas cenas de forma simultânea, em que o Narrador,


que realiza a metapragmática explícita, direciona uma interpretação e ligação entre as
cenas, e a metapragmática indireta acontece pelos telespectadores, podendo gerar
diversos sentidos que são direcionados conforme o contexto e formação social de quem
assiste. O nível metapragmático se vale dos recursos de recontextualização e correção
indexical para realizar molduras e enquadramentos de como os falantes usam a
linguagem em dada situação. Os personagens do seriado são caracterizados por papéis
sociais que os possibilitam de realizar determinada produção discursiva, se remetendo a
uma hierarquia social materializada na linguagem. E o metadiscurso legitima a
linguagem produzida nas interações entre as personagens dizendo o porquê de se obter
aquele enunciado e não outro ao seguir as regras de funcionamento das construções
históricas, culturais e sociais. Essas regras são questionadas pelo Narrador em off, que
representa o personagem Chris adulto, que, pelo empoderamento que o permite contar
suas experiências, destaca o racismo contribuindo mais uma vez para os efeitos de
verdade no seriado.
O sitcom se relaciona com o racismo no Brasil, pois retrata como a
estigmatização de injúrias, piadas e ironias são performadas no discurso não dito que
provoca e baseia o humor por meio da ridicularização de características físicas e
psicológicas do negro. Assim, ao inserir o Narrador em off com seus recursos
metapragmáticos (recontextualização e correção indexical) que nos fazem observar o
metadiscurso racista em jogo, o humor no seriado prova ser tanto algo cômico quanto
uma brecha para observar os significados cristalizados em nossa sociedade, que podem
levar a um ponto de vista crítico de análise.
Então Todo mundo odeia o Chris é uma performance midiática da
identidade do negro e sua discriminação historicamente marcada e repetida nos
discursos hegemônicos, que classificam os seres humanos em noções socialmente
construídas sobre raça e alimentam o sistema político-econômico capitalista e sua
determinação hierárquica de poder.
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Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora
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[...] eu... enfim, sei quem eu era, quando me levantei hoje de manhã, mas acho que já
me transformei várias vezes desde então.

Alice no País das Maravilhas

A razão humana é capaz de justificar qualquer mal; é por isso que não devemos
depender dela.

Divergente

• UMA ÚLTIMA NOTA DE SUA NARRADORA •


Os seres humanos me assombram.

A menina que roubava livros

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