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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS

FACULDADE DE LETRAS

EDNALDO DE ARAUJO MINERVINO

A CONSTITUIÇÃO DO ETHOS E A DIVERSIDADE SEXUAL EM SALA DE AULA:


VIVENCIANDO PRÁTICAS DISCURSIVAS

MACEIÓ
2011
EDNALDO DE ARAUJO MINERVINO

A CONSTITUIÇÃO DO ETHOS E A DIVERSIDADE SEXUAL EM SALA DE AULA:


VIVENCIANDO PRÁTICAS DISCURSIVAS

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)


apresentado à Faculdade de Letras – FALE –
da Universidade Federal Alagoas, para
obtenção do título de licenciado em Língua
Portuguesa, sob orientação professora
doutora Rita de Cássia Souto Maior Siqueira
Lima no curso de Letras.

MACEIÓ
2011
Dedico este Trabalho de Conclusão de Curso aos milhares de mulheres e
homens que sofrem todos os dias com a violência homofóbica.
AGRADECIMENTOS

Agradeço a um grande amigo, Márcio Oliveira, que me apresentou ao


universo de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis. Também quero deixar aqui
meus agradecimentos a uma mulher que foi fundamental na minha vida intelectual,
Rúbia Lima.
Ao Movimento Estudantil por ter dado toda base teórica, prática e política a
minha vida acadêmica, profissional e pessoal. Em especial, ao grupo UFAL em
Movimento, gestão do DCE-UFAL 2004/2005. E também a Reconquistar a UNE.
Ao coletivo Universitário de Diversidade Sexual, Coletivo Diverso (Letícia
Marroquim “Tita”, Vicente Oliveira e Rafael Soriano), por possibilitar um acúmulo
teórico e pessoal sobre Diversidade Sexual.
Aos amigos da Executiva Nacional dos Estudantes de Letras (ExNEL), Diogo
Ramalho (UnB- DF), Márcio Alessandro (FAMA- MA), Walberneto “Neto” (UEMA-
MA), Cris Estevão (UFPB), Claudinei Romão (UNEB-BA), Guido e Bianca (RS),
Mariáh (UFSM-RS), Claussen Munhoz (UFSM-RS), Evelyn Silva (UFF-RJ), Lázaro
Araújo (UCSal-BA), Francisli (UFRN), Rafael Nunes (UFRJ), Rafael Prazeres
(UNEB-BA), Lilian Lima (UNEB-BA), Saulo (UFPE), Verônica (UESPI-PI), Kleyton
(UFPA) e todos/as que construíram o Movimento Estudantil de Letras (MEL).
À Articulação de Esquerda (AE) que foi a grande responsável pelo meu
engajamento na luta por uma sociedade livre da opressão de classe. Valeu Elida
Miranda, Rídina Mota, Neymar Anderson, Lucas Soares e a todos/as da AE.
Ao grupo de pesquisa Ensino e aprendizagem de Línguas que possibilitou a
realização deste trabalho.
Aos grandes parceiros e amigos de graduação, farra, viagens Emanuelle
Camila “Manu”, Eilane Monroe, Alexander, Aline Diniz, Christiane Patrícia “Chris”,
Érica Paloma, Alain Lisboa, Pablo.
Aos meus familiares pelo apoio que sempre deram.
À minha orientadora professora Rita de Cássia pela paciência, dedicação e
apoio nesse ciclo que se encerra.
“Se você não é livre para ser você
mesmo na questão mais importante de
todas as atividades humanas - a
expressão do amor - então a vida em si
perde seu sentido"

(Harvey Milk)
RESUMO

A pesquisa desenvolvida neste estudo focaliza fenômenos discursivos


coletados numa turma de produção textual em língua portuguesa, formada por
sujeitos de duas comunidades da cidade de Maceió: Vale do Reginaldo e Vila dos
Pescadores de Jaraguá. O estudo insere discussões acerca da apresentação dos
ethos discursivo (MAINGUENEAU, 2005; LIMA, 2009) e das identidades de gênero
(MOITA LOPES, 2002) e tem como objetivo a reflexão sobre a apresentação de
Ethos dos sujeitos, tendo como base as considerações sobre diversidade sexual
(LOURO, 2007; MOITA LOPES 2002). A pesquisa, de abordagem qualitativa
(CHIZZOTTI, 1998), pretende considerar essa constituição discursiva nas
construções dialógicas do tempo, da história e do texto. Com esses objetivos, foram
feitas observações de campo, com gravação em áudio das aulas observadas e de
entrevistas com os alunos observados. Isso promoveu a possibilidade de
visionamento e análise das ações discursivas, no âmbito de sala de aula. A partir
dessas reflexões, observamos nos discursos analisados um Ethos do Politicamente
Correto (PC) que significa, nesse contexto, a imagem de um julgamento de
intolerância camuflada. Observou-se, por fim, que, nas comunidades em que o
corpus foi coletado, os discursos convergem para uma apropriação do que se
espera ouvir, sob máscaras do que se “deve falar”. Entretanto, em alguns
momentos, observou-se que surgem outras interpretações das identidades de
gêneros, emergem uma outra interpretação do outro que difere do que se considera
PC, observada através do uso de certos termos, apagamento de algumas formas
linguísticas.

Palavras-chave: Ethos; identidade de gênero; sexualidade; práticas discursivas


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................................... 07
CAPÍTULO 1 - A IMAGEM REVELADA NA PRÁTICA DISCURSIVA: IDENTIDADE
DE GÊNERO E SEXUAL........................................................................................10
1.1 Linguística aplicada: a transgressão para ultrapassar os limites dos
paradigmas.........................................................................................................10
1.2 Noção de Ethos.................................................................................................12
1.3 Identidade: sexualidade e gênero.......................................................................16
CAPÍTULO 2 - ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ESTUDOS
QUALITATIVOS........................................................................................................23
2.1 A pesquisa qualitativa..........................................................................................23
2.2 Passos da pesquisa.............................................................................................26
CAPÍTULO 3 - ANÁLISE DE DADOS....................................................................28
3.1 É homossexual, mas é um gênio! Posicionamentos discursivos em
embate........................................................................................................................28
ANEXO.......................................................................................................................40
INTRODUÇÃO

A escola é um espaço cercado por vários discursos e práticas. Neste trabalho


analisamos como o discurso da Diversidade Sexual e como o Ethos se constituem
na prática discursiva. Falar sobre Diversidade Sexual, no âmbito educacional,
provoca ainda um certo desconforto. A comunidade escolar não se sente a vontade
ou não sabe como abordar o tema. Na verdade, não há um reconhecimento das
sexualidades homossexual e bissexual ou de outras em sala de aula e isso provoca
um julgamento de valor que leva ao preconceito (homofobia), em alguns casos pode
ocorrer o afastamento ou a evasão do aluno (cuja identidade sexual seja diferente
da tida como normal) da escola. Essa negação de outras sexualidades, na sala de
aula, acaba por confinar homossexuais e bissexuais às “gozações e “insultos”
(LOURO, 2007).
O objetivo geral desse trabalho1 é a análise dos diferentes tipos de Ethos dos
alunos de duas comunidades da cidade de Maceió: Vale do Reginaldo e Vila dos
Pescadores de Jaraguá, relacionar e categorizar os discursos que envolvem
identidade de gênero e da Diversidade Sexual e apontar como as identidades de
gêneros e a diversidade sexual são vivenciadas nessa comunidade a partir dos
discursos coletados.

Para tal estudo, embasaremo-nos na pesquisa qualitativa de cunho


etnográfico (ANDRÉ, 1997). Os pesquisadores da área educacional aumentam cada
vez mais o interesse pelas pesquisas qualitativas, porém, segundo André & Ludke
(1986) ainda há muitas dúvidas no que caracterizaria especificamente uma pesquisa
com metodologia qualitativa. No intuito de contribuir para essa discussão, vamos
trazer para o nosso estudo alguns pontos colocados por Chizzotti (1998); André
(1997); André & Ludke (1986) sobre a pesquisa qualitativa nas ciências humanas e
sociais. Na pesquisa de cunho qualitativo não podemos delimitar e formular o
problema a partir de uma hipótese e afirmação prévia e individual. Ele decorre, antes
de tudo, de um processo indutivo que se vai se definindo e se limitando na
exploração dos contextos ecológico e social, onde se realiza a pesquisa
1
Esta pesquisa esteve dentro de um projeto maior denominado: Ensino e aprendizagem de Línguas
em comunidades de Maceió, coordenado pelas professoras: Rita Maria Diniz Zozzoli e Rita de Cássia
Souto Maior Siqueira Lima (Projeto associado ao Grupo de Pesquisa Ensino e Aprendizagem de
Línguas, cadastrado no diretório de grupos do CNPq). Ele foi apoiado pela Faculdade de Letras, e
articula pesquisa, ensino e extensão.
(CHIZZOTTI, 1998, p. 81). Um requisito importante na pesquisa etnográfica é a
coleta de dados descritivos, lançando mãos, principalmente, da observação que
trará uma gama de “descrições de locais, pessoas, ações, interações, fatos, formas
de linguagem e outras expressões, que permitem ir estruturando o quadro
configurativo da realidade estudada” (ANDRÉ, 1997, p. 38).

Discutiremos as perspectivas teóricas que embasam esse trabalho fazendo


uma interligação com a Linguística Aplicada Transgressiva (PENNYCOOK, 2006;
MOITA LOPES, 2006). Em seguida, traremos as discussões a respeito de Ethos, a
partir de Amossy (2005) e Maingueneau (2008). Esses autores, de um modo geral,
compreendem Ethos como imagem que um sujeito mostra de si. Dentro dessa
definição, também apresentaremos a noção do Ethos do Politicamente Correto, que
é a aproximação do que é esperado discursivamente na sociedade em relação ao
que o sujeito reconsidera de suas interpretações.
Outro conceito que será trazido para nossa discussão é o de Identidade
(MOITA LOPES, 2002; SIGNORINI, 1998) que, dentre outras coisas, considera a
complexidade da formação de um sujeito. Por fim, definiremos Diversidade Sexual e
de Gênero (CALDAS-COULTHARD, 2000; LOURO, 2007). Segundo esses autores
as identidades sexuais e de gêneros são construtos sócio-históricos.
A pesquisa foi realizada numa turma de produção textual em Língua
Portuguesa (LP), formada por sujeitos de duas comunidades da cidade de Maceió:
Vale do Reginaldo e Vila dos Pescadores de Jaraguá. As aulas de Língua
Portuguesa aconteciam uma vez por semana com uma média de 12 alunos. Os
dados foram coletados a partir de duas entrevistas e das notas de campo.
As questões que irão nortear esse estudo são: 1) Quais as possíveis
formações de Ethos apresentadas pelos discursos de alunos em aulas de Produção
Textual em LP? 2) Quais os discursos que envolvem o tema diversidade sexual
nessa sala de aula? 3) Como as identidades sexuais são vivenciadas nesse
contexto e o que isso significa para a atuação na sociedade?
Este estudo tem o intuito de contribuir na formação do profissional de Letras
para, que este, não reproduza o preconceito e a opressão sobre a Diversidade
Sexual e as Identidades de Gêneros em sala de aula. no entanto, o estudo aqui, não
se encerra, é preciso um aprofundamento nos temas que envolve a sexualidade e o
gênero.
CAPÍTULO 1 - A IMAGEM REVELADA NA PRÁTICA DISCURSIVA: IDENTIDADE
DE GÊNERO E SEXUAL

Neste capítulo, discutiremos primeiramente as perspectivas teóricas que


embasam esse trabalho a partir da apresentação do campo disciplinar da Linguística
Aplicada (PENNYCOOK, 2006; MOITA LOPES, 2006); em seguida traremos os
conceitos de Ethos (AMOSSY, 2005; MAINGUENEAU, 2008; LIMA, 2009);
Identidade Sexual e de Gênero (MOITA LOPES, 2002; HALL, 2003; CALDAS-
COULTHARD, 2000; LOURO, 2007).

1.4 LINGUÍSTICA APLICADA: A TRANSGRESSÃO PARA ULTRAPASSAR OS


LIMITES DOS PARADIGMAS

Como nosso trabalho propõe-se a um estudo da prática discursiva sobre


Identidade Sexual em sala de aula e não podemos dissociar o uso da linguagem das
relações interpessoais, a Linguística Aplicada (doravante LA) é a área que dará
subsídio ao nosso objetivo porque ela focaliza a linguagem a partir da perspectiva do
uso/usuário no processo da interação linguística escrita e oral, articula múltiplos
domínios do saber, formula seus próprios modelos teóricos, utilizando métodos de
investigação de base positivista e interpretativa (MOITA LOPES, 1996).
Para este trabalho, utilizaremos o método de base interpretativo etnográfico.
O interesse pela pesquisa de base interpretativa em LA vem aumentando, uma vez
que essa representa um foco de investigação centrado no processo de uso da
linguagem e, também por avançar um tipo de método de pesquisa mais adequado
para a subjetividade do objeto das Ciências Sociais. Sobre o cunho etnográfico da
pesquisa,

em poucas palavras, pode-se dizer que a pesquisa etnográfica é


caracterizada por colocar o foco na percepção que os participantes têm da
interação lingüística e do contexto social em que estão envolvidos, através
da utilização de instrumentos tais como notas de campo, diários, entrevistas
etc (MOITA LOPES,1996, p. 22).

Por isso, entendemos que a LA contribuiu de forma significativa para o


desenvolvimento, coleta e análise dos dados da pesquisa em questão.
De fato, embasamo-nos numa abordagem transgressiva ou crítica da
Linguística Aplicada que

possibilita todo um novo conjunto de questões e interesses, tópicos tais


como identidade, sexualidade, acesso, ética, desigualdade, desejo ou
reprodução de alteridade, que até então não tinham sido considerados
como interesse em LA (PENNYCOOK, 2006, p.68).

A Linguística Aplicada Transgressiva (LAT) não se trata de uma nova disciplina, um


método, uma técnica ou um campo fixo, mas, sim uma abordagem mutável,
dinâmica, antidisciplina2 e problematizadora no modo de pensar e fazer. Ela critica a
LA tradicional por não considerar questões atuais (desigualdade, racismo,
homofobia, machismo) como áreas de interesses, a pouca compreensão da teoria
crítica, do pós-estruturalismo, pós-modernismo, das teorias de identidades ou queer
(PENNYCOOK, 2006).
Aproximamos-nos da Linguística Aplicada Transgressiva por entender que as
categorias, tais como sexualidade e gênero (homem e mulher), tidas como naturais
“devem ser compreendidas como contingentes, dinâmicas e produzidas no
particular, em vez de serem entendidas como dotadas de um status ontológico
anterior” (PENNYCOOK, 2006, p.70). A proposta da LAT é ultrapassar os limites ou
as fronteiras dos paradigmas, do que é posto como natural e inerente ao homem. O
termo transgressivo é usado aqui como instrumento, reflexivo, de embate contra
opressão de vozes silenciadas, político e epistemológico que permita transgredir a
fronteira do pensamento e da política tradicional. Moita Lopes (2006) fala de que um
modo de reinventar a vida social e fazer pesquisa envolve a reinvenção da
emancipação, combinando as diferenças culturais e seus atravessamentos por
classes sociais. A emancipação social que fala o autor incorpora grupos
marginalizados (pela classe social, sexualidade, gênero, raça etc), construindo uma
compreensão da vida social com eles em suas perspectivas e vozes sem
hierarquizá-los, diferentemente de sua compreensão na modernidade e no processo
de ocidentalização (MOITA LOPES, 2006). Por isso, almeja-se uma Linguística
Aplicada que não se prenda a modelos estáticos, ela tem que responder a questões
sobre um mundo como se apresenta, ainda mais, porque a LA está inserida nas
ciências sociais, não pode se ausentar das discussões contemporâneas acerca de

2
Termo cunhado por Pennycook (2006)
temas, como por exemplo, sexualidade e gênero (nosso foco de investigação), que
perpassam pela linguagem.
Moita Lopes (2006) propõe para a LA um projeto anti-hegemônico, que
produza conhecimento com base nas e com as vozes que são oprimidas pelo
pensamento único de que o indivíduo vivencia a vida social homogeneamente. Ele
diz que

Tal projeto que envolve a concepção de uma coligação anti-hegemônica


está na base da criação de um novo universalismo, ou pluralismo, que
desafia a hegemonia do mercado da globalização do pensamento único (o
grande poder hegemônico de um capitalismo neoliberal avassalador e
mafioso, que é o grande Deus contemporâneo e juiz de todas as verdades),
liderado pelos chamados países centrais e suas agências (MOITA LOPES,
2006, p. 86).

No campo da sexualidade, o pensamento único (hegemônico) considera


como desvio ou anormalidade qualquer outra possibilidade de vivenciar a
sexualidade do que não seja a Heterossexual.
A LA que se apresenta aqui traz um novo fazer ou uma reinvenção da vida
social, uma pluriversidade do conhecimento e da compreensão. Trouxemos o termo
Pluriversidade de Mignolo (citado por MOITA LOPES, 2006) para nossa pesquisa
por compreendermos que o prefixo pluri- traduz a idéia de um conhecimento plural,
contrapondo-se com o pensamento, universal, fechado, estático e homogêneo. Esse
quadro teórico contra-hegemônico, que combina as diferenças culturais e seus
atravessamentos por classes sociais, rejeita a idéia de um sujeito social homogêneo
e essencialidado como branco, homem, heterossexual de classe média,
concebendo-o, assim, como construto do discurso, sócio-histórico, heterogêneo,
contraditório, fluido e ético.
Nos tópicos seguintes, definiremos os conceitos de Ethos e de Identidade
para entendermos melhor a constituição desse sujeito social.

1.5 NOÇÃO DE ETHOS

A definição de Ethos surtiu uma gama de significados e empregos, desde a


retórica de Aristóteles até as problemáticas relativas aos discursos da
contemporaneidade (AMOSSY, 2005). Ao trabalharmos com essa noção, como
afirma Maingueneau (2008), deparamo-nos com sua natureza intuitiva, o que para o
autor implica um grande obstáculo. A discussão que se apresentará nesta pesquisa
a respeito de Ethos, será baseada nos estudos de Ruth Amossy (2005) e Dominique
Maingueneau (2008) como indicamos no início deste capítulo. Desse modo,
elucidaremos como, brevemente, a concepção de Ethos ganhou novos rumos (da
retórica clássica a novos retóricos).
Na retórica Aristotélica, Ethos está associado ao caráter (moral) do orador,
pois os bons nos inspiram confiança. No entanto, essa credibilidade conferida ao
orador parte como efeito constituído do discurso e não fora dele (extra-discurso).

A prova pelo ethos consiste em causar boa impressão pela forma como se
constrói o discurso, a dar uma imagem de si capaz de convencer o
auditório, ganhando sua confiança. O destinatário deve, então, atribuir
certas propriedades à instância que é posta como fonte do acontecimento
(MAINGUENEAU, 2008, p.13).

Maingueneau afirma ainda, que, para Aristóteles, essa imagem que o orador dá de
si deve se valer de três qualidades fundamentais como a prudência, virtude e a
benevolência. Até mesmo em Aristóteles, o termo Ethos ganha outro significado
como explica LIMA (2009)

Em Aristóteles, Ethos possui diversos significados, até mesmo numa


mesma obra, a exemplo da Retórica. Eggs (2005, p. 30) apresenta duas
faces para o mesmo termo em Aristóteles. Haveria uma acepção voltada
para o sentido moral e outra para um sentido “neutro” [grifos da autora],
ligado à idéia de hábitos. (p. 72)

Na tradição retórica romana, Ethos é um dado preexistente apoiado na autoridade


individual e institucional do orador, ou seja, é constituído extra-discurso, valendo a
reputação da família, status social (AMOSSY, 2005). Segundo ainda Amossy (op.
cit.), a noção da imagem do locutor ser concebida anteriormente ao discurso
aproxima-se muito das idéias de Bourdieu. Para esse, o orador só exerce sua
persuasão por causa da posição social que ele (orador) ocupa e, não por ordem do
discurso. Aqui a ação institucional prevalece sob a ação discursiva.
Para Bourdieu (apud Amossy, 2005):

Na realidade, o poder das palavras deriva da adequação entre a função


social do locutor e seu discurso: o discurso não pode ter autoridade se não
for pronunciado pela pessoa legitimada a pronunciá-lo em uma situação
legítima, portanto, diante dos receptores legítimos (AMOSSY, 2005, p. 120)
Haddad (2005, p. 163), por sua vez, diz que é “a partir da imagem que o público já
fez de sua pessoa que o locutor elabora em seu discurso a imagem que deseja
transmitir”.
Hoje, o termo Ethos é resgatado por algumas ciências da linguagem e sua
reconceitualização surge nas reformulações e debates, como afirma Ruth Amossy
(2005), ao fazer um panorama da noção de Ethos no texto introdutório do livro,
organizado por ela, Imagem de si no discurso. Na linguística da enunciação, a
autora destaca a análise lingüística de Benveniste, que coloca a construção de uma
imagem de si ligada à enunciação. O locutor vai deixar sua marca no enunciado.
Segundo Amossy (2009),

O ato de produzir um enunciado remete necessariamente ao locutor que


mobiliza a língua, que a faz funcionar ao utilizá-la. Também é importante
examinar a inscrição do locutor e a subjetividade na língua. Continuando
esses trabalhos Catherine Kerbrat-Orecchioni examinou os „procedimentos
lingüísticos’ (shifters, modalizadores, termos avaliativos etc.) pelos quais o
locutor imprime sua marca no enunciado, se inscreve na mensagem
(implícita ou explicitamente) e se situa em relação a ele (problema da
distância enunciativa) (p. 11).

Na perspectiva interacional de Erving Goffman, Amossy afirma que a imagem si nas


interações sociais começa a ter mais destaque. Segundo ainda Amossy, Goffman
indica que na interação social pede que cada participante forneça uma impressão si,
seja por seu comportamento voluntário ou involuntário que contribua para influenciar
seus parceiros do modo desejado. O autor entende como interação social “a
influência recíproca que os parceiros exercem sobre suas ações respectivas quando
estão em presença física uns dos outros” (GOFFMAN, 1973, apud AMOSSY, 2005,
p. 12). A afirmação de que através do discurso o sujeito revela uma imagem de si,
feita por Amossy (2005), está relacionada ao ato de tomar a palavra, pois a prática
discursiva implica na construção de uma imagem. Lima (2009) ratifica que Amossy
“fala da necessidade que o orador vem a ter para criar uma imagem confiável de si
para seu auditório” (2009, p. 73). Para Amossy (2005), “a imagem de si construída
no discurso é constitutiva da interação verbal e determina em grande parte, a
capacidade de o locutor agir sobre seus alocutários” (p. 137). A autora tenta
complementar o Ethos constituído na interação verbal e interno ao discurso, ao um
inscrito em uma troca simbólica regida por processos sociais e por posições
institucionais externos ao discurso.

Nesse quadro, a análise retórica que examina o ethos como construção


discursiva em um quadro interacional se articula, ao mesmo tempo, com a
pragmática e com a reflexão sociológica. A primeira permite-lhe trabalhar a
materialidade do discurso e analisara construção do ethos em termos de
enunciação e de gênero de discurso. A segunda permite-lhe não somente
destacar a dimensão social do ethos discursivo, mas também sua relação
com posições institucionais exteriores (AMOSSY, 2005, p. 137).

Podemos notar que há um Ethos discursivo e Ethos institucional, porém eles


mantêm uma relação mútua. Não podendo separar “o ethos discursivo da posição
institucional do locutor, nem dissociar totalmente a interlocução da interação social
como troca simbólica (no sentido Bourdieu)” (AMOSSY, 2005, p. 136). O Ethos
institucional vai gerar um saber prévio do orador ao auditório, ou seja, um Ethos
prévio. Por seu papel social ou Identidade Social (termo que será desenvolvido mais
adiante nessa pesquisa e é usado por Moita Lopes) desempenhado em suas
relações sociais, o locutor exerce uma autoridade (outorgada) sobre seus
alocutários. E esses farão uma imagem do locutor baseada nas informações tidas
anteriormente. O saber prévio ou Ethos prévio, Maingueneau o denomina de Ethos
pré-discursivo. O ethos pré-discursivo é tudo que se fala sobre o orador mesmo que
este não esteja diante de seus ouvintes. Souto Maior afirma que o autor “se refere
ao que é construído pelo público antes mesmo que haja a apresentação do orador”
(2009, p. 78). Vale ressaltar que, para Maingueneau, a constituição da imagem do
orador não é necessariamente realidade. Segundo Lima (2009),

Essa afirmação traz uma outra série de problemas teóricos para


interpretações em que se pretende “revelar” a realidade, fato que aqui não
surtirá nenhum efeito negativo, visto que não se pretende chegar a uma
descrição fidedigna do real, pois, com Bakhtin (1997), assume-se que a
construção teórica não é real (p.78).

Também não buscamos em nosso estudo a descrição exata da realidade. Ainda


sobre o Ethos pré-discursivo, ele pode se confirmar ou modificar, pois a imagem
constituída através do ethos pré-discurso tem a capacidade de modificar as
representações prévias, gerando assim novas imagens e de transforma equilíbrios, e
contribuindo, como diz Amossy (2005), para a dinâmica do campo do discurso. No
parágrafo seguinte, trabalharemos a noção de Ethos discursivo com a noção de
Identidade formulada por Moita Lopes para podermos observar como as identidades
de gênero e sexual são apreendidas na prática discursiva.
1.6 IDENTIDADE: SEXUALIDADE E GÊNERO

Como vimos anteriormente, o Ethos é constituído no discurso (Ethos


discursivo), consideramos que as identidades sociais também são constituídas
discursivamente através das relações sociais. Partilhamos com Moita Lopes (2002) a
idéia de que as identidades sociais só existem no contexto social, pois nossa
capacidade de pensar é constituída em práticas sociais. O termo identidade social é
empregado aqui, como em Moita Lopes, pelo fato de que as pessoas têm
identidades múltiplas e que são discursivamente construídas (MOITA LOPES, 2002,
p. 137). Segundo Hall (2003), o sujeito era concebido de uma identidade unificada e
estável no mundo social, entretanto, as estruturas e processos centrais das
sociedades modernas estão em processos de mudanças, resultando em sua
descentralização ou deslocamento.

Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades


modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens
culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que,
no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos
sociais (HALL, 2003, p.9)

Com base nas afirmações de Hall, a nossa identidade social parte de uma visão
heterogênea, multifacetada, contraditória e fluida do sujeito. Ou seja, o sujeito em
questão é denominado sujeito pós-moderno, não possui uma identidade fixa e
essencial. As identidades sociais não podem ser uma característica inerente à
pessoa, ela é constituída a partir das práticas sócio-discursivas. O caráter de
fragmentação das identidades sociais é visto pelo sentido de que essas não são
homogêneas. Uma pessoa pode conter em si outras identidades. Outra
característica importante é a natureza contraditória que coexiste na mesma pessoa.
Uma identidade pode está, dependendo da relação de poder nas práticas sociais,
em contradição com outra identidade. Tomando o exemplo citado por Moita Lopes
(2002), observamos que alguém pode ser um sindicalista, branco, vota em um
partido conservador, frequentador da igreja católica e de um centro de umbanda,
agride a mulher, e se envolve em práticas homoeróticas. A homogeneidade das
identidades tem sido substituída por uma percepção heterogênea das pessoas, ou
por uma visão multifacetada das identidades (MOITA LOPES, 2002).
Um traço importante das identidades é o fluxo, pois elas estão a todo o
momento sendo (re)construídas pelos esforços de construção de significados. Vale
ressaltar que o seu caráter fixo das identidades é marcado pela construção de novos
significados sobre quem somos nas práticas discursivas (MOITA LOPES, 2002). Os
discursos contra-hegemônicos das organizações políticas (movimentos sociais
como: de mulheres; negros/as; de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais) que lutam por uma democracia mais ampla e emancipatória humana,
trazem a questão da identidade como um tópico central. Moita Lopes, a esse
respeito, afirma que

uma das mudanças mais importantes em muitas sociedades atualmente se


relaciona a compreensão política de que a experiência humana não é
limitada a um grupo étnico particular, a uma raça, a um gênero, a um modo
de expressão da sexualidade (2002, p.90).

Desse modo, no campo da sexualidade, a identidade social relacionada à


sexualidade ou Identidade Sexual não difere das outras identidades. Ela é uma
construção sócio-histórica “em termos de como aprendemos a nos representar à luz
de como os outros nos representam e vice-versa nas práticas discursivas onde
atuamos” (MOITA LOPES, 2002, p. 100). Louro (2007) afirma que os sujeitos podem
exercer sua sexualidade de forma diversa, pois “suas identidades sexuais se
constituiriam, pois, através das formas como vivem sua sexualidade, com
parceiros/as do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos os sexos ou sem
parceiros/as (LOURO, 2007, p. 26).
Na maioria das vezes, quando se fala de sexo e de gênero, há uma
(con)fusão entre os termos. Gênero é tido como sendo sexo e vice-versa. Esse
emaranhado ocorre porque as identidades sexuais e de gênero estão inter-
relacionadas nas práticas sócio-discursivas.

No entanto elas não são a mesma coisa. Sujeitos masculinos ou femininos


podem ser heterossexuais, homossexuais, bissexuais (e, ao mesmo tempo,
eles também podem ser negros, brancos, ou índios, ricos ou pobres etc.)
(LOURO, 2007, p. 27).
Com o surgimento do movimento de mulheres, na década de 60, a discussão
sobre questões relacionadas às diferenças entre os gêneros perpassa por vários
campos do conhecimento. Trataremos aqui, especificamente, da área da linguagem
para analisarmos de que forma esse movimento reinvidincatório contribuiu nos
estudos linguísticos.
Os estudos lingüísticos voltados para a relação entre gênero e linguagem
trouxeram à tona questões culturalmente enraizadas, como por exemplo, a
supremacia linguística masculina. Segundo Caldas-Coulthard (2000), essa
supremacia masculina, nas sociedades ocidentais, era enfatizada por “um sistema
simbólico profundamente arraigado em estruturas sociais patriarcais” (CALDAS-
COULTHARD, 2000, p. 273), isto é, na linguagem. Caldas-Coulthard inicia a
discussão conceituando linguisticamente a palavra gênero e sexo. O termo gênero
que significava classe ou tipo foi utilizado, a priori, pelo gramático grego Protágoras.
No entanto, Protágoras passa a denominar suas subclasses de masculina, feminina
e neutra, aludindo- as a sexo (CALDAS-COULTHARD, 2000). O gramático grego, na
tentativa de adequar os substantivos de acordo com critérios inflexionais, intervêm
nas “inflexões de alguns substantivos para que o gênero das palavras concordasse
com o sexo da/o referente. Isto foi feito para que as classes se tornassem mais
consistentes em relação ao sexo” (CALDAS-COULTHARD, 2000, p. 274). Essa
intervenção na categorização dos substantivos em relação ao gênero dá-se por
questões sócio-políticas inseridas numa, aparentemente, simples adequação a uma
forma.

o sistema gramatical de uma língua levanta questões sócio-políticas muito


sérias, já que a prática social dá prioridade, em termos lingüísticos, não
simplesmente a uma subclasse de substantivos, mas também a um sexo.
Nas sociedades ocidentais patriarcais, o sexo masculino é o prioritário
(CALDAS-COULTHARD, 2000, p. 275).

Como a área da linguagem apresentou um campo dominante da supremacia


masculina, as pesquisas linguísticas são direcionadas para as questões gramaticais.
A palavra sexo (distinção biológica entre seres) (CALDAS-COULTHARD, 2000) é
incorporada, pelos linguistas da recente surgida sociolinguística na década de 70,
como categoria analítica. Os primeiros estudos sociolinguísticos demonstraram
que as mulheres geralmente aproximavam-se muito da pronúncia padrão
(que era obviamente masculina) e a explicação dada então era que havia
uma relação entre a produção feminina (a fala mais cuidadosa) e seus
papéis sociais como mulheres – a importância da aparência e a transmissão
da linguagem para suas crianças (CALDAS-COULTHARD, 2000, p. 275).

Essa análise de que as mulheres estão mais próximas de um padrão


linguístico dominantemente masculino comprova o quão ainda a supremacia
masculina não só pairava a gramática, como também os estudos linguísticos.

a pesquisa feminista sobre linguagem e gênero, termo este portanto


emprestado da terminologia gramatical, mas redefinido agora como um
conceito cultural e social, questionou a metodologia da sociolingüística
quantitativa. Foi comprovado que os instrumentos de medida continham
inferências teóricas e interpretações individuais preconceituosas e
estereotipadas. O sexo como a raça, era uma categoria de relações sociais
onde a dominação era invariavelmente justificada pela diferença. O que
estava pressuposto („the hidden agenda‟) era a inferioridade feminina
(CALDAS-COULTHARD, 2000, p. 275-76).

A metodologia sexista da sociolinguística excluía as mulheres das coletas de dados,


os trabalhos foram baseados a partir da produção masculina, e também considerava
“os principais representantes da cultura vernácula eram os homens (LABOV et al,
1968 apud CALDAS-COULTHARD 2000, p. 276). Os estudos linguísticos que
colocaram em questionamento a relação entre linguagem e gênero foi o de Robin
Lakoff “sugeria que as mulheres são mais hesitantes que os homens e que tem um
vocabulário especificamente feminino” (idem). No entanto, as pesquisas de Lakoff
não passavam de suposições introspectivas e intuitivas (CALDAS-COULTHARD,
2000). A empreitada das pesquisadoras, nesse primeiro momento dos estudos
(década de 60 a 70), tentava explicar as diferenças de sexo. Por mais que mulheres
estivessem envolvidas diretamente nas pesquisas, elas apenas reforçavam o
modelo masculino de linguagem (estereótipos), não descrevendo as diferenças
existentes entre os sexos, o comportamento linguístico era analisado nos níveis da
fonologia e da gramática, surgindo à máxima de que as mulheres aproximavam-se
da pronuncia padrão pelos seus desempenhos nos papéis sociais estabelecidos.

Muitos trabalhos focalizavam as diversas formas pelas quais a linguagem


ajuda a definir, depreciar e excluir as mulheres linguisticamente. Análises
mostraram como havia assimetria na forma pela qual as mulheres eram
denominadas em relação aos homens. O uso genérico provava à
invisibilidade, as escolhas lexicais, a inferioridade. A base teórica da
„deficiência‟ na linguagem feminina apontava para a dicotomia binária entre
homens e mulheres. As mulheres eram „deficientes‟ linguisticamente por
serem sido focalizadas como mulheres (CALDAS-COULTHARD, 2000, p.
277).
A invisibilidade da mulher na sociedade ocidental é ratificada por instituições
(religião, o Estado, a família e a escola) que estabelecem normas que são tidas
como naturais. Sobre o conceito de naturalização, Cavalcante (2007) afirma que
“não é o retorno à natureza, mas sim a consideração daquilo que é histórico, produto
do desenrolar histórico das relações sociais” (p. 90). A naturalização das relações e
papéis sociais é perpetuada por agentes sociais (como citados acima) para não ser
contestada. Para Lima (2009),

o sentido de naturalização aqui se refere ao fenômeno de se apresentar


uma situação ou acontecimento construído sócio-histórico-
intersubjetivamente, como algo ahistórico, atemporal, universal, logo, algo
impossível de ser contestado (p. 76).

As normas regulatórias de uma sociedade precisam, constantemente, ser reiteradas


e repetidas para que possam ser internalizadas (LOURO, 2007), como, por exemplo,
as mulheres são preparadas desde pequenas para o lar e para maternidade, através
do “brincar” de boneca e de casinha. E para os meninos, fica reservado o “brincar”
de carrinho, o de bola e atividades lúdicas que exploram a liberdade masculina. A
mulher é um objeto do lar, pertencente ao marido, ela é da esfera privada e o
homem da esfera pública. Como define Louro (2007)

papeis seriam, basicamente, padrões ou regras arbitrárias que uma


sociedade estabelece para seus membros e que definem seus
comportamentos, suas roupas, seus modos de se relacionar ou de se
portar... Através do aprendizado de papéis, cada um/a deveria conhecer o
que é considerado adequado (e inadequado) para um homem ou para uma
mulher numa determinada sociedade, e responder a essas expectativas
(p.24).

Portanto, não podemos negar a importância do pioneirismo dos estudos feministas


sobre a condição da mulher.
O termo gênero é compreendido, por nós, como um construto das relações
sociais. Não compartilhamos o gênero como algo pronto e acabado, ele está sempre
em constituição, nenhuma mulher é igual à outra, como nenhum homem é idêntico a
outro. Estamos a todo o momento negociando “as normas, os comportamentos e os
discursos que definem masculinidade e feminilidade dentro de uma comunidade
específica, em algum ponto na história” (CALDAS-COULTHARD, 2000, p. 282). É
necessário compreender a utilização do termo gênero, que foi empregado pelas
feministas anglo-saxões para diferenciar gênero de sexo e rejeitar o determinismo
biológico. O termo sofreu uma ressignificação linguística e politicamente no Brasil.
Segundo Louro (2007),

ao dirigir o foco para o caráter „fundamentalmente social‟, não há, contudo,


a pretensão de negar que o gênero se constitui com ou sobre corpos
sexuados, ou seja, não é negado a biologia, mas enfatizada,
deliberadamente, a construção social e histórica produzida sobre as
características biológicas (p. 21-22).

No entanto, há certos padrões e normas em nossa sociedade que vão de


encontro a essas mudanças. O pensamento hegemônico considera como desvio ou
anormalidade qualquer outra possibilidade de vivenciar a sexualidade do que não
seja a Heterossexual. Essa hegemonia heterossexual é denominada de
Heteronormatividade (LOURO, 2007). A heteronormatividade é baseada na
naturalização do padrão binário (homem e mulher) heterossexual de vivenciar, na
prática discursiva e nas relações sociais, a sexualidade. Ela reúne em sua essência
um conjunto de normas que ratifica a limitação da experiência humana a um único
padrão sexual (LOURO, 2007). O padrão heteronormativo parte do princípio que
todos nascemos heterossexuais, que o sexo biológico determina nossa identidade
sexual e de gênero, invisibilizando e negando as diversas possibilidades de práticas
sexuais e, em algumas sociedades, o desvio desse padrão é punido com severas
penas judiciais, até mesmo com a pena de morte, como em países Asiáticos e
Oriente Médio.
Da noção de naturalização, depreenderemos nesse estudo a noção do Ethos
do Politicamente correto que vem a ser a imagem de tentativa da aproximação do
que esperam que eu fale do que eu digo em meu discurso. Nem sempre esse
encontro se dá de modo a não deixar algumas pistas de linguagem que expõe
interpretações conflituosas. Segundo Duarte (2000),

A naturalização, em vez de significar uma tentativa de retorno a um primitivo


estado natural, significa a tentativa de justaposição, por meio da eternização
e da universalização, de uma determinada realidade, apresentando-a como
correspondente à natureza humana (DUARTE, p. 138 apud CAVALCANTE,
2007, p. 90).

Quando autores, como Moita Lopes (2002) e Louro (2007), afirmam que as
identidades vão se constituindo com a prática discursiva através das relações
sociais, eles consideram que o discurso é uma prática social que só tem significado
a partir da interação social. O discurso é uma ação social, que o sujeito pode agir
sobre o mundo social e os outros sujeitos (MOITA LOPES, 2002). Um traço
importante na natureza do discurso

é o fato de que ao mesmo tempo em que levamos em consideração a


alteridade quando nos engajamos no discurso, também podemos alterar o
outro e o outro pode nos modificar (MOITA LOPES, 2002, p. 94).

Sobre a natureza dialógica do discurso, Barros (2003) afirma que Bakhtin tem
como princípio constitutivo da linguagem e da condição de sentido do discurso o
Dialogismo. O Dialogismo Bakhtiniano desloca o sujeito do centro e, o substitui por
outras vozes sociais tornando-o um sujeito histórico e ideológico. O princípio
dialógico pressupõe que “a palavra não é nossa, mas traz em si a perspectiva de
outra voz” (BARROS, 2003, p. 3). A capacidade de alterar o outro e de alterar a si
mesmo é um resultado das relações sociais e/ou da interação verbal tanto na
constituição do Ethos, quanto das construções identitárias. No próximo capítulo
traremos a discussão metodológica de pesquisa.
CAPÍTULO 2 - ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ESTUDOS
QUALITATIVOS

Neste capítulo, discutiremos sobre os estudos qualitativos, no intuito de


contribuir para essa discussão, vamos trazer para o nosso estudo algumas reflexões
de Chizzotti (1998); André (1997); André & Ludke (1986) sobre a pesquisa
qualitativa nas ciências humanas e sociais. Em seguida, detalharemos os passos
desse trabalho, os sujeitos envolvidos, o contexto da coleta de dados e os
instrumentos de coleta.

2.1 A PESQUISA QUALITATIVA

Este trabalho está embasado na metodologia de pesquisa qualitativa de


cunho etnográfico. Essa abordagem qualitativa etnográfica parte do pressuposto “de
que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, uma interdependência
viva entre o sujeito e o objeto, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a
subjetividade do sujeito” (CHIZZOTTI, 1998, p.79) e visa à descrição de um sistema
de significados culturais de um determinado grupo. Os pesquisadores da área
educacional aumentam cada vez mais o interesse pelas pesquisas qualitativas,
porém, segundo André & Ludke (1986) ainda há muitas dúvidas ao que
caracterizaria uma pesquisa com metodologia qualitativa.
O pensamento positivista teve seus postulados postos a questionamentos
antes tidos como verdades absolutas. Tais dúvidas foram levantadas com o
desenvolvimento da física e da matemática que “questionaram a infalibilidade das
ciências, demonstraram a inviabilidade de previsões absolutas e recuperaram a
validade de interpretação dos fenômenos” (CHIZZOTTI, 1998, p. 78). Assim como
nas ciências da natureza, os estudos experimentais eram predominantes nas
ciências humanas e sociais e também foram questionados por privilegiarem “a busca
da estabilidade constante dos fenômenos humanos, a estrutura fixa das relações e a
ordem permanente dos vínculos sociais” (idem). Toda essa agitação e quebra de
paradigma foi causada pelos estudos que buscaram “mostrar a complexidade e as
contradições de fenômenos singulares, a imprevisibilidade e a originalidade criadora
das relações interpessoais e sociais”, ou seja, “valorizavam aspectos qualitativos
dos fenômenos” (idem). Por mais que as pesquisas qualitativas possuam várias
correntes seus pesquisadores dedicam-se

à análise dos significados que os indivíduos dão às suas ações, no meio


ecológico em que constroem suas vidas e suas relações, à compreensão do
sentido dos atos e das ações particulares com o contexto social em que
estas se dão (CHIZZOTTI. 1998, p. 84).

A crítica feita pelos pesquisadores dos estudos qualitativos darem-se pelo


enquadramento das ciências humanas e sociais ao modelo único de pesquisa
calcado, como afirma Chizzotti, no modelo das ciências da natureza defendido pelos
experimentalistas. Os pesquisadores, contrários ao modelo experimental, defendem
que as ciências humanas e sociais têm suas especificidades com metodologias
próprias (método clínico e histórico-antropológico).
A abordagem qualitativa parte do fundamento de que há uma relação
dinâmica entre o mundo real e o sujeito, uma interdependência viva entre o
sujeito e o objeto, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a
subjetividade do sujeito. O conhecimento não se reduz a um rol de dados
isolados, conectados por teorias explicativas; o sujeito-observador é parte
integrante do processo de conhecimento e interpreta os fenômenos,
atribuindo-lhes um significado. O objeto não é um dado inerte e neutro; está
possuído de significados e relações que sujeitos concretos criam em suas
ações (CHIZZOTTI, p.79).

Esse fundamento, da relação mundo real e sujeito, é baseado pelas orientações


filosóficas da fenomenologia e a dialética. A primeira acredita que para a análise do
fenômeno é preciso inserir e familiarizar-se com a realidade cotidiana do fenômeno
para alcançar a sua essência e “desvendar o sentido oculto das impressões
imediatas” (CHIZZOTTI, 1998, p.80). Já a dialética

valoriza a contradição dinâmica do fato observado e a atividade criadora do


sujeito que observa, as oposições contraditórias entre o todo e a parte e os
vínculos do saber e do agir com a vida social dos homens (CHIZZOTTI,
1998, p. 80).

Segundo André & Ludke (1986)

A pesquisa qualitativa ou naturalística, segundo Bogdan e Biklen (1982),


envolve a obtenção de dados descritivos, obtidos no contato direto do
pesquisador com a situação estudada, enfatiza mais o processo do que o
produto e se preocupa em retratar a perspectiva dos participantes (p. 13).
Na pesquisa de cunho qualitativo não podemos delimitar e formular o
problema a partir de uma hipótese e afirmação prévia e individual. Ele decorre, antes
de tudo, de um processo indutivo que se vai se definindo e se limitando na
exploração dos contextos ecológico e social, onde se realiza a pesquisa
(CHIZZOTTI, 1998, p. 81).
O pesquisador tem que se desprender de todos os preconceitos e estar
aberto a manifestações que observa, já que ele é parte do processo de
conhecimento junto com o pesquisado, que é dotado de um conhecimento adquirido
pela sua vivência de mundo, que “produzem práticas adequadas para intervir nos
problemas que identificam” (CHIZZOTTI, 1998, p. 83). Porém, esse conhecimento
não significa que seja desprendido do senso comum e reflita um conhecimento
crítico. Dentro da pesquisa qualitativa vamos encontrar duas perspectivas que têm
sido bastante aceitas nos estudos da área da educação, pesquisa etnográfica, a
qual adotaremos como perspectiva, e a de estudo de caso (não nos aprofundaremos
na discussão).
A pesquisa etnográfica visa à descrição de um sistema de significados
culturais de um determinado grupo André & Ludke (1986). Como toda pesquisa
baseada nessa perspectiva tem que ter a inserção do pesquisador no cotidiano do
fenômeno pesquisado, foi necessário a nossa presença em sala de aula para
acompanhar a ocorrência do fenômeno estudado.
Um requisito importante na pesquisa etnográfica é a coleta de dados
descritivos, lançando mãos, principalmente, da observação que trará uma gama de
“descrições de locais, pessoas, ações, interações, fatos, formas de linguagem e
outras expressões, que permitem ir estruturando o quadro configurativo da realidade
estudada” (ANDRÉ, p.1997, p. 38). Os dados na pesquisa qualitativa são fenômenos
ao qual é preciso encontrar o significado manifesto e o que permanece oculto já que
esses são, como todos os sujeitos envolvidos, igualmente dignos de estudos, todos
são iguais, mas permanecem únicos, e todos os seus pontos de vista são relevantes
aponta Chizzotti (1998, p. 84). Esses dados, como já foi mencionado, são descritivos
e sua coleta

privilegiam algumas técnicas que coadjuvam a descoberta de fenômenos


latentes, tais como a observação participante, história ou relatos de vida
análise de conteúdo, entrevista não-diretiva etc. que reúnem corpus
qualitativos de informações (CHIZZOTTI, 1998, p.85).
2.2 PASSOS DA PESQUISA

A pesquisa foi realizada numa turma de produção textual em língua


portuguesa, formada por sujeitos de duas comunidades da cidade de Maceió: Vale
do Reginaldo e Vila dos Pescadores de Jaraguá. As aulas de Língua Portuguesa
(LP) aconteciam uma vez por semana com uma média de presença de 12 alunos.
Os dados foram coletados a partir de duas entrevistas realizadas em sala de aula e
das notas de campo.
A sala de aula de Língua Portuguesa era composta por alunos/as que
estavam na faixa etária dos 19 aos 40 anos. Em sua maioria, era adepto a alguma
religião. Tínhamos alunas que já eram mães. Os/as alunos/as eram dispostos em
círculo. Dos dozes alunos/as, dois eram do gênero masculino.
O primeiro momento da pesquisa foi marcado pela inserção em sala de aula,
pois, para a análise do fenômeno, é preciso inserir e familiarizar-se com a realidade
cotidiana do fenômeno para alcançar a sua essência e “desvendar o sentido oculto
das impressões imediatas” (CHIZZOTTI, 1998, p.80). O período observatório do
trabalho foi importante para identificar e observarmos a constituição identitárias dos
sujeitos, através das diversas atividades desenvolvidas em sala de aula, como
também, para refletirmos sobre a natureza desses indícios e as implicações no
processo de ensino e de aprendizagem. Para a coleta de dados foram utilizados
gravadores de áudio, anotações de campo, registros de discussões após a exibição
do filme (curta-metragem, “Acorda, acorda Raimundo” sob direção de Alfredo Alves -
1990), produções de escritas dos alunos e entrevistas.
As aulas de produção textual em língua portuguesa foram observadas e
gravadas em áudio no período de 3 de novembro de 2009 a 1º de dezembro de
2009, totalizando 4 aulas de 2h30 de duração.
A entrevista foi aplicada no dia 14 de dezembro de 2009 e foi dividida em dois
momentos: no primeiro momento priorizamos uma entrevista individual e, no
segundo, uma feita coletivamente. Na entrevista individual, os alunos foram
indagados sobre questões gerais relacionada ao curso de produção textual em LP,
totalizando oito perguntas (ver anexo). Destacamos as questões de número 3 (Como
você tenta agir quando uma discussão ou uma opinião é trazida num tema em sala
de aula e essa não combina com o que você pensa realmente?) e a 8 (Quais os
temas que lhe chamaram mais a atenção nas aulas de LP e LI? Por quê?), por
possibilitar (ou não) ao entrevistado de adentrar no foco desse estudo.
Já na entrevista coletiva, os alunos assistiram ao um curta-metragem, citado
anteriormente3, que tratava do papel do homem e da mulher na sociedade. O filme
apresenta uma inversão no papel definido para homens e mulheres. O homem
assume o papel de “Dona de casa”, ou melhor, de dono de casa, engravida e cuida
das crianças. Neste caso, o homem é que sofre a opressão. A sociedade
apresentada no curta-metragem é matriarcal. A mulher é detentora do poder, mas o
poder da opressão, o diretor apenas inverte a opressão.
A partir desse cenário, lançamos cinco perguntas aos alunos (ver anexo),
como por exemplo, “o que é ser homem? Por quê?” e “o que é ser mulher? Por
quê?”. No próximo capítulo faremos a análise dos dados coletados.

3
Acorda, acorda Raimundo, sob direção de Alfredo Alves - 1990
CAPÍTULO 3 - ANÁLISE DE DADOS

A partir da explanação sobre a metodologia de pesquisa qualitativa de cunho


etnográfico, do embasamento teórico da Linguística Aplicada, das discussões sobre
identidades sexual, de gênero e de ethos, a seguir analisaremos os dados
coletados, visando o desvelamento das práticas esperadas (ethos prévio ou pré-
discursivo) em relação às vivenciadas pelos sujeitos alunos de Língua Portuguesa.

3.1 É homossexual, mas é um gênio! Posicionamentos discursivos em embate

Abaixo apresentaremos um trecho transcrito de aula, referente ao dia 10 de


novembro de 2010. Em seguida, também serão expostos os resultados da análise
dos dados:

1. Trecho de Aula do dia 10 de novembro de 2009.


Foi solicitado aos alunos para lerem a letra da música Índios, (compositor:
Renato Russo - Legião Urbana). Depois, houve um debate sobre o que
poderia ser depreendido da música. Durante as discussões, a identidade
sexual do cantor e compositor, Renato Russo, é citada por um dos alunos.
Pergunta-se se os alunos sabem quem é o intérprete
– [Sandro]4 “(...) aquele que é homossexual”
Outro aluno rebate
– [Felipe] “É homossexual, mas é um gênio”

Sandro indica a identidade sexual de Renato Russo utilizando um pronome


demonstrativo: “aquele”. Em seguida a essa afirmação, Felipe contrapõe a fala de
Sandro, inserindo uma conjunção adversativa: “mas”. Ele (Felipe) pensa “camuflar” a
identidade sexual (homossexual) do cantor, quando, na oração seguinte, afirma “é
um gênio”. Percebemos na fala de Felipe que ele formula uma imagem negativa
sobre a homossexualidade ou pelo menos, discursivamente, ele gradua as
características, como 1. homossexual; 2. gênio, onde a segunda se sobrepõe
(qualitativamente) a primeira.

4
Os nomes citados neste trabalho são todos fictícios.
Apesar de Filipe se policiar o tempo todo para demonstrar um Ethos do
Politicamente Correto (doravante PC), o que se observa nessa fala é que não há
reconhecimento de uma diversidade sexual. Sobre o termo politicamente correto,
Semprini (1999) afirma que

A expressão "politicamente correto" (politically correct) ou "pc", foi tomada


do jargão stalinista dos anos 50, que designava a obediência irrestrita à
linha política ditada pelo comitê central. [...] A referência ao stalinismo não é
sem razão e contribui para o sucesso da expressão, conferindo-lhe
conotações detestáveis. Qualificar uma atitude ou comportamento de "pc"
subentende um julgamento de intolerância, o endossamento irrefletido de
valores e escolhas feitas por outros, limitação da liberdade de expressão e
de qualquer manifestação de uma atitude contraditória. O "pc" tornou-se
assim um sinônimo de conformismo e de indolência e utiliza-se com
convicção a expressão "politicamente incorreto" para distinguir as propostas
originais e pessoais que não temem incomodar ou ofender se preciso for (p.
61).

A problemática do Ethos do politicamente correto é que ratifica um preconceito


escamoteado, ele não resolve a questão da intolerância. Poderíamos considerar o
uso da palavra homossexual pelos dois (primeiramente por Sandro, logo em seguida
por Felipe) como um eufemismo. No primeiro caso, Sandro pode ter utilizado o termo
homossexual ou invés de outro, de cunho pejorativo como bicha ou viado, para não
ser ofensivo aos presentes em sala de aula (que em sua maioria era do gênero
feminino) ou tais palavras não seriam apropriadas aquele. Consideramos essa
escolha de termos como marca eufemística mesmo levando em conta as seguintes
reflexões de Fiorin5

Todas as palavras, ensina Bakhtin, são assinaladas por uma apreciação


social. Considera-se que os termos bicha, veado, fresco são mais
preconceituosos que a designação gay. Isso é parcialmente verdadeiro, pois
os três estão marcados por pesada conotação negativa. No entanto, o
termo gay também vai assumindo valor pejorativo, tanto que, à semelhança
do aumentativo bichona e do diminutivo bichinha, criaram-se gayzaço e
gayzinho. Isso significa que não basta mudar a linguagem para a
discriminação deixe de existir.

Segundo Fiorin mesmo um termo aparentemente “leve” para a designação


pode, pela entonação, marcas de diminutivo ou aumentativo, gestos etc, apresentar
tom jocoso e/ou ofensivo. Não iremos neste estudo aprofundarmos essa discussão,
mas é importante citar essas mudanças valorativas construídas pelas interações.
Iremos observar o uso dos termos: gênio e homossexual.

5
Fonte: FIORIN, José Luiz. A Linguagem Politicamente Correta: Revista Eletrônica Liguasagem – UFSCar
http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao01/artigos_alinguagempoliticamentecorreta.htm
A seguir, apresentaremos um diagrama da aproximação/afastamento
valorativo da noção de sexualidade formulado a partir das reflexões ate aqui.

Gênio

Homossexual

A seta para cima indica um valor positivo, no caso, trazida pela noção de
gênio que seria uma qualidade boa. Já a seta para baixo indica um valor negativo: o
ser homossexual que, nesse caso, discursivamente, seria uma qualidade menor.
Essa distinção é marcada pelo “MAS”.
Dando continuidade a análise, a seguir, outro trecho será apresentado:
2. Trecho do dia 14 de dezembro de 2009
((Na entrevista realizada no 14/12/2009, foi perguntado ao Felipe como ele
tenta agir quando uma discussão ou uma opinião é trazida num tema em sala
de aula e essa não combina com o que ele pensa.))

[Felipe] ...teve até uma questão do Sandro, aquela questão do Renato Russo,
do Legião tal, aquela forma (não compreensível), o Sandro é polêmico, ás
vezes fala sem pensar ai... falando do Renato, aquela coisa toda {imita o
Sandro} „aquele que é homossexual‟, porra... é tranqüilo, é nenhuma, só você
olhar o jornal, pow... você encontra o cara, o cara homossexual, o cara bonito
e pow, isso é normal pow, ta em casa (rir).

Felipe retoma a fala de Sandro, da aula do dia 10/11, afirmando que


ele (Sandro) fala sem pensar. Notamos no trecho “às vezes fala sem pensar”
de Felipe, que ele considera que deve haver um possível um policiamento no
discurso, um controle no que se vai dizer sobre certos assuntos e que, no
caso da sexualidade, a vigilância é redobrada. Novamente se observa o Ethos
do PC que revela a imagem do que é esperado pela sociedade.

3. trecho do dia 14 dezembro. Dando continuidade à análise, a seguir


entrevista de Felipe.

((Mais adiante na entrevista, Felipe, é perguntado quais os temas que lhe


chamou mais atenção e, ele retoma a fala de Sandro)).
[Felipe] – acho que foi essa do Sandro, mas foi sem querer, pow... ele não...
foi sem intenção dele, foi... que às vezes ele fala as coisas sem pensar... num
momento mau errado, entendeu... ele solta alguma...

Nessa fala de Felipe, destacamos o trecho “... que às vezes ele fala as coisas
sem pensar... num momento mau errado”, notamos aqui que, para Felipe, deve
existir momentos para falar a palavra HOMOSSEXUAL. Há indícios que Felipe
considere ser homossexual como algo negativo. E, quando ele afirma que Sandro
falou sem pensar num momento errado, significa para ele que há momentos de se
falar homossexual.
A seguir, dando continuidade ao momento da entrevista, vemos que
novamente, pelo discurso, há imagens formadas de identidades.
É perguntado ao aluno se foi o tema ou a opinião de Sandro que tinha lhe
chamado atenção. Ele responde que foi tema. Vejamos a seguir:
4. Trecho do dia 14 de dezembro de 2009
[Felipe] – no caso, o tema claro...
É pedido que ele diga qual era o tema
[Felipe] – que era do Renato Russo, aquela coisa do Renato...
[Entrevistador] que coisa era?
[Felipe]- que foi aquele... (risada) e foi contraponto que ele falou, foi só uma
observação assim... foi uma discussão...
Ele não fala que “coisa” era e dá uma risada. A não nomeação ou até mesmo
a nomeação “aquela coisa” para se referir à homossexualidade, dá-nos indícios de
que houve um momento em que seu ethos de PC veio a tona, pois a palavra
homossexual seria um termo pejorativo.
Portanto, concluímos que a partir dessas reflexões, observa-se que o aluno
apresentou em determinado momento um Ethos do PC; ele parece trazer em seu
discurso uma homofobia camuflada, o que pode gerar um não reconhecimento de
outras sexualidades, tendo apenas a heterossexualidade como “padrão”. É
importante pontuar que estamos a todo o momento negociando “as normas, os
comportamentos e os discursos que definem masculinidade e feminilidade dentro de
uma comunidade específica, em algum ponto na história” (CALDAS-COULTHARD,
2000, p. 282).
Observamos a seguir, a partir da leitura de notas de campos, que o trabalho
com temas, como, por exemplo, união civil estável entre pessoas do mesmo sexo,
revelou que o Ethos do PC possui um limite.
5. Trecho retirado das notas de campo 17/11/2009
Em uma atividade de sala de aula realizada no dia 17 de novembro de 2009,
foi solicitado aos alunos que lessem uma reportagem (escolhida pelos mesmos) com
a temática União civil estável entre pessoas do mesmo sexo, extraída do jornal
“Gazeta de Alagoas” do dia 2 de agosto de 2009. Depois, iniciou uma discussão
sobre a temática. Observamos a seguir:
Durante as falas sobre as identidades sexuais homossexuais foram citadas
como sendo fator de causa: a genética, o hormonal e a criação familiar. A respeito
da aceitação, a religião foi um ponto citado por uma das alunas.

[Laura] – sou cristã... e minha religião não permite isso...

[Ana] – eu acho feio aqueles homens que se vestem de mulher.

Percebemos, na fala de Ana, que o aceitável na identidade sexual seria o não


rompimento da barreira entre as identidades de gêneros (Mulher e Homem),
representada na fala de Ana como “feios aqueles que se vestem de mulher”. O
Ethos do PC também tem um limite. Ele não admitiria esse rompimento da barreira
existente entre os gêneros. A fala de Ana revela ou põe em evidência que as
identidades de gênero e sexual são ratificadas, ou melhor, naturalizadas como um
traço inerente à natureza humana e, que elas são biologicamente determinantes. A
partir das reflexões de Louro (2007) a respeito da distinção entre sexo, sexualidade
e gênero – quando essa diz que o sexo se refere ao aparelho biológico que o sujeito
possui (e, nesse caso, é uma condição imposta pela natureza), a sexualidade se
refere à escolha de parceiros sexuais e gênero está relacionado ao posicionamento
do sujeito como masculino ou feminino, - observamos que o limite imposto pela
noção de gênero não é condicionante a possíveis noções de sexualidade. É
interessante, citar, que, um determinado aluno dessa sala, ao receber as cópias da
reportagem acima, desenhou nas imagens características dos gêneros masculinos e
femininos em cada um dos sujeitos da foto estampada na notícia. Esse aluno coloca
bigodes e chapéu em um dos sujeitos e lábios femininos e sobrancelhas arqueadas
no outro. Novamente a representação da divisão entre os gêneros.
No próximo trecho observaremos a análise dos dados coletados durante a
entrevista feita coletivamente a respeito da inversão dos papéis dos gêneros.
6. Trecho do dia 14 de dezembro 2009
Os alunos assistiram o curta-metragem “Acorda, acorda Raimundo”, que
abordava a inversão da opressão de gênero. O homem era oprimido pela mulher,
numa sociedade matriarcal. Foi perguntado o que eles acharam sobre o filme.
[Mariana] - interessante

[Entrevistador] - Por que interessante?

[Mariana] - por que...

[Paula] - sentiu na pele...

[Mariana] - por exemplo... Sentiu na pele tudo que...

[Paula] - a mulher passa...

[Mariana] - a gente passa, a mulher passa, por exemplo, no seu dia a dia.

Podemos perceber que as alunas citadas se reconhecem no personagem


masculino, quando Mariana diz “sentiu na pele tudo que.” e Paula completa
(interrompendo Mariana) “a mulher passa”. E Mariana enfatiza “a gente passa”. É
importante frisar que, durante as respostas, as alunas riam, parecia que a opressão
sofrida pelo gênero masculino gerou um sentimento de catarse diante do opressor,
que passara agora ser o oprimido.
Depois é perguntado aos alunos o que é ser Homem. Vejamos a seguir:
[Ana] - o que é ser homem? É... bom pai, bom esposo, né. Ser uma pessoa
responsável... até mesmo dividir as tarefas que são... isso não mata ninguém não...
tira... como posso dizer, isso não mata ninguém não, não tira a vergonha de
ninguém, muito menos pro homem... muito homem acha que fazer alguma coisa
dentro de casa vai prejudicar... agora lógico, no caso ela estando em casa e ele
trabalhando, cabe a gente fazer ele chegar a reconhecer, não deixa de ser um
trabalho.... e a dona de casa... (não compreensível)... não tem férias... não tem final
de semana, não tem feriado... a gente trabalha...

Destacamos a fala de Ana por ela considerar que ser Homem seria um bom
pai, um bom esposo e ser responsável. Ana, ao definir “o que é ser Homem”, se
detém a um modelo de família heteronormativa, ratificando o binômio
Homem/Mulher. Outro ponto que vale salientar, é quando Ana diz que o homem tem
que dividir as tarefas domésticas, na sua definição de Homem.
No entanto, ela desconstrói seu argumento quando, em seguida, afirma
[Ana] - agora lógico, no caso ela estando em casa e ele trabalhando cabe a gente
fazer ele chegar a reconhecer, não deixa de ser um trabalho .

Parece-nos que Ana assume que a função da mulher em casa é cuidar dos
filhos e do marido. Mesmo afirmando “não deixa de ser um trabalho”, ela coloca o
trabalho do homem como mais importante quando ela diz “no caso ela estando em
casa e ele trabalhando”. O verbo em uso estar, mesmo em sua forma nominal no
gerúndio indicando uma ação em andamento, descreve um estado de inércia, ao
contrário do verbo trabalhando que sugere movimento. Enfim, a grosso modo, o
homem trabalha, sustenta a família, enquanto a mulher fica em casa.
No próximo trecho destacado, é perguntado o que os alunos achavam sobre o
título do filme “Acorda, acorda Raimundo”.
[Entrevistador] - o que vocês acharam do título do filme “acorda, acorda
Raimundo”?
[Paula] - foi um sonho, que ele tava sonhando, e quando acordou viu que a
realidade era outra, que... foi um pesadelo pra ele...
[Ana] - mesmo sendo sonho, a mulher fazendo o papel do homem achei horrível...
[Paula] - na verdade nem o homem nem a mulher precisa ser daquela maneira...
[Ana] - ela tava bêbada, ela fazia aquilo porque... já não é bom o homem fazer e a
mulher então... é horrível, ela se torna máscula, deixa de ser aquela esposa...
atraente, ser aquela pessoa sensível, mesmo que você vá pra rua dirigir um
caminhão, tem que dirigir com sensibilidade... tem que ser sensível, tem que ser
mulher (ênfase), entendeu... mesmo que você passe a gostar de outra mulher, mas
tem que ser mulher.
[Entrevistador] - O que é ser mulher?
[Roberta] - mais sensível, emocionalmente, fisicamente, mas isso não quer dizer
que a mulher é menos que o homem, tem que ter uma posição mais forte...
[Ana] - no caso eles são fortes na força...
[Roberta] acho que tem que haver mais...
[Ana] sensibilidade... mais sabedoria, ela tem aquela essência, é uma coisa muito
bonita, ela tem aquela essência... ela tem aquela coisa gostosa pra tratar, ela
trabalha fora, ela chega em casa, ela é dona de casa, ela é a esposa, ela é a mãe, e
tudo isso sem perder o controle, sem deixar de sempre na esperança de ser bonita,
ser sexy, ser bonita pro seu marido, vamos sair, vamos pra uma festinha, vamos
jantar fora, ai tem dia que tem q sair com as crianças, sem perder isso...

Ao tentar opinar sobre o título do filmes, as alunas acabam traçando o perfil


ou o modo com uma mulher deve ser. Vejamos o que a aluna Ana fala: “mesmo
sendo sonho, a mulher fazendo o papel do homem achei horrível”.
Podemos identificar que Ana separa o que seria adequado a mulher. Logo
adiante, Ana afirma “ela se torna máscula, deixa de ser aquela esposa... atraente,
ser aquela pessoa sensível, mesmo que você vá pra rua dirigir um caminhão, tem
que dirigir com sensibilidade... tem que ser sensível, tem que ser mulher (ênfase),
entendeu... mesmo que você passe a gostar de outra mulher, mas tem que ser
mulher”.
A aluna define que toda mulher, mesmo dirigindo um caminhão, precisa ser
sensível e, enfatiza, mesmo que seja lésbica, “tem que ser mulher”. Mais uma vez, o
que é permitido aos gêneros é destacado pelas alunas. As falas trazidas para a
análises direcionam-se para uma visão essencialista de que mulheres e homens
compartilham da mesma experiência de ser homem e ser mulher. Como já
mencionamos antes, essa é uma visão equivocada sobre os gêneros.
As atividades desenvolvidas em sala de aula, durante o período de inserção
no cotidiano dos sujeitos envolvidos na pesquisa, possibilitou-nos observar alguns
fenômenos nas práticas sócio-discursivas sobre as identidades sexuais e de
gêneros. Em uma das atividades, sobre a música Índios (ver página 19, trecho 1), foi
observado o Ethos do Politicamente Correto (PC), que se repete em outra atividade
(ver página 21, trecho 2).
A identidade de gênero aparece na prática discursiva dos/as alunos/as muito
marcada por uma visão essencialista do que seria ser mulher ou homem. Foi
percebido que, tanto os homens e mulheres, tem suas identidades sociais bem
definidas e que essas não podem ultrapassar as normas estabelecidas pelas
instituições sociais (Estado, Religião, Escola, Família etc). A visão essencialista liga
diretamente a identidade de gênero ao sexo biológico, assim como simplifica as
identidades sexuais ao fator biológico. A seguir, iremos trazer a conclusão desse
estudo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das análises dos dados feitas e dos resultados obtidos na pesquisa,
compreendemos cada vez mais que as práticas discursivas envolvendo as
identidades sexuais e de gêneros são permanentemente vigiadas pelas
instituições, seja do discurso proveniente da religião, da escola, da família e/ou do
Estado. Essas instituições ratificam, na maioria das vezes, que tanto a
sexualidade quanto o gênero são vivenciados de forma homogênea e fixa pelos
indivíduos e reconhecem como identidade sexual única: a Heterossexual,
condenando qualquer desvio desse padrão como doença. Tal posicionamento
entende a identidade sexual ou as identidades sociais, em geral, como algo pronto e
acabado inerente ao indivíduo. Acreditamos que esse pensamento é atravessado
por interesses de opressão, pois acreditamos na heterogeneidade das identidades,
nas interações sociais através das práticas discursivas vivenciadas num mundo de
equidade social. Como aponta Moita Lopes (2002), ao mesmo tempo que
(re)construimos as identidades dos participantes discursivos, (re)reconstruimos a
nossa.
Desse modo procuramos observar como as formações de Ethos
apresentadas nas práticas discursivas dos/as alunos/as em sala de aula se
apresentava de acordo com essa busca de emancipação do sujeito. As reflexões
finais desse estudo apontam que oethos do politicamente correto muitas vezes está
camuflando um discurso de intolerância. No entanto, o Ethos do PC tem um limite
em relação às identidades sexuais, como vimos no trecho 4 do capitulo 3 (ver página
23). Segundo alguns depoimentos, é até "aceitável" a homossexualidade, porém, se
um homossexual do gênero masculino usar uma roupa, naturalizada como sendo do
gênero feminino, ou vice e versa, não é permitido.
A sala de aula ou o ambiente escolar é espaço de interação social cujas
práticas sócio-discursivas das identidades sexuais vão naturalizando a vivência de
uma identidade sexual, como já foi mencionado, a heterossexual. Como não há o
reconhecimento ou a não-aceitação da homossexualidade, especificamente, o/a
aluno/a que é identificado/a como sendo gay ou lésbica é ridicularizado/a, sofre
violência física e psicológica, que, muitas vezes, afasta esse/a aluno/a da escola.
A escamoteação do discurso preconceituoso em relação às identidades
sexuais, observada no Ethos do politicamente correto, pode ser um indicativo da
atuação dos sujeitos envolvidos na pesquisa em suas comunidades.
Concluímos que as análises descritas no capítulo 3 representam uma
amostra das possíveis práticas discursivas acerca das identidades de gênero e
sexual nas comunidades envolvidas na pesquisa. Isso caracteriza que essas
práticas se pautam pelo senso comum que, por sua vez, é vigiado pelas instituições,
e a elas respondem discursivamente.
ANEXO

ENTREVISTA COLETIVA

1ª PARTE – Questões Gerais


1. Para você quais são as ligações entre o que foi visto nas aulas de língua portuguesa
e língua inglesa e os seus interesses pessoais (sua vida pessoal, sua vida
profissional etc.)?
2. Quais as maneiras de ensino que você pensa serem as que mais facilitam seu
aprendizado?
3. Como você tenta agir quando uma discussão ou uma opinião é trazida num tema em
sala de aula e essa não combina com o que você pensa realmente?
4. Você poderia listar alguns dos trabalhos feitos em sala de aula de LP e LI? Quais os
trabalhos que mais lhe chamou a atenção? Por quê?
5. O que você espera quando está numa sala de aula de LP?
6. O que você espera quando está numa sala de aula de LI?
7. Como você se descreveria para alguém que perguntasse: quem é (nome do
entrevistado)?
8. Quais os temas que lhe chamaram mais atenção nas aulas de LP e LI? Por quê?
Como você avalia sua aprendizagem?

2ª PARTE – Questões específicas a partir da sessão do filme: “Acorda, acorda


Raimundo”
1) O que mais lhe chamou a atenção no filme assistido? Por quê?
2) Na sua opinião, o que é ser homem? Por quê?
3) Na sua opinião, o que é ser mulher? Por quê?
4) Na sua opinião, o que é preconceito? Por quê?
5) Na sua opinião, o que é machismo? Por quê?

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