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EDUCAÇÃO E LINGUAGEM NO CÍRCULO

DE BAKHTIN
Márcia Helena de Melo Pereira
Ivo Di Camargo Junior
(Organizadores)

EDUCAÇÃO E LINGUAGEM NO CÍRCULO DE


BAKHTIN
Copyright © dos autores

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida ou
transmitida ou arquivada, desde que levados em conta os direitos dos autores.

Márcia Helena de Melo Pereira; Ivo Di Camargo Junior [organizadores].

Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin. São Paulo, Mentes


Abertas, 2021, 193 p.

ISBN: 978-65-87069-74-6

1. Educação. 2. Linguagem. 3. Círculo de Bakhtin. I. Título.


CDD 370

Capa: Lucas de França Nário.


Diagramação: Maristela Zeviani.
A Editora Mentes Abertas divulga os trabalhos acadêmicos presentes nessa obra e não
se responsabiliza de maneira alguma por qualquer tipo de plágio, cópia ou citação
indevida por parte de qualquer integrante deste livro e condena veementemente esta
prática. Confiamos na idoneidade moral e intelectual de nossos autores. Portanto,
qualquer responsabilidade legal neste quesito é de única e integral responsabilidade
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Profa. Dra. Cristiane Navarrete Tolomei (UFMA, Brasil)
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SUMÁRIO

PREFÁCIO
EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA SOCIAL MEDIADA PELA
LINGUAGEM
Desafios do e no tempo presente ........................................................................ 9
Prof. Dr. Fábio Marques de SOUZA

O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA EM UMA ESCOLA TÉCNICO-


PROFISSIONALIZANTE
O texto como ponto de partida (?) ..................................................................... 13
Márcia Helena de Melo PEREIRA
Graciethe da Silva de SOUZA

DA LINGUÍSTICA DA ENUNCIAÇÃO À TEORIA ENUNCIATIVA DE


BAKHTIN
Implicações para a leitura................................................................................... 31
Cristiane Dall’ Cortivo LEBLER

LETRAMENTO DIGITAL
O uso das Tecnologias da Informação e Comunicação para uma
aprendizagem significativa ................................................................................ 47
Leatrice Ferraz MACÁRIO

WHATSAPP NA AULA, AULA NO WHATSAPP


Uma análise do aplicativo como recurso educacional durante a pandemia
................................................................................................................................. 57
Jocelma Boto SILVA

ESCRITA CONJUNTA PRESENCIAL E VIRTUAL


Implicações para a educação de um ponto de vista dialógico ..................... 67
Anne Carolline Dias Rocha PRADO
Márcia Helena de Melo PEREIRA

OS GÊNEROS DISCURSIVOS E O PROCESSO DE TEXTUALIZAÇÃO


NA PRÁTICA EDUCACIONAL
Um estudo de caso sobre a utilização do gênero digital blog como
estratégia de ensino de escrita de textos na escola......................................... 77
Mariana Tane Neves VASCONCELOS
CINEMA NACIONAL, GÊNEROS DO DISCURSO E SALA DE AULA . 89
Ivo DI CAMARGO Junior
Neide Araújo Castilho TENO
Maristela ZEVIANI

EDUCAÇÃO DO OLHAR
A linguagem cinematográfica em sala de aula ............................................. 105
João Vítor Zanato de Carvalho RIBEIRO

DIALOGICIDADES EM DIÁLOGO
Um post de Facebook à luz de Valentin Volóchinov e Paulo Freire ........ 117
Filipe Santos GUERRA
Márcia Helena de Melo PEREIRA

IMBRICAMENTOS ENTRE EDUCAÇÃO E LINGUAGEM NAS OBRAS


O PEQUENO PRÍNCIPE A PARTIR DE UMA LEITURA
BAKHTINIANA ................................................................................................ 129
Lilian Regina Gobbi BACHI
Edson Carlos ROMULADO

CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS DE MULHER NEGRA A PARTIR DE


GÊNEROS DISCURSIVOS NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA
............................................................................................................................... 143
Graciethe da Silva de SOUZA
Jorge Viana SANTOS

“EMPECÉ ASÍ, DE LA NADA”


Vozes que dialogam na constituição da trajetória de uma professora
cubana .................................................................................................................. 155
Alexander Armando CORDOVÉS-SANTIESTEBAN
Deysi Emilia GARCÍA-RODRÍGUEZ

A TEORIA BAKHTINIANA E A AP(P)RENDIZAGEM NO SÉCULO XXI


O gênero tweet como um objeto didático...................................................... 167
Ana Claudia Oliveira AZEVEDO
Márcia Helena de Melo PEREIRA
OS ELEMENTOS ARGUMENTATIVOS NO GÊNERO RELATO DE
CASO
Uma análise de um TCC de Medicina na perspectiva da Linguística
Textual ................................................................................................................ 177
Jaqueline Feitoza SANTOS

POSFÁCIO .......................................................................................................... 189


Márcia Helena de Melo PEREIRA (UESB)
Ana Claudia Oliveira AZEVEDO (UESB)
Anne Carolline Dias Rocha PRADO (UESB)
Filipe Santos GUERRA (UESB)

SOBRE OS ORGANIZADORES .................................................................... 193


Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

PREFÁCIO

EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA SOCIAL MEDIADA PELA


LINGUAGEM
Desafios do e no tempo presente

Prof. Dr. Fábio Marques de SOUZA

Sabemos que a educação é, senão o principal, um dos pilares mais


relevantes para a constituição de uma sociedade pautada em valores de
equidade e justiça. Cabe a nós, professores, pesquisadores, professores-
pesquisadores e demais profissionais da educação, a responsabilidade de
promover formação acadêmica, humana e cultural para que todos possam
vivenciar uma educação e sociedade mais humanizadas. Por este motivo, ao
prefaciar esta obra, trago palavras aos leitores que aqui chegaram para que
compreendam que o Círculo de Bakhtin pode nos ajudar nessa caminhada,
promovendo reflexões sobre relações dialógicas, ideologia, o discurso e seus
gêneros, polifonia, questões de memória e alteridade. Assim, a educação,
como um todo, que tem em si como protagonistas os professores e os alunos,
receberá uma prática dialógica formativa mais instrutiva, voltada para a
construção do humano mais voltado para a prática da cidadania e respeito
ao outro.
Essa obra, organizada pela Profa. Dra. Márcia Helena Melo Pereira, da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e pelo Prof. Dr. Ivo Di
Camargo Junior, do Centro Educacional Paulo Freire, da Prefeitura
Municipal de Ribeirão Preto - SP, visa promover diálogos, palavras e contra
palavras, para uma base de conceitos que evidenciem o papel da linguagem
e da educação na formação de sociedades e sujeitos mais críticos, dialógicos.
Os diversos textos, cuidadosamente selecionados pelos organizadores,
utilizam-se da teoria da enunciação de Bakhtin e do Círculo para
desenvolverem compreensão acerca da construção dos processos de
produção de linguagem, aprofundando-se em uma perspectiva tanto política
quanto histórico-cultural, observando atentamente o contexto educacional
em que estão inseridos e as relações de ensino-aprendizagem com as quais
dialogam.
Depreende-se da leitura desses trabalhos que os eixos teóricos de
Bakhtin e o Círculo contribuem intimamente para a construção do material
discursivo dos autores, impactando diretamente nos processos de estudo e
investigação, em especial aos contextos e situações de produção de

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

conhecimento, saber e discursos na e a respeito da escola. Os trabalhos desta


obra dialogam para o desenvolvimento, construção e elaboração de novos
paradigmas de pesquisa que, de maneira aprimorada, podem ser percebidos
nos trabalhos deste livro, em processos de ensino-aprendizagem
especialmente dialógicos e, por muitas vezes, polifônicos.
Em uma obra que dialoga com o ensino, a aprendizagem e o
uso/mediação da linguagem, os autores e organizadores evidenciam que
tudo isso passa necessariamente pelo sujeito, que é o agente das relações
sociais e responsável pela composição dessa narrativa, pela escolha do estilo
de fala. A experiência anterior deste sujeito (conhecimento de enunciados)
forma a base de novas narrativas (novos textos ou enunciados). Nessa nova
produção, um enunciado é apropriado pelo locutor, ajustado aos seus
contextos sociais, tempo e espaço social vivenciados. Sem esta atualização, os
textos não são totalmente compreendidos por outras pessoas. É essa
contribuição para a construção da relação dialógica (por meio do verbal e não
verbal) entre o falante e o meio social que as narrativas ganham consistência
e se sobressaem nessa obra.
Ainda evidencio que a linguagem, via interação proporciona a criação
de condições para a busca pela igualdade social, pois os trabalhos da obra
participam da produção de enunciados que são acessíveis a todos e, portanto,
compreensíveis por todos. Ao mesmo tempo, este novo diálogo se ajusta aos
diferentes contextos. Cada estudo, neste livro, traz um contexto especial que
pode ajudar ao profissional da educação e da linguagem a perceber como o
Círculo de Bakhtin pode auxiliar nessa área do conhecimento e dialogar com
ela.
Por fim, esta obra de ensaios traz ideias bakhtinianas em diálogo com a
prática educacional por meio das fronteiras culturais e pedagógicas. Esses
encontros promovidos oferecem novas perspectivas sobre questões
contemporâneas na educação e consideram as respostas pedagógicas que são
enquadradas dentro de um imperativo dialógico. O livro também é pioneiro
em uma importante discussão sobre o lugar do Círculo de Bakhtin na filosofia
educacional hoje. O livro enfatiza a natureza viva da linguagem como atos
intencionais que ocorrem nas relações complexas, dinâmicas, dialógicas e
multifacetadas de ensino-aprendizagem. A consideração é dada aos
contextos mais amplos em que o saber ocorre e muda o papel do professor
como um especialista transmissor de conhecimento para um parceiro
dialógico, um mediador intercultural.

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Desejo a todos uma boa leitura, seja pelo ponto ou pelo contraponto, tão
necessários à construção de conhecimentos que deem conta de compreender
e praticar atos responsivos e responsáveis em nosso tempo presente!

Prof. Dr. Fábio Marques de Souza


Doutor em Educação pela USP.
Estágio de Pós-Doutorado em Educação Contemporânea pela UFPE.
Professor no Departamento de Letras e Artes e no PPGFP da UEPB.
Colaborador no PPGLE na UFCG
Campina Grande - PB, inverno de 2021.

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA EM UMA ESCOLA TÉCNICO-


PROFISSIONALIZANTE
O texto como ponto de partida (?)

Márcia Helena de Melo PEREIRA1


Graciethe da Silva de SOUZA2

Somos expostos, desde muito cedo, às práticas de linguagem do


contexto social imediato do qual fazemos parte. Via de rega, é no ambiente
familiar que obtemos os primeiros contatos com as práticas de linguagem,
todavia, a aquisição de seus usos formais, bem como o discernimento de que
esta possui poder político e ideológico, são atividades que requerem mais que
o contexto familiar imediato. Justamente nesse ponto, determina-se um dos
papéis da escola: ensinar usos não corriqueiros da língua (MARCUSCHI,
2008). Acreditamos, desse modo, que a disciplina de Língua Portuguesa tem
um papel inquestionável nessa tarefa. Porém, um ensino pautado somente
em gramática normativa é insuficiente para a formação de cidadãos
conscientes do seu papel social, como já previa os PCNs (Parâmetros
Curriculares Nacionais) de Língua Portuguesa 3 e agora a BNCC (Base
Nacional Comum Curricular).
Desde meados do século XX, com a virada pragmática, áreas da
Linguística como a Linguística Textual têm fornecido subsídios para o ensino
no sentido de mostrar, com suas pesquisas, que o texto é muito mais do que
estruturas internas. Atualmente, resultante dessas discussões, parece
unânime que o texto, nos mais diversos gêneros do discurso, deve ser o ponto
de partida para o ensino de língua materna. Nesse sentido, propusemo-nos
investigar o processo de ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa em
uma escola de Ensino Médio de uma cidade do interior da Bahia, observando
se as práticas pedagógicas por ela apresentadas condizem com a perspectiva
dos gêneros discursivos, uma vez que os documentos oficiais estipulam que
o ensino deve partir dos gêneros discursivos. Sendo assim, perguntamo-nos:

1
Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas, professora titular do
Departamento de Estudos Linguísticos e Literários (DELL) e docente do Programa de Pós-Graduação em
Linguística (PPGLin) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Vitória da Conquista/BA, Brasil.
E-mail: marciahelenad@yahoo.com.br
2
Doutoranda em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGLin) da Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Vitória da Conquista/BA, Brasil. Mestra também pelo Programa de
Pós-Graduação em Linguística (PPGLin/UESB). E-mail: graciethe@live.com
3
À época em que a pesquisa foi realizada, estávamos sob a vigência dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs). Agora, estamos sob o jugo da BNCC, Base Nacional Comum Curricular, documento que define o
conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens fundamentais que deve ser desenvolvido por todo aluno
ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica.

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

como tem sido realizado o ensino de gênero, contemporaneamente, após


instituídos os PCNs, nesta escola em específico?
Para alcançar o objetivo proposto, elegemos como campo de pesquisa
uma escola que divide seu espaço com uma das universidades estaduais da
Bahia, do interior. Para tanto, inserimo-nos na escola e observamos as aulas
de Língua Portuguesa em duas turmas, de segundo e terceiro anos,
respectivamente, do Ensino Médio, no período equivalente a um trimestre
letivo4, em 2017. Dentre os cursos disponibilizados pela escola, elegemos,
para efeito de pesquisa, dois deles, ambos do Ensino Médio, sendo um do
segundo ano (Curso A) 5 e o outro do terceiro ano (Curso B), no período de
um trimestre letivo6. Nas duas turmas, a carga horária da disciplina de
Língua Portuguesa é de 2h/aulas semanais. Dada a limitação de extensão
deste artigo, recortamos para esta análise quatro aulas, duas de cada docente,
na sequência em que foram observadas no momento da coleta dos dados.
Utilizamos como instrumento de coleta de dados o diário de bordo, no qual
foram anotados os procedimentos utilizados nas aulas observadas.
Para tanto, as seções deste artigo estão assim dispostas: primeiramente,
fizemos uma breve abordagem teórica em torno dos gêneros discursivos e do
ensino de língua materna, refletindo acerca dos seus objetivos, das
concepções de linguagem, língua, texto e sujeito que devem ser adotadas em
sala de aula, tendo em vista a importância da linguagem na vida humana. Na
seção subsequente, apresentamos a descrição, análise e resultados das aulas
observadas. Ao final, fizemos uma seção de considerações finais.

Os gêneros discursivos: da teoria à prática escolar

Os gêneros do discurso, conceito elaborado pelo filósofo russo Mikhail


Bakhtin (2011) e mais tarde incorporado pelos PCNs e agora também na
BNCC, têm se configurado como um dos cernes do ensino e aprendizagem
de língua materna, de modo que sua importância no contexto escolar se
tornou incontestável. O autor postula que os gêneros são os “tipos
relativamente estáveis de enunciado” (BAKHTIN, 2011, p. 262), por meio dos
quais nos expressamos linguisticamente. Para chegar a esse conceito, o autor
adota uma concepção de língua que suplanta as questões de ordem
puramente linguísticas, assumindo que a língua é uma entidade viva (está

4
A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética e está inscrita na Plataforma Brasil sob o Certificado de
Apresentação para Apreciação Ética – CAAE, número 61086916.4.0000.0055.
5
Para preservar a identidade dos sujeitos da pesquisa, vamos nos referir às docentes e aos cursos nos quais
ministram aula por letras fictícias, A e B.
6
O ano letivo desta escola é subdividido em três trimestres, dos quais utilizamos o primeiro deles para a
realização da coleta dos dados.

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

sempre em movimento), sendo transformada e/ou transformando os


segmentos sociais nos quais está inserida, logo, possui um caráter dialógico.
O discurso emerge, justamente, desse caráter ideológico da linguagem, uma
vez que este é constituído por uma série de fatores, entre eles a ideologia, que
estão muito além do “puramente linguístico”. Todas as questões discursivas
cabem em algum gênero e, na realidade, elas só são possíveis por meio deles.
Cada gênero, por sua vez, é identificado por algumas especificidades. Nesse
sentido, os gêneros são configurados sob três pilares, os quais, juntos, fazem
com que a interação verbal aconteça, de fato. De acordo com Bakhtin:
O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos)
concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo
da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e
as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático)
e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais,
fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua
construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo
temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente
ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela
especificidade de um determinado campo da comunicação (BAKHTIN,
2011, p. 261-262).

Portanto, cada evento sociocomunicativo – realizado sob um gênero do


discurso, oral ou escrito – é abalizado por esses três elementos: conteúdo
temático, estilo e estrutura composicional. O conteúdo temático diz respeito
ao tema tratado em um determinado gênero, é contextualizado
discursivamente e engloba a singularidade e os conhecimentos dos sujeitos
envolvidos na enunciação; o estilo, por sua vez, trata das questões mais
linguísticas, ou seja, está mais ligado a questões estilísticas, que podem ser
mais ou menos individuais; e a estrutura composicional, como o próprio
termo já faz alusão, diz respeito aos aspectos formais/estruturais dos gêneros.
Uma receita culinária, por exemplo, é facilmente identificada por sua
estrutura. Sendo assim, em cada campo surgem gêneros específicos, com
estilos, estruturas composicionais e conteúdos temáticos relativamente
estáveis, dada a função que estiverem exercendo em determinado contexto
sociocomunicativo.
A Linguística, sobretudo a Linguística Textual, absorveu a teoria dos
gêneros discursivos como processo teórico-metodológico e a aplicou ao
ensino-aprendizagem de língua materna – de modo que o texto, atualmente,
sob a roupagem dos diversos gêneros, deve ser o ponto de partida para o
ensino, segundo essa teoria. Para tanto, essa corrente, sendo mais recente,

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

precisou repensar alguns conceitos-chaves dos quais é constituída, tais como:


língua, texto e sujeito. Essas noções, portanto, têm implicações diretas no tipo
de ensino que se pode realizar em sala de aula.
Segundo Koch (2011), são muitas as concepções de língua e de texto com
as quais nos deparamos em diferentes momentos. O modo como o professor
compreende e concebe a língua altera o trabalho com o texto, seja no âmbito
da interpretação/compreensão ou da produção. Ao fazer algumas reflexões
acerca das diferentes visões de língua, sujeito e texto, a autora expõe que, se
a língua é imaginada como meio de interação e o sujeito como construtor
social, o texto é o próprio lugar dessa interação. Partindo dessa concepção, o
interlocutor possui uma relação dialógica com o texto, ou seja, o interlocutor
deve estar imbuído dos conhecimentos de mundo, das inferências
presumíveis, pois sua atuação no texto é ativa. Nesse sentido, “há lugar, no
texto, para toda uma gama de implícitos, dos mais variados tipos, somente
detectáveis quando se tem, como pano de fundo, o contexto sociocognitivo
dos participantes da interação” (KOCH, 2011, p. 17).
O ensino, partindo desse ponto de vista, não se exaure na
superficialidade do texto e – menos ainda – nas estruturas linguísticas, cujo
enfoque, geralmente, são as regras gramaticais; pelo contrário, estaria
pautado na concepção sociointeracional da linguagem, segundo
recomendavam os PCNs. Os sujeitos, partindo dessa perspectiva, estariam
imbuídos de conhecimentos que excedem o dito, o decodificável, estariam
munidos de um vasto conjunto de saberes, de conhecimento de mundo.
Adotando-se esse ponto de vista, as impressões, as marcas ideológicas e o
contexto social no qual o indivíduo está imerso são elementos que, unidos
aos aspectos metalinguísticos, dão sentido ao texto.
Desde a década de 1980, muitos linguistas já não tinham dúvida de que
ensinar gramática e ensinar língua se constituía em duas atividades
diferentes e que os professores da educação básica deveriam ser formados
para ensinar língua e não gramática (POSSENTI, 1996). Entretanto, o ensino
da gramática continuou ocupando um lugar central no ensino da Língua
Portuguesa no Brasil. Uma das razões para a manutenção de um ensino
ancorado na gramática – a normativa –, é a consequência do contexto de
ensino dessa disciplina em nosso país, conforme evidenciamos na seção
anterior. Assim, dada a centralidade da gramática em sala de aula, ainda
atualmente, ressaltamos que é necessário que o professor tenha
conhecimento básico sobre os principais conceitos, concepções e tipos de
gramática, bem como suas implicações para o ensino de língua materna.
É necessário, pois, que o professor de Língua Portuguesa tenha uma

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

percepção clara sobre as concepções de linguagem e o que a escolha de uma


em detrimento de outra acarreta na aprendizagem dos alunos. Quanto ao
conceito de gramática, este também está condicionado à concepção de
linguagem adotada. De modo genérico e didático, Possenti (1996) dirige-se
ao significado de gramática como um “conjunto de regras”. Para entender
esse conjunto de regras, o autor destaca três definições, ordenando-as da
seguinte forma: 1) conjunto de regras que devem ser seguidas; 2) conjunto de
regras que são seguidas; e, 3) conjunto de regras que o falante da língua domina.
A partir dessas noções, Possenti (1996) apresenta, basicamente, três
caracterizações para a palavra gramática, quais sejam: gramática normativa,
gramática descritiva e gramática internalizada.
Para Travaglia (1998), a gramática normativa ou prescritiva diz respeito
às rotulações/julgamento do “certo” e do “errado” na língua. Nesse sentido,
um evento comunicativo oral ou escrito é bem-sucedido se, e somente se,
obedecer às regras de “bom” uso da língua. A gramática descritiva, por sua
vez, descreve a estrutura e funcionamento dos fatos da língua. Nessa
concepção, o julgamento e as rotulações de “certo” e “errado” não são
permitidos. Na realidade, interessa, para esse tipo de gramática, as questões
de ordem estrutural, separando-se aquilo que é gramatical do que é
agramatical (TRAVAGLIA, 1998, p. 27). Já a gramática internalizada, refere-
se ao uso da língua conforme a situação sociocomunicativa requisitada.
Nesse caso, as regras aprendidas pelo falante são aplicadas no intuito de
garantir a adequação ao contexto de interação comunicativa.
Possenti (1996) sugere que as três concepções de gramática façam parte
do contexto de ensino, porém, na ordem de prioridade inversa ao que
costuma acontecer, mesmo porque, geralmente, prevalece na escola um
ensino com base na concepção de gramática normativa. Assim, de acordo
com o autor, seria privilegiada “a gramática internalizada, seguida da
descritiva e, por último, a normativa” (POSSENTI, 1996, p. 87-8).
Com efeito, um ensino de língua materna engendrado na noção de
gramática como o próprio sistema de regra da língua posto em
funcionamento deve adotar uma noção de gramática como “organização das
relações, como construção das significações, como definição dos efeitos
pragmáticos, enfim, como mecanismo que faz do texto uma peça em função”
(NEVES, 2012, p. 188-189). Portanto, nessa concepção, “produzir linguagem
nada mais é que ativar processos que a gramática organiza, entrecruzando-
os, para compor textos, na interlocução” (NEVES, 2012, p. 189).
Devido às críticas com relação ao contexto social e político no qual o
ensino de língua materna, no Brasil, esteve inserido por séculos, conforme

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

expomos na seção anterior, e do ensino normativo de gramática, houve a


necessidade de se repensar esse ensino. Os PCNs são criados como respostas
às críticas sobre o ensino tradicional de gramática. Além disso, os
documentos visam à fomentação e padronização do ensino básico no Brasil.
No que diz respeito ao ensino de Língua Portuguesa, estes propõem, entre
outros objetivos, justamente o cumprimento do requisito da cidadania,
previsto na atual Constituição Federal. Assim, conforme os PCNs, o ensino
de Língua Portuguesa deve adotar o texto como ponto de partida e a
gramática como elemento essencial, mas não único, para a composição e
compreensão de textos dos diversos gêneros discursivos. É nesse sentido que
nos perguntamos: como tem sido realizado esse ensino,
contemporaneamente, após instituídos os PCNs, nesta escola em específico?
Com o intuito de responder a essa pergunta, passemos à próxima seção. Nela,
trataremos dos aspectos metodológicos deste trabalho, desde a entrada em
campo, para a coleta dos dados, aos mecanismos que utilizamos para analisá-
los.

A observação das aulas e o diário de bordo: o que revelam?

Para responder ao questionamento que nos norteou, dividimos a


discussão em dois momentos: no primeiro, descrevemos as aulas da docente
A do curso A, tais como foram registradas em diário. Em seguida, fizemos o
mesmo com as aulas da docente B do curso B.

As aulas de Língua Portuguesa no segundo ano do curso A

Quadro 1: Primeira aula: dia 30 de março de 2017


A professora iniciou a aula expondo, em Data show, o conto “como se chama?”, de
Clarice Lispector. O texto aborda determinadas circunstâncias em que não conseguimos
encontrar um nome que corresponda ao que se está vivendo. Em seguida, ela explorou o
conteúdo do conto, sempre instigando os alunos à reflexão, chamando-os, de forma sutil, para
participar da aula, fazendo-lhes perguntas sobre o conto, delineando possíveis relações dele
com o nosso dia a dia, com situações em que nos encontramos e ressaltando que, muitas
vezes, não possuímos palavras específicas para nos expressarmos. A docente mostrou, por
meio do conto, que muitas vezes nos deparamos, em nosso cotidiano, com situações em que
não sabemos um nome específico para um determinado objeto ou sentimento.
Posteriormente, a docente expôs outro texto, um trecho da primeira parte do conto
“Circuito Fechado”, de Ricardo Ramos, o qual foi lido em voz alta para toda a turma
acompanhar. Em seguida, houve a exibição de um vídeo com o áudio desse mesmo texto, e
imagens que correspondiam às situações presentes no conto, tais como: fotos de cigarro, lápis,
escritório, etc. Os alunos foram questionados a respeito dos aspectos linguísticos e de sentido
do texto com perguntas como: “qual era o tema abordado? Que classe de palavra
predominava em sua composição?”. Percebemos que os alunos nunca tinham se deparado
com um texto similar a esse, com características peculiares, formado apenas por nomes. A

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

professora chamou a atenção dos estudantes para a questão do sentido, perguntando-lhes se


haviam compreendido o texto e do que ele tratava. A partir desse momento, a docente
começou a usar uma nomenclatura mais técnica ao se referir aos nomes do texto, chamando-
os de substantivos.
A professora declarou, então, que trabalharia, na unidade corrente, a classe dos
substantivos e perguntou aos alunos como eles os conceituariam, a partir dos textos que
haviam acabado de ler e discutir. Após os palpites dos alunos, apresentou um conceito mais
formal sobre essa classe de palavras e falou rapidamente sobre classificação e flexão dos
substantivos.
Posteriormente, expôs o poema “A pesca”, de Affonso Romano de Sant'Anna, e
perguntou aos alunos se, pelo formato/estrutura do texto, conseguiam identificar o gênero.
O texto foi lido mais uma vez. Em seguida, os alunos foram instigados a analisarem o modo
como o texto foi construído, basicamente formado por artigos e substantivos, mas não houve
exploração do conteúdo.
Por fim, a professora distribuiu uma atividade impressa que consistia, basicamente,
em intepretação de texto e classificação de palavras. A atividade foi preparada pela
professora, pois a escola ainda não havia distribuído os livros didáticos. Ela deu “visto” nos
cadernos dos alunos que concluíram a atividade. Quanto aos demais, deveriam levá-la pronta
na aula seguinte. E assim, finalizou a aula.
Fonte: dados da pesquisa

Conforme discutimos nas seções anteriores, o texto deve ser o ponto de


partida do ensino-aprendizagem de língua materna, pois, por meio dele é
possível explorar tanto elementos metalinguísticos quanto elementos
extralinguísticos da linguagem. Na aula descrita, notamos que a professora
não segue as orientações dos PCNs de língua portuguesa e da literatura
contemporânea que discute o ensino e aprendizagem de língua materna, à
medida que não usa o texto como objeto de ensino em sua aula. Por meio de
textos literários – conto e poema –, a professora inicia um trabalho que aponta
para indícios de mudanças, se tomarmos como parâmetro o ensino de Língua
Portuguesa, cujo objeto era a gramática normativa e textos literários clássicos,
realizado até a década de 1970, no Brasil. Porém, o texto é usado aqui como
um “disfarce” para tratar de questões conteudísticas e gramaticais,
assinaladas em perguntas como: “qual era o tema abordado?” ou, “que classe
de palavra predominava em sua composição?”. Partir de exemplos concretos,
ou de textos diversos, não implica em um ensino que adota o texto como
objeto, de fato (NEVES, 1994).
A docente em questão utiliza os textos literários – o poema de Clarice
Lispector e um trecho da primeira parte do conto de Ricardo Ramos – para
iniciar um trabalho metalinguístico, isto é, para tratar da classe de palavras
substantivo. Antes de chegar ao objetivo de sua aula – que é o ensino de
substantivo e não de gênero discursivo –, inicia uma breve reflexão sobre o
texto. Nesse sentido, a professora convoca os alunos para refletir sobre as

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

possibilidades, conscientes ou não, dos usos que fazemos das palavras nos
mais diversos contextos reais de interação verbal. E, por meio do texto,
apresenta para o estudante a função gramatical que as palavras exercem.
Entretanto, o texto está sendo usado como pretexto para o estudo das normas
gramaticais, uma vez que a língua não está sendo concebida como interação
verbal, que inclui a relação entre ela e o enunciador, sempre num processo
dialógico, conforme indica Bakhtin (2011). Mesmo assim, podemos
considerar que a professora consegue estreitar as fronteiras – estabelecidas
por séculos – entre gramática, texto e literatura, conforme preconizam os
PCNs.
A inserção do poema “A pesca”, de Affonso Romano, na aula, se
configurou como mais um exemplo de texto formado majoritariamente por
substantivos e artigos. Não houve nenhuma tentativa de, pelo menos,
mencionar ou discutir o conteúdo temático do texto, suas características
formais ou seu estilo, enquanto texto literário. A análise do poema esgotou-
se “no modo como o texto foi construído”, no sentido metalinguístico de sua
composição. Eis o uso do texto como pretexto, como ilustração para os fatos
gramaticais.
Logo em seguida, é proposta uma atividade que caminha na mesma
direção da abordagem teórico-metodológica que a professora vinha
trabalhando. A atividade se inicia com o conto “Como um filho querido?”,
de Marina Colasanti. Questionamentos são feitos no sentido de explorar a
interpretação textual e gramatical do texto, tais como: “o feminino de marido
é mulher e o masculino de esposa é esposo. Na sua opinião, porque, na última
frase do 2° parágrafo, o narrador empregou esposa e não mulher, se antes
empregara, por duas vezes, marido”? Ao trazer questões como essa, a
docente chama a atenção dos alunos para o fato de que determinadas
escolhas lexicais podem interferir no sentido. Sendo a língua um sistema de
produção de sentido, as aulas de Língua Portuguesa precisam ser pensadas
de maneira que levem o aluno a se dar conta de que está diante de opções e
escolhas que ajustam a linguagem, bem como da possibilidade de produção
de sentido a seu favor, de modo que possa obter êxito no processo de
interação com seu interlocutor (TOLDO, ROCHA, 2003, p. 4). Contudo, mais
uma vez o texto está sendo utilizado como subterfúgio para tratar da
gramática ou da interpretação e compreensão textuais, sem dialogar com
questões contextuais. O mesmo ocorre nas demais questões da atividade
proposta, nas quais os conteúdos metalinguísticos ganham maior relevância,
como mostra a seguinte pergunta: “Que palavra designa a alegria excessiva
manifestada nessas datas?” Ao chamar a atenção dos alunos para essas

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

escolhas, a docente faz os alunos perceberem a riqueza do sistema linguístico


quanto à diversidade de possibilidades lexicais que podem ser empregadas
em um determinado contexto. Consideramos, pois, que a atividade proposta
não proporciona aos estudantes a compreensão do texto como uma unidade
de sentido, em que toda sua elaboração, desde as unidades linguísticas às
extralinguísticas, contribui para seu sentido global. As questões propostas,
portanto, não respeitam os princípios que guiam o trabalho com o texto em
sala de aula.
Estamos em consonância com Neves (2012), quando afirma que “de seu
lado, o professor há de fazer, juntamente com seus alunos, a reflexão que
possa levar, do uso da linguagem, à apreensão dos processos gramaticais de
constituição do enunciado linguístico, e, por aí, ao final, à sistematização da
gramática do português” (NEVES, 2012, p. 208). Parece-nos que é isso que a
docente tenta fazer: uma reflexão do uso da linguagem, e, à medida do
possível, é isso que é feito. As condições de trabalho, a carga horária
disponível para as aulas de Língua Portuguesa (2h/aulas semanais nessa
escola), e as demais questões que envolvem a profissão docente no país,
podem, sem dúvidas, interferir na qualidade das aulas que são ministradas
diariamente.
Notamos, portanto, que o trabalho realizado na aula que acabamos de
analisar ainda não atende às propostas e orientações dos PCNs; mesmo
assim, parece apontar para indícios de que a professora tem se atentado para
as mudanças que o referido documento propõe. Porém, isso é realizado de
maneira ainda incipiente, mesmo porque os próprios PCNs não deixam claro
como, efetivamente, o ensino da Língua Portuguesa deve ser conduzido,
ficando sob o critério de cada docente realizar este trabalho. Passemos, agora,
à próxima aula dessa docente.
Quadro 2: Segunda aula: 06 de abril de 2017
O início dessa aula foi marcado por dois informes. O primeiro foi a respeito do projeto
“Lápis na Mão”7. A professora explicou que se tratava de um Concurso de Redação para
estudantes do Ensino Médio e Ensino Fundamental do 8º e 9º anos das escolas Públicas de
Vitória da Conquista, de iniciativa da TV Sudoeste, que contava com o apoio de entidades
como a escola, a UESB e o NRE 208. Mesmo não sendo uma atividade obrigatória, foi feita
uma mobilização para que os estudantes participassem.
O segundo informe foi sobre os Projetos Estruturantes da escola, tais como o de Artes

7
O Projeto Lápis na Mão é um concurso de redação, cuja iniciativa é da TV Sudoeste, que realizou em 2017 a
sua segunda edição. O projeto tem o objetivo de incentivar a prática de leitura e escrita aos estudantes das
escolas públicas de algumas cidades da Bahia. Em sua primeira edição, foram contemplados apenas alunos do
Ensino Médio, já em 2017, agregaram-se, também, o oitavo e o nono anos do Ensino Fundamental II. Na etapa
final do concurso são premiados os três estudantes finalistas, a escola e seu professor.
8
Núcleo Regional de Educação de Vitória da Conquista.

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Visuais Estudantis (AVE), Festival Anual da Canção Estudantil (FACE), Tempos de Artes
Literárias (TAL), Educação Patrimonial e Artística (EPA), Encontro de Canto Coral (Encante),
Produção de Vídeos Estudantis (PROVE), A Arte de Contar História (s), Mostra de Dança
Estudantil (DANCE), etc. A participação do estudante neles não é obrigatória. Esses projetos
são gerenciados pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia e visam, de modo geral, a
implementação de políticas educacionais, bem como promover a diversificação e inovação
das práticas curriculares. As escolas e a secretaria trabalham em articulação, a partir de um
planejamento coletivo, cujo objetivo é potencializar o processo de ensino-aprendizagem no
contexto escolar.
A aula foi interrompida, antes mesmo do término do informe sobre os projetos
estruturantes, por uma equipe da TV Sudoeste, justamente para falar do Projeto “Lápis na
Mão”, assunto do primeiro informe. Foi um momento em que tanto os alunos quanto a
professora puderam sanar suas dúvidas referentes ao projeto, pois estavam diante dos
principais idealizadores do concurso. Após essa interrupção e tendo feito os informes, a
professora retomou a aula anterior, perguntando aos alunos o que lembravam sobre a classe
dos substantivos e, em seguida, corrigiu, de forma oral, a atividade da aula anterior sobre
substantivos e os efeitos de sentido que causam na língua.
A aula teve prosseguimento com a explanação, por meio de slides, projetados em data
show, do conteúdo “Flexão dos substantivos: gênero, número e grau”. Após explicação do
conteúdo, a professora fez uma reflexão com os alunos, perguntando-lhes o que a flexão dos
substantivos acarreta dentro da língua, sendo que eles fazem escolhas que envolvem o
sentido das palavras como, por exemplo: dizer “o cabeça” ou “a cabeça” produz sentidos
diferentes.
Mais uma interrupção ocorreu na aula, dessa vez por estudantes que estavam à frente
da votação para líder de classe. Os estudantes falaram da importância de se ter um
representante em cada turma e suas principais atribuições como líder de classe. Em seguida,
alguns nomes foram indicados para a votação, o que ocorreu em poucos instantes. Por fim,
após a pausa, foram exploradas, ainda nessa aula, “as regras de acentuação e de emprego do
hífen”. A professora mostrou as principais mudanças ocorridas com o Novo Acordo
Ortográfico e expôs, em PowerPoint, uma charge que tratava do emprego do hífen.
Fonte: dados da pesquisa.

Conforme descrevemos acima, além dos informes, houve duas


interrupções na aula: uma para votação de líder de classe e outra feita por
representantes da emissora de televisão, idealizadora do projeto de redação.
Eventualidades como essas mostram que a professora está ciente de que
somente o conteúdo da aula não forma cidadãos que vivem, atuam e atuarão
em sociedade. Nesse sentido, estamos de acordo com o posicionamento de
Pereira (2006), quando afirma que:
As exigências da sociedade atual são diversas e complexas e a escola
precisa adaptar-se a elas. Uma escola que não incentiva o aluno a aprender,
a viver e a interagir nesta sociedade, sabendo reivindicar seus direitos e,
dessa forma, sabendo expressar-se com competência, dificilmente
consegue formar cidadãos capazes de também transformar a realidade.
Uma realidade que se caracteriza pela desigualdade socioeconômica,
educacional e cultural geradoras da exclusão social (PEREIRA, 2006, p. 15).

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

O perfil do profissional que ensina língua materna precisa condizer com


essa perspectiva, qual seja: o ensino não pode se limitar ao conteúdo
metalinguístico. O professor precisa estar sensível a tudo que diga respeito à
vida social como um todo; do contrário, corremos o risco de não permitir que
o aluno se constitua sujeito, que por meio de sua língua possa agir e atuar nos
mais diversos contextos nos quais estiver exposto.
Os projetos estruturantes, bem como o projeto Lápis na Mão, apesar de
se constituírem atividades extras, dialogam com os objetivos propostos pelos
PCNs e reiteram que toda a nossa ação sociocomunicativa é atravessada pelo
texto. Do mesmo modo, ter permitido uma votação para líder de classe na
aula sugere que a professora compreende que a comunidade escolar possui
uma organização que possibilita o conhecimento, a ação e a atuação do
estudante nos processos e atividades que envolvem a sua escola. Além disso,
a escolha do líder de classe tem implicações sérias: é atribuído ao líder a
missão de representar a turma, em situações em que isso é uma exigência,
bem como o poder de tomar decisões em seu nome. Vemos aí um reflexo da
organização da vida em sociedade.
Após as interrupções, a professora retomou o conteúdo da aula do dia
anterior e corrigiu, junto com os alunos, a atividade de forma oral. Porém, a
correção da atividade não chega a promover um debate ou uma discussão a
respeito das respostas atribuídas pelos alunos em cada questão. Na realidade,
essa “correção”, como o próprio termo sugere, ainda está ancorada no “certo”
ou “errado”, isto é, o discente lê sua resposta e o professor a julga correta ou
não e, assim, passa-se para a próxima questão. Mais uma vez, o texto compôs
a atividade com o propósito de lhe fornecer exemplos para as questões
gramaticais. Mesmo diante desse quadro, a proposta de correção da
atividade promove, em alguma medida, a interação com os colegas e com o
professor, pois a professora permite que o aluno tenha voz em sala de aula,
rompendo a tradição de se ter aula de expressão sem permitir que o aluno,
realmente, se expresse (BRASIL, 1999).
Como vimos defendendo, é a concepção de língua(gem) que define a
abordagem que será adotada em sala de aula. Estando munida desse
conhecimento mais teórico, a tendência é de que a prática pedagógica tenha
maior êxito. Na parte voltada para o ensino de gramática, observamos que a
professora adota uma concepção de ensino de língua que, embora não seja a
interacional, não é a de língua como expressão do pensamento ou como meio
de comunicação apenas. Notamos que o enfoque das aulas não é
completamente voltado para a gramática normativa, embora, em alguns
momentos haja essa preocupação por parte da docente, quando esta trata, por

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exemplo, de conteúdo, cujas regras são mais arbitrárias, como o “Novo


Acordo Ortográfico”, mas a docente mostra esse funcionamento no texto,
como fez com a charge discutida, quando falava do uso do hífen, por
exemplo. Por isso, acreditamos que estamos diante de concepções
intermediárias no tocante ao conceito de língua adotado pela docente.
Em suma, nas duas aulas analisadas, ainda prevaleceu o ensino de
gramática, ora mais prescritivo, ora de acordo com as indicações dos PCNs
de Língua Portuguesa, partindo do texto. Contudo, o texto atuou mais como
disfarce para trabalhar as questões de ordem gramatical do que como o lugar
de interação social, de fato. Tomando-se como parâmetro o ensino tradicional
de Língua Portuguesa, conforme evidenciamos no início deste trabalho,
podemos considerar que o trabalho da professora assinala para mudanças,
principalmente no que concerne à variedade de texto presente em sala de
aula e à metodologia utilizada para a “correção” de atividades.
Passemos, agora, para a descrição e análise das aulas da segunda
professora.
As aulas de Língua Portuguesa no terceiro ano do curso B

Quadro 3: Primeira aula: 30 de março de 2017


A aula começou com uma breve revisão do Movimento Literário Trovadorismo,
situando-o na linha do tempo. Segundo a professora, esse conteúdo já tinha sido trabalhado
na aula anterior9. A docente fez uma distinção entre as “Cantigas de Amor” e as “Cantigas
de Amigo”, bem como distinguiu, também, o que são as “Cantigas de Maldizer” e as de
“Escárnio”. Mostrou para os alunos que as Cantigas de Maldizer fazem uma crítica direta, e
as de Escárnio, uma crítica indireta à sociedade vigente. Para tanto, fez um paralelo com a
realidade musical contemporânea, lembrando-se de que, na época em que se vivia a Ditadura
Militar no Brasil, por exemplo, a música “Cálice”, de Chico Buarque, da qual, juntamente com
os alunos, recordou-se de alguns trechos, “tem muito mais a dizer do que se pensa, se for
feita uma leitura contextualizada e aprofundada”.
Foi tema da aula, ainda, a Escola Literária “Humanismo”. A discussão girou em torno
da ideia de que, nesse momento histórico, o homem assume a posição de centro do universo
– Antropocentrismo, e com isso começa a pensar e agir mais cientificamente. Para tanto,
contou histórias de como era a relação do homem com o universo, à época, em que fenômenos
e desastres naturais possuíam explicações divinas que, segundo a docente, poderiam passar
determinadas mensagens para a espécie humana.
Após uma rápida abordagem dos dois conteúdos, Trovadorismo e Humanismo, a aula
foi encerrada, preenchendo apenas um dos horários, pois, no meio da semana, devido à falta
de organização dos horários da escola, a professora foi solicitada a assumir uma aula vaga.
Fonte: dados da pesquisa.

9
Por ordem da direção da escola, não foi possível observar as aulas na primeira semana do ano letivo, pois, os
horários eram provisórios, sendo construídos diariamente, assim, não daria para saber antecipadamente a
turma e o horário em que aconteciam as aulas de Língua Portuguesa.

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

A professora começou sua aula fazendo uma revisão dos conteúdos de


dois movimentos literários da Literatura Portuguesa, Trovadorismo e
Humanismo. Geralmente, o ensino de Literatura, como apontam os PCNs
(BRASIL, 1999), é atravessado pela tradição do estudo da historiografia das
Escolas Literárias. Nesta perspectiva, são enfatizados os contextos históricos,
características e principais autores e obras que marcaram determinado
período. O texto literário é utilizado para elucidar essas tendências
contextuais e sua essência; ele, em si, entretanto, pouco é explorado.
Conforme Antunes (2003), ainda há o costume de trabalhar com o texto
centrando-se em suas habilidades mecânicas de decodificação, sem
promover a reflexão e um contato efetivo com ele, para que o aluno não só
compreenda as questões contextuais nele presentes, como também tenha
percepção do prazer estético que pode proporcionar.
O texto, portanto, precisa ser compreendido como um lugar de interação
entre seu autor e o leitor. Nesse sentido, “o autor, instância discursiva de que
emana o texto, se mostra e se dilui nas leituras de seu texto: deu-lhe uma
significação, imaginou seus interlocutores, mas não domina sozinho o
processo de leitura de seu leitor” (GERALDI, 2011, p. 91) ─ eis o porquê de a
linguagem ser dialógica, pois, só faz sentido na interação. Ressaltamos a
importância de assumir essa concepção em sala de aula. Os leitores interagem
com o texto, por isso, sua leitura não pode servir de mero exercício escolar,
isto é, como pretexto para atividades metalinguísticas que serão postas à
prova nas avaliações, ou a serviço de mostrar, apenas, como se configura
determinada escola literária, servindo de mera ilustração para isso.
Segundo os documentos oficiais, o letramento literário deve ser
significativo, por meio do qual o aluno é convidado a refletir sobre a
construção literária de sentidos (PAULINO; COSSON, 2009). Isso só é
possível se adotada uma concepção mais ampla de literatura, pois ela é um
instrumento ideológico de poder; é necessário que o ensino considere esse
teor. Quando a professora traça um paralelo com os dias atuais, trazendo
para a discussão a música “Cálice”, de Chico Buarque, por exemplo, está
tratando o texto numa perspectiva interacionista. As Cantigas de Escárnio e
Maldizer que, à sua época, tinham a função de satirizar a moral e a política
no contexto português, ganham, nessa aula, uma releitura com o texto de
Chico Buarque, escrito em um contexto de Ditadura Militar, no Brasil,
período em que a liberdade de expressão foi vetada. Alguns artistas
recorriam às músicas e à literatura, de modo geral, como forma de burlar a
linguagem, escrevendo à luz das metáforas para, então, questionar esse
momento político. Nesse sentido, acreditamos que “qualquer texto precisa

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

ser lido como sendo o lugar de encontro entre quem escreveu e quem lê”
(ANTUNES, 2003, p. 80).
Ao tratar do Humanismo, a docente também traça paralelos com a
realidade, dizendo que esta é encarada, atualmente, de maneira diferente a
partir do momento em que o Homem adota a postura de ser o centro do
universo. Todavia a docente não adota o texto como o ponto de partida para
o ensino de literatura, como recomendam os documentos oficiais. Há uma
variedade de textos da historiografia literária, inclusive dos períodos
supracitados, mas a professora optou por não os levar ao conhecimento dos
alunos, ou seja, apesar de “conceituar” as “Cantigas de Maldizer”, de
“Amigo”, etc., ela não as leva para aula, não possibilita que os alunos tenham
contato com esses textos que, muitas vezes, só seria possível por meio da
escola.
A abordagem feita pela professora não é o suficiente para romper com a
tradição, tão enraizada, do ensino de literatura. Na realidade, essa
abordagem não se insere nem no que estamos chamando, aqui, de ensino
tradicional de Literatura, que, segundo os PCNs, consistia em caracterizar
uma Escola Literária, inseri-la em um contexto histórico e, finalmente,
trabalhar com as obras e autores que se destacaram nesse movimento, obras
estas consideradas consagradas pela crítica literária como canônicas. A
inserção dos alunos nesse mundo desconhecido poderia ter sido possibilitada
de diversas formas, desde a leitura de textos à apreciação de peças teatrais ou
filmes que retratam esse período.
A aula demonstra uma falta de sistematização. Um planejamento
metodológico ancorado em Sequências Didáticas, procedimento
metodológico elaborado pelo Grupo de Genebra, sob os nomes de Dolz,
Noverraz e Schneuwly (2004), que é um conjunto de atividades planejadas e
organizadas sistematicamente em torno de um gênero, poderia se configurar
em uma possibilidade para essa sistematização. Além disso, permitiria a
integração não somente dos conteúdos de Literatura, propriamente ditos,
mas linguístico, histórico, e, por que não, de deleite? Será mesmo que a lírica
trovadoresca ou as novelas de cavalaria não despertariam nos estudantes
alguma curiosidade ou emoção? Nesse sentido, os estudantes, além de
compreenderem o contexto histórico da Idade Média, período em que
surgiram as Cantigas (amor, amigo, escárnio, maldizer), bem como a
formação dessa sociedade, na qual coexistiam reis, donzelas, servos, etc.,
poderiam estudar sobre as mudanças ocorridas na língua com o passar do
tempo, já que os textos são escritos em um português do século XIII.
Língua e literatura não devem ser consideradas dicotômicas, pois ambas

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

possuem o mesmo objeto de estudo, qual seja: o texto. Segundo o


aprofundamento dos estudos linguísticos e da teoria literária, “tem ficado
cada vez mais claro que o material com que trabalha a literatura é
fundamentalmente a palavra e que, portanto, estudar literatura significa
também estudar língua e vice-versa” (LEITE, 2011, p. 18). Sigamos para a
próxima aula dessa professora a ser discutida.
Quadro 4: Segunda aula: 06 de abril de 2017
Nesta aula, os alunos foram convidados a irem para o pátio da escola, área descoberta
e com árvores, para fazerem parte de uma dinâmica que não estava diretamente relacionada
com a disciplina. O objetivo, segundo a docente, era conhecer melhor a turma. Para isso, a
classe foi posta em círculo.
Estando em círculo e de mãos dadas, a docente chamou a atenção para o modo como
os alunos deram as mãos para os colegas, pois esse modo teria implicações: se com a palma
da mão para baixo, em uma dinâmica de entrevista de emprego em empresas, poderia
significar que o funcionário tem muito a oferecer para o crescimento da empresa. Segundo a
docente, pessoas com esse perfil demonstram autonomia e potencial para liderar. Se a palma
da mão ficasse para cima, significa que o candidato ao cargo é uma pessoa mais passiva, que
tem habilidade de absorver bem as coisas, como ordens, por exemplo. Dessa forma, o modo
como cada aluno segurou a mão do seu colega teria um significado. E, em se tratando de uma
entrevista, na qual o candidato pleiteia um determinado cargo, ele poderia ser analisado
conforme o perfil desse cargo, ou seja, de liderança ou de passividade.
Em seguida, a professora fez uma reflexão com a turma, mostrando que todas as nossas
ações, além de serem dotadas de significado, acarretam uma consequência. Nessa conversa,
ela tratou, também, da concorrência no mercado de trabalho e em outras esferas da vida
humana, bem como da importância do pensamento crítico. Por fim, assegurou à turma de
que em suas aulas trabalharia nesta direção, com vistas ao desenvolvimento do pensamento
crítico.
Fonte: dados da pesquisa.

Depreendemos dessa prática pedagógica que as aulas não precisam ser,


necessariamente, engessadas, com a disposição dos alunos em fileiras
organizadas, sendo a professora a única a falar, o que pode propiciar aos
alunos o entendimento de que o ensino não se restringe à memorização de
conteúdo, conceitos e termos técnicos. Contudo, é necessário que práticas
como a relatada acima sejam bem fundamentadas e tenham claros objetivos,
o que não parece ser o caso. Primeiro, porque essas dinâmicas não parecem
contribuir para o ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa; segundo,
porque a veracidade das informações concernentes à posição em que a palma
da mão fica, quando damos a mão a alguém, é, no mínimo, duvidosa, sem
claros embasamentos teóricos, com um discurso carregado de senso comum.
Constatamos, então, que a aula relatada não contribuiu para que os
alunos desenvolvam a competência crítica de ler a realidade e o mundo,
conforme preveem os PCNs de Língua Portuguesa do Ensino Médio. Além

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

disso, a atividade não foi planejada e os alunos foram pegos de surpresa, pois
estavam esperando a continuação da aula anterior. Dessa forma, a falta de
linearidade do trabalho da professora – cada dia uma aula diferente: um dia
é gramática, outro é literatura e assim por diante – evidencia a desarticulação
entre as aulas e proporciona a tão criticada fragmentação da disciplina, como
atestam os PCNs e teóricos da área.

Considerações finais

Conforme apontaram os dados e a análise empreendida sobre eles,


embora tenhamos os PCNs como documentos oficiais que parametrizam o
ensino de Língua Portuguesa, quando a pesquisa foi realizada, dos quais
emana uma concepção de linguagem guiada pela linha bakhtiniana, isto é,
sociointeracionista, cada professor rege a sua sala de aula e adota as
concepções teóricas que considera conveniente. Conforme observamos,
apesar de estarem na mesma instituição de ensino, cada professora seguiu
uma metodologia diferente para nortear seu trabalho em sala de aula. A
professora A, do curso A, adota uma abordagem que se aproxima mais de
uma concepção de linguagem sociointeracionista. Já a professora B, do curso
B transita nos liames da linguagem enquanto expressão do pensamento.
De modo geral, os dados mostraram que as aulas da professora A da
turma do segundo ano, do curso A, ainda não condizem com as diretrizes
propostas pelos estudos linguísticos e pelos PCNs. O texto, na modalidade
oral e escrita, verbal e não verbal, sob os gêneros poema, charge e conto foi
inserido nas aulas. Todavia, em poucas vezes houve uma preocupação com
as questões textuais/discursivas, de fato, desses gêneros. Seus conteúdos
temáticos, seus estilos e suas estruturas composicionais, bem como os seus
propósitos comunicativos, principais meios de circulação, não foram
trabalhados. Os diversos textos atuaram, em sua maioria, como
“disfarce”/pretexto para subsidiar as questões gramaticais, desprezando-se,
portanto, seus propósitos sociointeracionais. O poema “A pesca”, de Affonso
Romano, por exemplo, foi inserido na primeira aula como mais um exemplo
de textos formados majoritariamente por substantivos. O trabalho com o
referido texto se esgotou em sua análise metalinguística, isto é, no “como o
texto foi construído”, gramaticalmente falando. Em termos metodológicos, as
aulas demonstraram estar bem sistematizas e planejadas. Além disso, os
alunos poderiam se expressar tanto nos momentos de socialização da
atividade quanto durante as aulas.
No que diz respeito à professora B do terceiro ano do curso B, os dados,
conforme observamos, registramos e discutimos, revelaram que não houve

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

um trabalho efetivo com o texto. Assim, os propósitos comunicativos dos


gêneros, bem como seus aspectos composicionais, estilísticos e temáticos não
tiveram espaço para serem ensinados. Portanto, as orientações dos
referencias nacionais – PCNs – foram ignoradas, assim como foi ignorada a
sua tentativa de construir um ensino de língua fundamentado nos gêneros
discursivos, os quais são materializados em textos orais e/ou escritos,
possibilitando-nos entender a língua como uma atividade interativa. Por isso,
acreditamos que é necessário que o professor esteja munido de estratégias
metodológicas planejadas e sistematizadas, diferentemente do que
presenciamos nas duas aulas da docente B, e que tenha conhecimento de que
sua concepção teórica em relação aos processos de aprendizagem e à
linguagem tem implicações para o modo como conduzirá o ensino
(POSSENTI, 1996).
Em linhas gerais, as discussões tecidas no âmbito deste trabalho
mostram que o ensino de Língua Portuguesa, na escola em questão, possui
pontos condizentes e divergentes com as propostas teóricas que embasam o
ensino-aprendizagem de língua materna. Os resultados apontam para o fato
de que ainda é necessário fundamentar o trabalho com o texto em concepções
mais sociointeracionistas, de modo que o ensino de Língua Portuguesa possa
formar, efetivamente, cidadãos crítico-reflexivos, ou seja, sujeitos conscientes
e conhecedores da competência discursiva da linguagem, sendo capaz de
adequá-la aos diferentes contextos sociocomunicativos, tendo os gêneros
discursivos um importante papel nesse processo.

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TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1° e 2°
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30
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

DA LINGUÍSTICA DA ENUNCIAÇÃO À TEORIA ENUNCIATIVA DE


BAKHTIN
Implicações para a leitura

Cristiane Dall’ Cortivo LEBLER1

A Uma das maiores preocupações de pesquisadores e professores das


várias áreas do conhecimento e níveis de ensino é o desempenho em leitura
dos estudantes. Essa afirmação pode ser comprovada através de uma simples
busca nos principais portais de periódicos e bancos de teses e dissertações
usando como palavra-chave o termo “leitura”. Tal preocupação pode ser
derivada de dois motivos principais: o papel central que a leitura ocupa na
vida dos cidadãos, reveladora, portanto, do papel da escola em relação ao
desenvolvimento dessa habilidade, e os resultados negativos apontados
pelos exames aplicados aos estudantes brasileiros nos mais variados níveis
da educação básica e superior, como o PISA, a Prova Brasil e o Enade, por
exemplo.
Cagliari (2007) afirma que a leitura é a atividade fundamental que a
escola deve desenvolver quanto à formação dos estudantes, especialmente
porque ela é a extensão da escola na vida dos cidadãos. Ler é fundamental
para a aquisição de conhecimento durante a vida escolar, mas, sobretudo, é
indispensável para a vida em uma sociedade em que cada vez mais as
interações dependem do uso das mais variadas linguagens, especialmente da
linguagem verbal escrita.
A leitura é uma atividade que envolve muitos aspectos, desde a mera
decodificação linguística até a percepção de questões ideológicas, culturais e
enunciativas das quais a linguagem não é apenas o veículo, mas que
constituem a sua própria essência. Um leitor proficiente não é aquele capaz
apenas de decifrar o código escrito, mas também de buscar, em cada discurso,
os sentidos construídos pela relação com outros discursos, por marcas
enunciativas, ou, ainda, por uma determinada relação que o locutor
estabelece com seu interlocutor ou com o conteúdo que apresenta em seu
texto.
Paralelamente a essa discussão, é crescente o número de pesquisas
desenvolvidas no Brasil com base na chamada “Linguística da Enunciação”.
A definição dessa subárea nos estudos da linguagem se dá a partir de
pesquisas que investigam as relações entre linguagem em uso e sujeito,

1
Professora Adjunta do Departamento de Metodologia de Ensino da Universidade Federal de Santa Catarina.
Florianópolis, Brasil. E-mail: cristiane.lebler@gmail.com

31
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

conforme afirmam Flores e Teixeira (2005). De acordo com esses autores,


além de outros teóricos, constituem o campo da Linguística da Enunciação
Mikhail Bakhtin, Émile Benveniste e Oswald Ducrot.
É no contexto da Linguística da Enunciação que se insere este capítulo,
cujo objetivo é apresentar os principais conceitos da teoria enunciativas de
Mikhail Bakhtin e discutir possibilidades de abordagem da leitura a partir
dessa perspectiva. Nosso percurso parte da definição do campo “Linguística
da Enunciação” a partir de pesquisadores como Flores e Teixeira (2005),
Lahud (1979), faz uma abordagem panorâmica da teoria Bakhtiniana e se
encerra sugerindo possíveis caminhos para a leitura a partir de uma
perspectiva enunciativa.

Linguística da Enunciação

O desenvolvimento da pesquisa linguística no Brasil é um fato


relativamente recente. Valdir do Nascimento Flores, em seu livro Saussure e
Benveniste no Brasil: quatro aulas na École Normale Supérieure (2017), analisa o
contexto institucional a partir do qual se desenvolveram as reflexões acerca
da linguagem no nosso país. Para o autor, a tradição brasileira, desde os
primeiros cursos de Letras, que surgiram na década de 1930, esteve
fortemente ancorada nos estudos da gramática normativa, da filologia e da
dialetologia. Apenas no início da década de 1960, a partir de uma
determinação do Conselho Federal de Educação, ligado ao Ministério da
Educação, a Linguística passou a fazer parte dos conteúdos considerados
obrigatórios nos cursos de Letras.
Já em relação à Linguística da Enunciação, Teixeira e Flores (2011)
apontam que as referências ao campo, no Brasil, passam a aparecer de
maneira indireta apenas na década de 80, especialmente por meio de outras
teorias, como a Análise do Discurso de linha francesa, a Linguística do Texto,
os estudos sobre a Conversação, a Pragmática, entre outras. Nem mesmo a
tradução de obras de importantes autores, como Problemas da Linguística Geral
I (França,1966; Brasil, 1976) e Problemas de Linguística Geral II (França, 1979;
Brasil, 1989), de Émile Benveniste, e O dizer e o dito (França, 1984; Brasil, 1987),
de Oswald Ducrot, apenas para citar alguns, foram responsáveis, antes dos
anos 2000, por uma verdadeira difusão das teorias que não fosse de maneira
secundária. Teixeira e Flores (2011) assinalam como evidência da
disciplinarização tardia da área, no Brasil, o surgimento apenas em 2005 de
um manual com vistas a sistematizar conceitos, epistemologias e autores.
É no livro Introdução à Linguística da Enunciação (2005) que Valdir do
Nascimento Flores e Marlene Teixeira apresentam um conjunto de teorias

32
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

que abrigam sob a denominação de Linguística da Enunciação. Para os


autores, dois critérios permitem incluir no campo o conjunto de teorias: a
referência à dicotomia saussuriana língua/fala e a contribuição para o
estabelecimento de um pensamento sobre a enunciação na linguagem
(FLORES; TEIXEIRA, 2005, p. 8).
Ferdinand de Saussure2 é considerado um dos fundadores stricto sensu
da Linguística da Enunciação, embora externo ao campo (TEIXEIRA e
FLORES, 2011). Essa afirmação se deve ao fato de os conceitos de valor e de
signo linguístico e, especialmente, à dicotomia língua e fala serem
constantemente reafirmados, contrapostos, alargados ou reformulados pelos
teóricos da enunciação.
Saussure (2006) parte do princípio segundo o qual, diferentemente de
outras ciências que trabalham com objetos definidos previamente, nas
ciências da linguagem o objeto não é dado de antemão, mas se trata de uma
criação a partir de determinada perspectiva. Para o linguista, a linguagem
humana comporta duas faces, dissociáveis apenas metodologicamente: a
língua e a fala. A fala, por comportar o aspecto individual, requer, para seu
estudo, a intervenção de outras ciências, como a Psicologia, a Sociologia, a
Antropologia. Já a língua, por ser de natureza homogênea, pode ser estudada
separadamente, o que motivou o linguista a defini-la, portanto, como o
verdadeiro e único objeto da Linguística.
A importância dos conceitos de língua e fala propostos por Saussure
deve-se ao fato de, segundo Flores et al. (2009, p. 20), os autores do campo da
Enunciação partirem deles com a finalidade de fundamentar suas reflexões,
sem, entretanto, aterem-se exclusivamente aos seus domínios, uma vez que
“constituem um novo objeto, que não encontra, ao menos não totalmente,
abrigo na dicotomia língua/fala. Este novo objeto tem um nome: enunciação”.
A definição de um objeto para o campo também foi proposta por outros
autores. Michel Lahud, em sua obra A propósito da noção de dêixis (1979), em
um capítulo em que aborda o tema da enunciação, afirma que o objeto para
esse campo da Linguística ainda precisa (à época) de uma absoluta
especificação, pois a enunciação é definida “ora como o surgimento do sujeito
no enunciado, ora como a relação que o locutor mantém pelo texto com o
interlocutor, ou, ainda, como a atitude do sujeito falante em relação ao seu
enunciado”. (LAHUD, 1979, p. 97-98). Além disso, para o autor, “a
Linguística da Enunciação visa não somente a um fenômeno que não
pertence à fala, mas justamente a um fenômeno cuja existência compromete

2
Embora saibamos que o Curso de Linguística Geral tenha sido organizado e publicado como obra póstuma
por Charles Bally e Albert Secheaye, nos referimos ao seu autor como Ferdinand de Saussure.

33
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

a própria distinção língua/fala em algumas de suas postulações”, pois ela não


pertence nem ao domínio da língua nem ao domínio da fala saussurianos,
mas ao domínio da linguagem como atividade. Prossegue o autor:

Ela não estuda nem os componentes da matéria-linguagem que fazem


parte do objeto de outras ciências não propriamente linguísticas, nem as
variações que sofre o sentido dos signos do sistema quando assumido por
um locutor num ato individual de produção, mas a enunciação enquanto
centro necessário de uma referência do próprio sentido de certos signos da
língua (LAHUD, 1979, p. 98).

Além de Lahud (1979), o esboço de um domínio que desse conta do uso


da língua aparece também no Dicionário das Ciências da Linguagem, publicado
por Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, em 1972. Afirmam os autores:

Quando se fala, em linguística, de enunciação, não se visa nem o fenômeno


físico de emissão ou de recepção da fala, que releva da psicolinguística ou
de uma de suas subdivisões, nem as modificações trazidas pela situação ao
sentido global do enunciado, mas dos elementos que pertencem ao código
da língua os quais, no entanto, têm seu sentido dependente de fatores que
variam de uma enunciação para outra; por exemplo, eu, tu, aqui, agora. Dito
de outro modo, o que a linguística retém são as marcas do processo de
enunciação no enunciado (DUCROT e TODOROV, 1972, p. 405) (grifos do
autor).

As teorias que estão abrigadas sob a designação de Linguística da


Enunciação ocupam-se, portanto, da língua em uso, da língua colocada em
ação por um sujeito. Flores e Teixeira (2005) deixam claro que esse domínio
dos estudos da linguagem, apesar de supor um sujeito, não o investiga –
interessa-se, sim, pelas marcas que esse sujeito deixa no enunciado. Trata-se,
assim, de teorias que estudam a linguagem verbal humana, sobretudo em
relação ao sentido. Dessa forma, qualquer nível linguístico é passível de
estudo e estará sob o domínio do sentido e de como colabora para a sua
construção no discurso.
Tendo em vista a diversidade de métodos, de construções teóricas e do
recorte dos objetos, é possível falar em Teorias da Enunciação. Entretanto, ao
observarmos as convergências existentes entre elas, é possível abordá-las sob
a denominação de Linguística da Enunciação. É nesse quadro que se insere a
teoria de Mikhail Bakhtin que será abordada a seguir.
Mikhail Bakhtin: enunciação e dialogismo
A obra do filósofo e linguista russo é vasta, e tão mais vastos são os

34
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

trabalhos de pesquisadores do mundo inteiro que se dedicam a discuti-la e a


transpô-la para as mais diversas áreas do conhecimento – em se tratando da
área de Linguística, vemos como extremamente produtivo o conceito de
gênero do discurso, frequentemente transposto ao ensino de língua.
Esperamos, com este texto, não sermos apenas mais um dos muitos trabalhos
que mencionam o autor, mas, sim, apresentar um recorte da teoria
bakhtiniana no escopo da discussão: a. do campo da Linguística da
Enunciação; b. da abordagem da leitura, não restrita aos gêneros discursivos.
Aqueles que se dispõem a estudar a obra de Bakhtin se depararão, sem
dúvidas, com belíssimas reflexões acerca da atividade humana exercida por
meio da linguagem. Entretanto, esse não será exatamente um caminho fácil,
devido a algumas questões que debateremos a seguir, a fim de contextualizar
a produção e a recepção da obra do autor.
A primeira dificuldade diz respeito ao “mistério da autoria”, levantado
a partir da década de 1970, especialmente em relação a três textos: Freudismo
e Marxismo e Filosofia da Linguagem, publicados originalmente em nome de
Valentin N. Volóchinov, e O método formal nos estudos literários, publicado em
nome de Pavel N. Medvedev. A dúvida em relação aos “verdadeiros” autores
das referidas obras foi levantada por Viatcheslav V. Ivanov, para quem, além
desses, outros textos e artigos teriam sido escritos por Bakhtin e publicados
com a assinatura de Volóchinov e de Medvedev. A questão está longe de ser
resolvida, motivo pelo qual estudiosos da obra assumem posicionamentos
diversos (FARACO, 2009; FIORIN, 2016): há os que assumem que a autoria
de todos os textos publicados deve ser atribuída a Bakhtin; há os que afirmam
que devem ser atribuídos a Bakhtin apenas os textos publicados em seu nome
e textos de arquivo; e, finalmente, há os que defendem uma autoria
compartilhada. Frequentemente, encontra-se a menção ao Círculo de Bakhtin
como referência às ideias desenvolvidas pelos referidos autores.
A segunda dificuldade na leitura da obra do teórico diz respeito à ordem
de publicação dos manuscritos, que não se deu na mesma cronologia da sua
produção. Para uma filosofia do ato responsável, por exemplo, foi um dos
primeiros textos de Bakhtin, redigido no início da década de 1920, publicado
pela primeira vez em 1986 e traduzido para o português apenas no ano de
2010! Essa (des)ordem na publicação requer dos leitores a pesquisa e a busca
pela reconstrução do percurso teórico de Bakhtin e dos autores do círculo,
constituindo, certamente, mais uma dificuldade.
Além da cronologia das publicações, questões de tradução também
interferem na leitura – a obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, por exemplo,
não foi traduzida para o português diretamente do russo, mas do francês,

35
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

conforme nota dos tradutores3.


Por fim, aqueles que se aventuram a estudar a obra de Mikhail Bakhtin
e do Círculo se depararão com uma riqueza conceitual e com a amplitude das
ideias, o que conduz necessariamente a um recorte. É o que pretendemos
fazer nesta brevíssima apresentação, com a esperança de não reduzir a obra
do autor, tendo em vista a totalidade do seu pensamento e a diversidade de
objetos que toma para reflexão.
Para levar a cabo nosso objetivo, tomaremos como base três obras –
Marxismo e Filosofia da Linguagem (Bakhtin/Volóchinov), doravante MFL,
Estética da Criação Verbal (Bakhtin) e Problemas da poética de Dostoievski
(Bakhtin) – e discorreremos sobre a interação verbal, o dialogismo e os
gêneros do discurso.

A interação verbal e a enunciação em Bakhtin/ Volóchinov


A compreensão do que é a enunciação para Bakhtin/ Volóchinov passa
necessariamente pela definição do que significa o termo ideológico, já que “a
palavra é o fenômeno ideológico por excelência” e “as bases de uma teoria
marxista da criação ideológica – as dos estudos sobre o conhecimento
científico, a literatura, a religião, a moral, etc – estão estreitamente ligadas aos
aspectos da filosofia da linguagem” (BAKHTIN/ VOLÓCHINOV, 1992, p. 31
e 36). Para os autores, tudo o que é ideológico é identificado com o universo
da produção imaterial humana, pois “tudo o que é ideológico possui um
significado e remete a algo situado fora de si” (p. 31). Isso significa que tudo o
que é ideológico é uma representação e uma refração (interpretação) de uma
realidade, representação e refração estas que se dão por meio de signos, sem
os quais, para os autores, não há ideologia.
Uma segunda questão a se considerar na compreensão da enunciação
para Bakhtin/Volóchinov é o aspecto social defendido pelos autores, já que o
signo é a “arena onde se desenvolve a luta de classes” (p. 46). Os linguistas
afirmam que o que interessa na palavra é a sua ubiquidade social, pois ela
penetra em todas as relações sociais entre indivíduos, desde aquelas de base
ideológica até a frivolidade dos diálogos cotidianos. Essa penetração da
palavra nas relações humanas, reciprocamente, imprime nela todas as facetas
ideológicas de todas as relações sociais, caracterizando-a, portanto, como o
elemento que indica as transformações que ocorrem na sociedade, uma vez
que é marcada pelo horizonte social de um grupo de indivíduos e de uma
época específica.

3
Faço menção, aqui, à tradução publicada em 1992 pela editora Hucitec, citada e usada na elaboração deste
capítulo.

36
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

A definição de enunciação para Bakhtin/Volóchinov nasce com o


questionamento de qual seria o objeto da filosofia da linguagem e de qual
metodologia seria adequado adotar para estudá-lo, apresentado ao longo dos
capítulos 4, 5 e 6 de MFL. A fim de construir seu “verdadeiro” objeto de
estudo, os autores partem da análise de duas orientações do pensamento
filosófico-linguístico, as quais denominam objetivismo abstrato e subjetivismo
idealista. A primeira, cujo maior expoente é Ferdinand de Saussure, é definida
como um sistema de normas imutáveis, segundo o qual cada enunciação
seria um ato de criação individual, ao qual, entretanto, subjazem elementos
linguísticos idênticos aos de outras enunciações – o que importa, segundo
essa perspectiva, não é a criatividade linguística do falante, mas a identidade
das formas ao longo das enunciações. Já a segunda corrente do pensamento
filosófico-linguístico, cujo principal representante é Wilhelm Humboldt, é
caracterizada como aquela em que a língua tem como fundamento essencial
o ato de fala de criação individual. Assim, “a língua é uma atividade, um
processo criativo ininterrupto de construção, que se materializa sob a forma
de atos individuais de fala” (BAKHTIN/ VOLÓCHINOV, 1992, p. 72).
O capítulo 5 de MFL é dedicado a desconstruir a visão do objetivismo
abstrato e a construir uma visão de língua baseada na dinamicidade do seu
processo dialógico, que a caracteriza como um objeto vivo no seio de uma
coletividade. Bakhtin/ Volóchinov (1992) afirmam que o sistema de normas
imutáveis, descrito pela primeira corrente, não se conforma à realidade
linguística, visto que o sistema sincrônico só existe do ponto de vista da
consciência subjetiva do locutor. Fora dela, a língua encontra-se em constante
mudança, como uma corrente evolutiva ininterrupta.
Entretanto, se analisarmos o sistema de normas do ponto de vista do
sujeito falante, e, em seguida, do ponto de vista do receptor, tampouco
encontraremos uma verdadeira correspondência, já que o falante não se
utiliza das formas enquanto constituintes de um sistema, pois este é uma
abstração. Para o falante e para o receptor, o que interessa é o uso da palavra
em um determinado contexto enunciativo: “a consciência linguística dos
sujeitos falantes não tem o que fazer com a forma linguística enquanto tal,
nem com a própria língua enquanto tal” (BAKHTIN/ VOLÓCHINOV, 1992,
p. 95). Assim, a enunciação com locutores e alocutários específicos implica
sempre um contexto ideológico determinado, o que transforma a palavra em
algo “carregado de um sentido ideológico ou vivencial”. “Na realidade, não
são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras,
coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis,
etc.” (p. 95).

37
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Os autores ainda criticam o que denominam “os dois objetivos do


objetivismo abstrato”: a descrição das línguas e a sua transformação em
objeto de ensino. O primeiro deles transforma as enunciações em eventos
monológicos, ao retirá-las da cadeia da comunicação verbal, uma vez que elas
são produzidas para serem compreendidas em um contexto ideológico
preciso e esse recorte as retira do seu contexto de uso. O linguista, ao
transformar os eventos enunciativos em objeto da descrição, dá-lhes um
acabamento que não condiz com a realidade da língua. A própria aparição
de uma mesma palavra em contextos distintos, que podem ser até mesmo
opostos, e a mudança do “acento avaliativo” são suficientes para demonstrá-
lo – “é a pluralidade de acentos que dá vida à palavra” (p. 107).
O capítulo 6 de MFL, por sua vez, toma como objeto a crítica da segunda
orientação do pensamento linguístico-filosófico – a do subjetivismo idealista.
Quais seriam as inconsistências, do ponto de vista dos autores, presentes
nessa abordagem? A primeira delas é a apresentação da enunciação como um
ato puramente individual, como a expressão da consciência individual. Ora,
para os autores, não existe atividade mental que não seja mediada por um
material semiótico; assim, não é a consciência individual que organiza a
expressão, que se dá por meio de signos, mas são os signos, ou seja, a
expressão, que organizam a atividade mental. A expressão – ou a enunciação
– é determinada pelas condições reais em que ela acontece, “pela situação
social mais imediata” (p. 112). A enunciação é definida como “o produto da
interação de dois indivíduos socialmente organizados” (p. 112), o que
significa dizer que a palavra sempre se dirige a alguém – fato que desconstrói
a visão do subjetivismo idealista, segundo a qual qualquer ato enunciativo
dependeria exclusivamente da consciência subjetiva de cada falante.
Ao avançar no terreno interindividual para a caracterização da língua,
Bakhtin/ Volóchinov (1992) incluem não apenas as pessoas envolvidas no ato
enunciativo, mas também o contexto em que ele acontece. Segundo os
linguistas, a palavra não pertence apenas ao interlocutor, pois a sua
realização na enunciação é determinada pelas relações sociais, tanto as
imediatas quanto as mais amplas, as quais determinam “a estrutura da
enunciação” (p. 113).
Destarte, não é nem a enunciação monológica nem o sistema de formas
abstratas que constitui a realidade da língua, mas a “interação verbal, realizada
através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui, assim,
a realidade fundamental da língua” (p. 123, grifos dos autores). A interação
verbal é constituída não só pelo diálogo, seu representante stricto sensu, mas
por outras formas de uso da língua, incluindo aí o discurso escrito. São as

38
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

enunciações que colocam a língua no seio da sociedade e elas é que são


responsáveis pela vida da língua, já que é apenas no locus enunciativo que a
língua existe e se modifica.

O dialogismo em Bakhtin

Quase que contemporânea a Marxismo e filosofia da linguagem, a obra


Problemas da poética de Dostoievski, publicada pela primeira vez em 1929, faz
renascer o interesse pelas ideias Bakhtinianas na década de 1960, quando
volta ao cenário por meio de uma nova edição. É nessa obra, especialmente
ao tratar d’O discurso em Dostoievski, que Bakhtin se dedica a algumas
delimitações que ele denomina “metodológicas”.
A primeira delas é a distinção entre o que ele conceitua como discurso,
entendido como “a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua
como objeto da linguística, obtido por meio de uma abstração absolutamente
legítima e necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso”
(BAKHTIN, 2009, p. 207). Apesar de se dedicar ao estudo do discurso, o autor
considera que o estudo dos aspectos linguísticos tem importância
primordial.
Uma segunda distinção metodológica operada pelo autor é em relação à
necessidade do estabelecimento da ciência metalinguística, definindo-a como
o estudo dos aspectos “da vida do discurso que ultrapassam os limites da
língua” (p. 207). Entretanto, afirma o autor, linguística e metalinguística têm
um mesmo objeto de estudo, abordado segundo diferentes pontos de vista e,
justamente por isso, complementam-se e não se fundem.
A Bakhtin interessam as relações dialógicas, que, por serem exclusivas
do campo discursivo, devem ser estudadas pela metalinguística, pois não são
encontradas no sistema linguístico, seja nas unidades morfológicas ou
lexicais ou no nível sintático, objetos de estudo da ciência linguística. Ao
mesmo tempo que, por serem extrínsecas ao sistema da língua, são
extralinguísticas, as relações dialógicas apenas têm vida no campo
discursivo, “da língua como fenômeno integral e concreto” (p. 209). A análise
dos elementos linguísticos isolados das situações concretas de uso lida
apenas com as relações que o autor chama de lógicas, uma vez que estão
desvinculadas do discurso e, portanto, neles o dialogismo está ausente. Trata-
se da língua em estado puro. Para que se transformem em discurso e para
que se tornem dialógicos, esses elementos precisam entrar na cadeia das
enunciações por meio de enunciados que tenham um autor, que não
necessariamente se identifique com o ser real, mas que se configure como

39
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

“uma vontade criativa única, uma posição determinada diante da qual se


pode reagir dialogicamente” (210).
Faraco (2009, p. 65) caracteriza as relações dialógicas “como relações de
sentido que se estabelecem entre enunciados, tendo como referência o todo
da interação verbal e não apenas o evento da interação face a face”. Isso
significa que qualquer enunciado, quando posto em paralelo com outro
enunciado qualquer, pode ter com ele relações dialógicas; é somente após
entrar no discurso que é possível responder à palavra do outro, estabelecendo
com ela relações de sentido de determinado tipo, e agir responsivamente em
relação a ela.
As relações dialógicas descritas por Bakhtin (2009) podem aparecer em
diferentes níveis linguísticos, desde o enunciado como um todo até parte
dele, como uma palavra, incluindo aí os diferentes dialetos sociais e os estilos
da linguagem, além da própria enunciação. Desde que materializadas em
sistemas sígnicos, as relações dialógicas podem aparecer em outras
manifestações concretas, como as artes em geral, o que as exclui, entretanto,
do escopo de análise da metalinguística.
Fiorin (2016) acrescenta que as relações dialógicas expressam não só as
vozes individuais, quando se observa a interação cotidiana, mas também as
vozes sociais, que têm a linguagem como a arena em que são colocadas em
oposição. Além disso, o autor traz duas importantes observações acerca da
delimitação do social e do individual na teoria bakhtiniana: a primeira delas
afirma que a maioria das opiniões individuais, em realidade, são reproduções
de posicionamentos sociais; já a segunda diz respeito ao fenômeno concreto
da enunciação – conforme Bakhtin/Volóchinov (1992), todas as nossas
enunciações têm um destinatário, seja ele específico ou um representante
médio, um superdestinatário – ou seja, não é possível afirmar que as
enunciações são individuais, já que elas são socialmente determinadas. Para
que haja diálogo, não basta pôr frente a frente dois seres humanos, é
necessário que estes estejam socialmente organizados.
Sendo o dialogismo constitutivo do discurso e, portanto, intrínseco ao
enunciado, vejamos, a seguir, um dos mais importantes conceitos da teoria
bakhtiniana: o de gênero do discurso.

Os gêneros do discurso

A noção de gênero discursivo não é nova nem exclusiva da teoria


bakhtiniana. Desde a Grécia antiga, especialmente com Platão e Aristóteles,
tanto os textos literários quanto os não literários eram agrupados segundo
características que mantinham em comum. Aristóteles, na obra Arte Retórica,

40
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

classifica os gêneros retóricos - não literários - em três categorias: o judiciário,


o deliberativo e o epidíctico. O fator preponderante para essa classificação é,
para o autor, o tipo de auditório: existem três espécies de auditórios e a
adaptação a eles é que confere a cada um desses gêneros contornos
específicos, referentes aos atos de discurso, aos valores envolvidos e aos tipos
de argumento usados pelo orador (REBOUL, 2004).
Já na metade do século XX, Bakhtin, no texto Os gêneros do discurso
propõe uma classificação dos gêneros não mais baseada em aspectos formais,
mas na dinamicidade das relações sociais estabelecidas pelo homem por meio
da linguagem. Cada ato de linguagem, impossível de ser separado de
aspectos culturais, sociológicos e ideológicos, acontece seguindo
determinados padrões postos à disposição dos sujeitos falantes, que
ordenam, delimitam e definem a estrutura desses atos. É seguindo esse
pensamento que Bakhtin define o que são os gêneros do discurso (RIBEIRO,
2010).
Para o autor (2011, p. 261, 262), todos os campos da atividade humana
estão ligados à linguagem e cada campo elabora “seus tipos relativamente
estáveis de enunciados, denominados gêneros do discurso” (grifos do autor).
Trata-se, segundo essa perspectiva, de perceber o gênero em sua
dinamicidade, diversidade e constância, já que as atividades humanas, além
de serem variadas - o que pressupõe uma ampla gama de gêneros discursivos
- também se modificam, da mesma maneira que se modificam as relações
sociais. Por outro lado, cada esfera da atividade humana apresenta gêneros
que se configuram segundo características específicas, definidas por Bakhtin
como o estilo, a estrutura composicional e conteúdo temático. Assim, os
gêneros são descritos de acordo com o seu papel no processo de interação,
uma vez que os seres humanos agem por meio da linguagem em
determinadas esferas (FIORIN, 2016).
Bakhtin (2011, p. 263) argumenta que os gêneros podem ser agrupados
em duas categorias: os gêneros primários (simples) e os gêneros secundários
(complexos). Tal diferenciação não encontra origem no seu aspecto funcional,
mas sim no fato de o segundo grupo surgir de situações em que o convívio
cultural é mais complexo e organizado, caracterizado por certos tipos de
interações que não acontecem em condições de comunicação discursiva
imediatas e que se dão, principalmente, na modalidade escrita.
Para Bakhtin (2011, p. 274), existe uma diferença substancial entre
gênero e enunciado que convém ressaltar: os gêneros constituem uma espécie
de protótipo ou modelo pré-definido pelas esferas da atividade humana, e o
enunciado constitui-se como a real unidade da comunicação discursiva,

41
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

caracterizado segundo três peculiaridades - a alternância dos sujeitos


falantes, a conclusibilidade e as formas estáveis do gênero. Os enunciados,
portanto, são de natureza individual, únicos e irrepetíveis, situados em um
contexto enunciativo preciso; já os gêneros são dados socialmente,
configuram-se como os moldes que recortam e organizam os enunciados -
são, portanto, unidades repetíveis.
Apesar de muitos gêneros nos serem dados, conforme afirma o teórico,
da mesma maneira que nos é dada a língua materna, outros tantos,
especialmente os secundários, por constituírem formas mais complexas de
uso da língua, necessitam de ensino explícito no contexto escolar, tanto em
relação à leitura quanto em relação à escrita. Assim, a nosso ver, os estudos
bakhtinianos podem se revelar uma importante frente para o ensino da
leitura e da escrita, já que é por meio do enunciado que se dá a expressão do
sujeito e, consequentemente, o uso da língua, mediadora da vida em
sociedade: “a língua passa a integrar a vida através de enunciados concretos
(que a realizam); é igualmente através de enunciados concretos que a vida
entra na língua” (BAKHTIN, 2011, p. 265).
Enunciação e leitura: qual relação?
Flôres e Gabriel (2012), no texto O quebra-cabeça da leitura, apontam que
as pesquisas que tomam como objeto a leitura podem ter três enfoques
distintos, em analogia às três peças do quebra-cabeça da leitura: o autor, o
texto e o leitor. Autor e leitor podem ser tomados enquanto sujeitos empíricos
– é o caso da Psicolinguística, que analisa, por exemplo, o processamento da
leitura, o conhecimento de mundo necessário ao sujeito para a compreensão
de um texto, a produção de inferências necessárias a essa compreensão, entre
outros aspectos de natureza cognitiva. As teorias enunciativas, por sua vez,
não analisam os sujeitos enquanto seres sociais e psicológicos, mas como
seres discursivos, que aparecem no discurso por meio de marcas linguísticas;
é também no discurso que é representada a sua gênese – a enunciação.
Dessa maneira, o estudo da leitura segundo a enunciação – qualquer que
seja ela – sempre tomará como ponto de partida o elemento do quebra cabeça
referente ao texto – ou ao discurso/enunciado, de acordo com Bakhtin (2011).
Tomando o discurso ou o enunciado como objetos, inúmeros problemas de
pesquisa podem ser elaborados, desde aqueles que enfoquem questões de
natureza estritamente linguística até recortes que explorem questões de
natureza social e contextual.
Flores e Teixeira (2005) apontam várias intersecções possíveis a partir do
campo da enunciação, dos quais citamos apenas alguns: transposição de

42
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

conceitos das teorias da enunciação para o ensino da leitura, a análise de


questões literárias sob o prisma enunciativo, a exemplo de Fiorin (1996), a
abordagem do discurso jornalístico e das vozes ali presentes, o problema dos
gêneros e sua produção e leitura, entre inúmero outros recortes possíveis.
Os documentos que orientam o ensino de línguas, dentre os quais
citamos os Parâmetros Curriculares Nacionais, tanto do ensino fundamental
(1998) quanto do ensino médio (2000), e, mais recentemente, a Base Nacional
Comum Curricular (2017), centram o ensino da língua em quatro grandes
eixos: a oralidade, a escrita, a leitura e a análise linguística. Todos esses
documentos frisam que a abordagem da língua, seja em seu aspecto
estritamente linguístico, seja contemplando o texto literário, deve ter como
ponto de partida e de chegada os gêneros discursivos, já que não há uso da
língua que se dê fora da estrutura genérica.
O universo escolar – e o ensino de língua, como parte desse universo –
dá conta de conhecimentos que são fruto do saber científico, e, portanto,
ideológico, já que são criações da produção imaterial humana. Trata-se,
destarte, de um saber formal que carece de instrução explícita. Se tomada a
distinção bakhtiniana entre gêneros primários e gêneros secundários,
veremos que os últimos dizem respeito, sobremaneira, aos discursos que
usam a língua escrita; uma das mais importantes criações do homem. São,
dessa forma, exemplares de uso da língua, pela natureza do seu registro,
restritos a determinadas esferas, aos quais não se terá acesso: a. sem o ensino
formal; e, consequentemente, b. sem a aprendizagem da escrita e da leitura.
É nesse sentido que argumentamos que, sendo esses gêneros restritos ao
universo letrado, não estão acessíveis aos cidadãos que se encontram à
margem da escola e necessitam, assim, de um ensino explícito. Dessa forma,
é nas palavras de Bakhtin que nos apoiamos para afirmar que, se alguns
gêneros nos são dados do mesmo modo que nos é dada a língua materna,
outros necessitam ser ensinados, tanto em relação à leitura, quanto em
relação à sua produção.
A obra Tipos de texto, modos de leitura (2001), vem evidenciar que não
lemos da mesma maneira todos os gêneros. Tomemos como exemplo a leitura
de dois gêneros – um código de leis e um artigo de opinião. O primeiro deles
- o código – além de circular em uma esfera específica, a jurídica, apresenta
uma organização peculiar – capítulos, artigos, parágrafos, incisos e alíneas -
e sua leitura pode não ser linear, diferentemente do que ocorre na leitura de
um artigo de opinião, de um capítulo de livro ou de um romance. Isso se deve
especialmente à sua estrutura composicional, que permite que o leitor faça

43
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

diferentes percursos, a depender dos seus interesses específicos ao consultar


o texto.
Outro aspecto importante na leitura de um gênero como o mencionado
é o estilo, altamente especializado e restrito à esfera de circulação. Talvez, o
texto jurídico seja uma das formas em que mais se observa a luta de classes –
as classes dominantes e as classes dominadas: sendo o código aquele que
carrega os direitos e os deveres dos cidadãos, e seu acesso sendo restrito a
uma pequena parcela da população, podemos imaginar como aqueles que
são excluídos do universo letrado são socialmente marginalizados 4, não só
do acesso aos bens culturais, mas também do acesso à justiça.
Se cada gênero discursivo requer um percurso de leitura que contemple
as suas especificidades, por outro lado, a análise linguística – que, aqui,
consideramos também uma espécie de leitura, a leitura da “língua” em um
contexto de uso - deve considerar os elementos linguísticos como intrínsecos
à interação verbal. A palavra pertence a alguém, dirigida a alguém, e não a
palavra crua, como mero item gramatical. A análise linguística que foge ao
uso desconsidera que a palavra não existe senão no discurso, e que a sua
abstração enquanto unidade linguística não passa de uma teorização.
É também nesse sentido que operam todas as críticas elaboradas em
torno da abordagem tradicional da gramática, que trata a língua apenas como
“oração”, quando, em realidade, o enunciado, enquanto elo na cadeia
enunciativa, deve ser tomado como unidade de estudo. Assim, a leitura dos
enunciados como elos na cadeia da comunicação verbal faz ver não só o que
está nele, mas também o que está “fora” dele, pelos outros tantos discursos
que o precederam e que dele serão a sua continuidade. Não há discurso ou
enunciado que não seja de outro uma continuação, tampouco haverá um
discurso derradeiro, que cessará a produção discursiva. É porque a sociedade
está de tal forma organizada, em suas diferentes esferas, que a linguagem,
especialmente a verbal, ocupa seu lugar central. Uma leitura que não seja
meramente superficial fará entrever os outros discursos que se ligam ao
objeto em análise, não só enquanto uma corrente, mas também enquanto uma
superposição, pelo diálogo constante entre as diversas enunciações. Ler,
portanto, numa perspectiva enunciativa bakhtiniana, não se restringe ao
significado de um enunciado, mas faz entrever como esse enunciado dialoga
com outros tantos e o modo como outros tantos poderão dialogar com ele.
Assim, nessa perspectiva, tomamos uma compreensão da atividade de

4
Recomendamos a leitura de Pires (2018), que apresenta resultados de uma pesquisa de campo com o tema
letramento jurídico, a qual evidenciou que a compreensão do gênero petição inicial esteve restrita ao universo
dos indivíduos com formação superior na área jurídica.

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

leitura muito mais ampla que a decodificação e que a alusão a apenas um


único enunciado. Ler, segundo nosso ponto de vista, requer habilidades
específicas de cada gênero, mas também um reconhecimento de que o
discurso, apesar de único porque irrepetível, não pode ser isolado social e
enunciativamente.
Referências
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Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
______. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais
(Ensino Médio) – Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Brasília, 2000. Disponível em:
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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

LETRAMENTO DIGITAL
O uso das Tecnologias da Informação e Comunicação para uma
aprendizagem significativa

Leatrice Ferraz MACÁRIO1

Com as profundas transformações no processo de produção,


distribuição e consumo de conteúdos, a sociedade passou a estar centrada em
informação e conhecimento. Esse fato desloca um grande número de pessoas
que, até então, limitava-se ao papel de receptores e reprodutores de conteúdo
para o papel de produtores. E, ao pensarmos nas populações mais jovens, os
chamados nativos digitais, esse cenário assume um outro patamar: boa parte
desse grupo já se estabelece no mundo como produtor ativo de textos nos
mais diversos formatos.
Em contrapartida, quando observamos as instituições de ensino, para
um grande número delas essa mudança é lenta e gradual. Para Rojo (2012), a
escola precisa apropriar-se da responsabilidade de mediação da comunidade
acadêmica com essas novas práticas sociais, através de uma Pedagogia dos
Multiletramentos.
Com a pandemia do novo coronavírus, as instituições de ensino foram
obrigadas a incorporar as Tecnologias da Informação e Comunicação – TICs
ao cotidiano de professores e alunos. Antes, o que parecia distante e até
mesmo assustador para muitos, hoje, é uma realidade que se tornou, em
muitos lugares, a única opção de contato entre alunos e professores. O que
pretendemos apresentar aqui vai além da transposição da sala de aula física
para o ambiente online, mas discutir como o uso das plataformas digitais
pode incentivar a criatividade e a autonomia dos alunos, fazendo-os assumir
o protagonismo do seu aprender.
Interessa-nos aqui, de maneira mais especial, discutir como o letramento
digital de jovens alunos potencializa o processo de aprendizagem. Para essa
discussão, trazemos teóricos da Linguística Textual, como Xavier, Marcuschi
e Koch, e a Teoria da Enunciação de Bakhtin, entre outros. Na área da
Educação, Freire, Morin, Moran e outros importantes teóricos vão auxiliar-
nos na abordagem. O texto tem início com indicações conceituais acerca do
letramento digital para, na sequência, trazer reflexões sobre como as TIC’s
favorecem o processo educativo.

1
Doutoranda em Memória, Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB,
Mestre em Linguística (UESB), Vitória da Conquista – BA, Brasil. E-mail: leaferraz@gmail.com

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Letramento Digital

Apesar da internet comercial já ter mais de vinte anos no Brasil, o tema


do letramento digital é muito novo. Na verdade, o próprio uso do termo
letramento é relativamente recente no país. Desde meados da década de 1980,
tem-se ascendido a defesa sobre o letramento, que identifica a aquisição da
linguagem como uma prática social e evidencia-se que a aquisição e o
domínio da linguagem, principalmente a escrita, provocam transformações
no desenvolvimento humano, na medida em que se tornam possíveis a
exposição de ideias, o desenvolvimento da imaginação, o raciocínio crítico e
reflexivo.
Como uma prática social, o letramento envolve a apreensão de um
conjunto de informações e habilidades mentais que tornarão possível o
desenvolvimento da autonomia e a capacidade crítica e reflexiva. Já o
letramento digital, segundo Soares (2002), é “um certo estado ou condição
que adquirem os que se apropriam da nova tecnologia digital e exercem
práticas de leitura e escrita na tela, diferente do estado ou condição – do
letramento – dos que exercem práticas de leitura e de escrita no papel”
(SOARES, 2002, p. 151).
As tecnologias digitais têm passado por um processo de grande
valorização na sociedade do século XXI, especialmente pelo seu alto potencial
de produzir, armazenar e disseminar informações. Tal capacidade contribui
para a transformação dessa mesma sociedade nos mais diversos contextos e,
em especial, na Educação. Vários estudos têm demonstrado que o uso de
computadores, smartphones e tablets em processos educativos pode ampliar o
contato dos alunos com os conteúdos curriculares e extracurriculares,
potencializando a aprendizagem. Um dos principais pesquisadores a fazer
tal defesa é o professor da Faculdade de Educação de Harvard, Christopher
Dede (2007), que afirma ser possível, através do uso de dispositivos digitais
móveis, a integração do mundo dentro e fora da escola. Quando a escola
assume o papel de mediadora dessa integração, ela direciona seus alunos
para um mundo de possibilidades e encontros com ricos conteúdos e, até
mesmo, para a interação com outras pessoas de fora daquele ambiente
acadêmico e que poderão contribuir nesse processo formativo.
Bakhtin (1997) apresenta o homem em permanente interação com os
seus semelhantes através da linguagem, e a escrita é apresentada como a
transcrição codificada das vozes, possibilitando a transmissão dos sentidos
dos diálogos. O autor enfatiza que a própria existência humana está
vinculada à comunicação dialógica e que a escrita é o percurso capaz de

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

traduzir a voz humana, uma vez que ela é a portadora dos sentidos da
existência. Nas palavras de Bakhtin, “vivo em um mundo povoado de
palavras alheias. E toda a minha vida, então, não é senão a orientação no
mundo das palavras alheias, desde assimilá-las, no processo de aquisição da
fala, e até apropriar-me de todos os tesouros da cultura” (BAKHTIN, 1997, p.
347-348).
No letramento digital, a figura do professor está muito mais centrada no
papel de mediador e o aluno assume para si maior responsabilidade sobre
seu processo de aprendizagem, sendo o desenvolvimento da autonomia uma
de suas potencialidades. A partir da década de 1990 e até os dias atuais,
vivemos na transição de uma aprendizagem centralizada na figura do
professor e do livro didático para uma aprendizagem flexível, interativa e
colaborativa.
Muitas atividades relacionadas à escrita e à leitura, propostas pela
instituição escolar, não apresentam significados para o estudante, uma vez
que elas têm objetivos que não encontram eco nos anseios deles como práticas
sociais. E, considerando a realidade chamada por Lèvy (1999) de a “era da
informação”, torna-se emergente a necessidade de compreender as funções
sociais da leitura e da escrita não apenas no tradicional contexto do texto
impresso, mas nas mais diversas formas midiáticas, especialmente naquelas
realizadas no computador, uma vez que estas têm alcançado adesão do
público estudante e, mais do que isso, provocado transformações no conceito
de tempo e espaço e dado acesso a um grande número de informações,
democratizando as relações de compartilhamento de dados.
Durante a pandemia do novo coronavírus, medidas de restrição à
circulação das pessoas foram impostas em todo o mundo e as instituições de
ensino fechadas. O ensino remoto passou, então, a ser uma das únicas
alternativas para manter os alunos em contato com os conteúdos curriculares.
De maneira abrupta, educadores precisaram remodelar seu modo de ensinar
para se adaptarem rapidamente a essa nova realidade.
O Comitê Gestor da Internet no Brasil divulgou o Painel TIC Covid-19,
uma pesquisa sobre o uso da internet no Brasil durante a pandemia do novo
coronavírus, e os resultados demonstram aumento das atividades e
pesquisas escolares pela internet, também da realização de cursos on-line e
de estudos autônomos, como demonstrado no gráfico a seguir.

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Fonte: CGI, 2020

O Painel TIC Covid – 19 identificou que houve aumento de 22 pontos


percentuais na realização de atividades ou pesquisas escolares em relação aos
dados de referência de 2019, e de 28 pontos percentuais no estudo on-line por
conta própria. Quando se trata de atividades extracurriculares, houve
aumento da participação em cursos on-line (atividade mais comum nas
classes AB do que na DE). A pesquisa também apontou que 49% dos usuários
de Internet com 16 anos ou mais realizaram atividades de trabalho pela
Internet no período.
Mesmo com o fim da pandemia, é provável que boa parte das
instituições de ensino (principalmente as privadas, que fizeram
investimentos financeiros na aquisição de equipamentos, softwares e
treinamentos) mantenham parte de suas atividades no ambiente online. Tal
reorganização social, realizada de forma emergencial, pode ser um
importante passo no avanço do Brasil para o letramento digital de seus
jovens. Não se pode, no entanto, desconsiderar as imensas desigualdades
sociais existentes no país que afastarão ainda mais os jovens pobres dos ricos
no que diz respeito ao letramento.
Quando analisamos os espaços educativos antes da pandemia, a maior
parte deles mantinha estruturas pedagógicas enraizadas em modelos
tradicionais criados em tempos remotos. O retorno ao ensino presencial não
pode significar um novo afastamento dos professores das TIC’s, mas uma
integração das atividades em ambientes de convivência presencial com
aquelas realizadas em ambientes online. Paulo Freire (1996) afirma que o
ensino não é transferência de conhecimento e que a educação é uma das mais
ricas experiências humanas. Em Pedagogia da Autonomia, ele indica
possibilidades aos educadores para que se estabeleçam novas condições de
educabilidade. O estudante deve assumir, desde o início, o seu processo de

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

aprendizagem como sujeito de sua formação, participando efetivamente da


construção coletiva que é a educação, juntamente com o docente. Sob essa
perspectiva do estímulo à autonomia discente na construção do
conhecimento, é importante refletir sobre as novas possibilidades da ação
pedagógica, no sentido de se repensar metodologias de trabalho que
favoreçam a formação de sujeitos letrados.
A formação desses sujeitos estaria intimamente relacionada ao contexto
da autoria, na medida em que associamos as condições de autor à condição
letrada, isto é, à inclusão e à participação efetivas dos sujeitos no tecido social
que se constitui com o conhecimento da chamada variedade padrão da língua
e da linguagem escrita (GOULART, 2011, p. 41). Goulart afirma que, no
contexto da concepção de letramento, as novas tecnologias da informação se
incorporam, de várias maneiras, ao espectro de conhecimentos dos diferentes
sujeitos e de segmentos sociais. A escrita, de maneira especial, se mostra cada
vez mais necessária para que a constituição e o uso de novos gêneros textuais,
implicados nas TIC’s, sejam feitos de modo crítico.
Os novos gêneros textuais, que têm emergido no contexto social das
tecnologias digitais e, por isso, dependem da formação de sujeitos letrados
ou que se letrem no contexto da virtualidade com a variedade de suportes
sociais de escrita (desde os mais tradicionais aos mais novos), fazem parte de
uma rede prioritariamente de textos escritos (GOULART, 2011, p. 55).
Nesse contexto, Xavier (2007) conceitua Letramento Digital como a
realização de práticas de leitura e escrita diferentes das formas tradicionais
de letramento e alfabetização: “ser letrado digital pressupõe assumir
mudanças nos modos de ler e escrever os códigos e sinais verbais e não
verbais, como imagens e desenhos” (p. 02). No ambiente educacional, o
letramento digital amplia significativamente a potencialidade de
aprendizagem através do uso de recursos tecnológicos digitais. Mas o
letramento digital vai além do desenvolvimento de habilidades técnicas para
uso de equipamentos e recursos tecnológicos. É preciso que o indivíduo
desenvolva habilidades de análise crítica e tenha participação ativa nos
processos de interação mediados por tecnologias digitais. E essa interação
exige dos interlocutores referenciais muito ligados à cultura digital, mas
também a outros aspectos da cultura humana.
Esse novo ambiente de aprendizagem possibilita ao indivíduo aprender
pela troca, pelo diálogo e não mais apenas pela exposição do professor, até
então único detentor do conhecimento com poder de transmissão, e isso
altera profundamente as relações no ambiente escolar.
Em 2016, concluímos nossa pesquisa para o mestrado em Linguística,

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

onde investigamos junto a estudantes do ensino superior as experiências


autorais em blogs educativos. Os resultados dessa nossa investigação
demonstraram que o blog educativo se apresenta como uma possibilidade
didático-pedagógica valorosa, uma vez que mantém os alunos vinculados
aos conteúdos curriculares por mais tempo. Nossa pesquisa identificou que
esse contato mais próximo com os temas que estavam sendo trabalhados em
sala de aula trouxe benefícios tanto do ponto de vista da professora quanto
dos próprios alunos. Para estes, o desenvolvimento da autonomia, da
autoria, da capacidade de expressão e melhoria do processo de
aprendizagem foram benefícios identificados de maneira privilegiada
(MACÁRIO E PEREIRA, 2020).
De lá para cá, o acesso e interesse dos jovens pelas tecnologias digitais
cresceram, como demonstraram os dados do CGI (2020). Eles produzem mais
conteúdos, pesquisam e dialogam mais através das redes sociais e aplicativos
de mensagens instantâneas, fazendo com que o uso da língua seja
intensificado. Bakhtin explica que o emprego da língua se faz sob a forma de
enunciado e, portanto, ele é a unidade real da comunicação discursiva
(BAKHTIN, 1997, p. 269). Sob pressupostos dialógicos, essa noção de
enunciado materializa elementos da situação enunciativa concreta e
elementos sociodiscursivos estabilizados nas e pelas interações
historicamente formuladas. É pelo enunciado que o outro garante seu espaço
na dinâmica discursiva dialógica e, por consequência, passa a ser constituído
pelo fluxo de múltiplas vozes que participam dessa alternância dos sujeitos
do discurso nas situações de comunicação. Por ser uma unidade da
comunicação discursiva, o enunciado também elucida as especificidades, as
quais se constituem nos campos sociais.
Esse caráter social, presente na teoria bakhtiniana, define o texto como
um produto da interação social em que as palavras são percebidas como
produtos das trocas sociais, vinculadas a situações materiais concretas que
definem o estado de uma comunidade linguística. O uso da língua, para
Bakhtin (1997), efetua-se na forma de enunciados orais e escritos, concretos e
únicos, que surgem das esferas da atividade humana. Com o uso crescente
das TIC’s em contextos educacionais, os estudantes ganham novas
possibilidades de uso da língua e o letramento digital amplia as formas de
interação social para além do ambiente escolar, potencializando novos
modelos de aprendizagem.

O letramento digital e a aprendizagem


A relação do homem com a natureza sempre foi mediada pela

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

tecnologia, mas ganhou impulso no século XX com a Revolução Tecnológica.


Com ela, a sociedade se transforma significativamente, impulsionando a
passagem da Sociedade Industrial para a Sociedade da Informação
(CASTELLS, 1999).
Reforçando a ideia de que a Sociedade da Informação tomará boa parte
dos aspectos da vida humana, Mattelart (2002) decreta, conclusivamente, o
fim do pensamento de tabula rasa, ao afirmar que “não há nada mais que não
seja obsoleto. O determinismo tecnocomercial gera uma modernidade
amnésica e dispensa o projeto social. A comunicação sem fim e sem limites
institui-se como herdeira do progresso sem fim e sem limites”
(MATTELART, 2002, p. 172).
Com o uso das tecnologias digitais na Educação, torna-se possível
estender a presença da escola para além dos horários e das paredes da sala
de aula, potencializando a aprendizagem, já que, em suas casas, os estudantes
podem continuar com a realização de atividades acadêmicas de maneira
individual ou coletiva, através de alguma plataforma de cooperação.
No entanto, na contramão de tudo isso, mesmo com o equipamento das
escolas como computadores com acesso à internet, na maioria das vezes, nem
os professores possuem formação que os permita o uso da tecnologia com os
potenciais que ela tem e nem os currículos promovem esse incentivo. O jovem
estudante, que está boa parte do dia conectado, encontra em salas escolares
um ambiente de aulas rígido, linear, mesmo no ensino remoto durante a
pandemia, uma vez que muitos professores mantiveram nas salas virtuais, os
métodos de ensino que adotavam na aula presencial. Enquanto isso, em seus
dispositivos móveis e computadores, o jovem navega em busca de
informação, conhecimento e interatividade. Com a explosão das redes sociais
digitais, uma verdadeira transformação aconteceu no modo de se relacionar
que afeta o modo de aprender.
Potencializar uma educação integradora e interativa é urgente no
contexto atual. As escolas, especialmente as de nível médio e superior, que
recebem jovens com alto nível de conectividade, precisam ser mais atraentes
e corresponder ao novo perfil desse estudante. Caso contrário, aquilo que era
ansiedade por aprender pode se transformar em desmotivação e desinteresse
e, como afirma Moran (2012), “não basta colocar os alunos na escola. Temos
de oferecer-lhes uma educação instigadora, estimulante, provocativa,
dinâmica, ativa desde o começo e em todos os níveis de ensino” (MORAN,
2012, p. 08).
Morin (1999) explica que a educação é um processo que não pode ser
fragmentado, uma vez que o indivíduo é um ser social e todo o contexto em

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

que se encontra contribui para a sua formação. Nesse sentido, a inserção de


tecnologias digitais na educação se aproveita do contexto tecnológico com o
qual os estudantes estão familiarizados para potencializar sua formação. As
escolas, de modo geral, não têm acompanhado as transformações
tecnológicas, culturais e sociais pelas quais passa o mundo, o que gera
desinteresse e desmotivação nos jovens estudantes, nativos digitais.
As novas práticas sociais requerem novas práticas de letramento, como
já dissemos na seção anterior, e requerem que alunos e professores sejam
flexíveis para se ajustarem a essas novas dinâmicas. As metodologias hoje
aplicadas, como as tradicionais aulas expositivas, não conseguem, na maior
parte das vezes, valorizar a absorção e produção do conhecimento a fim de
formar cidadãos com autonomia para construir relações profissionais sólidas
e atuar no mundo de maneira ativa.
O uso de tecnologias como ferramentas de auxílio às práticas
pedagógicas favorece o processo de aprendizagem ubíqua. A Aprendizagem
Ubíqua está centrada na pedagogia construtivista, ou seja, o foco do processo
é o aprendizado e não o professor. Para Santaella (2010), ela é caracterizada
por estar disponível a qualquer momento, sendo que qualquer curiosidade
pode ser saciada pelo acesso aos dispositivos móveis conectados em rede,
fazendo com que essa informação se transforme em aprendizagem quando
incorporada a outros usos. Santos (2002) corrobora essa ideia afirmando que

A noção de espaço de aprendizagem vai além dos limites do conceito de


espaço/lugar. Com a emergência da “sociedade em rede”, novos espaços
digitais e virtuais de aprendizagem vêm se estabelecendo a partir do acesso
e do uso criativo das novas tecnologias da comunicação e da informação.
Novas relações com o saber vão se instituindo num processo híbrido entre
o homem e máquina, tecendo teias complexas de relacionamentos com o
mundo (SANTOS, 2002, p. 121).

Acessar a informação não significa aprendizagem: a interação humana é


o coração de aquisição das habilidades e competências complexas. O
desenvolvimento humano acontece de maneira processual, tanto por meio de
aquisições quantitativas quanto por meio de transformações qualitativas, a
partir das relações sociais.
Johnson (1992), mesmo antes do surgimento da Web 2.0, já afirmava que
o conhecimento é sempre gerado em negociação contínua e não será
produzido até que os interesses das várias partes envolvidas estejam
incluídos. Ele descreve tipos de aprendizagem que vinculamos aos processos
educativos em ambientes digitais:
a) Aprender fazendo: a dinâmica de tentativa e erro está sempre presente

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

na produção textual em ambientes digitais.


b) Aprender a interagir – Essa é uma das principais qualidades
proporcionada pela web, que oferece a possibilidade da troca de
ideias entre os internautas;
c) Saber procurar – Hoje, o principal portal de acesso às informações é a
web. A busca, seleção e adaptação termina estendendo-se ao
conhecimento de quem participa desse processo;
d) Compartilhamento de Aprendizagem – O processo de troca de
experiências permite que aqueles que interagem na web participem
de uma aprendizagem colaborativa.
Também para Xavier (2007), as tecnologias digitais influenciam
significativamente o processo de ensino/aprendizagem e, cada vez mais
frequentemente, os docentes têm feito uso dessas tecnologias. Além das
vantagens relacionadas ao aprendizado, o uso das TIC’s para a prática
pedagógica é favorecido pela familiaridade que a maioria dos alunos tem
quanto à criação, produção e leitura.
Em modelos pedagógicos tradicionais, o aluno contemporâneo se
comporta de forma passiva, afastando-se do professor e do conteúdo que
ministra por não reconhecer a linguagem, a postura e a cena de uma aula. Ao
usar ferramentas que fazem parte do contexto de seu aluno, o professor o
insere como protagonista do seu processo de aprendizagem, levando-o a uma
busca pelo conhecimento e pela transformação de si e dos outros com quem
interage.

Considerações Finais

A vida escolar e acadêmica representam importantes momentos para a


maioria das pessoas. A experiência do aprender marca o indivíduo durante
toda a sua vida e esse processo precisa estar repleto de marcas positivas,
alinhadas aos contextos culturais, sociais, políticos e tecnológicos que vive.
A Educação é corresponsável pelo repertório dos gêneros discursivo de
seus educandos, bem como pela formação de cidadãos ativos na sociedade,
capazes de atender às demandas que lhes são impostas. O letramento digital
precisa ser tomado pelos agentes educacionais como processo urgente a ser
implementado nas instituições de ensino, a fim de que os alunos passem a
assumir para si o protagonismo sobre a aquisição e produção de
conhecimento.
A pandemia do novo coronavírus pode favorecer a aceleração das
práticas de letramento digital, uma vez que as escolas foram obrigadas a
realizar uma rápida adaptação ao ensino remoto. No entanto, o uso da

55
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

ferramenta digital em si não altera um antigo problema da educação


tradicional, que colocava o aluno como ser passivo diante do conhecimento
apresentado pelo professor em suas aulas expositivas. O cenário atual é uma
oportunidade de formar professores para serem aliados da aprendizagem de
seus alunos, mas estes devem ser os protagonistas desse processo,
pesquisando, produzindo e interagindo.
Referências
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CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e terra, 1999.
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56
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

WHATSAPP NA AULA, AULA NO WHATSAPP


Uma análise do aplicativo como recurso educacional durante a pandemia

Jocelma Boto SILVA1

Em onze de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde – OMS


classifica o novo coronavírus como uma pandemia. O peso dessa qualificação
recai sobre diversos setores da sociedade por meio de decretos dos governos
estaduais e municipais e de outras instâncias que adotaram medidas com
vistas à contenção das aglomerações. Citamos o fechamento dos serviços não
essenciais, praças, praias, teatros, shoppings, rodovias estaduais e federais e,
claro, a suspensão imediata das aulas, em todos os níveis.
Diante das incertezas oriundas desse contexto, muitas instituições
educacionais autárquicas prorrogaram essa medida algumas vezes, enquanto
as instituições municipais e estaduais seguiam os decretos de seus poderes,
também orientando a suspensão de aulas. O dilema para ambas estava
centrado no modo de agir diante do cenário duvidoso e da imprevisibilidade
ocasionada pela pandemia.
Buscando atender a essas demandas no estado da Bahia, o Conselho
Estadual de Educação – CEE lança a resolução nº 27 de 25 de março de 2020
que orienta as instituições de ensino integrantes do sistema estadual à
aplicação de atividades nos domicílios dos estudantes. Segundo o texto, as
instituições que optassem pelo regime especial de atividade curricular
poderiam promovê-lo com suporte digital ou não. Tal possibilidade
consagrou, desde o início da pandemia, o meio digital como o principal
recurso educacional devido às inúmeras ferramentas verificadas em suas
mídias.
Em se tratando da rede pública, sabemos que há diversos desafios que
interferem no uso bem-sucedido das mídias digitais enquanto recurso de
ensino. Desde a infraestrutura das escolas, até a baixa formação dos
professores e coordenadores. (ALVES, 2020). Embora cientes de toda essa
problemática por um lado, mas preocupados com a falta das aulas, algumas
instituições aderiram ao ensino remoto. Diretores, secretários, coordenadores
pedagógicos e professores recorreram às plataformas digitais e aplicativos
como modo de garantir a continuidade do ano letivo. Ferramentas como
Google Meet, Zoom, WhatsApp, entre outras, fixaram-se no contexto escolar,
atuando como recursos essenciais para o acontecimento das aulas.

1
Doutoranda em Linguística pelo programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSC. Florianópolis, Santa
Catarina, Brasil. E-mail: jocelmaboto@gmail.com

57
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Partindo dessa conjuntura, nosso foco está em analisar a maneira como


as diversas ferramentas do WhatsApp (WA) são incorporadas ao ensino.
Acreditamos que as peculiaridades interativas do aplicativo podem
contribuir positivamente com as práticas do ensino remoto. Com esse
objetivo, discutimos os impactos da adesão desse aplicativo à esfera escolar,
no contexto pandêmico.

Caminhos para uma Análise Dialógica

Os textos produzidos pelo círculo de Bakhtin oferecem inúmeras


contribuições para os estudos da linguagem, muitas delas debatidas mais
frequentemente no espaço acadêmico e outras discutidas e praticadas
também no espaço escolar. Para esses estudiosos, a compreensão da
linguagem ultrapassa os aspectos estruturais, uma vez que o espaço da
realização linguística comporta fatores mais amplos. De modo que “a
consciência linguística do locutor e do receptor nada tem a ver com um
sistema abstrato de formas normativas, mas apenas com a linguagem no
sentido de conjunto dos contextos possíveis de uso de cada forma particular”.
(VOLOCHÍNOV, 2006, p. 96).
A realidade da linguagem é a interação verbal, ou seja, as condições reais
da enunciação. É a interação verbal que permite estudos complexos sobre a
língua, já que se compreende sua indissociabilidade com o contexto social,
sua natureza concreta e ideológica. Tais fatores exemplificam a
contemporaneidade dos pensamentos desse grupo que, cada vez mais, são
explorados e aplicados nos contextos mais diversos do trabalho e teorização
sobre/com a linguagem.
Esse é o caso de uma nova vertente que retoma os escritos do círculo
com vistas a delinear caminhos para uma teoria do discurso. De acordo com
Brait (2016), os trabalhos de

Bakhtin, Volochínov e Medviédev, se interligam, dialogam entre si,


desenhando uma concepção de linguagem, assim como as possibilidades
de seu enfrentamento a partir da busca de um método sociológico singular
e/ou de uma poética da prosa, de maneira a construir conhecimento
linguístico, literário, filosófico, sinalizando as fronteiras que permeiam
existência e cultura, ideologia do cotidiano e ideologia sistematizada,
vivência e ciência, vida e arte, elegendo o diálogo (ideias e pontos de vista
entre ao menos duas consciências em tensão) como sustentáculo dessa
perspectiva. (BRAIT, 2016, p. 1)

Para ela, tais fatores são favoráveis a uma análise discursiva. A


pesquisadora reconhece que boa parte dos trabalhos promovidos pelo círculo

58
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

se dedica a obras específicas, contudo, compreende que também é possível


analisar o discurso cotidiano, a partir de uma perspectiva dialógica,
culminando no que tem se nomeado Análise Dialógica do Discurso. Nessa
vertente, analisa-se, principalmente, os modos como os discursos produzem
sentidos nas esferas de atividade humana.
De acordo com Silva (2012), o trabalho do analista deve considerar os
pressupostos básicos do círculo, como a preferência pelas enunciações
concretas, o olhar sobre a individualidade dos enunciados, a complexidade
da relação entre pesquisador e objeto, além da necessidade de se tomar a
língua no seu aspecto histórico e concreto. A pesquisadora destaca que cada
pesquisa será única, considerando que cada uma delas seguirá norteamentos
peculiares, já que, de acordo com o objeto e os objetivos, é que os conceitos e
categorias serão levantados. Então,

o que está em jogo é a linguagem em uso, são os processos de construção


do sentido e de seus efeitos, são as formas de diálogo entre sujeitos sociais,
históricos, discursivos e as formas do dizer e do ser no mundo. A ideia de
que os sentidos se dão na interação social, de que a língua não é um
organismo autônomo, de que nenhuma palavra é a primeira ou a última,
de que os discursos existem e têm sua identidade num permanente
diálogo. (BRAIT, 2004, s/p).

Dessa maneira, não há um horizonte norteador para o analista, uma vez


que seu trabalho consiste em um constante revisitar dos textos bakhtinianos.

Gêneros e esferas

Para Volochínov (2013), a linguagem é um fenômeno vivo imerso no


desenvolvimento da vida social. Possui, ainda, duas faces, já que a
enunciação pressupõe a presença de um locutor e de um interlocutor,
consistindo em um movimento que se realiza de homem para homem em
uma relação produtiva e verbal. Dessa maneira, as mais variadas formas de
atividade humana possuem relações com o uso da linguagem. Uma
linguagem que é efetivada a partir de enunciados concretos e únicos,
relacionados aos campos de utilização da língua (BAKHTIN, 1997).
Os campos de utilização da língua são as esferas que regulamentam a
elaboração de “tipos relativamente estáveis de enunciados”. Esses tipos de
enunciado são os gêneros do discurso que estão são dotados de
peculiaridades comunicativas que os relacionam a cada esfera (jurídica,
religiosa, escolar, por exemplo). Os gêneros também são caracterizados pela
indissolubilidade do conteúdo temático, do estilo da linguagem e da

59
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

construção composicional. Isso significa dizer que cada gênero possui, em


seu interior, aspectos linguísticos, estruturais e temáticos que lhe são
próprios.
No caso desse trabalho, optamos por partir dos conceitos de gêneros
discursivos e esferas para promovermos nossas análises. Passemos a elas.

Análise e discussão dos dados

Grupo de WhatsApp

O WhatsApp é um aplicativo multiplataforma de mensagens


instantâneas e chamada de voz para smartphones, desenvolvido em 2009.
Trata-se de “um suporte que permite ao autor do discurso exercer sua
capacidade de produção intelectual para proceder sua conversação usando
práticas comunicativas que variam de acordo com a interação
sociocomunicativa proposta por ele no ato comunicacional”. (SANTOS, 2017,
p. 40).
Suas funcionalidades ultrapassaram outras formas de comunicação
online e posicionaram o aplicativo como um dos principais métodos de
interação digital da atualidade. Através dele, os usuários podem trocar
mensagens variadas que englobam links, fotos e vídeos, mensagens de voz,
documentos em diversos formatos, entre outras peculiaridades disponíveis
através da tecnologia do aplicativo. Entre elas, citamos a criação de grupos
interativos.
Os grupos são criados por administradores aptos a adicionar
individualmente outros membros, ou criar um link, no qual o interessado
apenas clica e é inserido. São, ainda, caracterizados por temas que irão
orientar a inserção de contatos e o foco da interação: exemplificamos com os
grupos de vendas, de familiares, de amigos, e, no contexto da nossa análise,
os grupos escolares.
Em se tratando das questões de gênero discursivo, as interações de WA
podem ser enquadradas nas categorias do gênero chat por fixarem-se em uma
situação comunicativa de bate-papo virtual. (ARAÚJO, 2003). Entendemos o
chat e o WA como pertencente à esfera social discursiva digital. Devido às
funcionalidades e à dinamicidade dos gêneros da esfera destacada,
acreditamos que eles podem atuar em outros campos, e é assim que
entendemos o caso do WA que, graças à sua função de comunicação
instantânea, pode ser recorrente em diversas esferas, como é o caso da esfera
escolar.

60
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

WhatsApp na esfera escolar

Analisamos três grupos de WhatsApp composto por alunos e


professores 2° ano do Ensino Médio de um colégio da rede estadual da Bahia.
São eles: a) Linguagens, que abarca as disciplinas de Língua Portuguesa e
Literatura Brasileira, Língua Estrangeira (Inglês), Leitura e Produção de
Texto e Educação Física; b) Humanas, com as disciplinas de Geografia,
Sociologia, Filosofia e História; e c) Matemática e Ciências da natureza em
que estão as disciplinas de Física, Matemática, Biologia e Química. Como
podemos observar, os grupos são divididos por áreas de conhecimento e
componentes curriculares. Apenas nesse fato, verificamos as crenças e os
valores sociais permeados na esfera escolar que retomam os discursos
escolares com ênfase em um ensino subdividido por áreas e segmentados por
disciplinas.
Outro fato também nos chama a atenção. Voltemos nosso olhar ao
terceiro grupo para destacar que as disciplinas de Matemática, Física,
Biologia e Química são colocadas em mesmo patamar. Contudo, na
subdivisão dos documentos oficiais, como a Base Nacional Comum
Curricular, trata-se de áreas que devem ser abordadas separadamente. A
opção por agrupá-las como parte de uma mesma área, retoma discursos de
uma compreensão equivocada dos componentes curriculares. Acreditamos
que o fator comum da presença de alguns cálculos, ainda que, em menor
complexidade, atribuam aos componentes de Física, Química e Biologia, uma
relação interdiscursiva com a Matemática. Uma compreensão vista
extraoficialmente pelos corredores da escola e que é, agora, reforçada pelos
professores e dirigentes dessa instituição.
Além desses discursos, outra peculiaridade da esfera escolar foi
transportada ao WA. Durante as aulas, notamos que cada professor tem
horário definido para iniciar e concluir o envio de mensagens ao grupo. Essa
questão retoma a prática tradicional escolar que se orienta por horários pré-
programados para as aulas, além de trazer relações discursivas com o gênero
horário escolar. Tais relações aspecto-formais evidenciam a dominação da
esfera e dos discursos escolares sobre o aplicativo.
Após discutirmos os aspectos formais de adequação à esfera escolar,
partimos agora, para os aspectos funcionais do WA durante as aulas.
Acompanhamos as atividades desses grupos no decorrer de uma semana.
Notamos que, de maneira geral, em seu horário, os docentes saúdam os
alunos e já passam orientações do dia, imediatamente, como podemos
observar nos exemplos que se seguem:

61
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Figura 01 Figura 02

Fonte: Banco de dados da pesquisadora

Discutiremos os dados separadamente. No primeiro caso, o print mostra


apenas os enunciados de uma aula em que o docente diz que aguarda os
alunos e em seguida envia o link de encontro para a aula que aconteceria em
outra plataforma, o Google Meet. Ele ainda disponibiliza seu contato de
telefone. Trinta minutos depois, posta orientações sobre as atividades que os
alunos deverão fazer com o seguinte enunciado “Vocês deverão responder as
atividades no caderno. Não precisam copiar os enunciados. Corrigiremos na
próxima aula de LPLB, dia 16/04”. Após dez minutos, envia uma figurinha
que alerta sobre o acúmulo de atividades.
Na segunda imagem, temos acontecimentos relacionados a duas aulas
de professores distintos, em dias diferentes. O primeiro deles orienta os
alunos sobre as atividades do dia que serão divididas em dois momentos: o
primeiro, uma autoavaliação e o segundo a apresentação dos assuntos da
semana. As mensagens desse professor são enviadas em pequenos intervalos,
e, entre uma orientação e outra, ele reforça “qualquer coisa estou aqui à
disposição”. Nesse caso, o ambiente em que tanto a autoavaliação quanto os
temas das aulas da semana serão postados é o Google Classroom.
Essa é a mesma plataforma adotada pela professora do dia seguinte que
usa seu momento no grupo para orientar os alunos sobre a mudança no
cronograma da disciplina. Ela informa que, devido à alteração de horário e à
antecipação de sua aula, as apresentações que estavam previstas seriam

62
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

postergadas e que, na aula do dia, os alunos deveriam registrar uma


atividade no Google Classroom. Em seguida, relembra como seriam as
apresentações.
Essas três aulas nos permitem levantar alguns pontos. O primeiro deles
diz respeito ao teor das mensagens. Trata-se de enunciados objetivos e
instrucionais, muito recorrentes no discurso escolar. Eles apontam o tipo de
relação que há entre os sujeitos da enunciação e as posições ideológico-sociais
que eles ocupam. O professor pode ser classificado como o orientador, o
aluno, aquele que deve ser orientado.
O segundo ponto delineia-se na observação de que nenhuma aula ocorre
por intermédio do WhatsApp. Esse fator atribui ao aplicativo apenas uma
função de suporte para o que seria a “verdadeira aula” que acontece em outra
plataforma, nos casos em questão, o Google Meet e o Google Classroom. Isso foi
bastante comum nessa turma já que os professores recorreram aos grupos
apenas para expor recados, enviar links e propor atividades. Essa questão
permite concluir que, no contexto de análise, o gênero chat do WA assume a
função de outro gênero discursivo, o aviso. Como consequência, perdem-se
diversas características do WA, a exemplo, o princípio de interação, que
possibilita que o aplicativo atue como espaço de debate e promoção de
conhecimento.
Outro fator que contribui para a perda dessa função é a restrição quanto
ao envio de mensagens, como podemos notar pelo enunciado no final de cada
print: “Somente admins podem enviar mensagem”. Os administradores
desses grupos são exclusivamente os professores e em nenhum deles há
qualquer aluno apto a enviar mensagens, ainda que seja a partir da
coletividade discente. É fato que, durante a semana de observação, alguns
professores abriram o grupo para a interação dos alunos, contudo, as vezes
em que essa configuração foi aderida ocorreram em momentos peculiares
com propósitos definidos pelo docente: a chamada e o envio de tarefas.
Essa questão traz à tona diversas problemáticas já bastante conhecidas
no espaço educacional e reverberam relações interdiscursivas com as práticas
de ensino unilaterais. Adotar uma ferramenta de interação como recurso,
mas, ao mesmo restringir essa possibilidade dela reforça os discursos sobre
as relações desiguais no espaço de ensino. Nessas relações, o docente é
tomado como detentor do direito de fala e o aluno, é aquele que ouve,
obedece e só pode falar quando requisitado. Esse fato ainda contradiz
percepção das relações dialógicas defendida pelo círculo de Bakhtin que
compreende a enunciação como “o produto da interação de dois indivíduos
socialmente organizados”. (VOLOCHÍNOV, 2006, p. 114).

63
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

A partir disso, nos questionamos se não há interação verbal entre aluno


e professor no aplicativo analisado. Bem, caso o discente deseje entrar em
contato com os docentes, deve recorrer à mensagem privada e o professor
responde individualmente a cada aluno. Essa opção representa uma grande
contradição com o discurso pedagógico que alimenta a crença de uma prática
de aprendizagem coletiva, por meio da interação. Contudo, os recursos que
poderiam promover e sustentar esse discurso na tecnologia investigada são
simplesmente ignorados.
Com a privação da participação ativa dos alunos, qualquer outro recurso
do WhatsApp como o envio de textos multimídia, links e até as características
figurinhas perdem toda sua plasticidade, uma vez que nenhum desses
elementos atua a favor de uma aula colaborativa e dinâmica. Pelo contrário,
servem apenas como reforço das relações impositivas já bastante marcadas
na esfera escolar, de modo que acontece uma transposição da cultura
autoritária dessa esfera também para o recurso digital adotado.

Considerações finais

Sabemos que, durante muito tempo, o fantasma da tecnologia assusta as


escolas públicas de maneira geral. A falta de conhecimento, de capacitação e
de recursos faz com que muitas ferramentas que poderiam ser aliadas à
educação nem cheguem a atuar nesses ambientes. No entanto, essa realidade
foi bruscamente modificada com o cenário pandêmico que impulsionou a
permanência, senão até mesmo a entrada, dos aplicativos e demais
plataformas digitais durante as aulas. Nesse trabalho, ressaltamos o caso do
WhatsApp e verificamos de que modo o aplicativo tem sido utilizado em
uma escola pública.
Nossas análises apontam que o colégio estudado pode acreditar que
utiliza a tecnologia do WhatsApp a seu favor, já que promoveu a criação de
grupos de discussão por turma e por área de conhecimento. O que, visto de
fora, é uma iniciativa muito positiva para o ensino remoto. O impasse, no
entanto, pode ser verificado no interior dessas práticas que estão repletas de
problemas, entre os quais verificamos a perda da interação, que não é só uma
das grandes características do aplicativo, mas também um dos princípios de
aprendizagem. Como resultado, tanto o WA quanto a aula perdem um
grande aliado, o debate coletivo.
Verificamos ainda que, ao fazer parte da esfera escolar, o WA perde a
sua dinamicidade e passa a atuar em favor da esfera receptora, sendo
articulado aos discursos que ali permeiam. O que não seria um problema se
a unidade escolar em questão não revelasse práticas autoritárias. Concluímos

64
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

nossas reflexões afirmando que a inserção do WhatsApp nas aulas não ocorre
de maneira proveitosa, pelo contrário, a ferramenta atua como forma de
manutenção das relações desiguais na prática pedagógica.

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SILVA, Nívea Rohling da. A atuação do professor de língua portuguesa discursivizada por licenciandos
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VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método
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VOLOCHÍNOV, V. N. A construção da enunciação e outros ensaios. Organização, tradução e notas
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WHATSAPP. In: WIKIPÉDIA. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/WhatsApp>.
Acesso em: 29.abril.2021.

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

ESCRITA CONJUNTA PRESENCIAL E VIRTUAL


Implicações para a educação de um ponto de vista dialógico

Anne Carolline Dias Rocha PRADO1


Márcia Helena de Melo PEREIRA2

No último ano (2020), nos vimos diante de um cenário epidemiológico


inesperado, com a pandemia do novo coronavírus (COVID-19), que nos
forçou a utilizar a tecnologia para fins pouco ou nada utilizados
anteriormente. As instituições públicas e privadas, da educação básica à
superior, por exemplo, precisaram suspender as suas atividades presenciais
e recorrerem a recursos midiáticos para manter o ensino de maneira remota,
seguindo as recomendações da Portaria n° 343/2020, do Ministério da
Educação (MEC), que “dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por
aulas em meios digitais enquanto durar a situação do Novo Coronavírus –
COVID-19” (BRASIL, 2020, p. 39).
Em nosso caso específico, estávamos em processo de coleta de dados
para uma pesquisa de doutoramento3. Coleta essa que era realizada
presencialmente. Porém, em face do novo cenário, precisamos nos adequar e,
assim, recorremos às ferramentas digitais Google Docs e Google Meet para
seguirmos em frente com a captação dos dados.
Com isso, foi possível observar que a mudança do ambiente presencial
para o ambiente virtual modificou, também, o processo de participação, de
negociação e de escolhas linguísticas/discursivas dos nossos sujeitos durante
as produções textuais para a pesquisa, o que nos levou a refletir sobre o
ensino, sobretudo de Língua Portuguesa, mediado por tecnologias.
Sendo assim, nas próximas páginas, apresentaremos uma discussão
acerca de dois processos de construção de textos realizados em ambientes
diferentes, analisando como a mudança do presencial para o virtual interfere
na relação entre os sujeitos escreventes, com vistas a pensar a tecnologia como
uma aliada no processo de ensino-aprendizagem, mesmo em períodos em
que a sua utilização seja apenas complementar às atividades presenciais.

1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
(PPGLin – UESB). Vitória da Conquista – Bahia – Brasil. annerochaprado@gmail.com.
2
Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Professora titular
do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (DELL
– UESB), campus de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil. Docente do quadro permanente do Programa de Pós-
Graduação em Linguística da mesma instituição (PPGLin – UESB). marciahelenad@yahoo.com.br.
3
A pesquisa em questão, intitulada “A relação entre estilo e gênero na escrita individual e na escrita conjunta:
estilos em intersecção”, está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGLin) da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), é financiada pelo Programa Interno de Bolsas de Pós-
Graduação da mesma universidade. O corpus utilizado neste capítulo adveio dessa pesquisa.

67
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

A perspectiva dialógica da linguagem

No século XX, aproximadamente entre os anos 1920 e 1930, um grupo


denominado Círculo de Bakhtin se reunia em diversos espaços políticos,
sociais e culturais, a fim de debater ideias e discutir obras filosóficas. Dentre
os nomes mais conhecidos atualmente, sobretudo nos estudos da linguagem,
estão Valentin Volóchinov, Pavel Medviédev e, claro, Mikhail Bakhtin. Esses
três foram os principais responsáveis por elaborar uma concepção de
linguagem que viria a ser o fundamento do pensamento do grupo: a
concepção dialógica.
A língua, de acordo com o Círculo, é um fenômeno vivo em constante
movimento, que segue a vida social através do processo da comunicação
discursiva, e, portanto, é compreendida de um ponto de vista histórico,
cultural e social, conforme observam Brait e Melo (2016). Dessa forma,
segundo esses estudiosos, a linguagem se realiza através do fenômeno social
da interação discursiva viva, que acontece entre sujeitos socialmente
organizados. O resultado dessa interação é o enunciado, que é irrepetível e
determinado pela situação social mais próxima e pelo meio social mais amplo
(BAKHTIN, 2016; VOLÓCHINOV, 2018).
De acordo com os intelectuais, o enunciado organiza a comunicação, já
que é a sua real unidade. O processo de comunicação discursiva, por sua vez,
está ligado inteiramente aos contextos verbal e extraverbal do discurso, às
enunciações do outro, e aos outros discursos. Assim, o enunciado é sempre
voltado para uma reação de resposta do outro (BAKHTIN, 2016;
MEDVIÉDEV, 2012; VOLÓCHINOV, 2018). A chamada alternância dos
sujeitos do discurso é resumida por Prado (2019) da seguinte maneira: “desde
o início da enunciação, o falante aguarda a resposta do ouvinte, espera uma
ativa compreensão responsiva; e o ouvinte, ao compreender o discurso,
ocupa uma ativa compreensão responsiva” (PRADO, 2019, p. 44).
Portanto, do ponto de vista do Círculo de Bakhtin, o papel do outro é
fundamental para a comunicação discursiva. Atualmente, a relação eu-outro
tem sido profundamente afetada pelas mídias digitais e tecnologias,
forçando-nos a ampliar as possibilidades de aplicação da teoria bakhtiniana.

Presencial X Virtual

A prática da escrita vem se desenvolvendo e sofrendo mudanças há


diversos milênios, de acordo com as invenções, as circunstâncias e as
necessidades sociais. Segundo Ribeiro (2018), a cultura escrita, ou seja, “uma
cultura baseada na palavra, no texto, em algum tipo de código, alfabético ou

68
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

não” (RIBEIRO, 2018, p. 12), oportuniza e ocasiona certas práticas que se


modificam em diferentes épocas e espaços. A autora explica que, nas últimas
décadas, emergiu, como parte da cultura escrita, a cultura digital, que
propicia um novo modo de escrever, através de máquinas e de redes
telemáticas, “alterando os letramentos e as relações das pessoas com o escrito,
o texto, os formatos, as leituras, as formas de produção, publicação, edição,
difusão e circulação de objetos de leitura” (RIBEIRO, 2018, p. 13). Entretanto,
a linguista aplicada ressalta que, apesar das inovações, um novo modo de ler
e escrever não exclui um anterior, ao contrário, há integração e incremento
entre eles. Dessa forma, convivemos com processos vários, além de gêneros
e textos diversos, e as formas diferenciadas de leitura e escrita se misturam
aos nossos modos de vida, às nossas vivências e ao nosso modo de operar
socialmente.
Pensando nessa variedade de processos, nos diferentes modos de ler e
escrever, neste trabalho temos duas produções feitas em dupla por
estudantes universitários: de um lado, uma produção realizada no
computador, utilizando o Microsoft Word, ferramenta de criação e edição de
texto; nesse caso, a edição por pares só pode ser realizada de maneira
assíncrona, ou com os dois indivíduos lado a lado, presencialmente,
compartilhando o mesmo ambiente e operando o mesmo computador. Do
outro lado, temos uma produção também realizada no computador, em
dupla, dessa vez utilizando dois recursos digitais: o Google Docs e o Google
Meet. O primeiro é uma ferramenta muito semelhante ao Microsoft Word, com
o diferencial de que tudo é realizado online, sem a necessidade de instalação
de um software, possibilitando, assim, a visualização e a edição compartilhada
de textos pelos escreventes, de maneira síncrona ou assíncrona, e
independentemente de estarem ou não no mesmo ambiente. O segundo, por
sua vez, é uma plataforma para chamadas de áudio e vídeo, que permite o
compartilhamento de vídeos, documentos e outros arquivos para todos os
participantes da chamada, além de mensagens instantâneas no chat, tudo em
tempo real.
Atividades de escrita realizadas em grupos de dois ou mais alunos, as
chamadas escritas colaborativas/conjuntas, não são incomuns e cada vez mais
têm sido alvo de investigações4. De acordo com Pinheiro (2011), a escrita

4
De modo geral, os trabalhados desenvolvidos não investigam a escrita conjunta em si mesma, mas como
estratégia para apreensão de dados para outros fins, para verificação de questões sobre ensino/aprendizagem
e, ainda, para o desenvolvimento da prática em ambiente virtual, quase sempre, de maneira assíncrona. Para
maior aprofundamento acerca da escrita conjunta, recomendamos a consulta à dissertação de mestrado
“Participação, negociação e escolhas: como acontece a escrita conjunta no processo de construção de uma

69
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

conjunta “se constitui a partir de um quadro de interações do grupo, no qual


se compartilham descobertas, busca-se uma compreensão mútua da situação,
negociam-se os sentidos a serem atribuídos ao trabalho, bem como se
validam novos saberes construídos” (PINHEIRO, 2011, p. 229). Entretanto,
escrever conjuntamente de modo virtual, ainda que mantendo uma interação
“face a face” por meio do Google Meet, e escrever conjuntamente de maneira
presencial, ainda que utilizando uma ferramenta digital, como o Microsoft
Word, são dois modos de interagir e escrever diferenciados que acarretam
mudanças nas relações entre escreventes, ocasionadas por motivos diversos,
o que não significa que um modo é inferior ao outro; ao contrário,
acreditamos que, tal qual a escrita feita presencialmente (seja em ferramenta
digital ou impressa), a escrita feita virtualmente oferece possibilidades de
aprendizado ímpares para os alunos e, dessa forma, tanto uma quanto outro
são de grande valia para o desenvolvimento da prática da escrita, conforme
veremos na análise que faremos na seção seguinte.
Remontando à teoria bakhtiniana, no que se refere à interação social e a
alternância dos sujeitos do discurso, precisamos ressaltar que essa interação
sempre voltada para o outro e sua ativa compreensão responsiva não é
apenas o diálogo face a face, mas “qualquer comunicação discursiva,
independentemente do tipo” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 219). Em nosso caso,
por exemplo, temos, durante a elaboração de um texto, tanto diálogos
realizados face a face (como nas discussões feitas pelos estudantes
presencialmente ou pela chamada de vídeo via Google Meet), quanto diálogos
ocorridos pelo chat e também aqueles presentes nos próprios textos, dado
que todos os enunciados são “plenos de tonalidades dialógicas” (BAKHTIN,
2016, p. 59, destaque do autor).
Dito isso, passemos, então, à análise dos nossos dados.

O que nos dizem os dados

O corpus que será analisado é composto de dados de dois processos de


construção de textos elaborados conjuntamente por uma dupla de estudantes
universitários: uma resenha acadêmica escrita presencialmente, e um resumo
produzido virtualmente.
Para apreendermos os dados processuais do texto produzido
presencialmente, pedimos aos estudantes que elaborassem uma resenha
acerca do vídeo “Raiva de Monteiro Lobato”, do filósofo Mário Sergio

resenha?”, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Estadual do


Sudoeste da Bahia (Ver referências).

70
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Cortella. A resenha foi escrita no Microsoft Word, e as ações realizadas no


computador foram gravadas por meio do software OBS Studio. Além disso, o
diálogo mantido entre a dupla, enquanto produziam o texto, foi registrado
em áudio, para que pudéssemos captar o processo de negociação, as
participações e as escolhas linguísticas/discursivas dos sujeitos.
Para a captação dos dados do texto produzido virtualmente, além do
software de gravação de tela OBS Studio, outros dois recursos digitais foram
utilizados: o Google Docs e o Google Meet. O primeiro para a elaboração
simultânea do texto, e o segundo para que o contato direto entre a dupla fosse
mantido. O resumo foi produzido a partir do texto “É verdade que Friends é
uma cópia de série com seis amigos negros em Nova York?”, do jornalista
João da Paz. Cabe salientar que os estudantes estavam em suas respectivas
casas e a tela de apenas um dos computadores foi gravada, uma vez que os
dois aparelhos utilizados mostrariam as mesmas coisas, inclusive as
eventuais pesquisas que fizessem, já que solicitamos que as pesquisas fossem
feitas pelos dois. As conversas mantidas pela dupla foram transcritas e são
essas transcrições que apresentaremos nesta análise.
Dadas essas informações, passemos, então, à nossa investigação. Como
dispomos de pouco espaço, traremos apenas alguns exemplos a título de
ilustração. Levando em consideração as ideias do Círculo de Bakhtin,
podemos dizer de antemão que os dados mostrados a seguir nos revelam um
processo de comunicação discursiva ocorrido entre dois sujeitos socialmente
organizados, que realizam um constante diálogo entre si e com outros
discursos. Esses sujeitos são o eu e o outro, e orientam a enunciação,
influenciando e sendo influenciados em suas escolhas.
Vejamos, primeiramente, um trecho do diálogo entre A. e M. enquanto
produziam o resumo, de maneira virtual.

RESUMO – VIRTUAL
M.: Eu acho muito estranho. Eu fico com receio de escrever, porque parece que eu tô
invadindo o texto, assim.
A.: Não tá nada. É teu também.
M.: Eu sei, mas... (Risos).
Fonte: banco de dados das pesquisadoras

Conforme vimos anteriormente, o Google Docs permite àqueles que tem


acesso a determinado arquivo não só a visualização, mas, também, a edição
deste. No exemplo que vemos acima, M. declara o seu incômodo em
compartilhar a edição com A., com receio de estar “invadindo o texto”.
Porém, como A. observa, o texto também é de ambos. A julgar por este
fragmento, a participação efetiva de M. na construção do texto será pequena;

71
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

porém, como veremos adiante, embora opte por não realizar acréscimos ou
mudanças diretamente no arquivo do Google Docs, o estudante apresentará
diversas ideias e argumentos que estarão presentes na versão final do
resumo. Pensando em uma produção semelhante sendo realizada em aulas
de Língua Portuguesa e comparando-a com uma produção realizada
presencialmente, lembramos que, geralmente, apenas um dos componentes
da dupla (ou grupo) efetivamente escreve. A escrita virtual, porém, mediada
pelo Google Docs, possibilita a todos os participantes da escrita a reação
imediata ao que está sendo escrito, inclusive, fazendo modificações que
podem ou não estar em concordância com o que foi escrito por outro
participante, ou, ainda, que cada um contribua em determinado momento até
chegar ao que o grupo deseja (PINHEIRO, 2011). Tanto uma quanto outra
possibilidade oferece a vantagem de dar a todos a chance de escrever e, dessa
forma, desenvolver habilidades necessárias à prática, como a livre expressão
e a aplicação das normas aprendidas em aulas de gramática, por exemplo.
Adiante, os dados serão apresentados em duas colunas: de um lado,
estarão trechos da conversa mantida pelos estudantes durante a produção
presencial da resenha; do outro, o diálogo mantido durante a construção
virtual do resumo.
RESENHA – PRESENCIAL RESUMO – VIRTUAL
A.: E, quem sabe, modificar... modificar M.: Versa sobre... É...
realidades... já tem realidades paralelas. A.: A polêmica, ou a indagação, o
Modificar seu meio? questionamento.
M.: É. M.: Acho que a polêmica, né?
A.: Modificar... Modificar o meio... Não sei. A.: É. A gente tá afirmando que é uma
Modificar a realidade vigente. Sei lá. Só que polêmica, mas... Ah, é uma polêmica, é uma
a gente tava aqui falando... O central é isso. polêmica, né?
A gente divagou. M.: É, porque, tipo, o título já é meio que
M.: É. chamando pra polêmica, né?
A.: Botar para além, né? Para além do ponto A.: É verdade. Não vai ser ruim a gente usar
central. (Relê o trecho escrito). A própria polêmica não.
realidade vigente. Eu achei ok.
M.: Eu achei bom também.
Fonte: Banco de dados das pesquisadoras
Acima, vemos, primeiramente, na produção presencial, A. dando ideias
e sugestões, enquanto M. apenas concorda, dizendo “É”, “É” e “Eu achei bom
também”. Na produção virtual, porém, M. afirma que a palavra a ser
utilizada seria “polêmica”, A. fica em dúvida, mas M. argumenta em defesa
do seu uso e, por fim, A. concorda.
Nestes dados, podemos observar a alternância dos sujeitos do discurso
de que falam os estudiosos dos Círculo: “O falante termina o seu enunciado

72
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

para passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente


responsiva” (BAKHTIN, 2016, p. 29). Entretanto, no caso da produção feita
presencialmente, a atitude responsiva de M. é passiva e de plena
concordância; já na produção feita virtualmente, o estudante ocupa uma
posição mais ativa. Essa posição mais passiva de M. na produção presencial
e mais ativa na produção virtual pode ser justificada pelo local em que o
estudante se encontrava durante cada produção: em uma sala de aula na
universidade e em sua própria casa, respectivamente. Em outras palavras, o
fato de estar em casa, utilizando o seu computador e sem ter preocupação
com horários de aulas e outras atividades acadêmicas, deu à M. maior
liberdade. Considerando o contexto educacional, sobretudo a educação
básica, precisamos nos lembrar que, com o cenário pandêmico, alunos são
obrigados a estarem em casa, tendo aulas online e, portanto, a “maior
liberdade” não tem valia, uma vez que o auxílio e a orientação do professor
são fundamentais para que eles façam suas produções adequadamente.
Porém, lembramos, também, da carência afetiva e da necessidade de se
relacionar com outros que não a família, que têm afetado crianças e adultos.
Nesse sentido, a produção textual realizada conjuntamente, com o auxílio do
Google Docs e do Google Meet resgata a interação entre colegas de classe e pode
funcionar como incentivo aos alunos que estão vivendo em isolamento social.
Vejamos outro trecho do corpus.

RESENHA – PRESENCIAL RESUMO – VIRTUAL


A.: Cortella inicia seu discurso, né? M.: Tá. Aí, a gente fala agora de como ele
M.: Lembrando... é ruim? tratou isso no texto, né? Dessa polêmica.
A.: Não, acho bonito. Relembrando o primeiro A.: É, ao longo do texto né?
livro, sua primeira leitura... sua primeira M.: Hunrum.
leitura, qual seja, Reinações de Narizinho, de A.: O colunista? A gente pode se referir a
Monteiro... Ai, que raiva de Monteiro Lobato! ele como colunista, né?
(Risos)... De Monteiro Lobato. Você acha... É... M.: Hunrum. É.
O bom da resenha é a gente trazer coisas de A.: Ele apresenta. Ele começa o texto
fora, né? Você acha que precisa falar da... apresentando as personagens, né?
M.: Da censura? M.: Isso. Calma aí. Deixa eu dar uma
A.: Não, da Clarice Lispector... A gente pode olhada aqui. Isso. Ele começa o texto, tipo
falar: que, curiosamente, que, tipo assim, não é assim, falando, na verdade, os
uma informação relevante, mas é uma personagens e o enredo, tipo, de que se...
informação. tipo, “seis amigos se encontram em um
M.: Hunrum. apartamento em Nova York e conversam
A.: Curiosamente, foi o objeto... vou botar bem sobre tudo, problemas de emprego, vida
assim, ó: livro-objeto-desejo. Que que você amorosa...”. Tipo, apresenta os
acha? personagens e o enredo da série já, né?
M.: Bom. A.: Hunrum. Tô escrevendo isso.
Fonte: Banco de dados das pesquisadoras

73
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Nos excertos supramencionados, vemos, mais uma vez um


posicionamento mais passivo, e, até mesmo, inseguro de M. durante a
produção realizada de forma presencial, e mais ativo durante a produção
realizada virtualmente. No primeiro caso, M. sugere o uso do termo
“lembrando”, mas logo insinua, por meio de uma pergunta, que o termo é
ruim. Adiante, quando A. levanta a possibilidade de inserir, na resenha, um
diálogo com o conto Felicidade Clandestina, de Clarisse Lispector, M. não faz
qualquer objeção.
Por outro lado, durante a produção do resumo, a posição ativamente
responsiva de ambos os sujeitos fica bastante evidente: M. lança a ideia, A.
concorda e a adequa ao texto, M. complementa, A. concorda e textualiza e,
assim, percebemos a relação falante-ouvinte, eu-outro, funcionando da
maneira como postula o Círculo de Bakhtin.
Como podemos perceber até aqui, a interação entre os colegas de
produção funciona de maneira eficiente tanto na forma presencial, quanto na
forma virtual, embora, na primeira, um dos estudantes tenha se mostrado
mais retraído, o que não significa que não houve uma comunicação
discursiva viva. Em vista disso, é possível afirmar que o processo de ensino-
aprendizagem da escrita pode funcionar sem prejuízos através de
ferramentas digitais, desde que haja adaptação, orientação e
acompanhamento dos professores.
Por último, vejamos um trecho do texto produzido presencialmente, em
que o domínio de A. na produção fica explícito.

RESENHA – PRESENCIAL
A.: Assim sendo, o vídeo é indicado para...
M.: O vídeo é indicado para... essa é a questão.
A.: Tanto para profissionais da área da educação...
M.: Sim, sim, sim.
A.: Quanto para todos.
M.: Isso. É pra todo mundo. Como é que a gente fala isso? Que é pra todo mundo?
A.: A população, de forma geral.
M.: É isso.
A.: População é ótimo. Amei.
M.: Gostei muito do texto.
A.: Também. Agora a gente pode fazer uma leitura detida, pra ‘gente ver os meus erros e
corrigi-los.
Fonte: Banco de dados das pesquisadoras

O diálogo exposto acima aconteceu no final da produção do texto,


momentos antes de os estudantes revisarem o que foi escrito. Vemos que a
dupla dialoga, mas as escolhas linguísticas são primordialmente de A. Mas o

74
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

que chama a nossa atenção é a última fala de A.: “Agora a gente pode fazer
uma leitura detida, pra ’gente ver os meus erros e corrigi-los”. O uso do
pronome possessivo “meus” revela que a influência de A. sobre M. no
processo da resenha é intensa, ao ponto de o primeiro entender que mesmo
os erros que aparecem na produção são seus e não de M., ou de ambos. No
que diz respeito a esses “erros”, vale salientar que o Google Docs mostra todas
as mudanças que foram feitas no texto, quando foram feitas e por quem
foram feitas. Uma vez que o professor também tem acesso ao documento, é
possível observar os problemas de gramática e ortografia de cada estudante
e, dessa forma, desenvolver atividades relacionadas à resolução desses
problemas.
Considerando nosso limite de tempo, finalizaremos a nossa
discussão nas Considerações finais, ressaltando que, há, durante as produções
dos dois textos, diversos outros momentos de diálogo entre os sujeitos que
revelam mudanças na relação entre eles, considerando a ambiente de escrita.

Conclusão

Nesta investigação, nos propomos a investigar como a mudança do


ambiente presencial para o ambiente virtual interfere na relação entre uma
dupla de estudantes universitários durante o processo de construção de uma
resenha e de um resumo escritos conjuntamente, com vistas a refletir sobre
os diferentes modos de produção escrita e seus usos no ensino-aprendizagem
da escrita.
De modo geral, nossos dados mostram que tanto o ambiente presencial,
quanto o ambiente virtual se mostraram eficazes para a produção de sentidos
pelos alunos na forma escrita. Ou seja, escrever conjuntamente, tendo contato
direto e presencial entre os parceiros de escrita, ou escrever conjuntamente
de maneira virtual, utilizando ferramentas online, não teve impacto negativo
sobre o desenvolvimento da prática de escrita pelos estudantes, ao contrário,
houve situações em que a mudança para o ambiente virtual propiciou maior
participação de um dos sujeitos.
Sendo assim, consideramos que o Google Docs e o Google Meet podem ser
aliados para a educação. Ressaltamos, porém, que, para chegarmos a essa
constatação, não levamos em consideração as desigualdades em termos de
acesso à internet ou aos computadores e celulares, às quais são uma realidade
inegável. Também não estamos pensando nas ferramentas digitais como
substitutas a ferramentas não tecnológicas já tradicionais no ensino, como a
utilização dos textos impressos, da lousa, dos livros etc., mas, conforme já

75
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

dissemos, como aliadas, sobretudo nesse contexto em que é necessário que se


mantenha distanciamento social.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso.
Organização, tradução posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei
Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 11-69.
BRAIT, Beth; MELO, Rosineide de. Enunciado / enunciado concreto / enunciação. In: BRAIT,
Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2016.
BRASIL. Ministério da Educação. Portaria nº 343, de 17 de março de 2020. Diário Oficial da União,
Brasília, DF, 18 de março de 2020. Disponível em: <https://pesquisa.in.gov.br/imprensa
/jsp/visualiza/index.jsp?data=18/03/2020&jornal=515&pagina=39>. Acesso em 23.abril.2021.
MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievitch. O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma
poética sociológica. Tradução de Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São
Paulo: Contexto, 2012.
PINHEIRO, Petrilson, Alan. A escrita colaborativa por meio do uso de ferramentas digitais:
ressignificando a produção no contexto escolar. Calidoscópio, v. 9, n. 3, p. 226-239, set./dez.
2011. Disponível em: <http://www.revistas.unisinos.br/index.php/calidoscopio/article/vie
w/cld.2011.93.07>. Acesso em 23 de abril de 2021.
PRADO, Anne Carolline Dias Rocha. Participação, negociação e escolhas: como acontece a escrita
conjunta no processo de construção de uma resenha? 2019. 154f. Dissertação (Mestrado em
Linguística). Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista, 2019.
RIBEIRO, Ana Elisa. Escrever hoje: palavra, imagem e tecnologias digitais na educação. Parábola
Editorial: São Paulo, 2018.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método
sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina
Vólkova Américo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018.

76
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

OS GÊNEROS DISCURSIVOS E O PROCESSO DE TEXTUALIZAÇÃO


NA PRÁTICA EDUCACIONAL
Um estudo de caso sobre a utilização do gênero digital blog como
estratégia de ensino de escrita de textos na escola

Mariana Tane Neves VASCONCELOS1

Em qualquer situação de comunicação, ao enunciarmos, sempre falamos


para o outro. É ao outro que direcionamos o nosso discurso e, a depender do
objetivo comunicacional, empregamos novas intenções e funções à língua a
fim de sermos compreendidos. No contexto do estudo da linguagem no
ambiente escolar, esse modelo dialógico de enunciação intrinsecamente
presente nas atividades de escrita textual, proporciona, no momento da
produção, que o aluno suscite diversas atitudes responsivas ativas do seu
interlocutor, dentro de uma determinada esfera de comunicação. Ao dizer
(escrever) ao outro, o aluno pode convencer, explicar, sensibilizar,
questionar, propor reflexões e expor opiniões conforme cada contexto
enunciativo, de modo que o outro, a partir do que foi dito, possa também
dizer e, assim, responder à sua maneira e conforme a sua interpretação, uma
vez que, como afirma Bakhtin (2003), “cada enunciado é pleno de ecos e
ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade
da esfera de comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2003, p. 297). Nessa ação
enunciativa, a fim de construir o sentido para o que lemos/ouvimos ou
falamos/escrevemos, devemos considerar as experiências linguísticas de cada
participante da interação verbal, assim, o eu e o outro (falante e ouvinte)
requisitam diversos recursos que a língua oferece, como ferramenta
modeladora dessa interação verbal. Nessa perspectiva, a utilização desses
recursos é entendida como um processo de textualização.
De acordo com Costa Val (2004), a textualização diz respeito às ações
necessárias [de quem produz ou de quem interpreta] para o estabelecimento
do sentido (textualidade) do que lemos/ouvimos (COSTA VAL, 2004). Para a
autora, nesse processo, o recrutamento de todos os saberes linguísticos que
temos para construir o sentido de uma sequência linguística é o que podemos
chamar de textualidade. Diversos autores elencaram princípios de
textualização que colaboram para conferir textualidade às sequências
linguísticas. Em consonância com Beaugrande e Dressler (1981), Koch (2015)
apresenta sete critérios para constituição de sentidos do texto (fatores de

1
Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGLin) da Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia — UESB (Vitória da Conquista, Bahia, Brasil). Graduada no curso de Licenciatura em Letras Vernáculas
pela mesma instituição. E-mail: tanevasconcelos@hotmail.com.

77
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

textualidade)2, a saber: coesão, coerência, situacionalidade, informatividade,


intertextualidade, intencionalidade e aceitabilidade.
Ancorados em Bakhtin, especificamente, na teoria dos gêneros
discursivos, nos princípios de textualização e dos fatores da textualidade
elencados por Koch(2015), consideramos que é importante discutir maneiras
de se utilizar a compreensão dialógica do uso da língua em atividades de
estudo e prática para a produção de textos (escritos) na escola, quer seja na
escrita feita no suporte de papel quer seja no suporte digital. Falamos por
meio de gêneros, os quais, segundo Bakhtin (2006), são essencialmente
dialógicos e mostram a enunciação como “um produto da interação social,
quer se trate de um ato de fala determinado pela situação imediata, ou, pelo
contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições da vida de uma
determinada comunidade linguística” (BAKHTIN, 2006, p. 124). O estudo da
linguagem por meio de gêneros discursivos torna-se uma metodologia
interessante ao processo de aprendizagem do aluno. A ação de recrutamento
de recursos no ato do dizer, proporciona o exercício da construção textual
(oral ou escrita) mais adequada para cada esfera de comunicação. O aluno,
inserido no contexto escolar, e diante de cada situação de interpretação e/ou
produção textual, pode identificar e/ou utilizar diferentes estruturas, temas e
estilos aos textos que lê/escreve.
O âmbito educacional, além do espaço físico que compreende a escola,
diz respeito, também, aos entornos problematizadores da educação. Isso
porque, os recursos pedagógicos (material didático, instrumentalização
tecnológica, preparação profissional), as relações sociais dos profissionais
envolvidos, bem como as interações entre o corpo discente, os aspectos
contextuais da atualidade, como, por exemplo, o desenvolvimento das
tecnologias digitais fazem parte desse espaço. A aprendizagem da linguagem
não está limitada ao contexto dos livros e dos gêneros e tipos textuais
apresentados apenas em suporte de papel, mas, também, e, cada vez mais,
relacionada com o contexto do aluno e com o ambiente digital e hipertextual
de que dispomos na atualidade.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), orientadora das práticas
de ensino-aprendizagem escolar no ensino médio, reconhece as
potencialidades das tecnologias digitais no contexto escolar e define
habilidades e competências sobre áreas distintas do conhecimento e que
proporcionam aos alunos “apropriar-se das linguagens da cultura digital,

2
Os fatores da textualidade, elencados por Koch (2015), foram discutidos no capitulo 2, seção 2.4, p. 63-77, da
Dissertação de Mestrado (MELO PEREIRA;VASCONCELOS, 2020) a qual originou este presente estudo. Vide
referências.

78
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

dos novos letramentos e dos multiletramentos para explorar e produzir


conteúdo em diversas mídias, ampliando as possibilidades de acesso à
ciência, à tecnologia, à cultura e ao trabalho” (BRASIL, 2019, p. 474-475).
Conhecer e utilizar as peculiaridades do hipertexto digital no processo de
ensino-aprendizagem, portanto, contribui para o desenvolvimento das
habilidades e competências do aluno em qualquer área do saber.
Nesse sentido, nosso objetivo é mostrar que o trabalho com gêneros
discursivos digitais, especificamente o blog, é uma ferramenta didática que
auxilia no processo de textualização de textos escritos na escola. Para isso,
apresentamos um estudo de caso sobre um processo de escrita textual que
faz parte dos dados de uma dissertação de mestrado em Linguística 3, cujo
objetivo da pesquisa foi o de analisar o processo de escrita e textualização de
dois textos escritos por uma dupla de alunos do ensino médio, sendo um
produzido no suporte papel e outro feito diretamente no blog. Salientamos
que, neste presente trabalho, nos deteremos em apresentar alguns dados e
resultados apenas do texto escrito pela dupla no blog. Nossa metodologia de
análise consistiu em apresentar a sequência didática utilizada para a coleta
de dados da referida pesquisa, apresentar o texto produzido pela dupla no
blog, bem como o blog criado por esses estudantes, e apresentar a análise que
foi feita das partes selecionadas e dos respectivos diálogos entre os
participantes da dupla durante o processo de escrita desses trechos.
Tendo em vista que o foco do nosso estudo é a análise de uma produção
textual no contexto digital e hipertextual de enunciação e que a concepção de
linguagem dialógica que trazemos neste trabalho tem sustentação na teoria
dos gêneros discursivos proposta por Bakhtin e nos princípios de
textualização, é válido, portanto, que iniciemos abrindo este diálogo. É o que
faremos na seção a seguir.

A teoria dos gêneros discursivos e o processo de textualização no hipertexto


do gênero digital blog

De acordo com Bakhtin (2003), a unidade real da comunicação verbal é


o enunciado, que está ligado a outros enunciados dentro de uma determinada
esfera de comunicação. Como afirma o filósofo, os “tipos relativamente
estáveis de enunciados” estão relacionados aos gêneros do discurso que
circulam em determinado campo de enunciação e que possuem, em sua
composição, três elementos indissociáveis: o conteúdo temático, o estilo e a

3
Dissertação de Mestrado em Linguística sobre “Textualidade e textualização em blogs: implicações para o
processo de ensino-aprendizagem de textos no ensino médio” (MELO PEREIRA; VASCONCELOS, 2020).

79
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

estrutura composicional. Referente ao conteúdo temático, Bakhtin (2003)


pressupõe que as escolhas morfológicas/lexicais e sintáticas aliadas às
relações sócio-históricas desses recursos linguísticos, juntamente com as
experiências linguísticas dos sujeitos envolvidos no diálogo são sempre
refletidas em uma enunciação. Para o autor, esta especificidade proporciona
uma variação de sentidos e significações as quais direcionam o caminho
discursivo dos enunciados. No que concerne ao estilo, Bakhtin pressupõe que
ele “está indissoluvelmente ligado ao enunciado e às formas típicas de
enunciados, ou seja, aos gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2003, p. 265) e que
se estabelece de duas formas distintas, sendo que uma está mais voltada para
o sujeito, tendo, pois, um caráter subjetivo que revela as suas singularidades,
e a outra forma possui um caráter mais coletivo, voltada para o público. No
estilo mais subjetivo/individual, há a possibilidade de o sujeito refletir a sua
individualidade, uma vez que, nele, encontram-se imbricadas as suas
experiências individuais, peculiaridades de fala e escrita e todo o seu saber
referente ao assunto sobre o qual enuncia. Por fim, no que tange à estrutura
composicional, como o próprio nome já revela, está relacionado ao modo
como o texto se organiza diante de cada especificidade característica de cada
esfera de circulação dos gêneros. Assim sendo, ao reconhecermos a estrutura
de um texto, identificamos o gênero discursivo que ele representa na sua
esfera de circulação. Dessa forma, podemos, por exemplo, identificar os
gêneros como romances, ofícios, palestra oral, sentença judicial, receitas,
bilhetes, convites, memorandos etc. Vale lembrar que os gêneros podem estar
em outra esfera de circulação que não seja a sua esfera de origem e, embora
mantenham a sua estrutura composicional, estilo e conteúdo dentro da
especificidade de sua esfera, possuem uma relação funcional diferente
conforme a sua utilização em outro ambiente de circulação. É o que ocorre se
utilizarmos um gênero receita, por exemplo, em uma sala de aula para
aprendermos sobre a língua portuguesa. Esse gênero, que, antes, teria a
função enunciativa de mostrar o passo a passo de como fazer determinado
alimento, em sala de aula, ganha uma nova função – a de instrumento de
aprendizagem, passando, assim, a ser um gênero escolar. Essa mudança de
função comunicativa dos gêneros discursivos ocorre também nas produções
textuais que encontramos nos blogs, onde há textos de diversos gêneros que
se encontram fora de sua esfera de circulação, mas que possuem outras
funções enunciativas no seu contexto de uso.
Na esfera de comunicação digital, onde está inserido o hipertexto on-line,
é que encontramos o gênero digital blog. De acordo com Xavier (2002), o
hipertexto apresenta-se como “uma forma híbrida, dinâmica e flexível de

80
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

linguagem que dialoga com outras interfaces semióticas, adiciona e


acondiciona à sua superfície formas outras de textualidade” (XAVIER, 2002,
p. 29) e que dispõe de semioses múltiplas e recursos dinâmicos, flexíveis, não
hierárquicos, descentralizados para a constituição de sentido. Os blogs, por
sua vez, são gêneros textuais digitais, já que possuem especificidades e
funções características de sua esfera de circulação. Tais especificidades
incluem a sua composição enquanto gênero discursivo, haja vista que
podemos identificar em sua composição o seu conteúdo temático, estrutura
composicional e estilo. Algumas das características hipertextuais
encontradas nos blogs são: a presença de links (o que dá ao texto inserido no
hipertexto o caráter virtual e não linear); as relações intertextuais discursivas
entre textos do mesmo blog ou por meio da linkagem que direciona aos textos
de outros blogs e/ou sites; e variedades de recursos multimodais.
De acordo com Coscarelli (2009), todo texto é um hipertexto e, assim
sendo, toda leitura é uma leitura hipertextual, dessa maneira, para a autora,
se “o leitor for bom, a leitura irá gerar resultados satisfatórios. Textos mal
escritos e leitores pouco hábeis vão gerar um resultado muito ruim
independentemente do formato de apresentação do texto (impresso ou
hipertextual)” (COSCARELLI, 2009, p. 549). No entanto, o texto inserido no
hipertexto on-line conta com características multissemióticas, como, por
exemplo, os recursos de imagens, sons, vídeos etc. e o ambiente de rede
internet que propiciam uma maneira diferente de enunciar, portanto, tais
especificidades devem ser levadas em consideração no momento da leitura
e/ou produção textual nesse espaço. Nessa perspectiva, entendemos que,
ainda que o processo de textualização no gênero digital blog requisite alguns
recursos linguísticos diferentes dos que recrutamos na produção do texto no
suporte tradicional (papel), a sua construção envolve a constituição de
sentidos estabelecida pela relação entre o sujeito, o texto e o seu contexto de
criação.
Segundo Costa Val (2004), o sentido do texto e as peculiaridades de cada
ação enunciativa no seu contexto comunicacional é co-construído conforme
a subjetividade dos seus interlocutores, já que, “no processo de textualização,
um mesmo texto pode ser considerado incompreensível e impróprio por
determinados interlocutores, em determinada situação, e ser considerado
plenamente inteligível e adequado por outros interlocutores, noutra
situação” (COSTA VAL, 2004, p. 19, grifo da autora).
Dessa forma, compreendemos que os textos presentes nos blogs, devem
ser analisados seguindo os critérios de textualidade e textualização da mesma
maneira que são analisados os textos escritos tradicionalmente em suporte de

81
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

papel, no entanto, nos blogs, deve-se levar em consideração o seu caráter


hipertextual e multissemiótico.
Seguiremos, na seção seguinte, com a análise do processo de criação do
texto escrito no blog por uma dupla de estudantes do ensino médio.

Análise do processo de produção textual escrita em blog por uma dupla de


alunos do ensino médio

Antes de apresentar a análise do texto escrito no blog, mostraremos o


método pelo qual os dados foram coletados. A figura a seguir, é um modelo
de sequência didática adaptado4 para o trabalho com blogs em sala de aula.

Figura 1- Modelo de sequência didática para coleta de dados em blogs

Fonte: Modelo de sequência didática adaptado pela pesquisadora.

Conforme a figura 1, acima, a sequência foi iniciada com a apresentação


da situação para a dupla de participantes. Nesse momento, a dupla tomou
conhecimento sobre: como seria a proposta de produção inicial (escrita) de
um texto sobre o tema “A era da selfie” no papel; as informações a respeito
das gravações em áudio e vídeo que seriam feitas (com o intuito de captar as
nuances do processo de criação); o tempo disponível para a produção; e as
recomendações a respeito da escrita. Em seguida, foi feita a leitura de três
textos-base para discussão e embasamento das ideias sobre o tema. Com isso,
a dupla pode iniciar a sua produção no suporte papel. Na próxima etapa, a
dupla foi orientada sobre o conceito de blog (onde circula, suas características
e tipos etc.). A dupla não possuía um blog, por isso, seguindo a sequência
didática, puderam criar o seu blog logo após assistirem a um tutorial de
criação. Finalmente, os participantes escreveram o seu texto diretamente no

4
A sequência didática proposta na coleta de dados da pesquisa de Pereira e Vasconcelos (2020) é uma
adaptação do modelo de sequência didática proposto por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004).

82
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

blog na etapa final da sequência didática. Todo o processo de aplicação dessa


sequência, que, destacamos, foi gravado em áudio e vídeo revelou-se como
ação fundamental para que os detalhes do processo de escrita fossem
captados.
Mostraremos, a seguir, o blog criado pela dupla, em seguida, a
transcrição do texto criado diretamente nesse blog e a respectiva análise,
considerando a composição do gênero discursivo o qual escreveram, logo
depois, apresentaremos a análise de um trecho de diálogo da dupla no
processo de escrita do seu texto, e, por fim, apresentaremos a análise de um
trecho do texto sob o ponto de vista do processo de textualização.
Primeiramente, vejamos a imagem do blog criado pela dupla:

Figura 2 - Imagem do blog criado pela dupla

Fonte: Banco de dados da pesquisadora.

83
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Notamos que a dupla conhece o gênero digital blog, uma vez que, além
de produzirem o texto escrito, utilizaram as imagens (presentes no blog) para
complementarem o conteúdo discursivo, já que elas correspondem ao tema
que é discutido no texto escrito, nesse caso, a selfie, a exemplo do aparelho
celular indicando o ato de fazer uma selfie. De acordo com Xavier (2002), o
hipertexto é um espaço que propicia a confluência de modos enunciativos.
No caso do blog criado pela dupla, encontramos as imagens e o texto escrito
corroborando para a construção de sentido global do texto. Observamos que
a dupla desenvolveu a competência de produção em mídias, conforme
orienta a BNCC, e, além disso, conseguiu apropriar-se da cultura digital
comum ao espaço do hipertexto, especificamente, do blog.
Vejamos, a seguir, a transcrição do texto produzido pela dupla no blog:
A era da selfie?

Estamos mesmo vivendo a era da selfie? O que seria a era da selfie? Como
ela surgiu?
Será mesmo que a selfie surgiu com o aparecimento da internet, redes
sociais, o celular? Podemos perceber que ela vem de uma época muito
distante, como vemos nos nossos livros de história.
O que você queria mostrar com a sua selfie? Bom, a maioria das pessoas
usam esse meio para mostrar bens, como um carro novo, uma casa na praia,
uma viagem. Muitos dos sorrisos de hoje em dia só são em frente as
cameras, algumas pessoas mostram ser uma pessoa que não é para ser
aceito na sociedade sem julgamentos, vivemos de aparencia, um
personagem que criamos, que quando vivemos muito tempo nele,
esquecemos até quem somos de verdade.
Essa era não começou com o surgimento da tecnologia, você já deve ter
visto muitas vezes nos seus livros de história, pessoas que se auto-
intitulavam nobres, para serem vistos e tratados de maneira superior que
a maioria, porem a maioria desses títulos eram comprados, pessoas com
ambição ao extremo, com sede de poder e fama.
Você está vivendo de aparencias? A vida nos dá poucos momentos de
felicidade, em vez de tirar uma selfie, aproveite esse momento, sorria, seja
você mesmo, sem medo, por que todos envelhecemos, e o que você vai ter
no final? Vai lembrar dos momentos felizes e sorrir por ter aproveitado ou
vai olhar para seu celular e derramar lágrimas por momentos tirados de
você.
Seja você mesmo e aproveite a vida, saía desse computador ou celular, veja
o mundo ao seu redor e de um belo sorriso.

Conforme a análise das autoras da pesquisa, a dupla escreveu um texto


que se aproxima do padrão jornalístico, haja vista que traz um caráter

84
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

informativo. Para as pesquisadoras, a dupla escreveu um texto característico


do gênero blog, uma vez que possui uma composição que inclui o conteúdo
temático – cujo caminho discursivo é expresso pelo uso da linguagem menos
formal direcionada ao leitor; a estrutura composicional – apresentada pelo
caráter jornalístico-informativo e, do estilo – marcado pelo estilo do gênero
por meio da sua estrutura formal com data, imagens, textos com a linguagem
mais pessoal etc., e o estilo individual da dupla, expresso por meio das
escolhas linguísticas que são feitas sempre buscando a interlocução e
aproximação com o leitor por meio de uma linguagem menos formal, como
é o caso do uso do termo “você”. Nas palavras das autoras, “o grau de
formalismo aplicado pela dupla revela que, no texto, eles se comportam como
se estivessem enviando uma mensagem para uma pessoa amiga, familiar,
dirigindo-se a ela com um pedido que soa como se fosse uma orientação, um
conselho” (MELO PEREIRA; VASCONCELOS, 2020, p. 118). Observamos,
neste ponto, que a dupla reconhece que o gênero do texto o qual escrevem é
flexível e, assim sendo, conforme postula Bakhtin (2003), permite a exposição
da subjetividade do sujeito em favor do objetivo comunicacional do seu texto,
que é o de convencer o seu leitor.
No diálogo abaixo, vejamos como a dupla pretende atingir o objetivo
comunicacional por meio das escolhas linguístico-discursivas para o texto
que produzem:

Quadro 1- Diálogo inicial em escrita do texto no blog


FALA INICIAL ANTES DE COMEÇAREM A ESCREVER O TEXTO/NO BLOG
J.: E também saber deles...
G.: Sim. Por que... olha a gente tem que fazer uma coisa que cham... e uma coisa que
intriga também. A gente não pode colocar um assunto chato porque aí...
J.: É tipo... dar um exemplo de nós mesmos e pedir um exemplo de acontecimento...
G.: ... deles mesmo também!
J.: Deles também!
G.: Ou qual a visão deles praticamente através disso. Seria muito bom.
J.: E depois voam dá exemplo pessoal e no final vamo pedir uns exemplos pro pessoal
também... que é pra... (inaudível).
G.: Boa! É... A gente começa o texto...?
[...]
Fonte: Elaborado pela pesquisadora/Banco de dados da pesquisa.

Nesse trecho de conversa, em suma, os participantes da dupla discutem


de que maneira irão interagir com o leitor por meio do que escreverão em seu
texto. Considerando que o sentido de um texto não está somente em si e,
conforme afirma Costa Val (1999), “seu sentido é construído não só pelo

85
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

produtor como também pelo recebedor, que precisa deter os conhecimentos


necessários à sua interpretação. O produtor do discurso não ignora essa
participação e conta com ela” (COSTA VAL, 1999, p. 06), entendemos que o
processo de textualização do texto ocorre, antes da sua escrita, no seu
planejamento. A dupla de estudantes, antecipadamente, considera o seu
receptor como alguém que deve se interessar pela mensagem e espera que
ele (o seu leitor) interprete e, assim, interaja, mantendo uma atitude
responsiva ativa ao se identificar com o que está sendo dito no texto escrito
no blog. Essa ideia pode ser percebida, por exemplo, no ponto em que J. diz
“é tipo... dar um exemplo de nós mesmos e pedir um exemplo de
acontecimento...”. Na análise das pesquisadoras, esta atitude planejada da
dupla é influenciada pela esfera em que o texto está sendo produzido, uma
vez que o blog, inserido no contexto da internet, configura esse modo peculiar
de interação que propõe uma comunicação dinâmica a qual pode ser
possibilitada pela permanência do leitor no blog, ou não, e pela possibilidade
de inserção de comentários.
Partiremos, agora, para a análise de dois trechos do texto produzido
pela dupla, que correspondem aos dois primeiros parágrafos de introdução.

Quadro 2- Elemento coesivo “mesmo” nos trechos 1 e 2


TRECHO 1 TRECHO 2
Estamos mesmo vivendo a era daSerá mesmo que a selfie surgiu com o
selfie? O que seria a era da selfie? aparecimento da internet, redes sociais, o
Como ela surgiu? celular? Podemos perceber que ela vem de
uma época muito distante, como vemos
nos nossos livros de história.
Fonte: Elaborado pela pesquisadora/Banco de dados da pesquisa.

De acordo coma análise das pesquisadoras, nos trechos 1 e 2, o termo


“mesmo” é utilizado com a mesma função sintática – advérbio de afirmação
– podendo ser substituído por outros advérbios com a mesma classificação, a
exemplo de “realmente”, “efetivamente” etc. No entanto, conforme as
autoras, na compreensão global do texto, há um sentido contrário sendo
construído, que é o de levantar um questionamento para o leitor, haja vista
que, nos dois trechos, o termo trata-se de um mecanismo de coesão
superficial referencial anafórica, ou seja, “mesmo” refere-se à uma ideia
apresentada anteriormente no próprio tema que foi sugerido para a produção
do texto “A era da selfie”. Notamos que o processo de textualização da dupla,
nesse ponto, revela-se em um grau interessante de habilidade discursiva e do
desenvolvimento das competências linguísticas desses estudantes, já que a

86
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

escolha lexical do termo “mesmo” está relacionada à ideia de que a dupla


pretende informar, orientar e convencer o seu leitor sobre o que acreditam e
defendem sobre o assunto discutido no texto que estão produzindo, por meio
da relação de dúvida entre o que afirmam no texto e o que supõe que o leitor
saiba sobre esse assunto.
Considerando que o gênero blog possui peculiaridades que influenciam
no propósito comunicativo do texto produzido pela dupla e que esse
propósito foi que conduziu às escolhas linguístico-discursivas da ação
enunciativa no espaço do blog, constatamos que a dupla esteve preocupada
em escrever um texto que fosse coerente aos aspectos linguísticos e, também,
aos aspectos discursivos relacionados ao ambiente hipertextual on-line desse
blog, considerando, para isso, a interação com o leitor. Constatamos, portanto,
que o trabalho com gêneros discursivos, especificamente, o blog, é uma
ferramenta didática que pode ser usada como estratégia de ensino-
aprendizagem que auxilia no processo de textualização de textos escritos na
escola.

Considerações finais

O estudo de caso que apresentamos neste trabalho, teve como objetivo


mostrar um exemplo bem-sucedido de trabalho com o gênero blog no
processo de textualização de textos escritos no ambiente escolar,
especificamente, no ensino médio.
A análise feita pelas pesquisadoras Melo Pereira e Vasconcelos (2020),
na dissertação, percorre todo o texto produzido pela dupla incluindo o
diálogo que produzem enquanto escrevem. Neste trabalho, o recorte foi
necessário para que cumpríssemos o padrão do texto que produzimos. Isso
posto, diante das partes selecionadas, foi possível identificar que o processo
de textualização desse texto proporcionou aos estudantes a apropriação do
gênero blog e da sua esfera de circulação (o hipertexto no contexto da
internet), o desenvolvimento de competências e habilidades linguísticas na
área da linguagem e o potencial discursivo diante da temática sugerida para
a produção textual escrita, seguindo o que orienta a BNCC. Intencionamos,
com este estudo, contribuir para um ensino de linguagem que esteja
antenando às novas esferas de comunicação e interação instantâneas e
dinâmicas que proporcionem aos estudantes o desenvolvimento de
competências linguísticas para além dos gêneros escolares.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. “Os gêneros do discurso”. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal.

87
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Tradução de Paulo Bezerra. 6ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, p. 261-306.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 2006, p. 112-130.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Brasília, 2019.
Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ver
saofinal_site.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2020.
COSCARELLI, Carla Viana. “Textos e hipertextos: procurando o equilíbrio”. Linguagem em
(Dis)curso, n. 3, set.-dez. 2009, p. 549-564.
COSTA VAL, Maria da Graça. “Texto, textualidade e textualização”. In: CECCANTINI, J.L.
Tápias; PEREIRA, Rony F.; ZANCHETTA JR., Juvenal. Pedagogia Cidadã: cadernos de
formação: Língua Portuguesa. v. 1. São Paulo: UNESP, Pró-Reitoria de Graduação, 2004. p.
113-128. Disponível em: <https://pt.scribd.com/doc/143600620/COSTA-VAL-Maria-da-
Gra%C4%B1a-Texto-textualidade-textualiza%C4%B1%C4%B1o>. Acesso em: 17 jul. 2018.
DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle; SCHNEUWLY, Bernard. “Sequências didáticas para o
oral e a escrita: apresentação de um procedimento”. In: DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY,
Bernard (Orgs.). ID. Gêneros orais e escritos na escola. São Paulo: Mercado das Letras, 2004. p.
81-108.
VASCONCELOS; Mariana Tane Neves; MELO PEREIRA, Márcia Helena de. “Textualidade e
textualização em blogs: implicações para o processo de Ensino-aprendizagem de textos no
ensino médio”. 2020. 172f. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia, Programa de Pós-Graduação em Linguística – PPGLin, Vitória da Conquista, 2020.
XAVIER, Antonio Carlos dos Santos. “Hipertexto na sociedade da informação:” a constituição do
modo de enunciação digital. 2002. 214f. Tese (Doutorado em Linguística). Instituto de Estudos
da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002.

88
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

CINEMA NACIONAL, GÊNEROS DO DISCURSO E SALA DE AULA

Ivo DI CAMARGO Junior1


Neide Araújo Castilho TENO2
Maristela ZEVIANI3

Justificando este trabalho

Refletindo acerca da obra de René Magritte, Ceci


n´est pas une pipe (1928)4, Foucault (1998)
apresenta questões fundamentais sobre as artes.
Nestas reflexões, alerta-nos para a
representatividade artística, pois o posto diante
de nós não é o objeto, mas uma visão de alguém
sobre um elemento do mundo. Todavia,
entendendo desta forma, não devemos também cair num certo mecanicismo5,
porque apesar de a arte não ser a vida, elas caminham juntas; não num
sentido paralelo, não num sentido de que o artista sai do mundo para criar a
arte ou de que a arte nasce de uma inspiração. Caminhar junto significa, nos
termos de Bakhtin (2003, p. XXXIII) que Ciência, arte e vida só adquirem unidade
no indivíduo que os incorpora à sua própria unidade. Logo, o artista tem a
responsabilidade ou a culpa pela obra. Ainda segundo Bakhtin, temos:

E nada de citar a “inspiração” para justificar a irresponsabilidade. A


inspiração que ignora a vida e é ela mesma ignorada pela vida não é
inspiração, mas obsessão. O sentido correto e não falso de todas as questões
antigas, relativas à inter-relação de arte e vida, à arte pura, etc., é o seu
verdadeiro patos apenas no sentido de que arte e vida desejam facilitar
mutuamente a sua tarefa, eximir-se da sua responsabilidade, pois é mais

1
Pós-Doutorado em Formação de Professores (PPGFP-UEPB). Mestre e Doutor em Linguística (UFSCar).
Licenciado em Letras (UNESP/Assis), Filosofia (UFSJ) e Bacharel em História (UNESP/Franca). Desenvolve
pesquisas sobre Mikhail Bakhtin, cinema e outras mídias/linguagens e educação. E-mail: side_amaral
@hotmail.com
2
Docente Sênior do Programa de Mestrado Profissional em Letras–PROFLETRAS, e do Programa de Mestrado
Acadêmico em Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - UEMS/Dourados. /Campo Grande.
Coordenadora do projeto de Pesquisa “Memorias de Professores: diálogos sobre o letramento e o ensino da
língua portuguesa-EPATA II”. Colaboradora do projeto de pesquisa “Apoio à Qualificação Docente:
PROFLETRAS em Mato Grosso do Sul” financiado com recurso da FUNDECT. E-mail: cteno@uol.com.br.
3
Mestranda em Letras pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS, Unidade de Campo
Grande, Área de concentração: Estudos Linguísticos - Linha de Pesquisa: Linguística Aplicada. E-mail:
maristelazeviani@hotmai.com
4
Imagem disponível em <https://emmaroquier.com/index.php/2016/10/02/mon-avis-sur-lexposition-magritte-
la-trahison-des-images-au-centre-pompidou/>. Acesso em 18.jul.2020.
5
Chama-se mecânico ao todo se alguns de seus elementos estão unificados apenas no espaço e no tempo por uma relação
externa e não os penetra a unidade interna do sentido. (Bakhtin, 2003, p. XXXIII).

89
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

fácil criar sem responder pela vida e mais fácil viver sem contar com a arte
(2003, p. XXXIV).

No caso do Cinema, podemos dizer que ao criar o mundo estético (a obra


fílmica) o produtor de cinema parte de um mundo ético (a realidade, o
contexto sócio-histórico) e com ele mantém um dialogismo. No mesmo
âmbito, o interlocutor/público recebe o estético dentro de seu mundo ético,
produzindo sentidos. Ora, é com esse movimento circular entre vida e arte
que devemos assistir e pensar filmes como Cidade de Deus ou Carandiru, pois
eles não foram criados num momento de inspiração divina e tampouco não
tiveram nenhuma influência sobre a realidade. O público é responsável ou
culpado pelo que se produz no cinema. O Produtor fílmico é responsável ou
culpado pela conversa trivial do dia a dia. Ora, observemos: em 1992, uma
intervenção policial para conter uma rebelião no presídio do Carandiru, SP,
causa a morte de 111 detentos, criando (ou reforçando) um discurso forte
contra a polícia. Em 1999, o médico Dráuzio Varella, escreve o livro: Estação
Carandiru, baseado nas experiências dele, na ocasião em que trabalhou no
referido presídio. Em 2004, Hector Babenco lança o filme: Carandiru. O
mesmo fato gerou peças de teatro, minisséries para televisão, reportagens na
mídia e tantos outros discursos do cotidiano que se tornaria extenso de mais
para elencar. Mas, no principal, notamos que num acontecimento ético
tivemos uma ligação com o estético e isso também se fez ao inverso, depois
tornou a se repetir.
Quando pensamos em linguagem cinematográfica6, devemos,
necessariamente, considerar que esta se produz na relação de um Eu com um
Tu. A linguagem cinematográfica funciona como ponte entre locutor/
interlocutor e será determinada, antes de tudo, pela situação social mais
imediata. Sendo linguagem, o cinema sempre carrega a intenção de agir sobre
seu interlocutor, similar a uma espécie de jogo, no qual os parceiros que nele se
constituem agem, a cada jogada, um sobre o Outro (GERALDI, 2003, p. 27).
Baseado no objetivo de interferir nos julgamentos, opiniões e preferências do
interlocutor, que se fará uma determinada construção do mundo, recriando-
o sob certo pensamento, história de vida ou experiência de seu criador,
material com que elabora suas intenções sobre o público.

6
Na teoria bakhtiniana não há remissões ao cinema como linguagem, todavia não podemos negá-lo como tal,
pois o filme é composto por várias linguagens (a imagética, a fala das personagens, as músicas, etc.). Robert
Stam (1992) chama a atenção para a grande aplicabilidade das teorias de Bakhtin ao cinema, mas em seu livro
Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa, o autor prende-se, em geral, as discussões acerca da Carnavalização.
Por dizer, o cinema é linguagem, e se melhor quisermos clarificar, poderíamos dizer que O CINEMA É
LINGUAGENS.

90
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Infelizmente, apontamos que hoje as pesquisas acadêmicas e os projetos


oficiais estão bem distantes da realidade escolar. Os defensores do método
fônico culpam o construtivismo, base dos PCNs, pelos problemas de
alfabetização no Brasil. Em contrapartida, Ana Teberosky 7, em entrevista
concedida à Revista Nova Escola, em 2005, aponta que:
Para afirmar se a culpa é ou não de determinada maneira de ensinar,
seria necessário ter um estudo aprofundado das práticas pedagógicas dos
alfabetizadores em todo o país. Uma coisa é o que eles declaram fazer, outra
é o que eles executam de fato.
Sabemos que, com a multiplicação dos sistemas sígnicos, com seus
cruzamentos e códigos, conseqüência da evolução científica e tecnológica,
diferentes habilidades de linguagem passaram a ser exigidas, entre elas, a
atribuição de sentido a mensagens oriundas de múltiplas fontes de
linguagens. Na atualidade, conforme Brait,

Exige-se do profissional da linguagem, educador ou profissional voltado


de alguma maneira para o trabalho com os textos, uma atuação que,
utilizando seus conhecimentos teóricos sobre linguagem, leitura, produção
e recepção de textos, aponte, pelas relações estabelecidas pela
materialidade lingüística e a materialidade visual, a reiteração, a ampliação
ou o redimensionamento de sentidos (BRAIT, 2005, p. 17).

Apesar de os PCNs já existirem desde 1997, ainda encontramos nas


escolas cartilhas e sistemas apostilados recheados de práticas tradicionais.
Além disso, o professor ainda tem a postura de ser o único detentor do saber
na sala de aula, e o aluno mero ouvinte. O primeiro é aquele que transmite os
conhecimentos enquanto o segundo recebe e reproduz o que lhe foi
transmitido.
Os PCNs apontam a importância de o professor adotar uma nova
postura pedagógica, mas com diversos relatos acadêmicos que surgem
diariamente, consideramos que o que impera no cotidiano escolar é ainda a
pedagogia tradicional. Entendemos que dois elementos se aliam aos
problemas diretamente ligados à prática pedagógica: um por ordem da má
formação profissional do professor que, no dia a dia da sala de aula, trabalha
muitas vezes sem nenhuma base de fundamentação teórica; e outro pela
obrigação que têm de “cumprir” ordens dos órgãos administrativos
superiores, como por exemplo, utilizar um material apostilado.

7
Ana Teberosky é uma das pesquisadoras mais respeitadas quando o tema é alfabetização. Desenvolveu junto
com Emília Ferreiro o estudo que trouxe novos elementos para esclarecer o processo vivido pelo aluno que
está aprendendo a ler e a escrever, registrados no livro “Psicogênese da Língua Escrita”. Doutora em psicologia
e docente do Departamento de Psicologia Evolutiva e da Educação da Universidade de Barcelona.

91
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Com isso, observamos que muitos professores “ensinam” como


“aprenderam” e resistem diante das mudanças. Ou, pior ainda, aceitam
algumas imposições, sem questionar ou entender o jogo de políticas
educacionais existente entre a concepção embutida nos PCNs, no âmbito
nacional, e a concepção adotada por muitos municípios que, como sabemos,
nem sempre é a mesma.
Nossa forma de tentar abordar esse problema é observar a linguagem
considerando-a, a partir, de uma perspectiva tridimensional e dialética (cf.
FAIRCLOUGH, 2001) na medida em que as práticas sociais, as práticas
discursivas e as práticas textuais se inter-relacionam, e o indivíduo está,
acerca disso, participando e constituindo-se enquanto sujeito social da ação e
do discurso. Discurso que, por sua vez, vincula os jogos de poder e
ideologias, usos de formas variadas da linguagem oral e/ou escrita em
contextos específicos de atividade social. Atividade que se entrecruza com as
práticas discursivas e sociais. Enfim, práticas letradas que figuram o mundo
social em suas diferentes leituras e interpretações.
A hipótese que pretendemos construir a partir do mapeamento crítico é
a de que, ao contrário do que tem ocorrido historicamente, a
institucionalização do cinema brasileiro na sociedade não pode, e nem deve,
estar restrito apenas ao fator econômico relacionado com a pro- dução e a
comercialização de filmes. A nossa percepção é a de que tal restrição alimenta
o círculo vicioso “falência-retomada-falência” do cinema brasileiro,
impedindo o reconhecimento por parte do público do locus histórico desse
cinema a partir das linhas de continuidade existentes entre os gêneros, os
estilos e as narrativas de diferentes períodos. Nesse sentido, percebemos que
o debate em torno da questão da presença social do cinema brasileiro deve
ser abordado igualmente à luz de uma economia política, que leve em conta
a necessidade urgente de formação de platéias, como um movimento a ser
realizado de forma sistemática e intencional na escola.
No curso da existência centenária do cinema brasileiro, este acumulou
um capital simbólico extraordinariamente rico e pluralista de gêneros, estilos
e narrativas, estimulando, em decorrência, a produção de uma igualmente
rica e pluralista massa crítica, ambos fundamentais nos planos artístico e
teórico para a formação estético-cultural da sociedade brasileira. Sob esse
ponto de vista pode-se dizer que tanto a prática cinematográfica quanto a
teoria configuram uma taxionomia crítica consistente e nos levam ao
reconhecimento da materialidade histórica do cinema brasileiro.
Um argumento a ser apresentado diz respeito à necessidade de
ampliação do quadro conceitual que abriga os parâmetros curriculares da

92
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

área Arte, de modo a permitir a inclusão do cinema e dos diferentes meios de


expressão que se utilizam das linguagens audiovisuais como a TV, o vídeo e
o CDROM, ao lado das artes visuais, da música, do teatro e da dança. Embora
seja desnecessário lembrar que as limitações de espaço para expor
extensivamente a proposta impõe igualmente limites para a sua apreciação,
pensamos que seja importante comentar um aspecto que nos parece
anteceder a todas as demais questões conceituais pertinentes ao debate da
proposta, evidentemente que sem a menor pretensão de esgotá-lo.
Analisando a trajetória da relação entre o cinema e a educação desde a
iniciativa pioneira do Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE)8,
criado há mais de sessenta anos pelo antropólogo Edgar Roquette Pinto,
observamos que a inexistência de linhas de continuidade nos estudos do
assunto reforça a idéia de uma perspectiva histórica instável e sujeita a um
eterno recomeçar, o que nos obriga a refletir sobre as razões da resistência
que têm os educadores, em geral, para com o cinema na prática educativa.
O cinema brasileiro (e a arte brasileira) é portador de um capital
simbólico extraordinário, de um saber produzido na intensidade de um
trabalho ainda pouco conhecido e valorizado. Sequer existe um acervo
sistematizado de toda a sua produção centenária. Uma galeria formidável de
tipos e personagens criados por atores como Grande Othelo, Oscarito,
Mazzaropi, Zé Trindade, Zélia Hoffman, Zezé Macedo, dentre muitos outros,
vive apenas na memória de gerações passadas, elidindo a possibilidade de
novas gerações de atores e atrizes se espelharem, oferecendo às platéias de
hoje a idéia de um percurso. Nosso cinema, que hoje se espelha nas
produções norte-americanas, tampouco é utilizado para embasar o repertório
educacional de nossos estudantes. Obras primas como Limite, de Mário
Peixoto, filmada em 1929 e considerada em todo mundo como um dos dez
mais importantes filmes da história do cinema, são desconhecidas das
platéias brasileiras. As exuberantes filmografias de Humberto Mauro, de
Nelson Pereira dos Santos, de Júlio Bressane e mesmo as dos cineastas mais
citados pelos meios de comunicação, como Glauber Rocha, Cacá Diegues,
Ana Carolina e Arnaldo Jabor, jazem empilhadas precariamente em arquivos
empoeirados, em grande parte ao alcance apenas dos cinéfilos.
Ao atribuir exclusivamente à lógica do mercado a freqüência do público
ao cinema, a mentalidade política vigente, tal como procuramos mapear

8
Segundo nossas pesquisas, o INCE foi “o primeiro órgão oficial no Brasil especificamente planejado para o cinema,
possuindo uma função estritamente pedagógica [...]”, tendo como definição principal “[...] fornecer um programa geral
para a educação das massas que valorizasse, principalmente, os aspectos variados e desconhecidos da cultura brasileira”.
In RAMOS, Fernão. História do Cinema Brasileiro. São Paulo, Círculo do Livro, 1987, pp. 149-150.

93
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

resumidamente neste texto, exclui de forma deliberada a participação da


sociedade brasileira na construção do saber do cinema. De outra parte, ao não
perceber a sua importância para a formação de platéias, compreendendo-a
como parte de um embate contra-hegemônico, o educador certamente estará
contribuindo para essa exclusão. Reconhecer pois, que a nova realidade
histórica demanda conhecimentos calcados na episteme, significa dar o
primeiro passo em direção do saber do cinema.
Em sociedades audiovisuais como a nossa, o domínio dessa linguagem
é requisito fundamental para que possamos transitar em diferentes campos
sociais. A imagem em movimento tem relação com aquilo que somos, com
nossas identidades, o que nos remete a uma reflexão sobre a importância
desta linguagem (audiovisual). Valoriza-se muito, em nossa cultura, a
linguagem escrita e a importância de conhecermos uma série de obras
literárias, bem como seus autores; mas ignora-se a leitura de imagens e a
prática de ver e analisar filmes, prática que é de extrema relevância e
importância no nosso cotidiano. Essa questão da linguagem audiovisual tem
especial relevância para nós, professores e professoras, se pensarmos a
educação com um processo de socialização. Socializar então os alunos de
ensino médio e incluí-los nessa nova sociedade mais igualitária em direitos é
algo com que pretendemos contribuir para um inicio neste trabalho.
Olhar a linguagem dessa perspectiva é considerar a natureza social dos
gêneros discursivos, a implicação desse conceito na prática escolar e os
reflexos na realidade social. Dessa forma, propomo-nos a pensar os gêneros
discursivos com base num aparato teórico-metodológico, cujo ponto de
partida seja Bakhtin (1992), e nas releituras dessa teoria por outros teóricos
tais como Schneuwly (1994), Schneuwly & Dolz (1997), Bronckart (1999),
Brandão (2003), além de toda a contribuição da socio-lingüística
interacionista (Bortoni-Ricardo, 2005) A partir desse embasamento,
tentaremos fazer uma releitura, articulando as idéias, de modo, a buscar no
objeto de estudo/objeto de ensino sua complexificação9.

Objetivando um maior estudo


Faz-se necessário diagnosticar, intervir e colaborar com o modo de como
os professores de língua portuguesa do ensino médio (EM) articulam o
estudo da gramática, do texto e do gênero discursivo, da cultura brasileira e

9
Entendemos, aqui, “complexificação” no sentido de que os gêneros discursivos se tornam mais complexos a
partir do momento que se tornam instrumentos de ação da linguagem, i.e., os indivíduos apropriam-se da
linguagem e agem sobre a realidade social. Eles passam a utilizar o gênero como um instrumento de
construção nova, por meio de mecanismos textuais e discursivos que asseguram a autonomia do texto, seu
controle, sua avaliação e sua definição, conforme aponta Schneuwly (1994:6-7).

94
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

geral, tendo este último como eixo de articulação e de progressão curricular.


Elaborar uma seqüência didática com filmes nacionais visa uma melhor
compreensão, ao final, do signo não-verbal na obra de Bakhtin para o uso de
cinema na sala de aula.
Como se pode observar nos estudos da linguagem, muito se tem
discutido sobre as potencialidades em torno das novas tecnologias da
informação e comunicação e suas aplicações na educação, (em nossa proposta
mais especificamente para alunos do ensino médio). Nesse debate, discute-se
como a nova infra-estrutura da informação e da comunicação pode contribuir
para ampliar ou renovar os cânones tradicionais da produção do
conhecimento, levando-se em conta que os meios informáticos oferecem
acessos a múltiplas possibilidades de interação, mediação e expressão de
sentidos, propiciados tanto pelos fluxos de informação, pela diversidade de
discursos e pelos recursos disponíveis – textuais visuais e sonoros – como
pela flexibilidade de exploração.
Considerando esses fatores e pensando na realidade brasileira,
alertamos para o fato de que é preciso considerar que a presença das novas
tecnologias nos processos educativos – presenciais ou à distância – vem se
difundindo amplamente nos últimos anos, o que nos obriga (e obrigará cada
vez mais) a repensar as estratégias de formação do professor/leitor em
educação.
No contexto da mídia-educação, o cinema pode ser entendido a partir
de diversas dimensões (estéticas, cognitivas, sociais e psicológicas), inter-
relacionadas com o caráter instrumental ( educar com e para o cinema), e com
o caráter de objeto temático (educar sobre o cinema). Ou seja, a educação
pode abordar o cinema como instrumento, como objeto de conhecimento,
como meio de comunicação e como meio de expressão de pensamentos e
sentimentos.
Considerar o cinema como um meio de significa que a atividade de
contar histórias com imagens, sons e movimentos pode atuar no âmbito da
consciência do sujeito e no âmbito sócio-político-cultural, configurando-se
num formidável instrumento de intervenção, de pesquisa, de comunicação,
de educação e de fruição. No entanto, considerar o cinema como um meio de
não significa reduzir seu potencial de objeto sociocultural a uma ferramenta
didático-pedagógica destituída de significação social. A experiência estética
possui um importante papel na construção de significados que a obra
propicia e os diferentes modos de assistir aos filmes fazem com que estes
atuem diferentemente conforme o contexto.
Nessa relação cinema-educação, texto e contextos se entrecruzam e o

95
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

texto fílmico será um “dispositivo que opera a partir de uma rede de saberes sociais”
(EUGENI, 1999, p. 7). Tais saberes podem ser entendidos de duas formas: um
saber-objeto, que diz respeito aos conhecimentos, e um saber-instrumento,
que diz respeito às competências. Eugeni distingue ainda quatro áreas de
saberes sociais: 1- saber histórico (conhecimento da história e da dimensão
coletiva do agir em dado momento histórico); 2- saber privado (conhecimentos
e competências para agir na dimensão cotidiana da existência); 3- saber textual
e intertextual (competências e conhecimentos derivados de textos de vários
gêneros: livros, revistas, rádio, cinema, televisão); 4- saber metatextual
(conhecimentos e competências que orientam a relação do sujeito com os
textos: cânones, rituais de fruição, competências tecnológicas específicas
necessárias ao consumo, postura interpretativa e crítica, etc.). E é nesta rede
de saberes que o cinema como instrumento e objeto da ação pedagógica pode
atuar na construção da experiência da significação.
Diversos autores argumentam em favor da inserção do cinema no ensino
e inúmeras experiências em diferentes contextos sócio-culturais - que
veremos mais adiante - demonstram a importância da relação cinema-
educação. Alain Bergala defende a presença da arte na educa- ção
enfatizando que a escola deve ser um lugar de encontro com o cinema como
arte, pois entende o filme como “traços de um gesto de criação” (2002, p. 22). Ele
argumenta que os filmes-arte possibilitam um confronto do aluno com uma
forma de alteridade, a qual ele não teria acesso noutro espaço. A escola deve
ser alternativa a isso, expondo estas produções, o que as leis do mercado
tornam cada vez mais difíceis de acontecer. Nessa perspectiva, sua “hipótese
cinema” envolve uma relação entre a abordagem crítica, a “leitura” de filmes
e a passagem à ação-realização. Para Vitor Reia-Batista, o estudo da dimensão
pedagógica dos fenômenos fílmicos e cinematográficos significa a aquisição
de conhecimentos e de reflexão crítica sobre uma face da nossa história
cultural recente, desde que “a humanidade tem deixado as suas mar- cas
narrativas e multiculturais em imagens e sons interligados de formas várias”
(1995, p. 1). Para ele, essa perspectiva enquadra-se na inclusão dos estudos
de mídia, necessários para a formação integral do cidadão nas sociedades
modernas, cujo fenômeno comunicativo global assume a cada dia maior
importância. Por sua vez, diante da pergunta “Por que fazer educação
cinematográfica na escola?”, Rivoltella responde que é porque o cinema é
cruzamento de práticas sociais diversas, porque é um instrumento de difusão
do patrimônio cultural da humanidade e porque é documento de estudo da
história (2005).
Ao lado da televisão e dos novos meios, o cinema também é um dos

96
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

elementos do ambiente simbólico das novas gerações. “À luz das novas teorias
interacionistas, o cinema e os meios em geral constituem campos de interação
simbólica, em que os sujeitos constroem e compartilham significados”
(Rivoltella, 2005, p. 75). E como discutimos no capítulo anterior, além de ser
elemento de um ambiente simbólico e envolver uma atividade cognitiva, o
cinema é, sobretudo, emoção e importante lugar de investimento psicológico,
como destaca o autor. Por ser um instrumento que difunde costumes e formas
de vida de diversos gru- pos sociais, o cinema difunde o patrimônio cultural
da humanidade. O autor cita Scaglioso para dizer que a realidade cultural,
vista no tempo e no espaço, é constituída de idéias, princípios, obras e
realizações que formam o patrimônio de toda a humanidade, e que os filmes
se colo- cam ao lado de outros produtos da ciência, da arte e da literatura. Por
isso, além da possibilidade de compartilhar significados sociais, na medida
em que os filmes contribuem para transmitir a cultura, isso já os configura
como fato cultural por si mesmo.
Embora o estudante possa “espontaneamente”, fazer da vivência de
assistir filmes uma experiência de fruição, participação estética e significação,
por que não ampliar tais possibilidades no sentido da produção de textos e
sentidos? Assim, a mediação educativa estaria cumprindo os objetivos e
pressupostos da mídia-educação, fazendo educação com os meios (usando o
cinema e os filmes em contextos de fruição), sobre os meios (leitura crítica
através da análise cinematográfica) e através dos meios (produzindo
audiovisual, fotografia, roteiros). Para tal, é preciso pensar em um trabalho
com cinema na escola que envolva tais momentos de saber, fazer e refletir, a
partir de uma concepção integrada. Tal concepção de mídia-educação
implica a relação do cinema com outras linguagens (como artes plásticas,
teatro, música e literatura) e tecnologias. Ou seja, pensar uma possibilidade
de intervenção pedagógica que envolva a fruição dos filmes, seu uso
instrumental como forma de conhecimento, leituras e análises diversas, bem
como a possibilidade de produção material.

Construindo a teoria com referências

Pensar no ensino de Português enquanto práticas de linguagem que


possibilitam aos indivíduos a participação efetiva em práticas letradas
socialmente valorizadas faz parte de um processo analítico bastante
complexo, e que demanda por parte do pesquisador um olhar minu- cioso
sobre os processos de interação social e sobre os elementos que englobam a
apropriação dos gêneros discursivos secundários que Bakhtin (1992), em sua

97
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

célebre obra “Estética da Criação Verbal”, considera mais complexos de


elaboração.
Devemos primeiro, considerar que a sociedade brasileira caracterizou-
se pelo crescente e tardio processo de urbanização, se comparada à sociedade
européia. Essas mudanças tiveram efeitos significativos na estrutura social
brasileira, bem como atingiram de forma expressiva o sistema educacional
formal. Com o fluxo contínuo da população rural para a cidade no início do
século XX, conforme aponta Bortoni-Ricardo (2005), a escola teve que
trabalhar no sentido de receber a população advinda da zona rural e
proporcionar-lhes meios e condições sociais para atingir, de forma
significativa, o seu aprendizado, nos moldes do ensino formal; uma vez que
a metodologia de ensino, o livro didático entre outros aspectos do ensino
eram elaborados com base no perfil sócio-cultural dos alunos da classe média
urbana.
Partindo do pressuposto de que os gêneros discursivos devem ser
trabalhados em suas condições sociais de produção, circulação e recepção no
ambiente escolar, e fazendo uso da linguagem verbal para esta interação,
como atesta Geraldi (2007), os gêneros discursivos desenvolvem-se e
constituem o sujeito, são intimamente ligados a práticas sociais, o que
propicia ao sujeito condição suficiente para, apropriando-se da linguagem e
da realidade social, expressar-se, produzir textos, compreendê-los; enfim,
interagir comunicativamente.
O que nos levou a buscar explicações terminológicas a respeito desses
dois termos pode-se dizer que é, na mesma medida, o que impulsionou o
desejo de buscar a diferenciação entre texto/discurso. É notável que exista
uma diferença conceitual entre eles, como afirma Adam (apud ROJO, 2005,
p. 189)

deve-se ter o cuidado de não confundir texto e discurso [...] pode-se dizer
que o texto é uma entidade concreta, realizada materialmente e
corporificada em algum gênero textual. Discurso é aquilo que um texto
produz ao se manifestar em alguma instância discursiva. Assim, o discurso
se realiza nos textos.

Rojo enfatiza que os conceitos texto/discurso, bem como os de gêneros


discursivos/gêneros textuais são bastante variáveis considerando as
vertentes teórico-metodológicas que existem no campo da Lingüística e, que,
por sua vez, são influenciadas por outras áreas das Ciências Humanas (e.g.
Psicologia, Filosofia, Antropologia, Sociologia, etc.). É necessário um olhar
crítico e fundamentado numa corrente teórica que dê conta de todos os

98
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

aspectos que englobam o trabalho com os gêneros. Para isso, a autora


exemplifica, mostrando que o conceito de gêneros discursivos teve como
ponto de partida os estudos de Bakhtin e seu círculo, além de releituras de
estudiosos/comentadores como Holquist, Silvestre e Blank, Brait, Faraco,
Tezza, Castro etc.; e, o conceito de gêneros textuais é muito discutido por
Bronckart, Adam e, no Brasil, pelo lingüista Marcuschi.
Nesse sentido, para Rojo (2005, p. 185) os gêneros discursivos e os
gêneros textuais são vertentes “metateoricamente diferentes”, ou seja,

Ambas as vertentes se encontram enraizadas em diferentes releituras da


herança bakhtiniana, sendo que a primeira – teoria dos gêneros do discurso
– centra-se, sobretudo no estudo das situações de produção dos enunciados
ou textos e em seus aspectos sócio-históricos e a segunda – teoria dos
gêneros do texto – na descrição da materialidade textual.

Assim, ao assumir uma postura teórica ou outra, estamos enveredando


para o campo conceitual, no qual o teórico que norteará a nossa reflexão será
o foco principal. Em nosso caso, estamos privilegiando o conceito de gêneros
discursivos proposto por Bakhtin. No entanto, lançaremos nosso olhar,
quando necessário, para os outros conceitos desenvolvidos a partir da
reflexão bakhtiniana dos gêneros discursivos.
Nesse sentido, Bakhtin (1992) afirma que os gêneros discursivos podem
ser entendidos como uma forma característica de enunciação em que a
palavra acaba por assumir uma expressão única e especifica. Estão ligados a
situações características de comunicação verbal, nas quais há uma profunda
relação entre o significado das palavras e a realidade, o momento em que são
empregadas, ou seja, o momento sócio-histórico de sua produção.
Notamos, ainda, que a utilização dos gêneros discursivos como artefato
cultural e lingüístico numa dada situação de vida de uma comunidade
lingüística, i.e., a produção, circulação e a recepção desse gênero, vai
significar a construção de novos sentidos, para o sujeito, no contexto
comunicativo, bem como na apropriação da realidade social e na sua ação
sobre ela.
Na concepção bakhtiniana de gêneros discursivos, podemos perceber
três aspectos principais: 1) em cada esfera de atividade temos enunciados
relativamente estáveis; 2) três elementos constituem os gêneros discursivos:
conteúdo temático, estilo e construção composicional; e, 3) a escolha do
gênero vai ser condicionada às necessidades de comunicação, levando-se em
conta o contexto situacional, os interlocutores e a intenção do locutor.
Portanto, para Bakhtin (ibidem, p. 301):

99
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

O querer-dizer do locutor se realiza de tudo na escolha de um gênero


discursivo. Essa escolha é determinada em função da especificidade de
uma dada esfera de comunicação verbal, das necessidades de uma temática
(do objeto de sentido), do conjunto dos parceiros etc. [...] Para falar,
utilizamo-nos sempre dos gêneros discursivos, em outras palavras, todos
os nossos enunciados dispõem de uma forma padrão e relativamente
estável de estruturação de um todo.

Desse modo, podemos constatar que é na relativa estabilidade do gênero


discursivo que se possibilita a compreensão e produção discursiva entre os
usuários, bem como em suas próprias características de ser uma atividade
humana, verbal e dialógica construída pelos sujeitos segundo a perspectiva
de ações historicamente situadas, ou conforme Bronckart (1999, p. 137)
argumenta que
na escala sócio-histórica, os textos são produtos das atividades de
linguagem em funcionamento permanentes nas formações sociais: em
função de seus objetivos, interesses e questões específicas, essas formações
elaboram diferentes espécies de textos.

Nessa linha de reflexão, entendemos a linguagem enquanto atividade,


que ocorre em contextos de usos, nas práticas discursivas dos locutores.
Estes, por sua vez, usam a linguagem como um instrumento mediador do
todo social, ou seja, por meio dos usos e práticas sociais significativas, o
indivíduo apropria-se e internaliza ações específicas, possibilitando “o agir
comunicativo” (segundo Habermas apud BRONCKART, ibidem, p. 30),
transformando não só a realidade social, com também a constituição de sua
identidade e sua representatividade, no processo de apropriação das
propriedades da atividade social. Em outras palavras, Bronckart (ibidem, p.
44) esclarece-nos que:
Os seres humanos particulares se apropriam das capacidades de ação, dos
papéis sociais e de uma imagem de si, isto é, das representações de si mes-
mos como agentes responsáveis por sua ação. É essa auto-representação
do estatuto de agente, associada ao conhecimento das características dos
próprios comportamentos, assim como ao dos efeitos desses
comportamentos sobre o meio, que delimita a ação em seu estatuto
secundário ou interno: o de um conhecimento, disponível no organismo
ativo, das diversas facetas de sua própria responsabilidade no
desenvolvimento de partes da atividade social.

Como construir? Não há respostas. Pensamentos sim

Mudanças multivariadas sempre surgem no presente e passam por

100
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

todas as esferas da nossa atividade. Essas mudanças se dão desde os


acontecimentos naturais do meio ambiente e da nossa sobrevivência nele até
grandes variações resultantes das produções do intelecto humano ou da
tecnologia ou sistemas axiológicos. Isso se dá de maneira diversa, ocorrendo
até por meio das interações instituídas. Machado (2002) apontava algumas
características relativas à comunicação humana que surgem muito nesse
período da humanidade no qual estamos inseridos.

As imagens e os sons eletrônicos apresentam-se hoje na paisagem urbana


de uma forma múltipla, variável, instável, complexa e ocorrem numa
variedade infinita de manifestações, invadindo todos os setores da
produção cultural e comprometendo todas as especificidades. A eletrônica
está presente, nas ruas, vitrines, estádios, outdoor, instalações multimídias,
ambientes, performances, intervenções urbanas, até mesmo em peças de
teatro, salas de concerto, shows musicais e cultos religiosos. [...] A tela
eletrônica representa hoje o local de convergência dos saberes e
sensibilidades emergentes que perfazem o atual panorama da cultura.
(MACHADO, 2002, p. 10).

Em relação a esse discurso de que novas tecnologias, em especial a


internet, são inovações majoritátias que trazem em si inúmeras
possibilidades de práticas inovadoras e reinvenção, pesquisas como as de
Paulino (1995) afirmam que em um país ainda desigual como o nosso, apenas
uma minoria populacional pode ter acesso a tecnologias mais avançadas e
maior acesso à informação e às fontes do saber. Isso se evidenciou com a
pandemia da Covid-19, que demonstrou que as escolas brasileiras ainda não
estão preparadas para grandes inovações e que a desigualdade ainda é
gritante. Muitas escolas brasileiras ainda carecem de livros didáticos, por
exemplo.
O papel do professor é atuar, nessa nova realidade, como um
desbravador de novas formas de ensinar. O docente tem que ir além das
fronteiras instituídas, fazendo reflexão produnda sobre as imagens, tudo a
partir da noção axiológica analisada. Nosso olhar parte para a inclusão dos
elementos de imagem na sala de aula em um viés bakhtiniano, com o objetivo
de que professores e alunos possam desenvolver a prática da
hipertextualidade na sala de aula, sabendo dar coerência ao cinema como
instrumento educacional. Paulo Freire (1996), já afirmava que o educador
devia desafiar o seu aluno de modo a comunicar-se com ele, produzindo
assim uma compreensão ampliada. Assim, nosso olhar não é só o de inserir
imagens na sala de aula e sim ampliar o olhar de todos os envolvidos no
processo, buscando educação hipertextual e multimodal, que traga em si a

101
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

interatividade, práticas da heterogeneidade e relações dialógicas verdadeiras


entre professor, o cinema e o aluno, na busca do entendimento oferecido por
Bakhtin. A produção de significação é o objetivo nessa sala de aula. O cinema
tem que fazer sentido para a proposta do professor e o entendimento do
aluno, gerando diálogo entre ambos, onde o aprendizado não será educação
bancária e sim onde todos aprendem dialogicamente uns com os outros.

O que esperamos; e finalizamos

Neste trabalho esperamos levar o leitor a compreender as seguintes


contribuições que nos deixariam entusiasmados quanto ao trabalho
lingüístico, educacional e social que almejamos:

1. Situar o cinema como ferramenta e estratégia educacional no ensino de


Língua Portuguesa.
2. Inserir no ensino de Língua Portuguesa a busca pelo conhecimento e
compreensão da cultura brasileira, que virá através da utilização de
filmes nacionais no currículo da disciplina.
3. Ampliar as discussões acerca dos gêneros do discurso presentes nos
PCN’s e a realidade existente nas salas de aula, quanto a utilização
destes como estratégia educacional.
4. Abordar e contextualizar os signos não-verbais presentes na
linguagem cinematográfica com os estudos de Mikhail Bakhtin e o
signo não-verbal, visto que muito pouco deste aspecto foi estudado em
sua obra.
5. Elaborarmos uma forma didática por meio dos gêneros discursivos,
para articular e estimular a progressão curricular do ensino de
linguagem cinematográfica, como estratégia educacional de Língua
Portuguesa e, assim, implantar uma teoria de “vozes bakhtinianas” no
ensino médio.
6. Enfim, situar o cinema como parte integrante do ensino de Língua
Portuguesa, como linguagem multidisciplinar e interacional,
renovadora de gêneros, a partir de proposta de Mikhail Bakhtin
contida para os estudos lingüísticos e literários.
Ainda esperamos responder, também, com essa pesquisa da linguagem
cinematográfica em sala de aula, sobre o processo de constituição da
produção escrita desses sujeitos, a partir da compreensão dos seus cotidianos,
dentro e fora da esfera escolar. Isto se firmou como mais um objetivo desta
proposta por meio das seguintes perguntas:

102
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

1. Como se dá o encontro entre as atividades que o sujeito participa nos


enunciados escritos que produz (nesse caso a analise escrita dos filmes
assistidos)?
2. Por que os enunciados produzidos na esfera escolar tem de ser
considerados escolarizados, uma vez que a escola também faz parte do
cotidiano do sujeito?
3. Como pensar em um conceito de letramento que considere a relação
de heterogeneidade dos gêneros (a relação intergenérica) da
enunciação?
Essas perguntas podem orientar a constituição de dois corpora de
análise, compostos por produções escritas: Um resultante de diversas
atividades (questionários, narrativas, dissertações, relatos sobre os filmes
assistidos) e outro produzido por cada sujeito da pesquisa, principalmente
dentro da esfera escolar. Desta forma esperamos contribuir para, além de um
melhor entendimento do cinema como estratégia e pratica educacional,
também inserir nossos alunos de ensino médio numa melhor
contextualização de cultura brasileira, Língua Portuguesa e conhecimento de
mundo em geral, que virão a partir dessa sua inserção no estudo da
linguagem cinematográfica para o estudo de língua e linguagens.

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104
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

EDUCAÇÃO DO OLHAR
A linguagem cinematográfica em sala de aula

João Vítor Zanato de Carvalho RIBEIRO1

A ampliação das referências e o diálogo intergeracional em sala de aula

Em pesquisa para conclusão da graduação em Licenciatura em Artes


Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,
investigamos e defendemos uma educação entendida como um inevitável e
essencial diálogo intergeracional, abrindo os olhos para o que nos foi legado
até aqui (RIBEIRO, 2020). Dessa forma, tendo em vista a contemporaneidade,
interessa-nos sustentar dissonâncias em relação aos tão repetidos mantras do
descarte e do apagamento, características intrínsecas à modernidade líquida –
evocando, assim, o conceito do sociólogo Zygmunt Bauman. Em nossa
sociedade contemporânea, o fato de se assumir qualquer compromisso de
longo prazo é algo considerado completamente ultrapassado, algo velho,
tendo que ser, portanto, descartado. Bauman, em entrevista à Alba
Porcheddu, destaca essa característica do mundo líquido moderno:

No mundo líquido moderno, de fato, a solidez das coisas, tanto quanto a


solidez das relações humanas, vem sendo interpretada como uma ameaça:
qualquer juramento de fidelidade, compromissos a longo prazo,
prenunciam um futuro sobrecarregado de vínculos que limitam a
liberdade de movimento e reduzem a capacidade de agarrar no voo as
novas e ainda desconhecidas oportunidades. A perspectiva de assumir
uma coisa pelo resto da vida é absolutamente repugnante e assustadora. E
dado que inclusive as coisas mais desejadas envelhecem rapidamente, não
é de espantar se elas logo perdem o brilho e se transformam, em pouco
tempo, de distintivo de honra em marca de vergonha. (PORCHEDDU,
2009, p. 662)

As coisas, desse modo, perdem o brilho de forma muito acelerada.


Numa lógica consumidora, tornam-se obsoletas, inúteis e descartáveis.
Bauman reitera: “A capacidade de durar bastante não é mais uma qualidade
a favor das coisas. Presume-se que as coisas e as relações são úteis apenas por
um ‘tempo fixo’ e são reduzidas a farrapos ou eliminadas uma vez que se
tornam inúteis.” (PORCHEDDU, 2009, p. 663). Com o tempo frenético do
consumo e do descarte, as coisas possuem um “tempo fixo” e curto de

1
Mestrando em Educação pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP).
Licenciado em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).
E-mail: jvzanato@gmail.com.

105
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

duração num mundo completamente imerso na ideologia neoliberal – e quem


acredita estar fora dela está apenas embebido de uma mera ilusão. A
educação, como não poderia deixar de ser, acaba por encharcar-se dos
mantras neoliberais do presente, sendo o aspecto da autogestão discente um
dos maiores efeitos desse processo. Segundo Aquino, a tônica discursiva
acerca das práticas escolares contemporâneas pode ser resumida da seguinte
forma:
[...] a cruzada contra a escola tradicional versus a defesa, em uníssono, dos
benefícios de uma educação mais aberta, mais genuína, mais responsável,
mais engajadora dos alunos etc. Ou seja, demonização da forma escolar
convencional, de um lado, e santificação de projetos baseados na tríade
autonomia/liberdade/afetividade, de outro. (AQUINO, 2019a, p. 153).

Nas práticas que apregoam uma educação que flerta com o modelo
empresarial, professor e aluno relacionam-se por solavancos, de forma que a
relação pedagógica passa a se tornar um atendimento de demandas dos
consumidores. Muitos dos discursos que proliferam nos debates acerca da
função escolar possuem gana utilitarista, exigindo da escola não só uma
relação de “conexão imediata com as urgências do presente, mas de uma
antecipação profilática a elas.” (AQUINO, 2019a, p. 150). Em meio à exaltação
das demandas do presente, o diálogo intergeracional entre professor e aluno
arrasta-se penosamente, num trote capenga e, cada vez mais, atordoado. Em
meio às vociferações dos ideais e reivindicações mais nobres da luta política,
faz-se necessário refletir sobre a postura do professor na relação pedagógica
que esse leva a cabo com seus alunos. Algo surge, portanto, com fundamental
importância nessa relação entre docentes e discentes: a ampliação das
referências artístico-culturais daqueles que chegam aos montes às salas de
aula.
Os alunos que chegam a nossas escolas, como não se poderia deixar de
esperar dos mesmos, vêm embebidos, cada vez mais, dos discursos em voga
no presente, especialmente dos que tangem a defesa de uma educação
autogerida pelos próprios estudantes. O foco na aprendizagem toma conta
dos discursos discentes e docentes, em diferentes instituições e em diferentes
cidades. Tendo em vista a satisfação momentânea das necessidades do
alunado, as práticas docentes, em muitas das vezes, acabam por deixar de
lado a relação com o legado cultural. O exercício da prática docente tendo em
vista a ampliação das referências artístico-culturais dos alunos é o que pode
romper com essa verbalização constante sobre os meandros do presente.
Dessa forma, o gesto docente de pensar a aula como um terreno fértil para
promover o contato dos estudantes com o legado do mundo torna-se um

106
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

gesto cuja mirada é proteger contra o esquecimento – trazendo à tona, aqui, os


pensamentos da personagem Halla, da obra A desumanização, do escritor
português Valter Hugo Mãe (2017). A interlocução em sala de aula, nessa
perspectiva, acaba por ser “pautada, portanto, não por aquilo de que os mais
novos já dispõem, mas pelo que estão sempre prestes a alcançar” (AQUINO,
2019a, p. 163). É essa espécie de interlocução, calcada no que é desconhecido
pelos estudantes, que deve ser sustentada na relação professor-aluno.
Defendemos uma ampliação de referências que resida no contato com o
grande legado humano, com obras de diferentes materialidades.

Um processo de educação do olhar

Acreditamos que a educação seja um intenso processo de educação do


olhar. Grace e Janice Thiel (2009, p. 12) defendem: “Ensinar a olhar, ver,
contemplar e perscrutar o mundo à nossa volta faz parte da tarefa do
educador.”. É de extrema importância que se lide com a metáfora, com o
trabalho aguçado do olhar, com a ressignificação do cotidiano, visto que
vivemos situações atuais, especialmente no Brasil, em que a monossemia se
alastra, capando qualquer possibilidade de lampejo artístico e metafórico. Os
perigos decorrentes dos discursos dominantes conservadores, reacionários e
moralistas, que apresentam visões unívocas e um tanto distorcidas da
realidade, só crescem em nosso país, principalmente após a eleição de Jair
Bolsonaro para a presidência da República em 2018. Faz-se necessário, então,
que se lance um novo olhar para a realidade, enxergando a partir de uma
ótica diferente da usual. Marcelo Soler (2013, p. 91) afirma:

[...] o exercício do novo olhar para a realidade, buscando as metáforas nela


presentes, procura fazer que as pessoas, objetos, espaços e palavras sejam
vistos sob uma ótica diferente da usual, libertando-as da prisão da
monossemia e devolvendo a elas novos significados e sentidos de existir.

Esse trabalho com o olhar se expande para a vida como um todo,


possibilitando alterações na vida cotidiana dos indivíduos e a vivência de
uma relação outra com o mundo que os cerca. Esse processo de educação do
olhar, portanto, não se restringe a um único sentido: a visão. Ao trazer a
postulação “olhar”, há um verdadeiro espraiamento para todos os sentidos,
chegando ao posicionamento do sujeito sobre algo. É nesse ponto, mais uma
vez, que nos identificamos com Soler:

[...] um olhar com olhos, ouvidos, pele e narinas, para a realidade, tentando
perceber nela dados que em si são metáforas para entendê-la de maneira
mais ampla. No contexto, o termo olhar se associa ao posicionamento do

107
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

sujeito sobre algo, a visão que extrapola os domínios do próprio olho. As


coisas não são, é justamente nosso olhar que faz delas algo cheio de
significado. (SOLER, 2008, p. 37)

Tendo em vista, portanto, a efetivação de um processo de educação do


olhar dentro das escolas brasileiras, faz-se necessário que o professor se
engaje em tal empreitada. Grace e Janice Thiel fazem apontamentos profícuos
para levarmos a cabo tal processo no contexto da sala de aula:

Assim, cabe questionarmos como vemos e lemos o mundo e suas


representações e como podemos compreender os inúmeros textos, em
forma de palavras, sons e imagens que nos cercam. Essas questões fazem
parte da prática educativa contemporânea, pois a leitura e a compreensão
de diferentes linguagens, expressas em variados suportes, constituem
formas de letramento. (THIEL; THIEL, 2009, p. 12)

Assim, o contato apurado com diferentes linguagens torna-se


indispensável. O professor, como adulto da relação, tem uma
responsabilidade tanto com seu aluno como com o próprio mundo. Afinal,
querendo ou não, o docente é representante do legado do mundo. Cabe a ele,
portanto, possibilitar aos alunos a experiência de pasmo frente ao
desconhecido que é o legado cultural.

A linguagem cinematográfica na sala de aula

Gostaríamos de eleger, aqui, a linguagem cinematográfica como


parceira de diálogo e importante componente na educação do olhar dos
alunos. A escolha pelo cinema pode ser justificada pela presença, já
incorporada na vida cotidiana dos estudantes, do hábito cultural de assistir a
diferentes filmes, como, também, pela necessidade de que o contato com a
linguagem cinematográfica não resida apenas na esfera do entretenimento,
mas necessariamente na esfera da fruição estética e da análise interpretativa.

Entre os diversos gêneros textuais a serem explorados em sala de aula,


merece atenção o filme (e sua linguagem característica), visto que, embora
esteja incorporado à vida cotidiana e às referências culturais da atualidade,
é ainda uma terra incógnita para grande parte dos espectadores, pelo fato
de que seus mecanismos e as estratégias apropriadas à sua leitura ainda
são pouco conhecidos por parte da maioria dos espectadores. Nesse
sentido, o professor pode explorar tais mecanismos e estratégias, para que
os filmes não sejam somente apreciados como entretenimento, mas
também como objeto de leitura no contexto educacional. (THIEL; THIEL,
2009, p. 12)

108
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Pode-se compreender o trabalho com o cinema no contexto educacional


escolar como uma forma de entender a escola como participante ativa da
cultura (ALMEIDA apud NAPOLITANO, 2015, p. 12), já que, como indica
Napolitano (2015, p. 11-12), “Trabalhar com o cinema em sala de aula é ajudar
a escola a reencontrar a cultura ao mesmo tempo cotidiana e elevada, pois o
cinema é o campo no qual a estética, o lazer, a ideologia e os valores sociais
mais amplos são sintetizados numa mesma obra de arte.”. A partir dos
apontamentos feitos por Carlos Brefore (2020), podemos indicar que há dois
caminhos de trabalho com o cinema em sala de aula. O trabalho a ser
realizado pelo professor com seus alunos pode estar direcionado à questão
temática da obra – a partir da reflexão e da discussão de questões sociais,
políticas, ideológicas etc. presentes no enredo do filme – ou à questão estética
– a partir da análise do filme como objeto estético, levando em conta os
aspectos estilísticos e formais da produção audiovisual.
Acreditamos que o trabalho a ser desenvolvido em sala de aula deve
mirar também as questões estéticas, elegendo o cinema como um objeto
estético a ser investigado, e não relegando o trabalho apenas à análise das
questões temáticas do enredo apresentado pela narrativa fílmica. Como bem
apontam Grace e Janice Thiel (2009, p. 12), o objeto fílmico é “constituído de
uma variedade de signos que são percebidos, vistos e ouvidos, mas nem
sempre conhecidos suficientemente para que, a partir da conjugação desses
elementos, os sentidos sejam construídos.”. A compreensão da obra fílmica
em sua totalidade envolve, portanto, um olhar aguçado para a linguagem
cinematográfica. As questões temáticas (pertencentes ao enredo do filme) são
importantes, mas elas não são completas sem os diferentes sistemas de signos
que se articulam para produzir o todo final que representa o filme. Faz-se
necessário, então, que o professor desperte, nos alunos, o desejo de análise,
para que o contato com o cinema supere o mero entretenimento. Para haver
análise, é preciso que os alunos sejam espectadores atentos, observando
diferentes aspectos da obra fílmica. É o que Di Camargo Junior (2020, p. 32)
defende:

[...] a significação dos filmes precisaria ser recebida com uma atenção
especial por parte dos espectadores para que possam compreender o
funcionamento linguístico das narrativas explicitadas, pois, conforme
Turner (1997), compreender um filme mobiliza uma gama de sentidos no
âmbito da cultura. A complexidade que poderia ser percebida na projeção
de um filme não seria compreendida e decifrada de modo simples com um
foco parcial em uma linguagem atuante. Então, a apreciação amplificada
de todos os elementos utilizados para a construção da linguagem

109
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

cinematográfica seria basilar para o entendimento e fruição total das


significações obtidas.

A possibilidade que a análise de obras artísticas suscita aos alunos é a


do encontro com a própria vida, não mais atravessada apenas pelo cotidiano
– presente imediato –, mas também pelas elucubrações provenientes do
legado cultural humano. Como afirma Flávio Desgranges, formar
espectadores é provocar, também, a descoberta do prazer da análise:

A arte lança o contemplador ao encontro da vida, sempre de maneira


surpreendente, inesperada. A compreensão da obra passa pelo necessário
diálogo com a experiência cotidiana; essa elaboração reflexiva não se
processa, contudo, sem esforço. Descobrir o prazer dessa análise é
aprender a ser espectador, a tornar-se autor de histórias, fazedor de
cultura. Um prazer que, como experiência pessoal, única e intransferível,
pode ser aprendido, mas não ensinado. Assim, formar espectadores
consiste em provocar a descoberta do prazer artístico mediante o prazer da
análise. (DESGRANGES, 2015, p. 173)

Não podemos nos esquecer de que a apreciação de filmes constitui um


momento importante de formação estética, artística e subjetiva dos alunos no
contexto educacional. Um trabalho sistemático com filmes em sala de aula
exige que o professor leve seus alunos a saírem da relação do “gostei” ou
“não gostei” com a obra fílmica. “Nesse sentido, o professor atua como um
mediador da leitura do filme em sala de aula”, sendo necessário que dialogue
“com os alunos sobre alguns elementos básicos do texto fílmico, propondo
atividades variadas para que os alunos compreendam a obra como
significativa.” (THIEL; THIEL, 2009, p. 13). Cabe destacarmos, ainda, que o
trabalho com a linguagem cinematográfica, no contexto educacional, atua no
desenvolvimento de competências e habilidades diversas. Como indica
Napolitano (2015, p. 18-19):

[...] o trabalho sistemático e articulado com filmes em salas de aula (e


projetos escolares relacionados) ajuda a desenvolver competências e
habilidades diversas, tais como leitura e elaboração de textos; aprimoram
a capacidade narrativa e descritiva; decodificam signos e códigos não
verbais; aperfeiçoam a criatividade artística e intelectual; desenvolvem a
capacidade de crítica sociocultural e político-ideológica, sobretudo em
torno dos tópicos mídia e indústria cultural. Mais especificamente, o aluno
pode exercitar a habilidade de aprimorar seu olhar sobre uma das
atividades culturais mais importantes do mundo contemporâneo, o
cinema, e, consequentemente, tornar-se um consumidor de cultura mais
crítico e exigente.

110
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Cinema e educação: jogo de olhares

A relação do aluno-espectador com o objeto fílmico envolve um intenso


jogo de olhares, seja porque o filme mobiliza diferentes olhares daqueles que
o veem (espectadores), seja porque oferece o encontro com diferentes visões
sobre o mundo e sobre a condição humana, visões essas apresentadas por
aqueles que produzem a obra cinematográfica. Vale lembrar que o
espectador não é, nunca, um receptor passivo. Como bem formulam Grace e
Janice Thiel (2009, p. 15), “o espectador lê e constrói os sentidos com base em
vários contextos e a eles reage por meio de funções psíquicas de intelecção,
cognição, memória e desejo, ou por meio de transformações de atitudes
individuais ou coletivas.”.
Se não podemos nos esquecer do contexto de produção do filme,
tampouco se apresenta a nós como possível o ato de ignorar os possíveis
contextos de recepção do mesmo. Como bem defende Di Camargo Junior
(2020, p. 58), “O texto não é uma entidade autotélica e autossuficiente, como
pressupunham os formalistas, mas um lugar dinâmico, mutável, no qual se
efetuam trocas dialógicas.”. Acreditamos, portanto, que o ato do espectador
não é a decifração exata da mensagem fabricada pelos fazedores da obra, mas
a criação, por aquele que vê, de seu próprio poema a partir de outro poema,
como formula belamente Jacques Rancière (2012, p. 17):

O espectador também age, tal como o aluno ou o intelectual. Ele observa,


seleciona, compara, interpreta. Relaciona o que vê com muitas outras
coisas que viu em outras cenas, em outros tipos de lugares. Compõe seu
próprio poema com os elementos do poema que tem diante de si. Participa
da performance refazendo-a à sua maneira, furtando-se, por exemplo, à
energia vital que esta supostamente deve transmitir para transformá-la em
pura imagem e associar essa pura imagem a uma história que leu ou
sonhou, viveu ou inventou. Assim, são ao mesmo tempo espectadores
distantes e intérpretes ativos do espetáculo que lhes é proposto.

Para que esse intenso jogo de olhares propiciado pelo encontro do


cinema com a educação seja aprofundado e estimulado em sala de aula, faz-
se necessário o reconhecimento do filme como um texto. Portanto, é
necessário que os alunos conheçam os elementos constitutivos da linguagem
cinematográfica, para que, assim, possam plenamente ler e analisar
diferentes obras fílmicas. É o que defendem Grace e Janice Thiel (2009, p. 16):

Ao tratarmos de recepção, leitura e interpretação de filmes, é importante


lembrarmos que esses são textos, tecidos com diversos elementos visuais,
verbais, sonoros, arranjados de acordo com técnicas específicas. Portanto,

111
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

os objetos fílmicos devem ser lidos e analisados a partir de suas


especificidades, o que nos conduz à necessidade de conhecermos os
elementos constitutivos da arte cinematográfica.

Dessa forma, conceitos como os de imagem, montagem e enquadramento


devem ser trabalhados em sala de aula. Esses conceitos não são os únicos
necessários para o trabalho de análise fílmica no contexto educacional. Os
professores devem, a partir da reflexão sobre o tipo de profundidade de
investigação da linguagem cinematográfica que pretendem realizar com seus
alunos, eleger os conceitos mais importantes e considerados basilares para
potencializar a relação de cada estudante com o objeto fílmico. Não nos
aprofundaremos, aqui, em destrinchar cada conceito e cada possibilidade de
caminho investigativo. Entretanto, julgamos pertinente reforçar a indicação
feita por Grace e Janice Thiel (2009, p. 20-21):

Um primeiro momento da análise de um filme implica uma observação dos


seus elementos constitutivos, que serão isolados e descritos. O momento
seguinte é o da interpretação, realizada com argumentos que a
fundamentem. Dessa forma, a análise do filme não será um “achismo”,
nem será conduzida a fim de se comprovar uma tese pré-estabelecida.
Apesar disso, a interpretação ainda será subjetiva, pois o olhar singular de
cada espectador fará com que destaque certo elemento, teça relações com
outros textos (fílmicos ou não) de seu repertório e, principalmente, utilize
seus conhecimentos e experiências para construir as significações daquilo
que lê/vê/ouve.

A escolha por trabalhar com obras cinematográficas em sala de aula é


uma forma de pavimentar um caminho fértil para a realização das traduções
pessoais, como defende Rancière (2012), através das quais o espectador
estabelece pontes entre o que já conhece de antemão e aquilo que ainda não
sabe. É, também, inspirador observar como os alunos estabelecem diálogos –
muitas vezes provocantes e desestabilizadores – com as obras artísticas.
Nesse processo, os estudantes fazem associações a partir de seu universo de
referências e daquilo que estão conhecendo a partir do legado cultural
movimentado pelo professor em aula. Além disso, há uma abertura para
experiências de caráter sensorial, levando os alunos a estabelecerem diálogos
outros com o mundo e com o cotidiano. Colocar os alunos diante de
diferentes obras do arquivo do mundo, de todo um legado cultural da
humanidade, é uma forma de romper com a ideia de que se inventa a roda.
Como formula Corazza (2006, p. 36), “é entre a cópia e a criação que o escritor
faz marcas: livres, acidentais, irracionais, involuntárias, no acaso.”. Na lida

112
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

com o legado cultural, é entre a cópia e a criação que o aluno caminha nessa
corda bamba que é o acontecimento educacional.

Para refletirmos: a controversa “cultura do cancelamento”

Gostaríamos de encerrar este texto refletindo sobre a tão controversa e


atual cultura do cancelamento. Julgamos ser algo pertinente, já que, ao
trabalharmos com o cinema em sala de aula, estaremos lidando com a
ampliação das referências dos alunos a partir de diferentes obras,
representantes de um legado humano. Lançamos, ao leitor, os seguintes
questionamentos: Como não queimar, rejeitar ou apagar uma obra que
possui aspectos questionáveis e problematizáveis no tempo de hoje? Como
não ser anacrônico e poder, criticamente, dialogar e aprender com o passado?
Como dialogar com o que veio antes sem ser pela lógica da “queima”? Seria
essa ânsia pela queima uma herança da Inquisição? Do Nazismo? Dos
regimes totalitários como um todo?
Lidar com as obras do passado é entrar em contato com diferentes
formas de vida, é defrontar-se com diferentes regimes de verdade, que não
são menos verdadeiros por estarem localizados no passado. Na radicalização
contemporânea, julgamos ser de extrema urgência que nos atentemos ao
perigo do afunilamento e do tom radical que cada vez mais toma conta dos
discursos e dos afetos. Percebe-se, em muitos casos, um autoritarismo
enorme presente em muitos discursos pautados em um suposto revisionismo
histórico das obras do passado. Revisionismo esse que, por sua vez, é
pautado, como não poderia deixar de ser, pelos olhos do presente e pelos
regimes de verdade que estão em disputa no eterno jogo de forças em torno
da verdade e do poder.
Pensemos, por exemplo, no caso das obras cujos autores já estão mortos.
Como podemos ambicionar interrogar ferrenhamente um morto que já nem
está mais aqui em carne e osso? O que resta dele são apenas rastros. Com isso,
não queremos dizer que devemos venerar o passado, acreditando cegamente
em suas verdades. Pelo contrário, esse passado deve ser problematizado,
revisitado, questionado e retrabalhado. Suas verdades devem ser olhadas
com suspeita. Devemos exercitar a alteridade perante as obras artísticas, já
que, à luz do pensamento do filósofo russo Mikhail Bakhtin, a alteridade
“pode ser entendida como a abertura ao outro, ou seja, estar aberto ao que o
outro revela de mim, pois a vida se constrói e se justifica a partir do outro
situado fora dela.” (CAMARGO; CAIMI, 2015, p. 26659). O cinema, nessa
perspectiva, é o outro com quem estabeleceremos uma relação dialógica.
Nesse processo de abertura ao outro, deve estar implicado, para recorrermos

113
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

a outro conceito de Bakhtin, o excedente de visão, “entendido como o ‘broto’


para que seja possível completar o horizonte do outro indivíduo”
(CAMARGO; CAIMI, 2015, p. 26660). Assim,

[...] cada sujeito deve entrar em empatia com o outro e ser capaz de ver o
mundo como o outro vê, colocar-se no lugar dele e, a partir desse excedente
de visão, ser capaz de fazer as próprias conclusões. Tal excedente de visão
deve ser capaz de motivar um ato ético (ajuda, consolo, reflexão cognitiva)
e, principalmente, um retorno a si próprio, de modo a assimilar em termos
éticos, cognitivos ou estéticos o que foi percebido. (CAMARGO; CAIMI,
2015, p. 26660).

O que colocamos em questão, aqui, é a forma de lidar com nosso legado.


Sugerimos, portanto, que deixemos as armas de lado. Julio Groppa Aquino,
ao discorrer sobre a obra de Michel Foucault, indica uma “franca
hospitalidade aos mortos” (AQUINO, 2019b, p. 215). É a isso que estamos
querendo aludir. Convivamos intensamente com nossos mortos de forma
mais humilde. Exercitemos, portanto, um gesto mais gentil na lida com nosso
legado. Deixemos as armas de lado, por ora, para ver florescer a empatia. Tal
gesto de empatia é uma forma de tentarmos preservar, inclusive, uma relação
amigável com o que nos precede, já que, no futuro, correremos o mesmo
risco. Em dias não tão distantes, poderemos ser colocados no tribunal, onde
nossas verdades poderão ser questionadas e combatidas. Quem serão os
enviados à fogueira santa no futuro?
Fugir da cultura do cancelamento é uma forma de abrir margem ao erro
e à possibilidade de aprendermos com nossas falhas. Julgamos que as
correções de erros de postura e de fala se dão a partir de diálogos. Não
acreditamos que o cancelamento seja educativo; pelo contrário, ele configura-
se como uma radicalização do afastamento e da separação entre grupos de
pessoas. O que está em jogo nessa cultura do cancelamento talvez não seja a
questão de quem esteja mais moralmente correto ou de quem seja mais
politicamente correto no mundo contemporâneo. O que nos assusta,
especialmente com a sanha autoritária que pulula em muitos atos e discursos,
é a ambição de tutela da verdade e, com isso, da soberania do poder sobre o
outro. E muitos desses discursos, que circulam especialmente nas redes
sociais, palco de disputas ferrenhas e de linchamentos virtuais, acabam por
se pautar na ideia da liberdade. Queremos crer que liberdade seja a arte de
não se deixar escravizar por ninguém. Liberdade não é, portanto, a
possibilidade de escravizar os outros a partir de uma opinião. A liberdade,
dessa forma, é o condão que os seres humanos têm de não se deixarem
escravizar. Deixemos as armas de lado, por ora. Acreditamos que sem

114
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

empatia não sairemos do buraco ético-político no qual estamos chafurdados.


Falta-nos o exercício de uma franca hospitalidade aos vivos e aos mortos.

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115
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

116
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

DIALOGICIDADES EM DIÁLOGO
Um post de Facebook à luz de Valentin Volóchinov e Paulo Freire 1

Filipe Santos GUERRA2


Márcia Helena de Melo PEREIRA3

Valentin Volóchinov e Paulo Freire são teóricos que muito contribuíram


para o campo da linguagem e com as discussões sobre a relação do eu e do
outro, em busca de uma prática de liberdade. O primeiro fez parte de um
grupo de estudiosos que ficou conhecido como Círculo de Bakhtin, formado
por indivíduos que possuíam interesses intelectuais, atuações profissionais e
formações distintas, o que lhe conferiu o caráter de multidisciplinar.
Volóchinov era linguista e se dedicou a um estudo da língua(gem) que se
diferia do estruturalismo proposto por Saussure (2012), inaugurando,
juntamente com seus colegas de grupo, o que é conhecido, atualmente, como
(sócio)interacionismo. Para o pensador russo, a linguagem (e, por conseguinte,
a língua) é formada e instituída socialmente, isto é, os indivíduos a adquirem
por intermédio da interação verbal com outros sujeitos, em um processo
dialógico. A língua, vista por essa perspectiva, não é considerada enquanto
uma ferramenta, somente, mas também como atividade social, formada e
significada na/pela relação entre locutor e interlocutor na interação verbal.
Paulo Freire, por sua vez, foi um educador brasileiro que se tornou um
dos pensadores mais importantes da história da pedagogia mundial, tendo
sido o influenciador de um movimento que ficou conhecido como Pedagogia
Crítica, além de ter recebido o título de Patrono da Educação Brasileira. Uma
das bases da teoria freireana é o método dialógico, que viabiliza aos sujeitos
caminharem lado a lado, possibilitando o livre posicionamento de todos. Nas
assertivas de Freire (1981), o exercício educativo tem como escopo discussões
de temáticas sociais e políticas, além de ações sobre a realidade social
imediata. Assim, os problemas são analisados com base em seus fatores
determinantes, e, a partir dessa observação, uma forma de atuação sobre
aquela realidade é organizada.

1
O presente capítulo foi escrito com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
- Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
2
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGLin) da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia — UESB (Vitória da Conquista, Bahia, Brasil). Graduado no curso de Licenciatura em Letras
Vernáculas (Português e Respectivas Literaturas) pela mesma instituição. Bolsista da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: filipe.guerra16@gmail.com.
3
Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas — UNICAMP. Professora titular
do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
(DELL/UESB), campus de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil. Docente do quadro permanente do Programa de
Pós-Graduação em Linguística da mesma instituição (PPGLin/UESB). E-mail: marciahelenad@yahoo.com.br.

117
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Em linhas gerais, ambos os autores concebem a linguagem como um


fator essencial para alcançar a independência e a autonomia, quando
entendem que ela funciona como mediadora das relações sociais,
transcendendo as relações de opressão e subordinação entre as pessoas.
Partindo dessa afirmação, o presente capítulo tenciona mobilizar um conceito
que perpassa as ideias desses estudiosos: o diálogo. Mais especificamente,
nosso objetivo é mostrar a dialogicidade de um enunciado em funcionamento
e a sua importância para a constituição do sujeito enquanto agente social
(inter)ativo e problematizador, uma vez que esse fenômeno contribui para a
formação de indivíduos críticos, além de viabilizar o desenvolvimento das
habilidades de leitura, produção e tratamento das linguagens a serviço dos
variados e distintos campos de atividade humana, conforme regulamenta a
Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Para isso, analisaremos um hipertexto on-line — enunciado no gênero
discursivo digital post de Facebook — que discute um tema bastante polêmico:
a causa LGBTQIA+. A escolha desse gênero se deu pelo fato de que,
atualmente, as Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDICs)
viabilizam o surgimento de vários gêneros discursivos digitais, que precisam
adentrar as escolas por exigência de textos oficiais que regulam as práticas de
ensino do país. Isso posto, a rede social Facebook é a mais utilizada no mundo,
e, por sua popularidade, seus potenciais didáticos devem ser discutidos.
Com a intenção de empreender o que nos comprometemos a efetivar,
utilizaremos como arcabouço teórico medular deste capítulo as assertivas de
Volóchinov (2018) e Freire (1978, 1981, 2006) acerca da noção de diálogo. Dito
isso, o texto que se segue traz uma breve revisão de literatura sobre a teoria
da dialogicidade, base do nosso artigo, nas perspectivas volóchinoviana e
freireana, ressaltando seus pontos de contato. Em seguida, são comentados
aspectos metodológicos do trabalho e realizadas as discussões acerca dos
dados que compõem o nosso corpus. Por último, são feitas considerações
finais sobre o que a pormenorização dos dados nos viabilizou enxergar a
respeito do que objetivamos, ou seja, o funcionamento da dialogicidade em
um enunciado e a sua relevância para a formação do sujeito enquanto agente
social (inter)ativo e problematizador.

Volóchinov e Freire: alguns pontos de contato

Ao citarmos Valentin Volóchinov e Paulo Freire, teóricos que fizeram


uso da palavra como um modo de resistência e de posicionamento (tanto
social quanto político), estamos marcando, assim como fazem Assunção e
Souza (2019, p. 288), “[...] a força enunciativa do jogo significativo por meio

118
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

da linguagem e a resistência como ato que permeia e atravessa o sujeito e a


sociedade.” Em outras palavras, as assertivas desses autores encruzam a
noção de palavra enquanto conceito que se assenta como signo ideológico e
potência verbal para manifestação da capacidade criadora humana. Dito isso,
uma questão que é cara às obras desses estudiosos é a concepção de diálogo,
que permeia muitos de seus pensamentos. Esse é o ponto de encontro que
abordaremos nesta seção.
Antes de tudo, é importante dizer que, segundo Faraco (2009), a palavra
diálogo tem variados e distintos sentidos sociais. Grosso modo, o termo diz
respeito: i) a uma determinada estrutura retórica de narrativas escritas, nas
quais dois ou mais personagens se comunicam; ii) ao processo de
conversação em uma cena enunciativa vis-à-vis; e iii) à sequência de fala dos
personagens em um texto dramático. Nem Volóchinov nem Freire são
teóricos do diálogo em algum desses sentidos apresentados, como veremos a
seguir.
O significado de diálogo em Volóchinov (2018) diz respeito a uma
premissa geral da linguagem, de coparticipação correlata e grupal, e não
apenas enquanto a comunicação ou a troca pura e simples de opiniões cara-
a-cara entre sujeitos. Mais do que isso, o diálogo é tomado pelo autor como
produto histórico, definido cultural e socialmente, posicionamento que
respalda uma crítica ao mecanicismo positivista e ao estruturalismo. O
linguista apresenta, também, o diálogo como lócus de lutas e oposições que
refletem as próprias particularidades da interação social. Para ele, o diálogo
não representaria um campo de conciliação de conflitos, apenas, mas, como
comenta Scorsolini-Comin (2014), seria um domínio no qual esses confrontos
poderiam ser reavaliados, de forma a corroborar com o entendimento de uma
realidade macro: a realidade social.
Por outro lado, na concepção de Freire (1978), o diálogo é interposto pela
realidade do que tencionamos conhecer. Desse modo, sujeitos (re)conhecem
o mundo em conjunto, para também em conjunto apre(e)nder, ensinar,
entender e transformar a realidade na qual estão inseridos. Como salienta
Silva (2012), o educador defende que, nas massas oprimidas, os indivíduos
não devem ser/ficar reduzidos ao simples e exclusivo fazer, mas precisam
participar ativamente dos processos de autonomia e de transformação (seus
e dos outros), com ação, discernimento e engajamento. O diálogo, portanto,
é tomado por Freire (1981) como um requisito a toda revolução legítima.
Esclarecidos, em linhas gerais, os posicionamentos dos autores no que
se refere ao significado da palavra diálogo dentro de suas teorias, passaremos,
agora, a dissertar, com mais detalhes, sobre os pontos de contato entre as

119
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

proposições desses estudiosos.


Conforme o patrono da educação brasileira, só há comunicação se
houver diálogo, sendo este um caminho obrigatório para a interlocução. Em
suas palavras:

quanto mais cedo comece o diálogo, mais revolução será. Este diálogo,
como exigência radical da revolução, responde a outra exigência radical –
a dos homens como seres que não podem ser fora da comunicação, pois
que são comunicação. Obstaculizar a comunicação é transformá-los em
quase “coisa” e isto é tarefa e objetivo dos opressores, não dos
revolucionários. (FREIRE, 1981, p. 149).

Assim sendo, para que o verdadeiro humanismo 4 se efetive, na visão do


professor, comentada por Silva (2012), é necessário que o sujeito se
comprometa com o diálogo e se esforce para a transformação definitiva da
realidade. Em suas palavras, “o diálogo é o encontro amoroso dos homens
que, mediatizados pelo mundo, o ‘pronunciam’, isto é, o transformam, e
transformando-o, o humanizam para a humanização de todos” (FREIRE,
2006, p. 43). Para ele, portanto, o diálogo é dotado de estímulo e significação,
e isso se dá pela confiança no homem e em suas perspectivas; pela convicção
de que só é possível que um sujeito seja ele próprio quando os demais
também conseguem ser eles mesmos.
De acordo com Freire (1981), a palavra é desnudada no/pelo diálogo, ao
passo que, simultaneamente, integra e estabelece sua força motriz. Trocando
em miúdos, como mostra Moura (2011), a palavra materializa as relações e se
materializa nelas. Para Freire (1981), portanto, palavra e diálogo seriam uma
matéria só. Tencionando explicar melhor o seu ponto de vista, o autor salienta
os elementos que formam a palavra, quais sejam: ação e reflexão. Em sua visão,
esses elementos não se desconsideram, haja vista que, se isso ocorresse, as
relações intersubjetivas seriam reduzidas a “palavrerias”.
Isso posto, consoante Freire (1981), a “verdadeira” palavra possui o
poder de modificar a realidade; no entanto, um sujeito, sozinho, não é capaz
de realizar tal feito, pois somente a intersubjetividade proporciona esse
movimento, que não deve ser privilégio apenas de algumas pessoas. Logo, o
principal objetivo da educação, sob a luz da vertente freireana, é a

4
As ideias de Paulo Freire constroem um itinerário constitutivo de uma pedagogia libertadora, que se importa
com a existência do indivíduo no mundo. Isso posto, um dos aspectos basilares na elaboração da práxis
educativa freireana é a questão da humanização. Como ratifica Mendonça (2006), Freire adota, em seus
escritos, um humanismo vivo e real que só se realiza na relação histórica e cultural entre os sujeitos. O
educador ratifica que confia na vocação dos seres humanos para ser mais, o que, em outras palavras, significa
assumir que o ser humano se movimenta temporal e espacialmente com o objetivo de compor e instituir, de
forma permanente, a sua humanização.

120
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

constituição de um sujeito dialógico, com a habilidade de enunciar sua


palavra na prolação do mundo. Essa palavra verdadeira — circunstância que
reclama o elo indesatável entre os dois aspectos que a constituem (a ação e a
reflexão) —, de acordo com Moura (2011), provoca e potencializa nos
indivíduos as habilidades de avaliação e de criticidade, que viabilizam o
estabelecimento e a manutenção de relações (sociais e interpessoais), o
entendimento de sua realidade e o (re)conhecimento do próprio sujeito nessa
realidade, para decidir e ter capacidade de atuar nela.
Essas assertivas de Freire (1981) aludem ao que afirma Volóchinov
(2018) e outros estudiosos do Círculo de Bakhtin, que tomam os sujeitos
enquanto seres dialógicos e sociais e a interação enquanto o lugar da
linguagem, onde experiências e conhecimentos se encontram e se entranham.
Dentro dessa concepção, a língua é tida como um instrumento de interação
social, uma ferramenta para a constituição e ascensão do indivíduo como
sujeito que faz parte de uma comunidade (e que atua nela).
Não obstante, o discurso de Freire (1981) também remete ao que
Volóchinov (2018) pontuou a respeito das formas por meio das quais as
interações sociais definem os signos (no que se refere ao seu conteúdo e ao
índice de valor que os tocam). Na concepção do linguista russo, dentre os
signos, a palavra, como material verbal, tem a capacidade de ocupar funções
ideológicas em qualquer campo de atividade humana, uma vez que ela é
realizada no domínio do organismo individual, mas necessita da licença e da
consonância entre os sujeitos, mesmo sendo autossuficiente (já que não
depende de qualquer outro instrumento ou material extracorporal). De igual
forma (e simultaneamente), a palavra é material utilizado privilegiadamente
nos processos de interação da vida cotidiana. É ela, segundo Moura (2011),
que torna possível o desenvolvimento da consciência, que se forma na/pela
incessante interação com o universo da cultura.
Para Volóchinov (2018), a consciência só se faz consciência quando se
encharca e se arraiga de conteúdo ideológico, isto é, somente no processo de
interação social, denominado pelo linguista russo de desencadeamento
semiótico de reação ideológica. Em sua visão, esse desencadeamento só se torna
possível após determinado objeto introduzir-se no domínio social do grupo,
estando ligado às suas condições sociais, históricas, políticas, ideológicas e
econômicas. Nesse caso, o livre arbítrio não seria realizável, dado que apenas
a significação interindividual de um objeto, que representa a sua salvaguarda
para acesso ao domínio da ideologia, traz à existência um signo.
Volóchinov (2018) julgou coerente denominar essa conjuntura executora
do nascimento e da constituição de um signo de tema do signo, haja vista que

121
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

ele é formado por um índice de valor social, o qual atinge, de qualquer


maneira, a consciência do indivíduo. Assim, como resume Moura (2011), tema
e forma possuiriam uma fundamental, significativa e inquebrável ligação,
sendo mais manifestas e tangíveis na seara da palavra, considerando que esta
reflete e refrata o ser, processos consequentes do embate de interesses, ou,
nas palavras de Volóchinov (2018), da luta de classes.
Freire (1981), ao notar as dissonâncias que a palavra pode causar se a
interação das consciências for convertida em uma sobreposição, disserta
acerca de alguns pormenores que atrapalham e, por vezes, até bloqueiam o
diálogo, a exemplo do antidiálogo. No que cabe a essa ação antidialógica, o
educador explica que a primeira necessidade aparenta ser a conquista, haja
vista que o dominador objetiva, a todo custo, reger (e arregimentar) a
sociedade. Nas palavras do autor,
o antidialógico se impõe ao opressor, na situação objetiva de opressão,
para, pela conquista, oprimir mais, não só economicamente, mas
culturalmente, roubando ao oprimido conquistado sua palavra também,
sua expressividade (FREIRE, 1981, p. 162).

Diante do exposto, é notório que o autor entende que o diálogo se opõe


ao antidiálogo (que é desamoroso, acrítico, desesperançoso, arrogante,
autossuficiente, que não comunica). Visto isso, concluímos, a partir do que
foi dito por Freire (1981), que toda realidade opressora é antidialógica. Essa
assertiva do autor vai ao encontro do pensamento de Volóchinov (2018),
quando o linguista destaca que o signo é interpelado por uma ideologia, por
disposições individuais e/ou de classes sociais diferentes, que se valem de
uma única língua para dissimular o confronto dos índices de valor, fato que
torna o signo o anfiteatro da luta de classes.
Levando em consideração tudo o que foi discutido até aqui, vimos que,
nas assertivas de ambos os autores, o contexto afeta o sentido do signo a
ponto de ele tornar-se um organismo vivo, carregando consigo muitas e
sortidas relações dialógicas. Isso pode ser visto muito comumente e
explicitamente na contemporaneidade, haja vista que as redes sociais
virtuais, bastante populares em todo o mundo, possibilitaram o ativismo
acerca das mais diversas temáticas. Nessas plataformas, qualquer indivíduo
pode tornar públicas suas posições político-ideológicas e estabelecer relações
entre suas opiniões e as opiniões de outros sujeitos (sejam essas relações de
consentimento e/ou rejeição, de anuência e/ou de desacordo, de harmonia
e/ou de discórdia etc.). Além disso, a interação simultânea não-presencial
entre indivíduos (que, utilizando a internet, atravessam limites geográficos,
linguísticos e temporais), rompem obstáculos que, de acordo com Castells

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

(2009), eram, no passado, definitivos no resultado do processo


comunicacional.
Diante do exposto, discutiremos, na seção a seguir, um post da rede
social Facebook que comprova os elos existentes entre as dialogicidades
discutidas por Volóchinov e Freire, comentadas neste tópico.

Um diálogo possível: abordando um post de Facebook a partir das


perspectivas volóchinoviana e freireana
Na presente seção, apresentamos a análise dos dados que selecionamos
para este capítulo. O corpus5 eleito para explicitar o funcionamento dos
pontos de contato entre as dialogicidades volóchinoviana e freireana em um
enunciado foi construído por capturas de tela de um único post de Facebook,
que versa a respeito da militância LGBTQIA+6. A publicação foi retirada da
página Quebrando o Tabu, a qual conta com mais de onze milhões de
seguidores e se apresenta como “empresa de mídia/notícias” que tenciona
tornar o mundo “mais bem informado e menos careta”. Vejamos, então, o
post:
Figura 1 — Post que discute a genuinidade da bissexualidade

Fonte: Página Quebrando o Tabu no Facebook7.

5
O corpus deste capítulo adveio de uma pesquisa de Mestrado intitulada “A (hiper)textualização de
enunciados LGBTQIA+(fóbicos) em ambiente digital: posts de Facebook sob um enfoque dialógico”, com defesa
prevista para março de 2022. Essa dissertação está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em
Linguística (PPGLin) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (campus de Vitória da Conquista) e conta
com auxílio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) através de
bolsa de fomento. Escolhemos esse campo político-ideológico específico pelo fato de o Brasil ser/estar
enraizado e enviesado por diversas crenças religiosas e culturais, as quais espelham em seus adeptos
estereótipos referentes aos seus segmentos, reforçando o preconceito contra essa situação social. Assim sendo,
muitas são as discussões encontradas em um post do Facebook sobre a temática em questão, o que nos
proporciona um produtivo corpus para análise.
6
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais/Transgêneros, Queer, Intersexo, Assexual e todas as múltiplas
possibilidades de orientação sexual e/ou identidade de gênero que existam.
7
Disponível em: https://www.facebook.com/quebrandootabu/photos/a.575920612464330/3815871311802561/.
Acesso em: 28 mar. 2021.

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

A figura 1 contém um post que discute a visibilidade bissexual. Na


publicação, há uma imagem composta por vários gráficos do tipo pizza, que
representam, de acordo com a legenda de cores contida na própria ilustração,
níveis de atração por um mesmo gênero e por outros. Os gráficos estão todos
ligados a um enunciado: “todos bissexuais”. O comentário sobre a imagem,
por sua vez, salienta o dia da visibilidade bissexual e ratifica informações do
tipo “bissexualidade não é ser meio gay/meio hétero” e “bissexualidade não
é estar indeciso/confuso”. Como vimos anteriormente, Volóchinov (2018)
considera qualquer enunciado como ideológico e axiológico, sendo a criação
ideológica social e histórica. Assim, nessa postagem, vemos — a partir da
relação de entranhamento entre o verbal e o visual apresentada nesse gênero
— que o discurso materializado na página pelos seus administradores
dialoga com a camada de discursos sociais que revestem o posicionamento
político-ideológico deles acerca do assunto, que aparenta ser favorável e
simpatizante ao movimento LGBTQIA+. Além disso, percebemos que os
moderadores da página participam, através do post, de um processo de
transformação da sociedade, por meio do engajamento com o tema e de sua
ação de “quebrar tabus” a partir de uma ação que gera reflexão: como funciona
a bissexualidade?
Vale observar, também, o
diálogo estabelecido entre o
público que interage com o
post. Vejamos, então, alguns
comentários retirados da
postagem contida na figura 1:

Figura 2. Comentários no post


que discute a genuinidade
da bissexualidade

Fonte: Página Quebrando o


Tabu no Facebook8.

8
Disponível em: https://www.facebook.com/quebrandootabu/photos/a.575920612464330/3815871311802561/.
Acesso em: 28 mar. 2021.

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

No primeiro comentário, presente na lateral superior esquerda da


imagem, um usuário do Facebook diz que pansexual e bissexual são a mesma
coisa. Esse diálogo, de certo modo, não confronta a ideia defendida pela
Quebrando o Tabu (de salientar a importância da visibilidade bissexual), mas
se choca com o posicionamento político-ideológico geral da página — que é
o de apoiar, entre outras minorias sociais, o movimento LGBTQIA+, ao, de
certo modo, descredibilizar a pauta pansexual dentro da comunidade, que já
foi defendida várias vezes nos canais de comunicação dessa empresa 9. A
partir do momento em que a interpretação dos signos está rigorosamente
associada a uma dimensão axiológica (avaliativa), o diálogo do indivíduo
com o mundo é traspassado por valores. Como salienta Freire (2001), o
imiscuir-se, próprio da existência humana, se dá pelo engajamento do sujeito
com a realidade, que, ao experienciar esse contexto, determinado e
consciente, não é neutro. Justamente por conta disso, os sujeitos só são
capazes de “ler” o mundo interpelado por várias grades, como é o caso dos
criadores de conteúdo da Quebrando o Tabu — que costumam apoiar o
movimento LGBTQIA+ como um todo em sua página — e de seus
usuários/seguidores — que podem, a partir de uma outra lente valorativa,
discordar (parcial ou totalmente) da apreciação deles acerca do assunto.
Os comentários que constam abaixo e ao lado do primeiro balão que foi
discutido aqui são respostas a ele. Essas respostas estão dispostas em linha
cronológica (da primeira até a última, seguindo as duas colunas). Aqui, o
interessante é observar que a interação segue por uma linha que não é de
confronto, mas de reflexões e aprendizados: um dos usuários propõe que eles
aproveitem o espaço para dialogar sobre o tema, esclarecendo as diferenças
existentes entre pan e bi, já que, segundo esse usuário, muitas pessoas
presentes naquela cena enunciativa desconheciam suas particularidades. A
partir dessa provocação (baseada em uma problematização, gerada pela
página), outro usuário decide realizar essa ação, discorrendo sobre as
distinções entre ambas as orientações sexuais a partir de exemplos, que
didatizam a questão. Após isso, o sujeito que propôs a explanação do assunto
agradece pelos esclarecimentos e faz uma pergunta para ratificar o que
compreendeu acerca do que foi dito. Toda essa construção (inter)ativa entre
os indivíduos revela um processo de humanização de relações — baseado em
reflexões sobre condições vivenciais — ocorrendo entre eles. Em outras
palavras, esses sujeitos, a partir de uma permuta de experiências e
conhecimentos, próprias do diálogo, como afirma Volóchinov (2018), se

9
É possível checar a defesa da Quebrando o Tabu acerca da legitimidade da pansexualidade, por exemplo, no
link a seguir: https://twitter.com/quebrandootabu/status/997861941769977857. Acesso em: 30 mar. 2021.

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

reconhecem no compromisso e na sensatez da ação-reflexão em função da


humanização da realidade, e, dessa maneira, são capazes de modificar seus
contextos, cumprindo os postulados de Freire (1981). Esse movimento
discursivo é dialógico, porque vai da concretude à consciência e da
consciência à concretude, em uma ação esclarecedora e transformadora.
Diante do exposto, as enunciações presentes no post de Facebook por nós
analisado, à luz das perspectivas volóchinoviana e freireana, são dialógicas,
haja vista que surgiram a partir de ligações discursivas e são externamente
rodeadas por signos ideológicos assentados em grupos sociais específicos.
Além disso, os sujeitos presentes na cena enunciativa são seres ativos e
reflexivos e, assim, procuram participar no/do discurso do outro. O gênero
post de Facebook, portanto, sob uma lente didática, se mostra muito produtivo,
pois as relações que os sujeitos estabelecem com ele corporificam suas
posições sócio-históricas e político-ideológicas, estando esses agentes
dialógicos vinculados às particularidades dos encontros que um post é capaz
de proporcionar.

Considerações finais

Por meio de tudo o que expusemos e discutimos aqui,


percebemos/ratificamos que o diálogo, tanto em Freire quanto em
Volóchinov, transcende toda e qualquer concepção rasa ou leviana: nós nos
tornamos o que somos nos/pelos vínculos dialógicos que mantemos com
situações, estados ou até mesmo qualidades que se constituem por meio de
relações de contraste, distinção, diferença.
Através de um post de Facebook, vimos uma parte da teoria de Paulo
Freire, que passou toda a sua vida acreditando e defendendo uma educação
emancipadora, se concretizar. O teórico desejava que o indivíduo se
libertasse como sujeito e que (inter)agisse eticamente e de maneira
responsável no desempenho de sua cidadania no que diz respeito a sua
realidade social, contribuindo, desse modo, para que ela fosse vista como, de
fato, é, e foi exatamente isso que ocorreu nos comentários presentes no post
que trouxemos neste capítulo.
Comprovamos, também, um ponto da teoria de Valentin Volóchinov,
que pensava a comunicação verbal diretamente ligada à situação concreta.
Para o autor, o discurso só acontece no contexto sócio-histórico real, que seria
responsável por atribuir valor e significado às palavras, que, além de
carregarem um conteúdo, expressam opiniões, choques e apreciações
axiológicas da sociedade. Isso foi notado na publicação do Facebook como um
todo (imagem, legenda e comentários): qualquer enunciado é ideológico e

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

expressa uma posição avaliativa, e o dialogismo é resultado de um embate


de vozes, algo que ocorre com frequência nas mídias digitais.

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SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e
Izidoro Blinkstein. 28ª ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2012.
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São Paulo: Editora 34, 2018.

127
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

128
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

IMBRICAMENTOS ENTRE EDUCAÇÃO E LINGUAGEM NAS OBRAS


O PEQUENO PRÍNCIPE A PARTIR DE UMA LEITURA
BAKHTINIANA

Lilian Regina Gobbi BACHI 1


Edson Carlos ROMULADO2

Muito se discute na atualidade, principalmente diante do atual contexto


histórico em que vivemos com o enfrentamento de uma pandemia mundial
que nos obrigou a alterarmos as dinâmicas sociais – o que inclui também as
novas concepções do modo de ensinar – conceitos e metodologias
relacionadas à educação. Inúmeras são as pesquisas que voltam seus olhares
para a educação de uma forma geral, as quais se ancoram em diferentes áreas
do conhecimento humano. Nessa perspectiva, os estudos dos textos
constituem-se também como uma ciência capaz de mostrar, entre outras
coisas, as formas como certas culturas educacionais são sistematicamente
representadas por meio de diferentes narrativas – sejam elas históricas,
literárias ou cinematográficas.
É diante dessa possibilidade que os textos têm de representar culturas e
histórias que problematizamos questões relacionadas à educação
representadas nas obras que constituem nosso corpus de pesquisa, a saber: as
obras literária e cinematográfica homônimas O pequeno Príncipe, produzidas
respectivamente por Antoine de Saint-Exupèry (1943) e Mark Osborne (2015).
Entre os aspectos culturais representados nessas narrativas, chamou-nos
a atenção o tratamento dado às crianças protagonistas nas duas obras, que,
em um primeiro olhar, não são coincidentes, desde o sexo até as maneiras
como lidam com as questões que se colocam diante delas nas interações com
os outros personagens. Diante disso, questionamos as diferentes visões sobre
a criança construídas nas duas obras e delimitamos para esse artigo um
recorte que tem como objetivo geral compreender como se dão as formas de
educar as crianças protagonistas dessas obras. Nossa intenção é relacionar a
leitura desses textos de ficção, no que diz respeito à educação, à realidade
vivida por educandos em diferentes momentos históricos.
Assim, vale ressaltar que a noção de infância e sua relação com a
aquisição de conhecimento é o princípio norteador deste trabalho. Desta
forma, torna-se irremediável recorrermos à História para compreendermos
como os sentidos sobre infância e educação foram sendo constituídos social

1
Metre em Letras, Universidade Estadual de Maringá. Brasil. E-mail: lilianbachi@outlook.com.
2
Doutor em Letras. Professor Associado da Universidade Estadual de Maringá. Brasil. E-mail:
ecromualdo@uol.com.br

129
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

e culturalmente em diferentes épocas, a partir da palavra do historiador, do


antropólogo, do educador, da família e do próprio sujeito.
Importa-nos asseverar que desde os primeiros estudos sobre a criança
até os dias de hoje há uma grande preocupação em saber como esse ser se
constitui, como toma consciência de si e do mundo que o cerca e como
aprende. Por isso, os processos evolutivos da criança têm sido objeto de
diferentes pesquisas ao longo da história. Tais estudos colaboram
significativamente para o entendimento dos processos que envolvem a
formação do ser criança.
Ao buscarmos conhecimentos sobre a criança na História, precisamos
considerar que os saberes constituídos sobre ela, em cada século, por cada
autor, estão atravessados por valores sociais da época. Desse modo,
compreendemos que os discursos que dizem respeito à criança e ao processo
de educação dialogam com enunciados já produzidos, bebem de outros
saberes já constituídos e são sempre um vir a ser, nunca são estáveis e
totalmente acabados.
Para darmos conta de compreender a construção histórica desse sujeito
e como ele aprende, nos apropriamos da concepção de sujeito, forjada nos
estudos de Mikhail Bakhtin. Buscamos contrapô-la ao que se sabe sobre a
criança e aos modos de educá-la, numa tentativa de explicarmos de que
forma o conceito de criança, enquanto sujeito social, formou-se e se
transformou ao longo de sua história, a partir de suas relações sociais e como
isso influência no processo de aprendizagem. Assim, empreendemos nesse
estudo uma leitura do contexto histórico no que diz respeito à infância e à
educação, o que será fundamental para nossa análise.
É importante dizer também que os conceitos da Linguística Textual são
fundamentais para nosso empreendimento analítico, pois funcionam como a
base teórica de aproximação entre as obras que compõem o nosso corpus. Os
conceitos que mobilizamos dessa disciplina constituem uma parte das
Teorias do Texto que usamos em nossa pesquisa de mestrado intitulada Uma
análise textual de O Pequeno Príncipe: as visões sobre a criança no livro de Saint-
Exupéry e no filme de Osborne (BACHI, 2020) de onde parte o recorte para esse
artigo.
Entre os grandes pesquisadores da infância, a obra de Ariés (1978)
marcou um importante passo nas pesquisas. O autor aponta que a noção de
infância é uma construção social que vai se alterando ao longo do tempo em
determinado grupo social. O pensamento de Ariés (1978) constitui a base
para os recentes estudos sobre a infância, pois seu trabalho nos fornece um
panorama do surgimento da ideia de infância na sociedade moderna a partir

130
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

de uma retomada histórica da Idade Medieval ao século XX, o que nos


permite compreender a gêneses da educação infantil e seus desdobramentos.
A priori, Ariés (1978) afirma que até por volta do século XII, a sociedade
medieval desconhecia o sentido de infância ou, no mínimo, não desejava
representá-la; a impressão que se tem é a de que não havia espaço para a
infância nesse mundo e a criança era representada como um adulto em
miniatura, não se mostrando nessas representações características que
particularizem a criança além de sua pouca estatura.
Ao consideramos essas questões históricas sobre a criança, sob um
primeiro olhar poderíamos pensar que se trata aqui de um sujeito anônimo,
sem voz e praticamente invisível nesse contexto. No entanto, quando
tomamos o conceito bakhtiniano de sujeito, compreendemos que desde o
nascimento o ser interage com o outro, colocando-se em uma posição
intersubjetiva de formação. Inevitavelmente, percebemos que a criança se
constitui enquanto sujeito a partir de suas relações sociais, que nesse
momento da história são relações de iguais, isto é, a criança não tem um
status que lhe priva da vida adulta e, portanto, interage com adultos nas
atividades que essa relação lhe proporciona.
Já nos séculos XV e XVI, a representação da infância embrenhada no
cotidiano dos adultos, participando de suas atividades, de acordo com Ariés
(1978), “anuncia o sentimento moderno de infância” (p. 56). Também para
Gélis (2009), os estudos relacionados às crianças apontam diferentes níveis
de sua representação e de práticas relacionadas a elas, mas a sua evolução é
muito evidente: “cada vez mais se atribui à criança a posição que hoje ocupa
no seio da família” (p. 317).
O pensamento desses autores vai ao encontro do que assevera Bakhtin
(1997) sobre o processo de internalização que traz para o interior do sujeito
os movimentos do exterior, isto é, uma vez que a criança estabelece outro tipo
de interação com o adulto, a qual lhe coloca em uma posição central na
relação familiar, esse sujeito passa a internalizar essa condição externa que se
torna parte da forma como ele se vê como sujeito dessa relação.
Diante disso, ao nos debruçarmos sobre nosso corpus, se por um lado nos
parece que Saint-Exupéry procura representar essa criança que até o século
XII era vista como um adulto em miniatura, uma vez que ao narrar a vida de
seu protagonista no planeta de origem a descreve cheia de obrigações e
responsabilidades próprias a um adulto e, ao descrevê-lo, o narrador o chama
de “homenzinho extraordinário” (SAINT-EXUPÉRY, 2015, p. 12); por outro
lado, essa hipótese não se sustenta ao longo de nossa análise, pois as duas
obras contrariam a ideia de uma infância anônima e sem importância, já que

131
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

não por acaso trazem como protagonistas duas crianças em torno das quais
todo o enredo das narrativas é desenvolvido, o que comprova a importância
desse ser para as narrativas.
Esse “sentimento moderno de infância” do qual nos fala Ariès (1978)
parece também ser representado nas obras aqui analisadas, porque livro e
filme trazem como as únicas crianças das obras suas protagonistas que vivem
apenas entre adultos: o pequeno príncipe vive suas experiências no contato
com o aviador e com os demais personagens, todos adultos, que conhece nos
planetas que visita; a menina do filme relaciona-se apenas com a mãe e com
o vizinho idoso.
Ao avançar no tempo, entre os séculos XIV e XVII, observamos que “as
idades da vida não correspondiam apenas a etapas biológicas, mas a funções
sociais” (ARIÉS, 1998, p. 39-40) ocupadas por indivíduos em diferentes fases
da vida. Também Gélis (2009) tece comentários sobre a primeira infância.
Para o autor, esse era o momento em que se aprendia:

A primeira infância era a época das aprendizagens. Aprendizagem do


espaço da casa, da aldeia, das redondezas. Aprendizagem do brinquedo,
da relação com as outras crianças: crianças da mesma idade ou maiores,
que sabiam mais e ousavam mais. Aprendizagem das técnicas do corpo,
aprendizagem das regras de participação na comunidade local,
aprendizagem das coisas da vida. Pai e mãe tinham um papel importante
nessa primeira educação (GÉLIS, 2009, p. 307).

O que os historiadores relatam sobre as etapas da vida reflete-se ainda


nas obras dos séculos XX e XXI que constituem nosso corpus de pesquisa, uma
vez que tendo os dois protagonistas idades diferentes (o pequeno príncipe 6
anos e a menina 8 anos) possuem também responsabilidades distintas, que
estão ligadas não a questões biológicas de sua idade, mas ao papel social que
ocupam nessa fase da vida, como também ocorria na Idade Média. Em cada
uma das obras, a criança ocupa um papel social diferente e ao mesmo tempo
semelhante.
A afirmação de Gélis (2009, p. 307) acerca da primeira infância ganha
expressão principalmente na obra de Saint-Exupéry, onde a “época das
aprendizagens” é bastante representativa para o pequeno príncipe, que tem
pequenas lições em cada um dos planetas pelos quais passa e a maior delas
parece ser a de que “as pessoas grandes são muito esquisitas” (SAINT-
EXUPÉRY, 2015, p. 41). Essa é a conclusão à qual chega o menino ao final de
cada visita.
Para Gélis (2009), a criança aprende com o meio físico, com os
brinquedos, com as relações pessoais. Na primeira infância, aprendem as

132
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

regras do corpo e de participação na comunidade, enfim, aprendem coisas da


vida. Na obra literária, o pequeno príncipe aprende com o cuidado de seu
planeta a importância de cuidar do lugar em que vive. O menino afirma o
quanto é necessário revolver os vulcões para que se mantenham adormecidos
e arrancar os baobás para que não invadam todo o espaço, pois sem esses
cuidados tudo seria uma catástrofe:

É uma questão de disciplina – disse mais tarde o principezinho. – Quando


a gente acaba a higiene matinal, começa a fazer com cuidado a higiene do
planeta. É preciso que nos habituemos a arrancar regularmente os baobás
logo que se diferenciem das roseiras, com as quais muito se parecem
quando pequenos. É um trabalho sem graça, mas de fácil execução (SAINT-
EXUPÉRY, 2015, p. 24).

Além disso, aprende na relação com sua flor sobre o amor e o modo de
ver o outro: “Deveria tê-la julgado por seus atos, não pelas palavras. [...]
Deveria ter percebido sua ternura por trás daquelas tolas mentiras. [...] Mas
eu era jovem demais para saber amá-la” (SAINT-EXUPÉRY, 2015, p. 33),
desabafa o pequeno príncipe. O mesmo ocorre ao conhecer a raposa com
quem deseja ter amizade, dessa relação a criança compreende a necessidade
de conquistar a confiança de um amigo:

Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros
garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também
necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem
mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do
outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...
(SAINT-EXUPÉRY, 2015, p. 68).

De sua visita a inúmeros planetas, o principezinho percebe como o


desejo de poder, o sentimento de ganância e de vaidade, o excesso de
sabedoria e a bebedeira são ações humanas que fazem pouco sentido para
uma criança. No planeta Terra, de seu encontro com a serpente, o menino
toma conhecimento da fragilidade de seu corpo, entende que a picada de
uma serpente é capaz de tirar-lhe a vida, mas reconhece que o corpo é apenas
“como uma velha concha abandonada” (SAINT-EXUPÉRY, 20015, p. 88).
Essa importante ação de aprender por meio das interações dava às
crianças um sentimento de pertencimento a uma comunidade e possibilitava
um tipo de aprendizagem comum a todos, em que um conjunto de
influências fazia de cada criança um sujeito, “um produto da coletividade”,
preparando-o para ser aquilo que se esperava que ele fosse (GÉLIS, 2009, p.
308).

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Conforme assevera Bakhtin (1997, p. 19), as relações sociais e culturais,


aquelas reconhecidas oficialmente, codificadas, são relações entre diferenças
indiferentes à singularidade, nas quais a alteridade de cada um é apagada e
o que vigora é a tolerância do outro cuja diferença diz respeito apenas à
identidade do conjunto a que pertence. Isso significa dizer que nesse
momento da primeira infância a criança passava, a partir de suas relações, a
se constituir como sujeito integrante de um todo. Não se pode dizer, no
entanto, que esse tipo de educação comum se encerrou no século XIX, mas
que se prolonga ainda aos dias de hoje.
No entanto, o que percebemos tanto em uma quanto em outra obra é
que a ideia de pertencimento resultada dessas épocas de aprendizagem não
coloca essas crianças em uma comunidade também infantil. O sentimento de
pertencimento do qual elas compartilham é o de pertencer a um grupo
formado por adultos, sem nenhuma outra criança. Isto também difere da
ideia de pertencimento presente nos séculos XX e XXI, quando as crianças são
separadas e organizadas por fases da vida/idades, relacionando-se, em geral,
tanto com adultos (pais, avós, professores etc.), quanto com sujeitos de idades
iguais às suas.
A proposta de sujeito do Círculo de Bakhtin é a de conceber um sujeito
que, sendo um eu-para-si, é também um eu-para-o-outro (BRAIT, 2016, p. 22).
No entanto, é preciso considerarmos que nenhum sujeito está confinado aos
limites de um único conjunto de pré-construídos sócio-históricos, mas
emerge exatamente de relações simultâneas, consecutivas, contraditórias e
conflituosas com vários conjuntos, o que significa dizer que é impossível
qualquer determinação acabada do sujeito (FARACO, 2009, p. 146). Os
sujeitos do livro e do filme O pequeno príncipe, por exemplo, interagem com
diferentes outros sujeitos e respondem a tais interações, num processo
constante de constituição subjetiva, que inclui sua aquisição de
conhecimentos.
Nesse sentido, podemos analisar o lugar que a educação ocupa na
mediação dessas relações simultâneas. A partir do fim do século XVIII, a
educação antes assegurada pela socialização com os adultos, a quem
observavam e com quem aprendiam, passou a ser também responsabilidade
da escola, onde as crianças eram inseridas numa convivência heterogênea e
dela tiravam experiências que antes lhes eram desconhecidas. As instituições
de ensino passaram a desempenhar um importante papel na aprendizagem
e um novo horizonte se desenhou na história da criança. Esta deixa de se
misturar com os adultos e aprender através do contato com eles e passa a ser
enclausurada pelo processo de escolarização.

134
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

A relação da educação com essa ideia de vigilância fica evidente no


filme. A garota protagonista da narrativa fílmica vive em conflito com a
necessidade de ser aceita na Werth Academie, um instituto de educação
extremamente exigente e com normas bastante rígidas. Para que consiga a
vaga, sua mãe monta um grande esquema de autovigilância dos estudos, ao
qual chama de “Seu plano de vida”, deixando claro que todas essas cobranças
são reflexo de seu amor e de sua preocupação com a filha. O “plano de vida”
(Figura 1) contabiliza minuto a minuto todas as atividades que a personagem
deve realizar até o dia do exame de ingresso na Werth Academie, pré-definindo
até mesmo quais presentes a menina ganharia ao longo desse tempo, no
entanto não há no planejamento tempo reservado para entretenimento ou
amizades.

Figura 1: Seu plano de vida.

8:21’
Fonte: Osborne (2015).

Durante muito tempo, vigorou a ideia de que a criança é um ser inferior


que deveria ser moldado, educado, civilizado e preparado para se tornar um
homem capaz de viver em uma sociedade hierarquizada. O infante era visto
como um “vaso de barro” que precisa ser moldado e preenchido, pensamento
que ainda resiste na atualidade.
No século XVII, comportamentos antes comuns não eram mais
tolerados, os “novos costumes” eram amplamente representados pela
literatura moral e pedagógica. A escola torna-se, então, uma marca de
distinção da criança e prolonga a infância ao tempo da idade escolar.
Segundo Ariés (1978), temos, assim, uma primeira infância mais longa e uma
infância propriamente escolástica.

135
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Essa nova preocupação com a educação aos poucos se instala em toda a


sociedade e a transforma. A família ganha um papel fundamental na
formação da criança. Ariés (1978, p. 277) aponta que o “cuidado dispensado
às crianças passou a inspirar sentimentos novos, uma atividade nova (...): o
sentimento moderno da família”, a qual tinha a obrigação moral de preparar
os filhos – no fim no século XVII, inclusive as meninas – para a vida, como
vemos no filme O pequeno príncipe, uma vez que a principal preocupação da
mãe é preparar a filha para ingressar em um ensino de qualidade, em torno
da qual a obra se desenha.
No século XVII, o Estado e a Igreja tomam para si a responsabilidade de
institucionalizar a educação das crianças e ensiná-las de acordo com o que
preza a sociedade. Gélis (2009, p. 314) aponta que a “nova educação deve seu
êxito ao fato de moldar as mentes segundo as exigências de um
individualismo que cresce sem cessar”, função logo apoiada pelos pais que
se veem sem condições de educar corretamente seus filhos.
Nesse sentido, o que ocorre é uma passagem da educação privada, no
sentido de integrar a criança a partir de sua interação com o meio em que
vive, para uma educação pública que busca também integrar a criança à
sociedade, no entanto a partir do desenvolvimento de suas aptidões. Essa
premissa é representativa nas obras que analisamos.
No livro, representa-se uma criança que aprende por meio de sua
interação com seu planeta, com os cuidados que precisa ter em revolver os
vulcões e arrancar os baobás, com sua convivência com sua flor e, depois,
com as várias personagens que encontra ao longo de sua viagem por
diferentes planetas em que se depara com pessoas em diferentes situações e
com as quais interage. A partir desse tipo de educação dispensada ao
pequeno príncipe, compreendemos que essa personagem se associa à criança
que vivia a situação de educação por meio da interação até o século XVII.
O filme, por sua vez, narra a tentativa de socializar a criança a partir de
suas habilidades com cálculo, linguagem, astronomia, de seu senso de
responsabilidade com tarefas pré-estabelecidas, ignorando a importância do
conceito de interação para a educação dessa criança, tão caro à teoria
bakhtiniana. Vale esclarecer que embora as aptidões no século XVII tenham
sofrido intervenção do Estado e da Igreja, neste século o Estado permanece
intervindo na atribuição dessas aptidões, por meio da figura das instituições
de educação, conforme retrata o filme de Osborne. Nesse sentido,
entendemos que a criança figurada por Osborne é uma representação da
nova realidade que vivemos desde o século XVII até a atualidade. No entanto,
aos poucos o autor vai permitindo que a menina interaja com o meio em que

136
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

está inserida, como uma forma de dizer que de outro modo parece impossível
que a criança seja de fato socializada e educada.
No século XIX, vemos a polarização da vida social em torno da família e
da profissão e a extinção da antiga sociabilidade, fato que, associado à intensa
escolarização da juventude, culminou nas crises da juventude em se tornar
adulto, conforme aponta Schmidt (1997). De acordo com a autora, “o processo
de privatização da vida fez com que as crianças passassem a ser isoladas em
seus quartos e tivessem obrigações sociais: fossem à escola e se preparassem
para a vida” (p. 26).
A preparação da criança para que fizesse parte dessas sociedades era
assegurada pela instituição escolar, que impunha às crianças extrema
rigorosidade e uma disciplina severa, que privava a criança da liberdade que
gozava entre os adultos e lhe infligia duras correções. Mas toda essa
rigorosidade exprimia um amor extremo que dominaria a sociedade. Nesse
sentido, Ariés (1978, p. 277) afirma que “A família e a escola retiraram juntas
a criança da sociedade dos adultos”.
Esse processo de privatização da vida das crianças é bastante
representativo nas ações da menina protagonista da obra cinematográfica, a
qual vive praticamente enclausurada em sua casa, com inúmeras obrigações,
sendo a principal delas ser aceita na Werth Academie. Esse processo de
privatização e o rigoroso modelo educacional, como afirma Ariés (1978),
retiraram a criança da sociedade dos adultos. Essa ideia, no entanto, não se
confirma na representação fílmica, pois percebemos que, embora a menina
seja estudante e esteja inserida no processo do qual trata o historiador, ela
convive apenas em meio aos adultos, não tem amigos de sua idade e é
tornada uma “miniadulta” pelo rigoroso modelo educacional que lhe é
imposto. Apenas depois que passa a conviver com o idoso – que embora
sendo adulto é um ser que carrega uma alma de criança – é que ela se liberta
do universo dos adultos.
O que percebemos, portanto, é que a interação com o meio e com o outro
é um movimento basilar da constituição do sujeito e de sua aprendizagem.
Esse movimento de interação do sujeito com o outro (outro sujeito ou outro
meio) é um ponto de encontro entre diversos estudos sobre a criança e seus
processos de formação.
Hoje, o comportamento político e social quase não permite às crianças
muitos dos prazeres de outrora. As responsabilidades e convenções sociais
reservam a práticas prazerosas um pequeno espaço de tempo durante as
férias. A criança, já neste século, viu-se integrada em uma noção de
desenvolvimento, a qual passou a mostrá-la como um ser cujo crescimento é

137
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

um desdobrar-se numa sucessão de fases intelectuais e emocionais. Essa


realidade é muito bem representada por Osborne (2015) em sua adaptação
cinematográfica, uma vez que sua personagem infantil é privada de ter
amigos ou de brincar e obrigada a atividades que lhe façam crescer
socialmente.
Essa dubiedade quanto à preocupação com a educação infantil estende-
se do século XVI até a atualidade. Se por um lado buscamos proteger as
crianças daquilo que não é próprio a elas, como o que ocorre ao pequeno
príncipe na obra literária quando o aviador tenta protegê-lo da serpente que
lhe parece muito perigosa; por outro, vivemos a urgência de prepará-las para
o mundo, como acontece no filme quando a mãe priva a menina de uma
amizade com o vizinho idoso que nada tem a lhe oferecer, mas a expõe a uma
enorme responsabilidade ao deixá-la em casa sozinha e precisar, com isso,
administrar seu tempo entre as atividades do dia a dia – arrumar seu quarto,
preparar seu café, cuidar de sua higiene, praticar exercícios – e a rotina de
estudos.
Em cada uma das obras, como vemos, a criança ocupa um papel social
diferente e ao mesmo tempo semelhante. Diferente pelo contexto em que
vivem, já que o pequeno príncipe mora em um asteroide e não parece ter
obrigações escolares – como sabemos, a partir do século XX, a idade escolar
inicia após os 7 anos de idade, realidade que pode ter relação com as obras –
mas sim com os cuidados com a terra e com as plantas, trabalhos braçais que
bem representam a criança que vivia no campo ou que chegava ao meio
urbano durante a Revolução Industrial, período que marcou as mudanças
relacionadas à educação; enquanto que a menina vive em um centro urbano,
onde tem o papel de ser uma aluna exemplar, obter boa nota e conhecimentos
que lhe façam ser aceita numa boa instituição de ensino. Semelhante porque
as duas crianças são privadas de sua infância por obrigações que lhes tomam
tempo e atenção. No livro, por exemplo, o narrador, ao contar os segredos do
pequeno príncipe, diz: “Durante muito tempo não tiveste outra distração a
não ser a doçura do pôr do sol” (SAINT-EXUPÉRY, 2015, p. 26).
Na década de 1960, surge uma nova visão sobre a criança e como educá-
la, novos conceitos são tomados para compreendê-la de maneiras inovadoras
e outros são reformulados. Um dos princípios norteadores na direção de um
estudo sobre a infância é o conceito de cultura que passa a dar ênfase a “uma
lógica particular, um sistema simbólico acionado pelos atores sociais a cada
momento para dar sentido a suas experiências” (COHN, 2005, p. 19). É esse
sistema que nos permite dar sentido às coisas e interagir em nossas
comunidades.

138
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Cohn (2005) aponta que a reestruturação do que se entende por


sociedade permite não mais pensá-la apenas como “uma totalidade a ser
produzida, mas um conjunto estruturado em constante produção de relações
e interrelações” (p. 20). Assim, se vemos a sociedade sob outra ótica, vemos
também um novo papel do sujeito dentro dela. Isso implica olhar a criança
não mais como um simples “receptáculo de papéis e funções”, mas como
autores sociais autônomos que participam da constante construção cultural e
social e de seus próprios papéis dentro dela. Diante disso, compreendemos
que, conforme assevera Bakhtin (2017), ao agir, o sujeito atribui sentido e
valor a toda forma de conhecimento, o evento singular de ser deixa de ser
abstrato e se torna algo real, “aberto a uma relação de alteridade consigo
própria e com os outros” (p. 14). Na obra literária de Exupéry, bem como no
filme de Osborne, percebemos essa autonomia das crianças e a importância
de sua participação ativa nos eventos que lhes constituem.
A criança representada pelo protagonista da obra literária rompe com o
horizonte de realidade da criança que vivia o Regime de Vichy na Segunda
Guerra Mundial, período em que o livro foi escrito. A liberdade criativa e a
possibilidade de questionamentos da criança não eram permitidas na França
dessa época, ao contrário disso, a educação previa a obediência e a servidão
ao Estado e ao General Pétain. Assim, Exupéry coloca em choque o horizonte
do leitor que estava acostumado às crianças sem protagonismo social. Sua
personagem principal nega a expectativa de uma criança silenciada pelo
regime conservador e opressor, porque é posta como parte centralizadora da
narrativa, mais importante do que o próprio militar, representado pelo
aviador combatente, e ganha voz: “o principezinho, que me fazia milhares de
perguntas, parecia nunca escutar as minhas” (SAINT-EXUPÉRY, 2015, p. 15).
Ao olharmos para a protagonista do longa-metragem produzida por
Osborne nos anos 2000, vemos a representação da criança contemporânea
que tem uma infância autônoma na qual tem deveres e precisa preparar-se
para o acirrado mercado de trabalho, diferente daquela de 1943. Acreditamos
que a realidade dessa época é questionada pelo cineasta à medida em que ele
transforma o protagonismo da personagem ao longo da narrativa.
Nesse novo olhar para a criança, a partir da década de 1960, ela é
protagonista na criação de suas relações. Esse protagonismo é possível a
partir da elaboração de sentidos àquilo que a rodeia por meio de sistemas
simbólicos, numa relação de interação dialógica com o outro. Percebemos na
narrativa fílmica que esse ponto de vista é ali representado quando a menina
passa a interagir com as experiências do pequeno príncipe, personagem da
parábola escrita por seu vizinho idoso, e coloca-se numa posição dialógica

139
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

com o menino, valorando sua forma de ver o ambiente escolar a partir de


suas experiências na interação com o outro.
No Quadro 1, apresentamos recortes que demonstram o horizonte de
valores da instituição escolar e de que modo isso produz sentidos em relação
à infância e ao processo de ensino-aprendizagem.

Quadro 1 – O horizonte de valores da instituição escolar.

1:15:13’ 11:15:48 1:15:48’ 1:16:45’11:16:45’


Fonte: Osborne (2015).

Como podemos observar, o ambiente escolar é mostrado, na visão da


menina, como opressor, como uma forma de prisão. No recorte 1:15:48, o
diretor da escola deixa claro seu olhar a respeito do texto do aviador que a
menina leva com ela. Embora ela argumente sobre a sua importância, o
diretor afirma que essa “evidência de infância” não tem nada de essencial. O
homem a submete a uma “abordagem acelerada” para que se torne adulta.
Nesse sentido, é essencial percebermos, fora da ficção, qual é o papel que a
escola tem assumido na vida de seus alunos e quais resultados ela produz em
seu imaginário, uma vez que, conforme expressa Schmidt (1997), esse
processo de privatização idealiza uma criança que não representa a realidade
totalizada de nossos alunos.
Fridmann (2014) acredita que o que presenciamos hoje é uma crise de
identidades e de valores estimulada pelo amplo processo de globalização que
desconsidera as particularidades de cada sujeito e prioriza a massificação, a
mecanização e a automação de comportamentos e personalidades
(FRIDMANN, 2014, p 15).
A educação do século XXI exige cada vez mais dos infantes. Há a
Necessidade de que se adquira uma consciência global que demanda
conhecimento acerca de diferentes áreas do saber. Leitura, escrita, cálculo não
são mais suficientes para atender às exigências sociais; a criança e o
adolescente precisam conhecer as novas tecnologias e sistemas de
comunicação, economia e política sempre em nível mundial. Isso requer uma
preparação técnica mais especializada e exige da criança maior dedicação, o
que contribui para que os pais imponham uma série de atividades para as

140
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

crianças, deixando de lado o seu direito de escolha. O tempo que a criança


tem é escasso e completamente invadido por adultos, gerando, como
consequência, a perda do contato da criança consigo mesma. Todas essas
ações contribuem para que a criança se torne cada vez mais institucionalizada
e submissa ao que o outro considera melhor, privando-a da oportunidade de
explorar livremente os próprios desejos e impulsos. Tais fatos ficam bastante
evidentes na adaptação de Osborne (2015), uma vez que a criança
representada pelo cineasta tem a vida completamente organizada por um
planejamento que contabiliza cada minuto de seu dia, como apresentamos na
Figura 1.
Nesse sentido, Fridmann (2014) defende que estamos tirando das
crianças a chance de serem elas mesmas, pois além de querermos inseri-las
em uma “realidade monopolizada”, onde todos são iguais, buscamos fazer
uma leitura das crianças a partir de parâmetros e teorias, e “chegamos na
criança com verdades que vestimos como uniformes”, incautos para a
possibilidade de vermos a criança que temos a nossa frente em sua própria
realidade (p. 28).
O que percebemos ao longo da história é que as teorias que envolvem o
desenvolvimento infantil e suas formas de adquirir conhecimento foram
elaboradas em diferentes momentos e contextos históricos, e com visões
diversas sobre a infância e suas possibilidades. No entanto, há um aspecto
comum em todos esses estudos: os pesquisadores buscam ver a criança como
um vir a ser, um sujeito que está ainda em meio a um processo e a educação
é parte fundamental dessa formação.
É necessário, dessa forma, vermos cada sujeito diante de sua própria
singularidade, uma vez que cada sujeito possui valores próprios e reage de
forma única frente a cada situação e em relação ao outro/social, conforme
aponta Bakhtin (1997, p. 34). Assim, não se pode pensar um sujeito dado à
priori, padronizado, mas ao invés disso um sujeito axiológico, que age de
forma singular e que possui seu próprio tom emovito-volitivo que lhe impõe
um colorido próprio e lhe torna responsável por suas próprias ações (LOPES;
FERNANDES, 2017, p. 263).
Ao recorrermos aos estudos atuais sobre a educação, percebemos a
importância da interação do sujeito com o meio em que está inserido, no qual
esse sujeito busca, escolhe, elabora, interpreta, transforma, armazena e
reproduz as informações numa lógica de construção do conhecimento.
Assim, compreendemos que ao agir o sujeito atribui sentido e valor a toda
forma de aprendizagem.

141
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Desse modo, pressupomos que o processo de educação é atravessado


pelo processo de constituição do sujeito que se dá pela sua interação com o
outro (sujeito, ambiente, experiências etc.) a partir de uma relação dialógica.
O que significa dizer que esses dois processos andam de mãos dadas e que a
interação é elemento basilar para que aconteça a educação. Do mesmo modo,
a instituição educacional não pode em hipótese alguma conceber um ser
dado a priori e desconsiderar todas as experiências individuais de cada
educando e seus modos de atribuir sentidos aos eventos da vida.

Referências
ARIÉS, P. História social da criança e da família. 2ª ed. Rio de Janeiro. Guanabara. 1978.
BACHI, L. R. G. Uma análise textual de O Pequeno Príncipe: as visões sobre a criança no livro
de Saint-Exupéry e no filme de Osborne. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade
Estadual de Maringá. Maringá, p. 194, 2020.
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2ª ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BRAIT, B. Estilo. In. BRAIT, B. (Org.): Bakhtin: conceitos-chave. 5ª ed. São Paulo: Contexto, 2016,
p. 79-102.
COHN, C. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
FARACO, C. A. Linguagens & Diálogos: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo:
Parábola Editorial, 2009.
FRIEDMANN, A. O universo simbólico da criança: olhares sensíveis para a infância.
Disponível em: <https://territoriodobrincar.com.br/wp-content/uploads/2015/06/Adriana_
Friedmann_O_Universo_Simbolico_da_Crianca.pdf>. Acesso em: 25 abr. 2019.
GÉLIS. J. A individualização da criança. In: História da vida privada: da Renascença ao Século
das Luzes. Coleção dirigida por Phillipe Ariès e Georges Duby. Org: Roger Chartier. Trad:
Hildegard Feist. Disponível em: <http://groups.google.com.br/group/digitalsource>.
Acesso em: 25 abr. 2019.
LOPES, M. A.; FERNANDES, E. M. F. A singularidade do sujeito em Bakhtin: convocação a agir.
In: FERNANDES, E. M. F. Gêneros do discurso: dialogando com Bakhtin. Campinas, SP:
Pontes Editores, 2017, p. 241-268.
O PEQUENO PRÍNCIPE. Direção de Mark Osborne. França: Paris Filmes, 2015. 1 DVD (108
min.).
SAINT-EXUPÉRY, A. O pequeno príncipe. 49ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 2015.
SCHMIDT, M. A. M. S. Infância: sol do mundo. A primeira Conferência Nacional de Educação
e a construção da infância brasileira. Curitiba, 1927. (Tese) Doutorado em História,
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1997.

142
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS DE MULHER NEGRA A PARTIR DE


GÊNEROS DISCURSIVOS NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA 1

Graciethe da Silva de SOUZA2


Jorge Viana SANTOS3

A mulher negra ocupa e sustenta a base da pirâmide social no Brasil,


conforme apontam estatísticas realizadas por institutos como IBGE e IPEA.
Consideramos que “[...] os efeitos de um sistema escravista juridicamente
legal marcam, até hoje, desigualdades de gênero, cor/raça e classe no Brasil”
(SOUZA; RIBEIRO; SANTOS, 2020b, p. 3319), o que as mantêm à margem da
sociedade brasileira em diferentes esferas da atividade humana, trabalho,
política, ciência, arte, entres outras.
O Brasil possui sua história marcada política, social e economicamente
por um sistema escravista legal que durou cerca de quatro séculos, nos quais
se exploravam a mão de obra de africanos e africanas, inicialmente, e de seus
descendentes, posteriormente. Se para o homem negro escravizado o sistema
era cruel e impiedoso, para a mulher negra escravizada o era, no mínimo,
duas vezes mais, uma vez que a sociedade era patriarcal e racista,
constituindo-se, nesse contexto, uma relação hierarquizada, com pouca ou
nenhuma reciprocidade no que diz respeito a igualdade de direitos. Beauvoir
(1980), em seu pensamento filosófico a respeito da categoria de gênero,
argumenta que a mulher é definida a partir da relação homem-mulher, na
qual o homem é o parâmetro e cuja definição de mulher é calcada sob sua
ótica. Neste caso, a relação de alteridade é esta: a mulher é o outro do homem.
Nesse sentido, para Kilomba (2019), a mulher negra se configura como o
outro do outro. Além de não ser homem, não é branca. Nessa perspectiva,
gênero se configura como diferente de gênero na relação interseccional4
gênero-raça. No período escravista, essa relação, de fato, era a única possível
e estava legalmente respaldada: mulher negra escravizada era

1
Este trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –
CAPES (Código de Financiamento 001) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB.
2
Doutoranda em Linguística pelo Programa de Pós-graduação em Linguística (PPGlin) da Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Vitória da Conquista/BA, Brasil. E-mail: graciethe@live.com
3
Doutor em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor Titular do
Departamento de Estudos Linguísticos e Literários da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e docente
do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGLin-UESB), campus de Vitória da
Conquista/BA, Brasil. E-mail: viana.jorge.viana@gmail.com
4
Conforme considera Kilomba (2019), “[...] as intersecções das formas de opressão não podem ser vistas como
uma simples sobreposição de camadas, mas sim como a ‘produção de efeitos específicos’ (Antilhas e Yuval-
Davis, 1992, p. 100). Formas de opressão não operam em singularidade; elas se entrecruzam. O racismo, por
exemplo, não funciona como uma ideologia e estrutura distintas; ele interage com outras ideologias e
estruturas de dominação como o sexismo (Essed, 1991; hooks, 1989)” (KILOMBA, 2019, p. 98-99).

143
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

institucionalmente diferente de mulher branca. No pós-abolição, isto é, do 14


de maio de 1888 até os dias atuais, esse paradoxo parece se sustentar sob a
égide de um racismo estrutural5.
Por um lado, porém, “nas pesquisas sobre a escravidão, ainda é comum
notar que especialistas se referem aos escravos de forma geral, como se estes
fossem isentos de gênero e sexo, e pudessem ser inseridos numa categoria
única” (MACHADO, 2018, p. 353). Por outro lado, no que diz respeito aos
movimentos feministas, por exemplo, é necessário que mulheres negras
enfrentem e questionem, em pleno século XXI, a universalização da categoria
mulher (RIBEIRO, 2020, p. 20). Isto é, mulheres negras precisam reivindicar
nas pautas da agenda feminista um espaço para outras intersecções, entre
elas a da raça, fazendo-se surgir especificações para o feminismo, como o
feminismo negro, por exemplo.
Mediante tal cenário, considerando o que indicam documentos oficiais
e normativos no que diz respeito à educação, de modo geral, e ao ensino de
Língua Portuguesa, especificamente, faz-se necessário e urgente uma
abordagem, em sala de aula, do objeto deste artigo, qual seja: mulher negra.
Dentre outras possibilidades de como fazê-lo, consideramos, aqui, um ensino
pautado nos gêneros do discurso. Para tanto, empreendemos uma análise
fundamentada no aporte teórico-metodológico da teoria bakhtiniana de
gêneros do discurso. Conforme postula Bakhtin (2011), os gêneros
discursivos são os tipos relativamente estáveis de enunciados que organizam e
possibilitam as nossas práticas de linguagem orais ou escritas. Consideramos,
também, no que diz respeito à constituição de sentidos de mulher negra, uma
articulação com a Semântica do Acontecimento (GUIMARÃES, 2002), uma
semântica que considera a história na/para a constituição dos sentidos. Aqui,
recorremos ao gênero poema, especificamente o poema “Vozes-Mulheres”,
de Conceição Evaristo (1990), para mostramos essa possibilidade de
abordagem.
Assim, do ponto de vista estrutural, além desta seção, o texto possui a
seguinte organização: na seção 2, fizemos duas subdivisões, de modo que na
subseção 2.1 foi realizada uma abordagem teórico-metodológica a respeito
da teoria dos gêneros do discurso e sua aplicação no ensino de Língua
Portuguesa; e na subseção 2.2 foi realizada uma apresentação sob a
perspectiva teórico-metodológico da teoria da Semântica do Acontecimento

5
O racismo estrutural funciona como uma reprodução sistêmica de práticas racistas nas mais diversas esferas
da sociedade: econômica, política, jurídica (ALMEIDA, 2019). Portanto, trata-se de “um processo em que
condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos
da política, da economia e das relações cotidianas” (ALMEIDA, 2019, p. 34, grifo do autor).

144
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

em torno dos principais conceitos que serão mobilizados na análise, a saber:


temporalidade do acontecimento enunciativo e o político na linguagem. Na
seção 3, foi apresentado o corpus, isto é, o poema e, em seguida,
empreendemos uma análise e discussão dos resultados. Ao final, fizemos
uma seção de considerações finais, mostrando a relevância de estudar raça e
gênero na escola básica.

Possíveis abordagens teórico-metodológicas no ensino de Língua


Portuguesa

Os gêneros do discurso

Bakhtin e seu Círculo de estudos reelaboraram e estenderam para as


diversas esferas da atividade humana a noção de gênero cunhada por Platão
e Aristóteles. Conforme Bakhtin (2011), os gêneros do discurso são os “tipos
relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2011, p. 262), nos/pelos
quais acontecem todas as manifestações linguísticas. Assim, “o enunciado,
para o autor, é a forma de concretização da língua, realizada pelos integrantes
das mais diversas esferas da atividade humana, pois, em quaisquer que sejam
essas esferas, tudo passa pela língua(gem), sendo, pois, impossível haver
diálogo, interação, sem a linguagem verbal” (SOUZA, 2017, p. 47).
Nesse sentido, a língua possui uma dimensão que é propriamente
linguística, sistêmica e estrutural, mas, possui também uma dimensão
dialógica, portanto, comporta-se como uma entidade viva que está sempre
em movimento, transformada pelos segmentos sociais nos quais está inserida
e os transformando. Desse modo, “os gêneros discursivos emergem,
transformam-se e se transmutam ao passo que as mudanças vão acontecendo
na vida social, eles são o meio pelo qual organizamos e concretizamos o nosso
dizer” (SOUZA, 2017, p. 47). Nota-se, assim, que à noção de gênero do
discurso cabem questões históricas, político-sociais, interativas e situacionais
da linguagem.
Em termos práticos, o que Bakhtin chama de enunciados relativamente
estáveis são os artigos científicos, uma comunicação em eventos acadêmicos,
uma conversa informal, uma entrevista, um poema, um romance etc. A
aquisição de um repertório de gêneros acontece conforme somos expostos
aos enunciados nos diversos tipos de interações sociocomunicativas, assim,
“se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se
tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir
livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação discursiva
seria quase impossível” (BAKHTIN, 2011, p. 283).

145
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Dessa forma, toda e qualquer prática sociocomunicativa se dá por meio


de um gênero do discurso. A instrumentalização dos gêneros discursivos,
isto é, torná-los didáticos, tem se configurado em aliado para o ensino-
aprendizagem de línguas, uma vez que uma abordagem desse tipo vai além
de uma concepção de linguagem estruturalista, permitindo, pois, a interação
verbal para além dos signos linguísticos, para além do enunciado. Todas as
questões discursivas cabem, portanto, em algum gênero.
A teoria dos gêneros discursivos abrange áreas como a Filosofia, a
Literatura, a Antropologia e a Linguística. Embora não tenha sido cunhada
com o objetivo de balizar o ensino-aprendizagem de línguas, a Linguística
Textual tem recorrido a essa teoria como suporte teórico-metodológico.
Conforme Marcuschi (2012), “a linguística de texto parte da premissa de que
a língua não funciona nem se dá em unidades isoladas, tais como os fonemas,
os morfemas, as palavras ou as frases soltas. Mas sim em unidades de sentido
chamadas texto [...]” (MARCUSCHI, 2012, p. 91). Desta maneira, os
estudiosos que adotam essa corrente indicam como base do ensino o texto e
assume uma concepção sociointeracionista de linguagem (BRANDÃO, 2011),
considerando a diversidade de gêneros. Nesse ponto, a articulação com a
Semântica do Acontecimento parece promissora, uma vez que esta assume
uma concepção de língua enquanto constructo histórico, conforme será
abordado na próxima seção.

Constituição de sentidos: a Semântica do Acontecimento

Ao filiar-se aos estudos argumentativos de Ducrot (1984), aos estudos


enunciativos de Benveniste (1966) e dialogando com alguns conceitos da
Análise de Discurso de linha francesa, Eduardo Guimarães tem se dedicado
aos estudos em torno da significação. Ao cunhar a teoria da Semântica do
Acontecimento, o autor se coloca “numa posição materialista, junto com
aqueles que não tomam a linguagem como transparente, considerando que
sua relação com o real é histórica” (GUIMARÃES, 2002, p. 5). Desse modo, a
Semântica do Acontecimento considera que “a língua não é algo abstrato, é
algo histórico, se apresenta pela prática humana, por relações que
fundamentam o funcionamento desta prática cuja característica é de produzir
significações: a linguagem” (GUIMARÃES, 2018, p. 23). Nessa perspectiva, o
sentido é constituído linguística e historicamente, de modo que são
consideradas no acontecimento enunciativo as circunstâncias sociais que lhe
deram existência.
Dentre os conceitos cunhados na teoria, mobilizaremos, na análise, a
temporalidade e o político. No que diz respeito à temporalidade do

146
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

acontecimento enunciativo, trata-se, segundo Guimarães (2002) de:

uma temporalidade em que o passado não é um antes mas um memorável


recortado pelo próprio acontecimento que tem também o futuro como uma
latência de futuro. O sujeito não fala no presente, no tempo, embora o
locutor o represente assim, pois só é sujeito enquanto afetado pelo
interdiscurso, memória de sentidos, estruturada pelo esquecimento, que
faz a língua funcionar. Falar é estar nesta memória, portanto não é estar no
tempo (dimensão empírica) (GUIMARÃES, 2002, p. 14).

Dessa forma, a caracterização da temporalidade para Guimarães (2002)


não corresponde à ideia de tempo cronológico, ela é uma representação da
temporalidade pelo locutor, isto é, há uma disparidade que “significa
diretamente a inacessibilidade do Locutor àquilo que enuncia. O locutor não
está onde a enunciação significa sua unidade (tempo do Locutor)”
(GUIMARÃES, 2002, p. 14). Nesta medida, encontra-se a temporalidade do
acontecimento na língua (no enunciado). O acontecimento enunciativo
obedece ao tempo da língua, ou seja, “a temporalidade do acontecimento
constitui o seu presente e um depois que abre o lugar dos sentidos, e um
passado que não é lembrança ou recordação pessoal de fatos anteriores”
(GUIMARÃES, 2002, p. 12).
No que se refere ao político, segundo Guimarães (2002), a língua é
necessariamente atravessada pelo político. O político marca “[...] um conflito
entre uma divisão normativa e desigual do real e uma redivisão pela qual os
desiguais afirmam seu pertencimento” (GUIMARÃES, 2002, p. 22). Destarte,
o político é próprio da linguagem, pois enunciar é uma prática política, o
direito à palavra é permeado pelo político, pelo conflito, pela desigualdade.
O político, portanto, é “[...] a afirmação da igualdade, do pertencimento do
povo ao povo, em conflito com a divisão desigual do real, para redividi-lo,
para refazê-lo incessantemente em nome do pertencimento de todos no todo”
(GUIMARÃES, 2002, p. 23).
Consideramos que as questões teóricas propostas pela Semântica do
Acontecimento no que diz respeito à constituição do sentido na língua
também são pertinentes para refletirmos sobre o ensino-aprendizagem da
Língua Portuguesa no cenário brasileiro. Neste artigo, propomos uma
articulação entre a teoria dos gêneros discursivos e a Semântica do
Acontecimento no tocante ao ensino. Não estamos dizendo, com isso, que os
conceitos que ambas as teorias abordam devem fazer parte do objeto de
ensino do português, mas que tais conceitos podem nortear o trabalho do
professor, no que diz respeito à forma e ao conteúdo que será ensinado. Na
próxima seção, veremos que o objeto mulher negra pode ser tratado tomando

147
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

o poema – enquanto gênero discursivo e enquanto acontecimento


enunciativo – como ponto de partida e partir dele pensar a constituição de
sentidos circulantes em um antes, durante e pós-escravismo no Brasil.
Vejamos, agora, a análise.
O poema em sala de aula: versificando sentidos de mulher negra
O ensino de temas que abordam questões sociais e políticas é urgente e
necessário no Brasil e a questão da intersecção de raça e gênero dificilmente
ocupa lugar na sala de aula. A disciplina Língua Portuguesa é considerada
um componente curricular no qual os mais diversos temas podem ser
ensinados a partir de algum gênero, contribuindo para a formação de sujeitos
conscientes de seus deveres e direitos enquanto cidadãos que vivem em um
Estado Democrático de Direito.
O poema, gênero discursivo selecionado para este artigo, é caracterizado
principalmente por uma versatilidade no seu estilo e conteúdo temático6. No
poema, a linguagem assume diversas dimensões e funções. Recursos
sinestésicos e metafóricos são frequentemente mobilizados. O texto é
artístico. É real. Não é real. De qualquer modo, é um gênero de circulação nas
mais diversas esferas da atividade humana e possui função social, cujo valor
não se questiona. O poema em sala de aula, se trabalhado na perspectiva do
ensino de gêneros, pode se configurar um uma possibilidade de objeto de
ensino, desde que sejam explorados os pilares que o constitui, desde que se
consiga ir além do formal, do estrutural. É preciso explorar as entrelinhas, o
dito e o não dito: os sentidos; para isso, é preciso ir para a história, para a
temporalidade, para o político.
Logo, partimos de uma concepção de língua sociointeracionista, que
considera o seu contexto de produção, no qual devemos ponderar não só o
locutor, mas, também, o ponto de vista do seu interlocutor. Inferimos daí a
ideia de interação, em que o contexto orienta as práticas linguísticas. Nas
palavras de Bakhtin,
Não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou
mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou
desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um
sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e
somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas
ou concernentes à vida (BAKHTIN, 2014, p. 98, grifo do autor).

6
Os gêneros discursivos possuem três pilares, os quais, juntos, fazem com que a interação verbal aconteça.
Assim, “todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão
indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um
determinado campo da comunicação” (BAKHTIN, 2011, p. 261-262).

148
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

O poema “Vozes-Mulheres”7, de Conceição Evaristo, integra a série


Cadernos Negros, criada em 1978 e editada anualmente pelo Grupo
Quilombhoje, de São Paulo. O poema possui cinco estrofes, às quais
analisaremos observando as construções de sentidos no que diz respeito à
mulher negra que possui em cada uma delas. Vejamos o poema na íntegra,
inicialmente:
Vozes-Mulheres

A voz de minha bisavó Debaixo das trouxas As vozes mudas caladas


Ecoou criança Roupagens sujas dos brancos Engasgadas nas gargantas.
Nos porões do navio. Pelo caminho empoeirado
Ecoou lamentos Rumo à favela. A voz de minha filha
De uma infância perdida. Recolhe em si a fala e o ato.
A minha voz ainda O ontem – o hoje – o agora.
A voz de minha avó Ecoa versos perplexos Na voz de minha filha
Ecoou obediência Com rimas de sangue e fome. Se fará ouvir a ressonância
Aos brancos-donos de tudo. O eco da vida-liberdade
A voz de minha filha
A voz de minha mãe Recolhe todas as nossas vozes (EVARISTO, 1990, p. 32)
Ecoou baixinho revolta Recolhe em si
No fundo das cozinhas alheias

Dadas as informações contextuais a respeito do poema, tais como sua


autoria, o tráfico negreiro, a escravidão e, posteriormente, a formação de
favelas, consideremos que as vozes do texto, as quais o eu lírico se refere,
dizem respeito às vozes de uma linhagem de mulheres africanas e afro-
brasileiras, portanto, de mulheres negras. Cada estrofe do poema faz
referência às vozes coletivas do título, a saber, “vozes-Mulheres”. Nota-se,
conforme sinalizaram Souza, Ribeiro e Santos (2020), que em cada estrofe, há
um funcionamento similar, em torno do núcleo voz e os adjuntos/ou
determinantes (de minha bisavó, de minha avó, de minha mãe, minha voz, voz de
minha filha) que o acompanha, de modo que “cada estrofe estabelece, define
e constrói, pelo memorável de voz, sentidos diferentes de mulher negra”
(SOUZA; RIBEIRO; SANTOS, 2020a, p. 178-179). Cada estrofe, a partir da
segunda, retoma o título e a estrofe anterior. Iniciemos, pois, a análise da
primeira estrofe do poema:

(1) A voz de minha bisavó/Ecoou criança/Nos porões do navio. /Ecoou lamentos/De


uma infância perdida.

7
Souza, Ribeiro e Santos (2020) em artigo intitulado “Dos porões de navios negreiros ao eco da vida-liberdade:
sentidos de mulher negra no poema “Vozes-Mulheres” fizeram uma análise deste poema à luz da Semântica
do Acontecimento.

149
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Nota-se, na estrofe (1), que a mulher descrita pelo eu lírico é uma


africana negra que está sofrendo o processo de diáspora para ser escravizada.
Considerado a noção de memorável para a produção de sentidos, na qual o
acontecimento, – o poema, recorta um passado como memorável
(GUIMARÃES, 2002), é possível afirmar que se trata do tráfico de mulheres
negras ainda crianças, cuja infância é cerceada pela escravidão no novo
território. Vejamos a estrofe (2):

(2) A voz de minha avó/Ecoou obediência/Aos brancos-donos de tudo

Nesta estrofe, os sentidos de mulher negra são construídos a partir do


contexto da escravidão. O cerne da teoria bakthiniana é o posicionamento do
sujeito sócio-historicamente situado, por isso, para a construção da
significação da primeira estrofe do poema, é importante que se considere o
conhecimento contextual no que diz respeito ao escravismo, sistema legal de
exploração de mão de obra forçada que se constituiu a base socioeconômica
do Brasil por cerca de quatro séculos. A mulher negra, aqui, assim como a
mulher da voz da estrofe anterior é vítima do regime escravista, no qual o
escravizado é um objeto de direito, possui dono/senhor branco, donos de tudo,
inclusive da liberdade. Resta a essa mulher a obediência. Passemos à estrofe
(3):

(3) A voz de minha mãe/Ecoou baixinho revolta/No fundo das cozinhas


alheias/Debaixo das trouxas/Roupagens sujas dos brancos/Pelo caminho
empoeirado/Rumo à favela.

Nesta estrofe, a construção de sentidos de mulher negra passa pelo


memorável do imediato pós-abolição. Aqui, essa mulher não vive mais no
sistema escravista legal, contudo, as condições em que foi juridicamente
abolida a escravatura não permitiu ao povo negro uma vida minimamente
digna, do ponto de vista da sobrevivência. As senzalas deram lugar às
favelas, “mudou-se a época, mudou-se o regime, mas as ‘cozinhas’, e os
‘brancos’ são os mesmos, embora não mais chamados, juridicamente, de
‘donos’ (senhores)” (SOUZA; RIBEIRO; SANTOS, 2020a, p. 182). Sigamos a
análise com a estrofe (4):

(4) A minha voz ainda/Ecoa versos perplexos/Com rimas de sangue/e fome.

Aqui, na estrofe (4), o eu lírico se apresenta para o interlocutor, pela


primeira vez, no tempo presente da enunciação. Até a estrofe (3), a narração
foi feita no passado do acontecimento, cujos sentidos foram recuperados pelo

150
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

memorável. A voz que fala nesta estrofe ecoa revolta, é uma voz consciente,
uma voz que olha para quatro séculos atrás e constata que uma geração de
mulheres negras viveu e vive à margem da sociedade brasileira, esta é a voz
da mulher negra atual. Embora legalmente abolida, a escravidão traz
reformulada conforme espaço e tempo as suas marcas (FAUSTO, 1994).
Segundo Bakhtin (2011), todo enunciado é uma resposta a enunciados ditos
anteriormente e nisso constitui, em linhas gerais, o caráter dialógico da
linguagem. No poema, as vozes se estabelecem na relação dialógica com as
outras vozes, em enunciados passados, – primeira, segunda e terceira estrofes
– e em enunciados futuros, quinta estrofe. Finalmente, passemos à estrofe (5):

(5) A voz de minha filha/Recolhe todas as nossas vozes/Recolhe em si/As vozes mudas
caladas/Engasgadas nas gargantas. /A voz de minha filha/Recolhe em si a fala e o ato.
/O ontem – o hoje – o agora. /Na voz de minha filha/Se fará ouvir a ressonância/O
eco da vida-liberdade.

Ao longo de cada estrofe do poema, os sentidos de ancestralidade em


torno da mulher negra foram construídos verso a verso e ratificando na
estrofe (5), quando o eu lírico expressa que “a voz de minha filha recolhe
todas as outras vozes”. Em cada estrofe a dor e o sofrimento respeitou o
devido contexto: a estrofe (1) tratou do início da diáspora; a estrofe (2) tratou
da condição da mulher negra durante quase quatro séculos no Brasil, uma
condição de escrava; a estrofe (3) tratou da mulher negra em um pós-abolição,
mas que parecia continuar vivendo aquele sistema escravista, era a voz da
primeira geração de mulheres negras libertas; a estrofe (4) trata da voz do
agora, é a geração de mulheres negras atual, que sofre com as consequências
de um passado escravista, que vivencia o racismo cotidiano, que vive à
margem da sociedade, que vive as desigualdades de gênero e raça, que vive
na base da pirâmide social; e a estrofe (5) é a projeção de uma futuridade
diferente, trata da esperança, “a esperança de que um dia, no futuro, se fará
ouvir a ressonância do eco da vida-liberdade, onde vida e liberdade são, ao serem
marcadas por um hífen, indissociáveis” (SOUZA; RIBEIRO; SANTOS, 2020a,
p. 185).
Todo enunciado, segundo Bakhtin (2011), corresponde aos enunciados
de outros que o antecede, uma vez que o falante não é um Adão bíblico. Tudo,
na realidade, “é discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal), e este
não pode deixar de refletir-se no enunciado” (BAKHTIN, 2011, p. 300). Desse
modo, “do enunciado emanam diversas vozes e dizeres que já foram
proferidos em outros enunciados, em outras épocas e situações interativas.
[...] Todas as questões discursivas cabem em algum gênero [...] (SOUZA,

151
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

2017, p. 48)”. Assim, cada estrofe do poema em análise traz um diálogo com
outras vozes, em tempos e espaços outros.
Conforme a análise empreendida mostrou, nos diferentes tempos e
espaços a mulher negra tinha/tem direito à palavra, a voz. Contudo, esse
direito foi marcado por um conflito político que é próprio da linguagem.
Assim, o político, a partir da língua, fundamenta as relações sociais,
instaurando o “[...] conflito com a divisão desigual do real” (GUIMARÃES,
2002, p. 23). A distribuição da palavra é desigual.

Considerações Finais

Neste artigo, mostramos que os sentidos de mulher negra podem ser


construídos, em aulas da disciplina de Língua Portuguesa, a partir de um
trabalho pautado na teoria dos gêneros do discurso. Recorremos ao poema
“Vozes-Mulheres”, de Conceição Evaristo, para mostrarmos essa
possibilidade. Desse modo, empreendemos uma análise fundamentada no
aporte teórico-metodológico da teoria bakhtiniana de gêneros do discurso,
cuja concepção de linguagem é dialógica e, sendo assim, considera questões
histórico-ideológicas, traçando uma articulação com a teoria da Semântica do
Acontecimento, que também considera o sentido enquanto constituição
histórica. Conforme análise empreendida neste artigo, os sentidos de mulher
negra significam a partir das relações estabelecidas pela temporalidade do
acontecimento enunciativo, sobretudo pelos memoráveis. Deste modo, cada
estrofe do poema corresponde a uma geração de mulheres negras, que,
segundo os memoráveis apontaram, estava/está localizada em diferentes
tempos e espaços da escravidão/liberdade.
Desse modo, sendo os gêneros do discurso o meio pelo qual interagimos
discursivamente com as diversas esferas da atividade humana, o ensino de
Língua Portuguesa, ao considerá-los como ponto de partida, amplia a
possibilidade de formar sujeitos conscientes e conhecedores da competência
discursiva, política e ideológica da linguagem. Considerando-se os aspectos
históricos e sociopolíticos na “constituição de sentidos de mulher negra”, é
urgente e necessário que se tenha uma formação, desde a escola básica, em
torno deste tema. Esse trabalho pode ser feito por meio do texto/gênero como
o poema, por exemplo e se configura uma temática importante a ser discutida
em sala de aula, uma vez que, conforme mostra a História/Historiografia, o
Brasil traz marcas de um passado escravista funcionando na sociedade atual.
Homens e mulheres afrodiaspóricos precisam, cotidianamente, criar
mecanismos de resistência de luta contra o racismo e a favor de uma inserção
social mais justa e igualitária. A mulher negra possui, nessa perspectiva, uma

152
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

pauta dupla, no mínimo: lutar contra o racismo e contra a desigualdade de


gênero.

Referências
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BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. Ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2011.
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problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 16. ed. São Paulo: Hucitec,
2014.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida. Tradução de Sérgio Millet. 4. Ed.
São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1980a.
BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral I. São Paulo: Editora Pontes, 1991. Edição
original: 1966.
BRANDÃO, Helena Nagamine. “Texto, gênero do discurso e ensino”. In: BRANDÃO, Helena
Nagamine (Org.). ID. Gêneros do discurso na escola: mito, conto, cordel, discurso político,
divulgação científica. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2011, p. 17-45.
DUCROT, Oswald. “Esboço de uma teoria polifônica da enunciação”. In: DUCROT, Oswald. O
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EVARISTO, Conceição. Vozes-mulheres. In: Cadernos Negros 13. São Paulo: Quilombhoje, 1990.
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FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora Edusp, 2006. Edição original: 1994.
GUIMARÃES, Eduardo. Semântica do Acontecimento: um estudo enunciativo da designação.
Campinas: Pontes, 2002.
______. Semântica: enunciação e sentido. Campinas, SP: Pontes Editora, 2018.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira.
1. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. “Mulher, corpo e maternidade”. In: SCHWARCZ,
Lilia Moritz; GOMES, Flávio dos Santos. (Orgs.). Dicionário da escravidão e Liberdade.
São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 353 – 360.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Linguística de texto: o que é e como se faz? São Paulo: Parábola,
2012.
RIBEIRO, DJamila. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020.
SOUZA, Graciethe. Língua Portuguesa no ensino médio: o texto como ponto de partida (?).
Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Programa de Pós-
Graduação em Linguística – PPGLin. Vitória da Conquista-BA, 2017.
SOUZA, Graciethe; RIBEIRO, Jaqueline; SANTOS, Jorge. “Dos porões de navios negreiros ao eco
da vida-liberdade: sentidos de mulher negra no poema ‘vozes-mulheres’”. In: DIAS, Luiz
Francisco; DALMASCHIO, Luciani. (Orgs). Movimentos do linguístico: forma e sentido
em enunciação. Belo Horizonte: Editora FALE/UFMG, p. 171-188, 2020a.
SOUZA, Graciethe; RIBEIRO, Jaqueline; SANTOS, Jorge. “Sentidos de mulher negra nos
domínios da temporalidade: uma escravidão ainda por findar-se (?)”. Revista Philologus,
Rio de Janeiro: Ano 26, n. 78 Supl.,: CiFEFiL, p. 3312 – 3322, set./dez.2020b.

153
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

154
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

“EMPECÉ ASÍ, DE LA NADA”


Vozes que dialogam na constituição da trajetória de uma professora
cubana

Alexander Armando CORDOVÉS-SANTIESTEBAN1


Deysi Emilia GARCÍA-RODRÍGUEZ2

Ecos do ‘nada’

‘Empezar de la nada’. Eis uma das vozes/ideias desvendada no percurso


da (re)(des)construção da trajetória de uma professora de ensino secundário3
em Cuba. Mas, é possível começar ‘do nada’? Quais as vozes que povoam ‘o
nada’?
Trajetórias carregam inscrições diversas. São povoadas por vozes que
transparecem nas relações que nelas se constroem. Vozes entendidas,
seguindo a Bakhtin (2013) como ideias, como concepções passíveis de se
expressarem em relações dialógicas, livres de participar de maneira ativa e
responsável no devir, mas em coexistência com outras vozes, produzindo
sentidos diversos. Vozes que contém outras vozes em si próprias e que
dialogam com os tempos, e que se escutam, algumas, com mais força, outras
parecem com barulhos, outras ainda não foram pronunciadas e “esperam os
tempos e os espaços sociais, culturais, históricos, propícios para (re)nascer”
(GARCÍA, 2018, p. 35).
Quais algumas das vozes que dialogam na constituição das trajetórias
de professores/as em Cuba? Algumas das vozes que dialogam, e é possível
escutar, são as do Sistema Nacional de Educação cubano. A força que
conferem os ‘espaços oficiais de diálogo’ permite escutar com clareza sons
ligados às políticas educativas cubanas, àquelas que se reconhecem, no
âmbito internacional, como um projeto de educação potente, àquelas que
sustentam a constituição do projeto político social que, ao mesmo tempo, as
constitui (CORDOVÉS, 2017). As estatísticas anunciadas nas manchetes
internacionais e nos relatórios dos diversos órgãos multilaterais reconhecem
um sucesso apresentado como totalidade. Um sistema educativo que contém
as vozes de políticas públicas universais, homogêneas, centralizadas e, em

1
Doutor em Antropologia Social. Professor em tempo integral na Universidad Internacional Iberoamericana–
UNINI, Campeche, México. E-mail: acordovess@gmail.com; alexander.cordoves@unini.edu.mx.
2
Doutora em Psicologia. Professora em tempo integral na Universidad Internacional Iberoamericana–UNINI,
Campeche, México. E-mail: garciadeysiemilia@gmail.com; deysi.garcia@unini.edu.mx.
3
O Sistema Nacional de Educação cubano estrutura-se, no que tange à educação geral, nos seguintes níveis de
ensino: ensino primário (1ª a 6ª séries); ensino secundário (7ª a 9ª séries); ensino pré-universitário (ensino
médio). Existe, também, ensino técnico de nível médio.

155
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

decorrência, verticais. Como são escutadas e (re)(des)constituídas as vozes


oficiais? Como compreender trajetórias de docentes nessa polifonia de vozes?
As possibilidades encontram-se “nas suas relações com o contexto onde são
apresentadas, porque só no momento do acontecimento ganham sentido e
têm a potência de produzir outros, de provocar novos rumos, e (re)desenhar
outros tecidos” (GARCÍA, 2018, p. 48).
Para Bakhtin (2012), a existência do singular, aliás, das vozes pessoais, é
possível só a partir da existência de um outro, de outras vozes, em relações
que veem a completar a sua existência. Desta forma

a existência dos outros é condição [...] para a constituição de um ‘eu’, ou


seja, das subjetividades, das singularidades, nos seus múltiplos
entrelaçamentos e relações. São constituições/criações povoadas de outros
ou de vozes, em relações de múltiplas superações, diálogos,
responsabilidades e respondibilidades, proximidades e distâncias, de
possíveis, segundo penso, que coexistem nos espaços e nos tempos
históricos e culturais (GARCÍA, 2018, p. 154).

A constituição do Sistema Nacional de Educação em Cuba 4 desde o


triunfo revolucionário de 1959 se tornou objetivo do projeto político social
que se iniciou a construir. À vez, foi uma das ferramentas fundamentais aos
fins daquele projeto. O que hoje podem se entender como façanhas 5 no
contexto Latino-americano, começou pela convocação às pessoas para
participarem ativamente no esforço coletivo de atingir os objetivos que foram
colocados. Os sentidos produzidos inicialmente falavam do protagonismo
das pessoas como sendo necessário para a transformação do país. Mas, as
políticas públicas centralizadas que foram se implementado no decorrer dos
tempos não só decretaram a homogeneização das escolas no intuito de
eliminar as diferenças existentes do serviço educativo dependendo da classe
social, também foram privilegiando o valor das regulamentações. Com isto,
“o sujeito (leia-se professoras/es) valorizado como sendo fundamental na
realização do projeto político-social cubano, se torna alguém que deve
cumprir regulamentos, alguém cuja atuação é reproduzir na sala o que outros
pensaram para [ele] ensinar” (CORDOVÉS, 2017, p. 45).
Neste cenário, ganha relevância auscultar, nas vozes de professoras/es,

4
Uma análise ampla sobre a constituição do Sistema Nacional de Educação cubano pode se consultar em
Cordovés (2019).
5
Eliminação do analfabetismo que afetava ao 80% da população; universalização do ensino primário
(fundamental) na primeira década; universalização do ensino secundário (seguindo os níveis de ensino em
Cuba) na segunda década; quase 100% de escolarização de crianças em idades para o ensino fundamental;
altos índices de sucesso escolar; dentre outros (CORDOVÉS, 2017).

156
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

como construíram suas trajetórias. Assim sendo, o presente trabalho visa


compreender a trajetória de uma professora cubana entrevistada em 2015
durante trabalho de campo realizado na escola de ensino secundário Lidia
Doce em vários momentos entre 2015 e 2016. Usando a entrevista narrativa,
a fala foi gravada e transcrita após a professora assinar o termo de
consentimento livre e esclarecido autorizando a gravação e o uso do material
produzido para fins acadêmicos e de divulgação científica.

Vozes que povoam ‘o nada’: a trajetória

Nos tempos da entrevista, Daysi contava quase quarenta anos de


atuação como professora, o que a coloca em uma condição de privilégio
enquanto interlocutora, que carrega na sua voz a coexistência dos tempos e
espaços vividos, em dialogia com outras vozes. Sua entrevista desvendou o
seu percorrer pelos eventos-acontecimentos que constituíram sua trajetória
profissional como cronotopo de sua existência. Quer dizer que, através das
vozes que a habitam foram emergindo as relações dialógicas que se
produziram na constituição subjetiva de si própria, na sua formação
profissional, nas suas práticas, perpassadas pelas políticas públicas a partir
das quais essas práticas eram constituídas e nas políticas públicas que foram-
se constituindo nessas práticas, nas políticas públicas que constituíram sua
formação profissional, nas escolas nas quais atuou, e algumas das
experiências que marcaram os rumos dessa trajetória.
Próxima a se aposentar, Daysi, quem sempre valorou sua formação de
graduação na modalidade semipresencial como inferior à formação dos
cursos regulares diurnos, era uma das professoras de espanhol e literatura
mais reconhecidas do município de Holguín6.
O começo de sua atuação como professora desvenda tensões que
marcaram suas práticas ao logo de sua trajetória profissional, (des)colocando
seus tempos e espaços. A renúncia à opção de fazer um curso superior em
Havana, após concluir o ensino médio, abriu a de atuar em uma escola de
ensino politécnico como professora de Espanhol, no município Báguanos 7,
onde residia na época. E ali, sem formação especializada, passou da cadeira
da aluna à cadeira da professora, carregando as experiências e conhecimentos
atesourados na sua trajetória como estudante. Aos poucos, aprendizados e
práticas em salas de aulas misturavam-se com sua formação inicial como
professora em um curso profissionalizante de quatro anos no então Instituto

6
Holguín é o município capital da província homônima, no leste cubano.
7
Município da província de Holguín.

157
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

de Perfeccionamiento de la Educación (IPE). Concluída essa formação inicial,


entrou num curso superior para trabalhadores no Instituto Superior Pedagógico
de Holguín (ISPH), com sede em Holguín, aonde tinha que se deslocar os
sábados, quinzenalmente, para se formar licenciada em espanhol. Ressalta,
na sua narrativa, esses períodos de formação:

[…] comencé en el IPE. Estudiamos ahí 4 años y después pasamos al


Pedagógico. Cuando aquello había una preparación muy buena en el IPE,
teníamos muy buenos profesores. Un profesor que se llama Mauri, que
todavía lo recuerdo porque es uno de los talentos de la Provincia Holguín.
Él vivía en Báguanos y yo era del municipio Báguanos, nos preparó muy
bien. Y pasé al Pedagógico con muy buenos profesores. Yo tuve la suerte
de tener muy buenos profesores en esa etapa en el Pedagógico (DAYSI,
29/12/2015).

Assim, sua atuação em sala de aula tornou-se em um espaço de


dialogias, onde as vozes da sua formação começavam a constituir suas
práticas. Dialogias que produzem o aprimoramento do ensino e chamam a
atenção de Daysi sobre a qualidade dos professores que ela tinha. Porém,
insuficientes para lidar com todas as tensões da prática. Nesses anos, na
década de 1970, as salas ainda se organizavam por sexo, e ela atuava em salas
para homens quase da mesma idade dela. Nesses tempos, as exigências dos
professores e suas próprias experiências foram aprimorando a atuação de
Daysi, em um contexto onde, alunos e professora, compartilhavam
(in)experiências. “Al principio, tú sabes que uno no tiene esa maestría y tenía
problemas en los grupos, y los muchachos mismos me ayudaron” (DAYSI,
29/12/2015). As relações que foram se constituindo apagaram limites entre o
ensinar e o aprender. Ambos os atores do processo de ensino-aprendizagem
(professora-alunos), misturaram-se em uma multidão de vozes que
marcaram suas maneiras de fazer em salas de aulas, suas maneiras de encarar
os problemas. As vozes desses aprendizados/atuações serão escutadas
novamente em sua trajetória, diante outras tensões, diante de outros eventos.
Nestes primeiros anos de formação/atuação, outros eventos-
acontecimentos foram narrados por Daysi: se transferiu para outra escola no
mesmo município, encerrando assim sua atuação no ensino técnico e
iniciando-se no ensino secundário, nível do qual nunca mais se desligou. A
nova escola, segundo Daysi, tinha uma equipe pedagógica muito qualificada,
o que a obrigava a se aperfeiçoar profissionalmente, para não ser qualquer
uma. Assim, as motivações que davam substância a sua formação se
fortaleciam, constituindo um sentido importante ao longo de sua trajetória.
A atuação naquela escola, onde se colocava como novata, servia aos fins,

158
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

também, de fazer dialogar toda aquela teoria que, paralelamente, aprendia


no Pedagógico, porque “[...] en la universidad tienes mucha teoria, pero la
práctica es la que te da el critério de la verdad” (DAYSI, 29/12/2015). As vozes
da formação se inscrevendo na sua prática. Dialogia que criava novas vozes.
Após três anos atuando na escola de ensino secundário de Báguanos,
Daysi solicitou ser transferida para Holguín, porque o marido dela morava
naquela cidade. A transferência não era imediata naqueles tempos. Existia
uma lista de pessoas pedindo ser transferidas. Não tinha a opção de escolher
a escola. Finalmente, foi destinada a lecionar numa escola apara crianças e
jovens com problemas de comportamento: a Escuela de Conducta8.
Recém-formada como licenciada em Espanhol, no novo coletivo era uma
das três pessoas que tinham curso superior concluído. Os sentidos daquela
experiência, revista despois de tantos anos, desabrocham na sua narrativa:

[…] tuve que coger una plaza que yo creo que me dio el toque a mí de mi
preparación, que fue en la escuela de conducta […] Cuando yo llegué allí,
mi preparación se iba por encima (sorri) de los profesores que estaban allí,
porque los profesores que estaban allí, casi todos los que estaban allí eran
los castigados, por cualquier cosa que hacían los mandaban, porque nadie
quería trabajar con niños de…, con niños con problemas de conducta. No
es como ahora que la gente se especializa, y allí los compañeros
realmente..., yo llegué como profesora y hasta a mi jefe (sorri) yo le tenía
que decir, ‘no eso no se hace así’, ayudarlos porque estaban muy mal
preparados, muy mal preparados (DAYSI, 29/12/2015).

Sentiu-se desafiada de outra maneira, novas tensões fazendo emergir


outras faces. Se tornou a professora que assessora, que ensina, que contribui
para o aprimoramento das/os colegas da nova equipe. Novo cenário de
atuação o era também no Sistema Nacional de Educação. A Escuela de
conducta atendia os níveis primário e secundário, e a matricula era
conformada por alunas/os com um histórico de crimes, sendo alguns crimes
graves. Também alguns não alfabetizados. Para Daysi, os dois desafios
fundamentais nesse momento foram: se aprontar para assessorar aos colegas
no seu aperfeiçoamento e aprender, junto à equipe de psicólogas/os,
psiquiatras, psicopedagogas/os e especialistas do Ministério do Interior
(MININT) como participar na educação daquelas/es alunas/os, sob os
procedimentos de segurança estabelecidos. Vozes outras que começaram a se
escutar, a participar do diálogo. As de múltiplas histórias de vida, tanto dos

8
Nomeadas oficialmente Escuelas de Formación Integral (EFI), essas escolas têm uma dupla subordinação: ao
Ministério de Educação e ao Ministério do Interior.

159
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

alunos quanto dos colegas. Histórias perpassadas pelos silêncios, pelos não
ditos. Uma outra face da educação. Outras maneiras de se ensinar e de se
aprender na trajetória de Daysi.
A dificuldade maior com as/os colegas era atravessada pelo desinteresse
em aprimorar sua formação. O trabalho pedagógico se tornava mais difícil
posto que a maioria deles cumpriam punições administrativas. Já em relação
ao alunado, desvenda as complexidades da atuação. O grau de diferenciação,
de individualização nas estratégias pedagógicas era necessário, incluindo as
maneiras de garantir uma atuação em segurança. Além de ministrar aulas, as
tensões da atuação incluíam impedir as fugas, as autoagressões e as agressões
aos outros. A realização de atividades esportivas e de lazer que exigiam
trabalhar à noite.
Após três anos de aprendizados que nunca imaginou, de uma atuação
que veio a alargar suas possibilidades a partir das relações que aquele cenário
lhe possibilitou, de encarar um mundo que nem sabia que existia, Daysi foi
para a escola de ensino secundário onde passou a maior parte de sua carreira:
a escola Juan José Fornet Piña. E outras tensões se apresentaram à Daysi,
novamente ligados à equipe pedagógica.
Na época o professorado se organizava por cátedras9. Nos conselhos de
classe10 da cátedra, o chefe explicava, na tela, os conteúdos planejados para
cada semana, como se as/os professoras/es fossem alunas/os. A seguir
ajudava a cada um/a no planejamento individual das aulas. Esse o modelo
ressaltado por Daysi, o mesmo que se mantém vigente até hoje para o trabajo
metodológico (MINED, 2014). Nesta equipe (re)aprendeu a necessidade de
ritmos diferenciados, de reforços individualizados, como estratégia para ir
além de aulas ministradas homogeneamente para a turma toda.

Esos niños con mayor dificultad tienes que cogerlo tú solo y empezar con
ellos, a veces desde el principio, para que el niño logre…, a no ser un niño
que tenga problemas muy graves en el aprendizaje, los niños aprenden,
algo aprenden. Y eso me lo enseñó esa escuela. De esa escuela tengo
momentos muy gratos (DAYSI, 29/12/2015).

A criação de outras condições para ensinar. Discência que emerge na


docência, no sentido apontado por Freire (2002). Acontecimentos produzidos
naqueles tempos que passaram a constituir sua trajetória nos tempos por vir.

9
O termo, em espanhol, em uma de suas acepções, faz referência ao local onde se domina uma ciência ou arte.
Assim, cada disciplina conformava uma cátedra.
10
As cátedras visavam o aprimoramento em metodologias de ensino.

160
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Atuando na Fornet chegou a era dos Professores Generalistas Integrais11


(PGI). Novas condições com novos desafios. A reconfiguração do ensino
secundário em Cuba iniciada em 200112 criou a figura do PGI. Daysi saiu de
férias como professora de espanhol. Voltou à escola sendo professora
generalista integral. Da noite para o dia estava sozinha numa sala de aulas
ministrando todas as disciplinas. Mais uma vez, diante da imensidão de uma
sala de aulas, em uma solidão povoada, só na espera de escutar as vozes e os
seus (re)nascimentos. Ninguém sabia como ser PGI. Para Daysi, o desafio
maior estava nas Matemáticas: era a disciplina mais difícil.
No início, foi informada de sua nova função: mediar as aulas
transmitidas por televisão. Os/as estudantes aprenderiam tudo através da
tela. Mas, a televisão não dava conta, e a Daysi finalizava ministrando as
aulas. Algumas experiências foram, segundo conta, vergonhosas:

Yo llegué a estar solita, solita en un aula con 40 niños, dando, dando no,
intentando dar todas las asignaturas, eso es intentar. A veces me olvidaba
de la mía, como era la que más conocía. Y una madre me llegó a decir un
día, Daysi, tus niños están preparados teóricamente en Geografía, pero, a
la hora de un mapa están muy mal, en la práctica están muy mal. Y yo les
decía, pero que más tú quieres si yo no soy profesora de Geografía, yo no
soy especialista, no puedo estar para esa misión. Pero intentaba hacerlo.
Por lo menos la teoría yo se la daba, pero la práctica realmente los
muchachos tenían dificultades (DAYSI, 29/12/2015).

As novas políticas educativas forçavam à Daysi a uma atuação que, além


de não ter formação, ia na contramão do que suas vozes/ideias falavam sobre
o que devia ser o ensino. No entanto, descreve as estratégias seguidas. Para
ministrar Geografia, o marido lhe ajudava, nas noites, a estudar, a ensinava
o trabalho com os mapas. Colegas da escola esclareciam dúvidas sobre
história, química, física. Mas, em Matemáticas os esforços tiveram que ser
maiores. As estratégias mais diversas.
As experiencias, disse, renderiam dias de falas. Já com a primeira turma,
sugeriu aos pais e as mães contratassem repasadoras13. Assim assegurava

11
Em 2001 foi (re)configurado o ensino secundário em Cuba. Por causas múltiplas, o modelo pedagógico
mudou. Foi criada a figura do Professor Generalista Integral. Na sua idealização, devia se focar na
aprendizagem e no conhecimento aprofundado da turma. O ensino dos conteúdos de cada disciplina era
através da televisão. O PGI atendia as dúvidas dos estudantes. Todos os professores tornaram-se PGI, sem um
aperfeiçoamento prévio. A mudança atingiu a formação do professorado para o ensino médio. Deixaram-se
de formar por disciplinas e começaram a se formar como PGI. Na prática, o modelo fracassou.
12
Para aprofundamentos ver Cordovés (2017).
13
São nomeadas/os de repasador/a professores/es aposentados que dão reforços. Na prática são professoras/es
particulares. Sua proliferação começou junto com as/os PGI, devido à desconfiança, da sociedade toda,
daquelas/es professoras/es.

161
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

algum ensinamento melhor do que ela podia oferecer. Mas, nem tudo podia
ser resolvido assim. Uma vez, uma repasadora lhe disse que um dos alunos
era muito talentoso. Com essa informação, pediu para o estudante ensinar ela
a resolver os problemas que não compreendia. Na sala de aulas, buscava a
aprovação dele enquanto ela explicava algum conteúdo. Foi uma das formas
que encontrou para tentar aprender Matemáticas.

Tenía un alumno, que ahora está en la Universidad ya terminando su


carrera, que era brillante. Con ese niño yo me preparaba, para repasar a los
demás y para dar las clases. Y él me decía, profe, la clase estaba bien, pero
la clase es una mezcla de Español con Matemáticas. Porque yo no era…, no
tenía ninguna preparación y mi asignatura era Español. Porque los
términos matemáticos yo los desconocía. Y ese mismo niño me repasaba a
los demás niños del aula, para prepararlos en Matemática (DAYSI,
29/12/2015).

Com outra turma, enfrentou a realização de provas para validar o


modelo pedagógico. Ela não sabia resolver as provas de Matemáticas. Seus
alunos iam para casa sem ter um feedback, até ela encontrar quem resolvesse
as provas. Em outras ocasiões, na resolução de um problema, vários alunos o
faziam de formas diferentes e ela ficava perdida, porque não era a forma que
‘aprendeu’. Tinha que sair da sala, buscar um professor de Matemáticas, e ele
confirmava que todas as formas estavam certas. Assim foi encarando Daysi a
estratégia do país para o ensino secundário. Quando suas aulas de
Matemáticas eras inspecionadas, ela passava mal, porque achava que estava
numa encenação, e ainda, para assegurar, pedia para algum aluno, caso
encontrasse algum erro na tela, dizer para ela corrigir.
Nota-se a procura constante de outras vozes que a ajudassem na sua
atuação. Sem se importar de quem era a voz. Superando os temores de se
expor como alguém que não sabe fazer, que não compreende algo. Se em
outras experiências outros alunos a ajudaram a resolver os desafios
cotidianos, desta vez não foi diferente. Voltaram os desdobramentos da
professora/aluna. A escuta atenta de outras vozes em dialogo lhe permitiram
se aprimorar, resolver os problemas que se apresentavam, fazer o seu melhor,
(re)(des)configurar as políticas impostas numa época de crise para o país.
Assim, para Daysi foi um período de muito aprendizado:

Bueno, aprendí muchísimo. Aprendí para mi preparación cultural


muchísimo, porque tuve que aprender de todas las asignaturas algo, y
cosas que yo no conocía […] En Biología, aprendí muchísimas cosas que yo
no sabía, porque estuve, ya te dije, un tiempo, solita. La Historia me
encantó, la Historia tiene bastante relación con mi especialidad por los

162
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

marcos históricos, pero bueno, hasta ahí yo estaba preparada, pero tuve
que aprender muchísimo de Historia, yo hoy en día me atrevo a dar
Historia como un profesor de Historia. Que me era más fácil para mí. Y
aprendí algo de Matemática […] No todo el mundo tiene la facilidad de ser
bueno en Matemática, en Matemática no era buena y tuve que aprender
Matemática (DAYSI, 29/12/2015).

Além do aprimoramento cultural, segundo descreve Daysi (29/12/2015),


nessa época puderam ajudar “al proceso histórico que tenía la educación
cubana, porque era difícil, no había maestros, no había maestros y tuvimos
que dar un paso al frente”. Nestes tempos, Daysi começou viver com uma
nova condição: hipertensão. Por conta disso, concluído o terceiro ano da
implementação do modelo PGI teve que pedir transferência para uma escola
mais perto da casa. Assim chegou na escola Enrique José Varona 14 (el Varona).
Ali pediu ao diretor para não ensinar sozinha numa turma e, se possível,
junto a um/a professor/a de Matemáticas. Necessitava ser dispensada do peso
que significava ministrar aulas dessa disciplina. Foi o início de uma parceria
com a professora Elda (formada como especialista em Matemáticas) que
durou até que finalmente voltaram a ministrar aulas por especialidade. E
emergiram outras vozes no diálogo com os tempos e os novos espaços.
Mas, em tempos convulsos, as mudanças podem se atropelar umas com
outras. Novamente, no Sistema Nacional de Educação implementaram-se
políticas que impactaram na trajetória de Daysi. Desta vez, a escola de ensino
secundário onde trabalhava, voltou, como em tempos anteriores, a funcionar
como escola de ensino pré-universitário. O remanejo visava alinhar o Sistema
Nacional de Educação aos novos rumos do país 15, objetivando reduzir as
despesas em educação sem afetar a qualidade e as oportunidades de acesso
(aliás, uma redução geral nos gastos sociais). Os alunos e os professores
foram transferidos para outras escolas. A escola Lidia Doce recebeu
muitas/os estudantes e professoras/es do Varona. No caso de Daysi e sua
parceira, conseguiram ser transferidas junto a turma toda e continuar com ela
até finalizarem o ensino secundário.
Na nova escola, uma outra posição simbólica ganhou como professora,
a partir da qual se definia o seu trabalho. O diretor, não permitia que ela
atuasse como professora guia16, sua responsabilidade era só ministrar aulas
de Espanhol. Assim, seus conhecimentos podiam se espalhar a uma maior

14
Uma das escolas de maior prestígio em Holguín.
15
Para aprofundamentos, vide Cordovés (2017).
16
O professor guia é uma figura que coordena o trabalho pedagógico de uma turma. Sua carga de horas-aulas
é menor para se dedicar ao trabalho pedagógico e conhecer melhor as particularidades de cada estudante. O
ideal é que acompanhe à turma durante os três anos do ensino secundário.

163
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

quantidade de alunos. Tal era o prestígio que tinha atingido aquela mulher,
formada num curso aos finais de semana, e que se tornou professora por
rejeitar estudar em Havana. E aprendeu a amar a nova escola, graças, disse,
a atuação do diretor.
Na época da entrevista, passou a ter uma outra condição de saúde:
Diabetes Mellitus. As doenças não a impediam de trabalhar. Seus “niños” não
podiam ficar sem professora. Transparecem, na sua atuação, vozes de tempos
múltiplos: das diversas equipes pedagógicas que integrou; de estudantes que
se tornaram professoras/es; de chefes que viraram referências que ecoam nela
até os dias de hoje; das políticas educativas que em cada época marcaram os
rumos de sua trajetória.
Cada novo cenário de trabalho o encarou como um desafio, aprendendo
sempre dos outros, dos espaços, e das tensões que neles e com eles foram
(re)constituídas. Nos tempos em que foi entrevistada, se pensava já como
uma professora formada, após 37 anos de experiências, mas continuava a
aprender e aceitar desafios. Em sua narrativa, é como se Daysi ainda não
acreditasse que se tornou uma das professoras de maior prestígio do
município.

Leituras finais

“Eu não sou eu nem sou o outro,


Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro.”
Mário de Sá-Carneiro

A história de Daysi nos mostra uma trajetória profissional cuja


constituição é produzida em uma multiplicidade de relações dialógicas a
partir dos vínculos eu-outros, eu-contextos, eu-espaços, eu-políticas, eu-
experiências. Vínculos que podem ser (re)significados a partir de novos
eventos, mudando os roles que se desempenham, as maneiras de atuação, as
formas de resolver os problemas, o próprio caráter das relações. Assim sendo,
a produção de sentidos aparece atrelada a essas relações: com sua prática
como professora que se forma; com sua formação em um curso para
trabalhadores; com as equipes pedagógicas; com os diversos alunos nos
diversos momentos; com as diferentes instituições e as suas particularidades;
com as políticas públicas; com as novas condições de atuação; com ela própria.
Isto nos permite assumir que trajetórias individuais só podem ser
compreendidas se analisadas no contexto da multiplicidade de relações

164
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

dialógicas que as constituem, ligadas aos eventos-acontecimentos nos que se


criaram outros possíveis, novas condições para a atuação, novos desafios,
novas aberturas, ou naqueles em que se enxergaram os próprios limites, as
impossibilidades. Trajetórias são assim vistas, nos intermédios entre os “eu”
e os “outros”, e nos informam de eventos-acontecimentos polifônicos, onde
as próprias vozes são (re)vividas, (re)significadas nas relações dialógicas com
as vozes dos outros, as vozes de outros tempos. Onde as possibilidades de
outras formas de atuar-pensar são produzidas. Onde encontra-se “[...] o
resvalo para o outro mundo” (VIGOTSKY, 1999, p.5).
Assim sendo, pode se falar em trajetórias como inacabadas, sempre em
aberto, sempre tendo a opção de novos alargamentos de suas possibilidades,
porque

[n]o existe ni la primera ni la última palabra, y no existen fronteras para un


contexto dialógico (asciende a un pasado infinito y tiende a un futuro
igualmente infinito). Incluso los sentidos pasados, es decir generados en el
diálogo de los siglos anteriores, nunca pueden ser estables (concluidos de
una vez para siempre, terminados); siempre van a cambiar renovándose en
el proceso del desarrollo posterior del dialogo. En cualquier momento del
desarrollo del diálogo existen las masas enormes e ilimitadas de sentidos
olvidados, pero en los momentos determinados del desarrollo ulterior del
dialogo, en el proceso, se recordarán y revivirán en un contexto renovado
y en un aspecto nuevo. No existe nada muerto de una manera absoluta:
cada sentido tendrá su fiesta de resurrección. Problema del gran tiempo
(BAJTIN, 1999, p.292-293, itálicos no original).

No caso de Daysi, observam-se eventos caraterizados pelas


(re)configurações das políticas educativas, dos modelos pedagógicos, por
mudanças de contextos, por condições familiares e de saúde. Às vezes, é
necessária uma inversão dos roles em algumas relações para que os próprios
limites não a impeçam de cumprir as suas responsabilidades. Às vezes, é
preciso sair dos espaços de atuação conhecidos para que o projeto
profissional não obstaculize o projeto familiar ou piore as condições de
saúde. Desta forma, compreende-se que trajetórias não são dadas, também
não são alinhadas totalmente às outras vozes ou totalmente fora das regras.
Mas chamam a atenção na narrativa de Daysi alguns não ditos, quiçá pela
impossibilidade de serem transformados em palavras, ainda: os custos
pessoais dos compromissos assumidos; as renúncias realizadas; os projetos
pausados ou abandonados; as apreensões vividas; os silêncios que se
auscultam entre vozes.

165
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Referências

BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. 2ª Edição. São Carlos: Pedro&João
Editores, 2012.
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dovstoiévski. 5ª. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2013.
BAJTIN, M. Estética de la creación verbal. 10ª. México, DF: Siglo XXI Editores, 1999.
CORDOVÉS, A. Escola e transformação social: a (re)configuração da educação cubana após 1959.
In: TASSINARI, A.; MONTARDO, D., et al (Coord.). Antropologia e educação: refletindo
sobre processos educativos em contextos escolares, não escolares e de políticas públicas
Tubarão: Copiart, 2019. p.199-225.
CORDOVÉS, A. Caminantes y caminos que se hacen al andar. Trajetórias de professoras/es de
ensino médio em Cuba. (Tese de Doutorado em Antropologia Social). PPGAS-
Departamento de Antropologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
2017.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25ª. São Paulo:
Paz e Terra, 2002.
GARCÍA, D. Tensões tempo-corpo na Escuela Cubana de Ballet. 2018. (Tese de Doutorado em
Psicologia). PPGP-Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis.
MINED. Resolución No. 200/2014. Reglamento para el trabajo metodológico del Ministerio de
Educación. La Habana: MINJUS 2014.
VIGOTSKY, L. A tragédia de Hamlet, Príncipe de Dinamarca. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

166
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

A TEORIA BAKHTINIANA E A AP(P)RENDIZAGEM NO SÉCULO XXI


O gênero tweet como um objeto didático

Ana Claudia Oliveira AZEVEDO1


Márcia Helena de Melo PEREIRA2

A Base Nacional Comum Curricular - BNCC - (BRASIL, 2018),


documento oficial que orienta a educação básica no Brasil, reconhece a
linguagem como uma prática social e ressalta a importância do trabalho
voltado para textos de diversos gêneros, que circulam na sociedade. Tal
recomendação retoma implicitamente os pressupostos do Círculo de
Bakhtin3, que, com base na função comunicativa da linguagem, defende que
a interação humana, em diferentes campos, se dá sempre em um dado gênero
do discurso (BAKHTIN, 2011). Além disso, segundo Dantas e Santos (2020),
outras questões discutidas pelo Círculo de Bakhtin, como o dialogismo, a
posição ativamente responsiva e a historicidade dos sujeitos, também estão
presentes na BNCC — especialmente na Base do Ensino Médio.
De acordo com Bakhtin (2011, p. 285), “quanto melhor dominamos os
gêneros tanto mais livremente os empregamos […]”. Assim, é importante
ressaltar que o conhecimento a respeito de diferentes gêneros contribui para
que o sujeito (inter)aja em sociedade, visto que a comunicação se dá por meio
dessas formas relativamente estáveis de enunciados. O domínio dos gêneros
tem sido chamado, nos estudos linguísticos desenvolvidos nos últimos anos,
de letramento(s), como aponta Buzato (2006). Nessa perspectiva, a BNCC,
homologada no ano de 2018, tem como um de seus focos as práticas
contemporâneas de linguagem, que incluem os textos produzidos em
ambiente digital, de forma a ampliar os letramentos dos estudantes e
prepará-los para uma participação crítica e efetiva nas práticas sociais atuais,
atendendo a variadas demandas sociais. Segundo o documento,

1
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGLin) da Universidade Estadual do Sudoeste
da Bahia — UESB (Vitória da Conquista, Bahia, Brasil). Graduada no curso de Licenciatura em Letras
Modernas (Português, Inglês e Respectivas Literaturas) pela mesma instituição. Bolsista da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb). E-mail: 98anaclaudia@gmail.com.
2
Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas — UNICAMP. Professora titular
do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
(DELL/UESB), campus de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil. Docente do quadro permanente do Programa
de Pós-Graduação em Linguística da mesma instituição(PPGLin/UESB). E-mail: marciahelenad@yahoo.com.br
3
De acordo com Faraco (2009), o Círculo de Bakhtin foi um grupo constituído por intelectuais de diversas
formações, que se reuniam na Rússia, entre 1919 e 1929, a fim de debater ideias diversas. Dentre os temas mais
discutidos pelos membros desse grupo, destacam-se a filosofia e a linguagem, sendo esta última o foco deste
trabalho. Os três principais teóricos da linguagem, no Círculo de Bakhtin, foram Medvedev, Volóchinov e
Bakhtin, cujo nome foi atribuído ao grupo por conta da maior extensão de sua produção.

167
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

não são somente novos gêneros que surgem ou se transformam (como


post, tweet, meme, mashup, playlist comentada, reportagem
multimidiática, relato multimidiático, vlog, videominuto, political
remix, tutoriais em vídeo, entre outros), mas novas ações,
procedimentos e atividades (curtir, comentar, redistribuir,
compartilhar, taguear, seguir/ser seguido, remidiar, remixar, curar,
colecionar/descolecionar, colaborar etc.) que supõem o
desenvolvimento de outras habilidades (BRASIL, 2018, p. 487, grifo
nosso)

Dessa maneira, o objetivo do ensino de língua(gens), hoje, deve


contemplar, em todos os níveis de ensino, os diferentes letramentos,
incluindo os diversos gêneros discursivos digitais presentes na sociedade,
bem como as ações e procedimentos que os acompanham. O domínio de tais
gêneros, segundo Buzato (2006), constituiria o letramento digital dos sujeitos.
Além desses postulados, apresentados nas seções da BNCC dedicadas à área
de Linguagens, as tecnologias digitais têm sua importância mencionada nas
orientações gerais da Educação Básica, como mostra o trecho abaixo,
referente à quinta competência geral que, segundo a BNCC (BRASIL, 2018, p.
9), deve ser desenvolvida nesse nível de ensino:

Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e


comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas
práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e
disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e
exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva.

Assim, vemos que o trabalho com tecnologias digitais em sala de aula


deve estar presente, de modo geral, em todos os componentes curriculares,
que fazem parte das diversas áreas de conhecimento — Ciências da Natureza,
Ciências Humanas e Sociais, Linguagens e Matemática4. Esse trabalho

4
Heinsfeld e Silva (2018) apresentam uma comparação entre a segunda e a terceira versão da BNCC, sendo
aquela fruto de uma consulta pública (feita com pessoas de diferentes segmentos da sociedade) e esta a versão
final promulgada pelo Governo. As autoras analisam criticamente a abordagem das tecnologias digitais em
ambas as versões do documento e constatam que a terceira versão demonstra um “[…] reducionismo do papel
das tecnologias digitais na formação escolar” (HEINSFELD; SILVA, 2018, p. 681), visto que, em comparação
com a segunda versão, suprime a reflexão crítica acerca dos eixos “tecnologia”, “ciência” e “sociedade”, além
de remover o eixo temático “Práticas Digitais”. As autoras ressaltam que a versão final do documento
apresenta majoritariamente uma visão de tecnologia como uma mera ferramenta, apesar de ressaltar a
necessidade de posicionamento crítico dos estudantes diante dessas tecnologias. A partir disso, Heinsfeld e
Silva (2018, p. 687) sugerem que “cada grupo escolar se debruce sobre o texto da BNCC para estudar e refletir
criticamente sobre formas para atender ao desenvolvimento das habilidades levando em conta a realidade
local”. Diante disso, buscamos propor o trabalho com o gênero tweet em aulas de diferentes disciplinas, para
ampliar o letramento dos estudantes e, consequentemente, torná-los cidadãos críticos, o que depende da forma
como textos nesse gênero são abordados na escola.

168
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

perpassa pelos gêneros discursivos digitais, uma vez que, como já


mencionamos, a interação humana ocorre sempre por meio de um gênero
(BAKHTIN, 2011). Portanto, conforme a BNCC, as tecnologias digitais devem
ser usadas na escola, a fim de que os estudantes desenvolvam a criticidade, a
reflexão e a ética ao se comunicar por meio dessas tecnologias.
Com base nessas considerações, nosso objetivo é investigar textos no
gênero tweet relacionados a conteúdos didáticos de diferentes disciplinas (nas
áreas de Ciências da Natureza, Ciências Humanas, Matemática e
Linguagens), a fim de mostrar algumas das muitas possibilidades de uso
desse gênero na escola, cumprindo, assim, com as sugestões da BNCC. A
partir disso, pretendemos evidenciar, com base na BNCC, “[…] propostas de
trabalho que potencializem aos estudantes o acesso a saberes sobre o mundo
digital e a práticas da cultura digital” (BRASIL, 2018, p. 487), visto que o uso
das chamadas Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC)
“[…] não só possibilita maior apropriação técnica e crítica desses recursos,
como também é determinante para uma aprendizagem significativa e
autônoma pelos estudantes” (BRASIL, 2018, p. 487). Nesse contexto, é
necessário conhecer mais de perto o gênero discursivo tweet, que tem tido
cada vez mais adeptos, inclusive entre os alunos. Na seção 2, a seguir,
caracterizamos o gênero discursivo tweet conforme os três pilares
bakhtinianos — conteúdo temático, estilo e construção composicional — e,
em seguida, na seção 3, analisamos dois tweets, a fim de discutir a sua
potencialidade didática e propor que textos nesse gênero sejam levados para
a sala de aula. Por fim, na seção 4, apresentamos nossas conclusões.

O gênero discursivo tweet

As concepções do Círculo de Bakhtin são fundamentais para o estudo


da interação humana e, mais especificamente, para a caracterização dos
gêneros do discurso como formas relativamente estáveis de enunciados. A
interação, para o teórico, é fruto do diálogo entre sujeitos, que alternam as
posições de falante e ouvinte durante a comunicação. No entanto, o
dialogismo bakhtiniano não se limita ao diálogo entre sujeitos, que ocupam
sempre uma posição responsivamente ativa na enunciação. Segundo Bakhtin
(2011), o enunciado estabelece elos com enunciados precedentes e com
enunciados subsequentes. Ou seja, além do diálogo entre sujeitos, há,
também, diálogo entre enunciados e, portanto, entre discursos.
Bakhtin (2011, p. 265) defende que “a língua passa a integrar a vida
através de enunciados concretos (que a realizam) […]”, portanto, o teórico
elege o enunciado como a unidade real da comunicação discursiva, ao passo

169
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

que palavras e orações são meras unidades da língua. Assim, para a teoria
bakhtiniana, a interação ocorre, efetivamente, por meio de enunciados, e não
de palavras e orações. Nesse sentido, ao afirmar que a linguagem está
presente em todos os campos da atividade humana, em diferentes contextos
socio-histórico-culturais, Bakhtin (2011, p. 262, grifos do autor) postula que
“cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis
de enunciados, os quais denominados gêneros do discurso”. Ou seja, o uso da
linguagem, em todos os campos, se dá sempre por meio de um gênero do
discurso, que, segundo o teórico, é constituído pelo conteúdo (temático),
estilo da linguagem e construção composicional, que serão definidos a seguir.
O conteúdo temático, de acordo com Bakhtin (2011), vai além do assunto
— elemento semântico-objetal — abordado no enunciado: consiste na relação
valorativa do falante com aquele assunto, relacionada ao campo da atividade
humana do qual o sujeito faz parte. Segundo Bakhtin (2011), esse elemento
determina o estilo e a composição do enunciado, pois implica aspectos
linguístico-textuais e enunciativo-discursivos. O estilo, por sua vez, para
Bakhtin (2011), consiste nas escolhas linguísticas, gramaticais e fraseológicas
feitas em determinado gênero. No entanto, o teórico acrescenta que todo
enunciado pode refletir o estilo individual do falante. Ele defende, assim, que
há gêneros mais e menos propícios ao reflexo da individualidade. A
construção composicional, terceiro pilar caracterizador dos gêneros
discursivos, pode ser definida como a estrutura do enunciado, que faz com
que ele seja socialmente reconhecível pelos integrantes de determinada
sociedade.
Embora as obras do Círculo de Bakhtin tenham sido escritas na primeira
metade do século XX, seus postulados podem ser adotados para abordar os
gêneros discursivos digitais, que surgiram com o advento das novas mídias
e tecnologias. Nesse sentido, Rojo (2013) sistematiza uma ampliação da teoria
bakhtiniana, de
modo a incluir
essas inovações,
como mostra a
figura 1, abaixo:

Figura 1.
Elementos da
teoria bakhtiniana
dos gêneros
discursivos

170
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Fonte: Rojo (2013, p. 30).

No esquema apresentado na figura 1, Rojo (2013), partindo da teoria


bakhtiniana, acrescenta as mídias e tecnologias à situação de comunicação,
constituída pela esfera (campo) de circulação, tempo e lugar históricos,
relações sociais entre os participantes e suas respectivas apreciações
valorativas sobre o conteúdo temático. A adição das mídias e tecnologias à
teoria de gêneros do discurso de Bakhtin transforma o estilo e a construção
composicional em unidades multimodais, uma vez que os gêneros dessas
novas mídias apresentam múltiplas linguagens. Assim, nos gêneros das
novas mídias, o pilar do estilo passa a abrigar, além das escolhas de
linguagem verbal, elementos de outras linguagens, como imagens, sons e
vídeos, enquanto a construção composicional é composta, também, por
aspectos de linguagens não-verbais.
Com base nessas considerações, apresentamos o gênero do discurso
observado neste trabalho, o tweet, de modo a evidenciar seu conteúdo
temático, estilo e construção composicional. Tweet é o nome dado ao texto de
até 280 caracteres publicado na rede social Twitter, acessada ativamente por
mais 330 milhões de usuários em todo o mundo. Além da linguagem verbal
escrita, das hashtags, dos links e dos emojis, que podem fazer parte do corpo
do texto, o tweet pode apresentar até quatro imagens, um vídeo ou um GIF
em sua constituição, visto que a multimodalidade é um fator presente nesse
gênero.
Freitas e Barth (2015), ao definirem o tweet como um gênero do discurso,
comentam que há uma grande diversidade de conteúdo temático e estilo nos
textos desse gênero, o que demonstra uma estabilidade relativa dessa forma
de enunciado. Assim, os autores defendem que tanto o estilo quanto o
conteúdo temático dos tweets são determinados pelos propósitos
comunicativos e pelo perfil de cada usuário. Em relação ao conteúdo
temático, afirmam que “um usuário comum pode tratar de uma gama
ilimitada de assuntos. Porém, um usuário que representa uma entidade ou
um usuário que representa uma empresa possui uma limitação temática”
(FREITAS; BARTH, 2015, p. 23). Ou seja, o conteúdo temático dos tweets é
delimitado pelo campo da atividade humana e pelos objetivos daquele perfil,
que podem ser voltados para questões políticas, institucionais, jornalísticas,
cotidianas, escolares etc.
Como consequência, considerando que o estilo é fruto da apreciação
valorativa do produtor do enunciado, também há uma grande variedade de

171
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

estilos nos tweets, o que depende dos propósitos de cada usuário e das
características específicas do perfil. Um perfil voltado ao jornalismo, por
exemplo, provavelmente utiliza um estilo mais formal que um perfil comum,
focado em comentários sobre fatos cotidianos. Com base nisso, podemos
considerar que o tweet é um gênero flexível, que abre espaço para a inserção
do estilo individual de seus escreventes, que podem optar pelo uso de
elementos multimodais, como hashtags, emojis, links, fotos, vídeos ou GIFs, na
composição de seus enunciados, além de definirem o grau de formalidade do
que escrevem.
A construção composicional do gênero tweet é caracterizada
principalmente pelo limite de 280 caracteres escritos, que exige que seus
usuários acionem estratégias de sumarização e de adequação ao limite de
caracteres, tais como o uso de hashtags, links ou elementos de outras
linguagens, de modo a manifestar sua vontade discursiva naquele gênero
específico — o tweet. Essas características estão relacionadas com o conteúdo
temático e o estilo do perfil, portanto, são fruto de escolhas do usuário. No
entanto, o tweet também é caracterizado por aspectos comuns em todos os
exemplares do gênero, que são gerados pelo próprio design do Twitter. São
eles: a foto de perfil, o apelido e o nome de usuário introduzido pelo símbolo
@, que ficam acima do texto elaborado pelo usuário; a data e horário de
publicação, o tipo de dispositivo/sistema por meio do qual o tweet foi
publicado e botões de interação próprios do Twitter (responder, retweetar,
curtir e salvar/compartilhar tweet), que aparecem logo abaixo do texto.
Com base nessas considerações, tendo em vista que o tweet é um gênero
flexível, cujo conteúdo temático e estilo podem variar, a depender do usuário
e de seus objetivos, na seção a seguir, analisamos tweets relacionados a
questões didáticas. A partir disso, buscamos propor o uso de textos desse
gênero na escola, não apenas como ferramenta, mas, efetivamente, como
objeto de ensino, em diferentes áreas do conhecimento.

Análise de tweets e proposta de ensino-ap(p)rendizagem

Nesta seção, apresentamos a análise de dois tweets que abordam


assuntos didáticos5, de modo a mostrar que textos desse gênero podem ser
levados para a sala de aula de componentes curriculares diversos. Por uma
questão de espaço, apresentamos dois tweets, sendo um deles de um perfil

5
Os tweets aqui apresentados foram retirados do corpus da pesquisa de mestrado intitulada de O gênero tweet
e a (hiper)textualização de objetos de ensino-aprendizagem, realizada no Programa de Pós-Graduação em
Linguística (PPGLin) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e financiada pela Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb), com previsão de defesa para março de 2022.

172
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

explicitamente educacional (@saladosaberofc) e outro de um perfil pessoal,


que não é voltado especificamente para questões didáticas (@afrolatinocae).
Os tweets foram coletados por meio da ferramenta captura de tela.
A seguir, apresentamos um tweet publicado pelo perfil da plataforma de
ensino on-line @saladosaberofc, que conta com pouco mais de 2 mil
seguidores. De modo geral, o objetivo desse perfil é apresentar conteúdos
didáticos de diferentes áreas, como ocorre no tweet da figura 2, abaixo:

Figura 2. Tweet do perfil


@saladosaberofc

Fonte: Twitter6

O tweet da figura 2
é constituído por um
trecho verbal escrito e
uma imagem, que, por
sua vez, contém outros
elementos escritos, em
diferentes fontes e
layouts. O elemento
semântico-objetal do
tweet são as unidades de
medida e a conversão
de medidas, assuntos
relacionados a três disciplinas — Matemática, Química e Física —, que fazem
parte de duas grandes áreas do conhecimento — Matemática e Ciências da
Natureza. De acordo com Bakhtin (2011), o conteúdo temático de um
enunciado é constituído não só pelo seu elemento semântico-objetal, mas
também pelo seu elemento expressivo, ou seja, pela apreciação valorativa de
seu produtor. Nesse sentido, é importante ressaltar que o conteúdo temático
do tweet da figura 2 é baseado na relevância de conhecer as unidades de
medida e de saber convertê-las, para participação efetiva nas áreas de
Matemática, Química e Física. Portanto, o assunto é escolhido pelo usuário
@saladosaberofc a partir de uma necessidade educacional, o que está ligado
ao objetivo principal do perfil.
Quanto ao estilo do tweet, constatamos que há um alto grau de
formalidade, uma vez que é usada a norma padrão da Língua Portuguesa.
Esse uso está relacionado ao perfil responsável por sua publicação, que, por

6
Disponível em: https://twitter.com/saladosaberofc/status/1291381286439985155. Acesso em: 20 set. 2020.

173
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

estar voltado para assuntos educacionais, tende a adotar um estilo mais


formal, requerido no campo escolar, tendo em vista que o objetivo de seus
tweets é ensinar conteúdos didáticos. Além disso, destacamos que o uso da
imagem com uma espécie de resumo do assunto também faz parte do estilo
do tweet e representa uma estratégia de adequação ao limite de caracteres e à
impossibilidade de formatação (mudanças na fonte do corpo do texto) do
tweet. Desse modo, a imagem do tweet é uma marca de estilo individual, pois
consiste em uma escolha particular pelo uso de uma linguagem imagética, a
fim de materializar a vontade discursiva do falante.
A partir dessas constatações, é possível propor a abordagem do tweet da
figura 2 em sala de aula, com a finalidade de discutir o seu conteúdo,
relevante para as áreas de Matemática, Química e Física. É possível, ainda,
que o próprio tweet seja tomado como objeto de ensino, de modo a se observar
as particularidades dessa forma relativamente estável de enunciar, tão
comum na internet e no cotidiano de muitas pessoas em idade escolar. Dentre
essas particularidades, mencionadas na seção 2, destacamos o alto grau de
multimodalidade, o limite de 280 caracteres e a flexibilidade de estilos e
temas. Então, observamos, com base na figura 2, que o tweet é um gênero com
grande potencial didático em diferentes áreas (Matemática, Ciências da
Natureza e Linguagens), tendo em vista a sua interdisciplinaridade.
Prosseguindo nossa análise, apresentamos um tweet publicado pelo
perfil @afrolatinocae, que tem pouco mais 4 mil seguidores e faz publicações
sobre assuntos diversos, o que é característico de um perfil pessoal. No tweet
abaixo, o usuário aborda uma questão relacionada a conteúdos didáticos.
Vejamos:

Figura 3. Tweet do perfil


@afrolatinocae

Fonte: Twitter7

O tweet da figura 3 é composto somente por caracteres escritos, ou seja,


não contém imagens, vídeos, GIFs ou emojis. No conteúdo temático desse
tweet, o usuário faz uma analogia entre a censura sofrida por obras artísticas
no período histórico da ditadura militar e uma estratégia estilística comum
em textos do gênero tweet, a saber, o uso do símbolo asterisco (*) para
substituir as letras de uma palavra “censurada”. Nesse sentido, é importante
salientar que, para Bakhtin (2011), o diálogo por meio de gêneros discursivos

7
Disponível em: https://twitter.com/afrolatinocae/status/1299217452891541506. Acesso em: 29 ago. 2020.

174
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

depende de questões sócio-histórico-culturais. Assim, para compreender a


analogia feita no tweet da figura 3, é necessário que o interlocutor tenha
ciência da censura sofrida durante o período histórico da ditadura militar no
Brasil e, também, entenda o que significa o uso de asterisco no gênero tweet.
Isso, por sua vez, exige um conhecimento e domínio do gênero em questão,
ou seja, um letramento por parte de quem acessa esse tweet.
Ressaltamos, ainda, que o estilo empregado no tweet de @afrolatinocae
apresenta um menor grau de formalidade que o tweet de @saladosaberofc, o
que pode ser identificado por meio do uso de iniciais minúsculas em um
nome próprio (“chico buarque”), da falta de acento gráfico na palavra
“musicas” e da escolha lexical “tipo”, comum em contextos informais. Tais
escolhas linguísticas estão em consonância com o tipo de perfil, cujo objetivo
é compartilhar informações diversas, de maneira mais próxima da
comunicação cotidiana. Com isso, confirmamos o pressuposto de que o tweet
é um gênero com estilo e conteúdo temático flexíveis.
Além disso, constatamos que o tweet da figura 3, se levado para sala de
aula, pode suscitar discussões relacionadas à disciplina de História, visto que
aborda uma importante questão da história brasileira, e, também à disciplina
de Língua Portuguesa, uma vez que se refere ao uso da linguagem em novas
mídias. Pode-se abordar, assim como no tweet da figura 2, o próprio gênero
tweet e suas particularidades, dentre as quais destacamos o uso de asterisco,
mencionado no tweet da figura 3. Assim, mesmo que o objetivo inicial do
tweet não seja didático, essa potencialidade está presente, portanto, o tweet
pode contribuir para o letramento dos estudantes, ao ser levado para a sala
de aula de disciplinas das áreas de Ciências Humanas e Linguagens.
Considerando que a construção composicional dos tweets é parcialmente
fixa e o corpo do texto varia a depender das escolhas estilísticas e temáticas
do usuário, focamos, nesta análise, nos pilares de conteúdo temático e estilo,
que determinam a particularidade de cada tweet. Desse modo, constatamos
que, com ambos os tweets observados, é possível realizar um trabalho
interdisciplinar, de modo a incluir gêneros discursivos digitais na escola, não
só como ferramentas, mas, efetivamente, como objetos de ensino. Discussões
que envolvam o conteúdo temático e o estilo dos tweets podem ser
enriquecedoras não apenas para as aulas de Língua Portuguesa, mas,
também, de outras disciplinas, como mostramos na discussão acima, que
engloba as quatro grandes áreas do conhecimento abordadas na BNCC.
Considerações finais
O objetivo deste trabalho foi observar textos no gênero tweet

175
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

relacionados a conteúdos didáticos de diferentes disciplinas (nas áreas de


Ciências da Natureza, Ciências Humanas, Matemática e Linguagens), a fim
de propor seu uso na escola, conforme sugere a BNCC. Por meio da análise
de dois tweets, publicados por diferentes perfis, constatamos que textos desse
gênero podem ser usados em sala de aula, por abordarem diferentes áreas do
conhecimento e permitirem um trabalho interdisciplinar. Ressaltamos que,
embora haja perfis com o objetivo específico de apresentar conteúdos
didáticos, como foi o caso do primeiro tweet analisado — publicado pelo
perfil @saladosaberofc —, tweets de outros perfis também podem ser levados
para o ambiente escolar, como ilustramos com a análise do segundo tweet —
postado por @afrolatinocae.
Dessa forma, buscamos contribuir para que o ensino parta de uma
realidade mais próxima dos alunos — do uso da internet, em especial, da rede
social Twitter — para desenvolver sua aprendizagem, por meio de textos
curtos, geralmente com características multimodais, como os hiperlinks,
vídeos e imagens. Com isso, concluímos que o ensino por meio de gêneros
discursivos digitais, mais especificamente, por meio do tweet, pode impactar
no uso crítico, significativo, reflexivo e ético das tecnologias digitais,
conforme sugere a BNCC. Assim, acreditamos que, a partir de
desdobramentos de investigações como esta, o gênero tweet pode vir a se
tornar um gênero escolar.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. “Os gêneros do discurso”. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação
Verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6ª ed. S. Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, p. 261-306.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Versão final. Brasília: MEC/Secretaria de Educação
Básica, 2018.
BUZATO, Marcelo El Khouri. “Letramentos Digitais e Formação de Professores”. In: III
Congresso Ibero-Americano EducaRede: Educação, Internet e Oportunidades. São Paulo:
Memorial da América Latina. 29-30 maio 2006.
DANTAS, Wallace; SANTOS, Eliete Correia dos. “As ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin
na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)”. Macabéa – Revista Eletrônica do NETLLI,
Crato, v. 9, n. 3, p. 287-303, jul./set. 2020.
FREITAS, Ernani César; BARTH, Pedro Afonso. “Gênero ou suporte? O entrelaçamento de
gêneros no Twitter”. (Con)Textos Linguísticos, Vitória, v. 9, n. 12, p. 8-26, 2015.
HEINSFELD, Bruna Damiana; SILVA, Maria Paula Rossi Nascentes da. “As Versões da Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) e o Papel das Tecnologias Digitais: conhecimento da
técnica versus compreensão dos sentidos”. Currículo sem Fronteiras, v. 18, n. 2, p. 668-690,
maio/ago. 2018.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São
Paulo: Parábola Editorial, 2009.
ROJO, Roxane. “Gêneros discursivos do Círculo de Bakhtin e multiletramentos”. In: ROJO,
Roxane (Org.). Escol@ Conectada: os multiletramentos e as TICs. São Paulo: Parábola, 2013,
p. 13-36.

176
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

OS ELEMENTOS ARGUMENTATIVOS NO GÊNERO RELATO DE


CASO
Uma análise de um TCC de Medicina na perspectiva da Linguística Textual
Jaqueline Feitoza SANTOS1

A argumentatividade está na língua e se manifesta no relacionamento


entre o homem e a linguagem. Como bem relembram Koch e Elias (2016),
portanto, argumentar é humano, uma vez que, tanto por escrito ou
oralmente, as nossas interações são permeadas de argumentação.
No entanto, essa mesma argumentação revela-se em determinadas
construções enunciativas, na medida em que o escrevente necessita
posicionar-se acerca de determinado tema. Essa intencionalidade, revelada
na construção argumentativa, pode ser percebida em gêneros
fundamentalmente argumentativos, como os Trabalhos de Conclusão de
Curso, os TCCs. Nesses gêneros científico-acadêmicos, o escrevente cumpre
o papel de sujeito pesquisador e, como tal, segue determinada padronização,
estabilizada na forma de gênero. Assim, para alcançar esse teor
argumentativo explícito, é preciso manusear os recursos da textualidade que
auxiliam na argumentatividade esperada para compor tal gênero. Dentre
esses recursos da textualidade, nos deteremos nos seguintes elementos na
presente discussão: os aspectos sociorretóricos, os operadores
argumentativos e a referenciação, visto que esses elementos podem
possibilitar o cumprimento sócio comunicacional do gênero, assim como
auxilia no encadeamento dos enunciados, estruturando-os em textos e
determinando sua orientação argumentativa e discursiva, como esclarece
Koch (2011).
Adotamos, desse modo, a teoria dialógica bakhtiniana (1992; 2003), em
nossas discussões. Ademais, trazemos em nossas análises, também, a
proposta de Swales (1990; 2004) sobre a definição de gêneros 2 através de

1
Docente e gestora pela Secretaria da Educação da Bahia, desde 2012. Mestra (em 2019) pelo Programa de Pós-
Graduação em Linguística - PPGlin, nível Mestrado Acadêmico, da Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia (UESB), Campus de Vitória da Conquista – Ba, Brasil. E-mail: jaquelinefeitoza@gmail.com.
2
De acordo com os estudos de Swales (1990), os gêneros são concebidos como classes de eventos
comunicativos, podendo ser “aleatórios, idiossincráticos e motivados por um propósito único e distintivo”.
Além disso, são como ações linguísticas retóricas, que possibilitam à linguagem comunicar algo a alguém,
para algum propósito, em momento e contexto específicos, por isso, são tidos como importantes ferramentas
de ensino. A partir da definição apresentada, o autor trabalha a noção de prototipicidade, através da
compreensão de que “protótipos de gêneros são reconhecidos por uma lógica subjacente capaz de influenciar
e restringir a escolha de conteúdo e estilo em contexto situado. Segundo o linguista, o reconhecimento dos
protótipos é um dos procedimentos que um analista deve seguir, em um percurso que parte do contexto para
o texto e projeta a organização de gêneros em movimentos retóricos e, consequentemente, seus aspectos
textuais e linguísticos” (SOUZA; SILVA, 2017, p. 138).

177
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

metáforas3, uma vez que esse autor postula a adoção de procedimentos


metafóricos para resgatar especificidades relevantes dos gêneros. Essa
proposta de Swales (2004), aqui exposta, tem como objetivo buscar entender
o contexto sociorretórico que circunscreve gênero em análise.
No campo da referenciação, por conseguinte, adotamos uma abordagem
discursiva, em que esse processo ultrapassa uma busca em responder sobre
“o como” a informação é transmitida, ou “o modo” como é transmitida, para
a investigação de “como” as atividades humanas, cognitivas e linguísticas,
conseguem atribuir sentido ao mundo. Desse modo, a referenciação passa a
ser considerada originária de uma prática simbólica. Tendo em vista tal
abordagem da referenciação, despertou-nos a atenção de como o sujeito
escrevente utiliza os mecanismos da textualidade na produção de seus textos
acadêmicos.
Dito isso, elencamos como corpus da presente discussão, o gênero TCC.
Nesse gênero discursivo, surgiu a indagação sobre como certo sujeito
escrevente consegue empregar os mecanismos da textualidade ligados aos
elementos referenciais e aos operadores argumentativos, com vistas a uma
construção argumentativa do seu texto. Tendo em vista tal observação,
apresentamos o seguinte questionamento: como os elementos referenciais da
textualidade, e aspectos comunicacionais sociorretóricos, auxiliam o
escrevente, concluinte de curso de graduação, no nível argumentativo
necessário para compor o gênero TCC?
Diante dessa questão, nossa discussão segue a seguinte sequência de
abordagens: para esclarecer a proposta de trabalho com gêneros, nos valemos
da teoria sóciointeracionista da linguagem, considerando, sobretudo, os
estudos de Bakhtin (2003). Seguiremos, na sequência, elencando nossas
considerações concernentes ao gênero relato de caso, pautando-nos em
Yoshida (2007), acerca da estrutura composicional desse gênero, largamente
solicitado em TCCs das áreas de Ciências Biológicas. Ademais, na sequência,
apresentaremos nossas análises acerca do corpus selecionado para pesquisa,
cuja seção por nós analisada será a seção de introdução. Nessa parte,
levaremos em consideração três aspectos: os aspectos sociorretóricos da
teoria de Swales (2004), os operadores argumentativos e a referenciação. Por
fim, apresentaremos nossas considerações finais a respeito da seção de
introdução do TCC de Medicina, correlacionando os mecanismos ligados à

3
Acerca do trabalho com gêneros sob a perspectiva metafórica, Swales esclarece: “[...] acredito que temos de
caracterizar gêneros como um esforço metafórico, essencialmente, para que as várias metáforas possam ser
chamadas em proporções variadas, de acordo com as circunstâncias, a sua própria luz em nossos
entendimentos” (SWALES, 2004, p. 61).

178
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

textualidade, e discutindo a obtenção, ou não, do nível argumentativo no


referido gênero.

Os gêneros do discurso

A fim de iniciarmos nossas considerações sobre gêneros do discurso,


cumpre-nos recordar as reflexões de seu precursor, Mikhail Bakhtin (1992),
acerca da concepção de linguagem. Para o teórico, a linguagem é dialógica,
uma vez que toda relação humana é marcada pelo princípio do diálogo, o
que o levou a declarar a máxima de que “a vida é dialógica por natureza”
(BAKHTIN, 1992, p. 36). A partir dessa contribuição teórica de Bakhtin,
surgiram outras, das quais destacamos seus estudos sobre a comunicação
verbal, e, por conseguinte, a noção de gênero, ou tipos discursivos. O teórico
define gêneros do discurso como a relação dialógica do ato da linguagem.
Nessa perspectiva, qualquer esfera da atividade humana tem relação com a
utilização da língua. Em consequência desse entendimento, o autor assim
define os gêneros do discurso:

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos),


concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo
da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e
as finalidades de cada referido campo, não só por seu conteúdo (temático)
e pelo seu estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais,
fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua
construção composicional [...] Evidentemente, cada enunciado particular é
individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos
relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do
discurso (BAKHTIN, 2003, p. 261-262).

Para Bakhtin (2003), os gêneros do discurso permeiam todas as


atividades da vida diária e são capazes de organizar nossa comunicação.
Segundo o autor, o falante faz uso de um dado enunciado, ou dito, que se
materializa na língua/linguagem, constituindo o discurso. Assim, os gêneros
discursivos acomodam tudo o que falamos e ouvimos. Posto que nossas
atividades envolvem linguagem, seja das mais simples ou cotidianas, às mais
complexas ou públicas, os gêneros cumprem a função de organizar e
estabilizar essa língua/linguagem, permitindo que faça sentido para o
interlocutor. Dessa forma, Bakhtin (2003) formula a classificação dos gêneros
em primários e secundários. Os gêneros primários são aqueles que envolvem
nossas atividades cotidianas, geralmente ocorrendo na modalidade oral do
discurso. Os gêneros secundários, por sua vez, valem-se geralmente da
escrita, tendo função mais formal e oficial, como nos atualiza Rojo (2015).

179
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Portanto, seja qual for a classificação, tudo o que dizemos, pensamos ou


escrevemos acontece por meio de um texto/enunciado pertencente a um
determinado gênero discursivo; logo, todo enunciado se dá por meio de um
gênero. Quanto ao que vem a ser texto ou enunciado na perspectiva
bakhtiniana, cumpre-nos esclarecer que ambos são considerados um
enunciado concreto, que não se repete e que se vale da língua/linguagem para
se materializar, constituindo o discurso. Vejamos, a seguir, as explicações
sobre o gênero científico/acadêmico relato de caso.

O gênero Relato de Caso

Após expor a definição de gênero à luz da teoria bakhtiniana, voltemos


para nossas considerações sobre o TCC: esse gênero pode se configurar sob a
forma dos gêneros monografia, artigo científico, relato de caso e relatório de
estágio, para cursos de graduação e, também, pode ser nomeado de
dissertação ou tese, para cursos de pós-graduação stritu sensu de mestrado e
doutorado, respectivamente. Dessa forma, a escolha do gênero irá depender
do curso e da instituição de ensino. Diante do nosso objetivo em discutir
aspectos argumentativos no gênero TCC relato de caso, na presente seção,
discorreremos sobre a estrutura composicional de tal gênero.
O relato de caso é considerado um gênero científico, cujo objetivo
comunicativo específico é fornecer subsídios fundamentais acerca de sujeitos
específicos, comumente pacientes. Dessa forma, na proposta de que esses
sujeitos sejam melhor tratados, em determinadas situações, o gênero relato
de caso costuma atender à demanda comunicativa da área de saúde,
conforme esclarece Yoshida (2007). A comunicação de um relato de caso tem
sua pertinência devido à raridade de uma determinada patologia
diagnosticada, quando o tratamento é pioneiro ou mesmo quando há alguma
inovação ou um resultado inusitado.
Yoshida (2010) explicita uma observação sobre as condições para que o
relato de caso cumpra seu papel comunicativo: a presença de conteúdo e
sequência adequados. Sua estrutura básica, segundo o autor, contém título,
resumo, introdução (seção em que devem ser descritos os objetivos),
descrição do caso, técnica ou situação, revisão de literatura com discussão,
conclusão e referências. É um texto conciso, sendo recomendadas de 1.500 a
2.500 palavras. Em nosso corpus, o relato de caso que coletamos ultrapassou
um pouco o número médio, apresentando 2.697 palavras, sem considerar
capas, referências e anexos. Incluindo esses três elementos, o trabalho chega
a 4.047 palavras.
Como todo trabalho acadêmico-científico, o estilo desse gênero segue as

180
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

recomendações da produção científica em relação à clareza e coerência da


linguagem. Em resumo, o autor descreve como deve ser a estrutura do relato
de caso, em termos de sequência das seções e pertinência da ordenação dos
assuntos.
Percebemos que o relato de caso é um gênero que apresenta pontos em
comum com o artigo científico, embora seja mais sucinto. As principais
diferenças entre esses gêneros referem-se aos propósitos comunicativos e ao
teor da pesquisa. Enquanto o artigo científico pode atender as diversas áreas
do conhecimento e pode ser tanto de conhecimento científico-empírico
(pesquisa experimental), quanto de revisão bibliográfica (relatando uma
pesquisa), o relato de caso é a apresentação de uma pesquisa empírica que se
destina, sobretudo, à publicação em revistas médicas. Em cursos da área de
Ciências Biológicas, é comum a solicitação desse gênero como trabalho final
de curso de graduação.
Realizada a discussão a respeito dos gênero relato de caso como trabalho
de conclusão de cursos de natureza acadêmica, passemos, na próxima seção,
para a proposta metodológica e análises sobre o relato de caso de um
escrevente do curso de Medicina.

Proposta metodológica

Iniciemos a análise da seção de introdução do TCC coletado, no qual


pretendemos investigar a ocorrência (ou não) do cumprimento sócio
comunicacional da seção investigada e de elementos referenciais e
operadores discursivos auxiliadores no cumprimento da função
argumentativa necessária para composição do gênero TCC.
Inicialmente, justificamos o porquê de analisarmos a seção de
introdução do relato de caso: Essa seção foi selecionada devido à estrutura
composicional argumentativa que a comporta, uma vez que podemos
perceber que há propósitos comunicativos em que transparecem o
posicionamento do escrevente, a exemplo da justificativa da pesquisa, da
questão posta para a investigação, dos objetivos expostos, da hipótese
defendida pelo escrevente e da escolha da metodologia a ser adotada.
Comunicativamente, essa parte demonstra “o porquê” e “o como” a pesquisa
foi desenvolvida, o que nos permite observar o posicionamento
argumentativo realizado pelo graduando. Tal justificativa acerca do caráter
mais argumentativo da construção da seção de introdução é respaldada nas
discussões dos trabalhos de Motta-Roth e Hendges (2010), de Souza e Silva
(2017) e de Ribeiro (2012).
Feitas as justificativas acerca da escolha metodológica das nossas

181
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

análises, passemos para a análise do TCC de Medicina.


O gênero por nós analisado refere-se a um relato de caso, cujo título é
Lesão renal aguda após ingestão de suco de biri-biri. O escrevente desse relato de
caso foi um concluinte de graduação, por nós, na presente discussão,
denominado de IBM (sigla de Informante da área de Biológicas, do curso de
Medicina). O informante foi estudante do curso de bacharelado em Medicina,
de uma universidade pública da Bahia, cujo TCC foi apresentado e obteve
aprovação em 2017. O relato de caso é constituído das seções de introdução,
metodologia, revisão de literatura, relato de caso, discussão (análise) e
conclusão, num total de 24 páginas, incluindo referências e anexos.
Iniciaremos nossas análises, a seguir, considerando a seção de introdução do
escrevente.

Análise da seção de introdução do TCC de Medicina

A seção de introdução do relato de caso de IBM apresenta cinco


parágrafos. Desses cinco, o escrevente utiliza quatro parágrafos para
apresentar o tema de sua pesquisa, o fruto do biri-biri e suas características e,
no quinto e último parágrafo de sua introdução, apresenta os movimentos
retóricos de apresentação do objeto, justificativa e objetivo de sua pesquisa.
Vejamos a introdução de IBM, a seguir, no subtópico de aspectos
sociorretóricos, no Quadro 01.

Aspectos sociorretóricos
Quadro 01 - Movimentos retóricos de introdução de pesquisa
MOVIMENTOS
PROPÓSITO COMUNICATIVO: INTRODUZIR PESQUISA
RETÓRICOS
1- INTRODUÇÃO

O biri-biri (Averrhoa bilimbi) é um fruto da família das Oxalidacae, § 1º


mesma família da carambola (Averrhoa carambola), originário da Índia Apresentação do
(CORRÊA,1926), com produção e consumo em regiões tropicais. A árvore
tema da pesquisa
deste fruto é pequena, atingindo altura máxima de 15 metros, e cultivada
(biri-beri)
no sudeste asiático como Índia, Malásia, Tailândia e vários países da
América do Sul (MORTON, 1987), inclusive no Brasil, onde se distribui
principalmente entre os estados do Rio de Janeiro, Amazonas, Pará, Santa
Catarina e Bahia, locais onde podem ser conhecidos por “bilimbi”,
“bilimbino”, “amarela de caramboleira”, “azedinha” ou “limão caiena”
(RIBEIRO et al., 2010) (NETO, 2014).

O biri-biri apresenta a forma cilíndrica, com cinco lobos longitudinais, § 2º


podendo medir de 04 a 10 cm (ANEXO 1), de sabor azedo, com coloração Características
que muda conforme estágio de maturação de verde para amarelo claro do tema da
(MATHEW et al., 1993). Os frutos maduros podem ser consumidos in pesquisa
natura ou sob forma de suco ou geleia. São comumente usados na

182
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

produção de vinagre, picles e vinhos. Possui também a propriedade de


remover manchas de ferrugem em roupas e dar brilho a utilitários
metálicos (RIBEIRO et al., 2010). Em relação ao seu uso medicinal, pode ser
consumido como objetivo de tratamento da hipertensão, dislipidemia e
diabetes, além do uso local nas picadas de criaturas venenosas (ARAÚJO
et al., 2009).

Os frutos de biri-biri são ricos em vitamina C e em oxalato, este último principal


§ 3º
responsável pela lesão renal aguda nos pacientes que consomem a fruta
Características
(MOYSÉS NETO; VIEIRA NETO; DANTAS; 2010). Sua composição pode
do tema da
variar conforme o grau de maturação do fruto e a estação em que foi
pesquisa
colhido, sendo que os maiores níveis de oxalato se encontram em frutos
com menor grau de maturação (LIMA et al, 2011) e nos quais a colheita foi
feita em estações chuvosas (JOSEPH e MENDONÇA, 1989).

Os níveis de oxalato no biri-biri variam entre 8,57-10,32 mg/g,


consideravelmente maiores quando comparados aos da carambola (0,8- § 4º
7,3 mg/g) (LIMA et al, 2011). Apesar disso, existem muitos mais estudos Características
que associaram a lesão renal aguda ao consumo de carambola (MOYSÉS do tema da
NETO; VIEIRA NETO; DANTAS; 2010) quando comparados aos do biri- pesquisa
biri. Assim, a lesão renal aguda por consumo de biri-biri,
excepcionalmente em pacientes hígidos, ainda é um evento considerado
raro (PASCHOALIN et al., 2014), possivelmente pelo menor consumo, e
consequentemente, pelos poucos casos publicados.
§ 5º
Este relato de caso expõe dados sobre evolução clínica e suporte terapêutico em um Apresentação do
paciente jovem, sem comorbidades e sem dano renal prévio que desenvolveu lesão objeto da
renal aguda após consumo do suco de biri-biri e se justifica pelos poucos casos pesquisa
relatados na literatura até o presente momento. Tem como finalidade, Justificativa da
assim, aumentar o conhecimento a respeito da lesão renal aguda por biri- pesquisa
biri, enriquecendo a literatura atual vigente, a partir da exposição da Objetivo da
nossa experiência com o caso. pesquisa
Fonte: Corpus coletado para pesquisa (grifos nossos).

Os elementos presentes na introdução do relato de caso de IBM não


apresentam parte dos movimentos retóricos comuns num propósito de
introduzir pesquisa, como a pergunta ou questão que pretende responder ao
longo do TCC, os objetivos específicos, que costumam ser expostos logo
depois do objetivo geral, o delineamento teórico da pesquisa e a apresentação
da estrutura composicional do texto. O escrevente se deteve em descrever o
tema de sua investigação nos quatro primeiros parágrafos de sua introdução
e, no quinto parágrafo, realizou três movimentos retóricos de introduzir
pesquisa: o objeto, a justificativa e o objetivo. Observemos os movimentos
retóricos presentes no propósito de introduzir pesquisa encontrados na seção
de introdução de IBM:
a) apresentação do tema da pesquisa: o escrevente realiza o propósito de
apresentação do tema da pesquisa nos quatro primeiros parágrafos de sua

183
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

introdução, contextualizando-o e expondo suas características. Chamamos a


atenção de que não há uma textualização explícita sobre a apresentação do
tema da pesquisa, e estamos levando em consideração que a contextualização
que esse escrevente faz acerca de seu objeto de estudo seja uma apresentação
do seu tema. Notamos, todavia, que é forçosa tal afirmativa, pois depende de
uma intepretação do sujeito que lê a introdução. É possível que essa
interpretação não se aplique a outro leitor. Portanto, percebemos que, mesmo
que consideremos que a referida construção seja uma apresentação do tema,
o escrevente cometeu falha quanto à clareza textual, não deixando explícita
uma informação relevante no propósito de introduzir pesquisa.
b) no quinto e último parágrafo da introdução, o escrevente realiza três
movimentos retóricos de introduzir pesquisa: apresentação do objeto da
pesquisa: “Este relato de caso expõe dados sobre evolução clínica [...] de biri-
biri”; logo em seguida, IBM realiza o movimento retórico de justificativa da
pesquisa, conforme a seguinte textualização: “se justifica pelos poucos casos
relatados na literatura até o presente momento”; por fim, IBM expõe o
movimento retórico do seu objetivo geral, na seguinte passagem: “Tem como
finalidade, assim, [...] com o caso”.
Considerando o espaço social da universidade, notamos que IBM não
cumpre a estrutura esquemática prototípica desse contexto no que se refere
ao propósito de introduzir pesquisa. Talvez, pelo caráter mais sucinto do
gênero relato de caso, muito semelhante ao artigo científico, a introdução
apresenta-se, também, bastante sucinta. Portanto, em se tratando de um
trabalho de final de curso, os movimentos retóricos não realizados pelo
escrevente nessa seção de seu texto comprometeram sua informatividade.
Isso posto, passemos para a análise do subtópico sobre operadores
argumentativos presentes na seção de introdução.

Os operadores argumentativos

Antes de iniciarmos nossas análises sobre o emprego dos operadores


argumentativos, faremos um breve esclarecimento a respeito da proposta de
Adam (2009c) a respeito do cumprimento das sequências argumentativas
através desses operadores. De acordo com o autor, argumentar consiste na
oposição de enunciados, sendo esses interligados por operadores
argumentativos. Assim, o linguista chama a atenção de que a argumentação
consiste em movimentos de demonstração de uma tese e refutação dessa
mesma tese, conforme citação a seguir:
Um discurso argumentativo [...] se coloca sempre em relação a um contra
discurso efetivo ou virtual. A argumentação é, por isso, indissociável da

184
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

polêmica. Defender uma tese ou uma conclusão é sempre defendê-la contra


outras teses ou conclusões, do mesmo modo que entrar em uma polêmica
não implica somente um desacordo [...], mas, sobretudo, a posse de contra-
argumentos. Esta propriedade que a argumentação tem de ser submissa à
refutação me parece ser uma de suas características fundamentais e a
distingue nitidamente da demonstração ou da dedução, que, no interior de
um sistema dado, se apresentam como irrefutáveis (ADAM, 2009c/2010
apud RIBEIRO, 2012, p. 43).

Diante dessa proposta, Adam (2009c/2010) propõe uma estrutura


esquemática de cumprimento de sequência argumentativa prototípica.
Ressaltamos que essa estrutura não é rígida, podendo sofrer variações,
ocorrendo tanto de forma progressiva (D então C), quanto de forma
regressiva (D porque C, em que se dá prioridade à explicação, para justificar
a afirmação anterior), conforme explica Ribeiro (2012). Feitas essas ressalvas,
explicitaremos, a seguir, a estrutura prototípica de sequência argumentativa
proposta por Adam (2009c), da qual nos baseamos para nossas análises.

Figura 01 - Esquema simplificado de uma sequência argumentativa

Fonte: Adam (2009c/2010 apud RIBEIRO, 2012, p. 42).

De posse dessa breve discussão sobre a abordagem da sequência


argumentativa, iniciemos nossas análises. Na seção de introdução de IBM,
encontramos apenas uma sequência argumentativa nos cinco parágrafos que
a compõem. Vejamos essa ocorrência no excerto (01), a seguir:

(01)
Os níveis de oxalato no biri-biri variam entre 8,57-10,32 mg/g,
consideravelmente maiores quando comparados aos da carambola (0,8- 7,3
mg/g) (LIMA et al, 2011). Apesar disso, existem muitos mais estudos que
associaram a lesão renal aguda ao consumo de carambola (MOYSÉS
NETO; VIEIRA NETO; DANTAS; 2010) quando comparados aos do biri-
biri. Assim, a lesão renal aguda por consumo de biri-biri,
excepcionalmente em pacientes hígidos, ainda é um evento considerado

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

raro (PASCHOALIN et al., 2014), possivelmente pelo menor consumo, e


consequentemente, pelos poucos casos publicados.
Conforme ilustrado no excerto (01), os operadores “Apesar disso”,
“Assim”, “ainda” e “principalmente” atuam como auxílio argumentativo. O
primeiro operador, “Assim”, introduz uma explicação, “a lesão renal aguda
por consumo de biri-biri, excepcionalmente em pacientes hígidos”, acerca da
declaração anterior de que “[...] quando comparados aos do biri-biri.”. Em
seguida, o escrevente emprega um operador temporal introduzindo o
argumento “é um evento considerado raro (PASCHOALIN et al., 2014)”. Por
fim, apresenta o operador “possivelmente”, um modalizador que exprime
dúvida ou hipótese referente à conclusão que introduz “pelo menor
consumo, e consequentemente, pelos poucos casos publicados.”. Portanto,
percebemos, pelo caráter de explicação, que essa sequência argumentativa
tem valor explicativo. Nesse excerto (01), detectamos o posicionamento do
escrevente, na medida em que realiza uma visada argumentativa, com o
auxílio dos operadores argumentativos, permitindo a construção da
sequência argumentativa.
Diante dessas constatações, passemos para nossas considerações sobre o
processo referencial que conduz a uma visada argumentativa, no próximo
subtópico.
A referenciação
Na seção de introdução de IBM, já no primeiro parágrafo, o escrevente
apresenta o tema de sua pesquisa, o fruto do biri-biri. Esse tema passa a ser
foco referencial em toda a introdução. Reproduzimos um período desse
parágrafo, no excerto (02), a seguir:
(02)
O biri-biri (Averrhoa bilimbi) é um fruto da família das Oxalidacae, mesma
família da carambola (Averrhoa carambola), originário da Índia (CORRÊA,
1926).

Destacamos, no excerto (02), o introdutor referencial “biri-biri” e sua


recategorização através de uma anáfora nominal definicional “um fruto”, a
qual desempenha uma função de especificação, ou seja, especifica um termo
que se pretende esclarecer sobre algo pouco conhecido ou discutido,
considerando as considerações de com Koch ([2004] 2017) sobre anáforas.
Assim, a autora esclarece que a função de especificação ocorre na relação de
hiperônimo e hipônimo e, geralmente, é introduzida por um artigo
indefinido, trazendo novas informações ao objeto do discurso, como
podemos perceber na relação do objeto “biri-biri” ao seu correferente “um

186
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

fruto”. Esse movimento referencial contribui para direcionar o leitor ao


assunto tratado, ou seja, o fruto do biri-biri e seus efeitos no corpo humano.
No entanto, poucas são as ocorrências de anáfora nominal que
auxiliariam a uma visada argumentativa do escrevente. Percebemos que a
ausência desses recursos demonstra um caráter mais descritivo e explicativo
na seção de introdução, com poucos momentos em que o informante se
posiciona em sua pesquisa. Talvez, a falta de movimentos retóricos que
possibilitariam maior percepção da posição desse escrevente sobre o objeto
investigado, como a pergunta e a seleção do aporte teórico, refletiu, também,
no teor menos argumentativo dessa seção.

Considerações finais

Quanto aos aspectos sociorretóricos da seção de introdução TCC de


Medicina, comprovamos que os propósitos comunicativos de introduzir
pesquisa, conforme a abordagem sociorretórica, não foram cumpridos
satisfatoriamente, pois não apresenta os movimentos de apresentação da
pergunta ou questão da pesquisa, da escolha metodológica, dos objetivos
específicos, o delineamento teórico da pesquisa e a estrutura composicional
do texto. No entanto, mesmo que faltem essas partes, o escrevente realiza os
movimentos retóricos de apresentação do tema da pesquisa, o objeto, o
objetivo e a justificativa, partes que contribuem para conduzir a orientação
argumentativa pretendida em relação ao tema a ser investigado.
A respeito dos operadores argumentativos na seção de introdução,
identificamos um excerto em que o escrevente consegue realizar uma
sequência argumentativa de nível contra-argumentativo completa. As
demais sequências da introdução de IBM são descritivas.
Quanto ao emprego de elementos referenciais, observamos apenas um
excerto da introdução em que IBM consegue realizar uma recategorização
nominal definicional, cuja especificação conduz a uma determinada
orientação argumentativa. Vejamos, no Quadro 01, a seguir, o resumo das
ocorrências dos operadores argumentativos e dos aspectos referenciais por
nós apresentados na análise da seção de introdução de IBM:
Quadro 02 - Seção de introdução
SEÇÃO INTRODUÇÃO
OPERADORES (1 excerto) FUNÇÃO REFERENCIAL (1 excerto)
Apesar disso 1 anáfora nominal definicional
Assim
Ainda
Possivelmente
Fonte: Elaboração própria.

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Em resumo, a seção de introdução tive empregos escassos de operadores


argumentativos responsáveis pelo cumprimento de sequências
argumentativas e poucos casos de elementos referenciais que conduzem a
uma orientação argumentativa.
Portanto, nos valendo da analogia sobre o texto argumentativo presente
em Motta-Roth e Hendges (2010), corroboramos com a ideia de que a
argumentação precisa ser, por um lado, consistente e com embasamento
teórico, mas, por outro, também é resultado da compreensão do sujeito
escrevente no momento daquela escrita. Assim sendo, é possível que seu
texto venha a sofrer futuras reformulações, posto que não há texto acabado,
definitivo, que não possa ser alterado. Em se tratando de uma pesquisa, cujo
objetivo é tornar-se um sujeito apto a ser considerado graduado, é preciso
que seu texto de final de curso cumpra os requisitos necessários para
exposição de sua pesquisa na esfera acadêmico-científica. E esse mesmo texto
pode, certamente, ser aperfeiçoado no sentido de contribuir cientificamente
para aquele objeto de estudo, em futuras investigações, se assim aprouverem
os escreventes ou interessados.

Referências
ADAM, Jean-Michel. Análises textuais e discursivas: metodologia e aplicações/Jean-Michel
Adam, Ute Heidmann, Dominique Maigueneau; Maria das Graças Soares Rodrigues, João
Gomes da Silva Neto, Luis Passegui (Orgs.) – São Paulo: Cortez, 2010.
KOCH, I. G. V. Argumentação e linguagem. São Paulo: Cortez, 2011.
______.; ELIAS, V. M. Escrever e argumentar. São Paulo: Contexto, 2016. 240 p.
MOTTA-ROTH, D.; HENDGES, G. R. Produção textual na universidade. São Paulo: Parábola,
2010.
SOUZA, C. R. R. de; SILVA, W. M. da. Gênero monografia em contexto de produção acadêmica
escrita. Raído, Dourados, MS, v. 12, n. 27, jan./jun. 2017 - ISSN 1984-4018.
SWALES, J. M. Research genres: exploration and applications. Cambridge: Cambridge
University Press, 2004.
YOSHIDA, Winston Bonetti. Redação do relato de caso. J Vasc Bras, 2007, Vol. 6, nº 2.

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

POSFÁCIO

Márcia Helena de Melo PEREIRA (UESB)


Ana Claudia Oliveira AZEVEDO (UESB)
Anne Carolline Dias Rocha PRADO (UESB)
Filipe Santos GUERRA (UESB)

No período que compreende os anos de 1918 até 1930, reunia-se, na


Rússia, um grupo multidisciplinar que, anos mais tarde, receberia de
estudiosos dos seus trabalhos o nome de Círculo de Bakhtin. Juntos,
intelectuais, cientistas e artistas dialogavam sobre diferentes assuntos,
participando ativamente de discussões políticas, sociais e culturais e
frequentando grandes eventos e solenidades. Seus intensos debates
resultaram em obras que, mais tarde, chegariam a diversas partes do mundo
e serviriam de base para os mais variados trabalhos, em diferentes áreas do
conhecimento. Inicialmente, essas obras versavam principalmente a respeito
de questões filosóficas, e o tema da linguagem ainda era abordado de
maneira incipiente. Mas, a partir de 1926, a linguagem passou a ser o cerne
das reflexões do Círculo, e, mesmo depois da dispersão do grupo, Bakhtin
seguiu tratando da temática, dando à perspectiva desenvolvida
coletivamente novos desdobramentos e complementações. Sendo assim,
podemos afirmar que o fenômeno que figura majoritariamente nas obras do
Círculo e que (inter)liga os muitos e complexos elementos da produção
teórica desse grupo, ultrapassando, inclusive, a literatura, é a linguagem, que
compõe e viabiliza conexões e comunicações com os múltiplos estágios da
experiência humana como um todo.
A teoria da linguagem desenvolvida pelos estudiosos supracitados é
calcada na enunciação de uma língua viva, que funciona na/pela interação com
o outro. Bakhtin e seu grupo de estudos, indo na contramão das perspectivas
estruturalistas, vigentes em sua época, inauguram uma nova vertente de
trabalho, ao expandir e aprimorar as reflexões para/na linguagem a partir do
prisma do dialogismo, entendendo-a como lócus de permutas de
conhecimentos e experiências. Nesse sentido, a linguagem, ultrapassando a
noção postulada por aqueles que se ocupavam somente do sistema da língua
e da transmissão de opiniões, fatos, informações e afins entre um emissor e
um receptor, confere aos componentes de uma sociedade a (realiz)ação dos
mais distintos e numerosos atos.
Acontece que mesmo a filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin
tendo sido pensada e desenvolvida ao longo do século XX, ela segue, ainda
hoje, ostentando o status de fundamental não só para muitos estudos

189
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

literários, mas também para todo o sustentáculo das ciências humanas


hodiernas. Algumas das razões para que essa condição perdure podem ser
explicadas pelo fato de a vasta base filosófica e o escopo extremamente
íntegro dos teóricos não se chocarem de nenhuma forma e também por conta
de os conceitos-chave do grupo, como o dialogismo, o heterodiscurso, o carnaval,
o enunciado, a bivocalidade, a refração, a interação, os gêneros do discurso, a
polifonia e o cronotopo, transcenderem o domínio puramente literário, sendo
dotados de possibilidades de aplicações nas mais diversas áreas de
estudo/pesquisa.
No Brasil, as contribuições do Círculo de Bakhtin foram propagadas a
partir da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, traduzida para o português
em 1979, e logo foram empregadas no desenvolvimento de inúmeras
pesquisas, dentre as quais podemos destacar aquelas relacionadas à
linguagem e, também, à educação, foco deste livro. Desse modo, a partir dos
anos 1980, os estudos de base bakhtiniana se multiplicaram no Brasil e
tomaram diferentes direções, demonstrando uma visão particular a respeito
dos pressupostos do Círculo. Tais postulados foram adotados, inclusive, em
documentos oficiais que direcionam a educação brasileira, a exemplo dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998, 2000) e da Base Nacional
Comum Curricular (BRASIL, 2018), que ressaltam conceitos como dialogia e
gêneros do discurso no processo de ensino-aprendizagem. A leitura
brasileira dessas obras mostra-se, assim, bastante profícua, comprovando a
importância dos estudos do Círculo de Bakhtin para áreas como a
Linguística, as Artes e a Educação.
Em se tratando de educação, há que se considerar que, dentre os
integrantes do Círculo, alguns tinham uma ligação particular com o ensino,
considerando que atuaram em sala de aula, tanto na educação básica quanto
na educação superior, como é o caso dos membros mais famosos — Bakhtin
e Volóchinov. Bakhtin chegou a escrever, na década de 1940, um ensaio em
que demonstrava preocupação com um ensino pautado nas formas abstratas
da língua, desconsiderando seu caráter vivo e social. Nessa época, o filósofo
era professor em duas escolas de educação básica na Rússia, e é a partir das
suas próprias vivências que ele tece uma crítica ao modelo tradicional de
ensino de língua materna, que enfatizava as formas gramaticais, e propõe
uma metodologia que se cruza com a perspectiva dialógica da linguagem:
“é necessário tirar os alunos do beco sem saída da linguagem livresca, para
colocá-los no caminho daquela utilizada na vida: uma linguagem tanto
gramatical e culturalmente correta, quanto audaciosa, criativa e viva”
(BAKHTIN, 2013, p. 42).

190
Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

Como vemos, a reflexão do teórico russo é bastante atual e aponta


problemas que, ainda hoje, perpassam o universo escolar. Portanto, é
importante ressaltar que as discussões realizadas por Bakhtin e seu grupo
estão em diálogo com outras teorias, como a Linguística da Enunciação e a
Pedagogia Crítica, e podem ser direcionadas para a educação, de modo a
balizar pesquisas sobre o processo de produção textual e sobre materiais e
práticas pedagógicas em diferentes modalidades e níveis de ensino. Além
disso, a constante atualização dos postulados do Círculo de Bakhtin pode ser
vista em análises de obras cinematográficas e de gêneros discursivos digitais,
nas quais se destacam suas contribuições para o ensino e para o letramento
dos estudantes. Desse modo, os capítulos deste livro oferecem subsídios para
que o ensino seja desenvolvido por meio de uma postura mais dialógica, que
considere a(s) linguagem(ns) utilizada(s) nos diferentes campos da atividade
humana, e prepare os estudantes para serem, efetivamente, sujeitos ativos e
críticos, capazes de usar a língua de maneira adequada às necessidades dos
diferentes contextos e situações.

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

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Educação e Linguagem no Círculo de Bakhtin

SOBRE OS ORGANIZADORES

Márcia Helena de Melo Pereira

Doutora e mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de


Campinas (UNICAMP). Professora titular da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Vitória da Conquista, onde atua na
graduação em Letras (Modernas e Vernáculas) e no quadro permanente do
Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGLin/UESB). É pesquisadora
dos seguintes grupos de pesquisa: Grupo de Pesquisa em Estudos da
Linguagem (GPEL/UESB), Grupo O Círculo de Bakhtin em diálogo (UEPB) e
Grupo de Estudos Bakhtinianos (GEB/Unesp Assis). É membro do GT de
Linguística de Texto e Análise da Conversação da ANPOLL. No campo
teórico, desenvolve pesquisas sobre processo de construção de textos, gênese
de textos, relação entre estilo individual e estilo de gênero, gêneros digitais,
crítica genética, autoria e ensino de texto. Também atua como Coordenadora
da banca de correção do Projeto Lápis na Mão, iniciativa da TV Sudoeste,
afiliada da Rede Globo E-mail: marciahelenad@yahoo.com.br

Ivo Di Camargo Junior

Possui estágio de Pós-Doutorado em Formação de Professores (PPGFP-


UEPB). É Mestre e Doutor em Linguística (UFSCar). Especialista em
Psicopedagogia Clínica e Institucional (Faculdade Metropolitana); Educação
Infantil (UFU); Ensino de Filosofia no Ensino Médio (UnB); Educação
Empreendedora (UFSJ); Gestão Escolar, Orientação e Supervisão (Faculdade
São Luís); Pedagogia Universitária (UFTM); Mídias na Educação (UFSCar).
Licenciado em Letras (UNESP/Assis), Filosofia (UFSJ) e Bacharel em História
(UNESP/Franca). Atua como professor de Língua Portuguesa Efetivo no
Centro Educacional Paulo Freire da Secretaria Municipal de Educação de
Ribeirão Preto/SP. Desenvolve pesquisas sobre Mikhail Bakhtin, cinema e
outras mídias/linguagens e educação. Trabalha com relações dialógicas,
polifonia, Memória de futuro e outros conceitos Bakhtinianos aliados ao
audiovisual e à educação. E-mail: side_amaral@hotmail.com

193
Impressão e acabamento

oo

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