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CORPO SOCIAL E CAPITAL CORPORAL: CONSIDERAÇÕES A

PARTIR DA TEORIA SOCIOLÓGICA DE PIERRE BOURDIEU

SOCIAL BODY AND BODY CAPITAL: CONSIDERATIONS BASED ON


PIERRE BOURDIEU'S SOCIOLOGICAL THEORY.

Daniele Andrea Janowski1


Cristina Carta Cardoso de Medeiros2

Recebido em: 07/2018


Aprovado em: 08/2018

Resumo: O presente texto objetiva discutir sobre como as discussões do corpo social e do capital
corporal são desenvolvidas nos escritos do sociólogo francês Pierre Bourdieu. Inicia com
considerações acerca do corpo e sua construção social, realizando uma conexão com os principais
conceitos do autor, destacando o habitus e a incorporação das disposições realizadas nos processos
de socialização nos campos sociais e evidenciando, na perspectiva da economia dos bens simbólicos,
as discussões sobre o capital corporal, em que as propriedades corporais são entendidas como capital
para a obtenção de lucros sociais. Finaliza-se o capítulo discutindo o capital corporal e o
investimento no corpo, apontando de forma prática a possibilidade de observação deste tipo de
capital e com o extrato das considerações finais, que percorrem alguns argumentos apontados ao
longo da publicação com intuito de fechamento.
Palavras-Chave: corpo social; capital corporal; Pierre Bourdieu.

Abstract: This paper aims to discuss how the discussions of the social body and corporal capital are
developed in the writings of the French sociologist Pierre Bourdieu. It begins with considerations
about the body and its social construction, making a connection with the main concepts of the author,
highlighting the habitus and the incorporation of the provisions made in the socialization processes
in the social fields and showing, from the perspective of the symbolic goods economy, the
discussions on corporeal capital, in which corporeal properties are understood as capital for the
attainment of social profits. The chapter concludes by discussing the body capital and the investment
in the body, pointing out in a practical way the possibility of observing this type of capital and with

1
Possui graduação em Educação Física pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (1995), graduação em
Ciências - Licenciatura de 1 Grau pela Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória
(2000) e graduação em Ciências Biológicas pela Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da
Vitória (2004). Mestrado em Educação na UFPR, na linha de cultura, escola e ensino. Atualmente é QPM da
Escola Estadual Nicolau Copérnico. Tem experiência na área de Educação Física, Educação, Mídias na Educação
e Ciências Biológicas.
2
Possui graduação em Educação Física pela Universidade Federal do Paraná (1991), especialização em Educação
Física Escolar/UFPR (1994), mestrado em Educação na linha de Cultura, Saberes e Práticas Escolares pela
Universidade Federal do Paraná (2003) e doutorado em Educação, também pela UFPR (2007), onde defendeu tese
sobre a apropriação da teoria sociológica de Pierre Bourdieu no campo acadêmico educacional. Atualmente é
professora associada da Universidade Federal do Paraná no curso de Educação Física, professora permanente da
Pós-Graduação em Educação - UFPR. Tem experiência na área de Educação Física, com ênfase em Expressão
Corporal, Dança e Sociologia do Esporte. Ainda atua na área da Sociologia da Educação, com ênfase na teoria
sociológica de Pierre Bourdieu e na área de Metodologia de Ensino Superior

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doi:http://dx.doi.org/10.7443/problemata.v9i2.41247
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the extract of the final considerations, which cover some arguments pointed out throughout the
publication with the intention of closing.
Keywords: social body; body capital; Pierre Bourdieu.

Introdução

Este artigo pretende discutir sobre como as discussões do corpo social e do capital
corporal são desenvolvidas nos escritos do sociólogo francês Pierre Bourdieu e alguns de seus
comentadores. Inicia com considerações acerca do corpo e sua construção social, realizando
uma conexão com os principais conceitos do autor. Tais conexões são desenvolvidas valendo-
se do modo de pensamento relacional de Bourdieu que interconecta disposição (habitus),
situação (campo) e bens simbólicos (capitais).
O significado de tais discussões tem a ver com a possibilidade de refletir com o autor
sobre a somatização de relações de dominação que acontecem pelo corpo, lugar de investimento
e princípio de sua eficácia, bem como desvelar que é a partir do adestramento dos corpos que
se impõem as disposições mais fundamentais, que ao mesmo tempo inclina e torna o indivíduo
apto para entrar nos jogos sociais (BOURDIEU, 2002). A entrada e permanência nos jogos
sociais dependem da obtenção de trunfos ou cartas mestras em forma de capitais, sendo um
desses bens, o corporal.
Na possibilidade de entender a conceituação de corpo e de construção social do corpo
proposta por Pierre Bourdieu, intenciona-se torná-la uma ferramenta de análise para a
elaboração de estudos que utilizam estes conceitos.
A relevância de tal empreitada é ressaltada por Montagner (2006, p. 518) quando alerta
que,

Na nossa sociedade, o corpo é o suporte de uma construção identitária


realizada pela estrutura social sobre a pessoa, construção da qual o próprio
indivíduo não é inteiramente o sujeito: qual o condenado de uma colônia penal
a sentença a ser escrita sobre nossa pele não nos é dada a conhecer.

A construção social do corpo a partir de Bourdieu

Diversos autores3 têm se dedicado ao exame e estudo das abordagens de Bourdieu sobre

3
Verificar entre os comentadores brasileiros: MEDEIROS, C. C. C. de. Habitus e corpo social: reflexões sobre o
corpo na teoria sociológica de Pierre Bourdieu. Movimento, Porto Alegre, v.17, n.01, p.281-300, janeiro/março

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o corpo. Apontam inclusive Chevallier e Chauviré (2010, p. 30) que este destaque é possível e
bem vindo porque “a Filosofia de Bourdieu é uma Filosofia do corpo, uma Antropologia da
existência humana como social feito corpo”.
Medeiros (2011) corrobora com Détrez (2006) quando afirma que Bourdieu reflete o
corpo em torno de três eixos: o corpo como lugar do senso prático, o corpo como manifestação
do habitus e o corpo como enjeux (aposta, mecanismo, investimento) de poder e dominação. O
corpo como lugar do senso prático seria onde o corpo reage muito mais a partir do ato reflexo
do que da reflexão, pois depois da aquisição e incorporação de valores ele estaria condicionado
a responder de forma automatizada as situações que ocorrem no meio social, o corpo como uma
construção social. Em relação ao segundo eixo, o corpo seria a manifestação do habitus onde
as escolhas alimentares, esportivas, as habilidades motoras contribuem para moldar os corpos
conforme as classes sociais revelando o esquema corporal como depositário de toda uma visão
do mundo social e de pertencimento a um grupo social.
Entende-se aqui o habitus como as maneiras de ser, de pensar, de perceber e de agir;
como o conjunto de ações e reações inculcadas no agente no processo de socialização que
constrói o corpo social. A partir da análise das disposições incorporadas, do esquema corporal,
dos movimentos, das técnicas e dos usos do corpo, pode-se afirmar que o corpo é um produto
social desde as dimensões de sua conformação visível, até nas formas de se portar e se
comportar, em que expressa sua relação com o mundo social (BOURDIEU, 1977). O corpo
assimila então, desde o nascimento, valores existentes nas relações familiares e no grupo social
de convívio imediato. Sobre essa inculcação ou assimilação inicial serão sobrepostas as
posteriores, aquelas advindas do meio escolar e das relações sociais nele possibilitadas e,
posteriormente, no mundo do trabalho e demais campos sociais pelos quais o indivíduo
circulará, dependendo de diversas mediações.
Como ressalta Bourdieu (2002a, p. 81),

A experiência prática do corpo, que se produz na aplicação, ao corpo próprio,


de esquemas fundamentais nascidos da incorporação das estruturas sociais, e
que é continuamente reforçada pelas reações, suscitadas segundo os mesmos
esquemas, que o próprio corpo suscita nos outros, é um dos princípios da
construção, em cada agente, de uma relação duradoura para com seu corpo.

É no conceito de habitus que, em sua teoria, Bourdieu ancora a explicação da

de 2011; MONTAGNER, M. A. Pierre Bourdieu, o corpo e a saúde: algumas possibilidades teóricas. Ciência &
Saúde Coletiva, Rio de Janeiro. vol. 11 n.2: 515-526, 2006, entre outros.

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incorporação das estruturas sociais. Explica que se trata de um conjunto de ações e reações
incorporadas pelos indivíduos a partir da vivência em sociedade, que surge das interações
sociais do meio e molda as atitudes e os pensamentos, tornando-se uma matriz cultural
internalizada que opera concretamente sobre o agente. Para Wacquant (2002a, p. 102), “... o
habitus é um conjunto de desejos, vontades e habilidades, socialmente constituídas, que são ao
mesmo tempo cognitivas, emotivas, estéticas e éticas”.
No terceiro eixo o pertencimento social leva o corpo a ser o local de aplicação e de
reprodução das formas de dominação (social, física e simbólica), um enjeux privilegiado para
o exercício da violência simbólica. Nesse terceiro eixo se torna fundamental a localização do
agente nos campos sociais, entendendo o campo como um espaço social concorrencial
estruturado distinto de posições hierarquizadas em que se delimitam práticas que obedecem ao
senso prático e corroboram com a construção e o reforço do habitus, do capital e do gradual de
poder, dando ao seu detentor vantagens, possibilitando o trânsito pelo campo e facilitando as
associações, o que se entende no arcabouço teórico de Bourdieu como “economia dos bens
simbólicos”.
O agente quando possuidor de capital específico circula de maneira fluída, potencializa
os agenciamentos e facilita a sua aceitação pelos demais. De modo destacado, o conceito de
capital será abordado na próxima secção, acentuando-se o conceito de capital corporal. Por ora
é interessante enfatizar que a quantidade e a forma de acumulação de capital são diferentes entre
os indivíduos, mas, quando entram em um campo, passam a conjugar ideias e atitudes. É a partir
das igualdades entre os membros, dos valores comungados, da héxis corporal específica desse
campo que são construídas as fronteiras e os limites do campo. Possuir características comuns
passa a ser necessário para a permanência nesse grupo e no jogo. Aqui está novamente
configurado o senso prático, a necessidade social que se torna natureza, a ação imediata às
conformações de um campo sem necessidade de acesso a consciência imediata, uma ação que
deriva da incorporação reflexa do habitus e que é carregada de significação, envolvendo
esquemas motores e automatismos corporais sensatos ou habitados pelo senso comum
(BOURDIEU, 2011).
O senso prático orienta escolhas por ser portador de uma finalidade retrospectiva, uma
antecipação às exigências de um campo, um “senso do jogo”, uma antecipação, a configuração
do encontro entre o habitus e o campo. A circulação efetiva em determinado campo produz um
conhecimento singular que predispõe o comportamento do agente, a seguir as regras, a
mergulhar num universo único que o faz mover-se com fluência e pertencimento neste espaço.

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Exemplificando a relação do habitus e do campo e sua sinergia, Bourdieu (2002b)


sustenta a ideia de que quando os agentes portam um habitus correspondente ao campo, eles
são como “peixes na água”, ou seja, naturalmente ajustados para fazer o que é preciso fazer.
Por terem se constituído pela incorporação de estruturas de um mesmo universo, os agentes
tornam-se geradores de práticas ajustadas ao mundo social no qual eles estão inscritos. Sobre
esta incorporação, essa simbiose do corpo socializado e dos campos sociais, o autor afirma que
são dois produtos acordados da mesma história, estabelecendo-se uma cumplicidade que ele
chamou de “infraconsciente corporal” (BOURDIEU, 2002b, p. 75).

Corpo social como capital

Pierre Bourdieu distingue, no decorrer de sua obra, quatro principais tipos de capital: o
social, o cultural, o econômico e o simbólico.
O capital social refere-se à extensão da rede de relações que um agente pode
efetivamente mobilizar e do volume de capital (econômico, cultural ou simbólico) que é posse
exclusiva de cada um daqueles que está ligado, da rede de relações que estabelece socialmente
e do reconhecimento interno no contexto (BOURDIEU, 2007a).
O capital econômico refere-se a bens materiais, dinheiro ou posses e o capital simbólico
está relacionado aos efeitos simbólicos da detenção de capital: “Todo tipo de capital
(econômico, cultural, social) tende a funcionar (em graus diferentes) como capital simbólico...”
(BOURDIEU, 2001, p.296). Refere-se não a um capital específico, mas, a importância
simbólica socialmente consolidada no reconhecimento desse capital.
O capital cultural refere-se aos bens culturais, sendo que Bourdieu (2007b) os classifica
em três estados: o estado incorporado, que está ligado ao corpo e pressupõe a incorporação. A
acumulação nesse estado deduz um trabalho de inculcação e de assimilação, custa tempo e deve
ser investido pessoalmente pelo investidor (bronzeamento); o capital cultural é um ter que se
tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante do indivíduo, um
habitus. O estado objetivado do capital cultural pode ser identificado em obras de arte, livros e
equipamentos possuídos pelo indivíduo e que podem ser transmitidos de forma material através
do capital econômico ou de propriedade jurídica. Bourdieu (2007b) ressalta, entretanto, que a
apropriação simbólica necessita de um capital cultural incorporado específico e que a condição
de apropriação cultural não é transmissível. O terceiro estado do capital cultural é o
institucionalizado, representado pelos diplomas que possuem valor convencional, constante e

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juridicamente garantido no que diz respeito à cultura, proporcionado um atestado de


competência cultural.
O capital cultural incorporado é fundamental, pois ele existe necessariamente no corpo
e pelo corpo. A detenção de capital cultural está vinculada às condições de sua apropriação que
se dá em um determinado campo social. A obtenção do capital vincula-se ao conteúdo cultural
disponível no campo. Dependendo do meio, o indivíduo tem acesso a mais ou menos capital.
Primariamente é na família e no convívio social imediato que se inicia a construção desse tipo
de capital.
O capital cultural em seu estado incorporado, ou seja, uma propriedade que se fez corpo
e tornou-se integrante do indivíduo, pode remeter a temas da cultura corporal e às possibilidades
de lucro a partir da incorporação significativa de conteúdos que podem gerar comportamentos,
percepções, atitudes e transformações que ficam impressas no corpo. Esse conjunto de
potencialidades e possibilidades corporais pode ser considerado um tipo de capital cultural
específico denominado capital corporal.
Barbero González (2005) situa o capital corporal como uma forma de capital cultural,
pois defende que é socialmente construído e intimamente ligado às condições materiais do
coletivo cultural e da existência individual.
Para Medeiros (2011, p. 287):

Bourdieu utiliza a noção de capital corporal, afirmando que as propriedades


corporais podem funcionar como capital para obtenção de lucros sociais, para
conceder à representação dominante do corpo um reconhecimento
incondicional.

A obtenção desse capital específico está condicionada a aquisição ou manutenção de


hábitos e atitudes efetivas como potencial investimento corporal e geração de lucros dentro de
um contexto específico de reconhecimento destes valores no espaço social. O capital
conquistado pode auxiliar o indivíduo nas conjugações e fazê-lo galgar posições em um
determinado espaço social.
Loic Wacquant (2002b) em seu livro “Corpo e alma – notas etnográficas de um aprendiz
de boxe” se remete ao capital corporal como uma espécie de poupança corporal obtida pelos
boxeadores a partir da rotina de treinamentos e da convivência entre os pares e tinha a ver com
o sentido prático da preservação e da busca por potencializar o próprio corpo a fim de fazê-lo
mais predisposto a suportar as agressões sofridas bem como mais preparado para a ação.
Cuidados com os punhos, com a alimentação, com o aprendizado de esquivas, com o uso de

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pomadas e unguentos, são exemplos de ações voltadas para a conservação desse capital corporal
para um boxeador, uma vez que eles seguem uma “ciência concreta” de seu próprio corpo.
Medeiros (2011) interpreta o capital corporal a partir da teoria de Bourdieu, em que as
propriedades corporais são entendidas como capital para a obtenção de lucros sociais, a
habilidade corporal na prática de esportes e a introdução precoce de uma habilidade específica,
pois esta seria bem mais rentável do que se ocorresse tardiamente. Partindo desses
apontamentos sinaliza-se a importância não só prematura do desenvolvimento das habilidades
motoras, como o aumento de possibilidades a partir de uma gama maior de habilidades. Os
interesses pelos esportes são condicionados primeiramente pelo gosto de classe e
posteriormente pela capacidade ou não em dominar habilidades motoras das modalidades. O
universo motor e social do agente condicionam possibilidades corporais que proporcionam
acesso a campos específicos.

Capital corporal como lucro social e o investimento no corpo

Após a localização das discussões do corpo em Bourdieu e as explicações sobre o


conceito de capital corporal é interessante apontar de forma mais prática, de que maneira e em
que formatos se poderiam visualizar o capital corporal.
Ao considerar atletas profissionais que utilizam seu corpo e suas capacidades físicas em
prol do rendimento, tem-se com mais clareza a utilização do capital corporal em prol da
ascensão em um determinado campo, ou seja, a busca pelo reconhecimento e pelas vantagens
financeiras obtidas nos esportes. O atleta profissional faz um investimento corporal, têm
cuidados com o corpo, desenvolve sua funcionalidade biodinâmica, toma atitudes cotidianas
que podem auxiliar na maximização da utilização do corpo na atividade a que se propõe.
O conteúdo do capital corporal está diretamente ligado à cultura corporal e sua aquisição
relacionada às experiências e conhecimentos a que o indivíduo teve acesso e ao modo de
internalização desses. É possível identificar a escola como um espaço social, repleto de
contradições e reproduções, porém, é também um espaço que pode permitir a ressignificação
de conhecimentos oriundos do senso comum e orientar os agentes significativamente em
relação a construção de seu corpo social.

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Em pesquisa empírica4 realizada com escolares de uma cidade do interior do Paraná,


procurou-se discutir quais os significados das práticas de cultura corporal presentes na
disciplina de Educação Física nos anos finais do ensino fundamental e de que forma predispõem
a obtenção de capital corporal. Como ponto de partida para a investigação identificou-se que o
capital cultural em seu estado incorporado poderia remeter a temas da cultura corporal e às
possibilidade de lucro a partir da incorporação de conteúdos que poderiam gerar
comportamentos, percepções, atitudes e transformações que ficariam impressas no corpo. Esse
conjunto de potencialidades e possibilidades corporais poderia ser considerado um tipo de
capital cultural específico, a saber, o capital corporal que até então discutimos em teoria.
González e Fraga (2012, p. 46) pensam que “a Educação Física é um componente
curricular responsável pela tematização da cultura corporal de movimento, que tem por
finalidade potencializar o aluno para intervir de forma autônoma, crítica e criativa nessa
dimensão social”. Reafirma-se então a cultura como conteúdo construído socialmente,
apontando a necessidade não somente em relação à identificação dos conhecimentos, mas
potencializando intervenções úteis no cotidiano dos indivíduos. A preparação para a vida em
sociedade não é apenas informativa.
A partir de três categorias de análise (os conteúdos da disciplina na realidade escolar;
os benefícios apontados na aprendizagem dos conteúdos e as possibilidades de investimento
corporal a partir dos conteúdos da Educação Física escolar), procurou-se discutir sobre: os
conteúdos veiculados nas aulas de Educação Física, a aceitação da disciplina no ambiente
escolar, a forma como processam a aprendizagem dos conteúdos, quais os principais interesses,
as dificuldades que encontram na aprendizagem dos conteúdos, a presença de trabalho a partir
dos elementos articuladores de conteúdo, a importância dos conteúdos veiculados e as
possibilidades de utilização do aprendido.
Averiguou-se, partindo das informações dos alunos, o investimento corporal como
indício da existência potencial de capital corporal a partir das práticas da cultura corporal na
escola. Toma-se aqui o entendimento de Wacquant (2002b) para conceituar o investimento
corporal como ações de preservação corporal e utilização do tempo para realização de
atividades físicas que permitam o desenvolvimento e a melhoria das condições e capacidades
do corpo como forma de acumulação de capital corporal a ser utilizado posteriormente.

4
Verificar em JANOWSKI, D. A. As práticas de cultura corporal na escola: entre os significados e a obtenção
do capital corporal na disciplina de Educação Física. Dissertação (Mestrado Acadêmico) – Programa de Pós-
Graduação em Educação. Universidade Federal do Paraná. Curitiba: UFPR, 2016.

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Foram identificados nos hábitos de vida, como comportamentos de preservação do


corpo: hábitos alimentares, atividades físicas regulares, cuidados de higiene, cuidados com a
aparência corporal e com a imagem refletida, o uso do capital esportivo como forma de inserção
em espaços específicos, relatos de utilização dos conhecimentos veiculados pela disciplina na
preservação corporal e manutenção da saúde. O investimento caracteriza-se por ações efetivas
com objetivo definido para a aquisição de vantagens nas relações sociais e nos possíveis lucros
sociais provenientes dos conhecimentos e das práticas pertencentes aos conteúdos da cultura
corporal.
É expressiva, dentro dos limites da compreensão desses alunos, a possibilidade de
investimento corporal atual e futuro. A interpretação dos alunos indica o entendimento da
existência de capital corporal, não nomeada, latente, como potencial cumulativo e lucrativo em
todas as fases da existência humana.

Considerações Finais

Tem-se como premissa que a cultura corporal diz respeito a aspectos que podem
influenciar na construção do corpo social, resultante de uma incorporação de vivências e
aprendizagens motoras, sociais e cognitivas. O corpo passa então a ser pensado como uma
construção, produto do vivido, que pode trazer lucros nas relações sociais e abrir possibilidades
em campos específicos. A expectativa de lucro social, a agregação de ganhos físicos e a melhora
funcional do corpo pressupõe a existência de uma forma singular de capital, o capital corporal,
explorada no quadro teórico de análise de Pierre Bourdieu, para definir a possível acumulação
de valores corporais.
A imagem corporal e os atributos corporais podem ser entendidos então como um
produto de toda a formação corporal individual. A acumulação das vivências e aprendizagens
compõe um conteúdo importante na construção da héxis corporal e em sua resultante social.
Esse conteúdo acumulado pode ser considerado como capital corporal cuja quantidade de
acúmulo de recursos dos agentes em suas posições no campo, pode ser transformada em “uma
‘energia social’ congelada e conversível” (WACQUANT, 2002a, p. 98).
Investir no corpo pressupõe a ideia de lucro a partir da modificação ou adaptação
corporal com fins específicos, como melhor aceitação pelos pares nas relações, potencialização
das capacidades corporais e manutenção do corpo. Este relacionamento com corpo está
condicionado ao espaço social por onde circula o agente e onde também se traçam as melhores

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estratégias de aprimoramento do corpo, partindo de valores existentes nos espaços frequentados


e nas suas relações. A finalidade intrínseca do investimento revela-se nos possíveis resultados
incorporados e vantagens nas relações em um determinado grupo a que se tem pertencimento.
O conhecimento, a afirmação e o protagonismo nas questões corporais podem ser
entendidos como pressupostos da construção do corpo social. Efetivamente na construção da
imagem corporal e nas conformações visíveis do corpo, existem evidências de lucro social por
meio da possibilidade de comunicação pelo corpo, da facilitação da circulação em campos
específicos e pelo pertencimento externado a partir do habitus.
O corpo fala nas relações sociais exprimindo de forma incontestável o que se é
(BOURDIEU, 2011). O corpo é forjado nas relações sociais e em suas condicionantes. A héxis
reflete a construção corporal a partir das ações, ela própria transforma-se na principal forma de
comunicação com os outros agentes.
A relevância pelo tema pede que para uma argumentação mais contundente se pudesse
remontar à verificação de todas as interferências realizadas no corpo. O sociologizar de
Bourdieu solicita não só a leitura pelo parâmetro teórico, mais a contextualização histórica e
cultural. Percebendo as atribuições pedagógicas no corpo, realizadas pelos mais variados
grupos e espaços sociais, seria possível melhor prospectar a dimensão do capital corporal. A
importância de tais estudos não estaria somente na verificação histórica dos formatos de corpo,
sempre sob a influência de padrões dominantes, mas no apontamento do corpo como um
instrumento solidário a todo um sistema de técnicas e de utensílios, carregado de uma
multiplicidade de significações e de valores sociais (BOURDIEU, 2002b).

Referências

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