Você está na página 1de 11

Paulo Bruno Leminski Tolentino

Por Luis Dolhnikoff

O título deste artigo há de parecer estranho para muitos leitores, e para alguns, provocativo ou de
mau gosto. Mal comparando, é o mesmo que fundir os nomes de Che Guevara e Adolf Hitler (o que, no
entanto, segundo alguns críticos abalizados, não seria um completo absurdo, considerando que Guevara era
um stalinista puro e duro, adepto, assim, da ditadura do partido único, que afinal se revelou a coisa mais
parecida ao nazismo depois do fascismo). Porque Paulo Leminski e Bruno Tolentino são identificados, cada
qual, a um extremo do espectro poético-ideológico: experimentação e esquerda o primeiro, classicismo e
direita o segundo – classicismo e direita por fim fundidos no termoconservadorismo. Foi, portanto, com este
termo que recentemente se referiram a Tolentino em um artigo, visando atacar-me por contaminação: se eu
fui, como de fato fui, amigo de um “conservador” como Tolentino, não passo de um conservador. E como ser
conservador, em certos círculos, é o mesmo que ser errado, tanto Tolentino como eu somos, em conclusão,
errados. Caso encerrado.
Ou talvez não. Pois fui, antes e mais intensamente, amigo de Paulo Leminski (que acabaria prefaciando
meu segundo livro, mais por amizade aos poemas do que ao autor, acredito). Devo, portanto, ser
experimentalista e de esquerda. Como, porém, tenho de ser conservador, em função de minha amizade com
Tolentino, sou, enfim, uma espécie de ornitorrinco poético-ideológico: experimentalista-classicista-
esquerdista-direitista. O absurdo se desfaz à medida que se desfaçam as idéias feitas e os preconceitos. Mas
isto, em se tratando de nosso meio literário, eivado da pequena política em causa própria, de compadrio,
provincianismo, anticriticismo e ignorância satisfeita, é o mesmo que esperar encontrar virgindade num
prostíbulo. Sou, porém, um ingênuo contumaz. Sigamos, portanto.
Foi ao rir da referência à minha proximidade com Bruno Tolentino, em função, justamente, de minha
amizade com Paulo Leminski, que comecei a comparar mentalmente os dois homens. Comparação que,
enfim, levou-me a este pequeno ensaio lítero-memorialístico (mais memorialístico que literário e, portanto,
algo fluido).
Sua possível relevância está no fato inusitado de provavelmente eu ser o único amigo de Leminski que
se tornou amigo de Tolentino. Logo, não há muitas pessoas capazes de compará-los diretamente. Isto,
porém, ainda seria irrelevante, se os preconceitos e idéias feitas não fossem idéias feitas e preconceitos. Ou
seja, se de fato os dois homens correspondessem à imagem que deles se faz e se espera.
Paulo Leminski morreu em 1989. Vim a conhecer Bruno Tolentino treze anos depois. A distância
temporal, porém, não foi causa de ilusão ou confusão, ao contrário: foi causa de surpresa, ao conhecer
Tolentino e me lembrar, imediatamente, de Leminski. Não havia nenhum motivo a priori para isto. Eu não
estava pensando em Leminski por qualquer motivo especial naqueles dias, e as imagens públicas
cristalizadas dos dois homens não levavam a qualquer aproximação. Daí a surpresa: minha lembrança de
Leminski ao conhecer Tolentino deu-se tão-somente pela surpreendente semelhança entre os dois.
Semelhança, porém, em quê? Pois há incontáveis modos de ser semelhante. Pode-se ser semelhante
no tom de voz, no modo de sorrir, no aspecto físico, nos traços do rosto, num gesto particular. E todos estes
são modos irrelevantes (e não verdadeiros, neste caso).
Conheci Bruno Tolentino por uma circunstância incomum. Era 1997. Eu estava em meu auto-exílio
numa praia do extremo sul da Ilha de Santa Catarina, para onde me retirara, sem telefone nem internet, em
1991, deixando para trás trinta anos de São Paulo e uma década de meio literário, quando um poeta e
jornalista paranaense, um dos poucos do velho meio com quem eu ainda mantinha contato, estando a passar
uns dias ali, apareceu em minha casa perguntando se eu gostaria de resenhar o último livro de Tolentino
para oEstado de S. Paulo. Ante minha relativa surpresa, explicou que acabara de falar ao telefone com o
editor de literatura do Caderno 2, que lhe encomendara a resenha. Como ele a recusou, o editor, num
lamento quase desesperado, perguntou-lhe, então, se não poderia sugerir um nome, pois ele era o quarto ou
quinto a recusar. Além da dificuldade de encontrar alguém disposto, tais tentativas tinham tornado os prazos
exíguos.
Aceitei de pronto, sem precisar perguntar pelo motivo das recusas sucessivas. Simplesmente,
ninguém queria correr o risco.
Bruno Tolentino tornara-se uma figura problemática ao atacar de forma dura, em 1994, Augusto de
Campos, assim que ele, Tolentino, regressara de um exílio voluntário de trinta anos na Europa. Então,
mesmo aqueles que não simpatizavam com a obra e a pessoa de Augusto de Campos cerraram ombros,
provincianamente, contra o “intruso”. Numa rara ida a São Paulo, naquele ano de 94, ouvi inúmeros
comentários contra a “atitude” de Tolentino. O grosso dos argumentos pode ser resumido com a afirmação de
que não estava certo alguém “cair de pára-quedas” e atacar de forma dura uma “reputação literária” como a
de Augusto de Campos. A mim, particularmente, pouco importam, porém, as “reputações literárias”.
Costumo chamar Ferreira Gullar de Ferreira Irregullar, porque é o autor, num extremo, de uma obra magistral
como oPoema sujo, e no outro, de excrescências como “Ode a Tancredo Neves”. Se isto pode ferir sua
“reputação”, não ameaça em nada meu julgamento sobre seus momentos mais altos, que o colocam entre os
maiores nomes da poesia brasileira de todos os tempos. De que serve, então, a “reputação”, além de biombo
para velar a luz fria da crítica? Obras devem ser julgadas pelo que são. Os nomes vêm depois. Se a um nome
se ligam grandes obras, grande seja o nome. Mas se ao nome se ligam grandes obras e obras menores, que
se registre a grandeza do nome apesar de eventuais pequenezas, e não por seu ocultamento. Há nomes que
se ligam apenas a grandes obras, como Cabral e Pessoa. Outros, como Gullar, são mais irregulares, como
Drummond e o próprio Augusto de Campos. Por tudo isso, pouco me importa se o autor de uma crítica a
Augusto seja um recém-retornado ou um estrangeiro, um asteca ou um marciano. Importa a pertinência da
crítica. E a crítica de Tolentino a uma tradução de Augusto de um poema de Hart Crane não podia ser
inteiramente descartada como criticamente impertinente. Mas se não era criticamente impertinente, que
outras impertinências poderiam ser consideradas relevantes? Na verdade, o que se fez foi se aproveitar de
alegadas impertinências de modos para descartar as possíveis pertinências de argumentos.
Apesar de minha então relativa proximidade com os irmãos Campos (eu co-organizava, à época,
o Bloomsday de São Paulo ao lado de Haroldo), gostei de tudo que Tolentino fizera, modos e argumentos.
Mesmo porque, se Augusto de Campos tinha de fato estofo, era o momento de mostrá-lo, enfrentando o
agressor (pois que o era) com suas próprias armas. Mas eis que ele, acompanhado de um sem número de
poetas e correlatos, faz circular um patético e radicalmente impertinente abaixo-assinado de solidariedade.
Abaixo-assinado? Solidariedade? Compadrio provinciano. E envenenamento da crítica. Pois se a crítica
literária, por mais dura que seja, não é respondida com argumentos, mas com assinaturas, a crítica fica sob
ameaça: comporte-se (segundo o que nós determinamos que seja um bom comportamento) ou lançaremos
seu nome no opróbrio, com as devidas assinaturas.
Tudo isso voltou à baila e, no meu caso, à bile, quando, três anos depois, vejo que a militância
provinciana havia se cristalizado numa quarentena de silêncio em torno de Tolentino. Ele era um poeta
reconhecido que recém publicara um livro. Um grande jornal de São Paulo queria resenhá-lo. Por que diabos
ninguém se dispunha a fazê-lo? Medo de enfrentar a fúria de Tolentino, se a crítica fosse negativa, ou de
enfrentar um abaixo-assinado e um cerco de silêncio capitaneado por Augusto de Campos, se a crítica fosse
positiva? E a poesia e a crítica brasileira de poesia que se fodam.
Conhecia, de Tolentino, seu primeiro livro, Anulação e outros reparos, de cuja primeira edição
encontrara um exemplar autografado anos antes, num sebo (SP, Massao Ohno, 1963). Era seu livro de
estréia. Pois havia ali alguns poemas verdadeiramente muito bons. Muito melhores, e bem mais modernos,
por exemplo, do que seus equivalentes nos livros de estréia de Augusto e de Haroldo, que iniciaram suas
carreiras literárias próximos ao retaguardismo da Geração de 45 – enquanto Tolentino vinha do alto
modernismo de Drummond, Eliot, Murilo, etc.

VISITA

Pedra rasa, sem pergunta.


Lívidos limos em torno.
E as palavras, uma a uma
Abolidas, como o corpo.

Leve sopro. Lume breve.


Tudo dar apenas nisto.
Choro extinto. Lábio inerte.
Desapego. Desperdício.

E um vago vento por cima


Passando, que tudo passa.
A tênue sombra votiva
De sequer deixar-se marca.

(p. 29)

A forma tradicional da quadra popular portuguesa, feita de versos rimados dois a dois em
heptassílabos, tem aqui a sua familiaridade estranhada tanto pelo ritmo entrecortado das frases quanto pelo
vocabulário austero quanto, enfim, pela substituição das rimas por assonâncias, ou rimas imperfeitas. E o
tema do poema, uma visita a um túmulo, é a própria familiaridade estranhada. Tampouco é por acaso a
alternância de tons, oscilando entre o agudo, aberto e claro e o grave, fechado e escuro, como as emoções
oscilam em tais circunstâncias (tristeza, amargura e saudade, mas também a doçura da lembrança): pÉdra
rÁsa sÊm pergÛnta, lÍvidos lÍmos em tÔrno, abolÍdas cÔmo o cÔrpo, lÉve sÔpro lÛme brÉve Notar o reforço
da percepção dessa alternância de tom pelo paralelismo contrastante das aliterações em leve sopro / lume
breve / lábio inerte, assim como sua agudização crescente, pela substituição dos ee abertos pelos ii tônicos
denisto, extinto, desperdício, cima, votiva. Ou o absoluto domínio das variáveis morfossemânticas, como nos
versos “E um vago vento por cima / passando, que tudo passa”, regidos por aliterações fricativas e sibilantes,
que imitam o som do vento, e estruturados pelo perfeito enjambement de “por cima / passando”, em que a
expressão por cima fica no verso de cima (como o vento sobre o túmulo) enquanto a leitura de passando se
dá na passagem de um verso a outro. Tudo isso num poema moderno por sua sintaxe paratática (“Leve
sopro. Lume breve.”, “Choro extinto. Lábio inerte.”, “Desapego. Desperdício.”). Compare-se, agora, com a
sintaxe arrevesada e o vocabulário “literário”, “precioso”, das estréias dos Campos:

Ó jardins, grandes de ternura,


Dissimulado céu sob meus pés,
Relaxai vosso abraço, os cravos desprendei,
Se sois bastante verdes
Caminhai
(Augusto de Campos, “Poema de Retorno")

O Príncipe é um operário do azul: de suas mãos edifica infância as


galas do cristal e doura o andaime das colméias: paz de câmaras ardentes
(Haroldo de Campos, "Ciropédia ou a Educação do Príncipe")

(www.secrel.com.br/jpoesia/har06.html)

A balada do cárcere, no entanto, tinha pouco, à primeira vista, do modernismo de Anulação. Era,
afinal, um quase épico em que prevalecia a forma soneto. Mas que sonetos. Fazendo, no seu próprio estilo, o
que fizeram antes Drummond e Vinicius, isto é, adaptar a linguagem escorreita do modernismo aos
decassílabos, havia ali uma poesia não apenas de forte sabor moderno como de grande saber poético. Foi um
prazer resenhá-la (minha análise do livro afinal ocupou uma página inteira de uma edição de 1997
doCaderno 2).
Anos mais tarde, ao lançar O mundo como idéia, em 2002, Tolentino encheu a paciência da área de
produção da editora Globo ao exigir que se descobrisse meu telefone. Um telefone, por mero acaso, recém-
instalado, e que não constava de nenhuma lista. Queria me enviar um exemplar, e avisar que o estava
enviando. Pouco depois de seu telefonema, fiz, por um outro acaso, uma das minhas então raríssimas visitas
a São Paulo. Combinei de pegá-lo na PUC, onde me recebeu na sala de visitas da casa paroquial, na qual
mantinha um quarto.
Estavam ali um de seus filhos e um padre italiano robusto como um camponês do realismo peninsular.
Ofereceram-me uma bebida forte e fortemente verde, semelhante ao absinto, enquanto folheavam um
avultado volume com a biografia de José Maria Escrivá, o fundador da Opus Dei, a mais conservadora das
organizações da conservadora Igreja Católica. Mau começo, pensei. Escrivá fora próximo de Franco, ou seja,
um padre fascista, recém-canonizado por João Paulo II, por quem minhas simpatias eram nenhumas. Para
piorar, eu era visceralmente ateu, além de judeu. Muito mau começo.
Não fossem a qualidade e as qualidades da presença de Tolentino. Uso tais termos numa tentativa de
resumir algo difícil de ser resumido. Ele aliava segurança, empatia, humor inteligente, presença de espírito,
educação e cultura literária. Proximidade amistosa e distanciamento irônico. Era relativamente baixo e
magro, mas a força da personalidade o tornava a maior presença na grande sala. Nariz afilado, olhar
brilhante e sorriso franco. Eu estava de jeans e paletó, oscilando entre a informalidade e a formalidade,
enquanto ele vestia uma calça preta e um casaco marrom de couro. Enquanto eu lembrava, assim, um
professor universitário, o que nunca fui, ele lembrava um velho motoqueiro. Sua imagem estava mais
próxima da realidade do que a minha.
Fomos da PUC para o Finnegan´s Pub, em Pinheiros, beber uma Guiness, forte e densa cerveja preta
irlandesa, que ele não tomava desde a volta da Europa. Não ficamos, porém, na Guiness. Tampouco no
terreno das substâncias legais. Tolentino, como eu, era um velho consumidor de vários tipos de aditivos, que,
como eu, andava aposentado, porém não ao ponto de não se entusiasmar ao saber que eu ainda mantinha
alguns velhos contatos. Bebemos, empoamos e conversamos até amanhecer. O fato de que ao conhecer
Paulo Leminski também passara com ele uma longa noite bebendo, conversando e empoando não seria nada
demais se a conversa, o fator mais importante, não fosse semelhante. (Portanto não havia, na conversa de
Tolentino, nada de um católico conservador militante. Na verdade, não havia nada de católico, em qualquer
sentido. Tolentino tinha com sua crença uma relação pessoal, ou seja, verdadeira, que se manifestava, então,
nos âmbitos apropriados: ou privado e clerical, como na casa paroquial em que o encontrara, ou literário, em
seus poemas de temática religiosa. Neste último caso, não apenas se trata de uma temática tradicional da
lírica, como Tolentino a abordava em clave teológica, e não militante-propagandística.)
A partir da publicação de meu primeiro livro, na temeridade do fim da adolescência, convivi, por mais
de uma década, de forma mais ou menos intensa, mais ou menos esporádica, com muitos dos principais
nomes da poesia brasileira contemporânea. De todos eles, os que aparentavam ter uma relação mais
claramente existencial com a poesia eram justamente Leminski e Tolentino. Talvez não por acaso, dois dos
poetas com quem eu teria, enfim, mais proximidade pessoal. (Fui hóspede de Paulo Leminski e de Alice Ruiz
na sua tão simples quanto aconchegante casa de Cruz do Pilarzinho, em Curitiba, algumas vezes, em meados
dos anos 80, e os hospedei no meu apartamento do Paraíso, em São Paulo, outras tantas vezes. Com
Tolentino, além de manter longas conversas por telefone, passaria tardes e noites inteiras, em várias idas a
São Paulo, entre a PUC, o Finnegan´s Pub e a casa de Mário Fuchs – proprietário do Finnegan´s – no
Sumaré, onde eu me hospedava.)
Não se pense, por esse “existencial”, no velho e estúpido mito romântico do poeta inspirado, o tipo do
sujeito que caminha suspirando à sombra dos muros de um cemitério, roupas escuras, lábios trêmulos e
olhar esbugalhado. Quando falo de uma relação existencial com a poesia falo, antes, em aparentar. Pois, em
primeiro lugar, não posso saber com certeza da intensidade existencial dessa relação em indivíduos com
quem não convivi com alguma intimidade (caso da maioria dos outros poetas que conheci); em segundo
lugar, porque nos casos de Leminski e de Tolentino essa intensidade era, de fato, aparente. Se não eram, em
suma, poetas do tipo romântico, eram inquestionavelmente poetas (isto pode parecer óbvio, em se tratando
de poetas, mas não o é, pois as personalidades variam, e com elas, as manifestações pessoais). Refiro-me a
certo entusiasmo informado aliado àpessoalidade. Ou seja, não apenas um profundo entusiasmo pela poesia,
mas também uma vasta informação poética; não somente uma vasta informação poética, mas igualmente
uma absoluta pessoalidade ao lidar com ela (ao contrário, por exemplo, de um professor de literatura, salvo
raras exceções). Era nisso, em suma, que Leminski e Tolentino eram parecidos entre si (para não falar de
outras características, como virtuosismo e humor verbais), ao mesmo tempo em que se distinguiam de seus
pares.
Não que esses não tivessem entusiasmo pela poesia, ou erudição poética, ou relação pessoal com ela:
mas a interação destas variáveis comumente era tal que o resultado acabava bastante distinto. Pois ou havia
menos entusiasmo, ou menos erudição, ou menos pessoalidade. Era o caso, por exemplo, de Haroldo de
Campos, que em seu entusiasmo pela poesia se igualava a ambos, e em erudição literária era páreo para
Tolentino, ambos superando, em extensão, Paulo Leminski. Mas cuja naturalidade era comprometida por um
viés militante que, com o tempo, a partir dos embates pertinentes dos tempos vanguardistas, degenerara em
arbítrio. Veja-se a este respeito, por exemplo, a carta em que o próprio Leminski reclama com Régis
Bonvicino do fato de Haroldo tentar impor-lhe a idéia de abolir quaisquer referências públicas ao nome de
Ferreira Gullar, numa caricatura da política stalinista de editar a história (cf. Uma carta uma brasa através /
Cartas a Régis Bonvicino, Iluminuras, SP, 1991). Tudo em Haroldo de Campos parecia, e era de fato, filtrado
por uma visão política da poesia, não necessariamente no sentido amplo de político, ou seja, relativo à pólis,
logo, à cultura, mas no sentido partidarista, grupalista. Incluindo a própria história literária, em que não
poucas vezes incorreu em graves anacronismos – como o de considerar o mais famoso haicai da Bashô uma
espécie de antecessor involuntário da poesia concreta, quando absolutamente nada, não apenas no original
japonês (que faz um uso gramatical de palavras comuns), como na visão de Bashô da forma haicai (baseada
num viés budista de simplicidade e neutralidade), avaliza minimamente tal apropriação.
Mas Paulo Leminski não era, apesar de tudo isso, o que se costumava chamar de “homem de
esquerda”, que, além do mais, tinha um pé bem fincado na contracultura dos anos 60 e 70, para não falar de
sua profunda relação com o movimento concreto? Enquanto Bruno Tolentino era “de direita“ e um inimigo
histórico do concretismo.
Ocorre que, no final do século 20, essas características já não tinham a clareza, a pertinência e,
portanto, a relevância que muitos insistiam (e ainda insistem) em que lhes apontar. Por exemplo, o que
significava, afinal, o “conservadorismo” de Tolentino? Que ele adotava a forma soneto? Neste caso, Vinicius
de Moraes e Glauco Mattoso também são conservadores. Que ele era um católico praticante? Ora, muitos
poetas considerados para lá de modernos são hoje adeptos do budismo. Devo acreditar, então, que o
budismo, uma religião derivada diretamente do hinduísmo, ambos multisseculares, é uma religião moderna?
Tal idéia seria rigorosamente risível, se não fosse radicalmente ridícula. Moderno, do meu ponto de vista, é o
ateísmo. No entanto, muitos neocrentes “pós-modernos” decretaram o ateísmo coisa do século passado.
Logo, devo ser conservador por ser ateu, enquanto Tolentino era conservador por ser católico, e os budistas
são modernos por serem budistas...
Talvez se trate, então, do “direitismo” político-ideológico de Tolentino. Neste caso, além de
caracterizá-lo de maneira consistente (o que eu, apesar de tê-lo conhecido relativamente bem, sou incapaz
de fazer), seria ainda necessário crer que ser de esquerda é, hoje, o contrário de ser conservador.
Quanto ao primeiro fato, como fica, então, a dura e franca reação de Tolentino ao golpe de 64, muito
mais dura e franca, em todo caso, que a dos irmãos Campos, por exemplo? Pois enquanto estes demoraram
para dar o que eles próprios chamariam de “salto participante” da poesia concreta (depois de muita cobrança
político-ideológica), Tolentino, no início de 1965, já escrevia poemas ferozes nos quais chamava os militares
de “gorilas” e os acusava de destruir o país e sua cultura, em pleno primeiro aniversário do golpe:

FELIZ ANIVERSÁRIO

Caiu, caiu
fora da História
o meu país:
foi por um triz,
mas foi... E agora?
Bye bye Brazil!
Os sacripantas
te anestesiaram,
deram-te a teta
do deus que adoras
e hoje te operam
à baioneta!
Dói muito? Choras?
Ranges os dentes
como os dementes?
Não adianta,
ouve, repara:
ninguém te escuta...
Aquelas feras,
a gorilada,
a força bruta
que te engoliu
de madrugada,
tem o fuzil,
tu não tens nada,
só capataz!
Terrinha linda,
mas provisória,
fica calada,
meu bem, e escuta,
é a voz da História:
– “Caiu caiu....”
Vais cair mais
e mais ainda,
vais para a puta
que te pariu:
primeiro abril,
depois o Nada.

Paris, 1 de abril de 1965

(Os deuses de hoje, RJ, Record, 1995, pp. 44-45)

Poderia destacar o ritmo rápido, logo, moderno, dos versos curtos em tetrassílabos encadeados
por enjambements, assim como o vocabulário híbrido (logo, outra vez moderno) que mistura calão,
português culto, português coloquial e inglês, para não falar do domínio poético demonstrado pelo uso de
rimas raras em meio à grande fluidez sintática, além da agressividade desassombrada do poema. Mas não o
farei. Limito-me, aqui, a exemplificar com este poema o “direitismo” político-ideológico de Tolentino.
Quanto a Paulo Leminski, nos últimos anos, era um entusiasta do sindicato Solidariedade da Polônia.
Um sindicato liderado por católicos praticantes, apoiado agressivamente pelo Vaticano particularmente
conservador de João Paulo II, e cujo objetivo era levar a Polônia ao paraíso terrestre da democracia liberal. E
o que dizer de heróis da esquerda contemporânea (aqui não incluído Leminski) como o populista histriônico
chamado Hugo Chávez? Ou das simpatias muito mal disfarçadas de grande parte dessa mesma esquerda
(idem) pelo islamofascismo, como resultado indigesto da velha equação segundo a qual o inimigo do meu
inimigo é meu amigo, mesclada a certo acriticismo multiculturalista? Não conheço nada mais conservador do
que a shariá, a lei islâmica, que mutila ladrões, assassina “adúlteras” e homossexuais, proíbe o
questionamento da religião e a liberdade de imprensa, e um vasto e vastamente infame etc. No entanto,
quem faz denúncias claras deste tipo, hoje, são representantes da direita, enquanto a esquerda,
vergonhosamente, se cala, tergiversa ou relativiza. Se a direita denuncia leis e práticas injustas, arcaicas,
preconceituosas e contrárias aos direitos humanos, enquanto a esquerda as tolera, onde está, afinal, o
conservadorismo?
Portanto, quanto ao segundo fato acima referido, a verdade é que, do mesmo modo que após as
denúncias do 20º. Congresso do PCUS dos crimes da Stálin se tornou impossível pretender que a ditadura
selvagem era característica exclusiva da direita, com a atual confusão da esquerda, resultado do fim de sua
condição histórica de alternativa real de poder ao capitalismo, acreditar que a esquerda seja moderna e a
direita conservadora é o mesmo que acreditar ser Guevara outro Francisco de Assis. Tanto a esquerda quanto
a direita têm, hoje, aspectos conservadores e modernos. Se a direita combate o direito ao aborto, também
combate o direito de adultos estupidificados pela “tradição” de mutilar os genitais de meninas (prática
comum em muitos países islâmicos), o que, tomadas as coisas pelo que são, não passa de tortura brutal
praticada em crianças. Se a esquerda defende o direito ao aborto, também defende (ou não ataca de modo
convincente, o que dá no mesmo) o direito de povos não-ocidentais de torturar crianças. Infelizmente, as
coisas não são mais (na verdade, jamais foram) tão simples quanto crêem os crentes, os simples e os
militantes.
Enfim, com o fim do socialismo como alternativa política real, de um lado, e com o fim das vanguardas
artísticas, de outro, tudo muda. Fato equivalente, portanto, dá-se com a “experimentação” poética: o que é
ainda hoje assim chamado não passa, normalmente, de diluição de poéticas visuais de meados do século
passado. A lucidez e a sensatez então sugerem, aqui, forte reserva na reutilização automática de rótulos
empoeirados. Mesmo porque, a coisa pode se complicar ainda mais. As velhas vanguardas, por exemplo,
“transculturaram” a forma haicai sob uma ótica modernista. No entanto, tomados os fatos pelo que são, o
haicai é uma forma tão tradicional no Japão quanto o soneto no Ocidente. Será que julgaríamos
particularmente moderno, vanguardista ou revolucionário um poeta que, em plena segunda metade do século
20, se dedicasse militantemente ao soneto em japonês? O haicai seria “moderno” por ser sintético e
impessoal; no entanto, nada tem de construtivista, mas tudo de espontaneísta, enquanto o soneto possui
regrasformais estritas, o que não deixaria de ser modernizante no caso japonês. A verdade é que, depois de
tudo, o verso livre é hoje tão histórico quanto o soneto. Manter uma visão do século passado, em que a
adoção do verso livre representou, há mais de cem anos, uma reforma poética, é manter uma visão do
século passado. Pound foi vanguardista emulando a dicção de Homero, de mais de dois mil anos. Hoje, pode-
se ser passadista emulando a dicção de Pound. Poemas devem ser julgados pelo que são, não pelo que
parecem ou pretendem ser. Como pude demonstrar em mais de uma ocasião, submetendo os sonetos (e
demais poemas) de Tolentino a uma análise minuciosa, ele é um dos grandes poetas do país da segunda
metade do século 20. Na qual, como já referido, não faltaram grandes sonetistas, como Drummond, Jorge de
Lima e Vinicius, e mais recentemente, o “maldito” Glauco Mattoso e o não menos maldito (ainda que por
outros motivos) Nelson Ascher – que a esquerda identifica com o conservadorismo, não obstante ter sido
apontado por Haroldo de Campos, o próprio papa da vanguarda, como seu principal herdeiro... Certas coisas,
definitivamente, não são simples.
Voltando, portanto, aos dois homens e suas semelhanças, outra característica evidente em comum era
o humor. O de Leminski, porém, era mais verbal, mais “lúdico”, digamos. Certa tarde, estando a tomar uma
cerveja num boteco perto do meu apartamento, esperando a hora de ir ao apartamento de Arnaldo Antunes,
Leminski pediu-me ajuda para escrever uma letra para Arnaldo, que não parava de cobrá-la. Embora eu
mesmo já tivesse tido uma febrícula pop, escrevendo letras para um amigo músico, nada me ocorreu de
imediato. Deixando então o convite de lado, não me lembro por que passei a comentar sobre um plantão que
dera certa vez numa UTI. Leminski interrompeu-me de súbito afirmando peremptório que ali estava a letra.
Pois um carro de polícia que passava o fez imaginar um cerco policial a uma UTI, criando uma cena urbana
de um absurdo para lá de kafkiano: “Alô alô / vocês aí / dentro dessa UTI / saiam com as mãos para baixo!”.
Porque, naturalmente, pacientes de UTI não conseguiriam erguer os braços... Terminamos em minutos a
letrinha, que seria de fato musicada por Arnaldo e gravada por um efêmero grupo chamado Clínica, então
produzido por alguns dos Titãs. O que não quer dizer que Leminski fizesse sempre letrinhas (neste caso em
particular, tenho grande parte da culpa pelo diminutivo). Um dos velhos Novos Baianos certa vez gravou sua
canção “Valeu”, tornando-a lírico-leve. Ouvir, porém, Leminski cantando-a com sua voz ao mesmo tempo
grave, possante e contida, acompanhada de um violão simultaneamente lento, tenso e denso, revelava uma
pequena obra-prima pop-existencial, para cunhar um neologismo. A letra tinha um bordão, a própria
palavra valeu: “...valeu ter encharcado este planeta de suor / valeu ter vivido uma vida que podia ser melhor
/ valeu, valeu...”. Eis que Leminski lhe impunha, pela música, uma ambigüidade emocionante, pois
enquanto valeu! é, na linguagem comum, logo, na memória do ouvinte, uma exclamação de entusiasmo,
cantada por ele tornava-se um lamento. Um lamento entusiasmado, um entusiasmo lamentoso. Leminski era
um dos poucos capazes de dar às facilidades intrínsecas da linguagem pop uma verdadeira complexidade.
O humor de Tolentino era mais voltaireano, mais afeito a boutades e iconoclastias (sem excluir de
todo o lúdico, que costumava concentrar porém nos nomes: raramente se referia a alguém sem uma
distorção, ou mais óbvia, como o “Haroldeco” que usava para Haroldo de Campos, ou mais complexa, como o
“Marilena Chochauí” que utilizava para a filósofa, e que, no momento seguinte, podia virar “Marilena Do-
Oiapoque-ao-Chauí”). O que, aliás, define melhor Tolentino ideologicamente: um individualista, um
anarquista, um... cético. Certa madrugada, ao deixá-lo em frente à casa paroquial, numa Rua Monte Alegre
deserta, antes de descer do carro, a porta já aberta, Tolentino levou as duas mãos espalmadas ao rosto, que
inclinou, começando em seguida a ter pequenos espasmos ritmados, marcados por um leve movimento de
ombros. Chorava. O choro aprofundou-se e aprofundou-se mais, tornando-se, afinal, não um choro
dramático, mas o tipo de choro duro e profundo de um homem adulto que parece colocá-lo a um passo de se
quebrar, tanto física quanto emocionalmente. Nossa conversa, pelo caminho, não prenunciava esse desfecho.
Confuso e surpreso, de pé ao lado do carro, ele ainda sentado, pus uma mão em seu ombro e perguntei o
que era. Era tudo e era nada, a existência de Deus e a existência da morte, a necessidade de acreditar em
Deus apesar da morte para poder desacreditar da morte, a distância geográfica e emocional de um de seus
filhos, o fim absurdo, muitos anos antes, num acidente de elevador, de Anecy Rocha, irmã de Glauber e
provavelmente o maior amor de sua vida, para não falar da presença cada vez maior da sua própria morte
(Tolentino sofria de aids, que afinal o mataria em 2007), enquanto a presença de seu Deus não parecia capaz
de se fazer proporcionalmente maior ou mais próxima. Tudo isso, porém, referido não de uma vez, sequer
encadeadamente, mas ao longo dos longos minutos em que acabamos ficando por ali, sentados no meio fio.
Paulo Leminski, anos antes, também estava morrendo. Não de aids, mas de cirrose hepática. Havia,
em sua história pessoal, algumas dores imensas, das quais a maior fora a da perda de seu primeiro filho,
Miguel, ainda jovem. Mas pretender fazer disto uma explicação para seu alcoolismo seria de um simplismo
tão falso quanto desinteligente. Durante os meus anos de faculdade de medicina, interessei-me
particularmente pelo alcoolismo por temer estar eu mesmo a caminho dele. Deixando de lado todas as
bobagens ditas pela dita sabedoria popular, o que se sabe com certeza, afinal, é que o alcoolismo tem um
forte fator orgânico. Há, em suma, em alguns indivíduos, uma predisposição física, metabólica, para que o
álcool se torne um vício. O que é o mesmo que dizer que ele assim se tornará, com perigosa facilidade. No
entanto, no caso de Leminski, sem excluir esse fator, minha impressão é de que levara à última conseqüência
lógica a conhecida afirmação segundo a qual “bebe-se para tornar os outros mais interessantes”. Havia,
enfim, algo que parecia a necessidade de tornar o mundo, se não mais interessante, menos absurdo. O
mesmo absurdo existencial que faria Tolentino irromper num choro convulsivo anos depois, em Leminski
parecia tê-lo feito precisar convulsionar sua lucidez.
Leminski fora faixa-preta de judô, tinha a voz possante e uma presença marcante, para não falar do
grosso bigode à Nietzsche. Mas acredito que era, no fundo, por trás dos óculos tortos, um tímido, e um
sensível (certa vez o acompanhei, como motorista, à PUC de Campinas, onde Caetano Veloso daria
um show dentro de uma programação que também incluía uma leitura de poemas por Leminski; fomos, no
final, aos bastidores, onde Leminski pretendia cumprimentar seu velho amigo; mas enquanto o curitibano
avançava pelo estreito corredor com calor e entusiasmo, a reação do baiano foi algo fria eblasé, numa
surpreendente inversão dos estereótipos; Leminski não ficou ofendido – ao contrário de Alice –, mas
aparentemente triste). Tinha um entusiasmo, uma generosidade e uma alegria que beiravam a mania (e que
não eram, frise-se, derivadas do álcool). E embora eu jamais o tenha visto deprimido, ou sequer ouvido
comentários sobre uma possível faceta depressiva complementar, minha impressão é que estava sempre à
beira, se não da depressão em si, do desespero. Um profundo e difuso desespero existencial, não causal ou
causado. Nunca o vi, porém, sequer de fato triste de fato (mas sim de muito mau humor). Apesar do
“conservadorismo” de Tolentino e da contracultura de Leminski, este era bem menos aberto, em termos
pessoais, por trás das aparências: muitos se julgavam seus íntimos, quase ninguém o era. E esse contraste
incluía também as questões comportamentais: o “conservador” e católico Tolentino falava abertamente de
suas experiências sexuais (por exemplo, durante a descompressão espanhola dos anos 80, após a morte de
Franco, quando estava com 40 anos e aproveitou bastante o clima das “movidas” madrilenhas e suas
Carmens), enquanto Leminski era algo mais reservado. Aliás, como integrar tais experiências de Tolentino,
incluindo sua prisão por drogas na Londres dos mesmos anos 80 (que está na origem de A balada do
cárcere) com a rotulação tão fácil quanto vazia de “conservador”? É verdade que Leminski, se era
relativamente reservado em tais assuntos no verbo (não quanto ao tema, naturalmente, mas quanto às suas
próprias experiências pessoais), não o era, porém, na prática. Assim, à falta de acomodações, vivi certa vez
a circunstância de compartilhar com ele o mesmo cômodo ao mesmo tempo, ainda que não, absolutamente,
a mesma parceira. Circunstância, aliás, que era quase banal na biografia de Tolentino. Nada disso, como é
óbvio, diminui algumas não-pequenas diferenças.
Conheci Paulo Leminski em 1985, na sala Funarte do centro de Curitiba. O poeta e editor Marcelo
Tápia fora-me apresentado havia poucos meses por Rui Pereira, homem-estúdio gráfico que tinha sido,
durante anos, o braço direito de Massao Ohno, o pequeno grande editor paulistano. Fora justamente nos
estúdios de Massao, à Rua Paim, que eu conhecera Rui Pereira em 1979. Depois de submergir em meus
tumultuados estudos de medicina durante a primeira metade dos anos 80, estava tentando reencontrar
certos caminhos para voltar a respirar ares menos orgânicos e mais estéticos quando me deparei, num bar
da Consolação, em certa noite do final de 1984, com Rui. Ele então me falou do Tápia, que passara a
freqüentar os mesmos estúdios do Massao logo depois que eu desaparecera dali, em 1980. Tápia que, além
de poeta conhecedor da matéria, tinha agora uma pequena editora nos moldes do próprio Massao, a Timbre.
Procurei então o poeta e editor Marcelo Tápia, de quem rapidamente me tornei amigo. Foi quando ele me
perguntou se eu gostaria de conhecer Paulo Leminski.
Leminski era, então, o mais próximo de um pop star da poesia que jamais existiu por aqui. Um
Arnaldo Antunes pode ser pop e pode ser poeta, pode mesmo fazer alguma coisa que merece o nome de
“poesia pop” (o que, no meu vocabulário, não é necessariamente um elogio), mas jamais foi um pop star da
poesia estritamente, ou seja, alguém que tem um apelo de mídia digno de uma estrela pop em função de sua
obra poética. Leminski se tornara um pop star da poesia depois do sucesso de seu livro Caprichos & relaxos,
lançado pelo fazedor de estrelas literárias que era, no início dos anos 80, o editor Caio Graco Prado, da
Brasiliense. A presença de Leminski no mundo poppropriamente dito, como na gravação da canção “Verdura”
por Caetano Veloso, apenas reforçava o fenômeno. Eu, particularmente, tinha da obra de Leminski a mesma
percepção que da obra de Gullar: seus momentos mais altos eram altos de fato, mas nem tudo era de fato
alto. Enquanto Gullar por vezes se perdera em certo populismo poético, herança ruim dos tempos do
“realismo socialista” do CPC (Centro Popular de Cultura), Leminski, eventualmente, se deixava levar por uma
mistura particular de concretismo com esperteza contracultural que podia redundar em trocadilhos. E eu
estava, então, insatisfeito justamente com o que percebia ser uma crescente facilidade que os poetas
brasileiros vinham se permitindo, como conseqüência do fim dos últimos parâmetros, depois da morte das
vanguardas, das utopias políticas e das certezas positivas. Tudo era permitido, nada era criticável, pois para
criticar era preciso definir, e definir era proibido: “verão, primavera / poeta / é quem se considera”, escreveu
então o próprio Leminski. E tudo isso, para mim, era uma condenação à morte: à morte da poesia, a que eu
planejava dedicar boa parte de minha vida. Pois não pode haver poesia vigorosa sem forma vigorosa, e não
há forma vigorosa sem rigor. Os que ainda acreditam, ou querem acreditar, ou precisam acreditar, ou, enfim,
fingem acreditar nas velhas bobagens românticas da poesia como expressão da “alma”, como “palavra
inspirada”, ou “mágica”, ou coisa parecida, que daria a ver uma dimensão mais “profunda” da vida, do
homem, do mundo, ou o que seja, sempre existiram, talvez sempre existirão, mas enquanto estão em
refluxo, acuados por alguma visão mais construtiva, estética no sentido lato, da poesia, não podem
atrapalhar muito a arte, o engenho e o ofício. Minha visão da obra de Leminski, nesse contexto, era ambígua:
ele me parecia servir a dois amos, o da poesia como trabalho de criação e o da poesia como expressão
espontânea. Não sabia, além disso, o que esperar do homem.
Estávamos atrasados para o lançamento de um belo livrinho com traduções de haicais por Alice Ruiz,
que Marcelo Tápia editara. Pois após dirigir seu pequeno Fiat preto por toda a tarde, mais interessados no
ritmo de nossa conversa do que na velocidade do carro, chegamos afinal em Curitiba bem depois do
anoitecer. Nosso atraso não teria nenhuma importância se os livros não estivessem conosco, em algumas
caixas apertadas no porta-malas. Tive, então, de pagar a passagem, carregando a maior parte das caixas até
o lugar do lançamento, não muito perto de onde conseguíramos uma vaga. Em compensação, fui a seguir
apresentado a duas belas poetas paranaenses: a pequena mas exuberante Alice Ruiz, vestida à japonesa, e a
muito elegante e muito tímida Josely Vianna Baptista. Não sentia particular ansiedade em conhecer Paulo
Leminski, apesar de alguma curiosidade. E ele, aliás, estava mais atrasado que nós. Foi então que,
conversando com Marcelo Tápia numa sala anexa à do lançamento, maior e menos congestionada que
aquela, ouvi uma voz alta chamando pelo seu nome. Leminski estava na outra ponta da sala, mas falava por
cima das cabeças e das vozes. Aproximamo-nos, e Tápia fez as apresentações. Depois de ouvir meu
sobrenome, Leminski, por gentileza, disse alguma coisa sobre o fato de os poetas judeus costumarem ser
bons. Sorri, sem saber bem o que dizer. Na verdade, não soube bem o que dizer até a hora de irmos embora.
Foi apenas entrando no velho Fiat para irmos a um restaurante japonês, eu, Marcelo Tápia, Alice Ruiz
e Paulo Leminski, que, aproveitando um momento no qual ficamos os dois do lado de fora, disse-lhe que um
poema seu de que gostava em particular era “O velho Leon e Natália em Coyoacán”. Leminski sorriu e
respondeu também gostar especialmente do poema.

desta vez não vai ter neve como em petrogrado aquele dia
o céu vai estar limpo e o sol brilhando
você dormindo e eu sonhando

nem casacos nem cossacos como em petrogrado aquele dia


apenas você nua e eu como nasci
eu dormindo e você sonhando

não vai mais ter multidões gritando como em petrogrado aquele dia
silêncio nós dois murmúrios azuis
eu e você dormindo e sonhando

nunca mais vai ter um dia como em petrogrado aquele dia


nada como um dia indo atrás do outro vindo
você e eu sonhando e dormindo

(www.revista.agulha.nom.br/pl3.html)

Uma rara fusão de permutação à Cabral, coloquialismo modernista, imagens maiakovskianas e


empatia com seu personagem, o velho Trotsky impotente no exílio mexicano, depois de ter sido o senhor da
Revolução Russa à frente do Exército Vermelho (logo, o senhor do Futuro, que agora, no presente do poema,
explicita ter apenas passado), dão ao texto uma beleza incomum. Não fui capaz de dizer nada semelhante a
isto aquela noite, o que felizmente não nos impediu de conversar até o amanhecer, na sala-biblioteca de sua
casa, depois do restaurante japonês e de Alice e Marcelo decidirem ir dormir. Um dos temas de nossa
conversa foi, justamente, Trotsky, cuja biografia ele estava terminando para a Brasiliense. Trotsky que, na
visão de Tolentino, não passava de um Stálin frustrado – enquanto Stálin era um Trotsky vitorioso. Não teria
sido indicado pôr os dois homens na mesma sala (mesmo porque, Tolentino não tinha qualquer apreço pela
obra de Leminski, e desconfio que Leminski não teria muito interesse pela obra de Tolentino).
Pode ser indicado, porém, pô-los na mesma página, como aqui faço. Depois da queda do Muro e do
muito que hoje se sabe sobre os primórdios da Revolução Russa, a idéia de que Stálin não foi um desvio
aberrante do humaníssima Revolução, mas conseqüência lógica das diretrizes iniciais de Lênin e também de
Trotsky, como há tempos afirmava a direita, e como há tempos negava a esquerda (afirmando se tratar
apenas de uma visão deformada e deformante da direita), depois de tudo isso, não sei se a visão de Leminski
hoje não seria, a este respeito, mais próxima da de Tolentino. O que sei é que Bruno Tolentino morreu
lamentando profundamente o que chamava de materialismo apequenado da cultura laica moderna, enquanto
imagino que Paulo Leminski, se vivo, lamentaria hoje o apequenamento da política e da cultura
contemporâneas. Tolentino não via esperança em lugar algum deste mundo, mas apenas no outro; não
imagino onde Leminski veria, hoje, esperança. Não seria nas políticas americanas ou no mundo islâmico, mas
tampouco na absoluta confusão e completa impotência da esquerda contemporânea, ou no relativo fracasso
do movimento ambientalista. Não seria mais no PT ou em Hugo Chávez, mas tampouco, acredito, na alegada
exuberância informe da atual poesia brasileira. Afinal, se há tantos bons poetas no país, onde estão os
grandes poemas? Onde estão os poemas capazes de ser citados e lembrados, como os melhores poemas de
Bruno Tolentino e de Paulo Leminski? E se nada ou muito pouco é memorável, o que tem, enfim, verdadeira
grandeza? Quanto mais o presente se apequena, mais o passado parece maior. E maiores os homens que o
fizeram, como Bruno Tolentino e Paulo Leminski.

Postado há 14th August 2013 por Unknown

1 Visualizar comentários

Di Giacomo 10 de novembro de 2016 17:37


Belo ensaio, parabéns!
Responder

Digite seu comentário...

Comentar como: Conta do Goog

Publicar Visualizar

Você também pode gostar