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O poeta que passou trinta anos na Europa se diz horrorizado com o baixo nível, acha
que o país regrediu e parte para a briga
Geraldo Mayrink
Aos 56 anos, já de volta ao Brasil, Tolentino tem feito força para tornar-se herdeiro do
embaixador José Guilherme Merquior, intelectual de boa formação e polemista
musculoso. Tem conseguido aparecer. Brigou com os poetas concretos, depois com o
que considera máquina de propaganda de Caetano Veloso e sua turma. Em seguida, com
os críticos literários e os filósofos, elevando ainda mais o tom numa entrevista publicada
por O Globo, duas semanas atrás. Fora do país, Tolentino ensinou em Oxford, Essex e
Bristol e trabalhou com o grande poeta inglês W.H. Auden. Conheceu celebridades
como Samuel Beckett e Giuseppe Ungaretti. Horrorizado com a possibilidade de ver o
filho mais novo crescendo em escolas que ensinam as obras de letristas da MPB ao lado
de Machado de Assis, abriu fogo contra o que considera o lado ruim de sua pátria, como
explica em sua entrevista a VEJA:
TOLENTINO - Foi minha mulher quem disse não. Educar um filho ao lado de Olavo
Bilac, última flor do Lácio inculta e bela, que aconteceu e sobreviveu, ao lado de um
violeiro qualquer que ela nem sabe quem é, este Velosô, causou-lhe espanto. A escola
que ela procurou para fazer a matrícula tem uma Cartilha Comentada com nomes como
Camões, Fernando Pessoa, Drummond, Manuel Bandeira e Caetano. O menino seria
levado a acreditar que é tudo a mesma coisa. Ele nasceu em Oxford, viveu na França e
poderá morar no Rio de Janeiro. Ele diz que seu cérebro tem três partes. Mas não
aceitamos que uma dessas partes seja ocupada pelo show business.
VEJA - Não é levar Caetano Veloso a sério demais? Ele não é só um tema de
currículo, entre tantos outros?
TOLENTINO - Não. Ele está também virando tese de professores universitários. Tenho
aqui um livro, Esse Cara, sobre Caetano, uma espécie de guia para mongolóides, e a
mesma editora desse livro me pede para escrever um outro, sob o título Caetano Se
Engana. É preciso botar os pingos nos is. Cada macaco no seu galho, e o galho de
Caetano é o show biz. Por mais poético que seja, é entretenimento. E entretenimento
não é cultura.
TOLENTINO - Se fizerem um show com todas as músicas de Noel Rosa, Tom Jobim
ou Ary Barroso, eu vou e assisto dez vezes. Mas saio de lá sem achar que passei a tarde
numa biblioteca. Não se trata de cultura e muito menos de alta cultura. Gosto da música
popular brasileira e também da de outros países, mas a música popular não se confunde
com a erudita. Então, como é que letra de música vai se confundir com poesia?
VEJA - O senhor não está ressentido por ele ter assinado um manifesto contra um
artigo seu sobre uma tradução do poeta Augusto de Campos? No fundo, parece
que o senhor está querendo aparecer à custa deles.
TOLENTINO - Não tenho ressentimento nem ciúme. Nem tenho nada contra quem
assina manifesto. Se você vê um amigo seu brigando na rua, o mínimo que pode fazer é
ir lá apartar. Foi o que ele fez no caso do Augusto de Campos. Só que assinou um
cheque em branco. A princípio achei que ele tinha entrado de gaiato, e lhe dei o
benefício da dúvida, sobre uma questão muito delicada de tradução e de cultura que ele
não está capacitado para julgar. Nem ele nem Gal Costa. Que intelectuais são esses? Se
os irmãos Campos não sabem inglês, imagine eles.
TOLENTINO - Não sabem inglês, nem alemão, nem grego. Por exemplo, traduziram
Rainer Maria Rilke e criaram a frase “ele tem um pássaro”, que é literal, mas que em
alemão quer dizer que alguém tem uma telha a menos, é meio doido. São péssimos
poetas e péssimos escritores. Não sabem absolutamente nada do que alardeiam saber.
VEJA - Por que só o senhor, e não outros críticos, diz essas coisas?
TOLENTINO - Na República das Letras ainda estamos à espera das diretas já. A
usurpação do poder legal por vinte anos deixou-nos seus legados nas patotas literárias
que desde então controlam a entrada em circulação, ou a exclusão pelo silêncio, de
livros, autores, obras inteiras. Nas redações dos jornais como nas universidades
prevalece a censura, e o único critério para sancionar uma obra parece ser o bom
comportamento do neófito, sua genuflexão aos ícones da hora. Nossa crítica suicidou-se
matando o diálogo, o debate e a polêmica. Mascarados de universitários, esses
anõezinhos conseguem dar a impressão de que a inteligência nacional encolheu, que em
Lilliput só se sabe da cintura para baixo. Quem já ouviu falar de Alberto Cunha Melo,
que vive escondido no Recife, e é nosso maior poeta desde João Cabral? São dele estas
palavras: “Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem”. Mas José Miguel
Wisnik ora é crítico, ora é letrista e compositor, portanto é catedrático. Os violeiros
empoleiraram-se nas cátedras e Fernando Pessoa virou afluente da MPB. Não é à toa
que até em Portugal os brasileiros viraram piada. Ouvi uma que provocava gargalhada
logo à primeira frase: “Um intelectual brasileiro ia começar a ler Camões quando a
banda passou e…” É preciso perguntar dia e noite: por que Chico, Caetano e Benjor no
lugar de Bandeira, Adélia Prado e Ferreira Gullar?
TOLENTINO - O que os críticos disseram sobre meus trinta anos de poesia? Só,
desonestamente, que minha poesia é arcaizante e não suficientemente progressista. Que
eu, o escritor Diogo Mainardi e - como é mesmo o nome do marido da Fernandinha
Torres? - o diretor Gerald Thomas somos figurinhas carimbadas porque somos amigos
de gente famosa. Quer dizer, chamam a atenção para a pessoa e não para a obra. E toda
pessoa é discutível. Eu sou meio apalhaçado mesmo. A minha biografia é interessante,
meio cinematográfica, e assim é como se eu não tivesse escrito nada. Uma espécie de
Ibrahim Sued das letras.
VEJA - Mas o que aconteceu com os críticos para que se tornassem tão incapazes,
na sua opinião?
TOLENTINO - A crítica brasileira não existe mais. Cometeu um haraquiri muito bem
pago. Trocou sua independência por cátedras e verbas. É uma gente venal, vendida, que
controla as nomeações para as cátedras, bolsas e verbas. Vão se meter com um maluco
como eu? Todos, de Roberto Schwarz a David Arrigucci, foram formados pelo meu
primo Antonio Candido, que é um geriatra nato.
TOLENTINO - Sobra, evidentemente, Wilson Martins, que não tem lá muito gosto
poético, mas enfim…
TOLENTINO - Minha obra poética está basicamente terminada. Escrevi poesia por
mais de trinta anos e não conheço nenhum outro poeta, além de Manuel Bandeira, que
tenha conseguido escrever bem além dessa média. A partir daí, decai. Estou transferindo
o meu esforço para o ensaio. Falar, por exemplo, dos males que a ditadura causou ao
país me parece cada vez mais um sintoma do que uma causa. É um sintoma do Febeapá,
vem no bojo dele. A imbecilidade já crescia. A ditadura simplesmente institucionalizou
a falta de respeito pela realidade, pelo próximo, pela legalidade. A verdade foi
substituída pela verossimilhança, a literatura, pela imitação da literatura.
TOLENTINO - Foi Wilson Martins quem levantou essa idéia, ao dizer que as obras de
Chico Buarque e Jô Soares eram imitações da literatura. Auden, o Drummond lá dos
ingleses, também dizia algo parecido. A gente lia um cara e concluía que ele era muito
ruim. Auden discordava, dizendo que ele era muito bom. “Faz a melhor imitação de
poesia que já li”, dizia. Parecia piada mas não era.
VEJA - Por que o senhor não vai ensinar o que sabe nas universidades?
TOLENTINO - Não. Não passei nenhum dia aborrecido aqui. Sempre encontro gente
inteligente. Quando cheguei à Europa, não tive nenhum complexo de inferioridade. É
verdade que eu conheci em casa o que o Brasil tinha de melhor. Faço parte do patriciado
brasileiro. E não via diferença entre Ungaretti e Manuel Bandeira, só de língua. Era a
mesma coisa. Não havia um Terceiro Mundo na minha cabeça. Eu, quando pequeno,
conheci Graciliano Ramos e Elisabeth Bishop. Só havia gente dessa categoria.
VEJA - Dá a impressão de que só agora se começou a falar e a escrever besteira no
país…
TOLENTINO - O besteirol, se havia, estava lá longe, nos cantos. Hoje ele está no
centro. Tem razões mercadológicas, de dinheiro. Os artistas devem ganhar muito, muito
dinheiro, para ir gastar em Miami. Só não é possível que esses senhores usurpem a
posição do intelectual. Eles são um formigueiro com pretensão a Everest.