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Agora que terminei de ler o livro, retomo algumas questões do meu comentário anterior.
Algumas delas já mudaram, e outras surgiram.
Novamente, reitero minha opinião sobre a prosa do Joseph Roth, é diferente de tudo
que já li. É muito boa, muito atípica, e muito sorrateira. Ao folhear o livro, em termos de
diagramação, dá para perceber que quase não há diálogo, e páginas e páginas inteiras se
seguem sem um único parágrafo de respiro. Não é que os personagens não se falem. Alguns
falam pouquíssimo, outros falam demais, mas o que importa é o que acontece dentro da
cabeça de cada um.
Até a metade do livro, eu ainda me pegava impressionada que a narração não
apresentava nenhum evento particularmente relevante, nada acontece, eu pensava. Alguns
eventos eram tão corriqueiros e nada marcantes… Eu me lembrei que quando vi Barry Lyndon,
eu definitivamente não estava acostumada àquele ritmo de narrativa. Logo no início do filme,
o personagem principal é assaltado na estrada por um ladrão e seu filho, muito educados,
diga-se de passagem, e eles não aparecem mais na história. Quando comentei com meu pai a
respeito da cena “à toa” que tinha assistido, ele me respondeu que era isso mesmo, só um
evento na vida daquele personagem. A Marcha de Radetzky me deu a mesma impressão: uma
sequência de eventos “desimportantes”, ou monótonos, como a parte cotidiana da vida
mesmo.
Apesar de estranhar o ritmo arrastado da história, quando dava por mim, estava
virando página atrás de página numa velocidade incrível para meu ritmo. Percebi que eu
estava apostando uma corrida com a prosa. Em algum momento ela tinha acelerado, e meu
olho tentava ler na velocidade de um pensamento, que era o que estava sendo narrado. Eu
nem conseguia dizer em qual momento o Roth tinha feito isso, daí o sorrateiro. De repente, eu
estava sem fôlego mental depois dessa corrida. Mas comecei a aproveitar o embalo que a
leitura me dava, e terminei o livro relativamente rápido para meus parâmetros. O que, ao meu
ver, prova que literatura é muito mais legal que teoria.
Quando escrevi minhas primeiras impressões, fiz um paralelo com o livro da Maria Rita
Kehl, O tempo e o cão. Ela apresenta a ideia de que a estrutura psicológica do depressivo
substituiu os melancólicos da pré-modernidade, e que esse melancólico era um sujeito
deslocado do laço social. Claro que cada época tem o seu tipo de melancolia manifestada e
entendida de diversas formas. Mas que no século XIX, com o início da modernidade, as
referências estáveis da organização da sociedade mudam com o aumento da liberdade nas
escolhas individuais (para alguns), e a possibilidade de mobilidade social, por exemplo. Esse
ponto me levou a pensar nos Trotta, cujo patriarca, no livro, o avô, é promovido militarmente,
e passa a ocupar uma posição social mais alta por salvar a vida do Kaiser numa batalha. A
partir daí, o legado da sua linhagem muda completamente, e escapa de suas próprias
expectativas.
Diz a Maria Rita que a melancolia na virada da modernidade (e a depressão no nosso
tempo atual) é um dos indícios da impossibilidade de o sujeito entender ou responder à
questão: o que o Outro deseja de mim? Ao meu ver, Joseph Trotta é o primeiro dessa família
de melancólicos que não se encaixam muito bem na dinâmica social da nova vida, e entre
gerações, se deparam com a própria impossibilidade de responder a essas questões.
Depois de terminar o livro, essa relação com os melancólicos pré-modernos mudou um
pouco. Ainda acho que eles tentam cumprir o que se espera deles, seguem o desejo do
progenitor, cada um na sua vez (avô, pai, filho), e ainda assim, não basta. Não se satisfazem,
porque não fazem exatamente o que desejam, não sentem que satisfazem o Outro tampouco,
porque isso é impossível, e não estão confortáveis no laço social, sentem-se aquém das
expectativas o tempo todo. Mas do meio para o fim do livro, pai (Franz) e filho (Carl Joseph)
dão-se conta de que o mundo em que vivem está próximo do fim, com o declínio da
monarquia e ascensão da indústria e capitalismo. Nesse ponto, as similaridades com a escrita
técnica da Maria Rita passam a sumir, e eles vão se tornando Baudelaires austríacos. Passam a
murchar lentamente, acompanhando o desmoronar de seus contextos, suas crenças, suas
estruturas e convenções sociais.
O Roth usa bastante um verbo que me entretinha toda vez que o via por escrito:
tiquetaquear. Além de gerar palavras imensas conjugado, que sempre acho engraçado,
também parecia o metrônomo invisível da queda paulatina e ininterrupta do império
austríaco. O Guilherme Wisnik citou o livro Tudo que é sólido desmancha no ar no seu
próprio, e esse título caberia perfeitamente para os Trotta. Eles mesmos começam o livro
firmes e austeros, seguros e diligentes, e ao fim do livro, morrem apequenados e medíocres,
inseguros e indiferentes a suas próprias vidas, ao mundo novo por vir.
Tem uma passagem do livro que é explícita dessa virada, mas ao mesmo tempo
universal, porque retrata o próprio envelhecer. Um dos oficiais, personagem que aparece no
livro para protagonizar essa única cena, passa na frente do colégio dos seus filhos, e os
meninos vêm abraçá-lo, e o Roth escreve:
Essa foi a aula de perspectiva com um único ponto de fuga mais poética que eu podia ter,
obrigada, Joseph Roth! Dito isso, eu acho esse um bom exemplo de como ele acelera a escrita,
é movimento puro em palavras. E pensando bem, as palavras em si não se movimentam, são
meras letrinhas impressas numa folha, sem qualquer referência visual, e isso é muito
impressionante na linguagem: caracteres estáticos que tornam-se dinâmicos “sem se mexer”,
e me lembrou o Duchamp:
A descrição da cena em si também me lembrou outra referência imagética, bem menos
refinada ou reconhecida no campo da teoria artística:
Caso você queira dar umas risadas, a referência vem daqui (a imagem é um link, a expectativa
é que ao clicar nela você seja direcionado ao video):
São essas minhas longuíssimas considerações. É muito legal falar de livros. E apesar de ter
certeza que não seria meu novo livro preferido quando terminei, toda vez que falo dele,
percebo que gostei bastante.
Ainda estou bem no começo de Austerlitz, e tenho impressões muito incipientes, e
muito comparativas com o Roth. Como também sei que a comparação não se sustenta, pois
são duas coisas diferentes, me limito a dizer que Austerlitz me lembrou a escrita (e
diagramação) do Aldo Rossi. O Arquitetura da cidade tem uma formatação parecida com o
livro do Sebald, algumas imagens num texto aparentemente técnico, muito denso visualmente
(repito: blocos de texto sem parágrafos), mas totalmente permeado pela emoção e vida íntima
de quem conta a história.
Assim que tiver mais considerações, envio para você também.