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ODE DESCONTÍNUA E REMOTA PARA FLAUTA E OBOÉ.

DE ARIANA
PARA DIONÍSIO.

É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.


Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora

E sozinha supor
Que se estivesses dentro

Essa voz importante e esse vento


Das ramagens de fora

Eu jamais ouviria. Atento


Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.

II
Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu.

Ainda que tu me vejas extrema e suplicante


Quando amanhece e me dizes adeus.

III

A minha Casa é guardiã do meu corpo


E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência

E minha boca se faz fonte de prata


Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.

A minha Casa, Dionísio, te lamenta


E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta

Por que recusas amor e permanência?

VI

Três luas, Dionísio, não te vejo.


Três luas percorro a Casa, a minha,
E entre o pátio e a figueira
Converso e passeio com meus cães.

E fingindo altivez digo à minha estrela


Essa que é inteira prata, dez mil sóis
Sirius pressaga.

Que Ariana pode estar sozinha


Sem Dionísio, sem riqueza ou fama
Porque há dentro dela um sol maior:

Amor que se alimenta de uma chama


Movediça e lunada, mais luzente e alta

Quando tu, Dionísio, não estás.


VIII

Se Clódia desprezou Catulo


E teve Rufus, Quintius, Gelius
Inacius e Ravidus

Tu podes muito bem, Dionísio,


Ter mais cinco mulheres
E desprezar Ariana
Que é centelha e âncora.

E refrescar tuas noites


Com teus amores breves.
Ariana e Catulo, luxuriantes.

Pretendem eternidade, e a coisa breve


A alma dos poetas não inflama.
Nem é justo, Dionísio, pedires ao poeta.

Que seja sempre terra o que é celeste


E que terrestre não seja o que é só terra.

IX

“Conta-se que havia na China uma mulher


belíssima que enlouquecia de amor todos
os homens. Mas certa vez caiu nas
profundezas de um lago e assustou os peixes.”

Tenho meditado e sofrido


Irmanada com esse corpo
E seu aquático jazigo

Pensando

Que se a mim não deram


Esplêndida beleza
Deram-me a garganta
Esplandecida: a palavra de ouro
A canção imantada
O sumarento gozo de cantar
Iluminada, ungida.

E te assustas do meu canto.


Tendo-me a mim
Preexistida e exata
Apenas tu, Dionísio, é que recusas
Ariana suspensa nas tuas águas.

Se todas as tuas noites fossem minhas


Eu te daria, Dionísio, a cada dia
Uma pequena caixa de palavras
Coisa que me foi dada, sigilosa.

E com a dádiva nas mãos tu poderias


Compor incendiado a tua canção
E fazer de mim mesma, melodia.

Se todos os teus dias fossem meus


Eu te daria Dionísio, a cada noite
O meu tempo lunar, transfigurado e rubro
E agudo se faria o gozo teu.

Ode descontínua e remota para flauta e oboé de Ariana para Dionísio, de


Zeca Baleiro [sobre poemas de Hilda Hilst]. Sarava Discos.

Quando lancei meu primeiro disco, enviei um exemplar a Hilda Hilst, com carinho
de fã, sem maior expectativa. Foi grande a minha surpresa ao receber, dias depois,
um telefonema da própria, com a fala ainda debilitada por uma dispnéia recente.

Falou que queria se tornar minha parceira, afinal “literatura não dá camisa a
ninguém”. “Quero ser famosa, cansei dessa história de prestígio”, disse ela, entre
irônica e sincera.

Ali mesmo, ao telefone, ela pediu que eu anotasse um poemeto, destinado a ser
nossa primeira “parceria”. Assustei-me com o inesperado do telefonema de Hilda, e
mais ainda quando, meses depois, ela fez chegar às minhas mãos um disquete com
toda a sua obra poética.

Ali descobri a delicadeza e força de sua “Ode Descontínua e Remota para Flauta e
Oboé”, um dos capítulos do livro “Júbilo Memória Noviciado da Paixão”, conjunto de
10 poemas, profundamente líricos e femininos sobre o amor impossível de Ariana e
Dionísio, relato de uma paixão que - depois vim a saber por ela mesma -, era auto-
biográfica.

Comecei então a musicar os poemas lentamente, mirando a vaga atmosfera


medieval neles contida, e ao cabo de dois anos, feitas as canções, mostrei a Hilda
já com o intuito de materializar a nossa parceria em disco. Ela ouviu, aprovou,
contestou a métrica de um ou dois versos e animou-se com a perspectiva de ver
sua poesia transmutada em música, ela que sempre foi grande admiradora da obra
de Mahler (também pra meu espanto descobri que ela foi parceira de Adoniran
Barbosa em algumas canções), mas que, assim como João Cabral, adorava dizer
bombasticamente que não gostava de música.
Este disco começou a ser efetivamente gravado em abril de 2003 e levou exatos
dois anos para ser concluído. Em fevereiro de 2004, já com a saúde bem
fragilizada, Hilda foi “ver os amigos no planeta Marduk” (lugar onde, acreditava ela,
vivem as almas imortais) e deixou pra trás alguns projetos e sonhos.

Um grande desejo seu está realizado neste trabalho – ter seus versos tornados
canções e eternizados nas vozes de dez cantoras fabulosas, sua poesia ao alcance
de ouvidos e alma de qualquer mortal.

[Zeca Baleiro]

Zeca Baleiro e Hild Hilst trabalhando no Júbilo Memória Noviciado da Paixão


Foi por iniciativa de Hilda Hilst (1930 -2004) que Zeca Baleiro se
tornou parceiro da poeta paulista. Ao receber uma cópia do primeiro
disco do compositor maranhense, Por Onde Andará Stephen Fry?
(1997), enviada pelo próprio artista, Hilst ligou, propôs a parceria e
mandou um disquete com sua obra poética.Foi no disquete que
Baleiro descobriu o livro Júbilo Memória Noviciado da Paixão - escrito
pela Hilda quando estava apaixonada platonicamente pelo Júlio de
Mesquita Neto (vide as iniciais) - e decidiu musicar os versos do
capítulo que dá título ao disco.

Depois de dois anos de trabalho, a gravadora de Zeca Baleiro, Saravá


Disco, lançou o CD Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé -
De Ariana para Dionísio - com poemas de Hilda Hilst musicados pelo
artista maranhense.

O disco, segundo Zeca Baleiro, começou a ser gravado em abril de


2003 e teve aval da escritora e a colaboração do violonista Swami Jr.
nos arranjos de base. Para musicar os dez poemas, Baleiro buscou
uma sonoridade que se encaixasse nos poemas já em essência muito
musicais de Hilst. Instrumentos como harpa, oboé e fagote ajudaram
a criar o clima. Para dar mais charme ainda ao disco, Baleiro contou
com a adesão de dez cantoras para interpretar as canções. Pela
ordem de entrada no CD, o time é formado por Rita Ribeiro, Verônica
Sabino, Maria Bethânia, Jussara Silveira, Ângela Ro Ro, Ná Ozzetti,
Zélia Duncan, Olívia Byington, Mônica Salmaso e Ângela Maria.

As intérpretes estão à vontade no despudorado universo poético de


Hilst. O único deslize é de Ângela Maria, que, por conta de seu estilo
naturalmente empostado, ficou meio deslocada. Mas no todo, o
trabalho tem bom acabamento melódico, garantido pelo repertório
de tom linear que assegura a uniformidade das canções ao mesmo
tempo em que conta a história do amor impossível de Ariana e
Dionísio. Um dos melhores momentos do disco é a Canção V,
interpretada por Angela Ro Ro.
Na época do lançamento do disco, no ano passado, conversei com
Zeca Baleiro sobre o trabalho. Confira a entrevista abaixo.

Título: Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé - De Ariana


para Dionísio
Artista: Vários
Gravadora: Saravá Discos
Preço médio: 30 reais

Entrevista com Zeca Baleiro

“Gosto do lugar onde estou”

Como foi a sua aproximação com Hilda Hilst?

Quando lancei meu primeiro disco, enviei um exemplar a Hilda.


Semanas depois ela me ligou e me convidou a compor com ela, foi
surpreendente. Claro que topei. Quando ela me ligou, ela leu um
poema curto, de três versos, e pediu pra eu musicar já, ali mesmo.
Depois mandou um disquete com toda a sua produção poética e disse:
“faça o que você quiser”. Então eu tive o insight de fazer o disco.

Você é um compositor que transita com desenvoltura por diversos


gêneros e estilos musicais. Qual foi a maior dificuldade de musicar
os poemas?

O trabalho foi difícil porque os poemas não tinham uma métrica de


canção, versos ritmados. São versos muito livres e muito densos, não
poderia musicar como canções pop, iria ficar inadequado. Tinha que
achar um caminho que fosse coerente, por isso embarquei no clima
medieval dos poemas, enaltecendo o lirismo dos poemas e a
interpretação das cantoras.

Você disse que recebeu um disquete com toda a obra poética de


Hilda. Por que escolheu justamente Ode Descontínua e Remota
para Flauta e Oboé, do livro Júbilo, Memória, Noviciado da
Paixão?

Não sei se escolhi ou se fui escolhido. Quando me dei conta, já estava


musicando esses poemas. É curioso, mas não foi uma escolha racional
de fato.

Então ela chegou a conhecer essas canções?

Sim, ouviu, aprovou, corrigiu a métrica de uns dois versos lá. Ela
gostava de cantarolar a Canção X, dizia ser a sua preferida.
Tinha alguma canção sua que ela gostava especialmente?

Ela dizia adorar Bandeira e Heavy Metal do Senhor.

Quando ela ouviu as canções pensou em alguma cantora para


interpretá-las? Sugeriu algum nome?

Sugeriu Bethânia e Gal. Bethânia gravou, mas a Gal estava em Nova


York nessa altura, envolvida com outros projetos, e não pôde
participar.

Parece que sua decisão de fazer Ode Descontínua e Remota para


Flauta e Oboé reforça a afirmação de que você é um poeta pós-
moderno, multifacetado, difícil de ser rotulado ou definido por
uma das infindáveis prateleiras nas lojas de CDs. O que pensa de
tudo isso?

Bom, estaria mentindo se dissesse que não fico envaidecido com isso,
que considero o maior elogio que um artista possa receber – “difícil
de ser rotulado”. Já disse alguém que “se você não pode esclarecer,
então confunda!”.

O disco tem uma sonoridade medieval, com instrumentos como


harpa, oboé e fagote ajudando a criar o clima que lembra o
trabalho de grandes trovadores. Qual sua aposta na obra, falando
do ponto de vista comercial?

Não tenho expectativas comerciais com o disco, falando muito


francamente. Sei o lugar de cada coisa, e este trabalho não aspira a
êxitos comerciais. Mas, pela recepção da crítica, e do público
especialmente, ele já é um sucesso.

Um dos grandes chamarizes do disco é o fato de você contar com a


adesão de grandes nomes da música nacional. Como foi o convite
para essas estrelas gravarem os poemas de Hilda?

Fui chamando conforme a canção me sugeria determinado timbre ou


jeito de cantar. Acho que fui feliz nas escolhas. E todas se mostraram
bem contentes por participar do projeto.

Nesses anos todos de carreira, você sempre se envolveu em


projetos paralelos, como a produção dos primeiros discos de Rita
Ribeiro e Ceumar, além de ter lançado o primeiro CD do
maranhense Antonio Vieira, aos 82 anos. E acabou lançando o selo
Saravá. Como você analisa a música independente feita no Brasil?

Acho que tudo nos aponta o caminho da independência, é uma


produção que só cresce e ganha adesões. É o futuro.

Depois de cinco CDs, qual avaliação que você pode fazer sobre sua
carreira?

Gosto do lugar onde estou.

Como você vê o nível dos artistas que estão surgindo? Há alguém


que você admire mais?

Admiro o trabalho de alguns novos artistas sim – Wado, Kléber


Albuquerque e Totonho e os Cabra, entre eles.
De que maneira a perplexidade das pessoas em relação ao futuro
político do Brasil pode refletir na produção cultural do País e,
principalmente, na sua?

Tudo que acontece ao redor reflete na produção artística


contemporânea, a não ser que o sujeito passe uma temporada em
Marte. Não sei como essa perplexidade se manifestará, talvez surjam
algumas canções perplexas por aí.

Ser popular sem soar popularesco parece mover muito da sua


composição. Mas, ao mesmo tempo, suas canções não são muito
populares no mainstream. Isso o preocupa de alguma maneira?

Nem um pouco. Não faço músicas nem para o mainstream nem para o
underground, faço para o mundo, para quem queira ouvir. Para
alguns sou cult, para outros sou pop. Estou no meio de um caminho
que me é muito confortável. Quero ser tudo e nada. Apenas isso.

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