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LUIZ DO MONTE
Recife
2015
LUIZ DO MONTE
Recife
2015
Catalogação na fonte
Bibliotecário Jonas Lucas Vieira, CRB4-1204
Aos meus pais, Marcos e Mariza, pelo maior incentivo aos meus estudos e realizações
pessoais.
Às minhas irmãs, meus avós e minha família pelo amor, carinho e compreensão.
À minha querida sogra, Fernanda Andrade Lima, pelo afeto, incentivo ao mestrado e
à minha evolução pessoal.
Ao meu orientador, Gentil, pela atenção, empolgação e grande dedicação.
Aos babilônicos e a galerarq pela amizade e apoio constante.
Ao meu quarteto especial: Ju, Camila, Tiago e Bruno.
Aos mestrandos e doutorandos do Laboratório de Inteligência Artística (i!) pelo auxílio
mútuo e companheirismo.
Aos membros da banca qualificação: Luiz Amorim e Oriana Duarte, pelas valiosas
contribuições, em especial a Oriana, cujas contribuições continuaram na disciplina
Design e Corpo.
Aos muitíssimos especiais amigos de deriva: Matheus Mota, Rodrigo Cm, Bruno
Cardim, Augusto Ferrer, Bruna Ferrer e João Pessoa.
A Caio Rihan e Guilherme Azevêdo, companheiros de pesquisa e de João da Carne
de Sol.
À Nathalie Mota e Juliana Carvalho, pela amizade durante as disciplinas, em especial
a Ju, pelo auxílio com a capa.
À Maria Eduarda Dantas, pelo “corre” da xerox de Perniola em Brasília.
(Joaquim Cardozo)
RESUMO
This work intents to experience the dérive and the psychogeography, techniques of
the artistic movement called Situationist International in the expanded center of Recife.
The derive and the psychogeography were concepts created by the situationists in the
1950’s. While the psychogeography presents itself as a seizure science of urban
affections, the drift is understood by the movement as a technique of passage through
city environments, which makes up a practical unfolding of psychogeographic
apprehension. The research aims to verify the validity of the techniques in relation to
their proposals and the possible contributions of revisiting situationist ideas in a
contemporary city. For the application of the techniques a methodology based primarily
in Situationists precepts was created, but also with the addition of questions related to
phenomenology, psychology and the study of maps and diagrams. Based on this
methodology were performed experimental nature field researchs that generated
documents, reports and illustrations for the result of this process. The conclusions later
exposed point to the validation of some of the Situationists assumptions related to the
application of techniques and discuss mostly the role of new technologies and other
factors that make the experience of drift and psychogeography unique in
contemporaneity.
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11
1 INTERNACIONAL SITUACIONISTA ...................................................................... 16
1.1 Trajetórias ........................................................................................................ 17
1.2 Anticapitalismo e Revolução Cotidiana ............................................................ 20
1.3 Contra o Funcionalismo ................................................................................... 24
1.4 Superação da Arte ........................................................................................... 29
1.5 Métodos de Ação ............................................................................................. 32
1.5.1 A Pintura Industrial..................................................................................... 33
1.5.2 Détournement ............................................................................................ 34
1.5.3 Situação Construída .................................................................................. 35
1.5.4 Urbanismo Unitário .................................................................................... 37
2 DERIVA E PSICOGEOGRAFIA ............................................................................. 40
2.1 A Herança Londrina e o Flâneur Parisiense..................................................... 41
2.1.1 Londres ...................................................................................................... 42
2.1.2 Paris........................................................................................................... 44
2.2 Passeios Dadaístas e Surrealistas................................................................... 45
2.2.1 A Influência Dadaísta ................................................................................. 46
2.2.2 A Incursão Surrealista................................................................................ 47
2.3 Os Conceitos.................................................................................................... 49
2.4 A Cidade como Labirinto .................................................................................. 53
2.4.1. O Mercado de Les Halles ......................................................................... 55
2.4.2 A Zona Amarela ......................................................................................... 56
2.4.3 O Labirinto Holandês ................................................................................. 58
2.4.4 Nova Babilônia ........................................................................................... 59
2.4.5 The Naked City .......................................................................................... 62
2.5 Deriva e Psicogeografia na Contemporaneidade ............................................. 64
2.5.1 A IS Revisitada .......................................................................................... 65
2.5.2 Casos......................................................................................................... 67
3 METODOLOGIA ..................................................................................................... 74
3.1 Aspectos Teóricos............................................................................................ 76
3.1.1 Método Fenomenológico ........................................................................... 78
3.1.2. Diagramas e Cartografia Afetiva ............................................................... 81
3.2 Aspectos Práticos ............................................................................................ 87
3.2.1. Pesquisa de Campo.................................................................................. 87
3.2.3. Sítio de Aplicação ..................................................................................... 91
3.3. Confecção de Pesquisa-piloto......................................................................... 93
3.3.1 Piloto 01 ..................................................................................................... 94
3.3.2 Piloto 02 ..................................................................................................... 97
3.3.3 Piloto 03 ................................................................................................... 100
3.3.4 Piloto 04 ................................................................................................... 103
3.3.5 Piloto 05 ................................................................................................... 108
3.3.6 Piloto 06 ................................................................................................... 112
3.3.7. Considerações Sobre os Pilotos ............................................................. 116
4 EXPERIMENTAÇÃO E ANÁLISE ........................................................................ 119
4.1 Parâmetros de Aplicação ............................................................................... 120
4.2 Experimentos ................................................................................................. 123
4.2.1 Primeiro Experimento .............................................................................. 123
4.2.2 Segundo Experimento ............................................................................. 133
4.2.3 Terceiro Experimento............................................................................... 141
4.2.4 Conclusões e Mapas Resultantes............................................................ 150
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 156
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 163
APÊNDICES ............................................................................................................ 171
APÊNDICE A – Relato de descrição psicogeográfica – Pesquisa-piloto 01 ........ 172
APÊNDICE B – Breve relato psicogeográfico – Pesquisa-piloto 02 ..................... 173
APÊNDICE C – Mapa de percurso de deriva – Experimento 01 .......................... 174
APÊNDICE D – Mapa de percurso de deriva – Experimento 02 .......................... 175
APÊNDICE E – Mapa de percurso de deriva – Experimento 03 .......................... 176
APÊNDICE F – Mapa de ilustração da hipótese dos becos................................. 177
APÊNDICE G – Mapa de inter-relação de ambiências nostálgicas ..................... 178
APÊNDICE H – Mapa de inter-relação de ambiências suspensas ...................... 179
APÊNDICE I – Mapa de ilustração de elementos de jogo ................................... 180
11
INTRODUÇÃO
campo da arte e da política, servindo como inspiração teórica para diferentes artistas,
pesquisadores, movimentos sociais e outros domínios da sociedade.
A intenção deste trabalho é revisitar a teoria situacionista e contextualiza-la no
centro do Recife, procurando adicionar uma camada de conhecimento no conjunto
das pesquisas urbanas promovidas na cidade. Essa nova camada, baseada numa
investigação afetiva das cidades, procura se incorporar às pesquisas do campo da
arquitetura, do design, da antropologia, da psicologia, entre outras disciplinas como
mais um instrumento de contribuição e de ampliação dos conhecimentos sobre a
cidade contemporânea em toda sua complexidade. Além do seu caráter investigativo,
a teoria e a prática situacionista inseridas no panorama contemporâneo também
podem funcionar como elemento de ativação de aspectos importante para as cidades
contemporâneas, principalmente no Brasil.
Um desses aspectos diz respeito à questão política do direito à cidade e ao uso
dos espaços públicos. As cidades brasileiras vivem atualmente um momento de
tentativa de restituição dos bens comuns e de resgate da noção de espaço público
por parte dos poderes públicos e da sociedade em geral. Em vários lugares do país
eclodem movimentos sociais que reivindicam a ampliação do uso das cidades pela
população, dada a percepção de que este direito vem sendo usurpado, aos poucos,
por uma lógica de empreendimentos privados e sucateamento dos centros urbanos,
muitas das vezes apoiados, inclusive, pela esfera governamental.
Além disso, um outro aspecto ao qual a teoria situacionista pode servir como
acessória é o da contestação da automatização dos processos sociais e do
comportamento dos indivíduos. Ao se utilizar de métodos e manifestações artísticas
contestadoras, como as anunciadas pelos situacionistas, as cidades contemporâneas
podem se voltar para um crítica à lógica estabelecida pela mídia, pela propaganda e
outros agentes do capital, ou seja, uma crítica ao modo de vida baseada no consumo
exacerbado, no trabalho excessivo e no convívio limitado a espaços privativos, como
shoppings e condomínios.
Dado este intuito de reaplicar ações situacionistas no âmbito de uma cidade
contemporânea, foram escolhidas, dentre tais ações, duas técnicas de investigação e
intervenção próprias do movimento: a deriva e a psicogeografia. Ambas as técnicas
procuram diagnosticar aspectos afetivos relativos a dinâmica urbana ao mesmo tempo
que atuam como ação política de contestação aos paradigmas vigentes da
13
informações dos dias atuais, que acabam por alterar o caráter das percepções, dos
registros e da vivência, em geral, de uma deriva.
16
1 INTERNACIONAL SITUACIONISTA
17
1.1 Trajetórias
1
Copenhague, Bruxelas, Amsterdam (CoBrA), 1948-1951.
2
London Psychogeographical Association (LPA): Associação Psicogeográfica de Londres.
3
Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista (MIBI), 1954-1957
19
Figura 1. Síntese genealógica da Internacional Situacionista, baseada em Sadler (1999, p. 2). Desenho do autor.
consolidação da sociedade capitalista. Essa fase dura de forma aproximada até 1967,
ano do lançamento de A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord.
A terceira fase compreende aproximadamente os anos de 1967 a 1972.
Intitulada por Perniola como o período da realização da teoria, configura-se como uma
fase em que as críticas são postas à prova, com influências inclusive em ações sociais
relevantes, como o Maio de 1968, na França. Nessa fase são realizadas as maiores
reflexões sobre a trajetória e as práticas do grupo e também uma projeção, nas
considerações de Debord, para uma futura interpretação do movimento como um
estopim para a verdadeira revolução. Nestes últimos anos nota-se um esforço, por
parte de Debord, de oficializar a produção textual do movimento e assegurar que,
apesar do encerramento prático, as ideias situacionistas continuassem como símbolo
da revolução cotidiana.
Essa divisão da trajetória do grupo em fases, apesar de explicitada na obra de
Perniola, também pode ser compreendida em outras obras que tratam da
Internacional Situacionista, como nos livros Assalto à Cultura, escrito pelo artista e
historiador Stewart Home em 1988, e The Situationist City (A Cidade Situacionista),
de Simon Sadler, acadêmico britânico especialista em história da arquitetura.
Alguns dos aspectos tratados ao longo deste texto serão relacionados com as
fases descritas de acordo com a relevância que essa relação possa despontar.
Com a automação não existirá mais o trabalho, no sentido corrente do termo; não
existirá mais o repouso, mas um tempo livre para livres energias antieconômicas [...]. Nós
precisamos dominar a máquina, dedicando-a ao gesto único — inútil, antieconômico,
lúdico — a fim de criar uma nova sociedade antieconômica, uma que seja poética, mágica,
artística (PINOT-GALLIZIO, 1959).
4
Giuseppe Pinot-Gallizio (1902-1964), artista italiano.
22
5
Raoul Vaneigem (1934), escritor e filósofo belga.
24
6
Karl Marx (1818–1883), autor de O Capital e do Manifesto do Partido Comunista.
7
Georg Lukács (1885–1971), autor de História e Consciência de Classe
25
Figuras 3 e 4. Albert Speer, plano para Berlim; Otto Wagner, plano Grosstadt.
8
Georges-Eugène Haussmann (1809–1891), prefeito de Paris entre 1853 e 1870, autor do Plano de Paris.
26
9
Team X (ou Team 10) pretendia manter o espírito do CIAM através de uma revisão crítica.
10
Manifesto urbanístico resultante do IV CIAM, realizado em Atenas, 1933.
28
Figura 7. Ação artística situacionista. Cartazes com os dizeres: “Transposição da arte” e “Realização da Filosofia”.
palavras de Debord (1957): “uma ação revolucionária na cultura não pode ter por
finalidade traduzir ou explicar a vida, mas deve expandi-la”.
A diferença da IS em relação às vanguardas previamente reconhecidas se
evidencia inclusive no posicionamento do grupo frente aos próprios conceitos e
denominações. O fato do grupo decidir usar uma sigla como alcunha em vez dos
“ismos” recorrentes demonstra a lógica antidogmática. “Não existe situacionismo, o
que significaria uma doutrina de interpretação dos fatos existentes”
(INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1958). Os situacionistas criam, portanto, que
não havia situacionismo, mas uso ou interpretação situacionista da sociedade.
Com os seguintes objetivos traçados, a IS delineou como objetivo a
experimentação contínua de seus procedimentos: “Propomos uma pesquisa
experimental a ser efetuada coletivamente em algumas direções que definimos neste
momento e em outras, a serem ainda definidas. [...] Nossas hipóteses de trabalho
serão reexaminadas a cada transformação futura, venha de onde vier” (DEBORD,
1957). A partir de então e posteriormente, com a continuidade de publicações
periódicas e ações urbanas, a IS desenvolveu uma série de métodos de atuação que
visavam revolucionar a cultura vigente.
A pintura industrial era, portanto, uma ação que lançava mão da ideia de
automatismo pictórico ao mesmo tempo em que era artesanal, além de propor uma
reinvenção dos espaços pensados para sua aplicação. Ela se enquadra como mais
uma estratégia situacionista de reestruturação do elo entre arte e vida cotidiana e
como uma proposição de ações de cunho lúdico e ativista na cidade, como afirma o
próprio Pinot-Gallizio em seu Discurso sobre a Pintura Industrial e uma Arte Unitária
Aplicável:
1.5.2 Détournement
11
Henri Lefebvre (1901–1991), filósofo e sociólogo francês.
37
Os jogos e emoções reais nas cidades atuais são inseparáveis do projeto do UU,
como mais adiante as realizações do UU não deverão estar separadas dos jogos e
emoções que nascerem dessa realização (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1959).
12
Constant Nieuwenhuys (1920–2005), mais conhecido como Constant, pintor, escultor e arquiteto holandês.
39
2 DERIVA E PSICOGEOGRAFIA
41
2.1.1 Londres
13
Daniel Defoe (1660–1731), escritor e jornalista londrino.
14
William Blake (1757–1827), poeta, tipógrafo e pintor londrino.
15
Ian Sinclair (1943), escritor e cineasta britânico, psicogeógrafo contemporâneo.
16
Peter Ackroyd (1949), romancista, biógrafo e crítico literário londrino.
17
Thomas de Quincey (1785–1859), jornalista e escritor britânico.
43
Fica claro para mim que são os sonhos e pesadelos de Stevenson que têm
proporcionado a imagem mais duradoura da cidade, inspirado toda uma tradição da
Londres gótica e estabelecido uma irreal, porém eterna, paisagem que colore eternamente
nossa experiência de cidade (COVERLEY, 2010, p. 47, tradução nossa).
18
Robert Louis Stevenson (1850–1894), escritor, poeta e roteirista de viagem escocês radicado na Inglaterra.
19
Arthur Machen (1863–1947), escritor e jornalista galês radicado na Inglaterra.
20
Alfred Watkins (1855–1935), escritor, arqueólogo autodidata, antiquário, fotógrafo e empresário britânico.
44
2.1.2 Paris
21
Charles Baudelaire (1821–1867), ensaísta, crítico de arte, tradutor e poeta francês.
22
Walter Benjamin (1892–1940), ensaísta, crítico literário, filósofo e tradutor alemão.
23
Edgar Allan Poe (1809–1849), autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense.
45
24
Dândi, figura comum ao fim do séc. XVIII e início do séc. XIX; homem de bom gosto, senso estético e passatempos
refinados, mas não necessariamente pertencente à nobreza (Oxford English Dictionary. Oxford University Press, 1989).
46
25
Francesco Careri (1966), arquiteto italiano, professor do Departamento de Estudos Urbanos - Università degli Studi Roma Ter.
26
Marcel Duchamp (1887–1968), pintor, escultor e poeta; artista modernista precursor do ready-made.
27
Ready-made, estratégia de uso e ressignificação de objetos industrializados em âmbito artístico.
47
28
André Breton (1896–1966), escritor e poeta francês.
29
Louis Aragon (1897–1982), escritor e poeta francês.
49
2.3 Os Conceitos
Desde até mesmo antes da fundação da IS, alguns dos grupos que a originaram
já discutiam práticas e comportamentos antiespetaculares que prezavam por uma
aproximação do indivíduo com a cidade. Em 1954 o próprio Debord, juntamente com
Jacques Fillon, escreve um texto para a revista Potlatch em que preconiza essas
ações no âmbito urbano.
geométrica e racional: “na base de todas essas pesquisas está a tentativa de superar
a geometria euclidiana, a qual funda uma visão exclusivamente quantitativa do
espaço” (PERNIOLA, 2009, p. 24). Desse modo, os situacionistas iniciaram, com a
psicogeografia e a deriva, uma mudança de perspectiva que contrapunha a tradição
de analisar as cidades de maneira quantitativa com um inovador aspecto qualitativo.
Na tentativa de elucidar a relação entre os termos deriva e psicogeografia,
parece adequado afirmar que a deriva se constitui como uma técnica de investigação
da psicogeografia, como é descrito no texto apresentado por Debord na fundação da
Internacional Situacionista: “uma primeira tentativa de modo de comportamento já foi
obtida com o que chamamos de deriva, [...] um meio de estudo da psicogeografia e
da psicologia situacionista” (DEBORD, 1957).
Essa tese também é confirmada por outro membro da IS, o libanês Abdelhafid
Khatib, que afirma em 1958: “Os recursos da psicogeografia são numerosos e
variados. O primeiro e mais sólido é a deriva experimental” (KHATIB, 1958). E ainda
pela arquiteta Paola Jacques, pesquisadora assídua da teoria situacionista, quando
afirma em seu livro Apologia da Deriva (2003, p. 22) ser evidente que “a deriva era o
exercício prático da psicogeografia”. Sendo assim, é possível admitir que a
psicogeografia se configura como uma ciência ou método de exploração dos aspectos
afetivos da cidade, tendo a deriva como principal elemento de investigação.
A relação intrínseca entre ambos artifícios proporcionou aos situacionistas um
novo modo de encarar o processo de investigação de cidades. Aos seus modos, mas
amparados nessas proposições, os artistas se debruçaram pela cidade gerando
relatos, cartografias e montagens fotográficas que traziam à tona aspectos até então
escondidos pela espetacularização das cidades.
Figura 10. Détournement de uma fotonovela criada por Ralph Rumney com imagens de Veneza, 1957.
53
30
Johan Huizinga (1872–1945), professor e historiador holandês.
55
31
Abdelhafid Khatib, argelino; membro da Internacional Situacionista.
32
Les Halles, bairro parisiense onde até 1960 existiu o mercado central de Paris.
56
A descrição do Les Halles é por fim encerrada por Khatib com considerações
que fazem apologia à apropriação dos transeuntes do bairro em função da construção
de uma vida livre e coletiva. Segundo o autor, em conclusão a todo o relato
psicogeofráfico, “convém propor que esse mercado se torne um parque de diversões
para a educação lúdica dos trabalhadores” (KHATIB, 1958).
Os diferentes níveis — três a leste, dois a oeste — são sustentados por uma
construção metálica, alteada do solo. Para a sustentação dos andares e dos prédios
internos utilizou-se o titânio. [...] A longa estada num desses locais tem o benéfico efeito
de uma lavagem cerebral e costuma ser praticada na intenção de desmanchar os
possíveis novos hábitos (CONSTANT, 1960).
57
O labirinto, cujo plano havia sido estabelecido pela seção holandesa da IS (...)
consiste em um percurso que pode variar, teoricamente, de 200 metros a 3 quilômetros.
O teto, ora a 5 metros, ora a 2,44 m (parte cinzenta), pode baixar, em certos lugares, a
1,22 m. Seu arranjo não visa a nenhuma decoração de interior nem à miniatura de
ambiências urbanas, mas tende a constituir um meio misto, jamais visto, pela mistura de
características internas (apartamento decorado) e externas (urbanas) (INTERNACIONAL
SITUACIONISTA, 1960).
59
Eu vejo a Nova Babilônia como uma teia, uma rede que recobre todo o mundo.
Viver em um lugar fixo não faz parte da Nova Babilônia, o modo de vida sedentário que
remonta desde o final da idade da pedra, quando a humanidade começou a produzir,
quando o homem fundou comunidades e adotou a agricultura. Antes dessa era, os homens
eram nômades, caçadores. A minha hipótese é a de que com o desaparecimento do
trabalho monótono nós acabaremos com a necessidade dos indivíduos de permanecerem
presos a determinados locais. Na Nova Babilônia não há mais casas particulares. A cidade
inteira é uma imensa e coberta casa coletiva, uma casa com incontáveis quartos, salas e
corredores, onde poderemos passear por dias e semanas, mas onde também
encontraremos pequenos espaços para a nossa privacidade. A Nova Babilônia é um
labirinto inesgotável em suas variações, um palácio com milhares de quartos
(CONSTANT, 1962 apud WIGLEY; CONSTANT, 1998).
60
Cabe deixar claro que não se pode considerar criação aquilo que é mera
expressão pessoal no âmbito de meios criados por outrem. Criar não é arrumar objetos e
formas, mas é inverter novas leis a respeito desse arranjo. Enfim, é preciso acabar entre
nós com o sectarismo, que se opõe à unidade de ação com possíveis aliados [...]
(DEBORD, 1957).
61
Por volta do início década de 1960, por conta dos diversos desentendimentos,
a relação de Constant com a IS é finalmente rompida, muito embora o artista tenha
continuado a trabalhar no aprimoramento dos conceitos de Nova Babilônia por pelo
menos durante mais uma década. E ainda assim sem nunca abdicar de seus
argumentos principais para o projeto, de que a Nova Babilônia seria “um projeto social
e coletivo e que seu trabalho deveria ser entendido como nada além do que uma
estrutura projetada para a construção de situações e decoração para uma vida de
lazer” (SADLER, 1999).
The Naked City (A Cidade Nua) é, talvez, a obra mais famosa da Internacional
Situacionista, devido à sua ampla divulgação por intermédio da imagem principal do
projeto. Concepção de Guy Debord e Asger Jorn, de 1957, representa um estudo de
Paris baseado nas hipóteses de reconhecimento de unidades de ambiência, plaques
tournantes e outros elementos que a aplicação da deriva e da psicogeografia
conseguiram revelar.
Apesar do grande reconhecimento de The Naked City, o mapa foi uma
experiência precedida pelo Guia Psicogeográfico de Paris, de 1956, cuja autoria
também foi responsabilidade de Debord e Jorn. A cartografia representativa do Guia
Psicogeográfico se assemelha bastante com a do segundo trabalho em termos
plásticos. Para sua construção foram utilizados recortes da cartografia original da
cidade e adicionados elementos estéticos, que podem ser vistos, inclusive, como
détournements visuais.
Ambos os mapas demonstram uma experiência de espaço fragmentada e
descontínua, áreas que são experimentadas como distintas são separadas no mapa
para representar as unidades de ambiência. Em paralelo, as setas servem para
relacionar essas diferentes zonas e baseiam-se nas forças de atração e repulsão
reconhecidas no decurso da deriva, podendo ser consideradas, de acordo com
Debord, como “os principais eixos de passagem, as saídas e defesas” (DEBORD,
1958).
63
A Cidade Nua demonstra grande parte de sua força em sua composição visual,
marcada pelas setas e pelos recortes de cartografia; o mapa criado por Debord e Jorn
se configura como uma peça estética enormemente comunicacional. O impacto das
relações subjetivas intrínsecas ao mapa transmite ao admirador a ideia de que as
representações cartográficas detêm um potencial muito maior, o qual o funcionalismo
geométrico por si só não consegue atingir. Os mapas psicogeográficos são um convite
à experimentação de derivas e relatos nas cidades contemporâneas. Aliadas ao
desenvolvimento social da pós-modernidade e da era digital, as intervenções urbanas
contemporâneas podem tomar partido desses conceitos com o intuito de criar novas
perspectivas sobre as cidades. Torna-se cabível, portanto, reafirmar a proclamação
de Debord em Cosio d’Arroscia (1957) “Já se interpretaram bastante as paixões; trata-
se agora de descobrir outras”.
2.5.1 A IS Revisitada
33
René Viénet (1944), sinólogo, teórico situacionista e cinegrafista francês.
66
2.5.2 Casos
Baseados tanto na teoria original dos anos 1960 como nas reverberações
contemporâneas descritas, alguns grupos, coletivos de arte e profissionais de áreas
afins produzem cada vez mais experimentos relacionados à experiência de cidade,
por intermédio seja da deriva e da psicografia, seja apenas de apreensão e registro
de afetividades.
Com a rápida popularização do uso da internet e a facilidade de aquisição de
aparelhos tecnológicos, a maioria desses experimentos já se apresentam em formato
de mídias locativas, com fotografias, vídeos e georreferenciamento digitais, além de
muitas vezes serem registrados on-line.
Com o intuito de exemplificar algumas dessas ações, serão elencados a seguir
alguns trabalhos de caráter experimental que suscitaram hipóteses e reflexões acerca
do uso da deriva e da psicogeografia nos dias atuais. A escolha desses trabalhos se
deu, principalmente, pela capacidade de adaptação das teorias situacionistas a
instrumentos de registro, apreensão e intervenção na cidade próprios da
contemporaneidade.
O projeto é uma mistura de low e high tech. O projeto utilizava precários mapas
fotocopiados em papel A3, onde o “errante” podia desenhar o seu caminho com canetas
coloridas. […] A motivação veio do interesse em misturar essas práticas situacionistas com
tecnologias como o celular a internet em um lugar com pouca infraestrutura. Em uma
cidade pequena, mesclando experiências dos visitantes de fora, de grandes centros
urbanos, e habitantes da cidade (BRUNET, 2008).
Figura 23. Imagem do mapa gerado por ocasião da exposição Amsterdam RealTime.
smartphones, tablets ou outros instrumentos comuns aos dias atuais, podem servir
como impulsionadores de reflexões políticas e artísticas na cidade.
3 METODOLOGIA
75
Não temos receitas nem resultados definitivos. Propomos apenas uma pesquisa
experimental a ser efetuada coletivamente em algumas direções que definimos neste
momento e em outras, a serem definidas. A própria dificuldade de chegar às primeiras
realizações situacionistas é uma prova de como é novo o domínio onde penetramos. (...).
Nossas hipóteses de trabalho serão reexaminadas a cada transformação futura, venha
de onde vier (DEBORD, 1957).
34
Maurice Merleau-Ponty (1908–1961), professor e filósofo fenomenólogo francês.
35
Kenneth J. Knoespel, professor de engenharia e artes independentes no Instituto de Tecnologia da Georgia (Georgia Tech).
36
Gilles Deleuze (1925–1995), filósofo francês.
37
Suely Rolnik, psicoterapeuta, crítica cultural em diversos periódicos, professora e integrante do Núcleo de Estudos da
Subjetividade da PUC - São Paulo.
78
Nós acreditamos saber muito bem o que é "ver", "ouvir", "sentir", porque há muito
tempo a percepção nos deu objetos coloridos ou sonoros. Quando queremos analisá-la,
transportamos esses objetos para a consciência. Cometemos o que os psicólogos
chamam de experience error, quer dizer, supomos de um só golpe em nossa consciência
das coisas aquilo que sabemos estar nas coisas. Construímos a percepção com o
percebido. (MERLAEU-PONTY, 1999, p. 25-26).
errâncias procurava se dedicar mais à própria reflexão do trajeto em si, do que a seus
objetivos:
Uma ou várias pessoas que se dediquem à deriva estão rejeitando, por um período
mais ou menos longo, os motivos de se deslocar e agir que costumam ter com os amigos,
no trabalho e no lazer, para entregar-se às solicitações do terreno e das pessoas que nele
venham a encontrar (DEBORD, 1958).
próprio uso do adjetivo “experimental” após o termo delineamento, por parte do autor,
é idêntico ao que, por vezes, os situacionistas se referiam à deriva:
Além dessa subjetivação intrínseca ao próprio termo que, por si só, já carrega
uma transposição de significado, os próprios situacionistas em sua teoria, acabam por
adicionar alguns outros sentidos ao vocábulo. No verso do mapa de The Naked City,
escrita pelo próprio Debord, reside uma pequena definição acerca das setas
vermelhas, associadas às plaques tournantes: “desvios de direção espontâneos feitos
por alguém que circula nesses ambientes, alheio às conexões úteis, que usualmente
direcionam seu caminho” (DEBORD apud JAQUES, 2003, p. 35).
A missão, portanto, de identificar plaques tournantes numa cidade passa pelo
exercício de imersão nas percepções não-corriqueiras que os ambientes tendem a
fornecer, e ainda pela atenção aos dispositivos que possam influenciar o desvio de
direções num trajeto de deriva.
Diagramas são simples desenhos ou figuras que usamos para pensar com ou para
pensar através. A ideia de pensar por meio de um diagrama é crucial, não só porque um
digrama fornece ordem a estabilidade, mas porque ele é um veículo para desestabilização
e descoberta (KNOESPEL, 2002, p. 10, tradução nossa).
uma cartografia psicogeográfica surgem ainda nos textos de crítica urbana, no período
embrionário do movimento, quando Debord ainda participava da Internacional Letrista.
Figura 31. Percurso de deriva produzido para o relato de Les Halles. Abdelhafid Khatib, 1958.
Figura 32. “Diagrama Movimento como ferramenta: construção de narrativas cartográficas” (SCHVARSBERG, 2012).
87
A pesquisa de campo foi, deste modo, a modalidade escolhida para esta etapa
de investigação prática do trabalho. Ela se apresenta como inerente aos métodos
situacionistas, não apenas pela sua possibilidade de verificação de fatos e fenômenos
urbanos, como pelo caráter de avaliação das hipóteses de unidades de ambiência e
as plaques tournantes, levantadas no contexto desse campo, por exemplo.
Ainda segundo Marconi e Lakatos (2003), a pesquisa de campo consiste de
três fases. A primeira fase seria a da realização de uma pesquisa bibliográfica sobre
o tema em questão. Pode-se considerar, assim, que esta fase já foi amplamente
discutida na presente pesquisa, tanto nos dois primeiros capítulos que apresentam e
discutem os conceitos principais, quanto no início desse capítulo, dadas as discussões
acerca dos métodos.
A segunda fase se constitui da explicação sobre as técnicas empregadas na
pesquisa. Embora a deriva e a psicogeografia sejam conceitos amplos, e de caráter
especulativo abrangente, para fins desta pesquisa serão consideradas as técnicas de
investigação da pesquisa de campo. Esta adaptação não constitui um reducionismo,
mas um emparelhamento de conceitos para uma abordagem de pesquisa mais eficaz.
Além disso, para além do seu posicionamento enquanto técnica, os métodos
situacionistas serão também objetos de estudo da pesquisa, por serem eles os
elementos sobre os quais incidem os questionamentos de toda a investigação.
Na terceira e última fase de estruturação de uma pesquisa de campo torna-se
necessário “estabelecer tanto as técnicas de registro desses dados como as técnicas
que serão utilizadas em sua análise posterior” (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 186).
Pautado nessa consideração, pode-se confirmar que o registro e a avalição do uso de
técnicas situacionistas só podem ser pensados sob um ponto de vista qualitativo.
A pesquisa qualitativa gera em torno de sua existência grande discussões
acerca do seu caráter cientifico. Segundo Moreira (2002, p. 44) “a pesquisa qualitativa
abdica total ou quase totalmente das abordagens matemáticas no tratamento dos
dados, trabalhando preferencialmente com as palavras oral e escrita, com sons,
imagens, símbolos, etc.”. E, por conta disso, provoca embates entre modos de
avalição de tendência positivista e os de tendência interpretacionista (MOREIRA,
2002). Nesse sentido, deve-se ponderar que numa pesquisa baseada em preceitos
situacionistas não há sentido em considerar registros e considerações matemáticas
89
3.3.1 Piloto 01
A Rua João Fernandes Vieira tem uma ambiência muito particular, apesar de ser
um ambiente de trabalho, com escritórios, repartições, entre outras coisas. A sombra das
árvores e atmosfera contribuem para uma sensação de relaxamento (MONTE, 2015).
38
Para relato completo ver Apêndice A.
95
3.3.2 Piloto 02
39
Para relato completo ver Apêndice B.
98
Figuras 40 e 41. Rodrigo e Matheus no casario; Assistência de máquinas de costura. Fotos: Luiz do Monte e Matheus Mota.
3.3.3 Piloto 03
40
Vídeos e outros registros dos pilotos e experimentos disponíveis no blog: cargocollective.com/recifedeandada
102
Figuras 46 e 47. Frames dos vídeos do percurso das sombras e das pedras. Arquivo do autor.
Figuras 48 e 49. Ruínas do Recife antigo Fotos: Luiz Monte e João Pessoa.
103
3.3.4 Piloto 04
o Ed. Cristina Tavares na Rua da Guia, onde hoje funciona um edifício de escritórios
e um antigo armazém na Rua do Apolo onde atualmente existe um estacionamento.
O outro aspecto interessante do trajeto, foi a influência dos sons como
elementos de desvio do percurso. Em vários momentos da deriva a dupla foi capturada
por elementos sonoros do cotidiano da cidade. O primeiro elemento sonoro foram as
palmas em um edifício da Rua da Guia onde acontecia algum tipo de terapia corporal
coletiva. Esse desvio de rota fez, inclusive, com que a dupla entrasse no edifício e
conversasse com o recepcionista, inteirando-se dos serviços oferecidos no lugar.
Outro elemento sonoro que influenciou no andamento da dupla foi a passagem
de um protesto de funcionários do transporte público enquanto os pesquisadores
cruzavam a Av. Martins de Barros. Ao escutar as palavras de ordem dos manifestantes
com megafones a dupla refreou seu rumo e tomou o sentido da avenida,
acompanhando e filmando41 parte da realização do protesto. Uma constatação dos
pesquisadores em relação ao protesto foi a mudança efêmera na ambiência da rua. A
existência de um acontecimento de força maior numa cidade, como um protesto ou
parada, tem a capacidade de alterar de forma momentânea as relações estéticas e
sociais de uma ambiência. As mudanças das conversas entre os cidadãos, a alteração
de visão em perspectiva dos elementos do ambiente, por conta de possibilidade de se
andar pelo asfalto, entre outros aspectos, confere um caráter alterador de ambiências
a esses acontecimentos facilitando, inclusive, o surgimento de elementos lúdicos.
Figura 51. Frame de vídeo de gravação do protesto na Av. Martins de Barros. Arquivo do autor.
41
Vídeos e outros registros dos pilotos e experimentos disponíveis no blog: cargocollective.com/recifedeandada
105
Figuras 53, 54, 55 e 56. Imagens da ambiência dos arredores do Mercado de São José. Fotos do autor.
42
Vídeos da ruína e outros registros dos pilotos e experimentos disponíveis no blog: cargocollective.com/recifedeandada
108
3.3.5 Piloto 05
Figuras 59, 60, 61 e 62. Registro dos edifícios resultados do “olhar para cima”. Fotos do autor.
110
Figuras 63 e 64. Registros das ambiências da Rua Direita e da praça do Pirulito. Fotos do autor.
111
A pesquisa-piloto de número cinco foi encerrada por volta das seis da noite,
tendo durado aproximadamente quatro horas. Ela se consolidou como mais uma
pesquisa de tendência a uma grande quantidade registros fotográficos, não apenas
por influência dos aplicativos de smartphone, mas também pela atenção concentrada
em elementos visuais, como a visão do alto dos edifícios e o reconhecimento de
ambiências por seus elementos palpáveis. Além disso, a pesquisa foi importante pela
introdução do uso do aplicativo Snapchat, que facilita o registro afetivo por meio de
fotos, e ainda, pela recorrência do uso do Map my Walk para anotação do percurso.
3.3.6 Piloto 06
Para esta pesquisa-piloto foi composto mais uma vez um trio de participantes:
o autor da pesquisa e os pesquisadores-participantes Augusto Ferrer e Bruno Cardim.
O horário de início da deriva, previsto pelo grupo, foi o horário da manhã com saída
por volta das nove horas, em função da opinião dos mesmos de que neste horário a
cidade demonstra de forma mais intensa a sua vitalidade. A maior disponibilidade de
horário dos pesquisadores-participantes dessa pesquisa em relação aos membros
das outras contribuiu para a extensão do tempo de percurso, o que, por sua vez,
colaborou para uma deriva ainda mais completa.
A deriva teve início em frente ao Shopping Boa Vista, após os participantes
avaliarem o local como um dos principais pontos de encontro da cidade, dada sua
característica de centralidade em relação a todo território do sítio de aplicação das
pesquisas, e ainda, pela sua proximidade com o conceito de plaque tournante
psicogeográfica, igualmente avaliado pelo trio. O trajeto seguiu por entre as ruas de
trás do edifício comercial, situadas mais ao sul do bairro.
O fator que caracterizou o diagnóstico de uma unidade de ambiência nessa
área foi o lodo, a pátina, e a vegetação incrustada em paredes, elementos peculiares
do envelhecimento de alguns edifícios. A ambiência gerada por esses elementos
agregados aos edifícios antigos foi reconhecida na Rua da Soledade, na Rua Manoel
Borba e na Rua Rosário da Boa Vista, e foi classificada pelo grupo como uma
ambiência em estado de descuido, porém de atmosfera atraente ao exercício de
deriva.
113
Ainda no bairro da Boa Vista, o grupo caminhou até um ponto mais ao sul, em
direção ao rio e identificou outra unidade de ambiência, dessa vez conformada por um
pátio sombreado e ventilado, delimitado pelos edifícios e algumas barracas de lanche
da Rua Bulhões Marquês. Mais à frente na deriva, uma terceira ambiência foi
reconhecida pelo trio. A atmosfera bucólica, própria do pátio da Faculdade de Direito
do Recife, aliada à sua fácil e instintiva ligação com o parque de Treze de Maio, de
ambiência semelhante, conformou tal classificação. Os participantes caminharam por
ambos os “parques” e classificaram-nos como espaços de unidade de atmosfera
campestre, mesmo estando inseridos numa malha urbana.
Além dessas ambiências no bairro da Boa Vista, outra região, dessa vez no
bairro de Santo Antônio, foi classificada como uma unidade relacionada com as
ambiências anteriores. A Praça Dezessete, igualmente conhecida como a “Praça dos
Pombos Rosas”, também foi qualificada pelo grupo como dona de uma ambiência
amena em relação ao seu entorno movimentado. A inter-relação entre estas e outras
ambiências foi exercitada pelo grupo em um mapa de unidades de ambiências,
baseado nos preceitos situacionistas do recorte cartográfico de lotes e ruas, do
encurtamento de suas distâncias pela indicação de setas vermelhas e da inclusão de
alguns registros fotográficos.
114
Figura 69. Mapa de unidades de ambiência. Autores: Augusto Ferrer, Bruno Cardim e Luiz Monte.
Figura 70. Mapa de percurso da pesquisa-piloto 06. Autores: Augusto Ferrer, Bruno Cardim e Luiz Monte.
115
Figuras 71 e 72. Beco da Igreja do Divino Espírito Santo e antigo depósito da Singer. Fotos do autor.
nesse período. “(...) convém lembrar que as horas da madrugada são em geral
impróprias à deriva” (DEBORD, 1957).
Pelo fato da maioria das pesquisas-piloto terem sido realizadas no período
diurno, abre-se, portanto, a possibilidade para que os experimentos possam adentrar
o início da noite, e talvez, durar por mais de um dia. “(...) certas derivas de intensidade
suficiente prolongaram-se por dois ou três dias, e até mais” (DEBORD, 1957).
Entretanto, ressalta-se o fato de que a maioria dos participantes das pesquisas-piloto
considera o período diurno como o mais propício às caminhadas.
Outro fato relevante para o planejamento de derivas é a questão do jogo
enquanto elemento de distração e contribuição para o aspecto lúdico de uma
caminhada psicogeográfica. O jogo, ilustrado em algumas situações das pesquisas-
piloto funcionou como um elemento de contraposição à vida corriqueira, ou seja, como
um artifício que auxilia o objetivo da deriva de projetar um olhar e uma condição
diferentes da vivência ordinária das cidades. Nesse sentido, o recurso do jogo foi
estabelecido como um potencial e importante instrumento para os experimentos.
Os aplicativos são mais um recurso que também se tornaram importantes a
partir das pesquisas-piloto. Contudo, além da evidente contribuição do Map my Walk,
do Instagram e do Snapchat para o registro das derivas, é interessante pensar na
utilização desviante das características desse aplicativos.
Por exemplo, o Map my Walk, aplicativo criado com o intuito de informar
trajetos, perda de calorias e distâncias para os corredores teve sua função alterada
para o mapeamento de derivas experimentais. O Instagram, cuja função prioritária é
o compartilhamento instantâneo de imagens entre usuários da plataforma, sofreu uma
perversão dessa serventia e foi utilizado nas derivas como instrumento de
mapeamento afetivo. E ainda, o Snapchat, aplicativo inventado para o envio de vídeos
e fotos que não geram registro, foi utilizado como um instrumento de realização
fotografias que traduziam sensações de ambiências. Essas pequenas corrupções dos
aplicativos podem ser relacionadas com o conceito de détournement situacionista, e
contribuem ainda mais para o entendimento da deriva enquanto um modo de
comportamento anti-espetacular.
Por fim, faz-se necessário a ponderação sobre os percursos e uma reavaliação
do campo experimental das derivas. Muito embora o Recife Antigo, o bairro de Santo
Amaro e outros bairros circunvizinhos possuam suas especificidades e ambiências,
118
4 EXPERIMENTAÇÃO E ANÁLISE
120
A primeira parte deste capítulo visa explicitar sobre quais condições e segundo
quais procedimentos os experimentos serão praticados e analisados. Em segundo
lugar, o capítulo visa relatar a aplicação dos experimentos, especificando suas
particularidades de prática e registro. E, por fim, traçar uma análise dessa aplicação,
organizando as reflexões e conclusões com vistas ao objetivo geral da pesquisa de
avaliar os métodos situacionistas de apreensão urbana.
A nova área de pesquisa constitui-se, desta forma, pelo bairro da Boa Vista,
limitado a leste pela Av. Agamenon Magalhães, a norte pela Av. Mario Melo e ao sul
pelas ruas Padre Venâncio e Estado de Israel, assim como todo o bairro de Santo
Antônio e parte do bairro de São José até aproximadamente o Forte das Cinco Pontas,
como ilustrado anteriormente no mapa.
Não necessariamente classificado como parâmetro para aplicação dos
experimentos, mas como recurso grande importância para a experiência de deriva
está a inserção do jogo enquanto elemento de potencialização do caráter lúdico da
deriva, como no caso do “olhar para cima” e do passeio pela sombra, apresentados
nas pesquisas-piloto.
Por fim, é de interesse da pesquisa que a reunião desses parâmetros aplicados
aos exercícios de deriva resulte em registros de caráter diagramático e cartográfico,
os quais serão avaliados, assim como os procedimentos, de forma qualitativa. Essas
especificações visam consolidar os aspectos descritos nas ponderações teóricas e
metodológicas de forma a orientar os experimentos a serem realizados.
123
4.2 Experimentos
O trio, como uma maneira de caracterização formal, decidiu nomear tais espaços de
ambiências nostálgicas.
Ao tratar da dimensão imaterial da pátina, Zancheti e outros autores (2008, p.
9) se baseiam em Bourdieu (1989) e De Certau (1994) ao afirmarem que esta
percepção está vinculada as práticas sociais e aos princípios historicamente
construídos das cidades, concluindo que:
Figuras 74 e 75. O beco lateral à URB/Recife e um edifício envelhecido na Rua do Príncipe. Fotos do autor.
125
Figura 77. Ambiência da Rua Frei Miguelinho, perpendicular à Rua do Sossego. Foto do autor.
126
A deriva teve sua continuidade ainda pela região norte do bairro da Boa Vista.
Os elementos de atração e os comentários deixaram de contemplar a pátina e as
ambiências amenas e passaram a avaliar alguns edifícios e casas modernistas. As
casas conjugadas da Rua Bispo Cardoso Ayres, de aparências pré-modernas e o Ed.
Apollo XXI, cuja imponência remete, verdadeiramente, a um foguete espacial, se
configuram como elementos de destaque na ambiência limítrofe do bairro.
Após essa incursão pela parte norte do bairro, o trio desviou a trajetória no
sentido de retorno à Av. Conde da Boa Vista. Entretanto, antes de chegar na avenida
de fato, os pesquisadores descobriram, num dos boxes do térreo do Ed. Walfrido
Antunes, antigas máquinas de fliperama ainda em funcionamento. A parada para uma
rápida jogada, relembrando memórias afetivas de infância serviu como elemento
amplificador do conteúdo lúdico da deriva.
Figura 80. Uso dos fliperamas na galeria do Ed. Walfrido Antunes. Foto do autor.
127
Figuras 83 e 84. Edifício abandonado - antigo atelier de Abelardo da Hora e ruína na rua Velha. Fotos do autor.
Figuras 86 e 87. Casas na Rua Edmundo Bitencourt e na Rua Barão de São Borja. Fotos do autor.
Pela proximidade das cinco horas da tarde, após longo percurso pela parte sul
do bairro da Boa Vista, o trio decide por uma caminhada até o bairro de Santo Antônio,
com o propósito de se transferir de uma área de pouca movimentação de pessoas
para uma área de grande animação. Além isso, o trio também visava a passagem pela
ponte da Boa Vista para a contemplação do rio Capibaribe e da própria beleza da
ponte.
130
Figuras 88 e 89. Edifício visto da Rua Frei Caneca e Pátio de São Pedro. Fotos do autor.
A deriva continuou pela parte norte do bairro de Santo Antônio durante o início
da noite. A chegada da noite no centro do Recife coincide exatamente com o término
do horário comercial de trabalho, o que acaba por gerar uma mudança brusca no ritmo
das ambiências da cidade. O esvaziamento rápido de alguns espaços acaba por
ampliar a atmosfera bucólica desses lugares, como no caso da Av. Guararapes, que
durante todo período diurno abriga um enorme movimento de pedestres, e que a noite
43
Para apreciação do mapa de inter-relações de ambiências nostálgicas ver apêndice G.
131
se torna gradativamente mais vazia. Nesses espaços vazios a marca da pátina dos
edifícios modernos e calçadas se confunde com a sombra gerada pelas luzes
trazendo à tona novamente o sentimento de nostalgia atrelado ao de degradação e
angústia pelo abandono noturno desses espaços.
44
Film noir - expressão francesa referente ao subgênero de filme policial popular nos Estados Unidos, entre 1939 e 1950.
132
Figuras 91 e 92. Ed. Igarassu e Igreja Matriz de Santo Antônio, Av. Dantas Barreto. Fotos do autor.
45
Para apreciação do mapa de percurso do experimento 01 ver Apêndice C.
133
Figuras 95 e 96. Ligação entre as Ruas Sebastião Lins e Clube Náutico Capibaribe. Fotos do autor.
Muito próximo a esta ambiência, no fim da Rua Clube Náutico Capibaribe e por
trás do Ed. Novo Recife, está situada a Praça Machado de Assis. Apesar de não
funcionar propriamente como uma praça, e ter grande parte de seu terreno ocupado
por carros estacionado, a configuração espacial e atmosférica da Praça Machado de
Pela sua conformação reclusa, sombreada e arborizada a praça foi classificada pelo
trio como um elemento atrativo e possibilitador de um estado de interrupção da
realidade, ou seja, de suspensão momentânea do movimento urbano.
135
O transeunte que adentra a Praça Machado de Assis tem acesso, por duas
entradas, ao beco do Fotógrafo que perpassa o térreo de dois edifícios, o Ed. Novo
Recife e o Ed. Tabira. Dada a hipótese levantada em relação aos becos, o grupo
classificou o lugar como mais um espaço de potencial aceleração do processo de
deriva, tornando a passagem por esses becos um ato de rápida transição entre
diferentes atmosferas.
Além da hipótese dos becos, por sua configuração labiríntica e de corredor de
edifício, o ambiente do beco do Fotógrafo se mostrou um elemento de outras
possibilidades para a deriva. Na exploração do beco, o trio se deparou com a escada
principal do Ed. Novo Recife, que dá acesso ao terraço do edifício. Esse terraço foi
classificado pelo grupo como mais uma das ambiências nostálgicas, não apenas por
se tratar de um lugar envelhecido, como também pela possibilidade de vislumbre de
uma paisagem da cidade formada por edifícios marcados pelo tempo, que acabaram
por contribuir para a conformação da ambiência.
136
Figuras 98, 99, 100 e 101. Imagem do terraço do Ed. Novo Recife; vista da paisagem e dos prédios do entorno. Fotos do autor.
Atravessada a ponte da Boa Vista o trio adentra o bairro de Santo Antônio pela
Rua Frei Caneca e segue caminho pela Rua da Palma. Quase ao fim da extensão da
rua o grupo descobre a existência de um beco que tem início na própria Rua da Palma,
atravessa a Rua Vinte e Quatro de Maio e termina na Av. Dantas Barreto. Segundo
avaliação do trio, os aspectos desse beco condizem exatamente com os elementos
levantados durante a passagem pelo beco da Fome e do Fotógrafo. Intitulado pelos
pesquisadores como beco do Ferro-Velho, pela quantidade de objetos descartados, o
recinto funciona como um atalho que parte de um setor desocupado e pouco comercial
da Rua da Palma e desemboca na amplitude comercial e espacial da Av. Dantas
Barreto, permitindo ao passante uma conexão quase direta ao setor central do
camelódromo que percorre a avenida.
Figuras 103 e 104. Imagens do início e do fim da travessa do Martírios. Fotos do autor.
Figuras 107 e 108. Ambiência da praça do Sebo ao anoitecer e à noite. Fotos do autor.
46
Para apreciação do mapa de percurso do experimento 02 ver Apêndice D.
141
Ainda durante o percurso pela Rua do Riachuelo, o trio se viu atraído pela
indumentária lúdica de uma carroça de material reciclável decorada com bandeiras e
outros artefatos coloridos, como uma sombrinha de frevo e uma bandeira do Brasil. A
obra espontânea do carroceiro foi associada pelos pesquisadores como semelhante
a organicidade dos parangolés e estudos visuais de Hélio Oiticica47. O
reconhecimento e registro visual da carroça também foi considerado pelo grupo como
um processo inerente as derivas, pela capacidade que a técnica tem de transformar o
olhar objetificados e usual do transeunte, permitindo-lhe a percepção de informações
estéticas abstrusos no próprio dia-a-dia das cidades.
47
Hélio Oiticica (1937 – 1980), pintor, escultor, artista plástico e performer carioca.
143
Figuras 111 e 112. Ambiência da Rua Bernardo Guimarães e pátio interno da UNICAP. Fotos do autor.
48
Para apreciação do mapa de inter-relação de ambiências suspensas ver apêndice H.
144
Figuras 113 e 114. Imagem da parede da antiga Fratelli Vita; Frame do vídeo do bate-estaca. Foto e arquivo do autor.
49
Vídeos e outros registros dos pilotos e experimentos disponíveis no blog: cargocollective.com/recifedeandada
145
Figuras 115 e 116. Edifícios do último trecho da Av. Conde da Boa Vista. Fotos do autor.
Figuras 117 e 118. Registro da ambiência da Rua Bulhões Marquês. Fotos do autor.
Figuras 120 e 121. Ruas do entorno do Mercado de São José à noite. Fotos do autor.
50
Vídeos e outros registros dos pilotos e experimentos disponíveis no blog: cargocollective.com/recifedeandada
148
Figuras 122 e 123. Pátio do Livramento e Beco do Marroquim à noite. Fotos do autor.
51
Para apreciação do mapa de percurso do experimento 03 ver Apêndice E.
151
atmosfera das ambiências que estão imediatamente próximas a elas. Esses dois
mapas correspondem aos apêndices G e H no final do documento.
O sétimo e último mapa tem a responsabilidade de transmitir graficamente a
variedade de elementos lúdicos que rementem às situações associadas ao jogo
situacionista. Nele foram representados sons, objetos e situações num mescla de
fotografias e pequenas inserções textuais. Ele procura se distanciar do olhar com
ênfase nos dados físicos e representar os momentos e componentes mais subjetivos
dos experimentos. Intitulado de mapa de ilustração de elementos de jogo, ele
corresponde ao apêndice I desta dissertação.
Figuras 126 e 127. Exemplos dos mapas disponíveis nos apêndices F e G. Arquivo do autor.
Figuras 128 e 129. Exemplos dos mapas disponíveis nos apêndices H e I. Arquivo do autor.
155
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
157
O segundo capítulo têm início com uma análise histórica relativa aos primeiros
indícios de exercício da psicogeografia. Esse resgate se mostra importante, pois
demonstra que o conceito de psicogeografia, mesmo tendo sido elaborado pelos
situacionistas, remonta a experimentações realizadas desde o século XVIII. Nessa
parte do capítulo também são relatadas as primeiras tentativas de levar a arte para o
campo das cidades, principalmente por parte dos movimentos dadá e surrealista.
Toda essa análise histórica se faz relevante, pois insere as técnicas da psicogeografia
e da deriva num contexto histórico de experimentações urbanas e demonstra que,
apesar da originalidade dos conceitos situacionistas, ambas as técnicas são produtos
de um desenvolvimento e amadurecimento do processo histórico da arte na
sociedade.
A partir daí são expostos de modo detalhado os conceitos da deriva e da
psicogeografia. Além de uma descrição sobre o caráter situacionista, das hipóteses e
dos possíveis resultados da aplicação das técnicas, o texto procura definir o grau de
relação entre elas, esclarecendo a função principal de cada uma. Sobre essa questão
conclui-se que a deriva se apresenta como um desdobramento prático da
psicogeografia. A deriva seria uma apropriação do espaço urbano através do
caminhar, enquanto a psicogeografia estudava o ambiente urbano utilizando-se da
deriva como instrumento prático (JACQUES, 2003, p. 22).
Ainda no segundo capítulo é exposta uma reflexão sobre a afinidade
situacionista com o conceito de jogo. Esse conceito, ligado à condição do homo
ludens, é analisado como um dos elementos principais que levaram à concepção
situacionista da cidade enquanto labirinto, uma construção ideológica que encarava a
cidade como um elemento de possibilidades lúdicas. A discussão é desdobrada com
a exposição de ações situacionistas de relevância em relação ao conceito de labirinto
e a aplicação da deriva e da psicogeografia. O capítulo conta ainda com uma análise
da literatura e de ações contemporâneas influenciadas pela teoria situacionista,
salientando o impacto positivo dessa revisitação de conceitos para o campo da arte
contemporânea e para a pesquisa vigente.
Os aspectos teóricos e metodológicos em relação ao modo de aplicação das
técnicas situacionistas no Recife foram abordados ao longo no terceiro capítulo. Nele
é realizada uma análise dos pormenores relativos às duas hipóteses levantadas pelos
situacionistas advindas da aplicação da deriva: as unidades de ambiência e as
159
Outro fator importante sobre a aplicação das derivas foi a averiguação das
hipóteses situacionistas. As suposições referentes ao reconhecimento de unidades de
ambiências foram corroboradas pelo trio de pesquisadores. Os participantes
exercitaram o reconhecimento dessas unidades em vários setores da área explorada
e detectaram a presença recorrente de dois tipos de ambiências: as denominadas
ambiências suspensas e ambiências nostálgicas. Esses dois tipos de ambiência foram
analisados durante os três experimentos de forma gradual e espontânea, e acabaram
por se manifestar como elementos que funcionavam ao mesmo tempo como espaços
reconhecidos e espaços norteadores de trajetórias.
Em relação a hipótese das plaques tournantes os pesquisadores obtiveram
diferentes conclusões. Apesar de reconhecerem espaços com potencialidades
similares ao conceito, os três experimentos realizados não foram suficientes para que
os participantes qualificassem com propriedade essas áreas de acordo com o
conceito. Uma afirmação veemente e uma reflexão detalhada sobre a existência de
plaques tournantes psicogeográficas necessitaria, portanto, de um exercício ainda
mais continuo e aprofundado das técnicas situacionistas.
Para além da averiguação das hipóteses, a experiência das três derivas acabou
por suscitar o levantamento de uma proposição por parte dos próprios pesquisadores.
Levantada e analisada durante os experimentos no quarto capítulo, não apenas em
modo textual, como em formato de mapa, a hipótese dos becos enquanto túneis de
potencialização da experiência de deriva se apresenta como uma importante
contribuição contemporânea, de caráter especulativo, e com grandes possibilidades
de desdobramento para pesquisas futuras.
Aliado a essa conceituação dos becos como elementos de ampliação da deriva,
os pesquisadores, ainda no quarto capítulo, reconheceram que a própria experiência
da deriva possui um tempo particular, como um momento de contrariedade à
circulação habitual e objetiva da cidade. De acordo com esse preceito, as derivas
teriam a capacidade de apresentar uma nova relação de espaço-tempo ao transeunte,
desvinculando-o momentaneamente de processos corriqueiros e, por vezes,
alienantes da sua própria vida, como o trabalho, o trânsito de automóveis, entre outros.
Essa particularidade da deriva também chegou a ser especulada pelos situacionistas,
o que torna, portanto, essa apreciação dos pesquisadores mais uma conclusão de
conteúdo alinhado aos preceitos do movimento.
161
Assim sendo, podem ser expostas mais algumas conclusões sobre a pesquisa
vigente. A de que as técnicas situacionistas da deriva e da psicogeografia são
efetivamente capazes, através do seu exercício, de promover um olhar sobre as
cidades separado das premissas do espetáculo. E ainda, que a força desse
desvinculamento se encontra no exercício de imersão no tempo particular das
técnicas situacionistas, e em seus objetivos primordiais de apreensão dos aspectos
conscientemente planejados ou não.
Por fim, deve-se argumentar que a aplicação da deriva e da psicogeografia em
uma cidade contemporânea é um exercício de extrema complexidade. As
contribuições expostas nesse trabalho demonstram a enorme possibilidade de
desdobramentos teóricos referentes a essa revisitação. Além disso, apesar de ter
tentado ampliar ao máximo as suas análises a respeito do objetivo traçado, essa
pesquisa se propõe a ser compreendia como uma pequena parte de um conjunto, e
um instrumento facilitador de outras muitas e possíveis novas investigações.
163
REFERÊNCIAS
164
- LIVROS
ARCHER, Michael. Arte Contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
BARROS, César. Recife Enxerido [livro eletrônico]. Recife: Ed. do Autor, 300 mb,
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HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O Jogo Como Elemento da Cultura. São Paulo:
Perspectiva, 2000.
MCDONOUGH, Tom. The Situationists and the City. Nova Iorque: Verso Books,
2009.
166
SADLER, Simon. The Situationist City. Cambridge e Londres: The MIT Press, 1999.
VANEIGEM, Raoul. A arte de viver para as novas gerações. São Paulo: Baderna.
2002.
WARK, Mckenzie. The Beach Beneath the Street: The Everyday Life and Glorious
Times of the Situationist International. Nova Iorque: Verso Books, 2011.
- ARTIGOS DE PERIÓDICOS
ASSIS, Diego; CASSIANO, Machado. Três décadas depois, situacionismo vive seu
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em: www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2604200309.htm#. Acesso em 30 mai 2015.
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CONSTANT. The Great Game to Come. Potlatch, Vol. 30, 1959. Disponível em:
http://www.cddc.vt.edu/sionline/si/greatgame.html. Acesso em 12 ago 2014.
DEBORD, Guy. Introduction to a Critique of Urban Geography. Les Lèvres Nues, Vol.
6, 1955. Disponível em: http://www.cddc.vt.edu/sionline/presitu/geography.html.
Acesso em: 16 mai 2015.
DEBORD, Guy; WOLMAN, Gil. A User's Guide to Détournement. Les Lèvres Nues,
Vol. 8, 1956. Disponível em: http://www.cddc.vt.edu/sionline/presitu/usersguide.html.
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SHAYA, Gregory. The Flâneur, the Badaud, and the Making of a Mass Public in
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2004.
DEBORD, Guy. The Situationists and the New Forms of Action in Art and Politics.
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JORN, Asger. Opening Speech at the First World Congress of Free Artists. Alba,
1956. Disponível em: http://www.notbored.org/speech.html. Acesso em 12 ago 2014.
SANBORN, Keith. Duas abordagens do desvio: Guy Debord e René Viénet. Recife:
Bê Cúbico, 2014.
- ENDEREÇOS ELETRÔNICOS
RAFFA, Ryan. Urban Drifts 2009 – 2014. Ryan Raffa. 2009. Disponível em:
http://www.ryanraffa.com/portfolio/urban-drifts-2. Acesso em: 14 mai 2015.
- VERBETES
- RELATOS
MONTE, Luiz. Breve relato psicogeográfico – Pesquisa-piloto 02. [S.l: s.n.], 2015.
- MAPAS
APÊNDICES
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A Rua João Fernandes Vieira tem uma ambiência muito particular, apesar de
ser um ambiente de trabalho, com escritórios, repartições, entre outras coisas. A
sombra das árvores e atmosfera contribuem para uma sensação de relaxamento.
A palavra da Rua da Soledade é fluxo, gente indo e vindo a todo tempo: sente-
se aqui a vivência de fato da cidade, e há de se considerar a praça de frente da Igreja
uma possível plaque tournante.
As ruas Barão de São Borja e Manoel Borba apesar de paralelas têm
ambiências completamente distintas. Enquanto na primeira sente-se a calma que me
lembra a rua da minha vó. Na segunda a automatização dos carros e os pedestres
preocupados configuram um aspecto de – deixe-nos trabalhar!
O contraste da Rua José Mariano em relação ao bairro dos Coelhos em suas
costas é incrível. Pode-se perceber a vida de fato, típica das periferias da cidade em
meio a brechas que aparecem num cenário de armazéns e comércio pesado, de onde
são tiradas matérias primas para construções da sociedade atual, que nada tem de
construtivas. Um conselho aos transeuntes da José Mariano é espiar, e quem sabe
adentrar à vida real que se revela entre as brechas.
A Rua Tobias Barreto é o comércio em pelo do Recife. Talvez eu não tivesse
me agradado tanto dela, não fosse a barraquinha de drops com o símbolo do Santa
Cruz.
Por fim, o cansaço bate na praça do Diário. Outro ponto de várias
possibilidades. Uma plaque tournante que acredito alterar percursos até de quem não
se propõem à deriva. Apesar do sol já ter baixado, o cansaço da andada e o fato de
estar próximo à Av. Guararapes me corrompe a ir embora.