Você está na página 1de 181

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

Centro de Artes e Comunicação


Departamento de Design
Programa de Pós-Graduação em Design

LUIZ DO MONTE

DERIVA E PSICOGEOGRAFIA NA CIDADE CONTEMPORÂNEA:


EXPERIMENTO SITUACIONISTA NO CENTRO DO RECIFE

Recife

2015
LUIZ DO MONTE

DERIVA E PSICOGEOGRAFIA NA CIDADE CONTEMPORÂNEA:


EXPERIMENTO SITUACIONISTA NO CENTRO DO RECIFE

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Design da
Universidade Federal de Pernambuco
como requisito parcial para obtenção do
grau de Mestre em Design. Linha de
Pesquisa: Design, Tecnologia e Cultura.

Orientador: Prof. Dr. Gentil Porto Filho

Recife

2015
Catalogação na fonte
Bibliotecário Jonas Lucas Vieira, CRB4-1204

M772d Monte, Luiz Augusto Dutra Souza do


Deriva e psicogeografia na cidade contemporânea: experimento
situacionista no centro do Recife / Luiz Augusto Dutra Souza do Monte. –
Recife: O Autor, 2015.
180 f.: il., fig.

Orientador: Gentil Alfredo Magalhães Duque Porto Filho.


Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco,
Centro de Artes e Comunicação. Design, 2016.

Inclui referências e apêndices.

1. Ergonomia. 2. Arte – Técnica. 3. Arte – Temas, motivos. 4. Arte e


arquitetura. 5. Capitais (Cidades). 6. Vida urbana. I. Porto Filho, Gentil
Alfredo Magalhães Duque (Orientador). II. Título.

620.8 CDD (22. ed.) UFPE (CAC 2016-38)


UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESIGN

PARECER DA COMISSÃO EXAMINADORA


DE DEFESA DE DISSERTAÇÃO DE
MESTRADO ACADÊMICO DE

Luiz Augusto Dutra Souza do Monte

“Deriva e psicogeografia na cidade contemporânea: experimento situacionista no


centro do Recife.”

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: DESIGN E ERGONOMIA

A comissão examinadora, composta pelos professores abaixo, sob a presidência do


primeiro, considera o(a) candidato(a) Luiz Augusto Dutra Souza do Monte
APROVADO.

Recife, 31 de julho de 2015.

Prof. Gentil Alfredo Magalhães Duque Porto Filho (UFPE)

Profª. Oriana Maria Duarte de Araujo (UFPE)

Prof. Luiz Manuel do Eirado Amorim (UFPE)


Dedico este trabalho aos meus avós Oswaldo Alves de Souza e
Maria Dutra de Souza. Sem ambos, eu simplesmente não existiria.
AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Marcos e Mariza, pelo maior incentivo aos meus estudos e realizações
pessoais.
Às minhas irmãs, meus avós e minha família pelo amor, carinho e compreensão.
À minha querida sogra, Fernanda Andrade Lima, pelo afeto, incentivo ao mestrado e
à minha evolução pessoal.
Ao meu orientador, Gentil, pela atenção, empolgação e grande dedicação.
Aos babilônicos e a galerarq pela amizade e apoio constante.
Ao meu quarteto especial: Ju, Camila, Tiago e Bruno.
Aos mestrandos e doutorandos do Laboratório de Inteligência Artística (i!) pelo auxílio
mútuo e companheirismo.
Aos membros da banca qualificação: Luiz Amorim e Oriana Duarte, pelas valiosas
contribuições, em especial a Oriana, cujas contribuições continuaram na disciplina
Design e Corpo.
Aos muitíssimos especiais amigos de deriva: Matheus Mota, Rodrigo Cm, Bruno
Cardim, Augusto Ferrer, Bruna Ferrer e João Pessoa.
A Caio Rihan e Guilherme Azevêdo, companheiros de pesquisa e de João da Carne
de Sol.
À Nathalie Mota e Juliana Carvalho, pela amizade durante as disciplinas, em especial
a Ju, pelo auxílio com a capa.
À Maria Eduarda Dantas, pelo “corre” da xerox de Perniola em Brasília.

À minha inqualificável companheira, Luiza.

E a todos aqueles que, de alguma forma, auxiliaram neste projeto.


“Caminho a passo lento.
Creio que alguém me espia do alto, das cornijas.
Vai passando na sombra a ronda dos meus sonhos.”

(Joaquim Cardozo)
RESUMO

Este trabalho tem como objetivo experimentar a deriva e a psicogeografia, técnicas


provenientes do movimento artístico intitulado Internacional Situacionista, no centro
expandido do Recife. A deriva e a psicogeografia foram conceitos criados pelos
situacionistas por volta da década de 1950. Enquanto a psicogeografia se apresenta
como uma ciência de apreensão das afetividades urbanas, a deriva é compreendida
pelo movimento como uma técnica de passagem por ambientes da cidade que
compõe um desdobramento prático dessa apreensão psicogeográfica. A pesquisa
pretende verificar a validade das técnicas em relação às suas propostas de aplicação
e as possíveis contribuições dessa revisitação de ideias situacionistas numa cidade
contemporânea. Para aplicação das técnicas foi elaborada uma metodologia baseada
primordialmente nos preceitos situacionistas, mas que também agregou questões
relativas à fenomenologia, à psicologia e ao estudo de mapas e diagramas. A partir
dessa metodologia foram realizadas pesquisas de campo de cunho experimental que
geraram documentos, relatos e ilustrações referentes ao resultado desse processo.
As conclusões expostas posteriormente apontam para a validação de algumas das
hipóteses situacionistas relativas à aplicação das técnicas e discutem em grande parte
o papel das novas tecnologias além de outros fatores que tornam a experiência da
deriva e da psicogeografia singulares na contemporaneidade.

Palavras-chave: Internacional Situacionista, Guy Debord, Recife, deriva,


psicogeografia.
ABSTRACT

This work intents to experience the dérive and the psychogeography, techniques of
the artistic movement called Situationist International in the expanded center of Recife.
The derive and the psychogeography were concepts created by the situationists in the
1950’s. While the psychogeography presents itself as a seizure science of urban
affections, the drift is understood by the movement as a technique of passage through
city environments, which makes up a practical unfolding of psychogeographic
apprehension. The research aims to verify the validity of the techniques in relation to
their proposals and the possible contributions of revisiting situationist ideas in a
contemporary city. For the application of the techniques a methodology based primarily
in Situationists precepts was created, but also with the addition of questions related to
phenomenology, psychology and the study of maps and diagrams. Based on this
methodology were performed experimental nature field researchs that generated
documents, reports and illustrations for the result of this process. The conclusions later
exposed point to the validation of some of the Situationists assumptions related to the
application of techniques and discuss mostly the role of new technologies and other
factors that make the experience of drift and psychogeography unique in
contemporaneity.

Keywords: Situationist International, Guy Debord, Recife, dérive, psychogeography.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11
1 INTERNACIONAL SITUACIONISTA ...................................................................... 16
1.1 Trajetórias ........................................................................................................ 17
1.2 Anticapitalismo e Revolução Cotidiana ............................................................ 20
1.3 Contra o Funcionalismo ................................................................................... 24
1.4 Superação da Arte ........................................................................................... 29
1.5 Métodos de Ação ............................................................................................. 32
1.5.1 A Pintura Industrial..................................................................................... 33
1.5.2 Détournement ............................................................................................ 34
1.5.3 Situação Construída .................................................................................. 35
1.5.4 Urbanismo Unitário .................................................................................... 37
2 DERIVA E PSICOGEOGRAFIA ............................................................................. 40
2.1 A Herança Londrina e o Flâneur Parisiense..................................................... 41
2.1.1 Londres ...................................................................................................... 42
2.1.2 Paris........................................................................................................... 44
2.2 Passeios Dadaístas e Surrealistas................................................................... 45
2.2.1 A Influência Dadaísta ................................................................................. 46
2.2.2 A Incursão Surrealista................................................................................ 47
2.3 Os Conceitos.................................................................................................... 49
2.4 A Cidade como Labirinto .................................................................................. 53
2.4.1. O Mercado de Les Halles ......................................................................... 55
2.4.2 A Zona Amarela ......................................................................................... 56
2.4.3 O Labirinto Holandês ................................................................................. 58
2.4.4 Nova Babilônia ........................................................................................... 59
2.4.5 The Naked City .......................................................................................... 62
2.5 Deriva e Psicogeografia na Contemporaneidade ............................................. 64
2.5.1 A IS Revisitada .......................................................................................... 65
2.5.2 Casos......................................................................................................... 67
3 METODOLOGIA ..................................................................................................... 74
3.1 Aspectos Teóricos............................................................................................ 76
3.1.1 Método Fenomenológico ........................................................................... 78
3.1.2. Diagramas e Cartografia Afetiva ............................................................... 81
3.2 Aspectos Práticos ............................................................................................ 87
3.2.1. Pesquisa de Campo.................................................................................. 87
3.2.3. Sítio de Aplicação ..................................................................................... 91
3.3. Confecção de Pesquisa-piloto......................................................................... 93
3.3.1 Piloto 01 ..................................................................................................... 94
3.3.2 Piloto 02 ..................................................................................................... 97
3.3.3 Piloto 03 ................................................................................................... 100
3.3.4 Piloto 04 ................................................................................................... 103
3.3.5 Piloto 05 ................................................................................................... 108
3.3.6 Piloto 06 ................................................................................................... 112
3.3.7. Considerações Sobre os Pilotos ............................................................. 116
4 EXPERIMENTAÇÃO E ANÁLISE ........................................................................ 119
4.1 Parâmetros de Aplicação ............................................................................... 120
4.2 Experimentos ................................................................................................. 123
4.2.1 Primeiro Experimento .............................................................................. 123
4.2.2 Segundo Experimento ............................................................................. 133
4.2.3 Terceiro Experimento............................................................................... 141
4.2.4 Conclusões e Mapas Resultantes............................................................ 150
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 156
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 163
APÊNDICES ............................................................................................................ 171
APÊNDICE A – Relato de descrição psicogeográfica – Pesquisa-piloto 01 ........ 172
APÊNDICE B – Breve relato psicogeográfico – Pesquisa-piloto 02 ..................... 173
APÊNDICE C – Mapa de percurso de deriva – Experimento 01 .......................... 174
APÊNDICE D – Mapa de percurso de deriva – Experimento 02 .......................... 175
APÊNDICE E – Mapa de percurso de deriva – Experimento 03 .......................... 176
APÊNDICE F – Mapa de ilustração da hipótese dos becos................................. 177
APÊNDICE G – Mapa de inter-relação de ambiências nostálgicas ..................... 178
APÊNDICE H – Mapa de inter-relação de ambiências suspensas ...................... 179
APÊNDICE I – Mapa de ilustração de elementos de jogo ................................... 180
11

INTRODUÇÃO

Por serem concebidas pelo homem de maneira intensamente coletiva, as


grandes cidades adquiriram o caráter de um grande artefato dinâmico, e em certos
aspectos, imprevisível. Talvez, por conta dessas características, as metrópoles
sempre foram elementos de grande estima por parte de artistas, intelectuais,
pesquisadores, dentre outros. Para a Internacional Situacionista (IS), grupo artístico
surgido no fim da década de 1950, as grandes cidades não se configuravam apenas
como mote para intervenções ou obras de arte, mas sim como o palco e objeto
principal para a realização da obra de arte total, de uma revolução que pudesse unir
a vida cotidiana dessas cidades à prática artística humana de maneira indissociável.
Os membros do movimento situacionista pretendiam transformar o modo de
vida nas metrópoles por intermédio de ações artísticas de cunho urbanístico. “A arte
integral de que tanto se falou, só se poderá realizar no âmbito do urbanismo”
(DEBORD, 1957). Não obstante, além do caráter subjetivo e lúdico próprio de ações
artísticas, a teoria situacionista estava imbuída de um agudíssimo aspecto político. Os
situacionistas consideravam que a ascensão do sistema capitalista, e das novas
propostas teóricas do campo da arquitetura, do design, da publicidade, estariam
conduzindo o mundo a um tipo de esterilização, que ameaçava acabar com qualquer
senso de espontaneidade ou ludicidade (SADLER, 1999, p. 5). Para tanto, o
movimento criou diversas técnicas e atividades que iam além esfera artística, e tinham
o intuito de recuperar o sentido espontâneo e dinâmico das cidades, considerados
escassos pelo grupo. Os situacionistas procuravam utilizar esses recursos como
instrumento de auxílio na transformação da sociedade. “Sabemos que essa mudança
é possível por meio de ações adequadas” (DEBORD, 1957).
A realização dessas ações e a consequente transformação da sociedade na
visão situacionista visava elevar as cidades a um nível de composição integral e
coletivo, intitulado pelos situacionistas de urbanismo unitário. “Nossas perspectivas
de ação sobre o cenário chegam, no seu último estágio de desenvolvimento, à
concepção de um urbanismo unitário” (DEBORD, 1957). Apesar do grupo ter
encerrado suas atuações sem efetivamente reedificar a sociedade aos moldes do
urbanismo unitário, as atividades e publicações da IS tiveram grande repercussão no
12

campo da arte e da política, servindo como inspiração teórica para diferentes artistas,
pesquisadores, movimentos sociais e outros domínios da sociedade.
A intenção deste trabalho é revisitar a teoria situacionista e contextualiza-la no
centro do Recife, procurando adicionar uma camada de conhecimento no conjunto
das pesquisas urbanas promovidas na cidade. Essa nova camada, baseada numa
investigação afetiva das cidades, procura se incorporar às pesquisas do campo da
arquitetura, do design, da antropologia, da psicologia, entre outras disciplinas como
mais um instrumento de contribuição e de ampliação dos conhecimentos sobre a
cidade contemporânea em toda sua complexidade. Além do seu caráter investigativo,
a teoria e a prática situacionista inseridas no panorama contemporâneo também
podem funcionar como elemento de ativação de aspectos importante para as cidades
contemporâneas, principalmente no Brasil.
Um desses aspectos diz respeito à questão política do direito à cidade e ao uso
dos espaços públicos. As cidades brasileiras vivem atualmente um momento de
tentativa de restituição dos bens comuns e de resgate da noção de espaço público
por parte dos poderes públicos e da sociedade em geral. Em vários lugares do país
eclodem movimentos sociais que reivindicam a ampliação do uso das cidades pela
população, dada a percepção de que este direito vem sendo usurpado, aos poucos,
por uma lógica de empreendimentos privados e sucateamento dos centros urbanos,
muitas das vezes apoiados, inclusive, pela esfera governamental.
Além disso, um outro aspecto ao qual a teoria situacionista pode servir como
acessória é o da contestação da automatização dos processos sociais e do
comportamento dos indivíduos. Ao se utilizar de métodos e manifestações artísticas
contestadoras, como as anunciadas pelos situacionistas, as cidades contemporâneas
podem se voltar para um crítica à lógica estabelecida pela mídia, pela propaganda e
outros agentes do capital, ou seja, uma crítica ao modo de vida baseada no consumo
exacerbado, no trabalho excessivo e no convívio limitado a espaços privativos, como
shoppings e condomínios.
Dado este intuito de reaplicar ações situacionistas no âmbito de uma cidade
contemporânea, foram escolhidas, dentre tais ações, duas técnicas de investigação e
intervenção próprias do movimento: a deriva e a psicogeografia. Ambas as técnicas
procuram diagnosticar aspectos afetivos relativos a dinâmica urbana ao mesmo tempo
que atuam como ação política de contestação aos paradigmas vigentes da
13

movimentação do habitante na cidade. Além disso, considerando-se as questões


levantadas sobre as cidades contemporâneas brasileiras, foi escolhido como objetivo
de aplicação o centro urbano da cidade do Recife. A junção destes dois fatores –
técnicas e sítio – configura, portanto, o objetivo principal do trabalho: analisar os
resultados da aplicação da deriva e da psicogeografia no centro expandido do
Recife.
Com esse objetivo em vista a dissertação se estrutura em quatro capítulos
sendo incumbência do primeiro tratar da história e do desenvolvimento da
Internacional Situacionista. O primeiro capítulo leva o nome do movimento e começa
tratando da trajetória inicial e da criação da IS por parte de grupos artísticos da época.
Nesse contexto é apresentado, baseado principalmente em autores como Simon
Sadler e Mario Perniola, o caráter anticapitalista do movimento, e a busca de seus
integrantes por uma mudança efetiva na vida cotidiana da sociedade. Também são
objetos de discussão no capítulo a repulsa, por parte dos situacionistas, em relação
às teorias funcionalistas desenvolvidas pela arquitetura e urbanismo da época e a
tentativa do movimento situacionista de superação dos parâmetros da arte, no intuito
de torna-se o último movimento de vanguarda (SADLER, 1999, p 1). O capítulo é
concluído com uma análise dos variados métodos de ação situacionistas, tanto no
âmbito das artes gráficas e plásticas, quando em relação às atividades pensadas e
praticadas nos espaços urbanos.
O segundo capítulo tem foco principal na elucidação dos conceitos da deriva e
da psicogeografia. Em virtude disso, o capítulo se inicia com um panorama acerca dos
primórdios da psicogeografia, passando pelas primeiras incursões da literatura voltada
a experiências urbanas, desenvolvida principalmente nas capitais europeias de
Londres e Paris. Além disso, o início do capítulo aborda também as primeiras
experimentações artísticas que utilizaram a cidade como palco de realização,
destacando o pioneirismo dos movimentos dadaísta e surrealista nesse contexto. A
partir daí o texto se volta de fato a análise das técnicas situacionistas, procurando
explicitar as nuances dos conceitos de cada uma das técnicas e ainda elucidando o
grau de relação entre elas. Por fim, o capítulo trata da inter-relação das técnicas
situacionistas e da teoria do movimento em geral com o conceito de labirinto. A partir
dessa relação são apresentadas ações realizadas ou conceituadas pelos
situacionistas baseadas em preceitos labirínticos e que possibilitaram ou estimularam
14

o uso da deriva e da psicogeografia. O capítulo se encerra de fato com a exposição


da literatura e de ações contemporâneas baseadas nas técnicas situacionistas.
O terceiro capítulo é responsável pela apresentação de aspectos teóricos de
áreas afins, como a filosofia e a psicologia, que se relacionam com as técnicas
situacionistas e servem como contribuição para construção metodológica da pesquisa.
Baseado nesses aspectos são expostas as premissas práticas da metodologia, como
o caráter experimental e de campo da pesquisa, o objetivo geral e os objetivos
específicos, além da delimitação do sítio de aplicação dos experimentos. Nesse
contexto também são apresentados e discutidos, como parte do processo prático da
metodologia, pesquisas-piloto que visam aprimorar o processo de investigação
presencial e diminuir, de modo prévio, as possíveis incongruências relativas aos
experimentos planejados.
No quarto e último capítulo são relatados e analisados, de acordo com as
previsões metodológicas, três experimentos de derivas efetuadas no centro do Recife.
A descrição dos três experimentos e das ações dos pesquisadores durante suas
aplicações procura relaciona-los com as hipóteses e questionamentos discutidos nos
capítulos anteriores da dissertação. Durante os experimentos foram testadas as
hipóteses derivadas dos conceitos situacionistas, também foram exploradas novas
tecnologias para registros das derivas e ainda, foram concebidas algumas novas
hipóteses e possibilidades de ação na cidade. Em virtude dos três experimentos, são
apresentados e anexados ao trabalho mapas afetivos que têm o objetivo de ilustrar os
resultados plásticos obtidos dessa aplicação.
Por fim, são retratadas as considerações finais relativas a todo processo da
dissertação, com conclusões concernentes às problematizações de cada capítulo, e
ainda uma conclusão relativa ao objetivo geral. Essa conclusão indica que a aplicação
das técnicas mantém, em parte, algumas de suas premissas hipotéticas, como as
unidades de ambiência e as plaques tournantes, tendo sido a primeira mais bem
explorada e compreendida pelos experimentos.
Entretanto, para além disso, também foram diagnosticadas e formuladas novas
apreciações para além das ideias situacionistas, como o tempo particular da deriva e
a hipótese dos becos como estreitamento de ambiências. E, por fim, a conclusão
sobre a pesquisa também aponta a grande interferência de questões inerentes à
contemporaneidade, como o avanço da tecnologia e a velocidade das relações e
15

informações dos dias atuais, que acabam por alterar o caráter das percepções, dos
registros e da vivência, em geral, de uma deriva.
16

1 INTERNACIONAL SITUACIONISTA
17

“Nossa ideia central é a construção de situações, isto é, a construção concreta


de ambiências momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade
passional superior” (DEBORD, 1957). Esta é uma das definições fundamentais que
deram origem, em 1957, à Internacional Situacionista, grupo de artistas, pensadores
e ativistas que teve como componente principal de suas reflexões e intervenções as
cidades, em especial seus centros urbanos e a relação desses espaços com a vida
cotidiana.
Por volta da década de 1950, surgem na Europa diversos grupos políticos e
artísticos, dedicados especialmente a repensar a relação entre arte e vida cotidiana,
criticando sobretudo os ideais vigentes não só do momento artístico, como também
dos conceitos de arquitetura e urbanismo instaurados na época. Esses grupos
estavam imbuídos, na sua maioria, de um forte desejo de propor algo que fosse além
das vanguardas históricas (SADLER, 1999, p. 1), cujos preceitos ainda vigoravam no
campo das artes.
Apesar da vontade de realizações de contraponto teórico, esses coletivos
sofreram ainda muitas influências dessas vanguardas. Baseados principalmente em
ações e intervenções urbanas iniciadas pelo movimento Dadá e pelos surrealistas,
muitos artistas e ativistas da década de 1950 iniciaram discussões acerca da arte em
publicações e realizaram intervenções em várias capitais da Europa. Em dado
momento, por conta do contexto político e econômico e de desenvolvimento das
cidades, as pesquisas e investigações de determinados grupos começaram a se voltar
para o âmbito dos centros urbanos e iniciaram uma tendência de reavaliação dos
conceitos de urbanismo vigentes. Em julho de 1957, a junção de alguns desses grupos
em congressos internacionais resultou na formação de uma única entidade. Surge a
então intitulada Internacional Situacionista.

1.1 Trajetórias

Em 1951, o ativista e intelectual francês Guy-Ernest Debord (1931–1994) se


encontra com o poeta, crítico de cinema e artista romeno Isidore Isou (1925–2007),
por ocasião do quarto festival de cinema de Cannes. Nesse tempo, Isidore Isou já
havia fundado, por volta de 1946, o grupo Letrista, movimento artístico e cultural com
18

produção intensa no campo da poesia, mas que também abarcava o cinema e a


pintura.
Como resultado desse encontro, Debord e Isou fundam em 1952 a
Internacional Letrista, um desdobramento teórico do movimento Letrista, que dura até
o ano de 1957, tendo como principal material teórico a revista Potlatch. Segundo
Jacques (2003, p. 16), “as questões tratadas em Potlatch [...], passaram a tratar da
vida cotidiana em geral, da relação entre arte e vida e, em particular, da arquitetura e
do urbanismo, sobretudo da crítica ao funcionalismo moderno”.
Paralelamente a esse encontro e à formação da Internacional Letrista, existiam
na Europa coletivos cujas ações também visavam a uma nova relação entre arte e
vida no contexto urbano. O grupo CoBrA1 tinha como principais membros três artistas:
o dinamarquês Asger Jorn (1914–1973), o belga Cristhian Dotremont (1922–1979) e
o holandês Constant Nieuwenhuys (1920 – 2005). Segundo Jacques (2003, p. 17)
desses três, posteriormente, Constant e Jorn se tornaram grandes conceituadores do
pensamento urbano situacionista. Pode-se destacar, ainda que de modo breve, a
LPA2, grupo dirigido pelo artista inglês Ralph Rumney (1934–2002) que trocava
correspondência com os membros da Internacional Letrista (JACQUES, 2003) e que
procurava atuar no âmbito da investigação dos aspectos subjetivos das cidades.
Fundado por Asger Jorn após a dissolução do CoBrA, o MIBI3 também foi um
coletivo importante na trajetória da formação do grupo situacionista, cujo periódico
principal se chamava Erística. O movimento surgiu como uma crítica à abertura de
uma nova escola da Bauhaus em Ulm, no ano de 1955. Além disso, o MIBI foi
responsável pela reunião desses grupos no ano de 1956 em Alba, na Itália, num
evento intitulado de Primeiro Congresso de Artistas Livres (SADLER, 1999, p. 2).
A constante correspondência entre os membros mais importantes desses
grupos e os reincidentes congressos e reuniões culminaram na criação da
Internacional Situacionista em 1957, num encontro em Cosio d’Arroscia, uma pequena
comuna ao norte da Itália. Nesse encontro foi apresentado por Debord um dos
principais textos do pensamento situacionista, o Relatório sobre a Construção de
Situações e sobre as Condições de Organização e de Ação da Tendência

1
Copenhague, Bruxelas, Amsterdam (CoBrA), 1948-1951.
2
London Psychogeographical Association (LPA): Associação Psicogeográfica de Londres.
3
Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista (MIBI), 1954-1957
19

Situacionista Internacional, com fortes críticas urbanas e que já continha em si


elementos importantes para a compreensão das ideias situacionistas.

Figura 1. Síntese genealógica da Internacional Situacionista, baseada em Sadler (1999, p. 2). Desenho do autor.

A Internacional Situacionista pode ter sua existência balizada historicamente


entre os anos de 1957 e 1972, com uma produção realmente ativa do movimento
enquanto grupo até 1969. Tendo em vista esse período histórico, o filósofo e professor
de estética Mario Perniola divide o livro que escreveu sobre o movimento, Os
Situacionistas (2009), em três capítulos, que por sua vez correspondem a três fases
do movimento compreendidas pelo autor como distintas entre si.
A primeira fase, considerada por Perniola como a fase artística (2009, p. 15),
seria equivalente ao intervalo entre 1957 e 1962, período de surgimento do
movimento, quando as atividades e os métodos relacionados à investigação lúdica da
cidade e a procedimentos artísticos eram indissociáveis da crítica teórica.
Em 1962, o grupo passa por uma ruptura, e a ala que defendia uma abordagem
mais artística é expulsa por completo. Esse fato configura o início da segunda fase
(PERNIOLA, 2009, p. 41) como uma etapa do movimento dedicada principalmente à
elaboração de crítica social, contra as ideologias funcionalistas, tecnocráticas,
econômicas, comunicacionais, entre outros aspectos que conformavam a
20

consolidação da sociedade capitalista. Essa fase dura de forma aproximada até 1967,
ano do lançamento de A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord.
A terceira fase compreende aproximadamente os anos de 1967 a 1972.
Intitulada por Perniola como o período da realização da teoria, configura-se como uma
fase em que as críticas são postas à prova, com influências inclusive em ações sociais
relevantes, como o Maio de 1968, na França. Nessa fase são realizadas as maiores
reflexões sobre a trajetória e as práticas do grupo e também uma projeção, nas
considerações de Debord, para uma futura interpretação do movimento como um
estopim para a verdadeira revolução. Nestes últimos anos nota-se um esforço, por
parte de Debord, de oficializar a produção textual do movimento e assegurar que,
apesar do encerramento prático, as ideias situacionistas continuassem como símbolo
da revolução cotidiana.
Essa divisão da trajetória do grupo em fases, apesar de explicitada na obra de
Perniola, também pode ser compreendida em outras obras que tratam da
Internacional Situacionista, como nos livros Assalto à Cultura, escrito pelo artista e
historiador Stewart Home em 1988, e The Situationist City (A Cidade Situacionista),
de Simon Sadler, acadêmico britânico especialista em história da arquitetura.
Alguns dos aspectos tratados ao longo deste texto serão relacionados com as
fases descritas de acordo com a relevância que essa relação possa despontar.

1.2 Anticapitalismo e Revolução Cotidiana

A Internacional Situacionista foi um movimento de raiz essencialmente


anticapitalista. O grupo visava transformar profundamente o modo de vida das
sociedades; a crítica a um tipo de vida no qual as condições sociais tornavam-se
elementos subordinados ao sistema de lucro do capital era um dos pontos principais
dos textos do movimento.

As novas cidades pré-fabricadas exemplificam claramente a tendência totalitária


de organização de vida do capitalismo moderno: os habitantes isolados (geralmente
isolados no âmbito da célula familiar) veem a vida reduzida à pura trivialidade da repetição
combinada com o consumo obrigatório de um espetáculo igualmente repetitivo (DEBORD,
1962).
21

Esse posicionamento é compreensível, tendo em vista que os anos de 1950 se


configuram como um período de pós-guerra, que sofreu grande influência da
massificação dos bens de consumo advindos da segunda revolução, e que se
configuram como uma década importante para a consolidação de grandes inovações
tecnológicas, da publicidade e do sistema capitalista (HOBSBAWM, 1995).
Entretanto, em relação ao progresso técnico — elemento de suma importância
para um desenvolvimento capitalista —, Perniola (2009, p. 18–19) relata uma suposta
divisão de ideias entre os situacionistas. Segundo o filósofo italiano, as opiniões de
Constant e Pinot-Gallizio4 diferiam do posicionamento de Debord. Eles seriam
partidários da automatização em função da revolução:

Com a automação não existirá mais o trabalho, no sentido corrente do termo; não
existirá mais o repouso, mas um tempo livre para livres energias antieconômicas [...]. Nós
precisamos dominar a máquina, dedicando-a ao gesto único — inútil, antieconômico,
lúdico — a fim de criar uma nova sociedade antieconômica, uma que seja poética, mágica,
artística (PINOT-GALLIZIO, 1959).

Constant e Gallizio acreditavam, desse modo, que o processo de automação


substituiria a necessidade do trabalho operário, o que traria a liberdade necessária
para a criação artística dos indivíduos, planejada pelos situacionistas.
A contraposição de Debord a essa visão é demonstrada, de acordo com
Perniola (2009, p.19), no trecho em que o autor recusa a possibilidade do sistema
capitalista contribuir para a transformação social idealizada pelo grupo:

Acredito que o capitalismo seja incapaz de dominar e de empregar plenamente as


suas forças produtivas, incapaz de abolir a realidade fundamental do desfrute, portanto
incapaz de deixar o posto pacificamente às formas superiores de vida evocadas do seu
próprio desenvolvimento material (DEBORD, 1959).

Enquanto Constant e Gallizio acreditavam na automação do sistema capitalista


como um instrumento para a revolução, Debord se mostrava cético e proclamava que
a superação do capitalismo só poderia existir com a supressão do mesmo. Sobre os
dois argumentos, Perniola (2009, p. 19) conclui que “no primeiro caso, se trata de uma

4
Giuseppe Pinot-Gallizio (1902-1964), artista italiano.
22

aplicação na existência cotidiana de um nível artístico permitido pelo progresso


técnico; no segundo caso, de uma mudança qualitativa de vida inseparável do
renascimento da revolta proletária”. Independentemente desse embate acerca da
automatização, os situacionistas criticavam com firmeza a submissão da estrutura
social ao capitalismo. Para tanto, um dos conceitos mais utilizados pela IS foi o termo
espetáculo.
O espetáculo, expressão concebida por Guy Debord, tenta traduzir em apenas
uma palavra a mercantilização aplicada às relações sociais e às imagens veiculadas
inerentes à lógica capitalista. Segundo Debord (1997, p. 24), “o espetáculo na
sociedade corresponde a uma fabricação concreta da alienação”. A noção de
espetáculo se consagrou, portanto, como um dos elementos de impulsão das críticas
situacionistas ao capitalismo.
Era comum que os textos difundidos pelo movimento incorporassem colagens
de jornais, obras de arte ou quadrinhos que ironizassem o capitalismo e a publicidade,
como no caso da televisão, reconhecida pelos situacionistas como “o veículo de
explosão do poder do espetáculo da modernidade adequado para afetar a percepção
do espaço real” (SADLER, 1999, p. 16).

Figura 2. “Hoje à noite, o espetáculo em casa”, Internationale Sittuationiste #8 (1963).

Essa crítica frente aos parâmetros principais do capitalismo e contra o conceito


de espetacularização da sociedade é ainda mais intensa na segunda e na terceira
fase do grupo, compreendida aproximadamente entre os anos de 1962 e 1972. Num
texto situacionista de 1963, Debord afirma que a sociedade da alienação já exerce
influência em boa parte das relações globais e reivindica a possibilidade de inverter
esse processo para que a sociedade pudesse exercer o controle de sua própria vida.
23

A mesma sociedade de alienação, controle totalitário e consumo passivo


espetacular reina em todos os lugares, apesar da diversidade de seus disfarces
ideológicos e jurídicos. A coerência dessa sociedade não pode ser entendida sem uma
crítica abrangente, iluminada pelo projeto inverso de uma liberdade criativa, um projeto
onde cada um possa controlar todos os níveis de sua própria história (DEBORD, 1963).

Para os situacionistas, uma sociedade alienada pelo espetáculo só poderia ter


esse caráter invertido em função de uma revolução que fornecesse a liberdade
necessária para uma gestão coletiva da própria vida em sociedade. Portanto, esse
período de elucubração do conceito de espetáculo e de críticas à sociedade da época
foi de grande valor para o amadurecimento político da IS.
Em 1967, além da veiculação usual de mais uma revista da Internacional
Situacionista (nesse caso, a de número onze), são lançados em paralelo dois livros,
fruto do pensamento de dois membros importantes do grupo: Raoul Vaneigem5 e Guy
Debord.
No livro de Vaneigem, A Arte de Viver para as Novas Gerações, o autor explora
como eixo central as questões pertinentes à vida cotidiana, traça uma condenação à
manipulação advinda da massificação do trabalho alienado e das tecnologias e
proclama ações que tornem a vida cotidiana interessante, criativa e espontânea
(VANEIGEM, 2002). Esse discurso, claramente alinhado com os ideais situacionistas,
também faz apologia à criação de situações, importante conceito descrito por Debord
no documento de fundação da IS.
A Sociedade do Espetáculo é o trabalho mais conhecido de Guy Debord. Nele
o autor esmiúça o já citado conceito do espetáculo, desdobrando-o em
aproximadamente duzentos comentários que elaboram uma teoria crítica do
espetáculo em suas diversas facetas. O texto descreve o espetáculo como a
consequência do modo capitalista de organização social, que passa a assumir novas
formas e conteúdo. Num dos comentários do livro, relativo ao capítulo A separação
consumada, Debord (1997, p. 25) argumenta: “o espetáculo é o capital em tal grau de
acumulação que se torna imagem”.

5
Raoul Vaneigem (1934), escritor e filósofo belga.
24

Em ambos os livros, os autores refutam a tese marxista da luta de classes, indo


além dela, argumentando que a libertação da situação de espetáculo não viria apenas
com o embate entre hierarquias, mas, sim, com uma profunda e contínua revolução,
de atitudes cotidianas. Enquanto Debord (1997, p. 141) o faz de maneira implícita nas
considerações sobre o espetáculo — “emancipar-se das bases materiais da verdade
invertida, eis no que consiste a autoemancipação de nossa época” —, Vaneigem
expressa de maneira intensa e direta:

Aqueles que falam de revolução e luta de classes sem se referirem explicitamente


à vida cotidiana, sem compreenderem o que há de subversivo no amor e de positivo na
recusa das coações, esses têm na boca um cadáver (VANEIGEM, 2002, p. 31).

É possível defender que ambos os textos, apesar de adicionarem valiosas


contribuições políticas e sociais, são derivados do pensamento teórico político
marxista6, que historicamente combatia a hegemonia do sistema capitalista. Além
disso, mais especificamente no caso d’A Sociedade do Espetáculo, são perceptíveis
as relações com os escritos de Georg Lukács7, filósofo húngaro, de conceitos
igualmente alinhados com o marxismo (JAPPE, 2008).
Desse modo, pode-se caracterizar a atitude anticapitalista situacionista como
um desenvolvimento da teoria política marxista, com o incremento de
posicionamentos ainda mais radicais de enfrentamento dos aspectos alienantes
característicos das sociedades onde vingaram os modernos meios de produção.

1.3 Contra o Funcionalismo

Segundo Bourriaud (2011, p. 39), a criação do modernismo se configura como


o surgimento de uma nova mitologia no campo da arte. No que compete ao âmbito da
arquitetura e do urbanismo, o surgimento dessa nova mitologia foi apreendido de uma
maneira mais racional e funcionalista, como afirma Françoise Choay (2003, p. 9): “o
espaço urbano é tratado conforme uma análise das funções humanas. Uma
classificação rigorosa instala em locais distintos o habitat, o trabalho, a cultura e o
lazer”.

6
Karl Marx (1818–1883), autor de O Capital e do Manifesto do Partido Comunista.
7
Georg Lukács (1885–1971), autor de História e Consciência de Classe
25

A prática do urbanismo consolidada na Europa durante a primeira metade do


século XX é chamada por Lamas (2004, p. 234) de urbanística formal. Segundo o
autor, a escola francesa teria influenciado profundamente a urbanística formal, tendo
como exemplo principal os traçados de Haussmann8, que atribuíram simplicidade e
praticidade ao planejamento das cidades.
Além das intervenções de Haussmann, a difusão e prática da urbanística formal
na Europa foi constituída por alguns outros planejadores de diversos países (LAMAS,
2004, p. 236). Como exemplo disso é possível citar alguns desses planejadores, como
Camillo Sitte e Otto Wagner, austríacos que criaram metodologias particulares na
concepção de habitações; Jean Forestier, Alfred Agache e Etienne de Gröer, que,
apesar de franceses, concretizaram diversas intervenções em Portugal; e Albert
Speer, alemão, cujos conceitos de urbanismo funcionalista se alinharam com os da
filosofia de crescimento nacional do Partido Nazista, tendo este se tornado arquiteto
-chefe do Terceiro Reich.

Figuras 3 e 4. Albert Speer, plano para Berlim; Otto Wagner, plano Grosstadt.

Ainda segundo Lamas (2004, p. 293), a urbanística formal poderia ser


relacionada de modo aproximado ao período entre as duas guerras mundiais, tendo
deixado uma filiação conceitual, a qual Lamas intitula de novo urbanismo. Após a
urbanística formal, um novo tipo de urbanismo começa a se desenvolver.

8
Georges-Eugène Haussmann (1809–1891), prefeito de Paris entre 1853 e 1870, autor do Plano de Paris.
26

Esse novo urbanismo, de grande racionalismo na composição dos espaços e


funcionalismo no planejamento, ficou conhecido historicamente como urbanismo
moderno ou modernista (KLEMEK, 2004). O urbanismo modernista adaptou as teorias
modernas, adequadas inicialmente ao campo da arte e da arquitetura, para o da
cidade. O funcionalismo relativo ao zoneamento de espaços exclusivos para
habitação, recreação, trabalho e circulação e ainda a defesa de edifícios de tipologia
moderna, altos e que ocupassem pouco espaço na quadra, constituem grande parte
da teoria urbanística da época.
As ideias e práticas do urbanismo modernista passam, portanto, a ser
discutidas nos CIAMs (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna). No
entanto, apesar de terem atingido seu auge durante as realizações desses congressos
e de terem produzido diversas propostas e documentos, foram poucos os projetos de
urbanismo modernista realmente executados (FRAMPTON, 1997). Uma das
personalidades expoentes nesse período é o arquiteto franco-suíço Le Corbusier, que,
conforme Lamas (2004, p. 337), exerce forte influência nesses congressos,
principalmente no intervalo que compreende os anos de 1933 a 1947.
A visão corbusiana sobre a arquitetura e o urbanismo é considerada até hoje
como um marco do período modernista de ambos os campos. De acordo com Choay
(2003, p. 183), os temas em torno dos quais se organizavam as cidades planejadas
por Corbusier se constituíam em: “classificação das funções urbanas, multiplicação
dos espaços verdes, criação de protótipos funcionais e racionalização do habitat
coletivo”. Ainda segundo Choay (2003, p. 184), as críticas de Le Corbusier e seus
companheiros, classificados pela autora como progressistas, incidiam principalmente
sobre a desordem e a insegurança das cidades da época e iniciaram uma defesa a
práticas de estandardização do urbanismo, como o conceito do homem de
necessidades-tipo e da apologia à máquina, solidificada por Le Corbusier em sua
distinta frase “a casa é uma máquina de morar” (1994, p. 205).
Por defender essa lógica de mecanização dos espaços, Le Corbusier recebeu
duras críticas. Segundo Frampton (1997, p. 191), o artista e crítico Karel Teige atacou
as concepções corbusianas com veemência, chegando a considerar os edifícios
projetados por Corbusier como “estritamente utilitários” e “verdadeiras máquinas”
(TEIGE, 1929 apud FRAMPTON, 1997, p. 192).
27

Figuras 5 e 6. Plan Voisin, Plano de Le Corbusier para Paris (1925).

No início dos anos 1950, ou seja, da segunda metade do século XX — período


contemporâneo ao surgimento da IS —, esse novo urbanismo, moderno, começa a
ser contestado por grupos e teóricos que também teciam censuras à teoria
funcionalista, como, por exemplo, os arquitetos do Team X9, que, segundo Jacques
(2003, p. 26), apesar de participarem dos CIAMs, já apontavam dentro destes o
declínio das proposições modernistas. Segundo Lamas (2004, p. 338), o Team X tem
sua consagração confirmada no ano de 1959, em Waterloo, quando se encerram
definitivamente os CIAMs.
Para os arquitetos do Team X, as relações humanas deveriam suplantar a
lógica funcional premeditada pela Carta de Atenas10. Uma distinta consideração de
um texto escrito por membros do grupo em 1953 demonstra a preocupação com a
identidade das cidades em contrapartida à concepção da urbanização racional:

“Pertencer” é uma necessidade emocional básica — suas associações são da


ordem mais simples. Do “pertencer” — identidade — provém o sentido enriquecedor da
urbanidade. A ruazinha estreita da favela funciona muito bem exatamente onde fracassa
com frequência o redesenvolvimento espaçoso (SMITHSON, 1968 apud FRAMPTON,
1997, p. 330, grifo do autor).

Em 1956, Pierre Francastel, historiador francês, também vai de encontro às


premissas urbanísticas modernas, em específico à teoria corbusiana, concebendo a
seguinte sentença: “o universo de Le Corbusier é concentracionário. [...] ninguém tem

9
Team X (ou Team 10) pretendia manter o espírito do CIAM através de uma revisão crítica.
10
Manifesto urbanístico resultante do IV CIAM, realizado em Atenas, 1933.
28

o direito de construir à força a felicidade de seu vizinho. A isso chama-se Inquisição”


(FRANCASTEL, apud LAMAS, 2004, p. 391).
Entretanto, os julgamentos mais intensos e avessos ao legado do modernismo
foram realizados pelos situacionistas (SADLER, 1999, p. 8). A IS acreditava que a
falta de conhecimento das motivações comportamentais dos cidadãos por parte dos
arquitetos e urbanistas os descredenciava a planejar moradias e espaços com
melhores condições de uso. Além disso, o grupo também era contra a predefinição
dos espaços das cidades, pois essa demarcação dependeria da vontade de cada um
e da coletividade, não podendo ser determinada por um planejador (JACQUES, 2003,
p. 19). Ainda sobre a herança do modernismo, os situacionistas afirmaram:

Suas contribuições positivas — a adaptação às funções práticas, inovação


técnica, conforto, a eliminação do ornamento — são banalidades atualmente. No entanto,
embora o seu campo de aplicação seja [...] estreito, isso não levou o funcionalismo a
adotar uma teórica modesta. A fim de justificar filosoficamente a extensão de seus
princípios de renovação para toda a organização da vida social, o funcionalismo tem se
relacionado, aparentemente sem nenhuma reflexão, com as doutrinas conservadoras mais
estáticas (e, ao mesmo tempo, tem-se congelado em uma doutrina inerte)
(INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1959, tradução nossa).

Em relação às diferenças entre as ideias da IS e as do Team X, Simon Sadler


argumenta que:

Claramente houve uma espécie de choque de filosofias, os situacionistas pedindo


aos arquitetos para renunciar suas visões majoritárias antes de mais nada, e o Team X
pedindo aos arquitetos para que estes pressionassem até que fossem descobertos os
próprios fundamentos do habitat (SADLER, 1999, p. 32).

Além de considerações negativas sobre o desenho urbano asséptico, a divisão


de funções, entre outras características do urbanismo modernista, ao qual eles
tratavam como urbanismo funcionalista, os situacionistas iniciaram também uma forte
crítica acerca de dois aspectos: o uso exacerbado dos automóveis e o trabalho como
consumidor de grande parte da vida cotidiana.
Na sua cartilha intitulada Posições Situacionistas sobre a Circulação, publicada
na terceira edição da revista da IS em 1959, Debord se contrapõe à possível
29

construção de vias expressas em Paris, declarando que “o rompimento da dialética


do meio social humano em favor dos automóveis [...] mascara sua irracionalidade sob
justificativas pseudopráticas”. Nesse mesmo texto, Debord lança mão das ideias de
Corbusier: “o tempo de transporte, como Le Corbusier observou, com razão, é um
trabalho excedente que, correspondentemente, reduz a quantidade de tempo livre”,
para posteriormente adicionar a visão situacionista de que os seres humanos
deveriam desperdiçar menos tempo com o fluxo cotidiano e mais tempo na construção
lúdica e coletiva: “devemos substituir os trajetos como um complemento para o
trabalho por trajetos como artifício de distração”.
Os situacionistas criticaram, portanto, a arquitetura e o urbanismo moderno
paralelamente à construção de um conceito completamente inovador em relação às
cidades e ao modo de vida. Nesse sentido torna-se oportuno o dito elaborado por
Jacques (2003, p.19): “enquanto os modernos acreditaram, num determinado
momento, que a arquitetura e o urbanismo poderiam mudar a sociedade, os
situacionistas estavam convictos de que a própria sociedade deveria mudar a
arquitetura e o urbanismo”.

1.4 Superação da Arte

A quebra de paradigmas relativos à concepção de arte foi a grande tônica de


diversos grupos no início do século XX. O panorama da arte na década de 1950,
período de incubação e nascimento da IS, era de grande efervescência teórica, mas
ainda em parte conservador. Segundo Archer (2001), no início da década de 1960 a
arte ainda era concebível, majoritariamente, no âmbito da pintura e da escultura.

As colagens cubistas e outras, a performance futurista e os eventos dadaístas


já haviam começado a desafiar esse singelo “duopólio” [...]. No entanto, ainda persistia a
noção de que a arte compreende essencialmente aqueles produtos do esforço criativo
humano que gostaríamos de chamar de pintura e escultura (ARCHER, 2001, p. 1).

Apesar do esforço por parte de algumas vanguardas artísticas da primeira


metade do século, como o movimento Dadá e o Surrealismo, que obtiveram
determinado sucesso na contestação de aspectos dogmáticos da arte, pode-se
considerar que o sistema artístico — ou num termo utilizado por Perniola (2009, p.
30

16), o establishment — tenha cooptado as ideias contestadoras de vanguarda e


anexando-as ao seu processo habitual de relações e à sua lógica de mercado.
Em contrapartida a esse cenário consideravelmente reacionário em que a arte
se deixava mergulhar é que surgem parte das considerações situacionistas. A IS e
seus membros buscavam romper substancialmente com o establishment artístico
vigente, o qual julgavam ser mais um dos elementos sociais a serviço da lógica do
capital (PERNIOLA, 2009, p. 16). Sendo assim, durante a primeira fase do movimento,
uma das preocupações principais era descortinar a realidade capitalista da arte. Para
tanto, o grupo distribuiu panfletos com conteúdo crítico em assembleias internacionais
de arte e publicou artigos que procuravam nortear modos de utilizar a arte como forma
de minar o próprio establishment, como Dentro e contra o Cinema, publicado no
primeiro periódico da IS, em 1958. Além disso, foi publicado, na revista número três
da IS, o texto intitulado O Significado de Decadência na Arte, onde os situacionistas
repreendem a crítica e produção moderna, insinuando que estas contribuem para a
lógica do espetáculo, e propõem mais uma vez que os artistas superem essa
produção, sem incorporar-se a ela ou negá-la, em virtude da abolição desse cenário.

O embaraço dos críticos modernistas é completado pelo constrangimento de


artistas modernos, a quem a decomposição acelerada em todos os setores impõe
constantemente a necessidade de analisar e explicar as suas hipóteses de trabalho [...].
Devemos nos mover em frente, sem anexar-nos a qualquer coisa, quer na cultura
moderna, quer na sua negação. Nós não queremos trabalhar para o espetáculo do fim do
mundo, mas para o fim do mundo do espetáculo (INTERNACIONAL SITUACIONISTA,
1959, tradução nossa).

O movimento surrealista também foi alvo de observações críticas situacionistas


em relação ao sistema artístico. A relação que a IS criara com as questões lúdicas da
vida previa a inserção destas no cotidiano, enquanto que a liberação surrealista dos
sonhos, do irreal e da magia se contrapunha a esse cotidiano factual, o que
colaboraria com a dicotomia vigente preconizada pelo sistema social da época.

Na medida em que continua a sustentar a oposição entre uma realidade concebida


como o âmbito no qual se exercita a eficácia racional e uma realidade concebida como o
âmbito onde se exprime a fantasia irracional, o Surrealismo sustenta o status quo
(PERNIOLA, 2009, p. 18).
31

O que os situacionistas propunham em contrapartida aos surrealistas era fundir


arte e vida cotidiana num mesmo fluxo, em que não se pudesse distinguir onde
começa um e termina outro. A IS pretendia, por conseguinte, erradicar as fronteiras
entre o tempo de diversão e o tempo de tarefa, reunindo-os num único momento,
numa única situação. Essa relação de rompimento com o establishment não tem a ver
apenas com as questões de regência do sistema artístico e com o capitalismo, mas
também com mudanças em relação à própria teoria da arte, aos valores e conteúdos
da produção realizada na época e à separação entre arte e vida cotidiana.
Segundo Sadler (1999, p. 1) “os situacionistas não queriam ser apenas mais
uma vanguarda, mas a última vanguarda, sepultando as práticas frequentes de
história, teoria, política, arte, arquitetura e vida cotidiana”. Com essa afirmação o autor
pretende destacar o tamanho da singularidade e pretensão da teoria situacionista. Ao
se lançar como a última vanguarda, a IS pretendia deturpar completamente os
preceitos e as relações com os movimentos anteriores no intuito de transformar não
apenas a arte em sua teoria, mas também as relações em sociedade.

Figura 7. Ação artística situacionista. Cartazes com os dizeres: “Transposição da arte” e “Realização da Filosofia”.

Perniola (2009, p. 20) conceitua a “superação da arte” como um dos elementos


de maior destaque na teoria situacionista. A tentativa da IS de sobrepujar o âmbito
artístico denotava igualmente uma forma de ampliação do campo da arte. Conectar
de forma indissociável as práticas humanas subjetivas com a práxis vital traria consigo
um admirável acréscimo de conhecimento sobre a própria vida e suas relações. Nas
32

palavras de Debord (1957): “uma ação revolucionária na cultura não pode ter por
finalidade traduzir ou explicar a vida, mas deve expandi-la”.
A diferença da IS em relação às vanguardas previamente reconhecidas se
evidencia inclusive no posicionamento do grupo frente aos próprios conceitos e
denominações. O fato do grupo decidir usar uma sigla como alcunha em vez dos
“ismos” recorrentes demonstra a lógica antidogmática. “Não existe situacionismo, o
que significaria uma doutrina de interpretação dos fatos existentes”
(INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1958). Os situacionistas criam, portanto, que
não havia situacionismo, mas uso ou interpretação situacionista da sociedade.
Com os seguintes objetivos traçados, a IS delineou como objetivo a
experimentação contínua de seus procedimentos: “Propomos uma pesquisa
experimental a ser efetuada coletivamente em algumas direções que definimos neste
momento e em outras, a serem ainda definidas. [...] Nossas hipóteses de trabalho
serão reexaminadas a cada transformação futura, venha de onde vier” (DEBORD,
1957). A partir de então e posteriormente, com a continuidade de publicações
periódicas e ações urbanas, a IS desenvolveu uma série de métodos de atuação que
visavam revolucionar a cultura vigente.

1.5 Métodos de Ação

Como dito anteriormente, a primeira fase de duração do movimento (1957–


1962) foi um período de conceituações predominantemente artísticas. Os conceitos
criados pelos situacionistas suscitaram novas possibilidades de intervenção tanto no
contexto urbano quanto no contexto comunicacional. Esse fato gerou, por parte dos
situacionistas, um clima de experimentação que culminou na eleição de alguns
métodos de procedimento.
Alguns dos métodos elencados foram utilizados para a subversão de ideias
publicitárias, em consonância com a lógica anticapitalista. Outros métodos tiveram
maior relação com o contexto urbano. Com a experimentação de alguns desses
métodos no domínio da cidade, também foi apresentada a possibilidade de realização
de ações cujos caráteres se assemelham a hipóteses metodológicas, algumas em
maior, outras em menor grau de concretização.
33

Em relação às hipóteses e projeções, podem-se destacar a busca situacionista


pelo denominado urbanismo unitário e ainda a ideia-chave do grupo, que influenciou
inclusive sua nomeação, a situação construída. Além disso, podem ser citados como
técnicas mais famosas o desvio (ou détournement), a psicogeografia e a deriva. Os
processos situacionistas e seus respectivos objetivos serão elencados a seguir, com
exceção apenas da psicogeografia e da deriva, que em virtude da sua importância
para a pesquisa, serão abordadas no segundo capítulo, à parte.

1.5.1 A Pintura Industrial

A pintura industrial é fruto majoritariamente das ações do já citado pintor italiano


e situacionista Giuseppe Pinot-Gallizio, que participara anteriormente do MIBI. Pinot-
Gallizio produzia rolos de tela pintados com pistolas e resina, feito com o intuito de
cobrir grandes extensões e ambientes da cidade (JAPPE, 2011, p. 196). Era, portanto,
uma ironia ao sistema de desenho industrial, pois na verdade o artista não produzia
pinturas em série, mas modelos únicos de rolos de tela pintados manualmente. “Os
rolos de tela resultantes eram descritos como industriais por causa da escala, e não
por seu processo de produção” (HOME, 1999, p. 58). A intenção dos situacionistas,
com a pintura em grande escala, era a de cobrir grandes espaços e até ruas inteiras
(GROSSMAN, 2006, p. 53-54), desviando, assim, o aspecto das ambiências do local,
como no caso da exposição Caverna da Antimatéria, onde as paredes de um museu
foram cobertas por pinturas industriais.

Figura 8. Caverna da Antimatéria - Giuseppe Pinot-Gallizio (1958–1959).


34

Assim como arquitetos racionalistas do entreguerras tinham cobiçado a produção


em massa como uma metáfora para revolucionar a produção de edifícios, os
situacionistas, agora, atentavam para a produção em massa da arte para revolucionar a
produção do espaço (SADLER, 1999, p. 37, tradução nossa).

A pintura industrial era, portanto, uma ação que lançava mão da ideia de
automatismo pictórico ao mesmo tempo em que era artesanal, além de propor uma
reinvenção dos espaços pensados para sua aplicação. Ela se enquadra como mais
uma estratégia situacionista de reestruturação do elo entre arte e vida cotidiana e
como uma proposição de ações de cunho lúdico e ativista na cidade, como afirma o
próprio Pinot-Gallizio em seu Discurso sobre a Pintura Industrial e uma Arte Unitária
Aplicável:

Quando milhares de pintores que hoje trabalham em detalhes nonsense


adquirirem as possibilidades oferecidas pelas máquinas, não haverá mais carimbos
gigantes, chamados de pinturas, para satisfazer o investimento de valor, mas quilômetros
de tecido oferecidos nas ruas, nos mercados, por permuta, permitindo a milhões de
pessoas apreciar e estimular a experiência de seus arranjos (PINOT-GALLIZIO, 1959).

1.5.2 Détournement

O détournement, ou “desvio de elementos estéticos pré-fabricados”


(INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1958), foi um dos métodos situacionistas mais
importantes, principalmente no período de início da circulação de ideias do
movimento, dada a sua característica essencialmente propagandista. A técnica
permitiu aos situacionistas a reprodução de suas ideias de uma forma artística e
publicitária, mas ao mesmo tempo controversa e irônica em relação aos dois campos.
Produto da Internacional Letrista, movimento antecedente à IS, o texto
intitulado Um Guia Prático para o Desvio, lançado em 1956, é um dos registros que
melhor esclarece o conceito. Segundo Guy Debord e Gil J. Wolman, autores do
documento: “a interferência mútua de dois mundos sensíveis, ou a união de duas
expressões independentes, supera os elementos originais e produz uma organização
sintética de grande eficácia” (DEBORD; WOLMAN, 1956). O que os até então letristas
defendiam nessa frase era a interferência estética em obras de arte já realizadas e
35

conhecidas, de forma que o produto dessa intervenção gerasse um resultado de


interesse artístico e potência revolucionária.
Segundo Perniola (2009, p. 28), o valor do desvio “consiste no fato de que, por
meio dele, objetos e imagens estritamente ligados à sociedade burguesa [...] são
subtraídos de seu destino e postos em contexto qualitativamente diverso, em uma
perspectiva revolucionária”. Sendo assim, o détournement se configura como uma
ação transformadora de artefatos de modo a deturpar sua condição espetacular,
modificando-se em agente da revolução cotidiana.
Apesar de ter sido concebida primordialmente em referência à deturpação de
elementos artísticos, a noção de détournement pode ser transposta, de modo
aproximado, para o âmbito urbano. Em relação à questão do desvio de elementos na
cidade, o texto de Debord e Wolman também tece considerações:

Se o desvio fosse estendido às realizações urbanísticas, poucos ficariam


insensíveis à reconstrução exata de toda uma vizinhança de uma cidade em outra. A vida
é sempre um labirinto: desviá-la dessa maneira a tornaria verdadeiramente bela
(DEBORD; WOLMAN, 1956).

O desvio, portanto, atuaria como elemento de auxílio à lógica de encarar a


cidade enquanto labirinto de jogos e realizações. Lógica esta da qual também fazem
parte os métodos de investigação afetiva das cidades e as hipóteses de intervenções
urbanas que promovessem a aproximação da arte à práxis vital.

1.5.3 Situação Construída

Descrita pela própria IS como um “momento da vida, concreta e


deliberadamente construído pela organização coletiva de uma ambiência unitária e de
um jogo de acontecimentos” (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1958), a
construção de situações é periodicamente relembrada pela organização em seus
escritos como uma forma de transformar as condições urbanas e sociais
estabelecidas pela lógica capitalista e burocrática.
Segundo Perniola (2009, p. 26), o conceito pode ser observado sob a
perspectiva psicológica, técnico-urbanística e existencial. Em relação ao último termo,
o autor destaca que a situação construída é uma composição de aspectos tanto
36

individuais quanto coletivos no espaço-tempo e valoriza o conceito como uma ação


efetiva para que se consiga exceder a arte, além de destacar o caráter indeterminável
do seu tempo de existência:

A situação seria uma superação da arte, nela se manifestaria plenamente aquela


abundância de energias vitais que é constrangida e reificada pela própria existência de um
produto artístico, de uma obra de arte. [...] se diferencia tanto do instante irrepetível quanto
do momento repetível: é quase impossível determiná-la exatamente, distinguindo seu
início e seu fim (PERNIOLA, 2009, p. 27).

Ao tratar da construção de situações, Sadler (1999, p. 105) avalia a ideia como


uma ambição admirável e relaciona-a com a expressão Gesamtkunstwerk, conceito
estético oriundo do Romantismo alemão, referente à reunião de vários tipos de arte
numa obra de arte única, total. Ainda segundo Sadler (1999, p. 105), “cada situação
construída proporcionaria uma decoração e ambiente de tal poder que estimularia
novos tipos de comportamento”.
Tanto Sadler como Perniola relacionam a construção de situações a uma visão
comunista de momento. Sadler (1999, p. 105) lembra que Lefebvre11, em seu texto
publicado no ano de 1965, intitulado La Proclamation de la Commune, relata a
existência de algo aproximado a uma “situação” em seus estudos sobre a Comuna de
Paris. Perniola vai mais a fundo ao considerar o conceito de situação construída como
uma ferramenta de transição para uma sociedade sem classes: “O conceito de
situação parece, às vezes, designar um instrumento operativo intermediário entre a
vida alienada e a sociedade sem classes, outras vezes, enfim, a sociedade comunista
efetivamente realizada” (PERNIOLA, 2009, p. 28).
A construção de situações foi, apesar da carga poética em sua conceituação,
de suma importância para a solidificação dos preceitos situacionistas. Com sua
característica de grande transformação do contexto urbano e social, as situações
construídas faziam parte do plano da IS, que, junto com outros métodos
desenvolvidos, visava implementar uma nova forma, igualmente revolucionária, de
urbanismo: o urbanismo unitário.

11
Henri Lefebvre (1901–1991), filósofo e sociólogo francês.
37

1.5.4 Urbanismo Unitário

Os planos situacionistas para as grandes cidades apontavam primordialmente


para um novo modelo de disposição civil, o urbanismo unitário (UU). A construção de
situações, a deriva e a psicogeografia seriam instrumentos indispensáveis nessa nova
lógica de cidade. De acordo com Sadler (1999, p. 117, tradução nossa), “os
situacionistas vislumbraram uma cidade constituída de situações grandiosas, entre as
quais os habitantes iriam derivar, interminavelmente”.
O UU seria o estágio no qual os métodos de experimentação da cidade e a
criação de situações estariam tão aprimorados que as cidades passariam a traduzir-
se fisicamente numa dinâmica de constante mutação.

O urbanismo unitário não aceita a fixação das cidades no tempo. Induz, ao


contrário, à transformação permanente, a um movimento acelerado de abandono e de
reconstrução da cidade no tempo e, ocasionalmente, também no espaço
(INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1959).

O conceito apresentado previa uma sociedade cuja experiência coletiva de


cidade pautasse de forma fundamental as relações sociais, ideia muito distante da
lógica tradicional da sociedade baseada nas relações capitalistas. “Na cidade do
urbanismo unitário, no entanto, as dinâmicas urbanas não seriam mais dirigidas pelo
capital e pela burocracia, mas pela participação” (SADLER, 1999, p. 117).
Perniola (2009, p. 24) corrobora esse argumento quando afirma que o
funcionalismo se preocupa “somente com idoneidade dos meios em relação aos fins”,
e acrescenta que a ideia improdutiva de felicidade do funcionalismo se articula em
apenas duas frentes: “a circulação dos automóveis e o conforto da casa”.
Igualmente descrito na revista IS n. 1 enquanto um “conjunto de artes e técnicas
que concorrem para a construção integral de um ambiente em ligação dinâmica com
experiências de comportamento” (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1958), o UU,
baseado na combinação de técnicas e procedimentos artísticos anticapitalistas, seria,
portanto, o elemento principal da ação situacionista contra a sociedade do espetáculo.
Entretanto, algumas questões a respeito disso podem ser ponderadas.
Tendo em vista a utilização de métodos e uma teoria de crítica tão específica,
além de atribuições consideravelmente limitadas, os situacionistas estariam se
38

aproximando de um racionalismo prático próprio do funcionalismo modernista. Ou


seja, se a intenção principal do movimento era de subjugar a lógica capitalista e
espetacular da sociedade, planejar esse processo num formato predeterminado de
urbanismo poderia ser considerado um ato de reenclausuramento de ideias.
Controverso ou não, esse tipo de raciocínio radical, sobretudo por parte de Guy
Debord, principal liderança do grupo, chegou a levar à expulsão do situacionista
Constant12, inventor do projeto Nova Babilônia. Nova Babilônia consiste numa
megaestrutura criada por Constant como um projeto artístico e especulativo, inspirada
no design experimental difundido nas décadas de 1950 e 1960 (SADLER, 1999, p.
127), que, segundo o autor, serviria como base para a implementação do UU.
A estrutura de Nova Babilônia seria apta a variações modulares de acordo com
o desejo de seus habitantes e própria para o exercício das diversas práticas
situacionistas. Contudo, segundo Debord, por se tratar de uma proposição
arquitetônica, o projeto de Constant limitava as questões primárias do UU, que seriam
a participação coletiva no planejamento das cidades e a liberdade orgânica e formal
dessa organização (DEBORD, 1959). Mesmo depois de sua saída da IS e da
divergência com Debord, Constant continuou seu trabalho de especulação sobre Nova
Babilônia (SADLER, 1999, p.123), concedendo-lhe forma visual e aprimorando seus
conceitos de experiência coletiva de cidade.
O UU se apresenta, portanto, como a proposta situacionista de revolução total
da vida cotidiana; nesse estado de sociedade, os situacionistas atingiriam seu objetivo
máximo, o de “não separar a utilização lúdica e direta da cidade, coletivamente
sentida, do urbanismo como construção” (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1959).
E ainda seria no âmbito do UU que os conceitos situacionistas se realizariam e se
desenvolveriam em sua plenitude.

Os jogos e emoções reais nas cidades atuais são inseparáveis do projeto do UU,
como mais adiante as realizações do UU não deverão estar separadas dos jogos e
emoções que nascerem dessa realização (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1959).

Apesar de majoritariamente concebidos e aprimorados pela IS, os conceitos de


deriva, psicogeografia e situação construída — aplicações na cidade para a

12
Constant Nieuwenhuys (1920–2005), mais conhecido como Constant, pintor, escultor e arquiteto holandês.
39

constituição do urbanismo unitário — têm suas raízes advindas de experiências


urbanas de tempos anteriores ao movimento, com os quais os situacionistas em
muitos casos negaram relações. Os próprios movimentos de vanguarda anteriores à
IS tanto no teatro, na literatura quanto em outros segmentos artísticos com tendência
à crítica social, principalmente nas grandes cidades europeias, tiveram influência na
construção do pensamento situacionista sobre as cidades.
As concepções urbanas situacionistas estão, desse modo, embasadas num
lastro histórico de experimentações, teorias e bibliografias que já traziam consigo
elementos análogos no combate contra uma sociedade racionalista e burocrática,
sendo, portanto, inegável o impulso dos movimentos de vanguarda e afins para o
caminho situacionista. Um grande exemplo disso foi a considerável influência, por
parte principalmente dos movimentos dadá e surrealista, na construção de dois dos
conceitos principais da IS: a deriva e a psicogeografia.
40

2 DERIVA E PSICOGEOGRAFIA
41

2.1 A Herança Londrina e o Flâneur Parisiense

Londres foi a primeira concretização urbana da revolução industrial, e a


literatura inglesa do século XIX mostra a tomada de consciência dos problemas de
atmosfera e das possibilidades qualitativamente diferentes numa grande aglomeração
(INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1959).

Apesar de não terem sido citadas de modo periódico e veemente nas


publicações do movimento, as influências acerca do pensamento situacionista podem
ser notadas em diversas frentes de produção artística e teórica. Naturalmente, as
associações entre teorias anteriores à IS e em afinidade com a mesma, realizadas por
estudiosos e acadêmicos interessados, foram sendo desenvolvidas e tomando corpo
em tempo posterior ao encerramento do grupo.
A alusão à Londres é um dos poucos registros, por parte do grupo, que denotam
reconhecimento de qualidade e ideias afins concernentes a um tipo de movimento
anterior. Essa referência não é por acaso. Segundo o escritor britânico Merlin Coverley
(2010, p. 11), a construção do conceito de psicogeografia decorre de uma série de
fatores, os quais estão predominantemente associados à história de duas grandes
cidades europeias.
Em seu livro intitulado Psicogeografia, o escritor e editor Merlin Corveley busca
elucidar quais elementos sociais e artísticos contribuíram para o desenvolvimento do
termo situacionista. Com relação ao conceito em si pode-se expor que o autor encara
o significado da psicogeografia de forma abrangente, descrevendo a expressão como
“uma ferramenta de tentativa de transformação da vida urbana, inicialmente de
proporções estéticas, mas posteriormente utilizada cada vez mais para fins políticos”
(COVERLEY, 2010, p. 10).
Coverley divide o livro em quatro capítulos, sendo o primeiro capítulo dedicado
à capital inglesa e o segundo à capital francesa. Em ambos os capítulos, o autor
descreve variados artistas, escritores, figuras públicas e até fictícias relacionadas a
um comportamento marginal, irreverente e explorador em relação ao panorama
urbano.
42

2.1.1 Londres

Ao tratar da influência londrina na evolução do pensamento psicogeográfico,


Coverley destaca principalmente autores e poetas literários, com exceção de um
arqueólogo. O primeiro autor que ele relaciona como iniciante da lógica
psicogeográfica é Daniel Defoe13: “Defoe é o primeiro escritor a oferecer uma visão
de Londres baseada em sua própria e peculiar topografia imaginária” (COVERLEY,
2010, p. 35). Defoe é autor de um dos maiores romances da história ocidental,
Robinson Crusoé. Segundo Coverley (2010, p. 36), ao escrever sua obra-prima em
1719, Defoe “introduz um personagem que tem influenciado tanto o romance quanto
a literatura de psicogeografia desde então”.
O segundo escritor lembrado por Coverley é William Blake14, considerado por
Ian Sinclair15 o “Padrinho da Psicogeografia” (COVERLEY, 2010, p. 32). De acordo
com Coverley (2010, p. 40), a relação de Blake com a Londres da época se tornou tão
intensa a ponto de ser indivisível. Sobre essa estreita relação de Blake com Londres,
Coverley destaca uma frase de Peter Ackroyd16, autor da biografia de Blake, que
indica uma grande afinidade do poeta com a lógica psicogeográfica. Segundo Ackroyd
(1995, p. 20 apud COVERLEY, 2010, p. 40), “Blake possuía um fortíssimo sentido de
lugar e, por toda sua vida, ele foi profunda e variadamente afetado por áreas
específicas de Londres”.
O terceiro autor em destaque é Thomas de Quincey17, ao qual Coverley se
refere como o primeiro efetivo praticante da psicogeografia (2010, p. 42). De Quincey
foi durante boa parte de sua vida viciado em ópio, não por acaso, uma de suas obras
mais famosas é sua autobiografia Confissões de um Comedor de Ópio, de 1821.
Esses fatos elucidam como De Quincey levava uma vida de tendência boêmia e
marginal.

As viagens movidas a narcótico através da Londres de De Quincey em sua


juventude parecem capturar exatamente um estado de deriva sem rumo e observação
distante que viriam a se tornar as marcas da deriva situacionista por volta de cento e
cinquenta anos depois (COVERLEY, 2010, p. 42, tradução nossa).

13
Daniel Defoe (1660–1731), escritor e jornalista londrino.
14
William Blake (1757–1827), poeta, tipógrafo e pintor londrino.
15
Ian Sinclair (1943), escritor e cineasta britânico, psicogeógrafo contemporâneo.
16
Peter Ackroyd (1949), romancista, biógrafo e crítico literário londrino.
17
Thomas de Quincey (1785–1859), jornalista e escritor britânico.
43

Em pleno século XIX, Blake e De Quincey poetizavam Londres de acordo com


os aspectos afetivos aos quais a cidade lhes submetia. Foram, deste modo, iniciantes
na arte de deambular pela cidade e apreender seus aspectos subjetivos, e
influenciadores de posteriores autores e estudiosos.
Robert Louis Stevenson18 e Arthur Machen19 são outros dois autores citados
por Coverley. Esse destaque se dá por conta da relação de ambos com o imaginário
gótico de Londres. Ao tratar de Stevenson, Coverley sobressai a influência exercida
pelo cenário gótico londrino sobre o autor:

Fica claro para mim que são os sonhos e pesadelos de Stevenson que têm
proporcionado a imagem mais duradoura da cidade, inspirado toda uma tradição da
Londres gótica e estabelecido uma irreal, porém eterna, paisagem que colore eternamente
nossa experiência de cidade (COVERLEY, 2010, p. 47, tradução nossa).

Em relação a Machen, Coverley (2010, p. 50) salienta o fato do escritor ter


montado uma trajetória de deambulações que escaparam da lógica exploratória do
centro de Londres, partindo para uma investigação nas quadras dos subúrbios. Ao fim
das considerações sobre Machen, Coverley reafirma o valor da influência do galês
para a posteridade: “Machen aponta o caminho para a atual geração de
psicogeógrafos demonstrando como eles podem explorar os limites exteriores e
anônimos de Londres” (COVERLEY, 2010, p. 50, tradução nossa).
O último autor citado por Coverley relacionado a Londres é Alfred Watkins20.
Watkins é artífice da teoria intitulada de Ley Lines, conceito relativo a alinhamentos
geográficos de caráter histórico, podendo ser relacionado a significados ocultos e
religiosos. O que Coverley avalia como elemento interessante do pensamento de
Watkins é o fato do arqueólogo ter aberto o leque referente a questões pouco claras
sobre forças e sensações que determinados lugares exercem sobre as pessoas.
Segundo Coverley (2010, p. 54, tradução nossa): “A noção original de Watkins reflete
a reinterpretação da própria psicogeografia, que tem sido (...) distanciada de suas
origens”.

18
Robert Louis Stevenson (1850–1894), escritor, poeta e roteirista de viagem escocês radicado na Inglaterra.
19
Arthur Machen (1863–1947), escritor e jornalista galês radicado na Inglaterra.
20
Alfred Watkins (1855–1935), escritor, arqueólogo autodidata, antiquário, fotógrafo e empresário britânico.
44

Apesar da grande preponderância de personagens londrinos, os primeiros


estágios do conceito de psicogeografia não se resumem apenas à capital inglesa.
Como grande centro urbano da Europa, Paris também foi palco de personagens e
ações de importante conteúdo para o desenvolvimento de intervenções qualitativas e
subjetivas na cidade e, consequentemente, para o desenvolvimento do conceito de
psicogeografia, ideia-chave do pensamento urbano situacionista.

2.1.2 Paris

O elemento principal da influência de Paris em relação à psicogeografia foi o


flâneur. O flâneur é um termo utilizado para descrever um tipo de personagem urbano
existente na Paris do século XIX. A palavra representa a fusão aproximada de termos
como: andarilho, vagabundo, boêmio, indolente, entre outros (SHAYA, 2004). Por fim,
o que a expressão tenta caracterizar é a representação de um personagem que
vagueia pelas ruas das cidades e não possui as preocupações habituais de um
cidadão submetido às demandas morais e sociais comuns.
Segundo Coverley (2010, p. 58), as primeiras descrições do termo na literatura
são provenientes dos escritores Charles Baudelaire21 e Walter Benjamin22. Ambos os
autores tratam do conceito embasados primordialmente por um texto do escritor Edgar
Allan Poe23, O Homem da Multidão. A obra, criada por Allan Poe em 1840, retrata a
explosão da modernidade europeia através de um personagem anônimo que
persegue um homem pelas ruas de Londres.
Sobre o flâneur preconizado ficcionalmente por Allan Poe, Coverley faz o
seguinte comentário: “o andarilho cujos movimentos transformam seu ambiente
fornece uma ligação com uma tradição perdida, que recupera a cidade como local de
experimentação política e estética” (COVERLEY, 2010, p. 59, tradução nossa).
As concepções teóricas de Baudelaire e Benjamin acerca do flâneur, apesar de
análogas, possuem suas particularidades. O flâneur retratado por Baudelaire
corresponde a uma figura idealizada num cenário igualmente idealizado, que se
relaciona a todos os habitantes de alguma maneira, mas que, ao mesmo tempo, não
representa nenhum deles de forma concreta (COVERLEY, 2010, p. 61).

21
Charles Baudelaire (1821–1867), ensaísta, crítico de arte, tradutor e poeta francês.
22
Walter Benjamin (1892–1940), ensaísta, crítico literário, filósofo e tradutor alemão.
23
Edgar Allan Poe (1809–1849), autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense.
45

Por outro lado, sobre o posicionamento de Benjamin em relação ao flâneur é


possível afirmar que, apesar de compartilhar dos aspectos lúdicos descritos por
Baudelaire sobre o personagem, o escritor alemão o descreve como mais um
elemento da cadeia funcionalista da sociedade industrial, tal qual exposto por
Coverley (2010, p. 64, tradução nossa): “em meio a processos invisíveis da sociedade
industrial, o flâneur é reduzido a pouco mais que um dente da catraca, uma automação
regida pelas pressões de uma multidão selvagem, tanto herói do modernismo quanto
sua vítima”.
Em última análise, Coverley (2010, p. 65) descreve o flâneur como uma figura
composta de vários sinônimos: vagante, detetive, explorador, dândi24 e andarilho são
exemplos de adjetivos que podem ser relacionados ao personagem. Entretanto,
segundo o autor, “dentro desses muitos e frequentemente contraditórios papéis, sua
característica predominante é a maneira como ele faz das ruas sua casa; esse é o
seu verdadeiro legado para a psicogeografia” (COVERLEY, 2010, p. 65, tradução
nossa).
As considerações literárias de Baudelaire e Benjamin por Paris e de Blake e De
Quincey por Londres formam um esboço e contam uma história das primeiras formas
de deambulação afetiva na cidade. Em seguida a esse princípio de ação experimental
urbana, tiveram início, no começo do século XX e também nas cidades citadas,
algumas atitudes realizadas por movimentos de vanguarda que procuraram
desenvolver de forma artística a investigação e atuação no âmbito da cidade.

2.2 Passeios Dadaístas e Surrealistas

No dia 14 de abril de 1921, em Paris, às três da tarde e sob um dilúvio torrencial,


os membros do movimento dadá encontraram-se em frente à igreja de Saint-Julien-le-
Pauvre. Com essa ação, pretendem inaugurar uma série de excursões urbanas aos
lugares banais da cidade (CARERI, 2013, p. 71).

Por seu caráter cultural efervescente e com uma geografia urbana


extremamente rica, Paris também foi palco do surgimento de variados movimentos

24
Dândi, figura comum ao fim do séc. XVIII e início do séc. XIX; homem de bom gosto, senso estético e passatempos
refinados, mas não necessariamente pertencente à nobreza (Oxford English Dictionary. Oxford University Press, 1989).
46

artísticos, dentre os quais, dois se destacam pela sua posterior influência no


pensamento urbano situacionista.
Os movimentos dadaísta e surrealista foram as primeiras organizações
artísticas dispostas a dar início a um tipo de investigação urbana da cidade enquanto
prática estética. Aos passeios por Paris foram incorporadas, de maneira progressiva,
ações artísticas e políticas que combatiam a visão estagnada da arte moderna e do
modelo social presente. “Para os dadaístas, a frequentação e a visita aos lugares
insossos são uma forma concreta de realizar a dessacralização total da arte, a fim de
alcançar a união entre arte e vida, entre sublime e cotidiano” (CARERI, 2013, p. 74).

2.2.1 A Influência Dadaísta

O movimento dadá se colocou, deste modo, no papel de desenvolver as


práticas antes perpetradas pelo flâneur, tratando a própria cidade como um organismo
estético a ser descoberto. Com relação às ações dadaístas, o arquiteto e
psicogeógrafo contemporâneo Francesco Careri25, em seu livro Walkscapes: o
Caminhar como Prática Estética, destaca que, apesar de Duchamp26 ter proposto, em
1917, o ready-made27 de um edifício inteiro em Nova York, os dadaístas fizeram algo
muito mais revolucionário na ação em Saint-Julien-le-Pauvre, pelo fato de que a
própria possuía a finalidade de “contestar abertamente as tradicionais modalidades
de intervenção urbana” (CARERI, 2013, p. 75).
O grupo anunciou em jornais o comunicado do evento, convidando os
interessados a participar e destacando o passeio como uma “nova forma de
interpretação da natureza aplicada não à arte, mas à vida” (CARERI, 2013, p. 76).
Segundo Careri (2013, p. 77), durante o percurso os dadaístas fizeram leituras de
textos do dicionário Larousse ao acaso, entregaram presentes e tentaram mudar a
trajetória dos transeuntes nas ruas. Ainda de acordo com Careri (2013, p. 75), o
passeio dadá foi de grande contribuição para o desenvolvimento da linguagem da arte
urbana por representar a “primeira operação simbólica que atribuiu valor estético a um
espaço vazio, e não a um objeto”.

25
Francesco Careri (1966), arquiteto italiano, professor do Departamento de Estudos Urbanos - Università degli Studi Roma Ter.
26
Marcel Duchamp (1887–1968), pintor, escultor e poeta; artista modernista precursor do ready-made.
27
Ready-made, estratégia de uso e ressignificação de objetos industrializados em âmbito artístico.
47

Figura 9. Chamada para o evento dadaísta do dia 14 de abril de 1921.

O Dadaísmo deu início, deste modo, à exploração das banalidades urbanas de


uma forma extremamente inovadora. De acordo com o intuito do próprio movimento
— contestar as formas de arte realizadas até o momento — os dadaístas
perambularam pela cidade não apenas com o objetivo de intervir em lugares
específicos, mas de analisá-la como um artefato artístico.
A caminhada do grupo sem deixar indícios pela cidade, apenas com a
finalidade de experimentá-la, além de se contrapor à lógica das clássicas modalidades
de intervenção artística urbana, distanciava-se enormemente do caráter funcionalista
do urbanismo modernista e suas pretendidas operações por considerar a cidade como
um lugar de compreensão, e não de remodelação. “Com a exploração do banal, o
dadá dá início à aplicação das pesquisas freudianas do inconsciente da cidade, tema
que será desenvolvido a seguir pelos surrealistas, pelos letristas e pelos
situacionistas” (CARERI, 2013, p. 77).

2.2.2 A Incursão Surrealista

“A prática surrealista do automatismo, na qual ao inconsciente foi dado rédea


livre, não se limitou apenas à escrita automática, mas se estendeu, também, à
caminhada” (COVERLEY, 2010, p. 74).
48

O movimento surrealista publica seu primeiro manifesto em 1924, entretanto é


possível argumentar que o surgimento do grupo data de 1918 (COVERLEY, 2010, p.
72), quando seus dois principais membros se conhecem: André Breton28 e Louis
Aragon29. Ambos são descritos por Coverley (2010, p. 73) como não cumpridores de
planos e adeptos de um estilo digressivo, fruto imperativo de uma Paris do início do
século XX — na qual as ruas eram palco de boemia, prostituição — e vagabundos
sem rumo.
É nesse cenário que os surrealistas iniciam suas experimentações urbanas, as
quais, apesar da posterior crítica de Guy Debord, foram de grande importância para a
construção das máximas urbanas da IS. “A causa do fracasso ideológico do
Surrealismo é ter acreditado que o inconsciente era a grande força, enfim descoberta,
da vida” (DEBORD, 1957).
Pelo início da década de 1920, Breton e Agaron, que também haviam
participado das andanças dadaístas, incorporaram o mecanismo desse tipo de ação,
adicionando a ele a lógica surrealista do automatismo psíquico. Na primeira ação
urbana surrealista, um grupo formado por quatro membros “decide partir de Paris para
chegar de trem a Blois, uma pequena cidade escolhida ao acaso sobre um mapa, e
daí seguir a pé até Romorantin” (CARERI, 2013, p. 78).
O resultado dessa ação dos partidários do Surrealismo rendeu um texto escrito
por Breton, que viria a reverberar, posteriormente, no próprio manifesto do movimento.
Destaque para a concepção desse primeiro passeio, relatado em entrevista, por André
Breton:

Todos estávamos de acordo, então, em considerar que há uma grande aventura


a ser realizada. “Abandonem tudo [...] Partam pelas ruas”: era o motivo das minhas
exortações naquele período. Mas por quais ruas partir? Pelas ruas materiais, era pouco
provável; pelas ruas espirituais, nós mal as víamos. Restava o fato de nos ter vindo a ideia
de combinarmos esses dois tipos de rua (PARINAUD, 1952 apud CARERI, 2013, p. 79).

Os surrealistas, portanto, se utilizaram das deambulações para atingir um


estado específico de consciência, no qual as relações psíquicas e espirituais do
transeunte entravam em consonância com os aspectos do ambiente definido. Essa

28
André Breton (1896–1966), escritor e poeta francês.
29
Louis Aragon (1897–1982), escritor e poeta francês.
49

lógica de contato com o inconsciente por intermédio de passeios foi de grande


importância para o desenvolvimento das posteriores experiências letristas e
situacionistas.

Em decorrência da guerra, as ruas foram radicalizadas como nunca, e a mudança


revolucionária estava no ar. Se o andarilho urbano dava continuidade ao seu caminhar
sem rumo, consequentemente o próprio ato de andar tinha de se tornar subversivo, um
meio de reconquistar as ruas para o pedestre. A psicogeografia estava prestes a nascer
(COVERLEY, 2010, p. 77).

2.3 Os Conceitos

Desde até mesmo antes da fundação da IS, alguns dos grupos que a originaram
já discutiam práticas e comportamentos antiespetaculares que prezavam por uma
aproximação do indivíduo com a cidade. Em 1954 o próprio Debord, juntamente com
Jacques Fillon, escreve um texto para a revista Potlatch em que preconiza essas
ações no âmbito urbano.

As grandes cidades são favoráveis à distração que chamamos de deriva. A deriva


é uma técnica de andar sem rumo. Ela se mistura à influência do cenário. Todas as casas
são belas. A arquitetura deve se tornar apaixonante. Nós não saberíamos considerar tipos
de construção menores. O novo urbanismo é inseparável das transformações econômicas
e sociais felizmente inevitáveis (DEBORD; FILLON, 1954 apud JACQUES, 2003, p. 17).

Entretanto, foi na primeira revista do movimento situacionista que foi publicado


o manifesto em que os membros registraram suas primeiras definições. Nela, os
situacionistas descrevem, além de algumas das práticas analisadas no primeiro
capítulo, dois conceitos inovadores de experiência na cidade: a deriva e a
psicogeografia.
A deriva é descrita especificamente pela revista IS n. 1, em 1958, como um
“modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana:
técnica de passagem rápida por ambiências variadas [...]” (INTERNACIONAL
SITUACIONISTA, 1958). Na revista de n. 2 da IS, também de 1958, é republicado um
texto de autoria de Guy Debord, originalmente publicado em 1956, no periódico Les
Lèvres Nuesse. O texto, intitulado Teoria da Deriva, se propõe a desdobrar ainda mais
50

o conceito, delineando inclusive instruções sobre o número ideal de participantes,


duração das derivas e delimitação do campo de experiência.
Durante as várias apreciações do texto, Debord manifesta algumas opiniões
sobre os possíveis resultados da aplicação da deriva nas cidades, como, por exemplo:
a possível identificação de espaços, aos quais o situacionista concede o título de
unidades de ambiência, e a hipótese do reconhecimento de elementos chamados por
ele de plaques tournantes. A expressão francesa que representava uma “alusão às
placas giratórias e manivelas ferroviárias responsáveis pela mudança de direção dos
trens” (JACQUES, 2003, p. 23).

As lições da deriva permitem estabelecer os primeiros levantamentos das


articulações psicogeográficas de uma cidade moderna. Além do reconhecimento de
unidades de ambiência, de seus componentes fundamentais e de sua localização
espacial, percebem-se os principais eixos de passagem, as saídas e as defesas. Chega-
se à hipótese central de plaques tournantes psicogeográficas. Medem-se as distâncias
que separam de fato duas regiões de uma cidade, distâncias bem diferentes da visão
aproximativa que um mapa pode oferecer (DEBORD, 1958).

A realização da deriva pretende suscitar hipóteses, e não necessariamente


resolvê-las (DEBORD, 1975, p. 58). A intenção é percorrer a cidade com a finalidade
de fazer emergir dela elementos relativos ao acaso do passeio, como a organicidade
de paisagem urbana, as espontâneas situações cotidianas e a efervescência própria
do trânsito dos indivíduos, ou seja, a vida citadina em sua forma legítima. A diferença
do trajeto de deriva para o caminhar habitual está na abertura do participante para as
questões da geografia afetiva da cidade, nesse sentido “os acasos da deriva são
fundamentalmente diferentes dos do passeio” (DEBORD, 1957).
Em mais uma de suas críticas aos surrealistas, Debord comenta que a tentativa
de passeio pelas cidades francesas, por parte de Breton e Aragon na década de 1920,
fracassou pelo fato do grupo constituído por quatro surrealistas “pouco desconfiar do
acaso” e complementa que “caminhar por descampados é sem dúvida deprimente, e
as possíveis intervenções do acaso, em tais circunstâncias, são raríssimas”
(DEBORD, 1958). Com essa afirmação Debord procura demonstrar a importância de
se derivar em centros urbanos, dado que a premissa do acaso no âmbito de uma
51

cidade grande e movimentada permitiria um maior “reconhecimento de efeitos de


natureza psicogeográfica” (DEBORD, 1958).
Apesar de usar essa premissa do acaso, da deambulação, a deriva
preconizada por Debord (1958) deveria ser produzida de um modo particular, dentro
de limitações previamente estabelecidas, como o campo experimental, o tempo ideal
e o número de participantes. Essas restrições inerentes ao método podem parecer
uma contradição à lógica de negação do funcionalismo e do planejamento defendida
pelos situacionistas.

Planejamento é a palavra da moda, a palavra em evidência, dizem alguns. Os


especialistas falam de planejamento econômico e de urbanismo planejado, depois dão
uma piscadela com ar conveniente e, contanto que haja reciprocidade na encenação, todo
mundo aplaude (VANEIGEM, 1961, tradução nossa).

Entretanto, essas limitações se apresentam apenas como uma circunscrição


natural ao exercício da deriva, que tem uma finalidade claramente experimental. Elas
são determinadas apenas como uma maneira de balizar a execução da técnica. O
objetivo principal da deriva continua sendo o de contribuir para o desenvolvimento das
premissas situacionistas, no intuito de romper com a lógica do espetáculo. “A deriva é
uma transgressão do mundo alienado” (SADLER, 1999, p. 94, tradução nossa).
É possível admitir, portanto, que a deriva situacionista é um procedimento que
envolve uma ação de experiência direta com a cidade, que investiga suas
sinuosidades e seus aspectos subjetivos com o intuito de reunir pressuposições
concernentes à relação afetiva entre bairros e, acerca das distâncias e proximidades
geográficas, componentes que remetem a outro importante conceito cunhado pelos
situacionistas, o da psicogeografia.
A prática da deriva está intimamente ligada à psicogeografia. A psicogeografia
também é descrita pela revista IS n.1 como um “estudo dos efeitos exatos do meio
geográfico, conscientemente planejado ou não, que agem diretamente sobre o
comportamento afetivo dos indivíduos” (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1958).
Desse modo, o indivíduo que investigue as implicações do meio urbano de maneira
subjetiva pode se considerar um psicogeógrafo.
Para Perniola, essa intenção situacionista de subjetivar a racionalidade das
cidades constituía uma relação de afronta a uma visão tradicionalista, estritamente
52

geométrica e racional: “na base de todas essas pesquisas está a tentativa de superar
a geometria euclidiana, a qual funda uma visão exclusivamente quantitativa do
espaço” (PERNIOLA, 2009, p. 24). Desse modo, os situacionistas iniciaram, com a
psicogeografia e a deriva, uma mudança de perspectiva que contrapunha a tradição
de analisar as cidades de maneira quantitativa com um inovador aspecto qualitativo.
Na tentativa de elucidar a relação entre os termos deriva e psicogeografia,
parece adequado afirmar que a deriva se constitui como uma técnica de investigação
da psicogeografia, como é descrito no texto apresentado por Debord na fundação da
Internacional Situacionista: “uma primeira tentativa de modo de comportamento já foi
obtida com o que chamamos de deriva, [...] um meio de estudo da psicogeografia e
da psicologia situacionista” (DEBORD, 1957).
Essa tese também é confirmada por outro membro da IS, o libanês Abdelhafid
Khatib, que afirma em 1958: “Os recursos da psicogeografia são numerosos e
variados. O primeiro e mais sólido é a deriva experimental” (KHATIB, 1958). E ainda
pela arquiteta Paola Jacques, pesquisadora assídua da teoria situacionista, quando
afirma em seu livro Apologia da Deriva (2003, p. 22) ser evidente que “a deriva era o
exercício prático da psicogeografia”. Sendo assim, é possível admitir que a
psicogeografia se configura como uma ciência ou método de exploração dos aspectos
afetivos da cidade, tendo a deriva como principal elemento de investigação.
A relação intrínseca entre ambos artifícios proporcionou aos situacionistas um
novo modo de encarar o processo de investigação de cidades. Aos seus modos, mas
amparados nessas proposições, os artistas se debruçaram pela cidade gerando
relatos, cartografias e montagens fotográficas que traziam à tona aspectos até então
escondidos pela espetacularização das cidades.

Figura 10. Détournement de uma fotonovela criada por Ralph Rumney com imagens de Veneza, 1957.
53

Enquanto a psicogeografia fornecia aos situacionistas uma visão


fenomenológica das cidades, a deriva servia como um instrumento de levantamento
de dados, além de força motriz do levantamento de hipóteses psicogeográficas. A
repetição dessas técnicas por parte dos situacionistas confirmava, portanto, a
asseveração de Debord (1957): “O progresso da psicogeografia depende muito da
extensão estatística de seus métodos de observação e, principalmente, da
experimentação por intervenções concretas no urbanismo”.

2.4 A Cidade como Labirinto

A Internacional Letrista e seu posterior desdobramento, a Internacional


Situacionista, são fruto quase que direto dessa forte carga teórica urbana, vinda de
Londres, do flâneur e das vanguardas parisienses. A deglutição intelectual dessas
práticas e teorias somada ao intuito de mudar radicalmente as condições de vida em
sociedade e de superar a arte moldaram as acepções situacionistas sobre as cidades.
O produto básico desse ciclo foram os métodos e as conjecturas anteriormente
mencionados: a criação de situações, o urbanismo unitário, a deriva e a
psicogeografia. Em comum entre todos esses conceitos está a lógica da cidade como
labirinto, ou seja, como um ambiente propício à distração e ao prazer do andar
aleatório. “Os labirintos pareciam ser o ambiente ideal para induzir a interação social
necessária para as situações” (SADLER, 1999, p. 115, tradução nossa).
Os situacionistas foram os primeiros grandes partidários do conceito de jogo
relativo ao urbanismo. Essa noção de brincadeira aplicada às cidades visava projetar
um aspecto lúdico necessário aos métodos de investigação, para que estes não
fossem encarados de uma maneira funcionalista, mas de um modo novo e divertido.

Os situacionistas, que se especializaram na exploração do jogo e do lazer,


compreendem que o aspecto visual das cidades só tem valor se relacionado com os efeitos
psicológicos que possa produzir, [...] pensamos que todo elemento estático e inalterável
deve ser evitado e que o caráter variável ou móbil dos elementos arquitetônicos é condição
para uma relação flexível como os acontecimentos que neles serão vividos
(NIEUWENHUYS, 1959).
54

Os membros da IS acreditavam que o jogo era um dos elementos principais na


construção de uma nova perspectiva de cidade. Entretanto, a noção do jogo
situacionista não pode ser confundida com a consciência de jogo ligada ao
desenvolvimento do capitalismo: o jogo não deveria se limitar à lógica ignóbil do
simples ganhar ou perder.

A nova fase de afirmação do jogo deveria caracterizar-se pelo desaparecimento


de todo elemento de competição [...]. O elemento de competição deve desaparecer em
favor de um conceito mais realmente coletivo de jogo: a criação comum das ambiências
lúdicas escolhidas (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1958).

Essa conceituação do jogo situacionista também está ligada ao conceito


elaborado Johan Huizinga30 em 1938, o Homo Ludens. A teoria de Huizinga (2000, p.
13) aceita o jogo enquanto elemento inato aos seres humanos e aos animais,
reconhecendo-o como uma divisão elementar da vida e, por consequência,
precedente à cultura. De acordo com o autor, “o jogo realiza, na imperfeição do mundo
e na confusão da vida, uma perfeição temporária e limitada” (HUIZINGA apud
INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1958). É dele que os situacionistas retiram a
noção do jogo enquanto significado essencial da vida. “Nessa perspectiva histórica, o
jogo — experimentação permanente de novidades lúdicas — nunca aparece fora da
ética, da questão do sentido da vida” (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1958).
Para tentar exemplificar a pertinência do jogo nos métodos situacionistas, serão
expostos alguns experimentos realizados durante a existência do grupo: intervenções
ou tentativas de alteração efetiva dos ambientes construídos, que tinham como
objetivo perpetrar e tornar habitual a construção lúdica na vida cotidiana e ainda
instigar a experimentação e o levantamento de hipóteses sobre uma possível cidade
coletiva.

30
Johan Huizinga (1872–1945), professor e historiador holandês.
55

2.4.1. O Mercado de Les Halles

Como parte integrante da revista IS n. 2, de 1958, foi publicado um texto de


autoria de Abdelhafid Khatib31, um documento intitulado Esboço de Descrição
Psicogeográfica do Les Halles32, que reporta uma interessante experiência de deriva
e anotações psicogeográficas realizada num bairro de Paris.
No início do texto, Khatib (1958) descreve a deriva e psicogeografia como
formas desenvolvidas pelos situacionistas de “rearrumar o meio urbano” e de
“modificá-lo substancialmente”. Logo após, ele traça uma opinião sobre as
possibilidades cartográficas do estudo dos conceitos. “O resultado desse estudo pode,
em retorno, modificar essas representações cartográficas e intelectuais no sentido de
uma maior complexidade, de um enriquecimento” (KHATIB, 1958). Nesse ponto, o
argelino demonstra a preocupação por parte dos membros da IS em mudar a relação
tradicional referente à concepção de mapas. A relação entre o homem e sua
cartografia poderia passar de uma representação geometricamente objetiva para uma
em que os aspectos qualitativos pudessem ser observados e apreendidos, como no
recorte apontado por ele referente às unidades de ambiências no bairro de Les Halles.

Figuras 11 e 12. Mapas de unidade de ambiência e fluxos internos de Les Halles.

31
Abdelhafid Khatib, argelino; membro da Internacional Situacionista.
32
Les Halles, bairro parisiense onde até 1960 existiu o mercado central de Paris.
56

Os posteriores comentários, por parte de Khatib, dos aspectos geográficos no


bairro de Les Halles são realizados em forma de um relato descritivo. As fronteiras, as
ruas, o tipo de ocupação e as características arquitetônicas são relatados
detalhadamente. A fidelidade relativa à Teoria da Deriva, de Debord, é outro elemento
de importante destaque; Khatib descreve zonas de atributos particulares e as intitula,
tal qual a teoria debordiana, de unidades de ambiência: “a primeira zona, a leste, está
compreendida entre as Ruas Saint-Denis de Turbigo, Pierre-Lescot e a Praça Sainte-
Oppurtune” (KHATIB, 1958). E, além disso, descreve um tipo de nó urbano cuja
centralidade possui características próprias de uma plaque tournante.

A zona de interferência central, a plaque tournante das diversas direções de


ambiências do Les Halles, é, como já indicamos, o complexo Bourse du Commerce/Praça
dos Deux-Écus [...]. As diversas direções que se cruzam nessa plaque tournante afetam
muito o itinerário que um indivíduo ou grupo deseje efetuar, com aparente espontaneidade,
dentro ou fora do Les Halles (KHATIB, 1958).

A descrição do Les Halles é por fim encerrada por Khatib com considerações
que fazem apologia à apropriação dos transeuntes do bairro em função da construção
de uma vida livre e coletiva. Segundo o autor, em conclusão a todo o relato
psicogeofráfico, “convém propor que esse mercado se torne um parque de diversões
para a educação lúdica dos trabalhadores” (KHATIB, 1958).

2.4.2 A Zona Amarela

A Descrição da Zona Amarela consiste em um projeto arquitetônico fictício


concebido por Constant. O nome dado ao plano tem origem na cor do solo
predominante, e ele foi publicado originalmente na revista IS n. 4. As descrições
realistas referentes a um possível projeto edificado se alternam com relatos subjetivos
concernentes à ambiência do conjunto.

Os diferentes níveis — três a leste, dois a oeste — são sustentados por uma
construção metálica, alteada do solo. Para a sustentação dos andares e dos prédios
internos utilizou-se o titânio. [...] A longa estada num desses locais tem o benéfico efeito
de uma lavagem cerebral e costuma ser praticada na intenção de desmanchar os
possíveis novos hábitos (CONSTANT, 1960).
57

O caráter lúdico do texto reafirma a questão fundamental do discurso


situacionista, a defesa do jogo e suas derivações. Também pode ser percebida a
intenção, por parte de Constant, de promover uma desorientação labiríntica ao
implementar aspectos mutáveis e grandes variações de atmosferas no projeto da
edificação.

A formação em níveis superpostos implica que a maior parte da superfície deve


ser iluminada e climatizada artificialmente [...]. Isso faz parte da integrante dos jogos de
ambiência, que são uma das atrações da Zona Amarela. Convém notar, aliás, que em
vários lugares passa-se bruscamente para o ar livre (CONSTANT, 1960).

Figuras 13 e 14. Planta baixa e maquete do projeto da Zona Amarela.

Talvez, pela sua formação em arquitetura, Constant tenha absorvido as teorias


situacionistas com uma tendência a uma produção material dos espaços. No entanto,
suas contribuições teóricas e plásticas foram de fundamental importância para a
discussão do grupo acerca de seus objetivos. A Zona Amarela se concatena com
várias outras proposições situacionistas, cujo intuito principal era de promover
situações inusitadas em contraposição à passividade e alienação do espetáculo
(DEBORD, 1957).
58

2.4.3 O Labirinto Holandês

Em 1959, os situacionistas acertaram com o Stedelijk Museum de Amsterdã a


organização de uma manifestação geral, em parte usando os locais desse museu e em
parte fora dele. Tratava-se de transformar em labirinto as salas 36 e 37 do museu no
mesmo momento em que três dias de deriva sistemática seriam efetuadas por três equipes
situacionistas (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1960).

O texto intitulado O Mundo como Labirinto foi publicado na revista IS n. 4, no


ano 1960. Os relatos presentes no documento afirmam a intenção dos situacionistas
de construir um labirinto no museu holandês, que não foi bem-sucedida por conta de
restrições elaboradas pela Prefeitura de Amsterdã.

Figuras 15 e 16. Mapas das estruturas do labirinto.

Os relatos descritivos do labirinto holandês se assemelham com os da Zona


Amarela na intenção de transmitir uma atmosfera de ludicidade em relação ao projeto.
As passagens, conformação e nuances da proposta são poeticamente descritas no
intuito de estimular mais uma vez a lógica do jogo.

O labirinto, cujo plano havia sido estabelecido pela seção holandesa da IS (...)
consiste em um percurso que pode variar, teoricamente, de 200 metros a 3 quilômetros.
O teto, ora a 5 metros, ora a 2,44 m (parte cinzenta), pode baixar, em certos lugares, a
1,22 m. Seu arranjo não visa a nenhuma decoração de interior nem à miniatura de
ambiências urbanas, mas tende a constituir um meio misto, jamais visto, pela mistura de
características internas (apartamento decorado) e externas (urbanas) (INTERNACIONAL
SITUACIONISTA, 1960).
59

A ideia prática do labirinto evoca a teoria da construção de situações por


intermédio da invenção de espaços-tempo nos quais a deriva e a psicogeografia
pudessem ser executadas e discutidas. Apesar da não concretização do plano do
labirinto, o texto situacionista aponta para a possibilidade de sua execução em outros
lugares, numa nova tentativa experimental de condicionar situações. “Esse labirinto
não deve ser edificado numa outra construção, mas, com mais flexibilidade e em
função direta das realidades urbanas, num terreno vago, bem situado, da cidade
escolhida, a fim de ser o ponto de partida de derivas” (INTERNACIONAL
SITUACIONISTA, 1960).

2.4.4 Nova Babilônia

Como dito anteriormente, a Nova Babilônia foi um projeto de caráter polêmico


para o movimento, também realizado pelo holandês Constant. Segundo Sadler (1999),
o projeto consumiu ao todo mais de uma década de trabalho do artista.
A essência do trabalho consistia em tentar traduzir os conceitos de urbanismo
unitário e situação construída numa estrutura que pudesse ser alterada de forma
constante e autônoma, como um projeto de cidade situacionista (WIGLEY;
CONSTANT, 1998). Além disso, a adaptação dos habitantes à Nova Babilônia
permitiria, segundo Constant (1972), a vivência de um estado de deriva quase que
permanente, onde a lógica do jogo e do labirinto seria habitual.

Eu vejo a Nova Babilônia como uma teia, uma rede que recobre todo o mundo.
Viver em um lugar fixo não faz parte da Nova Babilônia, o modo de vida sedentário que
remonta desde o final da idade da pedra, quando a humanidade começou a produzir,
quando o homem fundou comunidades e adotou a agricultura. Antes dessa era, os homens
eram nômades, caçadores. A minha hipótese é a de que com o desaparecimento do
trabalho monótono nós acabaremos com a necessidade dos indivíduos de permanecerem
presos a determinados locais. Na Nova Babilônia não há mais casas particulares. A cidade
inteira é uma imensa e coberta casa coletiva, uma casa com incontáveis quartos, salas e
corredores, onde poderemos passear por dias e semanas, mas onde também
encontraremos pequenos espaços para a nossa privacidade. A Nova Babilônia é um
labirinto inesgotável em suas variações, um palácio com milhares de quartos
(CONSTANT, 1962 apud WIGLEY; CONSTANT, 1998).
60

Figura 17. Implantação da Nova Babilônia no tecido urbano da cidade.

É amplamente notável a influência dos conceitos situacionistas, principalmente


o do urbanismo unitário, na concepção do projeto. A lógica da não aceitação das
cidades fixas no tempo e no espaço, além da inclusão das experiências de deriva e
psicogeografia como práticas a serem realizadas no projeto demonstram a
preocupação de Constant em tornar viável uma vivência situacionista num edifício
arquitetônico. Segundo Sadler (1999, p. 123), Nova Babilônia consistia numa
“tentativa de dar forma visual ao urbanismo unitário”.
Entretanto, mesmo com o alinhamento de Nova Babilônia com a teoria do UU,
o projeto foi alvo de grandes críticas dos situacionistas, especialmente de Guy Debord.
As críticas de Debord e dos situacionistas recaíam principalmente sobre o caráter
cerceador da proposta de um edifício (SADLER, 1999), uma vez que uma das grandes
críticas dos situacionistas era justamente dirigida à lógica de pensar espaços de forma
individualista, própria dos arquitetos. Isso demonstra, em parte, um pensamento
coerente por parte dos situacionistas, considerando-se que o texto de apresentação
da IS, escrito por Debord, já incorporava a seguinte sentença:

Cabe deixar claro que não se pode considerar criação aquilo que é mera
expressão pessoal no âmbito de meios criados por outrem. Criar não é arrumar objetos e
formas, mas é inverter novas leis a respeito desse arranjo. Enfim, é preciso acabar entre
nós com o sectarismo, que se opõe à unidade de ação com possíveis aliados [...]
(DEBORD, 1957).
61

Figura 18. Organicidade de Nova Babilônia.

Mesmo tendo sido alvo de contestações ainda no início do projeto, Constant


“continuou a abordar os problemas de jogo, flexibilidade e nomadismo em Nova
Babilônia” (SADLER, 1999). Esse processo culminou, inevitavelmente, em formatos
visuais de apresentação da proposta. Fato que, por um lado, trouxe uma
impressionante expressão plástica e artística ao trabalho, mas que, por outro, só veio
a aumentar o conflito com as ideias de não planejamento físico da IS.

Figura 19. Experimento de maquete da Nova Babilônia.


62

Por volta do início década de 1960, por conta dos diversos desentendimentos,
a relação de Constant com a IS é finalmente rompida, muito embora o artista tenha
continuado a trabalhar no aprimoramento dos conceitos de Nova Babilônia por pelo
menos durante mais uma década. E ainda assim sem nunca abdicar de seus
argumentos principais para o projeto, de que a Nova Babilônia seria “um projeto social
e coletivo e que seu trabalho deveria ser entendido como nada além do que uma
estrutura projetada para a construção de situações e decoração para uma vida de
lazer” (SADLER, 1999).

2.4.5 The Naked City

The Naked City (A Cidade Nua) é, talvez, a obra mais famosa da Internacional
Situacionista, devido à sua ampla divulgação por intermédio da imagem principal do
projeto. Concepção de Guy Debord e Asger Jorn, de 1957, representa um estudo de
Paris baseado nas hipóteses de reconhecimento de unidades de ambiência, plaques
tournantes e outros elementos que a aplicação da deriva e da psicogeografia
conseguiram revelar.
Apesar do grande reconhecimento de The Naked City, o mapa foi uma
experiência precedida pelo Guia Psicogeográfico de Paris, de 1956, cuja autoria
também foi responsabilidade de Debord e Jorn. A cartografia representativa do Guia
Psicogeográfico se assemelha bastante com a do segundo trabalho em termos
plásticos. Para sua construção foram utilizados recortes da cartografia original da
cidade e adicionados elementos estéticos, que podem ser vistos, inclusive, como
détournements visuais.
Ambos os mapas demonstram uma experiência de espaço fragmentada e
descontínua, áreas que são experimentadas como distintas são separadas no mapa
para representar as unidades de ambiência. Em paralelo, as setas servem para
relacionar essas diferentes zonas e baseiam-se nas forças de atração e repulsão
reconhecidas no decurso da deriva, podendo ser consideradas, de acordo com
Debord, como “os principais eixos de passagem, as saídas e defesas” (DEBORD,
1958).
63

Figura 20. Guia Psicogeográfico de Paris. Guy Debord, 1956.

Figura 21. The Naked City. Guy Debord, 1957.


64

As deduções foram feitas de acordo com as “derivas” em torno da cidade, à


procura de provas sobre a condição da Paris contemporânea; Debord e Jorn enfatizaram
o rigor do seu trabalho de detetive roubando o título The Naked City do famoso drama e
documentário de 1948 sobre detetives de Nova York em ação (SADLER, 1999, p. 61).

A Cidade Nua demonstra grande parte de sua força em sua composição visual,
marcada pelas setas e pelos recortes de cartografia; o mapa criado por Debord e Jorn
se configura como uma peça estética enormemente comunicacional. O impacto das
relações subjetivas intrínsecas ao mapa transmite ao admirador a ideia de que as
representações cartográficas detêm um potencial muito maior, o qual o funcionalismo
geométrico por si só não consegue atingir. Os mapas psicogeográficos são um convite
à experimentação de derivas e relatos nas cidades contemporâneas. Aliadas ao
desenvolvimento social da pós-modernidade e da era digital, as intervenções urbanas
contemporâneas podem tomar partido desses conceitos com o intuito de criar novas
perspectivas sobre as cidades. Torna-se cabível, portanto, reafirmar a proclamação
de Debord em Cosio d’Arroscia (1957) “Já se interpretaram bastante as paixões; trata-
se agora de descobrir outras”.

2.5 Deriva e Psicogeografia na Contemporaneidade

Segundo alguns autores, reportagens e documentos atuais, é possível


perceber uma crescente onda de reavivamento das teorias situacionistas
principalmente no final da década de 1990 e começo dos anos 2000. Assis e Machado
(2003) argumentam que esse novo estímulo à IS se deu, muito provavelmente, por
conta da publicação por parte de grandes editoras e também de editoras
independentes de livros sobre Guy Debord e sobre o movimento situacionista.
Aliado a esse fato, deve-se salientar que, em tempo paralelo ao mencionado,
ocorre o importante fenômeno da popularização da internet, que se configura como
um elemento amplificador da divulgação das ideias situacionistas, tendo em vista que
o caráter de rede, de velocidade e de fragmentação próprios da internet se
assemelham ao da produção bibliográfica situacionista.
É plausível considerar que os estudos sobre deriva e psicogeografia na
contemporaneidade se encontram em efervescência, mas ainda com uma grande
possibilidade de desenvolvimento.
65

2.5.1 A IS Revisitada

O professor de história da arquitetura da Universidade da Califórnia, Simon


Sadler, em seu livro de 1999, The Situationist City, delineia um apanhado histórico e
crítico, fazendo respeitáveis considerações inclusive sobre o caráter utópico do
movimento. O italiano Mario Perniola, estudioso da Estética, também traz à tona
considerações importantes acerca do caráter artístico e político da IS no livro Os
Situacionistas: o Movimento que Profetizou a Sociedade do Espetáculo, onde o autor
considera como um dos grandes desejos do movimento a superação da arte e a
quebra do establishment.
Mckenzie Wark, australiano e professor da universidade The New School, em
Nova York, publicou em 2011 o livro The Beach Beneath the Street (A Praia sob a
Cidade). Wark investiga a diversidade das teorias situacionistas traçando o
desenvolvimento do grupo a partir da boemia parisiense da década de 1950 até os
eventos de protesto em maio de 1968. Além da riqueza historiográfica do texto, o autor
tece considerações sobre os possíveis impactos contemporâneos da teoria
situacionista.
Também professor em Nova York, na Universidade Estadual de Binghamton, o
americano Tom McDonough é conhecido por suas publicações sobre a IS. Dentre as
mais importantes estão Guy Debord and the Situationist International, de 2004, e The
Situationists and the City, de 2009. A ênfase em relação à segunda fica por conta da
reunião dos principais textos situacionistas em língua inglesa e também pela rica e
variada documentação de ilustrações referentes ao movimento.
Ainda no âmbito internacional, pode-se destacar as contribuições do artista,
professor, teórico e curador independente americano Keith Sanborn. Sanborn é autor
de vários ensaios críticos, publicações em periódicos e palestras em espaços de arte
e ensino. Numa de suas recentes palestras, intitulada de Duas Abordagens do Desvio:
Guy Debord e René Viénet33, o artista analisa as premissas do desvio, ou
détournement, nas obras cinematográficas dos dois situacionistas correlacionando-
as, inclusive, com elementos característicos de desvio em outros campos da arte,
como na literatura.

33
René Viénet (1944), sinólogo, teórico situacionista e cinegrafista francês.
66

No Brasil, o maior documento sobre a IS é o livro de Paola Jacques, Apologia


da Deriva, de 2003, que reúne os mais importantes textos dos teóricos situacionistas
traduzidos para português. Além disso, Jacques faz inferências importantes sobre o
pensamento situacionista e a circulação das ideias em seu contexto histórico. É valido
também considerar o livro Arquitetura e o Urbanismo Revisitados pela Internacional
Situacionista (2006), resultado da pesquisa de iniciação científica de Vanessa
Grosman, na USP, responsável por analisar as reverberações da teoria situacionista
na arquitetura e no urbanismo contemporâneos.
Na Londres contemporânea, existe uma particularidade interessante sobre o
pensamento psicogeográfico. É possível distinguir alguns autores que somam várias
publicações que tratam do tema, como Iain Sinclair, autor e editor de livros como
London Orbital (2003) e London: City of Disappearances (2006), que descrevem a
cidade sob uma visão psicogeográfica; o escritor Will Shelf e o cartunista Ralph
Steadman, que, apesar de britânicos, publicam em 2006 o livro ilustrado
Psycogeography, com relatos de ambiências e situações vividas em Nova York.
Outro escritor britânico de interesse situacionista é Stewert Home, autor do livro
Assalto à Cultura (2006), e estreitamente ligado a um grupo intitulado Associação
Psicogeográfica de Londres (London Psychogeographical Association – LPA), coletivo
que compartilha algumas experiências situacionistas na década de 1950, passa um
grande tempo inativo e retorna timidamente por volta da década de 1990. Atualmente
ainda é possível consultar alguns dos textos da LPA em uma plataforma on-line, e
alguns de seus membros ainda realizam derivas e escrevem sobre psicogeografia
(COVERLEY, 2010).
O americano David Prescott-Steed também merece destaque por sua recente
publicação The Psychogeography of Urban Architecture (2013), que, segundo o
próprio autor, “explora como uma improvisação, criativa e prática traduzida como
deriva, trabalha para desfamiliarizar nossa experiência moderna e tardia de ambiente
construído, promovendo uma nova visão sobre comportamentos culturais rotineiros”
(PRESCOTT-STEED, 2013).
Outra distinta obra atual que incide sobre as questões relativas à deriva e à
psicogeografia é Walkscapes: o Caminhar como Prática Estética (2013), do arquiteto
italiano Francesco Careri. Walkscapes descreve a percepção da paisagem através do
ato de caminhar: narrando desde o nomadismo primitivo até as vanguardas artísticas,
67

em especial o movimento dadá e o Surrealismo. A narrativa do livro inicia no começo


do século XX, mas desemboca na Internacional Letrista e na Internacional
Situacionista, perpassando ainda pelas questões relativas ao grupo Stalker, do qual
Careri participou, à arte conceitual e à land art.
O estudo e a compreensão do panorama atual dos estudos psicogeográficos é
de caráter fundamental para uma pesquisa contemporânea sobre o assunto. O
entendimento do estado da arte permite a investigação e a contextualização dos
problemas a serem explorados e consequentemente uma maior relevância das
possíveis contribuições a serem apresentadas em pesquisa.

2.5.2 Casos

Baseados tanto na teoria original dos anos 1960 como nas reverberações
contemporâneas descritas, alguns grupos, coletivos de arte e profissionais de áreas
afins produzem cada vez mais experimentos relacionados à experiência de cidade,
por intermédio seja da deriva e da psicografia, seja apenas de apreensão e registro
de afetividades.
Com a rápida popularização do uso da internet e a facilidade de aquisição de
aparelhos tecnológicos, a maioria desses experimentos já se apresentam em formato
de mídias locativas, com fotografias, vídeos e georreferenciamento digitais, além de
muitas vezes serem registrados on-line.
Com o intuito de exemplificar algumas dessas ações, serão elencados a seguir
alguns trabalhos de caráter experimental que suscitaram hipóteses e reflexões acerca
do uso da deriva e da psicogeografia nos dias atuais. A escolha desses trabalhos se
deu, principalmente, pela capacidade de adaptação das teorias situacionistas a
instrumentos de registro, apreensão e intervenção na cidade próprios da
contemporaneidade.

2.5.2.1 Mapeando Lençóis

O trabalho Mapeando Lençóis se apresenta como um tipo de relato cartográfico


colaborativo devidamente construído com a previsão de uso de mídias locativas e
organizado pela pesquisadora e artista Karla Brunet. Durante o projeto, foi elaborado
68

um mapa juntamente com os participantes do evento Submidialogia e a comunidade


local da cidade de Lençóis/BA, em especial crianças.

O projeto é uma mistura de low e high tech. O projeto utilizava precários mapas
fotocopiados em papel A3, onde o “errante” podia desenhar o seu caminho com canetas
coloridas. […] A motivação veio do interesse em misturar essas práticas situacionistas com
tecnologias como o celular a internet em um lugar com pouca infraestrutura. Em uma
cidade pequena, mesclando experiências dos visitantes de fora, de grandes centros
urbanos, e habitantes da cidade (BRUNET, 2008).

O registro cartográfico, que descreve os fluxos e os trajetos no espaço, foi


estabelecido a partir de uma deriva pela cidade. Essa deriva contou com anotações
analógicas, diretamente no mapa impresso e com um posterior registro digital, com a
submissão de fotografias, dados de áudio e vídeo no site do projeto:
www.lencois.art.br.

Figura 22. Imagem do site do projeto Mapeando Lençóis.

A introdução do uso de um site da internet para registro da deriva em Lençóis


demonstra o quanto os parâmetros da cartografia podem ser expandidos nos dias
atuais. Além disso, o trabalho evidencia uma maneira diferenciada de mapear os
trajetos da deriva. A ilustração também não faz uso efetivo do mapa da cidade e
demonstra sua atividade através das linhas de força, diferenciadas por cores,
referentes aos percursos produzidos, destacando locais importantes do trajeto com
pontos inseridos nessas linhas.
69

2.5.2.2 Amsterdam RealTime

Em 2002 aconteceu uma exposição comemorativa no Museu Municipal de


Amsterdã (Gemeentearchief van Amsterdam) intitulada Mapas de Amsterdã 1866–
2000. Para a exposição, o grupo Waag Society, juntamente com os artistas Esther
Polak e Jeroen Kee, criou um tipo de instalação que se utilizou de um meio tecnológico
para um novo tipo de mapeamento afetivo, a Amsterdam RealTime.

Figura 23. Imagem do mapa gerado por ocasião da exposição Amsterdam RealTime.

Na exposição foram entregues antigos mapas da cidade em um espaço com


monitores e uma grande tela de projeção em tempo real do mapa de Amsterdã. Pela
cidade havia participantes equipados com computadores de bolso e telefones com
GPS. As linhas de rastreamento dos transeuntes se sobrepunham umas às outras,
fazendo surgir um mapa e criando uma imagem da cidade que não consistia em
edifícios, estradas e canais, mas nos movimentos das pessoas. O site do projeto ainda
pode ser visitado no endereço: www.realtime.waag.org.
Qualquer um podia se inscrever para ser um participante por uma semana e,
no final do período, recebia uma versão impressa de sua própria rota. Com isso, o
museu e os artistas conseguiram despertar nos visitantes a ideia de contemplação e
cartografia afetiva de Amsterdã. Além disso, Amsterdam RealTime demonstra o
quanto recursos habituais da vida contemporânea, como o mapeamento por GPS, via
70

smartphones, tablets ou outros instrumentos comuns aos dias atuais, podem servir
como impulsionadores de reflexões políticas e artísticas na cidade.

2.5.2.3 Urban Drifts (2009–2014)

O artista e designer Ryan Raffa, organizador do blog www.ryanraffa.com, é


autor de um trabalho de investigação na cidade de Nova York, intitulado de Urban
Drifts.

Urban Drifts é uma série de passeios de bicicleta centrados na investigação


através de espaços urbanos. Fazendo uso do conceito situacionista de deriva, este projeto
procurar perceber como novos insights pessoais, dados móveis, mapas sonoros
psicogeográficos, fotografias e performance podem mudar a relação entre as paisagens
urbanas, as emoções e as ações dos habitantes da cidade (RAFFA, 2009).

Para a execução do projeto, Raffa lançou mão, fundamentalmente, de registros


por GPS e de registros via fotografia digital, os quais, por si só, já apresentaram
resultados expressivos de leitura cartográfica e imagética da cidade.

Figuras 24 e 25. Mapeamento georrefenciado e imagético de Urban Drifts.


71

O ponto mais interessante do trabalho do artista foi a conversão do


mapeamento geográfico das derivas em som. Um programa de computador consegue
transformar a latitude, longitude, altitude, velocidade, direção, frequência cardíaca e
temperatura dos passeios de bicicleta em tons, batidas, samples e elementos
percussivos. Esses sons, por sua vez, são manipulados por Raffa de uma forma
performativa para expressar o impacto físico e psicológico dos passeios.

Figura 26. Exemplo do programa de conversão de mapa em som.

O projeto Urban Drifts adiciona, portanto, um importante modo de experiência


de cidade. Não apenas mapiado aspectos afetivos dela, como também realiza uma
conversão semiótica desses aspectos, fazendo aflorar elementos até então
camuflados ou mesmo imperceptíveis mediante os trajetos racionais da vida urbana.

2.5.2.4 Peluqueria Carangi

Resultado do trabalho de conclusão do curso de Arquitetura e Urbanismo, pela


então estudante e artista Marie Carangi, Peluqueria Carangi consistiu na criação de
ambientes-situação na cidade do Recife, cujo dispositivo inicial era o serviço de cortes
de cabelo oferecido pela autora.
Fazendo uso do recurso situacionista da deriva, Carangi mapeou e ocupou
lugares da cidade, explorando relações de ruínas, festas, espaços públicos e
72

institucionais. “As situações são construídas pela presença a partir de brechas


desvendadas no espaço urbano e das disponibilidades no cotidiano, onde são criados
ambientes abertos de estar provisório entre os limites do público e do privado”
(CARANGI, 2013).
Os registros do trabalho foram manipulados, compilados e receberam um
memorial descritivo por parte da artista. Eles podem ser visitados na plataforma on-
line colaborativa: www.cargocollective.com/peluqueriacarangi.

Figura 27. Disposição afetiva dos ambientes-situação. Marie Carangi, 2013.

Tendo em vista os problemas contemporâneos de urbanismo das cidades


brasileiras, o trabalho de Carangi também se relaciona com uma questão política que
começa a emergir no País: a demanda de ocupação e uso coletivo dos espaços
públicos das cidades, como uma maneira de combater a massificação imobiliária e as
relações de empreendimentos privados com o poder público. Por estar situado no
Recife, o projeto ganha uma importante dimensão de inspiração e análise para esta
pesquisa, além de auxiliar na projeção de visões situacionistas e da potencialidade da
utilização das técnicas na cidade.
73

Figura 28. Exemplo do serviço de corte de cabelo/performance.

A análise e compreensão desses tipos de trabalho aliada à bibliografia dos


autores contemporâneos comentadores da teoria situacionista se configuram como
elementos de grande importância para a pesquisa vigente. Essa importância se
resume não apenas à compreensão dos processos contemporâneos de inspiração
situacionista, como também à reflexão teórica para a construção metodológica da
pesquisa.
A utilização de mídias locativas e sua inserção on-line, as novas formas de
registros de georreferenciamento, a tradução semiótica de aspectos particulares da
deriva e ainda a revisitação e reinterpretação afetiva de locais do Recife são pontos
importantes a serem avaliados como recursos e possibilidades para a experiência de
apreensão urbana pretendida por este trabalho.
74

3 METODOLOGIA
75

O presente capítulo pretende, através dos subsídios discutidos e abordados na


fundamentação teórica, elaborar uma sequência metodológica que atenda à proposta
do projeto de investigação afetiva de cidade. Tendo sempre em vista o objetivo
principal da pesquisa, de avaliar os resultados da aplicação da deriva e da
psicogeografia enquanto instrumentos de análise do centro do Recife.
Nesse contexto é importante destacar que apesar das investigações
psicogeográficas contemporâneas terem retornado às discussões acadêmicas, como
afirma Coverley (2010), e também retornado aos experimentos por conta de grupos e
artistas destacados anteriormente, a Teoria da deriva, elaborada por Guy Debord em
1958, ainda é pouca explorada quando se considera a profundidade das reflexões
teóricas e experimentais que a obra pode suscitar. Elucida-se, portanto, mais um fator
que aponta a importância de experimentar, documentar e analisar derivas
concatenadas com teoria situacionista na cidade contemporânea.
A razão da escolha pela pesquisa e investigação de métodos situacionistas
reside também na possibilidade de dar continuidade a uma busca, iniciada por Debord
e pela a Internacional Situacionista, por aspectos subjetivos e afetivos da cidade como
um artificio para fomentar novas práticas urbanas.

Não temos receitas nem resultados definitivos. Propomos apenas uma pesquisa
experimental a ser efetuada coletivamente em algumas direções que definimos neste
momento e em outras, a serem definidas. A própria dificuldade de chegar às primeiras
realizações situacionistas é uma prova de como é novo o domínio onde penetramos. (...).
Nossas hipóteses de trabalho serão reexaminadas a cada transformação futura, venha
de onde vier (DEBORD, 1957).

Apresentadas as características práticas da presente dissertação fizeram-se


necessárias pesquisas relativas ao método de procedimento a ser utilizado. Tendo em
vista que o método de procedimento se constitui de “etapas mais concretas da
investigação, com finalidade mais restrita em termos de explicação geral dos
fenômenos menos abstratos” (MARCONI; LAKATOS, 2003, p.221). E que, estas
etapas “pressupõem uma atitude concreta em relação ao fenômeno e estão limitadas
a um domínio particular” (MARCONI; LAKATOS, 2003, p.221), foi escolhido como
método de procedimento da pesquisa o método experimental.
76

O método experimental é um método fundado na experiência. Seu objeto é


controlado para se atingir resultados pretendidos. Dessa forma, o objeto é colocado sob
condições ideais, reproduzidas em laboratórios ou não, selecionando-se as hipóteses a
serem verificadas (BONAT, 2009, p.28).

Partindo da escolha pelo método de procedimento será realizada, de início,


uma apresentação da metodologia de pesquisa dividida em duas vertentes. A primeira
vertente, dos aspectos teóricos, trata da fundamentação científica dos métodos
situacionistas como instrumento de análise de pesquisa. Ela discute a deriva e
psicogeografia considerando a proximidade destas com o método fenomenológico.
Além disso, realiza uma análise sobre o quanto a aplicação dessas técnicas dialoga
com o exercício de diagramas e cartografias afetivas.
A segunda vertente tratará da construção prática, ou seja, da elaboração das
etapas necessárias para a obtenção dos resultados sensíveis que serão analisados.
Ela discutirá também o tipo de pesquisa a ser efetuado, o objeto e os objetivos da
mesma, além da seleção de hipóteses e as considerações sobre o sítio de aplicação.

3.1 Aspectos Teóricos

O objeto de estudo dessa dissertação consiste em métodos ou técnicas de


considerável nível de subjetividade, para tanto, faz-se necessário o aporte teórico em
outros campos de comum relação, ou seja, a construção de um trabalho
interdisciplinar, com o objetivo de buscar em outras áreas de conhecimento subsídios
para o aprimoramento dessa análise subjetiva. Em vista disso foram designadas
linhas de abordagem que juntas compõem um conjunto teórico com a função de
abarcar conteúdos de qualidade acerca dos objetos e objetivos de estudo.
Uma das linhas teóricas foi estabelecida como sendo a da pesquisa
fenomenológica. O método fenomenológico de pesquisa vem sendo aprimorado ao
longo dos tempos e se apresenta pautado na ciência da fenomenologia, que segundo
Moreira (2002, p.62) procura entrar “em contato com as ‘próprias coisas’, dando
destaque à experiência vivida”. As referências usadas para o tema têm fontes no livro
77

O Método Fenomenológica na Pesquisa, de Daniel Moreira, e ainda nos textos do


filósofo Merleau-Ponty34, importante teórico da fenomenologia.
Outra linha teórica refere-se às questões gráficas, cartográficas e psicológicas
intrínsecas a este projeto. Considerando-se que alguns dos aspectos observados
durante os experimentos serão traduzidos graficamente, faz-se necessário buscar
teorias que auxiliem de maneira congruente essa possibilidade de registro. Esse ponto
de vista traz contribuições relativas aos processos simbólicos e visuais, que por sua
vez, estreitam ainda mais a relação da pesquisa com o campo do design. Para tanto,
serão apresentados dois tópicos, o primeiro ligado à filosofia e o segundo à psicologia.
O primeiro deles trata do estudo dos diagramas enquanto elementos de auxílio
ao direcionamento de pesquisas. O teórico escolhido desta área foi Kenneth
Knoespel35, que avalia o assunto sob a perspectiva filosófica de Deleuze36. O segundo
ponto discute a questão das cartografias afetivas, conceito que pertence originalmente
ao campo da psicologia, mas que recentemente vem ganhando força e sendo avaliado
às vistas da arquitetura e, principalmente, do urbanismo. Os autores selecionados
para o assunto são a psicoterapeuta Suely Rolnik37, autora do livro Cartografia
Sentimental, e outros pesquisadores, do ramo da psicologia e da arquitetura, que
abordam dentre outras coisas a cartografia como método de pesquisa-intervenção.
Por fim, considerando que o objeto de estudo deste projeto são os métodos
situacionistas, estabeleceu-se como um desses aspectos teóricos os próprios textos
do movimento, como Teoria da Deriva, Descrição Psicogeográfica do Les Halles dada
sua relevância referente ao levantamento de hipóteses pela experiência dos métodos
e seu caráter aberto em relação a formulação de outras possibilidades de apreensão
urbana.
A função desse conjunto é montar um escopo teórico para uma melhor
fundamentação teórica e prática do trabalho, com o objetivo de elucidar quais
aspectos de cada campo teórico podem contribuir para aos elementos de
experimentação e análise inerentes ao mesmo.

34
Maurice Merleau-Ponty (1908–1961), professor e filósofo fenomenólogo francês.
35
Kenneth J. Knoespel, professor de engenharia e artes independentes no Instituto de Tecnologia da Georgia (Georgia Tech).
36
Gilles Deleuze (1925–1995), filósofo francês.
37
Suely Rolnik, psicoterapeuta, crítica cultural em diversos periódicos, professora e integrante do Núcleo de Estudos da
Subjetividade da PUC - São Paulo.
78

3.1.1 Método Fenomenológico

Não é surpresa que, ao tratar de uma pesquisa de procedimento experimental,


sejam aventadas questões fenomenológicas, haja vista que ambos os temas estão
profundamente imbricados. Partindo do princípio que o método experimental tem
sempre origem numa indagação sobre o relacionamento de variáveis da natureza, a
fenomenologia se apresenta como um auxílio na resposta dessas indagações, por sua
natureza de tentativa de elucidação dessas mesmas variáveis.
De acordo com Moreira (2002, p. 10), o método fenomenológico se divide em
duas abordagens: a abordagem filosófica e a empírica. “Em ambos os casos o ponto
de partida é a realidade e o objetivo é a sua compreensão” (MOREIRA, 2002, p.10).
A transposição desse método para a apreensão de questões da cidade é agudamente
conveniente, dado que a cidade é um território de realidades plurais a serem
compreendidas.
Uma questão que surge de forma natural em investigações sobre apreensão
urbana é a percepção do ambiente. Ao deambular por uma determinada cidade
estamos sempre sujeitos aos seus objetos e fazemos uma interpretação dos sinais
que nos sãos fornecidos. Entretanto, essa tomada de consciência das coisas por
intermédio da percepção pode ser mais ou menos profunda dependendo do ritmo em
que se anda e da abertura que se dá a experiência do trajeto. Quando caminhamos
de maneira “automática”, ou seja, de modo correspondente ao cotidiano do trabalho,
da escola, do banco, a tendência é que percebamos os ambientes de uma forma
igualmente automatizada.

Nós acreditamos saber muito bem o que é "ver", "ouvir", "sentir", porque há muito
tempo a percepção nos deu objetos coloridos ou sonoros. Quando queremos analisá-la,
transportamos esses objetos para a consciência. Cometemos o que os psicólogos
chamam de experience error, quer dizer, supomos de um só golpe em nossa consciência
das coisas aquilo que sabemos estar nas coisas. Construímos a percepção com o
percebido. (MERLAEU-PONTY, 1999, p. 25-26).

Um dos grandes atos da teoria situacionista da deriva foi justamente o de tentar


quebrar com a lógica automatizada do caminhar. A implementação metodológica das
79

errâncias procurava se dedicar mais à própria reflexão do trajeto em si, do que a seus
objetivos:

Uma ou várias pessoas que se dediquem à deriva estão rejeitando, por um período
mais ou menos longo, os motivos de se deslocar e agir que costumam ter com os amigos,
no trabalho e no lazer, para entregar-se às solicitações do terreno e das pessoas que nele
venham a encontrar (DEBORD, 1958).

Este raciocínio se alinha ao fato dos situacionistas rejeitarem a lógica


massificadora da sociedade, a qual eles consideravam espetacular. A deriva serve,
deste modo, como um contrapondo a um mundo que os situacionistas consideravam
sufocador em relação aos cidadãos, dado o seu caráter opressor e limitador de
ambições. Prova disso é a impressão de um dos situacionistas sobre essa sociedade:
“Chega a nos abafar (...); reagimos-lhe de acordo com nossos instintos em vez de
reagir de acordo com nossas aspirações” (KHATIB, 1958).
Mais uma vez é citada a questão do instinto em contraposição à reflexão sobre
as aspirações humanas. O instinto que o argelino Abdelhafid Khatib procura suplantar
nesse caso é, justamente, o da visão apenas superficial dos fenômenos da cidade. A
missão situacionista era a de romper com a languidez de uma cultura inerte e
implementar uma intervenção eficaz que instaurasse novas ambiências, cujos
atributos fossem agudos e promovessem a “curta duração e mudança constante”
(KHATIB, 1958) dessas ambiências.
Através dessa lógica de contraposição a uma sociedade alienante e do uso da
deriva e da psicogeografia enquanto formas de fuga de um padrão de vida irrefletido,
os situacionistas criaram hipóteses que buscavam, precisamente, a quebra, ou
mesmo, a inversão destes paradigmas. As já referenciadas hipóteses de unidades de
ambiência: “além do reconhecimento de unidades de ambiências, de seus
componentes fundamentais e de sua localização espacial“ (DEBORD, 1958) e a
metáfora das plaques tournantes: “chega-se à hipótese central de plaques tournantes
psicogeográficas” (DEBORD, 1958), são demonstrações desse objetivo.
Um fato relevante dessa investigação de hipóteses de objetos de percepção é
que ela também é tônica do método fenomenológico de pesquisa. Segundo Moreira
(2002, p. 25) “o mais importante critério de seleção de um delineamento experimental
é o de que ele seja apropriado para o teste das particulares hipóteses de estudos”. O
80

próprio uso do adjetivo “experimental” após o termo delineamento, por parte do autor,
é idêntico ao que, por vezes, os situacionistas se referiam à deriva:

A deriva é um modo de comportamento experimental numa sociedade urbana. (...)


Os outros meios, como a leitura de fotos aéreas e de mapas, o estudo de estatísticas, de
gráficos ou de resultados de pesquisas sociológicas, são teóricos e não possuem esse
lado ativo e direto que pertence à deriva experimental (KHATIB, 1958, grifo nosso).

As hipóteses situacionistas destacadas foram desenvolvidas paralelamente a


produção bibliográfica relativa a primeira fase de existência do grupo, a força dessas
reflexões reside, portanto, no experimentalismo artístico, radical e na empolgação
frente aos imediatos questionamentos à sociedade da época. A hipótese relativa às
unidades de ambiência, por exemplo, é claramente derivada de uma análise fruto de
caminhadas com atenção às atmosferas visitadas.

E a mínima prospecção desmistificada mostra que nenhuma distinção,


qualitativa ou quantitativa, das influencias dos diversos cenários construídos numa cidade
pode ser formulada a partir de uma época ou de um estilo arquitetônico, e menos ainda a
partir das condições de habitat (DEBORD, 1955).

Isso demonstra o quanto a teoria situacionista se aprofundou em termos de um


exame afetivo das cidades, e o quanto a negação em relação aos aspectos alienantes
da sociedade são importantes na busca de uma percepção não automatizada.
Com relação a seguinte hipótese levantada na Teoria da Deriva, a hipótese das
plaques tournantes, pode-se considerar uma profundidade subjetiva ainda maior, pelo
agravante do sentido particular atribuído à expressão. A expressão plaque tournante,
traduzida de forma brusca para o português tem o significado de plataforma giratória.
O termo original se refere às plataformas comuns em malhas ferroviárias que servem
como um pivô de troca de direções, onde os trens podem mudar de um trilho para
outro e seguir na direção definida. Ao mesmo tempo, segundo dicionários franceses
o termo funciona como expressão idiomática que designa uma “localização que serve
como ponto de encontro ou referência” (WIKTIONNAIRE, 2015), ou ainda, um “lugar
de reuniões, de intercâmbios e de decisões” (L’INTERNAUTE, 2015).
81

Figura 30. Exemplos de plaques tournantes ferroviárias.

Além dessa subjetivação intrínseca ao próprio termo que, por si só, já carrega
uma transposição de significado, os próprios situacionistas em sua teoria, acabam por
adicionar alguns outros sentidos ao vocábulo. No verso do mapa de The Naked City,
escrita pelo próprio Debord, reside uma pequena definição acerca das setas
vermelhas, associadas às plaques tournantes: “desvios de direção espontâneos feitos
por alguém que circula nesses ambientes, alheio às conexões úteis, que usualmente
direcionam seu caminho” (DEBORD apud JAQUES, 2003, p. 35).
A missão, portanto, de identificar plaques tournantes numa cidade passa pelo
exercício de imersão nas percepções não-corriqueiras que os ambientes tendem a
fornecer, e ainda pela atenção aos dispositivos que possam influenciar o desvio de
direções num trajeto de deriva.

3.1.2. Diagramas e Cartografia Afetiva

Ao tratar da representação de elementos nas cidades é comum que se


considere o uso de mapas ou esquemas aproximados que permitam reproduzir o
posicionamento ou mesmo a escala dos objetivos em duas dimensões. O uso da
cartografia é inerente às cidades desde suas primeiras formações, dado o seu grau
de eficiência enquanto instrumento de localização, medição e representação.
82

A deriva e a psicogeografia, enquanto instrumentos de intervenção e análise


da cidade, fazem uso igualmente da cartografia. Entretanto, a cartografia utilizada
como instrumento situacionista visa traduzir elementos pouco comuns à
representação tradicional. Por conta disso, a confecção e análise de uma cartografia
psicogeográfica está imbuída de processos e subjetivações que concernem a campos
ainda pouco explorados. Estes campos serão, portanto, objetivo de análise discussão
nesse capitulo, com objetivo de melhor entendimento de seus processos.
Há tempos, o uso da diagramação no conceito de projetos relativo ao campo
da arquitetura, do design, e de outras áreas tem sido valorizado. A reflexão causada
pelo exercício de ordenamento gráfico de pensamentos, seja em formato de croquis,
mapas de fluxo, zoneamento espacial, entre outros, é tida como elemento de grande
contribuição para a melhoria da qualidade desses projetos. Se os diagramas,
enquanto sistemas de tradução gráfica de significados, permitem ao seu projetista
transpor elementos porventura abstratos em superfícies concretas, então pode-se
considerar que estes diagramas prestam um serviço no ordenamento de aspectos
subjetivos da natureza.

Diagramas são simples desenhos ou figuras que usamos para pensar com ou para
pensar através. A ideia de pensar por meio de um diagrama é crucial, não só porque um
digrama fornece ordem a estabilidade, mas porque ele é um veículo para desestabilização
e descoberta (KNOESPEL, 2002, p. 10, tradução nossa).

O engenheiro Kenneth Knoespel intitula a segunda parte de um de seus artigos


sobre diagramas de Diagram and Metaphor (Diagrama e Metáfora), em face da
capacidade dos diagramas em concretizar elementos tal qual uma expressão
metafórica é capaz de traduzir uma determinada ação ou circunstância em palavra.
Segundo Knoespel (2002, p. 12) é apropriado pensar que os diagramas se traduzem
em veículos que nos permitem observar o quanto o discurso visual é realmente
composto de uma genealogia de figuras que delineiam a geração de significados.
Os mapas psicogeográficos elaborados pelos situacionistas, em especial os
mapas de Guy Debord, demonstram o quanto esta noção de transposição de um
discurso visual pode ser eficaz. Nesse sentido a cartografias psicogeográficas podem
ser vistas como uma experiência de diagramação do processo de deriva, e
consequentemente de apreensão urbana.
83

Figura 30. Exemplo de composição psicogeográfica.

A composição de um mapa psicogeográfico é pautado na adaptação de


conceitos linguísticos para o campo da expressão gráfica. Os conceitos de unidades
de ambiência, por exemplo, são representados por secções dos lotes e ruas
fotocopiados do mapa de Paris. Os pontos de inflexão dos trajetos são representados
pelas setas vermelhas, ganhando certa personalidade de acordo com suas curvaturas
e comprimentos. Eles são descritos por Debord como “desvios de direção
espontâneos” (DEBORD apud JACQUES, 2003, p.23). Não fica evidente, pela
literatura situacionista, se as plaques tournantes também são representadas por essas
setas, pelos recortes em fotocópia das ruas, ou mesmo se aparecem realmente de
forma gráfica nesses mapas. Entretanto, sabe-se que elas são importantes para a
elaboração afetiva e organização espacial dos mesmos.
A produção desse tipo de mapa era incentivada pelo grupo como uma maneira
de especular sobre os aspectos relativos as circunstancias subjetivas cidade. Ao
associarmos esses mapas ao conceito de diagrama esbarramos novamente no campo
fenomenológico: “do ponto de vista da fenomenologia ou da ciência cognitiva, os
diagramas têm grande embasamento óptico porque sugerem as formas em que as
conexões são realizadas dentro do um campo visual” (KNOESPEL, 2002, p. 11,
tradução nossa).
Os situacionistas tiveram essa percepção precisamente por conta das suas
contraposições aos modos de vida não-perceptivos, que é tônica do paradigma
fenomenológico. Não à toa, as primeiras elucubrações acerca das possibilidades de
84

uma cartografia psicogeográfica surgem ainda nos textos de crítica urbana, no período
embrionário do movimento, quando Debord ainda participava da Internacional Letrista.

A confecção de mapas psicogeográficos e até simulações, como a equação – mal


fundada ou completamente arbitrária – estabelecida entre duas representações
topográficas, podem ajudar a esclarecer certos deslocamentos de aspecto não gratuito,
mas totalmente insubmisso às solicitações habituais (DEBORD, 1955).

Outro elemento importante em relação aos mapas enquanto resultados de


deriva é a noção de que eles também devem traduzir a relação do corpo na rua. A
noção de percurso, ou seja, do corpo em movimento também pode estar presente
enquanto formas de diagramação. “[...] os diagramas podem marcar uma maneira de
seguir a linguagem do corpo, e ainda mais, uma maneira de seguir a linguagem para
dentro da experiência espacial do corpo” (KNOESPEL, 2002, p.12, tradução nossa).
Um exemplo disso é o mapa de Khatib referente ao seu percurso realizado na área
próxima ao Mercado de Les Halles.

Figura 31. Percurso de deriva produzido para o relato de Les Halles. Abdelhafid Khatib, 1958.

Essas experiências sensoriais traduzidas em mapas, diagramas, esboços,


também podem ser abordadas sobre um viés um pouco menos filosófico e mais
relativo a psique humana. Um dos recursos utilizados para esse tipo de análise das
experiências do mundo pelo homem, no campo da psicologia, é chamado de
cartografia sentimental ou afetiva.
85

Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse caso,


acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua
perda de sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos
contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos
(ROLNIK, 2014, p. 23).

A cartografia tal qual objeto de estudo da psicologia não se equivale a


cartografia tradicional que representa medidas gráficas, mas sim a um estado de
ordenamento de ideias e experiências por parte dos seres humanos. O cartógrafo,
nesse sentido é o personagem que imerge nas estruturas psicossociais com o intuito
de esclarecê-las. A tarefa do cartógrafo, segundo Rolnik (2014, p. 23) é a de “dar
língua para afetos que pedem passagem”.
Pode-se traçar, portanto, um paralelo muito claro entre a figura do cartógrafo
da psicologia e do psicogeógrafo situacionista. O psicogeógrafo de acordo com as
definições da IS (1958) é o “indivíduo que pesquisa e transmite as realidades
psicogeográficas”, ou seja, o estudo do meio geográfico e dos elementos que agem
sobre o “comportamento afetivo dos indivíduos”. A similaridade referida se agudiza
quando Rolnik (2014, p. 66) argumenta que o que um sujeito cartógrafo deseja “é
mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer sua
travessia: pontes de linguagem”.
É interessante tratar ainda que, na avaliação de Rolnik, pouco importa quais os
domínios da vida social que o cartógrafo pode tomar como objeto de estudo. “O que
importa é que ele esteja atento às estratégias do desejo em qualquer fenômeno da
existência humana que se propõe perscrutar” (ROLNIK, 2014, p. 65). Assim sendo, é
sensato argumentar que o psicogeógrafo é uma ramificação do cartógrafo da
psicologia, um cartógrafo urbano.
Se esse cartógrafo urbano, ou psicogeógrafo, opera seus experimentos no
ambiento da cidade, ele necessita, impreterivelmente, despender atenção ao
comportamento do seu corpo no ambiente urbano. A esse corpo sensível, capaz de
apreender afetividades e projeções da cartografia é dado o nome de corpo vibrátil
(ROLNIK, 2014). Esse corpo é responsável por uma tarefa complexa, a de
compreender os movimentos desejantes dos aspectos sociais e naturais. No caso do
psicogeógrafo, a constituição de corpo vibrátil serve para a uma maior tomada de
consciência das razões e do próprio movimento do seu percurso na cidade.
86

Aliada a esta noção do corpo vibrátil, existe a reflexão sobre o caráter


interventivo de uma experiência a nível cartográfico, a noção de que uma avaliação
compassiva de um ambiente, incorpora também, de forma inequívoca, a intervenção
neste próprio ambiente. “Com o conceito de transversalidade, Guattari prepara a
definição do método cartográfico segundo o qual o trabalho da análise é a um só
tempo o de descrever, intervir e criar efeitos-subjetividade (PASSOS; BARROS, 2009,
p. 17, grifo nosso).
Algumas experimentações lastreadas por esse conceito de cartografia
sentimental e de corpo vibrátil interventivo já estão sendo realizadas no âmbito
urbano. O Programa de Pós-graduação de Arquitetura e Urbanismo da UFBA é um
dos incentivadores desses experimentos. Num artigo publicado pela revista Redobra,
editada pelo PPGAU-UFBA foi realizado um experimento que procurou expressar
através de um diagrama essa relação de análise-participação do cartógrafo na cidade.

Figura 32. “Diagrama Movimento como ferramenta: construção de narrativas cartográficas” (SCHVARSBERG, 2012).
87

Mais do que mapear os percursos, procurou-se cartografar ações, modos de usar


o espaço no tempo oportuno. A sobreposição de variados dispositivos de registro da
experiência, do vídeo à memória do corpo, constrói uma espécie de mapa de
procedimentos ou operações de sujeitos ambulantes, mas também do próprio cartógrafo
(SCHVARSBERG, 2012, p. 161).

O trabalho de Schvarsberg além de abarcar as questões relativas ao diagrama


e à cartografia sentimental demonstra que o estudo dessas relações pode auxiliar no
aprimoramento e na ampliação da visão sobre as intervenções experienciais
situacionistas. Em conjunto com as considerações sobre a fenomenologia e a
percepção atreladas as hipóteses situacionistas esses aprimoramentos configuram
uma base teórica que contribuirão para uma melhor adequação e processo de
investigação dos experimentos pretendidos pela presente pesquisa.

3.2 Aspectos Práticos

São objetivos de análise, a partir deste ponto, os elementos práticos de


desenvolvimento da presente investigação. A escolha desses parâmetros práticos foi
baseada em estudos sobre metodologia que, por sua vez, determinou a seguinte
conclusão: a investigação será baseada na documentação direta, por meio de
pesquisa de campo de caráter experimental e de proeminência qualitativa.
A documentação direta constitui-se, em geral, “no levantamento de dados no
próprio local onde os fenômenos ocorrem. Esses dados podem ser obtidos de duas
maneiras: através da pesquisa de campo ou da pesquisa de laboratório” (MARCONI;
LAKATOS, 2003, p. 186). Tendo em vista que o local cujo fenômenos serão
explorados pela deriva psicogeográfica será o centro do Recife pode-se estabelecer,
igualmente, que a investigação vigente terá a qualidade de uma pesquisa de campo.

3.2.1. Pesquisa de Campo

Consiste na observação de fatos e fenômenos tal como ocorrem


espontaneamente, na coleta de dados a eles referentes e no registro de variáveis que se
presume relevantes, para analisá-los. (TRUJILLO apud MARCONI, LAKATOS, 2003, p.
186).
88

A pesquisa de campo foi, deste modo, a modalidade escolhida para esta etapa
de investigação prática do trabalho. Ela se apresenta como inerente aos métodos
situacionistas, não apenas pela sua possibilidade de verificação de fatos e fenômenos
urbanos, como pelo caráter de avaliação das hipóteses de unidades de ambiência e
as plaques tournantes, levantadas no contexto desse campo, por exemplo.
Ainda segundo Marconi e Lakatos (2003), a pesquisa de campo consiste de
três fases. A primeira fase seria a da realização de uma pesquisa bibliográfica sobre
o tema em questão. Pode-se considerar, assim, que esta fase já foi amplamente
discutida na presente pesquisa, tanto nos dois primeiros capítulos que apresentam e
discutem os conceitos principais, quanto no início desse capítulo, dadas as discussões
acerca dos métodos.
A segunda fase se constitui da explicação sobre as técnicas empregadas na
pesquisa. Embora a deriva e a psicogeografia sejam conceitos amplos, e de caráter
especulativo abrangente, para fins desta pesquisa serão consideradas as técnicas de
investigação da pesquisa de campo. Esta adaptação não constitui um reducionismo,
mas um emparelhamento de conceitos para uma abordagem de pesquisa mais eficaz.
Além disso, para além do seu posicionamento enquanto técnica, os métodos
situacionistas serão também objetos de estudo da pesquisa, por serem eles os
elementos sobre os quais incidem os questionamentos de toda a investigação.
Na terceira e última fase de estruturação de uma pesquisa de campo torna-se
necessário “estabelecer tanto as técnicas de registro desses dados como as técnicas
que serão utilizadas em sua análise posterior” (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 186).
Pautado nessa consideração, pode-se confirmar que o registro e a avalição do uso de
técnicas situacionistas só podem ser pensados sob um ponto de vista qualitativo.
A pesquisa qualitativa gera em torno de sua existência grande discussões
acerca do seu caráter cientifico. Segundo Moreira (2002, p. 44) “a pesquisa qualitativa
abdica total ou quase totalmente das abordagens matemáticas no tratamento dos
dados, trabalhando preferencialmente com as palavras oral e escrita, com sons,
imagens, símbolos, etc.”. E, por conta disso, provoca embates entre modos de
avalição de tendência positivista e os de tendência interpretacionista (MOREIRA,
2002). Nesse sentido, deve-se ponderar que numa pesquisa baseada em preceitos
situacionistas não há sentido em considerar registros e considerações matemáticas
89

ou quantitativas, mas uma abordagem cujas interpretações tenham ênfase no caráter


processual e na reflexão.
O tema do pesquisador enquanto participante e influenciador da mesma
também se configura como um assunto a ser ponderado nesse quesito. A este tipo de
procedimento dá-se o nome de pesquisa-ação. A pesquisa-ação não se dissocia da
pesquisa qualitativa, ela se comporta como um acessório desta. De acordo com
Günther (2006, p. 6), a pesquisa-ação “independe da técnica, podendo ser utilizada
com experimento”, o que configura mais um ponto de convergência com os processos
situacionistas.
Tendo em vista estas questões levantadas sobre a pesquisa-ação, confirma-se
que a utilização de um modo eficaz dos métodos situacionistas depende de um certo
grau de imersão na teoria. O uso dos conhecimentos da aplicação destes métodos
por parte de um pesquisador-ativo, nesse caso, torna-se indispensável. Assim sendo,
a pesquisa qualitativa se mostra ainda mais adequada às intenções deste trabalho,
por seu caráter tolerante em relação ao posicionamento do pesquisador e da
pesquisa.

Uma primeira distinção entre a pesquisa qualitativa e a pesquisa quantitativa


refere-se ao fato de que na pesquisa qualitativa há aceitação explícita da influência de
crenças e valores sobre a teoria, sobre a escolha de tópicos de pesquisa, sobre o método
e sobre a interpretação de resultados. (...) Além da influência de valores no processo de
pesquisa, há de se constatar um envolvimento emocional do pesquisador com o seu tema
de investigação. A aceitação de tal envolvimento caracterizaria a pesquisa qualitativa. Já
a intenção de controlá-lo, ou sua negação, caracterizariam a pesquisa quantitativa
(GÜNTHER, 2006).

Outro ponto, e talvez o mais importante, em relação à pesquisa qualitativa diz


respeito aos meios de representação e avaliação da investigação. Nesse sentido
Günther (2006, p.7) pondera dois aspectos importantes. O primeiro afirma que “os
meios de representação de dados de qualquer pesquisa são intimamente ligados às
técnicas de coleta dos mesmos”. O segundo sugere que um dos modos de avaliação
da pesquisa qualitativa pode ser a análise fenomenológica (GÜNTHER, 2006, p.7),
afirmação que também se concatena com as discussões relativas a metodologia da
pesquisa. Deste modo, pode-se argumentar que o modo de pesquisa cujas maneiras
90

de representação e avaliação são realizadas de acordo com a ênfase qualitativa é o


modo mais adequado aos propósitos da pesquisa vigente.

3.2.2. Objeto, Objetivos e Etapas

Como já argumentado no corpo desta dissertação, os objetos de análise da


pesquisa serão as técnicas situacionistas da deriva e psicogeografia. Esta escolha
visa classificá-las de acordo com o seu grau de eficácia, sob uma perspectiva
qualitativa, em relação a psicogeografia enquanto instrumento de apreensão de
aspectos afetivos da cidade, a deriva enquanto método de passagens por ambiências
e contraponto a um modo de circulação automatizada nas cidades, e a verificação das
hipóteses de unidades de ambiência e plaques tournantes. Além de uma possível
ampliação dessas proposições levantadas sobre a cidade, em virtude da aplicação
desses métodos.
A reunião desses ajuizamentos pode ser resumida numa única finalidade, que
se configura, portanto, como o objetivo geral desta pesquisa: analisar os processos
e resultados da aplicação da deriva e da psicogeografia, métodos provenientes
da Internacional Situacionista, no centro expandido do Recife.
A partir destes aspectos chegamos aos objetivos específicos, que têm a
finalidade instrumental de resolver etapas particulares do processo, contribuindo
assim para a complementação geral da pesquisa. São quatro os objetivos específicos
desta pesquisa, sendo o primeiro:

1. Explicitar as principais características dos métodos da deriva e da psicogeografia


de acordo com os objetivos da Internacional Situacionista.

O primeiro objetivo específico foi contemplado nos dois primeiros capítulos


desta dissertação, na qual foram apresentados os preceitos e as especificidades dos
métodos sob a luz das teorias situacionistas. Sobram, portanto, três objetivos, que
tiveram sua estruturação baseada nas discussões de metodologia apresentadas no
presente capítulo. São estes:
91

2. Planejar a aplicação dos métodos com a delimitação geográfica e instrumental,


utilizando exercícios piloto como parâmetro.

3. Aplicar os métodos situacionistas enquanto instrumentos de investigação


experimental do centro expandido do Recife.

4. Analisar os resultados da aplicação, tendo em vista às pressuposições qualitativas


de julgamento dos registros e processos.

A resolução do segundo objetivo específico será tratada ainda neste capítulo,


tendo em vista o caráter metodológico de estruturação de experimentos auxiliares,
como os pilotos e os problemas levantados relativos a delimitação de um campo de
pesquisa. Todavia, os dois últimos objetivos serão abordados nos capítulos seguintes,
cujos fins serão, respectivamente, o experimento dos métodos e suas conclusões.

3.2.3. Sítio de Aplicação

O campo espacial da deriva é mais exato ou vago de acordo com o objetivo


dessa atividade. (...) Em qualquer caso, o campo espacial é antes de tudo função das
bases de partida constituídas, para os sujeitos isolados, por seu domicílio, e, para os
grupos, pelos pontos de reunião escolhidos. (DEBORD, 1956).

Com base nessa passagem, na necessidade de se derivar em centros urbanos,


e ainda em avaliações sobre o contexto urbano-geográfico da cidade do Recife,
chega-se à conclusão de que centro expandido do Recife é uma excelente alternativa
ao espaço de aplicação das derivas e circunspecções psicogeográficas propostas.
O centro expandido do Recife é denominado por pesquisadores (ARAÚJO,
2012) e técnicos (BARROS, 2013) como sendo um local, a partir do bairro do Recife,
onde se registra a maior aglomeração de transeuntes devido ao dinamismo das
atividades que ali se desenvolvem. Os bairros do Recife Antigo, da Boa Vista, de
Santo Antônio e São José são palco de edifícios modernos inseridos entre casarios e
sobrados envelhecidos, que além de oferecerem um aspecto de variedade à cidade,
contribuem para uma configuração esteticamente plural e uma disposição geográfica
92

de ambiências distintas, com becos, largos, grandes avenidas e ampla alternância


entre cheios e vazios.
Além disso, a área também comporta uma imensa diversidade social, com
múltiplos personagens, como vendedores ambulantes, trabalhadores formais, artistas
de rua, entre outros cidadãos comuns à centralidade metropolitana. Ainda com relação
à arquitetura e o urbanismo pode-se destacar a vitalidade urbana, principalmente no
período diurno; a mistura de usos dos edifícios que abrigam, por vezes, ao mesmo
tempo comércio, serviços e escritórios de trabalho; e ainda, a concentração de
espaços públicos e edifícios de valor histórico para a cidade.
Para fins desta pesquisa, portanto, a delimitação do Centro Expandido
equivalerá à Região Político Administrativa 1 (RPA1), demarcada pela Prefeitura da
Cidade do Recife, e que tem o seu centro composto majoritariamente pelos bairros
citados anteriormente.

Figura 33. Imagem aérea de parte do centro do Recife.


93

Figura 34. Mapa dos bairros referentes a RPA-1, PCR, 2001.

3.3. Confecção de Pesquisa-piloto

Haja vista o caráter experimental e fenomenológico da pesquisa, uma das


formas de contribuir para uma execução eficaz dos experimentos é testá-los de
maneira previa a acertar, por exemplo, que acessórios levar para pesquisa de campo,
quais os melhores dias e horário para a execução das técnicas, entre outros aspectos
próprios de uma experiência direta da cidade. Para tanto, fica estabelecido o uso das
pesquisas-piloto como etapa metodológica de pesquisa.

A pesquisa-piloto tem, como uma das principais funções, testar o instrumento de


coleta de dados. A pesquisa-piloto evidenciará ainda: ambiguidade das questões,
existência de perguntas supérfluas, adequação ou não da ordem de apresentação das
questões, se são muito numerosas ou, ao contrário, necessitam ser complementadas etc.
Uma vez constatadas as falhas, reformula-se o instrumento, conservando, modificando,
ampliando, desdobrando ou alterando itens; explicitando melhor algumas questões ou
modificando a redação de outras (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 228).
94

As pesquisas-piloto ou pré-testes têm, portanto, uma função fundamental de


adequação dos objetivos para uma maior eficácia na aplicação dos métodos. Elas
servem como balizadores para possíveis equívocos ou parâmetros desnecessários
que tenham sido incluídos na fase teórica da metodologia, onde poucas coisas de fato
foram testadas. Demonstra-se em seguida, portanto, a descrição e análise de seis
pesquisas-piloto realizadas objetivando a pesquisa em vigor.

3.3.1 Piloto 01

A primeira pesquisa piloto constituiu-se de uma deriva realizada pelo próprio


pesquisador no mês de janeiro. A intenção principal era constatar alguns fatores como
o seu tempo médio de duração, a possibilidade de registros e as possíveis
complicações relativas ao horário, clima e movimento na cidade. O horário escolhido
foi o da tarde, por volta de uma hora. A Av. Agamenon Magalhães foi pensada como
local de início por estar situada às margens do sítio de aplicação. A lógica do trajeto
seria, portanto, sair das bordas da área de pesquisa no sentido do seu centro. Alguns
dos acessórios levados pelo pesquisador foram: um smartphone apto a fotografar e
pesquisar dados via internet; um mapa do centro do Recife para registros analógicos
sobre percurso ou fenômenos geográficos; e um caderno para anotações em escrito.
Talvez por conta da recente imersão de leitura do Esboço de Descrição
Psicogeográfica de Les Halles, o pesquisador tenha sido impelido a registrar a deriva
em forma de notas, que posteriormente se transformaram num relato psicogeográfico
ilustrado por algumas poucas fotografias, devido à dedicação às anotações. Segue,
portanto, trechos do relato38 realizado durante a deriva, seguido por algumas
fotografias e registros:

A Rua João Fernandes Vieira tem uma ambiência muito particular, apesar de ser
um ambiente de trabalho, com escritórios, repartições, entre outras coisas. A sombra das
árvores e atmosfera contribuem para uma sensação de relaxamento (MONTE, 2015).

38
Para relato completo ver Apêndice A.
95

Figura 35. Ilustração da Rua João Fernandes Vieira. Foto do autor.

O contraste da Rua José Mariano em relação ao bairro dos Coelhos em suas


costas é incrível. Pode-se perceber a vida de fato, típica das periferias da cidade em meio
a brechas que aparecem num cenário de armazéns e comércio pesado, de onde são
tiradas matérias primas para construções da sociedade atual, que nada tem de
construtivas. Um conselho aos transeuntes da José Mariano é espiar, e quem sabe
adentrar à vida real que se revela entre as brechas (MONTE, 2015).

Figura 36. Exemplo de registros da deriva. Documento do autor.


96

Figura 37. Mapa de ilustração do percurso da deriva. Documento do autor.

A duração completa dessa experiência foi de aproximadamente quatro horas,


e apesar de ter gerado alguns resultados físicos interessantes é preciso levar em
conta a dificuldade de se construir um relato em plano estado de deriva. A parada em
pontos estratégicos para tomada de notas dispende tempo que poderia ser gasto num
mergulho maior na própria experiência e levantamento de hipóteses, e menos na
descrição de ambiências.
A experiência desse piloto também foi importante para a constatação de que o
horário da tarde em certos pontos é prejudicial, por conta da incidência do sol, mas
que, mesmo assim, deve insistir na ideia de derivar durante o dia, por conta da grande
profusão de fenômenos e acontecimentos possíveis próprios de uma cidade no seu
período diurno. Além disso, os relatos e mapeamentos também se confirmaram como
elementos de estímulo à verificação das hipóteses de plaque tournantes e unidades
de ambiência.
97

3.3.2 Piloto 02

A pesquisa-piloto de número dois foi realizada em trio. Os membros desse trio


foram compostos pelo autor da pesquisa e mais dois pesquisadores-participantes:
Matheus Mota e Rodrigo Cm. O horário de início da deriva foi estabelecido pelo grupo
como sendo o das nove da manhã, escolhido principalmente pela disponibilidade de
tempo dos participantes. O local determinado para início da deriva foi o entorno da
UNICAP (Universidade Católica de Pernambuco), pelo grande movimento de pessoas
e aspecto agregador do lugar. Por conta do atraso do pesquisador Rodrigo Cm, a
deriva começou com apenas dois participantes.
O trajeto teve início na Rua Bernardo Guimarães, também conhecida como a
“Rua do Lazer” da UNICAP, e seguiu por uma rua perpendicular à Rua do Príncipe,
no sentido da Av. Conde da Boa Vista. Nesse trecho, devido ao surgimento de um
elemento inesperado, a deriva tomou um rumo baseado nos preceitos do jogo
situacionista. A dupla iniciante da deriva resolveu seguir uma pessoa na rua. Segue o
relato39 de descrição da situação:

Dobramos no sentido da Conde da Boa Vista e, no meio de explicações sobre a


Internacional Situacionista, Matheus me alerta sobre um transeunte: – Tá ligado nesse
velho? – É Daniel Santiago (falamos em uníssono). Vidrado, então, nas possibilidades de
uma deriva convenço Matheus a segui-lo (por um momento achamos que ele iria visitar
Bruscky). Mas Daniel só estava a caminho do Céu e Terra, alguma loja de homeopatia ou
coisa parecida. Resolvemos parar de segui-lo e de seguir pessoas em geral (MONTE,
2015).

O sentimento de jogo da deriva foi esquecido e desarticulado também por conta


do calor excessivo proveniente do sol. Mesmo antes de chegar a Av. Conde da Boa
Vista a dupla se abrigou num shopping no intuito de amenizar os efeitos do clima. Ao
encontrar o terceiro participante, ainda no ambiente do shopping, o grupo, em
conversa sobre os futuros passos da deriva, decide por um trajeto que se dedica a
explorar ainda mais o bairro da Boa Vista. A escolha desse trajeto acaba por
influenciar o reconhecimento de dois perfis de ambiências. Na primeira as afetividades
se relacionaram à arquitetura da Rua José de Alencar, principalmente a dos edifícios

39
Para relato completo ver Apêndice B.
98

modernistas e dos casarões presentes na rua, cujo envelhecimento foi considerado


pelo trio como esteticamente atraente.

Figura 38. Edifício na Rua José de Alencar. Foto do autor.

Figura 39. Casarão na Rua José de Alencar. Fonte: Google Maps.

No segundo perfil de ambiências, o aspecto de abandono em contraste com o


de vida oculta presente em algumas ruas foi a tônica de reconhecimento de
atmosferas. O casario para alugar na Rua Visconde de Goiana e o espaço de
assistência técnica de máquinas de costura, da Rua das Ninfas, servem para ilustrar
esse sentimento. Em ambos os casos, de acordo com os pesquisadores, as
ambiências das ruas traduzem movimentos atmosfericamente camuflados, como um
rastro de fatos e momentos vividos da cidade.
99

Figuras 40 e 41. Rodrigo e Matheus no casario; Assistência de máquinas de costura. Fotos: Luiz do Monte e Matheus Mota.

Um outro aspecto interessante da presente deriva foi o registro do percurso


realizado com auxílio de um aplicativo de GPS para smartphone. O aplicativo
chamado Map My Walk permite o registro georreferenciado de caminhadas na cidade.
Com isso foi possível elaborar um mapa que representasse o percurso afetivo de
caminho da deriva sem grandes preocupações com anotações analógicas.

Figura 42. Exemplo de registro do Map my Walk. Arquivo do autor.


100

A pesquisa-piloto de número dois durou aproximadamente três horas e se


configurou como uma deriva onde foram testadas a inclusão do jogo enquanto
possibilidades estéticas, a breve exploração de algumas ambiências e o uso do relato
escrito como um dos instrumentos de registro. E, por fim, o uso de recursos digitais
no registro dos percursos e ações do trajeto.

3.3.3 Piloto 03

Para a terceira deriva-piloto foi novamente montado um grupo de três


participantes, entretanto, novamente por conta do atraso de um deles deriva se iniciou
em dupla. A dupla de início foi formada pelo próprio autor da pesquisa e o
pesquisador-participante João Pessoa que se encontraram por volta das nove horas
da manhã. O local escolhido para o encontro foi a Praça Marco Zero do Recife, que
na avaliação dos participantes, funciona como um local que remete ao conceito de
plaque tournante, por ser um ponto de referência e ampla movimentação na cidade.
O início da deriva se deu numa área de ambiências classificadas como
confusas, no bairro do Recife Antigo. A área em questão se configura pelas Ruas do
Brum, a Rua Bernardo Vieira de Melo suas ruas perpendiculares. Nesse local, a
pluralidade de aspectos estéticos causou um tipo desordem no olhar dos
pesquisadores. As diferenças estéticas entre edifícios institucionais e áreas de
moradia e vivência natural da rua concedem à atmosfera do lugar uma ambiguidade
classificada pela dupla como interessante. Como, por exemplo, o contraste entre os
silos graneleiros e o Bar da Nalva, ponto característico da comunidade do Pilar.

Figuras 43 e 44. Silos de armazenamento e Bar da Nalva. Fotos do autor.


101

Por conta de sua imprecisão atmosférica, os contrastes dessa unidade de


ambiência foram associados com uma unidade semelhante pertencente a Rua José
Mariano (ver apêndice A), o que acabou por gerar uma relação gráfica improvisada
no mapa relativo à deriva.

Figura 45. Relação entre unidades de ambiência. Desenho do autor.

Após a chegada do terceiro membro, a pesquisadora-participante Bruna Ferrer,


a deriva acaba por tomar um rumo diferente no aspecto teórico, entretanto semelhante
no que se refere ao percurso. Ainda pelo entorno da Rua do Brum e imediações da
Praça do Arsenal o grupo tem a ideia de iniciar experiências concernentes ao conceito
de jogo situacionista. Por conta do calor e sol excessivo das horas próximas ao meio-
dia o grupo teve a ideia de empreender uma caminhada apenas na parte sombreadas
das ruas e calçadas.
Essa experiência acabou se desdobrando em outras brincadeiras, como o
percurso apenas sobre pedras de cor escura, o percurso seguindo apenas os trilhos
a antigos dos bondes, entre outros. Alguns desses jogos foram registrados não
apenas em fotografia, como também em vídeos40 via smartphones, ampliando, desta
maneira, o leque de possibilidades de registro das ações em deriva.

40
Vídeos e outros registros dos pilotos e experimentos disponíveis no blog: cargocollective.com/recifedeandada
102

Figuras 46 e 47. Frames dos vídeos do percurso das sombras e das pedras. Arquivo do autor.

Depois dessa incursão ao jogo situacionista realizada pelo grupo, houve um


retorno à deriva enquanto recurso de passagem rápida e os participantes rumaram
em direção ao lado oposto da ilha do Recife Antigo. Nesse novo sítio, cuja ambiência
é formada pela Rua da Moeda, Rua Tomazina, Rua Dona Maria César e adjacências,
foi diagnosticada uma ambiência de atmosfera amena. Esta ambiência foi classificada
pelo grupo como uma ambiência de ruínas afáveis. Nela, de fato, existem prédios
abandonados, mas que por aspectos estéticos e afetuosos transmitem um sentimento
de nostalgia e tranquilidade aos passantes, talvez por se postarem de maneira
marginal, porém admirável, frente aos edifícios e os transeuntes da área.

Figuras 48 e 49. Ruínas do Recife antigo Fotos: Luiz Monte e João Pessoa.
103

Figura 50. Registro da deriva pelo Map my Walk. Arquivo do autor.

Esta pesquisa-piloto também teve duração aproximada de três horas. Nela


foram usados os mesmos recursos da segunda pesquisa, como a compreensão do
jogo enquanto possibilidade lúdico-construtiva da deriva, o uso de fotografias e vídeos
do Map my Walk no registro dos percursos e ações. E ainda, a relação entre unidades
de ambiências afastadas pela geografia, desta vez relacionadas por meio de um
esboço psicogeográfico no mapa da cidade.

3.3.4 Piloto 04

A quarta pesquisa foi realizada em dupla composta pelo autor da pesquisa e


pela pesquisadora-participante Bruna Ferrer. A deriva iniciou seu percurso na praça
do Marco Zero, no bairro do Recife antigo, às nove da manhã, pelas mesmas razões
da terceira pesquisa, e teve seu percurso caracterizado por aspectos interessantes.
O primeiro foi a investigação, por intermédio de contemplação e conversa com outros
transeuntes e trabalhadores da região em relação à história de alguns dos espaços e
edifícios antigos da região. Essa verificação balizou o reconhecimento de algumas
ambiências típicas do bairro como, por exemplo, a Rua da Guia e a Rua do Apolo, que
possuem edifícios que costumavam abrigar diferentes serviços dos atuais, e que
mesmo tendo mudado de função conservam a aura de suas funções passadas. Como
104

o Ed. Cristina Tavares na Rua da Guia, onde hoje funciona um edifício de escritórios
e um antigo armazém na Rua do Apolo onde atualmente existe um estacionamento.
O outro aspecto interessante do trajeto, foi a influência dos sons como
elementos de desvio do percurso. Em vários momentos da deriva a dupla foi capturada
por elementos sonoros do cotidiano da cidade. O primeiro elemento sonoro foram as
palmas em um edifício da Rua da Guia onde acontecia algum tipo de terapia corporal
coletiva. Esse desvio de rota fez, inclusive, com que a dupla entrasse no edifício e
conversasse com o recepcionista, inteirando-se dos serviços oferecidos no lugar.
Outro elemento sonoro que influenciou no andamento da dupla foi a passagem
de um protesto de funcionários do transporte público enquanto os pesquisadores
cruzavam a Av. Martins de Barros. Ao escutar as palavras de ordem dos manifestantes
com megafones a dupla refreou seu rumo e tomou o sentido da avenida,
acompanhando e filmando41 parte da realização do protesto. Uma constatação dos
pesquisadores em relação ao protesto foi a mudança efêmera na ambiência da rua. A
existência de um acontecimento de força maior numa cidade, como um protesto ou
parada, tem a capacidade de alterar de forma momentânea as relações estéticas e
sociais de uma ambiência. As mudanças das conversas entre os cidadãos, a alteração
de visão em perspectiva dos elementos do ambiente, por conta de possibilidade de se
andar pelo asfalto, entre outros aspectos, confere um caráter alterador de ambiências
a esses acontecimentos facilitando, inclusive, o surgimento de elementos lúdicos.

Figura 51. Frame de vídeo de gravação do protesto na Av. Martins de Barros. Arquivo do autor.

41
Vídeos e outros registros dos pilotos e experimentos disponíveis no blog: cargocollective.com/recifedeandada
105

Após o protesto, a deambulação empreendida pela dupla continuou no sentido


dos bairros de Santo Antônio e São José, principalmente nas ruas de movimento
comercial. A questão lúdica e sazonal do período do carnaval foi um elemento de forte
atração para essa escolha. Nesta caminhada pelo centro comercial os pesquisadores
fizeram uso do aplicativo para smartphone Instragram como recurso de registro. Além
da possibilidade de tratamento das fotografias o Instagram permite referenciá-las
geograficamente. Diferentemente do Map my Walk, o aplicativo não faz o registro do
percurso do usuário, mas possibilita a marcação exata dos pontos onde foram
realizadas, o que abre a possibilidade para a construção de um mapa afetivo baseado
em fotografias de derivas.

Figura 52. Exemplo de mapa elaborado no Instagram. Arquivo do autor.

O uso do Instagram também incentivou a ampliação do registro fotográfico da


deriva. A quantidade de fotos realizadas neste piloto foi consideravelmente maior que
nos anteriores, o que acabou gerando uma modesta historiografia de pequenos
trechos e ambiências do trajeto por intermédio de imagens.
106

Figuras 53, 54, 55 e 56. Imagens da ambiência dos arredores do Mercado de São José. Fotos do autor.

Nas ruas próximas ao Mercado de São José, a dupla diagnosticou uma


ambiência classificada como alegre. A profusão de cores, a multiplicidade de
fenômenos e o perfil dos transeuntes foi o que levou os pesquisadores a essa
conclusão. Além disso, outra influência de elemento sonoro acabou por influenciar o
trajeto no bairro de São José. Em determinado momento, os pesquisadores seguiram
um carrinho de venda acessórios culinários ao ouvirem por intermédio do sistema de
som um aviso de que nele se vendia a “famosa cuscuzeira peito-de-moça”. Esse fato
contribuiu ainda mais para a classificação dessa ambiência como descontraída.
Esta pesquisa-piloto também foi importante para o reconhecimento de que a
deriva é capaz de alterar a noção de tempo de seus participantes. A dupla participante
deste quarto piloto percebeu que, em dado momento, escapou da lógica de
107

necessidade de compartimentação do tempo para realização de tarefas cotidianas, e


concordaram em relação ao sentimento de liberdade ao experimentar o tempo da
deriva de acordo com suas vontades plenas.
Outro fato interessante deste percurso foi a passagem por um edifício em
ruínas, por conta de um incêndio, situado na Rua Direita. A experiência de sentir-se
impelido a entrar num espaço em ruínas42, mesmo sob olhares atentos dos
transeuntes, foi constatada e conceituada pela dupla como mais um elemento típico
do sentimento de jogo presente na deriva. Sentimento ao qual Guy Debord se refere
na própria Teoria da Deriva:

Assim, o modo de vida pouco coerente, e até certas brincadeiras consideradas


duvidosas, que sempre foram muito apreciadas por nosso grupo – como, por exemplo,
entrar de noite em prédios de demolição, (...) – são decorrentes de um sentimento mais
geral que corresponde ao sentimento de deriva (DEBORD, 1957).

Figura 57. Interior do edifício em ruínas da Rua Direita. Foto do autor.

A presente pesquisa-piloto, por conta da quantidade de elementos


interessantes, acabou sendo uma das experiências mais longas, tendo a duração
aproximada de seis horas. Ela se mostrou importante pela inclusão de novos aspectos

42
Vídeos da ruína e outros registros dos pilotos e experimentos disponíveis no blog: cargocollective.com/recifedeandada
108

de alteração de percurso, como os elementos sonoros da cidade; pelo uso de um novo


recurso de registro e mapeamento dos fenômenos, o Instagram; e pela constatação
de alteração da noção de tempo e do sentimento de jogo ocasionados pela deriva.
Por fim, a pesquisa também teve seu percurso georreferenciado pelo aplicativo Map
my Walk, que demonstrou o quanto o percurso se focou nas imediações dos bairros
de Santo Antônio e São José.

Figura 58. Registro da quarta pesquisa piloto em mapa. Arquivo do autor.

3.3.5 Piloto 05

Na quinta pesquisa-piloto o autor da pesquisa e os pesquisadores-participantes


Bruna Ferrer e João Pessoa se reuniram com outros participantes que se propuseram
a caminhar pela cidade por ocasião do exercício de uma disciplina da Pós-Graduação
em Design da UFPE. O local de encontro do grupo foi a padaria Duque de Caxias,
sugerido pela pesquisadora-participante Bruna Ferrer, por se tratar de um local de
memória afetiva do centro da cidade, estando a padaria situada no térreo do Arranha-
céu da Pracinha, prédio simbólico situado na Praça da Independência, no bairro de
Santo Antônio.
Os participantes iniciaram o percurso por volta das duas da tarde, por conta da
disponibilidade de horário dos membros. Os rumos da deriva também foram
109

majoritariamente guiados pela pesquisadora-participante Bruna Ferrer, muito embora


outros participantes e situações tenham interferido no caminho. Durante a pesquisa
houve novamente a tendência atrativa de caminhar pelas ruas de atmosfera
comercial, como a Rua Duque de Caxias, a Rua do Livramento e a Rua Direita.
Nesta deriva foi adotada, pelos membros, uma estratégia diferente de pesquisa:
a condição de caminhar olhando para cima. Essa condição se mostrou interessante
pela sua equivalência com o caráter da deriva de projetar olhares não habituais sobre
a cidade. O “olhar para cima” despertou conversas entre os participantes e fotografias
de edifícios considerados pelo grupo como interessantes, como dois edifícios da Rua
Duque de Caxias, um de estética art déco e outro que continha um deslocamento
diferente em sua fachada, habitada pelos característicos pombos do centro. Além
desses, também foram foco da atenção do grupo um quarto construído bem no alto
de um sobrado, similar a um campanário, e o Ed. Coelho, situado na Rua Imperatriz.

Figuras 59, 60, 61 e 62. Registro dos edifícios resultados do “olhar para cima”. Fotos do autor.
110

A condição de olhar para os fenômenos e elementos no alto da rua pode ser


vista também como recurso da deriva e mais um artifício próximo do conceito de jogo
situacionista. A espontaneidade dos acontecimentos pertinentes a esse ato auxilia
nessa suposição. A possibilidade de possíveis tropeços no trajeto, devido a
irregularidade dos pisos do centro, e ainda, a atitude dos transeuntes e trabalhadores
de acompanhar o olhar dos pesquisadores, torna o “olhar para cima” um elemento
lúdico-performático nos trajetos da cidade.
Outro elemento importante desta pesquisa-piloto foi o uso de mais um aplicativo
de registro de imagens, o Snapchat. O Snapchat permite a realização de comentários
na própria fotografia, logo após o seu registro. Com essa possibilidade, a relação entre
a impressão sobre determinada ambiência ou atmosfera da fotografia se torna ainda
mais estreita. Durante esse quinto piloto, por exemplo, foram realizadas fotografias
cuja tônica, por vezes subjetiva da imagem, pôde ser registrada em textos adjacentes
à própria imagem, como ilustram as imagens a seguir:

Figuras 63 e 64. Registros das ambiências da Rua Direita e da praça do Pirulito. Fotos do autor.
111

Na imagem referente à Rua Direita há uma tentativa de descrição da própria


rua como conformadora de uma ambiência, por sua característica funcional de compra
de materiais próprios de projetos artísticos e pela sua atmosfera de cor e movimento.
Na imagem da Praça da Restauração, comumente chamada de Praça do Pirulito, por
conta do obelisco, foram identificadas pelos participantes, e registradas via Snapchat,
três ambiências. A primeira ambiência é referente a própria Praça, pelo seu aspecto
calmo e sombreado, a segunda é conformada pela Rua do Jardim e seu movimento
típico de comércio. E, por último, uma terceira ambiência ao longe, é categorizada
pelo fluxo intenso dos automóveis subindo e descendo o viaduto das Cinco Pontas.
Além do registro via Snapchat, mais uma vez foi utilizado o rastreamento pelo
aplicativo Map my Walk, que identificou a tendência do percurso pelas ruas comerciais
dos bairros de Santo Antônio e São José, e ainda, a atração gerada também pela Rua
da Imperatriz. Por sua característica de possuir edifícios interessantes de serem
contemplados pelo recurso do “olhar para cima”, fato indicado pela pesquisadora-
participante Bruna Ferrer.

Figura 65. Registro do percurso da pesquisa-piloto 05. Arquivo do autor.


112

A pesquisa-piloto de número cinco foi encerrada por volta das seis da noite,
tendo durado aproximadamente quatro horas. Ela se consolidou como mais uma
pesquisa de tendência a uma grande quantidade registros fotográficos, não apenas
por influência dos aplicativos de smartphone, mas também pela atenção concentrada
em elementos visuais, como a visão do alto dos edifícios e o reconhecimento de
ambiências por seus elementos palpáveis. Além disso, a pesquisa foi importante pela
introdução do uso do aplicativo Snapchat, que facilita o registro afetivo por meio de
fotos, e ainda, pela recorrência do uso do Map my Walk para anotação do percurso.

3.3.6 Piloto 06

Para esta pesquisa-piloto foi composto mais uma vez um trio de participantes:
o autor da pesquisa e os pesquisadores-participantes Augusto Ferrer e Bruno Cardim.
O horário de início da deriva, previsto pelo grupo, foi o horário da manhã com saída
por volta das nove horas, em função da opinião dos mesmos de que neste horário a
cidade demonstra de forma mais intensa a sua vitalidade. A maior disponibilidade de
horário dos pesquisadores-participantes dessa pesquisa em relação aos membros
das outras contribuiu para a extensão do tempo de percurso, o que, por sua vez,
colaborou para uma deriva ainda mais completa.
A deriva teve início em frente ao Shopping Boa Vista, após os participantes
avaliarem o local como um dos principais pontos de encontro da cidade, dada sua
característica de centralidade em relação a todo território do sítio de aplicação das
pesquisas, e ainda, pela sua proximidade com o conceito de plaque tournante
psicogeográfica, igualmente avaliado pelo trio. O trajeto seguiu por entre as ruas de
trás do edifício comercial, situadas mais ao sul do bairro.
O fator que caracterizou o diagnóstico de uma unidade de ambiência nessa
área foi o lodo, a pátina, e a vegetação incrustada em paredes, elementos peculiares
do envelhecimento de alguns edifícios. A ambiência gerada por esses elementos
agregados aos edifícios antigos foi reconhecida na Rua da Soledade, na Rua Manoel
Borba e na Rua Rosário da Boa Vista, e foi classificada pelo grupo como uma
ambiência em estado de descuido, porém de atmosfera atraente ao exercício de
deriva.
113

Figuras 66, 67 e 68. Imagens do percurso da pesquisa-piloto 06. Arquivo do autor.

Ainda no bairro da Boa Vista, o grupo caminhou até um ponto mais ao sul, em
direção ao rio e identificou outra unidade de ambiência, dessa vez conformada por um
pátio sombreado e ventilado, delimitado pelos edifícios e algumas barracas de lanche
da Rua Bulhões Marquês. Mais à frente na deriva, uma terceira ambiência foi
reconhecida pelo trio. A atmosfera bucólica, própria do pátio da Faculdade de Direito
do Recife, aliada à sua fácil e instintiva ligação com o parque de Treze de Maio, de
ambiência semelhante, conformou tal classificação. Os participantes caminharam por
ambos os “parques” e classificaram-nos como espaços de unidade de atmosfera
campestre, mesmo estando inseridos numa malha urbana.
Além dessas ambiências no bairro da Boa Vista, outra região, dessa vez no
bairro de Santo Antônio, foi classificada como uma unidade relacionada com as
ambiências anteriores. A Praça Dezessete, igualmente conhecida como a “Praça dos
Pombos Rosas”, também foi qualificada pelo grupo como dona de uma ambiência
amena em relação ao seu entorno movimentado. A inter-relação entre estas e outras
ambiências foi exercitada pelo grupo em um mapa de unidades de ambiências,
baseado nos preceitos situacionistas do recorte cartográfico de lotes e ruas, do
encurtamento de suas distâncias pela indicação de setas vermelhas e da inclusão de
alguns registros fotográficos.
114

Figura 69. Mapa de unidades de ambiência. Autores: Augusto Ferrer, Bruno Cardim e Luiz Monte.

Além do registro de unidades de ambiência, a cartografia também foi utilizada


pelo grupo como uma forma de registrar o percurso da deriva. O registro realizado
pelo Map my Walk serviu como base para a demarcação do passeio completo do trio,
que evidenciou uma maior concentração de percurso nos bairros da Boa Vista e de
Santo Antônio.

Figura 70. Mapa de percurso da pesquisa-piloto 06. Autores: Augusto Ferrer, Bruno Cardim e Luiz Monte.
115

A partir da experiência da confecção desses mapas, e de um nivelamento de


consciência do grupo sobre os aspectos principais de uma deriva, o trio chegou a
levantar algumas hipóteses relativas ao trajeto.
A primeira hipótese é concernente aos becos enquanto elementos de atração
e de passagem rápida entre ambiências distintas. A passagem do grupo por alguns
becos e vielas, principalmente os do bairro da Boa Vista, durante a caminhada
suscitou esta possível relação entre os becos e os elementos de desvio e atração
afetiva presentes nas derivas.
A segunda hipótese diz respeito às ruínas, e aos prédios abandonados ou
envelhecidos. A impressão do grupo sobre este tipo de edifícios foi a de que eles
funcionam como um dispositivo dúbio, gerando sentimentos que remetem ao
incômodo pela falta de cuidado na manutenção dos edifícios, mas que ao mesmo
tempo atraem o olhar por uma sensação de vivência antiga e histórias escondidas.

Figuras 71 e 72. Beco da Igreja do Divino Espírito Santo e antigo depósito da Singer. Fotos do autor.

Deste modo, a sexta e última pesquisa-piloto tornou-se uma investigação que


conseguiu identificar e relacionar ambiências por intermédio de cartografias afetivas.
Inaugurou o registro do percurso na forma de mapa elaborado pelos próprios
pesquisadores. Além de ter levantado novas hipóteses sobre elementos da cidade,
como as referentes aos becos e às ruínas.
116

3.3.7. Considerações Sobre os Pilotos

Tendo em vista que pesquisa-pilotos ou pré-testes servem para avaliar a


pertinência dos instrumentos e acessórios de pesquisa, serão descritas aqui algumas
considerações sobre os resultados das pesquisas-piloto. A manutenção de aspectos
considerados positivos e a mudança de resoluções sobre as premissas de pesquisa
têm intuito de tornar a aplicação dos próximos experimentos contundente e eficaz.

Finalmente, o pré-teste permite também a obtenção de uma estimativa sobre os


futuros resultados, podendo, inclusive, alterar hipóteses, modificar variáveis e a relação
entre elas. Dessa forma, haverá maior segurança e precisão para a execução da pesquisa
(MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 228).

Um dos pontos a serem discutidos diz respeito ao número de participantes da


deriva. Embora a deriva possa ser executada de modo individual, a experiência
adquirida com os pilotos demonstra que a técnica realizada em modo coletivo, com
participantes dispostos e abertos ao experimento torna a investigação ainda mais
produtiva. Esse fato é, inclusive, corroborado por um dos trechos da Teoria da Deriva:
“(...) tudo indica que a distribuição mais proveitosa será a que consiste em vários
grupinhos de duas ou três pessoas, com idêntico nível de consciência, cujas
observações serão confrontadas e levarão a conclusões objetivas” (DEBORD, 1957).
Outra questão abordada nas experiências-piloto e que também tem importância
para a elaboração dos experimentos é o tempo de duração e enfrentamento do clima
da deriva. Apesar das derivas estarem planejadas para o centro do Recife, cidade de
clima tropical, úmido e de forte insolação, grande parte dos eventos interessantes das
pesquisa-piloto aconteceram em horários onde o sol é presente, por exemplo, das
nove da manhã às seis da tarde.
É interessante para os experimentos que eles possam ocorrer em horários
onde os fenômenos e elementos da cidade estejam acontecendo de maneira plena.
Desse modo, as derivas no Recife podem ocorrer durante parte do dia, ou mesmo
durante todo dia até o período noturno, desde que sejam tomadas as devidas
proteções contra os raios do sol. A única observação em relação ao momento da
deriva diz respeito à madrugada, pela ausência da plenitude dos fenômenos da cidade
117

nesse período. “(...) convém lembrar que as horas da madrugada são em geral
impróprias à deriva” (DEBORD, 1957).
Pelo fato da maioria das pesquisas-piloto terem sido realizadas no período
diurno, abre-se, portanto, a possibilidade para que os experimentos possam adentrar
o início da noite, e talvez, durar por mais de um dia. “(...) certas derivas de intensidade
suficiente prolongaram-se por dois ou três dias, e até mais” (DEBORD, 1957).
Entretanto, ressalta-se o fato de que a maioria dos participantes das pesquisas-piloto
considera o período diurno como o mais propício às caminhadas.
Outro fato relevante para o planejamento de derivas é a questão do jogo
enquanto elemento de distração e contribuição para o aspecto lúdico de uma
caminhada psicogeográfica. O jogo, ilustrado em algumas situações das pesquisas-
piloto funcionou como um elemento de contraposição à vida corriqueira, ou seja, como
um artifício que auxilia o objetivo da deriva de projetar um olhar e uma condição
diferentes da vivência ordinária das cidades. Nesse sentido, o recurso do jogo foi
estabelecido como um potencial e importante instrumento para os experimentos.
Os aplicativos são mais um recurso que também se tornaram importantes a
partir das pesquisas-piloto. Contudo, além da evidente contribuição do Map my Walk,
do Instagram e do Snapchat para o registro das derivas, é interessante pensar na
utilização desviante das características desse aplicativos.
Por exemplo, o Map my Walk, aplicativo criado com o intuito de informar
trajetos, perda de calorias e distâncias para os corredores teve sua função alterada
para o mapeamento de derivas experimentais. O Instagram, cuja função prioritária é
o compartilhamento instantâneo de imagens entre usuários da plataforma, sofreu uma
perversão dessa serventia e foi utilizado nas derivas como instrumento de
mapeamento afetivo. E ainda, o Snapchat, aplicativo inventado para o envio de vídeos
e fotos que não geram registro, foi utilizado como um instrumento de realização
fotografias que traduziam sensações de ambiências. Essas pequenas corrupções dos
aplicativos podem ser relacionadas com o conceito de détournement situacionista, e
contribuem ainda mais para o entendimento da deriva enquanto um modo de
comportamento anti-espetacular.
Por fim, faz-se necessário a ponderação sobre os percursos e uma reavaliação
do campo experimental das derivas. Muito embora o Recife Antigo, o bairro de Santo
Amaro e outros bairros circunvizinhos possuam suas especificidades e ambiências,
118

pode-se notar pelos percursos das pesquisas-piloto uma maior profusão de


fenômenos nos bairros da Boa Vista e de Santo Antônio. Sendo assim, toma-se como
objetivo principal dos experimentos uma análise mais profunda desses dois bairros,
podendo-se estender o trajeto em casos de necessidades especiais guiadas pelo
contexto da deriva.
Assim sendo, considera-se que a análise dos pilotos, além de levantar novas
possibilidades de recursos e hipóteses sobre o centro do Recife, contribuiu de maneira
categórica com reflexões que auxiliarão na execução dos experimentos, no intuito de
realizá-los de uma maneira contundente e circunspecta.
119

4 EXPERIMENTAÇÃO E ANÁLISE
120

A primeira parte deste capítulo visa explicitar sobre quais condições e segundo
quais procedimentos os experimentos serão praticados e analisados. Em segundo
lugar, o capítulo visa relatar a aplicação dos experimentos, especificando suas
particularidades de prática e registro. E, por fim, traçar uma análise dessa aplicação,
organizando as reflexões e conclusões com vistas ao objetivo geral da pesquisa de
avaliar os métodos situacionistas de apreensão urbana.

4.1 Parâmetros de Aplicação

A partir das considerações realizadas acerca das pesquisas-piloto, alguns


parâmetros de pesquisa foram estabelecidos para a aplicação dos experimentos. O
primeiro diz respeito ao número de experimentos. Os experimentos se limitarão ao
número de três derivas, nas quais o tempo de execução pode variar de acordo com
suas necessidades de apreensão de elementos da cidade. Cada experimento pode
durar mais de um dia, de acordo com a resolução dos pesquisadores, e se utilizar
também de horas da noite caso esses pesquisadores avaliem a necessidade em
virtude do alcance do objetivo ou verificação das hipóteses de unidades de ambiência
e plaques tournantes. A limitação em três experimentos visa reduzir número de
amostragens para que a análise se torne mais detalhada em relação à pesquisa de
campo. O número ímpar tem o intuito de desempatar possíveis padrões que possam
vir a aparecer, auxiliando, deste modo, nas conclusões sobre as apreensões dos
fenômenos.
O segundo parâmetro se refere aos participantes do experimento. As derivas
realizadas com mais de duas pessoas foram avaliadas como as de melhor eficácia
não apenas em relação a apreensão dos elementos da cidade, como em relação ao
enriquecimento das avaliações sobre as ambiências e possíveis decisões de
percurso. Fica estabelecido, por conseguinte, que os experimentos serão realizados
com a presença de três pesquisadores-participantes, sendo eles: o autor da pesquisa
e os pesquisadores-participantes Augusto Ferrer e Bruno Cardim, membros da última
pesquisa-piloto. Essa escolha se deu em consequência das disponibilidades de
horário dos pesquisadores, além de seus apropriados níveis de conhecimento que os
pesquisadores citados demonstraram no que concerne ao objetivo geral da pesquisa.
121

O terceiro parâmetro definiu o horário de aplicação das derivas. A


preponderância do horário de início das pesquisas-piloto se deu no período diurno, e
o intervalo onde ocorreu a maior parte das pesquisas foi das nove da manhã às cinco
da tarde. Esse espaço de tempo foi avaliado pela maioria dos pesquisadores como o
de melhor e mais espontânea apreensão dos elementos e contextos da cidade, em
virtude da naturalidade dos aspectos vitais da condição de centralidade urbana, como
a plenitude do comércio, do trânsito de pessoas, entre outros fatores.
O quarto parâmetro estabelecido visa confirmar o uso dos aplicativos como
instrumentos auxiliares à técnica de pesquisa. O Map my Walk será novamente
utilizado para o mapeamento dos percursos da deriva, o Instagram também figurará
como instrumento de auxílio no registro e mapeamento fotográfico, e o Snapchat
continua com sua característica de registro fotográfico com inserções verbais.
O quinto e último parâmetro estabelecido, ou melhor, redefinido, trata do campo
experiencial da deriva. Ao avaliar a tendência dos percursos nas pesquisas-piloto
realizadas no centro expendido do Recife chega-se à conclusão de que alguns bairros
geram maior interesse e condições para realização de derivas. É provável que a
atração por essa área seja produto das escolhas dos lugares de início das derivas,
além da personalidade e estado de espírito dos pesquisadores. O que, por sua vez,
explicita o caráter de peculiaridade das derivas, posto que o direcionamento e a
percepção dos acontecimentos se dá em função do tipo de olhar dos membros dessas
derivas.

Figura 73. Ilustração do campo experimental da pesquisa. Desenho do autor.


122

A nova área de pesquisa constitui-se, desta forma, pelo bairro da Boa Vista,
limitado a leste pela Av. Agamenon Magalhães, a norte pela Av. Mario Melo e ao sul
pelas ruas Padre Venâncio e Estado de Israel, assim como todo o bairro de Santo
Antônio e parte do bairro de São José até aproximadamente o Forte das Cinco Pontas,
como ilustrado anteriormente no mapa.
Não necessariamente classificado como parâmetro para aplicação dos
experimentos, mas como recurso grande importância para a experiência de deriva
está a inserção do jogo enquanto elemento de potencialização do caráter lúdico da
deriva, como no caso do “olhar para cima” e do passeio pela sombra, apresentados
nas pesquisas-piloto.
Por fim, é de interesse da pesquisa que a reunião desses parâmetros aplicados
aos exercícios de deriva resulte em registros de caráter diagramático e cartográfico,
os quais serão avaliados, assim como os procedimentos, de forma qualitativa. Essas
especificações visam consolidar os aspectos descritos nas ponderações teóricas e
metodológicas de forma a orientar os experimentos a serem realizados.
123

4.2 Experimentos

4.2.1 Primeiro Experimento

O primeiro exercício de deriva reuniu o trio de pesquisadores e teve seu início


em frente ao Shopping Boa Vista no horário combinado das nove da manhã. A escolha
do lugar se deu pela mesma razão da pesquisa-piloto de número seis. Por conta da
pluralidade de acessos, derivações possíveis, e grande movimento de transeuntes o
grupo, mais uma vez, considerou que o local se aproxima do conceito de plaque
tournante psicogeográfica. Além disso, a centralidade estratégica em relação a área
de estudo permite que se tenha uma visão e posicionamento centrífugos do campo
de estudo, ampliando as possibilidades de caminhos a seguir.
O grupo decidiu por caminhar pela Av. Conde da Boa Vista no sentido oeste,
mesmo sentido da Av. Agamenon Magalhães. Essa decisão se deu com vista do
reconhecimento de uma área pouco explorada nas pesquisas-piloto. Esse trajeto
acabou por direcionar alguns aspectos da deriva, o primeiro aspecto se relacionou
com a existência do beco lateral à URB/Recife, que liga a Av. Conde da Boa Vista à
Av. Oliveira Lima, para onde os pesquisadores foram atraídos e realizaram novamente
a reflexão sobre o caráter dos becos enquanto elementos de atração no percurso da
deriva e possíveis túneis de aceleração de transição entre distintas ambiências.
No caso desse beco, em particular, a mudança de atmosfera se dá em relação
a mudança da ambiência comercial e movimentada das calçadas da Av. Conde da
Boa Vista para um conjunto de elementos que configuram uma ambiência amena,
conformados pela Rua do Riachuelo, parte da Rua do Príncipe e a Rua do Sossego.
A entrada, por parte do trio, nessa nova ambiência despertou o segundo aspecto
relevante do início da deriva: a da pátina sobre edifícios envelhecidos enquanto
elementos geradores de atmosferas bucólicas e remotas.
A pátina, ou qualquer dos elementos referentes a ação das intempéries em
edificações, como o lodo ou a vegetação, foram interpretados, tal qual nas pesquisas-
piloto, como elementos conformadores de um tipo particular de espaço. Nesses
espaços a interpretação afetiva se relaciona a sentimentos de tranquilidade, e
sobretudo, a emoções nostálgicas, referentes a saudade de um passado não vivido.
124

O trio, como uma maneira de caracterização formal, decidiu nomear tais espaços de
ambiências nostálgicas.
Ao tratar da dimensão imaterial da pátina, Zancheti e outros autores (2008, p.
9) se baseiam em Bourdieu (1989) e De Certau (1994) ao afirmarem que esta
percepção está vinculada as práticas sociais e aos princípios historicamente
construídos das cidades, concluindo que:

A percepção da pátina se dá, nessa dimensão, pela manutenção das práticas


sociais antigas relacionadas a um lugar, tais como: procissões, blocos de carnaval,
vendedores ambulantes, pessoas sentadas nas calçadas e disposição de vasos nas
janelas, marcantes nas cidades brasileiras (ZANCHETI, 2008, p.9).

Nesse contexto, pode-se afirmar que a classificação da pátina como elemento


influenciador de ambiências nostálgicas tem seu sentido baseado na dimensão
imaterial à qual ela remete. Segundo considerações dos pesquisadores, a existência
da pátina parece denunciar a existência de acontecimentos. Movimentos de uma
cidade previamente viva, camuflada pelo tempo.

Figuras 74 e 75. O beco lateral à URB/Recife e um edifício envelhecido na Rua do Príncipe. Fotos do autor.
125

Além da pátina das edificações antigas, outro fator que ampliou a


caracterização do caráter bucólico da ambiência nas ruas citadas, principalmente na
Rua do Sossego, foi a presença da sombra das árvores. A adição das árvores nas
ruas de edifícios envelhecidos reforça a sensação de ambiente bucólico, pela
característica campestre das vegetações e pela sua capacidade de sombrear e
amenizar a temperatura dos ambientes.

Figura 76. Pátina em casa abandonada na Rua do Sossego. Foto do autor.

Figura 77. Ambiência da Rua Frei Miguelinho, perpendicular à Rua do Sossego. Foto do autor.
126

A deriva teve sua continuidade ainda pela região norte do bairro da Boa Vista.
Os elementos de atração e os comentários deixaram de contemplar a pátina e as
ambiências amenas e passaram a avaliar alguns edifícios e casas modernistas. As
casas conjugadas da Rua Bispo Cardoso Ayres, de aparências pré-modernas e o Ed.
Apollo XXI, cuja imponência remete, verdadeiramente, a um foguete espacial, se
configuram como elementos de destaque na ambiência limítrofe do bairro.

Figuras 78 e 79. Casas proto-modernas e Ed. Apollo XXI. Fotos do autor.

Após essa incursão pela parte norte do bairro, o trio desviou a trajetória no
sentido de retorno à Av. Conde da Boa Vista. Entretanto, antes de chegar na avenida
de fato, os pesquisadores descobriram, num dos boxes do térreo do Ed. Walfrido
Antunes, antigas máquinas de fliperama ainda em funcionamento. A parada para uma
rápida jogada, relembrando memórias afetivas de infância serviu como elemento
amplificador do conteúdo lúdico da deriva.

Figura 80. Uso dos fliperamas na galeria do Ed. Walfrido Antunes. Foto do autor.
127

Ao chegar à Av. Conde da Boa Vista os pesquisadores se depararam


novamente com a presença da pátina em edifícios antigos. Devido a escala dos
edifícios na cidade e sua inserção em uma ambiência de agitação, comércio e
serviços, os pesquisadores se inclinaram a classificar a presença da pátina da Av.
Conde da Boa Vista como diferente das anteriores. Ao analisar a carga imagética
apresentada pela perspectiva dos edifícios, o trio concluiu que apesar da diferente
apresentação visual, os prédios da avenida também comunicam de forma subjetiva
as antigas práticas e movimentos sociais da cidade.

Figuras 81 e 82. E. Fotos do autor.

Depois de atravessar a avenida, o trajeto seguiu em direção à parte sul do


bairro da Boa Vista. O caráter de diagnóstico de unidades de ambiências nostálgicas
continuou presente no trio, pincipalmente ao adentrarem nas ruas entre a Praça
Maciel Pinheiro o pátio de Santa Cruz, como a Rua da Matriz, a Rua Velha e a Rua
da Santa Cruz, dentre outras também situadas ao sul do bairro.
Nessa ambiência, a pátina não apenas evidencia o grau de envelhecimento dos
edifícios e dos espaços, como também seu abandono e em muitos casos, sua ruína.
128

Essa atmosfera também se apresenta como uma versão diferente de ambiência


nostálgica, apresentando forte elementos de degradação, que quando confrontados
com a memória de momentos vividos no passado acabam por gerar um sentimento
de consternação, dadas as atuais condições dos espaços. Um exemplo disso é o
edifício abandonado onde funcionou, nos anos 1950, o atelier coletivo de Abelardo da
Hora e ainda um casario em ruínas, situado na rua de nome devidamente apropriado
à ambiência, a Rua Velha.

Figuras 83 e 84. Edifício abandonado - antigo atelier de Abelardo da Hora e ruína na rua Velha. Fotos do autor.

A continuidade da deriva se deu ainda mais ao sul do bairro da Boa Vista. O


trio seguiu caminhando pela Rua São Gonçalo e pela Rua dos Coelhos quando
novamente o elemento do jogo situacionista desviou o trajeto. A simples, porém
incomum indicação da rua dos Prazeres numa placa enferrujada foi a responsável por
esse desvio e fez com que o trio adentrasse imediatamente à rua ao interpretarem o
conteúdo da placa como uma metáfora para os divertimentos da deriva.
Esse desvio acabou por transportar o grupo para um conjunto de ruas onde
existiam outros elementos de ambiências nostálgicas. Uma antiga casa na rua
Jornalista Edmundo Bitencourt e um casarão abandonado na Rua Barão de São Borja
remeteram ao grupo a mesma sensação experienciada nas ambiências adjuntas ao
Pátio de Santa Cruz. A reincidência dessa caracterização, por parte do trio de
pesquisa, foi responsável por confirmar a categorização da pátina e do
envelhecimento do edifícios como a tendência principal do experimento.
129

Figura 85. Placa de indicação da Rua dos Prazeres. Foto do autor.

Figuras 86 e 87. Casas na Rua Edmundo Bitencourt e na Rua Barão de São Borja. Fotos do autor.

Pela proximidade das cinco horas da tarde, após longo percurso pela parte sul
do bairro da Boa Vista, o trio decide por uma caminhada até o bairro de Santo Antônio,
com o propósito de se transferir de uma área de pouca movimentação de pessoas
para uma área de grande animação. Além isso, o trio também visava a passagem pela
ponte da Boa Vista para a contemplação do rio Capibaribe e da própria beleza da
ponte.
130

Por conta do cansaço inerente à já extensa jornada o trajeto se deu de forma


lenta e com paradas demoradas para conversas e descansos à sombra. E, apesar do
reconhecimento da pátina e da vegetação incrustada num edifício, cuja visada se deu
a partir da Rua Frei Caneca, o trio estendeu ainda mais o percurso até um bar no Pátio
de São Pedro, onde iniciaram uma reflexão sobre as ambiências nostálgicas e
assistiram ao início da noite no bairro.
As considerações sobre as ambiências nostálgicas no Pátio de São Pedro,
foram discutidas levando em conta os aspectos cartográficos da cidade. Debruçados
sobre o mapa do Recife, os pesquisadores se deram conta de que essas ambiências
tomam grande parte do campo experimental das derivas, e que existe uma grande
possibilidade de elaboração de mapas de inter-relações entre esses espaços. A
confecção de um mapa43 de relações de ambiência foi iniciada durante essa conversa
e posteriormente reorganizada em conjunto com os outros dois experimentos.

Figuras 88 e 89. Edifício visto da Rua Frei Caneca e Pátio de São Pedro. Fotos do autor.

A deriva continuou pela parte norte do bairro de Santo Antônio durante o início
da noite. A chegada da noite no centro do Recife coincide exatamente com o término
do horário comercial de trabalho, o que acaba por gerar uma mudança brusca no ritmo
das ambiências da cidade. O esvaziamento rápido de alguns espaços acaba por
ampliar a atmosfera bucólica desses lugares, como no caso da Av. Guararapes, que
durante todo período diurno abriga um enorme movimento de pedestres, e que a noite

43
Para apreciação do mapa de inter-relações de ambiências nostálgicas ver apêndice G.
131

se torna gradativamente mais vazia. Nesses espaços vazios a marca da pátina dos
edifícios modernos e calçadas se confunde com a sombra gerada pelas luzes
trazendo à tona novamente o sentimento de nostalgia atrelado ao de degradação e
angústia pelo abandono noturno desses espaços.

Figura 90. Galerias da Av. Guararapes no início da noite. Foto do autor.

Outro elemento diagnosticado pelo trio com capacidade de alterar a percepção


dos espaços à noite foi a iluminação pública. A falta de iluminação pública em certos
locais combinada com a existência em outros, como nas luzes dos postes, dos prédios
públicos e das igrejas, gera um contraste de luz e sombra próprios do período noturno
daquele espaço. Além disso, também é possível perceber o surgimento de novos
elementos, como os letreiros iluminados, em placas, ou mesmo em neon, que
adicionados ao jogo de sombras remetem a uma atmosfera própria dos filmes noir44.
Essas características podem ser percebidas, por exemplo, no espaço da Av. Dantas
Barreto.

44
Film noir - expressão francesa referente ao subgênero de filme policial popular nos Estados Unidos, entre 1939 e 1950.
132

Figuras 91 e 92. Ed. Igarassu e Igreja Matriz de Santo Antônio, Av. Dantas Barreto. Fotos do autor.

Apesar das considerações sobre os aspectos noturnos da deriva, este primeiro


experimento não se estendeu por muito tempo durante a noite. O cansaço corporal e
intelectual dos pesquisadores influenciou o grupo a encerrar o trajeto ainda nas
primeiras horas do anoitecer. Entretanto, o grupo classificou o período e o tempo do
experimento como positivos, dadas as avaliações e resultados obtidos com os trajetos
percorridos durante o dia e a tarde.
Para efeito de registro da deriva os pesquisadores fizeram uso, novamente, do
aplicativo Map my Walk. Todavia, apesar da eficácia de georreferenciamento do Map
my Walk, algumas informações sobre nome de ruas ou locais visitados são omitidas
pela representação do mapa realizada pelo aplicativo. Como um aprimoramento de
registro do trajeto da deriva, os pesquisadores confeccionaram um mapa de
percurso45, com a inserção da nomenclatura dos espaços, edificações e outros
elementos importantes citados nesta análise.
Desta forma, o primeiro experimento acabou despontando, majoritariamente,
como um processo investigação de ambiências classificadas como nostálgicas. As
grandes marcas dessas ambiências foram a pátina e outros elementos que denunciam
o envelhecimento de edifícios, além de outros elementos relativos a uma memória
afetiva e coletiva da cidade, capazes de comunicar sentimentos saudosos e de pesar
por esses ambientes.

45
Para apreciação do mapa de percurso do experimento 01 ver Apêndice C.
133

4.2.2 Segundo Experimento

Assim como o primeiro, o segundo experimento teve início na Av. Conde da


Boa Vista na altura do Shopping Boa Vista, por volta das dez da manhã. Por conta da
experiência obtida no beco da URB durante o primeiro experimento, o trio se viu
inclinado, logo no início do trajeto, a transpor um dos becos do bairro da Boa Vista,
nesse caso, o beco da Fome. Os pesquisadores analisaram a passagem pelo beco
como uma experiência diferenciada no processo de deriva, e partir disso, levantaram
a hipótese de que os becos se configuram como túneis de potencialização da
experiência corporal de deriva, funcionando como um elemento de aceleração, ou
seja, de rápida transição entre ambiências.

Figuras 93 e 94. Imagens do beco da fome. Fotos do autor.

A troca de ambiências catalisada pelo beco da Fome se dá entre a ambiência


da Rua do Hospício, cujos aspectos principais são o comércio ambulante e as
calçadas malcuidadas, e a Rua Sete de Setembro, onde o posicionamento da sombra
dos prédios, e do desenho da rua em cul-de-sac configuram um pequeno espaço
semelhante a um largo.
134

Após a experiência do beco e de um desvio pela parte norte do bairro, o trio


rumou em direção ao outro lado da Av. Conde da Boa Vista, passando a explorar as
ruas laterais e traseiras do Cinema São Luiz. Essa área acabou se despontando, sob
a ótica dos pesquisadores, um espaço de ambiências de variações significantes e
atraentes. A primeira ambiência pode ser delimitada pelas Ruas Sebastião Lins e
Clube Náutico Capibaribe. Em ambas, a presença da pátina nos edifícios antigos
remete a sensação bucólica das ambiências nostálgicas, e além disso, existe por entre
dois prédios, uma ligação entre as duas ruas, que acaba por ampliar a unidade
atmosférica entre elas.

Figuras 95 e 96. Ligação entre as Ruas Sebastião Lins e Clube Náutico Capibaribe. Fotos do autor.

Muito próximo a esta ambiência, no fim da Rua Clube Náutico Capibaribe e por
trás do Ed. Novo Recife, está situada a Praça Machado de Assis. Apesar de não
funcionar propriamente como uma praça, e ter grande parte de seu terreno ocupado
por carros estacionado, a configuração espacial e atmosférica da Praça Machado de
Pela sua conformação reclusa, sombreada e arborizada a praça foi classificada pelo
trio como um elemento atrativo e possibilitador de um estado de interrupção da
realidade, ou seja, de suspensão momentânea do movimento urbano.
135

Figura 97. Imagem da praça Machado de Assis. Foto do autor.

O transeunte que adentra a Praça Machado de Assis tem acesso, por duas
entradas, ao beco do Fotógrafo que perpassa o térreo de dois edifícios, o Ed. Novo
Recife e o Ed. Tabira. Dada a hipótese levantada em relação aos becos, o grupo
classificou o lugar como mais um espaço de potencial aceleração do processo de
deriva, tornando a passagem por esses becos um ato de rápida transição entre
diferentes atmosferas.
Além da hipótese dos becos, por sua configuração labiríntica e de corredor de
edifício, o ambiente do beco do Fotógrafo se mostrou um elemento de outras
possibilidades para a deriva. Na exploração do beco, o trio se deparou com a escada
principal do Ed. Novo Recife, que dá acesso ao terraço do edifício. Esse terraço foi
classificado pelo grupo como mais uma das ambiências nostálgicas, não apenas por
se tratar de um lugar envelhecido, como também pela possibilidade de vislumbre de
uma paisagem da cidade formada por edifícios marcados pelo tempo, que acabaram
por contribuir para a conformação da ambiência.
136

Figuras 98, 99, 100 e 101. Imagem do terraço do Ed. Novo Recife; vista da paisagem e dos prédios do entorno. Fotos do autor.

Após a investigação do beco do Fotógrafo, os pesquisadores seguiram em


direção ao bairro de Santo Antônio, utilizando um elemento de atração, de ambiência
específica e classificada pelo grupo como uma possível plaque tournante
psicogeográfica, a ponte da Boa Vista. A ponte, onde há grande movimento de
pedestres e ambulantes característicos da vida no centro da cidade, foi considerada,
pelos pesquisadores, um artefato de ligação, ponto de encontro e elemento lúdico
entre as ambiências da Rua da Imperatriz e da Rua Nova. Esses fatos, além de
aproximarem a ponte ao conceito de plaque tournante, evidenciam que ela se constitui
como uma ambiência particular na malha urbana no Recife.
137

Atravessada a ponte da Boa Vista o trio adentra o bairro de Santo Antônio pela
Rua Frei Caneca e segue caminho pela Rua da Palma. Quase ao fim da extensão da
rua o grupo descobre a existência de um beco que tem início na própria Rua da Palma,
atravessa a Rua Vinte e Quatro de Maio e termina na Av. Dantas Barreto. Segundo
avaliação do trio, os aspectos desse beco condizem exatamente com os elementos
levantados durante a passagem pelo beco da Fome e do Fotógrafo. Intitulado pelos
pesquisadores como beco do Ferro-Velho, pela quantidade de objetos descartados, o
recinto funciona como um atalho que parte de um setor desocupado e pouco comercial
da Rua da Palma e desemboca na amplitude comercial e espacial da Av. Dantas
Barreto, permitindo ao passante uma conexão quase direta ao setor central do
camelódromo que percorre a avenida.

Figura 102. Passagem pelo beco do Ferro-Velho. Foto do autor.

Depois da experiência desse beco, o trio se deteve durante algum tempo a


explorar a ambiência do camelódromo, passeando por suas lojas comerciais e de
serviço. Por ser um espaço sombreado e pelo fato da grande quantidade de lojas e
elementos expostos conformarem um ambiente de ampla variedade imagética o trio
avaliou o ambiente do camelódromo como mais um ponto atrativo dentro da cidade.
Entretanto, o elemento que mais atraiu os pesquisadores durante a passagem pelo
138

camelódromo foi a existência de um segundo beco, vislumbrando entre dois pontos


comerciais na calçada da Av. Dantas Barreto.
A Travessa dos Martírios é outro grande exemplo de um elemento de rápida
ligação entre duas ambiências conveniente ao processo de deriva. A passagem pela
travessa parte da ambiência agitada das margens do camelódromo e transporta o
transeunte até a lateral da Igreja do Terço, na Rua das Águas Verdes. A partir desse
ponto, um breve desvio à direita revela a entrada da igreja de frente ao pátio do Terço,
onde a atmosfera apesar de comercial, possui uma amplitude espacial e remete a
sentimentos bucólicos associados a perspectiva da igreja secular.

Figuras 103 e 104. Imagens do início e do fim da travessa do Martírios. Fotos do autor.

Posteriormente a passagem pelo pátio do Terço, os pesquisadores rumaram


em direção ao setor leste do bairro, por entre as ruas próximas ao Mercado de São
José. As ambiências descritas nas pesquisas-piloto sobre a praça e o entorno do
mercado foram novamente constatadas pelo grupo. Enquanto a praça se apresenta
como um local calmo e sombreado, de fuga momentânea do movimento do comércio,
as cores referentes ao comercio da Rua das Calçadas, as diversas tonalidades das
frutas expostas na Praça Dom Vital, os múltiplos sons e elementos do espaço do
mercado caracterizam seu entorno como um local de atmosfera avivada e efusiva.
139

Ainda próximo ao entorno do mercado, seguindo pela Rua da Praia, o trio é


novamente atraído pela travessia de mais uma viela. O beco do Marroquim, que liga
o Cais de Santa Rita a Rua da Palma é, talvez, o beco mais lúdico da cidade do Recife.
O posicionamento das lanchonetes, as barracas de serviços, e principalmente, a
exposição da grande variedade de tecidos à venda nas laterais do beco conformam
uma perspectiva que se descortina aos poucos durante o trajeto de quem passa. PO
Beco do Marroquim foi classificado pelo trio como um elemento cujo caráter de
ampliação da experiência de deriva é ainda maior que o dos outros becos, pois além
de funcionar como um portal de passagem rápida entre ambiências diferentes, ele
agrega, durante a passagem, uma experiência estética relativa a beleza dos tecidos
expostos.

Figuras 105 e 106. Imagens do beco do Marroquim. Fotos do autor.

A exploração do beco do Marroquim levou os pesquisadores de volta à Rua da


Praia, de onde seguiram no sentido norte do bairro de Santo Antônio, passando pela
Praça Dezessete e pela Praça da Independência até chegarem à Rua da Roda, um
dos acessos à Praça do Sebo. Os pesquisadores chegaram à Praça do Sebo já pelo
fim da tarde e optaram por descansar sentados à uma mesa e avaliar alguns pontos
da deriva. O aspecto principal levantado nesse momento foi referente à própria
140

ambiência da Praça do Sebo. O trio classificou o espaço da praça como semelhante


às ambiências da Praça Machado de Assis, da Praça da Restauração, e ainda a outros
espaços cujo desenho urbano é conformado pelos limites dos edifícios em volta,
configurando espaços semelhantes a pátios, ou mesmo claustros, geralmente
sombreados e propícios a uma parada duradoura. Segundo os pesquisadores, esse
tipo de ambiente tem a capacidade de dilatar o tempo da deriva, causando um efeito
momentâneo de cessação das ambiências ao redor.

Figuras 107 e 108. Ambiência da praça do Sebo ao anoitecer e à noite. Fotos do autor.

O segundo experimento foi, portanto, encerrado na praça do Sebo, por volta


das cinco e meia da tarde, onde foram ponderados os aspetos apreendidos no trajeto.
Trajeto este que também contou com o mapeamento feito pelo aplicativo Map my
Walk, que, assim como no primeiro experimento, foi utilizado para a elaboração de um
mapa46 do itinerário percorrido.
A deriva teve duração aproximada de sete horas e se configurou pelo
descobrimento de algumas ambiências, semelhantes a pátios ou áditos, cuja a
impressão afetiva é de quietude e separação do ritmo agitado da cidade, mas se
consolidou, sobretudo, como uma investigação da hipótese dos becos enquanto
túneis de aceleração do processo de passagem por ambiências.

46
Para apreciação do mapa de percurso do experimento 02 ver Apêndice D.
141

4.2.3 Terceiro Experimento

A terceira deriva partiu de um encontro dos pesquisadores na Av. Conde da


Boa Vista, especificamente na esquina com a Rua Gervársio Pires, próximo ao ponto
de encontro dos outros experimentos. Entretanto, diferentemente das anteriores, o
experimento teve início por volta das duas da tarde, por conta da intenção dos
participantes de estendê-lo ainda mais à noite. O trio de pesquisadores seguiu pela
rua no sentido norte do bairro, rumando à esquerda na Rua do Riachuelo. Na
passagem pela rua do Riachuelo os pesquisadores constataram novamente a
ocorrência da ambiência nostálgica, principalmente na altura em que a Rua do
Riachuelo se encontra com a rua o Sossego. Exatamente nessa esquina existe um
casarão onde hoje funcionam cursos profissionalizantes, mas que já abrigou a antiga
Escola Normal Pinto Junior, fundada em 1882.
Os aspectos visuais do casarão, como a presença da pátina, o desgaste da
pintura da fachada, o envelhecimento das esquadrias e a queda de parte do reboco
dialogam com os elementos de envelhecimento dos casarios, sobrados e árvores
antigas do entorno, potencializando ainda mais o ambiente bucólico. A junção desses
elementos configura, portanto, a característica prenunciada das ambiências
nostálgicas: a sensação de movimentos antigos da cidade que pairam disfarçados na
atmosfera de suas ruas.

Figura 110. Antiga Escola Normal Pinto Junior. Foto do autor.


142

Ainda durante o percurso pela Rua do Riachuelo, o trio se viu atraído pela
indumentária lúdica de uma carroça de material reciclável decorada com bandeiras e
outros artefatos coloridos, como uma sombrinha de frevo e uma bandeira do Brasil. A
obra espontânea do carroceiro foi associada pelos pesquisadores como semelhante
a organicidade dos parangolés e estudos visuais de Hélio Oiticica47. O
reconhecimento e registro visual da carroça também foi considerado pelo grupo como
um processo inerente as derivas, pela capacidade que a técnica tem de transformar o
olhar objetificados e usual do transeunte, permitindo-lhe a percepção de informações
estéticas abstrusos no próprio dia-a-dia das cidades.

Figura 110. Carroça de materiais recicláveis na Rua do Riachuelo. Foto do autor.

Depois da caminhada pela Rua do Riachuelo o trio desviou o trajeto para o


setor norte do bairro da Boa Vista, seguindo pela Rua Bispo Cardoso Ayres e
dobrando à esquerda na Rua Bernardo Guimarães. A Rua Bernardo Guimaraes, além
de sombreada pela presença das árvores, possui uma particularidade em relação ao
trecho situado entre os diferentes blocos da Universidade Católica de Pernambuco
(UNICAP). Nesse trecho a rua recebe a alcunha de “Rua do Lazer”, por conta da
significativa quantidade pessoas, na maioria universitários, que circulam ou reúnem-

47
Hélio Oiticica (1937 – 1980), pintor, escultor, artista plástico e performer carioca.
143

se em conversas nas mesas pertencentes às barracas laterais da rua, onde funciona


a venda de lanches, revistas e apetrechos diversos.
Nessa rua os pesquisadores reconheceram, mais uma vez, a já relatada
atmosfera de suspensão urbana, um tipo ambiente diferenciado que promove uma
sensação de separação dos processos cotidianos e, por conseguinte, um tipo de
reclusão num recinto, cujo ritmo difere do compasso habitual do resto da cidade. Como
uma maneira de formalizar o registro, o trio decidiu por nomear esse tipo de local como
ambiências suspensas. Assim como as ambiências nostálgicas, as ambiências
suspensas também foram representadas em um mapa48 com referências a elementos
dos três experimentos.

Figuras 111 e 112. Ambiência da Rua Bernardo Guimarães e pátio interno da UNICAP. Fotos do autor.

Decorrido o percurso pela “Rua do Lazer”, o trio decidiu regressar no sentido


da Av. Conde da Boa Vista. A escolha por esse percurso levou os pesquisadores a
passar pela Rua Nunes Machado. Nessa rua, os membros da deriva observaram uma
dicotomia de ambiências significante. A única parede restante da antiga fábrica da
Fratelli Vita representava a resistência de uma ambiência nostálgica em forma de
ruína, coberta não apenas pela pátina, como também por uma extensiva vegetação
incrustada.

48
Para apreciação do mapa de inter-relação de ambiências suspensas ver apêndice H.
144

Entretanto, exatamente durante a passagem pelo local, os pesquisadores


constataram a inevitável efemeridade dessa ambiência. Logo atrás da parede
envelhecida, ouvia-se o bate estaca do novo empreendimento, que em pouco tempo
deverá repaginar toda a atmosfera local. Além do registro fotográfico, o trio também
realizou um registro em vídeo49 do contraste dessas ambiências.

Figuras 113 e 114. Imagem da parede da antiga Fratelli Vita; Frame do vídeo do bate-estaca. Foto e arquivo do autor.

Saindo da Rua Nunes Machado os pesquisadores continuaram o trajeto em


direção a Av. Conde da Boa Vista. Depois de uma parada por conta da chuva em
frente ao edifício Módulo, o trio continuou o percurso ao longo da avenida no sentido
leste, em direção do bairro de Santo Antônio. Nesse percurso os pesquisadores
investigaram o último trecho da Av. Conde da Boa Vista, a partir dos edifícios
Pirapama e Suape até as esquinas do Recife Plaza e do Cinema São Luiz.
Pela perspectiva e aparência envelhecida dos edifícios, esse intervalo foi
classificado pelo trio como mais um espaço de ambiência nostálgica, tendo esse efeito
ampliado pelo cair da tarde e o consequente realce da pátina e dos elementos de
sombra do local.

49
Vídeos e outros registros dos pilotos e experimentos disponíveis no blog: cargocollective.com/recifedeandada
145

Figuras 115 e 116. Edifícios do último trecho da Av. Conde da Boa Vista. Fotos do autor.

Mesmo com a chegada da noite os pesquisadores continuaram o percurso e


adentraram no lado sul do bairro da Boa Vista, pela Rua da Aurora, continuando até
a Rua da Imperatriz. Da Rua da Imperatriz o trio seguiu em direção à Rua Bulhões de
Marquês com a intenção de investigar novamente sua ambiência. A Rua Bulhões de
Marquês tem uma configuração semelhante a uma travessa em sua parte mais
próxima da rua do Imperador, setor exclusivo para o trânsito de pedestres.
Aproximadamente em seu ponto médio a rua se descortina num pequeno largo
conformado pelas esquinas curvadas de dois edifícios que a margeiam.
Tanto ao dia como à noite o espaço do largo é tomado por carros estacionados,
enquanto a esquina da parte reservada aos pedestres é ocupada por barracas com
comércio de bebida, refeições e cadeiras de plástico. Apesar dos carros criarem um
obstáculo visual sobre o largo, o espaço das barracas e a árvore presente no centro
da rua conformam uma atmosfera classificada pelos pesquisadores como mais um
exemplo de ambiência suspensa.
146

Figuras 117 e 118. Registro da ambiência da Rua Bulhões Marquês. Fotos do autor.

Após a investigação desse espaço no bairro da Boa Vista o grupo seguiu em


direção ao bairro de Santo Antônio. Por conta disso os participantes se viram
novamente impelidos a passar pela Ponte da Boa Vista. A iluminação da ponte à noite
e a grande movimentação de entrada e saída dos transeuntes ao finalizarem seus
expedientes ampliavam, na opinião dos pesquisadores, de maneira respectiva, o
caráter lúdico da estrutura e a afinidade do espaço com o conceito de plaque tournante
psicogeográfica.

Figura 119. Ponte da Boa Vista. Foto do autor.


147

Ao desembarcar da experiência da ponte no bairro de Santo Antônio, o trio


decidiu seguir primeiramente pela Rua Nova, depois pela Rua das Flores até a
chegada na avenida Dantas Barreto. Desse ponto os pesquisadores resolveram traçar
um percurso pelas ruas comerciais até o núcleo do bairro de São José, como uma
forma de reavaliar as ambiências próximas ao mercado no período da noite. A partir
daí o trio seguiu pela Rua do Fogo, por parte da Av. Nossa Sra. do Carmo, pelo Pátio
do Livramento e pela Rua da Penha até finalmente alcançar a praça em frente ao
mercado.
Depois de percorrerem esse longo percurso os pesquisadores constataram que
o exercício da deriva durante o período noturno no bairro de São José, mesmo que
nas primeiras horas da noite, torna-se pouco proveitoso por conta da brusca mudança
dos elementos conformadores das ambiências.
Por volta das seis e trinta da noite praticamente todos os locais comerciais são
fechados, encerrando assim o movimento de pessoas, a exposição das mercadorias,
as particularidades sonoras, entre outros aspectos importantes para a caracterização
de ambiências. Durante essa caminhada pelas ruas comerciais, à noite, os
pesquisadores efetuaram registros em foto e vídeo50, buscando capturar essa
atmosfera de encerramento das atividades.

Figuras 120 e 121. Ruas do entorno do Mercado de São José à noite. Fotos do autor.

50
Vídeos e outros registros dos pilotos e experimentos disponíveis no blog: cargocollective.com/recifedeandada
148

Figuras 122 e 123. Pátio do Livramento e Beco do Marroquim à noite. Fotos do autor.

A partir dessa constatação sobre o bairro de São José, os pesquisadores


rumaram pelo Cais de Santa Rita e pela Av. Martins de Barros no intuito de alcançar
a parte norte do bairro de Santo Antônio. Durante o trajeto, o trio se deparou com a
praça Dezessete, objeto de avaliações do grupo durante as pesquisas-piloto. Por seu
caráter semelhante aos espaços amenos de ambientes como a praça Machado de
Assim e a praça do Sebo, pela sua iluminação noturna e atmosfera tranquila, os
pesquisadores decidiram classificar a Praça Dezessete como mais uma ambiência
suspensa na cidade, muito embora, uma das particularidades desse tipo de ambiência
não esteja representada nela: a conformação espacial de reclusão, típica dos pátios.

Figura 124. Registro da Praça Dezessete. Foto do autor.


149

Prosseguindo com a deriva, o trio retomou o rumo em direção ao setor norte do


bairro de Santo Antônio, passando pela Rua do Imperador, pela praça do Sebo, pelo
entorno do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM), e ainda por parte
da Av. Conde da Boa Vista, encerrando a deriva, por volta das oito e meia da noite,
com uma reunião numa das lanchonetes da avenida. Nessa reunião de encerramento,
o grupo ponderou aspectos referentes à experiência noturna do experimento. O trio
constatou que, embora as derivas à noite tornem-se pouco proveitosas no bairro de
São José, na parte norte do bairro de Santo Antônio e no bairro da Boa Vista é possível
encontrar pontos de readequação e reanimação das ambiências à vida noturna.
Torna-se oportuno, portanto, citar alguns exemplos dessa readequação de
espaços da cidade: o significante registro do trio em relação a um grupo de senhores
que jogavam dominó na Rua do Imperador, por volta das oito horas, mesmo com o
encerramento de expediente dos comércios e serviços; a transformação da praça do
Sebo, de um local de comércio literário e restaurantes para um ambiente de boemia e
encontros casuais; e ainda, a adaptação da Rua da União num ponto de comércio
ambulante para a venda de lanches e bebidas para os trabalhadores que encerram o
expediente apenas às dez horas.

Figura 125. Registro de movimentação noturna na Rua do Imperador. Foto do autor.


150

O último experimento teve uma duração aproximada de seis horas e


manifestou-se como uma deriva cujo carácter principal foi o de reconhecimento das
ambiências nostálgicas e das ambiências suspensas, conceituadas durante os dois
primeiros experimentos. Algumas dessas ambiências foram citadas, inclusive, nas
pesquisas-piloto e exigiram essa nova investigação para a constatação de elementos
importantes. A classificação dessas ambiências não pretende defini-las como
idênticas, mas criar uma aproximação atmosférica entre elas, facilitando assim as
suas inter-relações afetivas e cartográficas, sem deixar de levar em conta as devidas
particularidades dos espaços. Além dessa categorização de ambiências, o
experimento também se ateve à possível descoberta ou invenção de elementos
lúdicos durante o percurso, como a carroça da Rua do Riachuelo, e à uma rápida e
parcial investigação dos aspetos relativos ao exercício noturno da deriva.
Assim como nas outras derivas, o terceiro experimento contou com o
mapeamento via Map my Walk. E, com o intuito de preservar o padrão de registro dos
experimentos, também foi confeccionado pelos pesquisadores um mapa51 de
percurso do trajeto baseado no registro efetuado pelo Map my Walk e com a
introdução de legendas indicativas dos locais e conjunturas visitadas.

4.2.4 Conclusões e Mapas Resultantes

A realização dos três experimentos, como havia sido previsto na etapa


metodológica, configura, assim, o objetivo principal do trabalho de avaliação das
técnicas situacionistas da deriva e da psicogeografia. Durante os três experimentos
os pesquisadores puderam exercitar o reconhecimento de duas hipóteses
situacionistas atreladas ao exercício das técnicas: o reconhecimento das unidades de
ambiência, e a observação de espaços semelhantes ao conceito de plaque tournante
psicogeográfica.
O conceito de plaque tournante foi reconhecido de maneira aproximada,
durante a execução dos experimentos, nos espaços do Shopping Boa Vista e da ponte
da Boa Vista. Enquanto que, durante as pesquisas-piloto, as referências relativas ao
conceito foram a praça da Igreja da Soledade e a Praça do Marco Zero. Entretanto,
as conclusões sobre a constatação da hipótese das plaques tournantes não obtiveram

51
Para apreciação do mapa de percurso do experimento 03 ver Apêndice E.
151

resultados expressivos por conta, majoritariamente, da incerteza dos pesquisadores


na classificação desses lugares. Essa incerteza decorre de falta de solidificação
conceitual em relação a hipótese. O que se justifica, em parte, pela falta de precisão
na descrição do conceito nos textos situacionistas, em específico a Teoria da Deriva
e o Esboço de Descrição Psicogeográfica do Les Halles de Paris. Deste modo, para
fins de conclusão dos experimentos, considera-se que a hipótese continua como uma
formulação insuficientemente testada, que necessita ser investigada de forma mais
profunda em prováveis novas pesquisas, com vistas a obtenção de melhores
resultados.
Com relação ao reconhecimento de unidades de ambiências, pode-se
considerar justamente o oposto. O processo de caracterização dessas unidades foi
basicamente a tônica principal dos experimentos e resultou na demarcação de dois
tipos de ambiências: as ambiências nostálgicas e as ambiências suspensas. As
ambiências nostálgicas foram definidas por espaços em que a presença de edifícios
antigos ou mesmo modernos, cobertos pela pátina ou outros elementos que
caracterizam envelhecimento, é percebida como uma atmosfera em que ainda podem
ser intuídos movimentos e práticas sociais próprios das épocas passadas.
No caso das ambiências suspensas as áreas foram delimitadas de acordo com
sua atmosfera de acomodação urbana. Elas se distinguem por espaços onde o tempo
da deriva é compreendido de maneira mais lenta, cuja ação principal se torna o estar
e não o percorrer, e onde os edifícios ao redor potencializam a sensação de reclusão
e separação do movimento urbano.
É perceptível que a caracterização das ambiências foi influenciada, em grande
parte, por uma predileção dos elementos arquitetônicos e pela ênfase em aspectos
físicos da cidade. O fato dos pesquisadores-participantes serem dois arquitetos e um
cineasta também pode ser considerado como aspecto importante de uma leitura com
tendência visual. Entretanto, é possível notar que apesar do destaque para aspectos
físicos, existiu por parte destes mesmos pesquisadores, uma tentativa de apreensão
das subjetividades, não só em relação as unidades de ambiência, como na percepção
de possíveis elementos de passatempo e divertimento, incorporando conceito de jogo
situacionista aos trajetos de deriva.
A inclusão do jogo como elemento natural nas deambulações vai além do
aspecto lúdico e configura-se como uma ação de contestação. Estar sempre aberto a
152

mudanças inesperadas de trajeto ou de olhar, muitas vezes pelo simples fato de


obedecer a um sinal, uma placa, ou alguma conjuntura repentina da cidade, foi uma
estratégia de perpetuação do jogo utilizada pelos participantes como um instrumento
de quebra da monotonia do andar objetivo. Um enfrentamento às condições habituais
de caminhar pela cidade com fins demasiadamente traçados, sem a possibilidade da
abertura aos movimentos naturais e desejantes do trajeto. Nesse sentido, os
pesquisadores também chegaram a conclusão da alteração de tempo e de percepção
relativa ao processo de deriva.
Durante a experiência da deriva as percepções em relação à cidade ganham
um ritmo mais lento, e principalmente, se distanciam da lógica habitual da circulação
relativa apenas à realização de objetivos previamente estabelecidos. Essa alteração
do olhar no participante da deriva torna-se essencial para o reconhecimento dos
elementos lúdicos, ambiências e outros elementos difíceis de perceber no dia-a-dia.
No que concerne ao exercício da deriva durante à noite, os pesquisadores
chegaram à conclusão de que as adaptações noturnas podem ser capazes de gerar
novos tipos de ambiências, de experiência lúdica e ainda, novas hipóteses sobre a
cidade. Esse novo perfil da cidade durante a noite e a madrugada é, em grande parte,
diferente do período diurno, o que necessitaria, portanto, um tipo de estudo mais
aprimorado para a obtenção de conclusões mais efetivas. Tendo em vista que os três
experimentos foram executados entre às nove da manhã e às cinco da tarde, uma
análise realizada ainda nesta pesquisa sobre o período noturno torna-se insuficiente.
Um outro elemento importante do processo de deriva foi o levantamento, por
parte dos pesquisadores, da hipótese dos becos enquanto túneis de potencialização
da experiência de deriva. Essa hipótese emana principalmente da experiência direta
da passagem em alguns dos principais becos dos bairros da Boa Vista e de Santo
Antônio. Para uma melhor compressão dessa formulação, faz-se necessário a análise
de um dos fragmentos do documento Teoria da Deriva, de Guy Debord, onde o autor
trata das margens fronteiriças das ambiências:

As diferentes unidades de atmosfera e de moradia não são hoje muito nítidas, e


sim cercadas de margens fronteiriças mais ou menos extensas. A mudança mais geral,
que a deriva leva a propor, é a diminuição constante dessas margens fronteiriças, até sua
completa supressão (DEBORD, 1957).
153

O trânsito através dos becos do centro Recife foi analisado pelos


pesquisadores como uma experiência que consegue exercer um radical estreitamento
dessas margens fronteiriças conceituadas por Debord. Pode-se afirmar, por
conseguinte, que a travessia pelos becos é uma maneira de esborrar de forma brusca
as bordas de ambiência da cidade, abreviando, de tal modo, a circulação pelas
distintas percepções e impactos da paisagem, dos sons e de outros elementos
próprios da metrópole.
Para um melhor esclarecimento e aprofundamento dos ajuizamentos sobre as
questões relatadas, os pesquisadores confeccionaram sete mapas, utilizando como
base a cartografia da cidade e interferindo graficamente de modo a ilustrar de maneira
física essas ponderações.
Os três primeiros mapas representam os mapas de percursos equivalentes
respectivamente aos trajetos dos experimentos. Esses mapas tiveram como base
para elaboração as representações georreferenciadas registradas pelo aplicativo Map
my Walk, e podem ser consultados nos apêndices C, D e E desta dissertação.
O quarto mapa corresponde ao mapa de ilustração da hipótese dos becos. Nele
estão marcadas as localizações dos becos, com suas correspondentes entradas e
saídas, além de uma inserção visual da experiência de ultrapassem dessas
extensões. O mapa de ilustração da hipótese dos becos pode ser consultado em sua
totalidade no apêndice F deste documento.
O quinto e o sexto mapa procuram traduzir a inter-relação entre as unidades de
ambiências descritas nos experimentos. O trio procurou conectar os lugares relatados
nas derivas, aproximando suas extensões com componentes gráficos e fotográficos,
tomando partido dos recursos visuais utilizados nos mapas situacionistas (como as
setas de ligação e recortes do mapa da cidade), adicionando a eles registros
imagéticos das ambiências.
As setas procuram representar a proximidade das ambiências com relação as
suas atmosferas, independentemente de sua localização geográfica. Além disso,
também almejam traduzir a tendência de percurso entre uma ambiência e outra,
baseando-se nas sequências dos trajetos realizados pelos pesquisadores. O recorte
dado às fotografias busca potencializar a tradução imagética do ambiente retratado,
enquanto que o posicionamento delas no mapa tem a intenção de representar a
154

atmosfera das ambiências que estão imediatamente próximas a elas. Esses dois
mapas correspondem aos apêndices G e H no final do documento.
O sétimo e último mapa tem a responsabilidade de transmitir graficamente a
variedade de elementos lúdicos que rementem às situações associadas ao jogo
situacionista. Nele foram representados sons, objetos e situações num mescla de
fotografias e pequenas inserções textuais. Ele procura se distanciar do olhar com
ênfase nos dados físicos e representar os momentos e componentes mais subjetivos
dos experimentos. Intitulado de mapa de ilustração de elementos de jogo, ele
corresponde ao apêndice I desta dissertação.

Figuras 126 e 127. Exemplos dos mapas disponíveis nos apêndices F e G. Arquivo do autor.

Figuras 128 e 129. Exemplos dos mapas disponíveis nos apêndices H e I. Arquivo do autor.
155

Além dos sete mapas elaborados, os pesquisadores criaram uma conta no


aplicativo Instagram, destinada exclusivamente ao registro das fotos das derivas e
intitulada de Deriva Recife. A criação desse perfil foi pensada como uma forma de
organizar as imagens dos três experimentos em suas respectivas localizações
geográfica, além de torna-las disponíveis para acesso on-line. O resultado da
submissão das fotos durante os dias de experimento encontra-se disponível no
endereço eletrônico: https://instagram.com/derivarecife.

Figura 130. Captura de tela do site do derivarecife. Arquivo do autor.

As considerações sobre o método fenomenológico, a elaboração de diagramas


e o conceito de cartográfica afetiva serviram como base para o balizamento tanto da
pesquisa efetuada em campo, como elaboração dos mapas de hipótese dos becos e
de inter-relação de ambiências. Deste modo, a prática dos experimentos foi
importante, não apenas pela sua investigação empírica da cidade, como também para
o exercício de confecção e diagramação estética das cartografias.
156

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
157

Os capítulos apresentados nessa dissertação correspondem, como já


demonstrado, a um planejamento que teve como objetivo traçar um panorama
histórico sobre o desenvolvimento da Internacional Situacionista, discutir de modo
detalhado as técnicas escolhidas para a pesquisa: deriva e psicogeografia, construir
um planejamento metodológico de experimentação e executar a aplicação dos
métodos procurando extrair as possíveis contribuições para o estudo das cidades
contemporâneas. Sobre esse planejamento serão tecidos, de maneira gradativa,
alguns comentários que possuem o intuito de encerrar possíveis lacunas de
compreensão, aprimorar a discussão da pesquisa e expor de forma geral as
contribuições do trabalho.
Com relação ao primeiro capítulo, onde são expostas as críticas situacionistas
ao funcionalismo do urbanismo modernista, uma questão pode ser destacada. Muito
embora as censuras situacionistas residam sobre o excesso de planejamento e
racionalização dos urbanistas modernos, as próprias teorias situacionistas também
exigiam, em parte, uma racionalização em suas aplicações. A deriva, a
psicogeografia, a situação construída, e outras tantas proposições possuíam
definições estritamente objetivas e grande parte dos textos do movimento apresentam
argumentos bastante radicais, o que acaba por prejudicar, em alguns momentos,
diálogos com teorias e conjecturas afins.
A excessiva objetividade em relação aos métodos pode ser observada no
episódio, já citado, do afastamento de Constant por conta do projeto Nova Babilônia.
Enquanto o artista argumentava que Nova Babilônia representava a realização
arquitetônica do urbanismo unitário (CONSTANT, 1959), o restante dos situacionistas,
principalmente Debord, afirmavam que representar o urbanismo unitário de forma
edificada seria uma atitude cerceadora (SADLER, 1999). Essa afirmação, por parte
de Debord, pode ser considerada contraditória tendo em vista que o mesmo, por
exemplo, no último trecho da Teoria da Deriva, abre a possibilidade de maneira
entusiasmada para a realização de derivas dentro de construções de apartamentos.
“Até na arquitetura, o gosto pela deriva leva a preconizar todo tipo de novas formas
do labirinto, que as modernas possibilidades de construção favorecem” (DEBORD,
1956). É possível afirmar, deste modo, que o posicionamento teórico e prático do
movimento situacionista tem, em certa medida, aspectos que podem ser considerados
equivocados.
158

O segundo capítulo têm início com uma análise histórica relativa aos primeiros
indícios de exercício da psicogeografia. Esse resgate se mostra importante, pois
demonstra que o conceito de psicogeografia, mesmo tendo sido elaborado pelos
situacionistas, remonta a experimentações realizadas desde o século XVIII. Nessa
parte do capítulo também são relatadas as primeiras tentativas de levar a arte para o
campo das cidades, principalmente por parte dos movimentos dadá e surrealista.
Toda essa análise histórica se faz relevante, pois insere as técnicas da psicogeografia
e da deriva num contexto histórico de experimentações urbanas e demonstra que,
apesar da originalidade dos conceitos situacionistas, ambas as técnicas são produtos
de um desenvolvimento e amadurecimento do processo histórico da arte na
sociedade.
A partir daí são expostos de modo detalhado os conceitos da deriva e da
psicogeografia. Além de uma descrição sobre o caráter situacionista, das hipóteses e
dos possíveis resultados da aplicação das técnicas, o texto procura definir o grau de
relação entre elas, esclarecendo a função principal de cada uma. Sobre essa questão
conclui-se que a deriva se apresenta como um desdobramento prático da
psicogeografia. A deriva seria uma apropriação do espaço urbano através do
caminhar, enquanto a psicogeografia estudava o ambiente urbano utilizando-se da
deriva como instrumento prático (JACQUES, 2003, p. 22).
Ainda no segundo capítulo é exposta uma reflexão sobre a afinidade
situacionista com o conceito de jogo. Esse conceito, ligado à condição do homo
ludens, é analisado como um dos elementos principais que levaram à concepção
situacionista da cidade enquanto labirinto, uma construção ideológica que encarava a
cidade como um elemento de possibilidades lúdicas. A discussão é desdobrada com
a exposição de ações situacionistas de relevância em relação ao conceito de labirinto
e a aplicação da deriva e da psicogeografia. O capítulo conta ainda com uma análise
da literatura e de ações contemporâneas influenciadas pela teoria situacionista,
salientando o impacto positivo dessa revisitação de conceitos para o campo da arte
contemporânea e para a pesquisa vigente.
Os aspectos teóricos e metodológicos em relação ao modo de aplicação das
técnicas situacionistas no Recife foram abordados ao longo no terceiro capítulo. Nele
é realizada uma análise dos pormenores relativos às duas hipóteses levantadas pelos
situacionistas advindas da aplicação da deriva: as unidades de ambiência e as
159

plaques tournantes. Aliado a essa análise são introduzidos aspectos do campo da


filosofia, com foco nos estudos de fenomenologia; da psicologia, com relação ao
conceito de cartografia; e ainda, uma avaliação sobre a relevância do estudo de
diagramas. Algumas conclusões foram obtidas a partir dessa associação de
disciplinas, como, por exemplo, o uso dos diagramas enquanto um importante
instrumento de apreensão do corpo na cidade, e a relação de aproximação entre os
conceitos de cartógrafo e psicogeógrafo, sendo o primeiro produto do campo da
psicologia, e o segundo referente a alcunha do sujeito que se propõe à psicogeografia.
Após essas considerações, o capítulo se dedica a apresentação dos aspectos
práticos da dissertação. São apresentadas reflexões que delimitam o trabalho, a partir
de seus principais objetivos, a uma pesquisa de campo de caráter experimental. Além
disso, a demarcação do sítio de aplicação torna-se importante, dada a condição da
escolha de um centro metropolitano para aplicação das técnicas. Por fim, o exercício
dos pilotos se revela como uma parte essencial da pesquisa, pela sua propriedade de
ajustar os aspectos relativos à aplicação dos métodos para que as experimentações
se tornassem mais proveitosas.
A aplicação e análise de três experimentos, realizada no último capítulo, teve
como resultado algumas reflexões relativas às hipóteses situacionistas, ao caráter
contemporâneo do experimento, e foi responsável pela geração de documentos
fotográficos e cartográficos, frutos diretos do exercício da deriva e da psicogeografia.
Apesar da proposta inicial de análise de todo o centro expandido, as três derivas
detiveram-se, prioritariamente, nos bairros da Boa Vista, de Santo Antônio e em parte
do bairro de São José. Essa delimitação se deu de forma espontânea, e elucida a
grande probabilidade dessa área ser a mais interessante, dentro do contexto do centro
do Recife, para o exercício da deriva.
A utilização de elementos tecnológicos, mais precisamente o uso de aplicativos
de smartphone, como instrumentos de auxílio na apreensão dos efeitos
psicogeográficos foi de grande importância para os experimentos. O uso dos
aplicativos Map my Walk, Snapchat e Instagram contribuiu para uma ampliação das
possibilidades de registro e interação virtual das derivas, e ainda, como relatado na
conclusão sobre os pilotos, pode ser encarado como um artificio de revisitação do
conceito de jogo situacionista, haja vista que os mesmos tiveram suas funções
principais desviadas em virtude do objetivo das derivas.
160

Outro fator importante sobre a aplicação das derivas foi a averiguação das
hipóteses situacionistas. As suposições referentes ao reconhecimento de unidades de
ambiências foram corroboradas pelo trio de pesquisadores. Os participantes
exercitaram o reconhecimento dessas unidades em vários setores da área explorada
e detectaram a presença recorrente de dois tipos de ambiências: as denominadas
ambiências suspensas e ambiências nostálgicas. Esses dois tipos de ambiência foram
analisados durante os três experimentos de forma gradual e espontânea, e acabaram
por se manifestar como elementos que funcionavam ao mesmo tempo como espaços
reconhecidos e espaços norteadores de trajetórias.
Em relação a hipótese das plaques tournantes os pesquisadores obtiveram
diferentes conclusões. Apesar de reconhecerem espaços com potencialidades
similares ao conceito, os três experimentos realizados não foram suficientes para que
os participantes qualificassem com propriedade essas áreas de acordo com o
conceito. Uma afirmação veemente e uma reflexão detalhada sobre a existência de
plaques tournantes psicogeográficas necessitaria, portanto, de um exercício ainda
mais continuo e aprofundado das técnicas situacionistas.
Para além da averiguação das hipóteses, a experiência das três derivas acabou
por suscitar o levantamento de uma proposição por parte dos próprios pesquisadores.
Levantada e analisada durante os experimentos no quarto capítulo, não apenas em
modo textual, como em formato de mapa, a hipótese dos becos enquanto túneis de
potencialização da experiência de deriva se apresenta como uma importante
contribuição contemporânea, de caráter especulativo, e com grandes possibilidades
de desdobramento para pesquisas futuras.
Aliado a essa conceituação dos becos como elementos de ampliação da deriva,
os pesquisadores, ainda no quarto capítulo, reconheceram que a própria experiência
da deriva possui um tempo particular, como um momento de contrariedade à
circulação habitual e objetiva da cidade. De acordo com esse preceito, as derivas
teriam a capacidade de apresentar uma nova relação de espaço-tempo ao transeunte,
desvinculando-o momentaneamente de processos corriqueiros e, por vezes,
alienantes da sua própria vida, como o trabalho, o trânsito de automóveis, entre outros.
Essa particularidade da deriva também chegou a ser especulada pelos situacionistas,
o que torna, portanto, essa apreciação dos pesquisadores mais uma conclusão de
conteúdo alinhado aos preceitos do movimento.
161

Com relação ao contexto geral da pesquisa, pode-se acrescentar algumas


outras ponderações. Devido ao desenvolvimento das tecnologias, a aplicação das
derivas no contexto contemporâneo sofre um tipo de alteração, não apenas de
recursos (tal qual os aplicativos utilizados nos experimentos), como em relação ao seu
caráter cognitivo. As derivas tornam-se diferentes nos dias atuais por estarem imersas
e serem praticadas num espaço onde as relações sociais, culturais e temporais já
foram submetidas e se relacionam de forma intima com os aspectos atuais das redes
de comunicação, velocidade de informação, e outros elementos implementados pela
rápida evolução tecnológica das últimas décadas. A atenção e o reconhecimento
dessa nova atmosfera contemporânea devem, portanto, fazer parte das premissas de
derivas contemporâneas, assim como a procura, dentro destas novas condições
atmosféricas, pelo desvio e contestação de elementos de cunho espetacular.
Desde o fim da IS aos dias atuais, a submissão às questões ditas espetaculares
pelos situacionistas e ao sistema capitalista teve o seu caráter apenas reorganizado.
As relações sociais mediadas por imagens (DEBORD, 1997) deixaram de se
apresentar majoritariamente através do veículo televisivo e ganharam status de rede
com o advento da internet. O dever político e desviante da deriva contemporânea é,
portanto, o de combater a lógica de massificação e alienação que continuam
predominantes, mesmo com as transformações da lógica acelerada da
contemporaneidade.
Nesse sentido, um grande viés de contraposição das derivas em relação a esse
contexto espetacular contemporâneo se revela na sua capacidade de criação de um
tempo particular, pensado pelos situacionistas e reconhecido pelos pesquisadores dos
experimentos aqui apresentados. Esse tempo particular funciona, portanto, como uma
oposição lenta aos velozes processos contemporâneos, e é igualmente comentado
por Paola Jacques como uma herança da figura do flâneur para o desenvolvimento
do errante urbano:

O errante urbano seria como um homem lento voluntário, intencional, consciente


de sua lentidão, [...]. Essa lentidão também pode ser vista como uma crítica ou denúncia
da aceleração contemporânea, da pressa que impossibilita a apreensão e reflexão mais
vagarosa (JACQUES, 2014, p. 294-295).
162

Assim sendo, podem ser expostas mais algumas conclusões sobre a pesquisa
vigente. A de que as técnicas situacionistas da deriva e da psicogeografia são
efetivamente capazes, através do seu exercício, de promover um olhar sobre as
cidades separado das premissas do espetáculo. E ainda, que a força desse
desvinculamento se encontra no exercício de imersão no tempo particular das
técnicas situacionistas, e em seus objetivos primordiais de apreensão dos aspectos
conscientemente planejados ou não.
Por fim, deve-se argumentar que a aplicação da deriva e da psicogeografia em
uma cidade contemporânea é um exercício de extrema complexidade. As
contribuições expostas nesse trabalho demonstram a enorme possibilidade de
desdobramentos teóricos referentes a essa revisitação. Além disso, apesar de ter
tentado ampliar ao máximo as suas análises a respeito do objetivo traçado, essa
pesquisa se propõe a ser compreendia como uma pequena parte de um conjunto, e
um instrumento facilitador de outras muitas e possíveis novas investigações.
163

REFERÊNCIAS
164

- LIVROS

ARCHER, Michael. Arte Contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.

BARROS, César. Recife Enxerido [livro eletrônico]. Recife: Ed. do Autor, 300 mb,
ePUB, 2013.

BONAT, Debora. Metodologia da Pesquisa. Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2009.

BOURDIEU, Pierre 1989. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Difel.

BOURRIAUD, Nicolas. Formas de Vida: A Arte Moderna e a Invenção de Si. São


Paulo: Martins Fontes, 2011.

BRUNET, Karla Schuch (Org.) Apropriações Tecnológicas. Emergência de textos,


idéias e imagens do Submidialogia#3. Salvador: EDUFBA, 2008.

CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo:


G. Gili, 2013.

CHOAY, Françoise. O Urbanismo. São Paulo: Perspectiva, 2003.

COVERLEY, Merlin. Psychogeography. Harpenden: Pocket Essentials, 2010.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

DE CERTEAU, Michel 1994. A invenção do cotidiano. Livro 1: Artes do fazer. Rio


de Janeiro: Vozes.

FRAMPTON, Kenneth. História Crítica da Arquitetura Moderna. São Paulo: Martins


Fontes, 1997.
165

GROSSMAN, Vanessa. A arquitetura e o urbanismo revisitados pela


Internacional Situacionista. São Paulo: Annablume, 2006.

HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.

HOME, Stewart. Assalto à cultura. Utopia, subversão, guerrilha na (anti) arte do


século XX. São Paulo: Conrad, 1999.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O Jogo Como Elemento da Cultura. São Paulo:
Perspectiva, 2000.

JACQUES, Paola Beresntein (org.). Apologia da Deriva: escritos situacionistas


sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.

JAPPE, Anselm. Guy Debord. Lisboa: Antígona, 2008.

KLEMEK, Christopher. Urbanism as Reform: Modernist Planning and the Crisis of


Urban Liberalism in Europe and North America, 1945-1975. Filadélfia: University
of Pennsylvania, 2004.

LAMAS, José M. R. G. Morfologia Urbana e Desenho da Cidade. Lisboa: Fundação


Calouste Gulbenkian, 2004.

LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1994.

MARCONI, Maria de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia


científica. São Paulo: Atlas, 2003.

MCDONOUGH, Tom. The Situationists and the City. Nova Iorque: Verso Books,
2009.
166

PERNIOLA, Mario. Os Situacionistas: o movimento que profetizou a Sociedade


do Espetáculo. São Paulo: Annablume, 2009.

PRESCOTT-STEED, David. The Psychogeography of Urban Architecture. Brown


Walker Press, 2013.

ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: Transformações contemporâneas do


desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2014.

SADLER, Simon. The Situationist City. Cambridge e Londres: The MIT Press, 1999.

SHELF, Will; STEADMAN, Ralph. Psychogeography: Disentangling the Modern


Conundrum of Psyche and Place. Nova Iorque: Bloomsbury Publishing PLC, 2007.

SINCLAIR, Iain. London Orbital. Londres: Penguin, 2003.

VANEIGEM, Raoul. A arte de viver para as novas gerações. São Paulo: Baderna.
2002.

WARK, Mckenzie. The Beach Beneath the Street: The Everyday Life and Glorious
Times of the Situationist International. Nova Iorque: Verso Books, 2011.

WIGLEY, Mark; CONSTANT. Constant's New Babylon: The Hyper-architecture of


Desire. Roterdã: 010 Publishers, 1998.

- ARTIGOS DE PERIÓDICOS

ARAÚJO, Maria do Socorro. O Comércio Informal no Centro Expandido do Recife.


Cadernos de Estudos Sociais, Recife, 2012.

ASSIS, Diego; CASSIANO, Machado. Três décadas depois, situacionismo vive seu
apogeu editorial no Brasil. Folha de São Paulo, São Paulo, 26 abr 2003. Disponível
em: www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2604200309.htm#. Acesso em 30 mai 2015.
167

CONSTANT. Description of the Yellow Zone. Internationale Situationniste, Vol. 4,


1960. Disponível em: http://www.cddc.vt.edu/sionline/si/yellowzone.html. Acesso em
12 ago 2014.

CONSTANT. The Great Game to Come. Potlatch, Vol. 30, 1959. Disponível em:
http://www.cddc.vt.edu/sionline/si/greatgame.html. Acesso em 12 ago 2014.

DEBORD, Guy. Discussion on an Appeal to Revolutionary Artists and Intellectuals.


Internationale Situationniste, Vol. 3, 1959. Disponível em:
http://www.cddc.vt.edu/sionline/si/appeal.html. Acesso em: 12 ago 2014.

DEBORD, Guy. Introduction to a Critique of Urban Geography. Les Lèvres Nues, Vol.
6, 1955. Disponível em: http://www.cddc.vt.edu/sionline/presitu/geography.html.
Acesso em: 16 mai 2015.

DEBORD, Guy. Perspectives For Conscious Changes in Everyday Life.


Internationale Situationniste, Vol. 6, 1962. Disponível em:
http://www.cddc.vt.edu/sionline/everyday.html. Acesso em 12 ago 2014.

DEBORD, Guy. Situationist Theses on Traffic. Internationale Situationniste, Vol. 3,


1959. Disponível em: http://www.cddc.vt.edu/sionline/si/traffic.html. Acesso em 12 ago
2014.

DEBORD, Guy. Theory of the Dérive. Internationale Situationniste, Vol. 2, 1958.


Disponível em: http://www.cddc.vt.edu/sionline/si/theory.html. Acesso em 13 jun 2015.

DEBORD, Guy; WOLMAN, Gil. A User's Guide to Détournement. Les Lèvres Nues,
Vol. 8, 1956. Disponível em: http://www.cddc.vt.edu/sionline/presitu/usersguide.html.
Acesso em 12 ago 2014.

INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Contribution to a Situationist Definition of Play.


Internationale Situationniste #1, 1958. Disponível em:
http://www.cddc.vt.edu/sionline/si/play.html. Acesso em 12 ago 2014.
168

INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Unitary Urbanism at the End of the 1950s.


Internationale Situationniste #3, 1959. Disponível em:
http://www.cddc.vt.edu/sionline/si/unitary.html. Acesso em 12 ago 2014.

INTERNACIONAL SITUACIONISTA. The Meaning of Decay em Arte. Internationale


Situationniste #3, 1959. Disponível em:
http://www.cddc.vt.edu/sionline/si/decay.html. Acesso em 12 ago 2014.

JAPPE, Anselm. Os situacionistas e a superação da arte: o que resta disso após


cinquenta anos? Baleia na Rede, UNESP, 2011. Disponível em:
www.marilia.unesp.br/revistas/index.php/baleianarede/article/viewFile/1767/15.
Acesso em 12 ago 2014.

KHATIB, Abdelhafid. Attempt at a Psychogeographical Description of Les Halles.


Internationale Situationniste #2, 1958. Disponível em:
http://www.cddc.vt.edu/sionline/si/leshalles.html. Acesso em 12 ago 2014.

KNOESPEL, Kenneth. Diagrammatic Transformation of Architectural Space.


Philosophica, Georgia Tech University, Atlanta, Vol. 70, 11-36, 2002. Disponível em:
www.lmc.gatech.edu/~knoespel/Publications/DiagTransofArchSpace.pdf. Acesso em:
17 mai 2015.

PINOT-GALLIZIO, Giuseppe. Discourse on Industrial Painting and a Unitary


Applicable Art. Internationale Situationniste, Vol. 3, 1959. Disponível em:
http://www.cddc.vt.edu/sionline/si/industrial.html. Acesso em 12 ago 2014.

SHAYA, Gregory. The Flâneur, the Badaud, and the Making of a Mass Public in
France, circa 1860–1910. The American Historical Review, Washington, 41-77.
2004.

ZANCHETI, Silvio. et al. A pátina na cidade. Textos para Discussão n. 31 – Série


Gestão da Conservação Urbana, Centro de Estudos Avançados da Conservação
Integrada, Olinda, 2008.
169

- APRESENTAÇÕES OU PUBLICAÇÕES INDEPENDENTES

CONSTANT. New Babylon: A nomadic town. 1972. Disponível em:


http://www.notbored.org/new-babylon.html. Acesso em: 13 mai 2015.

DEBORD, Guy. Report on the Construction of Situations and on the International


Situationist Tendency's Conditions of Organization and Action. Cosio d’Arroscia,
1957. Disponível em: http://www.cddc.vt.edu/sionline/si/report.html. Acesso em: 12
ago 2014.

DEBORD, Guy. The Situationists and the New Forms of Action in Art and Politics.
1963. Disponível em: http://www.cddc.vt.edu/sionline/si/newforms.html. Acesso em:
12 ago 2014.

ISOU, Isidore. Manifesto of Lettrist Poetry. 1942. Disponível em:


http://www.391.org/manifestos/1942-manifesto-of-letterist-poetry-isidore-isou.html.
Acesso em 12 ago 2014.

JORN, Asger. Opening Speech at the First World Congress of Free Artists. Alba,
1956. Disponível em: http://www.notbored.org/speech.html. Acesso em 12 ago 2014.

SANBORN, Keith. Duas abordagens do desvio: Guy Debord e René Viénet. Recife:
Bê Cúbico, 2014.

- ENDEREÇOS ELETRÔNICOS

BRUNET, Karla. Mapeando Lençóis. Karla Brunet, 2008. Disponível em:


http://lencois.art.br/blog. Acesso em 12 ago 2014.

CARANGI, Marie. Peluqueria Carangi: Recortes e situações além-ambiente.


Peluqueria Carangi, 2013. Disponível em:
http://cargocollective.com/peluqueriacarangi. Acesso em: 14 mai 2015.
170

RAFFA, Ryan. Urban Drifts 2009 – 2014. Ryan Raffa. 2009. Disponível em:
http://www.ryanraffa.com/portfolio/urban-drifts-2. Acesso em: 14 mai 2015.

WAAG SOCIETY. Amsterdam RealTime. Waag Society, 2002. Disponível em:


http://realtime.waag.org. Acesso em: 14 mai 2015.

- VERBETES

L'INTERNAUTE. Dictionnaire. Linternaute.com. Disponível em:


http://www.linternaute.com/dictionnaire/fr/definition/plaque-tournante/. Acesso em 21
mai 2015.

WIKTIONNAIRE. Wiktionnaire: le dictionnaire libre. Wikimedia Foundation.


Disponível em: https://fr.wiktionary.org. Acesso em 21 mai 2015.

- RELATOS

MONTE, Luiz. Relato de descrição psicogeográfica – Pesquisa-piloto 01. [S.l:


s.n.], 2015.

MONTE, Luiz. Breve relato psicogeográfico – Pesquisa-piloto 02. [S.l: s.n.], 2015.

- MAPAS

PREFEITURA DA CIDADE DO RECIFE. Região Centro - RPA 1. Secretaria de


Planejamento, Urbanismo e Meio Ambiente. Recife, 2001.
171

APÊNDICES
172

APÊNDICE A – Relato de descrição psicogeográfica – Pesquisa-piloto 01

A Rua João Fernandes Vieira tem uma ambiência muito particular, apesar de
ser um ambiente de trabalho, com escritórios, repartições, entre outras coisas. A
sombra das árvores e atmosfera contribuem para uma sensação de relaxamento.
A palavra da Rua da Soledade é fluxo, gente indo e vindo a todo tempo: sente-
se aqui a vivência de fato da cidade, e há de se considerar a praça de frente da Igreja
uma possível plaque tournante.
As ruas Barão de São Borja e Manoel Borba apesar de paralelas têm
ambiências completamente distintas. Enquanto na primeira sente-se a calma que me
lembra a rua da minha vó. Na segunda a automatização dos carros e os pedestres
preocupados configuram um aspecto de – deixe-nos trabalhar!
O contraste da Rua José Mariano em relação ao bairro dos Coelhos em suas
costas é incrível. Pode-se perceber a vida de fato, típica das periferias da cidade em
meio a brechas que aparecem num cenário de armazéns e comércio pesado, de onde
são tiradas matérias primas para construções da sociedade atual, que nada tem de
construtivas. Um conselho aos transeuntes da José Mariano é espiar, e quem sabe
adentrar à vida real que se revela entre as brechas.
A Rua Tobias Barreto é o comércio em pelo do Recife. Talvez eu não tivesse
me agradado tanto dela, não fosse a barraquinha de drops com o símbolo do Santa
Cruz.
Por fim, o cansaço bate na praça do Diário. Outro ponto de várias
possibilidades. Uma plaque tournante que acredito alterar percursos até de quem não
se propõem à deriva. Apesar do sol já ter baixado, o cansaço da andada e o fato de
estar próximo à Av. Guararapes me corrompe a ir embora.

Autor: Luiz do Monte


173

APÊNDICE B – Breve relato psicogeográfico – Pesquisa-piloto 02

A deriva começou só comigo e com Matheus, tendo em vista que Rodrigo se


atrasou. Eu e Matheus começamos por um caminho que nos apetece, a Rua do Lazer.
Açaí e suco de tangerina foram os combustíveis da primeira arrancada.
Passamos pela Rua do Sossego, ou não passamos, a atmosfera parecia a
mesma. Dobramos no sentido da Conde da Boa Vista e, no meio de explicações sobre
a Internacional Situacionista, Matheus me alerta sobre um transeunte: – Tá ligado
nesse velho? – É Daniel Santiago (falamos em uníssono). Vidrado, então, nas
possibilidades de uma deriva convenço Matheus a segui-lo (por um momento
achamos que ele iria visitar Bruscky). Mas Daniel só estava a caminho do Céu e Terra,
alguma loja de homeopatia ou coisa parecida. Resolvemos parar de segui-lo e de
seguir pessoas em geral.
Rumamos no sentido do Shopping Boa Vista sem conseguir evitar alguns sacos
de lixo na calçada onde estávamos. Nos abrigamos na marquise da entrada do
shopping, por conta do calor, fomos até o outro lado dele e finalmente encontramos
Rodrigo.

Autor: Luiz do Monte


174

APÊNDICE C – Mapa de percurso de deriva – Experimento 01


175

APÊNDICE D – Mapa de percurso de deriva – Experimento 02


176

APÊNDICE E – Mapa de percurso de deriva – Experimento 03


177

APÊNDICE F – Mapa de ilustração da hipótese dos becos


178

APÊNDICE G – Mapa de inter-relação de ambiências nostálgicas


179

APÊNDICE H – Mapa de inter-relação de ambiências suspensas


180

APÊNDICE I – Mapa de ilustração de elementos de jogo

Você também pode gostar