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ISSN 2238-0272

ANAIS #19.ART / 2020



Outubro de 2020

190 Encontro Internacional de Arte e Tecnologia (#19.ART): Emaranhamentos

Coordenação Geral e Organização dos Anais

Antenor Ferreira Corrêa (UnB)


Cleomar Rocha (UFG)
Gilbertto Prado (UAM/USP)
Suzete Venturelli (UAM/UnB)

Site: https://art.medialab.ufg.br/

Comissão Nacional/Internacional: Ana López Garcia, Daniel Argente, Daniel Cruz, Felipe
Londoño, François Soulages, Francisco de Paula Barretto, Lilian Amaral, Lúcia Santaella,
Luisa Paraguai, Maria Luiza Fragoso, Martin Groisman, Milton Sogabe, Nara Cristina Santos,
Priscila Arantes, Rachel Zuanon, Rosangella Leote, Sandra Rey, Santigo Echeverry, Sílvia
Laurentiz, Sérgio Nesteriuk e Tania Fraga.

Instituições Parceiras: Université Saint Paris8, França; Universidade de Granada, Espanha;


University of TAMPA-USA, Universidad de Buenos Aires; UFRGS; UESC; UNESP; UFRJ;
UFSM; PUCSP; Unicamp; PUC- Campinas; USP; Senac; Fapesp; Capes; CNPq e Fapdf.















Sumário

1. Apresentação [7]

2. Resumos [12]

3. Textos completos [23]

4. Apresentações 0n-line: vídeos [380]

5. Exposição EmMeio#12.0 [382]

Apresentação

Apresentação

Em tempos de pandemia o cotidiano é, também, frequentemente acompanhado de intuição e


percepção. Para alguns autores, como François Aroche, ocorrem outros sentimentos e coisas
estranhas que acompanham a nossa existência, cujos fenômenos não são incomuns e afetam a
todos. Pesquisadores de várias áreas buscam abordar o assunto de muitas maneiras, por meio
da arte, da filosofia, da ciência, da tecnologia, por exemplo. O autor se pergunta se há uma
maneira de entender essas experiências e encontra na teoria da física quântica respostas para
algumas perguntas, pois afirma que foi comprovado que as partículas elementares são
conectadas umas às outras, ou seja, estão entrelaçadas. Isso quer dizer que, no nível das
partículas elementares, "tudo é um". Nessa unidade, entendemos que podemos reconhecer o
espírito do universo, o Anima Mundi de Platão, o inconsciente coletivo de Carl Jung, o
conhecimento xamânico ou talvez imaginar uma ideia totalmente nova da realidade, que
entrelace a realidade e a mente, como imagina Roger Penrose. Este autor, por exemplo, pensa
que a consciência e seus mecanismos de raciocínio estão submetidos às variações e flutuações
quânticas, que originam às inexplicáveis explosões criativas dos artistas e dos cientistas. Fritjof
Capra, supõem, além disso, um paralelo entre a realidade quântica e a filosofia. Reconecta,
nesse viés, nosso conhecimento científico à sabedoria das antigas filosofias da humanidade que
sempre concebiam os seres vivos interconectados ao Cosmos. Arlindo Machado, por sua vez,
enfatiza que a arte e ciência se enriquecem simultaneamente, e certos projetos artísticos, se
entrelaçam, pois buscam associar artistas e cientistas, baseando-se principalmente nos
pensamentos de seu tempo. A arte atua como reveladora, subverte a ordem e dá acesso a dados
e fatos que seriam inacessíveis sem ela. Ciência e arte são dois produtos da imaginação. Suas
obras e os resultados, só podem ser verdadeiramente entendidos com o culminar deste processo
criativo. O conceito de criatividade é seu denominador comum.

Nesse sentido, por suas importantes contribuições teóricas, Arlindo Machado será nosso
homenageado nesta edição do evento, que tem o objetivo de abrir espaços de discussões e
reflexões sobre teorias que envolvem a criação no emaranhamento de diferentes campos de
conhecimento e produção intelectual, para conectar no âmbito nacional e internacional,
apresentações sobre a natureza do relacionamento entre arte e ciência, na cultura atual.

Buscar a arte na ciência ou a ciência na arte seriam as duas únicas possibilidades de acordo com
as quais é possível entender o entrelaçamento "arte e ciência"? A conexão entre essas duas
manifestações da criatividade humana poderia ser baseada em um mecanismo comum mais
profundo? Nesse caso, como podemos entender as descobertas artísticas e cientificas na
atualidade? Essas são algumas das questões que o evento buscará refletir em consonância com
seus convidados e selecionados.

Em relação ao programa que abrigou vários eventos importantes no Brasil como o SIIMI, o
DAT e o Retina, num HUB, no qual reunimos comunidades de pesquisadores e profissionais
que trabalham no entrelaçamento dentre arte, design, humanidades, ciência e tecnologia. As
propostas se encaminhadas englobaram os seguintes temas:

1) Projetos de pesquisa enredados;


2) Teoria_crítica_filosofia;
3) Métodos e processos de poéticas computacionais;
4) História_arqueologia de artefatos_restauro;
5) Design e experimentação;
6) Ecocentrismo_natureza_arte;
7) Desafios da Inteligência Artificial na criação, pesquisa e educação;
8) Data visualization: tornar visível o invisível?;
9) Internet das coisas_emergência_complexidade;

10) Design_arte: enredamentos lúdicos e estéticos;


11) O lugar contemporâneo das imagens;
12) Imagens entrelaçadas

O #19ART ocorreu em conjunto com os eventos: SIIMI2020; 2º Simpósio Internacional de


Design, Arte e Tecnologia (DAT) e o 2º Colóquio RETINA.INTERNACIONAL/SP, que são
organizados pelos programas de pós-graduação de arte e design da Universidade de Brasília,
Universidade Federal de Goiás, Universidade Anhembi Morumbi e Université Saint-Denis
Paris-8.

O HUB2020 foi realizado de 19 a 23 de outubro de 2020, na modalidade online. Ficamos todos


muito felizes com a exposição online EmMeio#12.0, com curadoria de Artur Cabral Reis e
Joênio Costa da Universidade de Brasília, espaço para apresentação de obras realizadas a partir
de pesquisas artísticas desenvolvidas no âmbito dos laboratórios, oficinas e ateliês
universitários.

Um pouco da história do #ART

O primeiro encontro de arte e tecnologia de Brasília foi realizado, em 1989, no Auditório Dois
Candangos da Universidade de Brasília. Naquele momento, ocorreu também a primeira
exposição como parte constituinte e indissociável do evento principal. Nos 25 anos seguintes,
a expansão do interesse acadêmico pela relação entre arte, ciência e tecnologia possibilitou
colocar Brasília como polo irradiador de reflexões acadêmicas trazendo para a cidade
importantes representantes da área como Gilbertto Prado, Lúcia Santaella, André Parente, Roy
Ascott, Edmond Couchot, Priscila Arantes, Sandra Rey, Ettiene Delacroix, Tania Fraga,
Cleomar Rocha, Milton Sogabe, Lúcia leão, Monica Tavares, Chantal Dupont, Maria Beatriz
de Medeiros, Yara Guasque, Monica Fleishmann, Martha Gabriel, Iain Mott, Derrick de
Kerchkove, François Soulages e Oliver Grau, entre outros. As duas últimas décadas mostraram
que a relação tem provocado fascinantes experiências e transformações no âmbito da arte que
emprega meios computacionais e de telecomunicações, propondo mudanças radicais nos
processos criativos, na percepção, no ambiente em que vivemos e no campo da estética.

Resumidamente, alguns temas tratados apresentaram reflexões visando desvelar a complexa


relação política, social e identitária, para evidenciar o pensamento artístico, por meio de noções
emergentes que permitem compreender e aprofundar as teorias que nascem a partir de novos
paradigmas estéticos vinculados à simbiose dos pensamentos sistêmico, artístico, científicos,
tecnológico, estético e político. Nesse mesmo contexto, apresentou a exposição intitulada
Instinto, com a participação de renomados artistas de arte computacional. Além disso, vem
contando com parceiros internacionais, como, os apoiados pelo programa de cooperação da
União Europeia denominado “Europe-pays tiers: le Brésil”, cuja proposta afirma que a arte não
fica indiferente à tensa relação entre o local e o global. Por um lado está sujeita aos
constrangimentos políticos, sociais, econômicos de um território, por outro lado sofre a pressão
da grande dimensão de informação das mídias e das tecnologias de comunicação.

A criação artística encontra o seu espaço de produção nos campos das tecnologias atuais, arte
como tecnologia, pensamento de Júlio Plaza. Inscreve-se num meio ecossocial, politizado e
culturalmente desafiador em terrenos movediços, como a própria arte da atualidade
mundializada. Os encontros analisam conceitos, tais como território e cultura, materialidade e
imaterialidade e confrontá-los com as novas noções oriundas dos meios computacionais, como
a noção de trabalho colaborativo, compartilhado em coautoria, de interator/usuário, de sistema,
de virtualidade, de artificialidade, de simulação, de interface, de hipertextualidade, de
ubiquidade e de interatividade, afim de articular e atualizar os discursos sobre a área de atuação
de pesquisa e produção artística.

Outros temas envolveram análises sobre sistemas complexos artificiais, naturais e mistos para
demonstrar como sistemas computacionais são, em alguns casos, análogos às comunidades
ecológicas naturais, uma vez que são complexos, sinergéticos, abertos, adaptativos e dinâmicos.
Incluem componentes computacionais interagindo entre si e com o meio computacional. Como
ecossistemas computacionais, suas espécies surgem e crescem em constante evolução,
buscando equilíbrio interno entre seus elementos e suas interações. As espécies computacionais
formam comunidades espontâneas e interagem com o meio ambiente. Uma espécie
computacional como, por exemplo, os aparelhos celulares, no contexto da arte computacional,
consistem de um hardware (como o corpo de uma espécie biológica) acoplado ao seu software
associado (simular a vida de uma espécie biológica). No ambiente computacional, assim como
no biológico, as espécies computacionais vivem e se reproduzem.

Neste caso, destacou-se que as interações entre espécies computacionais, intra-espécies


computacionais e natureza são significativas no contexto artístico. A metáfora biológica é
recorrente nos sistemas complexos computacionais artísticos. Assim como o encontro, a
exposição intitulada Arte Computacional, mostrou o resultado de pesquisas desenvolvidas por
renomados artistas da área. Pela primeira vez o encontro também realizará, sob a coordenação
de Ana Beatriz Barroso, uma oficina de animação. Sem enredo ou desenvolvimento narrativo,
esta oficina consiste na realização de uma animação para mostrar uma pessoa que simplesmente
deixa vir para fora aquilo que ela tem por dentro, como as naturezas essenciais deste dentro
variam de pessoa para pessoa.

O #.ART tem buscado, através da história, distinguir trabalhos artísticos que utilizam a
tecnologia digital como uma ferramenta para produzir formas tradicionais, de obras de arte, de
outros tipos de produção, que surgiram a partir da colaboração entre arte, ciência e tecnologia
e criam sistemas inéditos indissociáveis de um pensamento que conceitualiza o conhecimento
sensível do homo aestheticus. Questões foram discutidas como as levantadas pelo filósofo Luc
Ferry, para o qual a arte é, profundamente, uma ocorrência social e política, não no sentido em
que mobiliza temas ou interesses sociais e políticos, mas porque mostra que as mutações
históricas ou conceituais relativas ao que seja arte são, por excelência, o lugar onde a imagem
social e política de uma sociedade é legível na sua maior depuração. Para o autor, a noção de
gosto, antes de referir-se ao universo artístico, designou um contorno particular da
sociabilidade. O evento homenageou o principal historiador de arte brasileiro a incentivar a
relação da arte e tecnociência paulistano Walter Zanini e continuou explorando temas
específicos ao campo da arte computacional como a interatividade na arte, a vida artificial e
inteligência, ativismo político e social, redes sociais e presença a distância, museu virtual, bem
como questões como a coleta, apresentação e preservação da arte digital, entre outros, pois
verifica-se que com o acesso às redes livres aos softwares, hardwares, Internet e dispositivos
móveis, como PDAs (Personal Digital Assistants) e celulares, está surgindo uma nova onda
criativa como uma nova arte popular.

O #.ART em suas edições questiona o estado do artista hoje e os processos de criação, assim
como, analisa conceitos como de Singularidade Tecnológica, ou simplesmente Singularidade,
cunhado por Ray Kurzweil (2013), que corresponde ao momento hipotético quando a
inteligência artificial atingirá o mesmo grau de inteligência humana, mudando talvez a própria
natureza humana, que se tornará cada vez mais não biológica. É o alvorecer de uma nova
civilização que nos permitirá transcender nossas limitações biológicas e amplificar a nossa
criatividade.

Nesse sentido, pode-se dizer que as tecnologias digitais estão homeopaticamente contaminando
camadas do sistema da arte, que deixa de ter o monopólio do meio. O encontro pretende
verificar como a natureza da arte tecnológica em si faz com que os limites de controle fiquem
mais poroso e permitam rever sistemas tradicionais de controle. Tudo isso está permitindo que
a arte expanda, desafie e até mesmo redefina noções.





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Em conjunto com o evento, a exposição de arte computacional será apresentada no Museu


Nacional da República de Brasília, durante 30 dias do mês de setembro, e na cidade do Porto,
no mês de outubro. Importantes obras de pesquisas oriundas do Brasil e do exterior estarão
representadas.

Em 2015, o #14.ART: Arte e Desenvolvimento Humano examinou, contrastou e discutiu novos


territórios produtivos, assim como debateu as evoluções criativas. O evento procurou entrepor-
se em zonas de contato e sobreposição entre domínios e culturas , pesquisa acadêmica e práticas
criativas independentes, políticas sustentáveis e engajamento social, ou ideias tecnológicas
como propostas para a evolução do ser Humano, para o século XXI. Buscou-se que a discussão
se centrar as discussões no aspecto transformativo da arte na época presente seja ela de pós-
média (Lev Manovich, Peter Weibel, Rosalind Krauss) ou pós-humana (Katherine Hayles, Nick
Bostrom, Cary Wolfe).

Em 2016, 0 #15.ART: Arte, Ação e Participação abordou a temática Arte, Ação e Participação,
homenageando o teórico Frank Popper, que inspirou esta edição do evento através de seu livro
Art, Action et Participation: L'artiste et la créativité aujourd'hui, publicado pela editora
Klincksieck em 1982. O evento, instigado pela complexidade da estética (pratica e percepção),
pela penetração da arte (linguagens, cultura, sociedade) e pela imaginação tecnocientífica
(linguagens, informação, tecnologia, objeto), teve como um dos objetivos discutir sobre o
contexto da arte hoje, no seu aspecto intermidiático e participativo, quando se aproxima de
modo transdisciplinar da ciência e tecnologia, salientando as propriedades objetivas da arte para
comparar com as propriedades subjetivas da percepção.

Nos últimos 25 anos, com a expansão do interesse acadêmico pela relação entre arte, ciência e
tecnologia, o #18.ART: DA ADMIRÁVEL ORDEM DAS COISAS: arte, emoção e tecnologia,
realizado em 2019 (Lisboa e Brasília), possibilitou continuar colocando o evento como polo
irradiador de reflexões sobre a arte atual trazendo importantes representantes da área. O
encontro procurou analisar conceitos que surgem da prática artística, tecnológica e científica
dos seus participantes e confrontá-los com as noções oriundas do pensamento contemporâneo
dos autores nomeados ou de outros interatores propostos.

Verificamos que, através dos tempos, ficou claro que a arte – com as condições proporcionadas
pelo discurso da ciência, tecnologia e dos média – oferece um potencial – inteligente e
potencializado – no qual as mídias e as tecnologias estão engajadas no pensamento crítico e de
elocução para as artes e onde se desvanecem distinções ontológicas pré-concebidas. No entanto,
as qualidades simbólicas e estéticas, bem como o pensamento crítico e os aspetos investigativos
e de confronto teórico da “pré-média arte”, também se apresentam ser tão importantes para a
“pós-media arte”, obrigando a produção e o discurso artístico a manter uma mediação entre a
matéria e o assunto – realidades e utopias – devolvendo à arte lato sensu a questão central da
sua existência.

Os dois primeiros eventos do DAT e RETINA.INTERNACIONAL, foram realizados também


em 2019, na Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, nos quais procuramos aproximar
as pesquisas que em design, arte e tecnologia evocam a emoção, que é atribuída ou não ao que
nos afeta diretamente por meio de nossos sentidos. Partiu-se do princípio de que o prazer e a
dor constituem os tons fundamentais de qualquer tipo ou forma de emoção e, nesse sentido, o
evento procurou refletir como a imagem, ou a maneira particular como percebemos as coisas
que criamos, provoca o prazer e que tipo de prazer? O prazer da imagem é ambíguo? O prazer
supõe uma estética? A reflexão teórica resultante apresentou articulações entre as abordagens
estéticas e as abordagens teóricas da imagem, do design, da cultura, da sensibilidade e de
valores aportados pela ciência e tecnologia. A articulação entre os diferentes saberes elencados,
para ser rigorosa e relevante, baseou-se primeiro numa abordagem sensível e depois na sua
abordagem teórica. Nesse viés, as apresentações mostraram as possíveis articulações entre as
culturas da imagem, as práticas que produzem e recebem a imagem e as economias e as políticas





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que perpassam a produção atual. O evento foi organizado, nessa primeira edição com
convidados que participaram como palestrantes ou apresentando comunicações, em diferentes
mesas-redondas.

Assim, possibilitou-se a promoção, divulgação e comparação das pesquisas acadêmicas, em


andamento em diversas instituições notadamente em diversos estados brasileiros. A abordagem
poética, foi enfatizada pelos convidados, e em especial no que concerne a abordagem criativa.
Assim, pode-se dizer que o sujeito usa a imagem, o imaginário e a metáfora – e, às vezes, a
ficção – para apresentar uma ideia que vibre em contato com o seu mundo cultural.

Boa leitura.





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_Resumos

Navegar em Deriva: entre dados e visualidades

Agda Carvalho IMT - Instituto Mauá de Tecnologia/ MediaLab


Cleomar Rocha UFG/ MediaLLab

O texto investiga a condição de estar continuamente à deriva, uma experiência presente


cotidianamente quando navegamos nas redes sociais, pesquisamos ou levantamos
dados, mas também observa como esta conectividade, pode interferir, ou mesmo
modificar a experiência do caminhar e estabelecer outras relações com o entorno.
Observa-se a experiência, que tem início na rede e efetiva-se presencialmente, a partir
de três categorias: a afetiva, a cognitiva e a estética. Para tanto, enfoca-se a proposição
vejo aquilo que escuto e escuto aquilo que vejo, de 2019, pesquisa do pós-doutorado
desenvolvida no MediaLab/ UFG. A pesquisa teórico-prática trata do desvelamento dos
becos da Cidade de Goiás, antiga Vila Boa de Goyas, a partir das poesias de Cora
Coralina. Deste modo, esta investigação amplia o significado de estar à deriva,
inicialmente destaca-se a experiência de navegar entre os dados da rede, imersos em
uma suporta liberdade, e posteriormente discute a experiência de perder-se e de
vivenciar os espaços e a especificidade dos contextos.

Projetos para um quotidiano moderno no Brasil: reavaliando o acervo modernista


do MAC USP

Ana Gonçalves Magalhães / MAC

A partir do projeto da exposição “Projetos para um quotidiano moderno no Brasil,


1920-1960”, pretendo discutir como dialogam a pesquisa interdisciplinar e a formação
em nível de pós-graduação nos processos curatoriais, para trazer à luz outras narrativas
possíveis dentro do acervo de arte moderna do MAC USP, capazes de problematizar
premissas anteriormente assumidas sobre os modos de narrar a arte moderna no museu.
Procurar-se-á dar ênfase a uma iniciativa talvez menos conhecida de Walter Zanini,
como primeiro diretor do MAC USP, no colecionismo de arte moderna, atualizando a
narrativa até então constituída, ao incorporar ao acervo projetos das ditas artes aplicadas
dos mestres do modernismo brasileiro. O projeto da exposição nasceu das discussões
realizadas dentro do Grupo de Pesquisa CNPq “Narrativas da Arte do Século XX”, do
qual participam alunos de graduação, pós-graduação e pós-doutorandos, e no qual
iniciamos em 2016 o estudo crítico dos autores (brasileiros e não-brasileiros) que
contribuíram para a constituição da historiografia da arte moderna.




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If you hold a stone hold it in your hand (2020)


Esculturas geradas a partir de dados da COVID19, cortadas na CNC

Clarissa Ribeiro

A instalação “If You Hold the Stone Hold It in Your Hand” (2020) consiste em uma
série de 7 (sete) esculturas baseadas em dados geradas algoritmicamente a partir de
dados da Organização Mundial de Saúde referentes ao número de casos por país de
covid19 - selecionamos aqui os 7 países com maior número de casos - Estados Unidos,
Rússia, Brasil, Reino Unido, Espanha, Itália e França. Os dados online do Dashboard
do WHO Coronavirus Disease (COVID-19) são a entrada numérica que gera uma
nuvem de pontos no ambiente Rhino6 tendo como caixa limite a geometria de uma mão
humana. A partir dos pontos, séries de superfícies sobrepostas são geradas e convertidas
em malhas que, infladas, surgem como contaminações geométricas intrincadas na
geometria de base da mão, extravasando a pele numérica. A geometria agressiva quebra
a sutileza do gesto - um aperto de mãos impossível. A impossibilidade de tocar, o perigo
invisível da presença de um vírus na superfície das mãos - a necessidade de
distanciamento social; a presença de corpos potencialmente doentes. A obra fala do
medo do invisível, do desconhecido, do intangível, mas potencialmente mortal. O
trabalho foi apresentado como uma palestra e uma visita ao vivo no ARS
ELECTRONICA in KEPLER'S GARDENS 2020 como parte do UCLA Art | Sci
Center e Botanical Gardens “Telluric Vibrations”
https://ars.electronica.art/keplersgardens/en/tour-if-you-hold-the-stone/ Para o SIIMI
2020 - Simpósio Internacional de Inovação em Mídias Interativas a artista vai falar
sobre a poética e apresentar os designs algorítmicos baseados em dados esculpidos em
uma CNC de 4 eixos.

A influência de grandes educadores do passado nas tendências educaionais do


presente e do futuro

Claudia Alquezar Facca / Instituto Mauá de Tecnologia


É importantíssimo conhecer e compreender nosso passado, para entender o presente e
projetar o futuro da educação. Muitas das supostas “novas” metodologias possuem
raízes centenárias e a tensão entre a mudança e a estabilidade sempre existiu. O diálogo
entre o novo e o velho sempre foi necessário e inovar na educação é dialogar com a
tradição, com nossos mestres e com os problemas abordados. A transdisciplinaridade,
que aparece hoje como um tema inovador nos sistemas de ensino de vários países, é um
princípio teórico do qual decorrem várias consequências práticas, tanto nas
metodologias de ensino quanto na proposta curricular e pedagógica. Apesar disso, esta
ideia não é tão nova; ela remonta aos ideais pedagógicos do início do século XX,
quando já se falava em ensino global e do qual trataram famosos educadores. Neste
contexto apresentam-se aqui as ideias de alguns deles: a Escola Progressista de John
Dewey (1859–1952), a Pedagogia Científica de Maria Montessori (1870–1952), a
Epistemologia e o Construtivismo de Jean Piaget (1896–1980), o Construcionismo de




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Seymour Papert (1928–2016), e o Ensino por Competências de Philippe Perrenoud


(1944– ). Por meio de uma pesquisa exploratória (bibliográfica e documental) é possível
criar um referencial teórico e contextualizar o cenário da educação superior atual,
principalmente conectando ideias de grandes educadores do passado e do presente às
tendências educacionais atuais, relacionadas por exemplo ao ensino de STEM (Science,
Technology, Engineering and Mathematics) e STEAM (+ Arts), às estratégias ativas de
aprendizagem baseadas em projetos e à educação maker.

Entre criatividade e processos de criação: gambiarras e outras desobediências

Cristiane Mesquita / UAM


A noção de projeto impera como diretriz dos modos de subjetivação no contexto
neoliberal, cuja urgência por soluções eficientes sinaliza os modos de vida dominantes,
vinculados à cultura da eficácia, do sucesso, do progresso. Projetar é uma atividade que
atende diferentes requisitos e relaciona desempenho e resultados para uma vida
produtiva. O design, o coaching e os manuais de autoajuda são campos reveladores da
lógica que privilegia desafios, métodos e etapas a serem vencidos de modo ‘criativo’,
outro imperativo avassalador dos modos de vida hegemônicos. Desestabilização,
inacabamento, inadequação, lentidão, desordem, entre outros descabimentos, são
apontados como falhas. Distintos da criatividade, processos de criação podem ser
compreendidos como aglutinação de conhecimentos cognitivos e de percepções
sensíveis em ações, formalizações ou na experimentação de modos de vida. O criador
rompe acordos com modos de subjetivação hegemônicos, com os sistemas de controle
e com “palavras de ordem”, instaura “espaços- tempos”, produz deslocamentos, ainda
que mínimos, do que está sendo sentido ou vivido como a configuração da realidade e
aponta para a capacidade de criar questões – concretas, imaginárias, poéticas, políticas,
etc. – sobre determinado contexto, sobre os modos de subjetivação vigentes e ainda
sobre o próprio campo no qual se engendra. Para personificar essa proposição,
tomaremos dois exemplos-acontecimentos: a série fotográfica do cineasta e artista
visual brasileiro Cao Guimarães (Gambiarras. 2000-2014) e alguns dos “objetos
desobedientes”, integrantes da mostra de mesmo nome, ocorrida no Victoria & Albert
Museum (Londres, 2014), curada pelo crítico inglês Gavin Grindon. Ambos,
gambiarras e objetos desobedientes, engendram procedimentos indisciplinados e
operadores que problematizam os imperativos dos modos de subjetivação vigentes.



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Contribuições da Realidade Virtual (VR) e Realidade Aumentada (AR) para


tratamento dos atributos sociais de crianças diagnosticadas dentro do Transtorno
do Espectro Autista (TEA).

Diego Enéas Peres Ricca / FAU-USP

TEA está entre os problemas de saúde mental que mais prejudicam o desenvolvimento
infantil, as quais tendem a ter déficits em habilidades de comunicação e sociais (humano-
humano). Com o barateamento das tecnologias de VR e AR, novas possibilidades e
experimentações no tratamento e educação de crianças com TEA têm surgido. Com base
nisso: como experiências compartilhadas em VR e AR podem contribuir no
tratamento de crianças diagnosticadas dentro do TEA, em especial em se tratando
do auxílio no desenvolvimento de habilidades sociais? Parte-se de um estudo de
reconhecimento de casos múltiplos de aplicação de mídias desta natureza para tratamento
e desenvolvimento de atributos sociais. Foi realizado um cotejamento destes casos com
base em duas categorizações teóricas: as três Threads of Experience de McCarthy e
Wright, dividindo a atividade de interação como sensorial, emocional e intelectual; e os
três distintos níveis emocionais do design, categorizados por Donald Norman como:
visceral, comportamental e reflexivo. Tendo como base que crianças com TEA são
altamente visuais em seu processo de aprendizagem, observou-se por fim que há
benefícios com o uso de tecnologias digitais interativas compartilhadas associadas ao seu
cotidiano (humano–máquina-humano). Nota-se, entretanto, que tais benefícios parecem
ser mais efetivos quando vinculados ao espaço físico, motivo pelo qual experiências em
AR podem fortalecer mais o aspecto social, quando comparado a interações totalmente
imersivas oferecidas pela VR.

A sexta extinção massiva de espécies em “O Sonho dos Deuses”: conexões criativas


entre quadrinhos, escultura e performance

Edgar Silveira Franco (Ciberpajé) / UFG

O termo “quadrinho expandido”(FRANCO, 2017) traz uma concepção que extrapola


apenas a ideia de “campo expandido”como rompimento de fronteirasartísticas definidas
tradicionalmente e também não limita-se à convergência midiática, pois a ideia de HQ
Expandida não envolve penas novos formatos – como as HQtrônicas – apesar de englobá-
las. Extrapola os formatos de difusão e linguagens emergentes e pensa o concito
expandido como articulação dos quadrinhos com novas formas de saber através de
processos criativos inusitados utilizando ferramentas criativas não ortodoxas como
ENOC – Estados Não Ordinários de Consciência (MIKOSZ, 2014) – atrevés de métodos
como o uso de enteógenos, Respiração Holotrópica, e também criação ritual usando a
técnica de mágia de sigilos (FRANCO, 2017). Desse modo o campo da HQ Expandida
engloba todos os formatos hipermidiáticos, mas também as HQs publicadas em suporte
de papel, que foram gestadas a partir de ENOC e outros métodos não usuais. Este artigo
trata do processo criativo da escultura HQ (MACHADO, 2018) o Sonho dos Deuses,
transbordamento transmidiático de um ato do grupo Posthuman Tantra, baseada numa
experiência de ENOC e inspirada em pesquisadores que têm denunciado a sexta extinção
massiva de espécies no planeta, sendo que ela tem como causa a ação devastadora humana
sobre a biosfera. Dentre esses pesquisadores destaco o cientista inglês James Lovelock


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(2010) o cientista da computação Stephen Emmott (2013) e a jornalista Elizabeth Kolbert


(2015). Todos são categóricos em apoiar o eminente colapso de nossa espécie como
consequência da devastação de Gaia.

Atualizações, sobrevivências e contaminações da arte popular

Emerson Dionísio Gomes de Oliveira / UnB


O presente projeto busca compreender e historiar as estratégias expológicas e curatoriais
utilizadas na manutenção e na atualização da visibilidade crítica da produção identificada
como Arte Popular. Para tanto elencamos um pequeno conjunto de dez mostras realizadas
nos últimos 30 anos, que reuniram esta produção a outras obras classificadas em
diferentes códigos da história da arte: arte colonial, arte moderna e arte contemporânea.
Realizadas por importantes instituições museológicas brasileiras, tais exposições podem
ser relacionadas às reflexões sobre as práticas narrativas trans-históricas, dedicadas em
reunir objetos e processos de regimes temporais distintos, introduzindo novas
possibilidades para a história da arte. Preocupados em pesquisar os discursos propostos
pelas exposições em relação às obras nelas reunidas, ambicionamos compreender como
se dá a sobrevivência do “popular”, contaminando e contaminado por outras tipologias
artísticas. Mais que um problema classificatório, em hipótese, acreditamos tratar-se do
câmbio entre coleções hierarquizadas e processos identitários que reificam o regional e o
nacional, ampliando-os para outros de modos de fazer arte. Câmbio que, também, nos
permite questionar a própria história das segmentações produzidas pela história da arte
do século XX.

Novas apropriações da Rede pela Dança. As mídias sociais como espaço para Live
Performances.
Ivani Santana / UFBA
Em meados de 1970 a dança já explorava possibilidades de utilizar a comunicação remota
para suas criações por meio dos satélites. Com o avanço e o desenvolvimento das redes
de telecomunicação, vários projetos específicos para este sistema tecnológico foram
realizados. Artistas e pesquisadores interessados na tecnologia de rede perceberam o
incrível potencial desse espaço virtual para projetos que desafiavam novas ignições
corporais, bem como outras organizações artísticas, estéticas e conceituais. Todavia, não
havia muito interesse da classe artística da dança em contextos desta natureza, aspecto
que foi alterado radicalmente com a chegada da pandemia do COVID 19. O isolamento
social provocou uma mudança radical nesse sentido e impôs aos artistas deste campo a
necessidade de explorar a rede como o novo palco e espaço possível para criação. Como
resultado podemos verificar tanto o crescimento esponencial de conteúdo, mas também a
criação de novas configurações artísticas através do uso das mídias sociais, das
plataformas de videoconferência e de outros espaços virtuais. O termo "Live
Performance" ganha outro significado e contexto com a criação de cenas performativas


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através do Instagram, projeto que denominamos "Através de Nós", sendo "nós" tanto os
integrantes do grupo, como as conexões da rede. Considerando a enorme exclusão digital
que o país vive, condição escancarada pelo contexto de isolamento social que estamos
vivendo, o projeto oferece uma forma low tech de realizar a dança com mediação
tecnológica que se distingue dos projetos telemáticos pré-pandemia.

Fabricando ideias: os meios de fabricação digital como uma forma de produzir


Tecnologia Assistiva pelas mãos das mães de crianças com deficiência
Juliana Maria Moreira Soares
Este artigo tem como objetivo reportar e analisar a etapa experimental dentro de uma
pesquisa de doutorado em andamento. Foi elaborada uma metodologia enxuta de
apropriação da linguagem de desenvolvimento de produtos e de orientações com relação
ao uso da fabricação digital neste processo, com a intenção de criar autonomia a um grupo
de mães de crianças com deficiência. As mulheres protagonistas desta pesquisa trouxeram
demandas ligadas à criação de objetos assistivos para uso cotidianos de seus filhos,
crianças com deficiência físico-motora, os quais poderiam ser desenvolvidos dentro do
ambiente de um Fablab. O Fablab é um laboratório de fabricação digital, sendo um
espaço que dispõe de maquinário e suporte técnico para a materialização de ideias. No
presente caso, as estruturas utilizadas para esta etapa do projeto foram as unidades da rede
Fablab Livre SP, que se trata de uma iniciativa pública da cidade de São Paulo/SP/Brasil.
Desta forma, através de encontros de aprendizados e trocas de conhecimentos, foram
construídos os saberes necessários para a criação de uma saída material das ideias levadas
pelas mães. Foram observadas as narrativas das protagonistas, as quais integram suas
identidades e estabelecem identificações com os processos realizados, estes por vezes
tecnológicos, mas também em parte analógicos, dentro dos espaços utilizados. Neste
ciclo, a experimentação de práticas e soluções junto ao encontro de tecnologias e culturas,
levou a um processo de detecção de potencialidades neste modo de produção de
Tecnologia Assistiva, bem como pontos de fragilidade dentro do processo.

Inteligência Artificial e Criatividade Computacional: prospecções técnicas,


estéticas e poéticas

Francisco de Paula Barretto / UFBA

A aplicação pervasiva de técnicas de Inteligência Artificial (IA), como Deep Learning,


de forma integrada às ferramentas, plataformas e dispositivos computacionais que
utilizamos no cotidiano faz emergir uma nova dinâmica de interação humano-computador
no sentido de que ao mesmo tempo em que geramos os dados que influenciam no
aprimoramento dos algoritmos existentes, também acabamos tendo o nosso
comportamento influenciado pela ação destes mesmos algoritmos, em
uma jornada cíclica. Neste sentido, por exemplo, a IA é capaz de decidir quais fotos,
notícias e resultados de busca são mais "apropriados" para cada um, de acordo com os
dados que geramos anteriormente. No entanto, esse tipo de comportamento orientado a
dados diz mais sobre quem nós fomos ou o que fizemos no passado do que sobre o que


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podemos ser. Impõe-se nesta interação, de certa forma, uma dinâmica homeostática onde
a IA busca manter em equilíbrio o modelo de quem somos (ou fomos), enquanto tenta
apreender quem estamos nos tornando. Apesar de superficialmente parecer como uma
dinâmica determinista, há um enorme espaço para manifestação criativa emergente, do
ponto de vista da máquina, se considerarmos que estes mesmos algoritmos são capazes
de extrapolar o campo de dados sobre os quais foram treinados e podem ser subvertidos
para manifestar um comportamento criativo artificial, que chamamos de Artelligent.
Neste campo criativo é possível fazer com que a IA "se" expresse artisticamente, trazendo
à tona algumas questões técnicas, estéticas e poéticas fundamentais sobre a natureza dos
dados, o impacto destas tecnologias e os possíveis desdobramentos futuros.

Proceso creativo con imagen y sonido

Mar Garrido / University of Granada (Spain)

Desde lineamientos estéticos que responden a una inclinación hacia lo contemplativo y


lo transitorio, trataré de explicar, con algunos ejemplos, como abordo las relaciones entre
sonido e imagen, mediante la combinación de sonido diégetico y extradiegético con
superposiciones, trasparencias, ralentizaciones y pausas de imagen. Aunque en la mayor
parte de las obras sonido e imagen están pensados simultáneamente, en algunos casos el
sonido ha sido claramente el motor del proyecto (Cálculo de Probabilidades o Acumular
+ Artificios y leopardos) y, en todas las ocasiones, la edición y construcción final de la
obra, se ha realizado partiendo del sonido. Por otra parte, la decisión de crear todas las
piezas empleando medios digitales, forma parte de la experimentación en el proceso
creativo con imagen y sonido. La dimensión temporal que se incorpora al fluir de la
lectura de la imagen, armoniza con la riqueza tímbrica, la posibilidad de crear sonidos,
de alterar los existentes permitiendo elaborar ambientes sonoros de una gran “densidad
cromática”. Sin seguir un orden cronológico, mostraré varias piezas que presentan
características comunes, tanto desde la construcción visual como desde la sonora.

Estética dos dados e representação visual da complexidade

Marcilon Almeida de Melo / UFG

Existe um certo fascínio estético por imagens visualmente complexas. A popularidade


das visualizações de dados pode ser explicada não apenas por fenômenos como o big
data, que demandam novos métodos para extrair sentido de um grande conjunto de dados,
mas também pelo seu resultado visual, no qual o senso de unidade e organização visual
pode ser verificado em imagens intricadas, complexas e, até certo ponto, esteticamente
indulgentes e intrigantes. Esse artigo discorre sobre o conceito de complexidade e o
relaciona a uma estética dos dados a partir de sua representação visual. Utilizamos
visualizações de dados científicas e artísticas como objeto de análise, buscando identificar
características comuns compartilhadas pelos diferentes esquemas de representação visual.
Procuramos lançar luz sobre nosso fascínio diante da possiblidade de representação,
interação ou mesmo da contemplação de representações visuais complexas.

Exposições em Arte-Ciência-Tecnologia: a transdisciplinaridade como argumento


curatorial e sua contribuição para a Arte Contemporânea


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Nara Cristina Santos

Este artigo trata de um estudo sobre três exposições de Arte-Ciência-Tecnologia


organizadas por pesquisadores, entre curadores e artistas, de diferentes Instituições de
Ensino Superior no Brasil e na Argentina: Mata - 200 milhões de anos (2011), Naturaleza
Viva (2017), Transdisciplinaridade nas Ciências e na Arte - Neurociência (2020). A
curadoria compartilhada busca, tanto na estratégia expositiva quanto no desafio teórico,
discutir a concepção de transdiciplinaridade como argumento curatorial. Esta concepção
é aliada a diferentes conceitos a provocadoras de novas práticas expositivas e outros
discursos Arte Contemporânea e sua história.

Imagem e Performance Audiovisual: A exploração intensiva de recursos exíguos

Patrícia Moran / USP


Inscrita na herança das performances do corpo e do vídeo, as performances audiovisuais
têm ocupado os mais diversos campos de criação artística. Adotam a não representação
como um legado de seus antecedentes, valorizando a presença em detrimento da produção
de sentido. A evolução das imagens se aproxima à música, privilegia o ritmo. O visual da
performance adota formas efêmeras e nem sempre se constitui de imagens em
movimento, sejam elas indiciais ou processadas. Fumaça, luzes das mais diversas cores e
recursos de iluminação cênica constituem o cerne das performances de Mirella Brandi e
Muep (MxM). Partiremos de alguns trabalhos da dupla para problematizar o avanço da
rarefação de imagens e a exploração intensiva de poucos elementos. Pela utilização a
contrapelo de recursos cênicos, suas performances se apresentam como instalações
sensoriais coletivas.

Arte, história e arquivo em três tempos: artista-arquivista, curador-arquivista e o


museólogo-arquivista
Priscila Arantes / UAM

Nas ultimas décadas o campo de estudo da História vem alargando sentidos e perspectivas
de análise introduzindo novos olhares em relação a um discurso hegemônico,
pretensamente universal e eurocêntrico. Dentro deste contexto de revisão historiográfica,
vimos surgir estudos que incorporam um olhar mais plural e diverso em relação às
narrativas da história da arte. O arquivo dentro deste contexto torna-se fundamental, uma
vez que é a partir dos registros documentais que se desenham as cartografias históricas.
Partindo desta premissa Arte, história e arquivo em tres tempos: artista-arquivista,
curador -arquivista e o museólogo-arquivista busca analisar a relação entre história, arte
e arquivo a partir de três perspectivas diversas: da obra de arte, da curadoria e da
museologia.

Explorando a Realidade Estendida Coletivamente: o projeto Understanding Visual


Music.


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Ricardo Dal Farra / Universidade Concordia - Canadá

Cada vez mais, as experiências imersivas coletivas de hoje estão focadas em uma espécie
de realidade ampliada onde vivemos juntos a fisicalidade e a virtualidade. O público em
um planetário, rodeado por projeções fulldome e áudio multicanal, pode perceber
simultaneamente a riqueza e a profundidade das imagens no espaço, bem como o
movimento e distribuição de sons e músicas em várias distâncias e percorrendo vários
caminhos, ao mesmo tempo em que consegue manter contato com seu ambiente e até
mesmo tocar as pessoas próximas. Isso pode produzir um estado de realidade ou
consciência diferente que pode atingir dimensões inesperadas quando mesclado com
expressões artísticas. O projeto "Understanding Visual-Music - UVM" explora essas
possibilidades através de experiências coletivas, investigando novas formas de enriquecer
o encontro entre arte, tecnologia e ciência, oferecendo ambientes atraentes para pessoas
de diversas idades, origens sociais e culturais.

Travessias entre natureza e arte


Sandra Rey / UFRGS
As questões que envolvem o meio ambiente e ecologia, extremamente atuais visto os
processos acelerados de degradação da natureza precisam, necessariamente, passar pelo
enfretamento de diversos pontos de ordem cultural, social, filosófica e, também e
especialmente, política, na medida em que a proposição de uma nova forma de
relacionamento entre homem e natureza questiona muitos aspectos já definidos e requer
uma mudança radical em nossas percepções, conceitos e valores. O que pode a arte diante
disso? A história demonstra que sempre houve uma interação entre a arte e natureza, e
visto que estamos no começo de uma mudança fundamental de visão de mundo que se
reflete na ciência e na sociedade, de que maneira é possível tratar essas questões através
de uma prática artística? Muitos artistas, desde os anos 60 do século XX, têm envolvido
suas produções, de modo direto ou indireto, à natureza e questões que envolvem
sustentabilidade, meio ambiente, e essa nova palavra, ecocentrismo que, em oposição ao
antropocentrismo, critica os padrões de consumo da contemporaneidade e propõe uma
ética ambiental reconciliadora, na qual homem e natureza estabeleçam uma relação mais
harmoniosa. Alinho-me a esses movimentos através do projeto que venho desenvolvendo
por entender que a natureza e a arte têm um valor inseparável do sistema de vida. A noção
de experiência, constitutiva do meu processo artístico, ocorre tanto em caminhadas junto
à natureza, quanto como princípio norteador dos processos de pós- produção em ateliê. O
ritmo da caminhada produz uma espécie de raciocínio ritmado pelo trocar dos passos, e a
travessia de uma paisagem ecoa e estimula a travessia de uma série de pensamentos, e se
produz uma estranha conexão entre travessias internas e externas, sugerindo que a mente
é uma espécie de paisagem e que caminhar é uma maneira de percorrê-la.

Sonoridades para la nueva realidad social, conectados pero separados, caso


Muestra Sonora Internacional #HD19


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Sean Igor Acosta D. / HOLOS

El texto se centra en el análisis de las obras sonoras enviadas a la Muestra Internacional


Sonora #HD19, realizada durante la cuarentena en Colombia. El evento tenía como
epicentro un espacio virtual donde se invitaron a artistas, creadores, músicos, a participar
con creaciones sonoras con los recursos tecnológicos existentes, a evidenciar cómo
exploran las diferentes culturas el tema de Resistencia frente a un contexto que cambio
la forma en que la sociedad interactua y vive. Para este evento se contó con la curaduría
del Media Lab de la UFG, y del Grupo HOLOS, los cuales fragmentaron las obras
seleccionadas en cuatro grandes Trilias; personas, cotidiano, travessias, urbes. Estas
grandes trilias permitieron condensar miradas sonoras a nivel latinoamericano de cómo
abordamos la cuarentena, de cómo es vivir conectado pero separados, del cómo vivimos
frente a un mundo incierto, y frente a lo que añoramos, lo que nostalgicamente
recordamos, los sonidos de los espacios que habitabamos en nuestras urbes.

Harmonização entre Arte e Natureza

Suzete Venturelli / UAM / UnB

Cientes do peso que a atividade humana coloca no planeta - o que alguns chamam de
Antropoceno, para descrever a entrada em uma era dominada pela influência do homem
na biosfera - alguns artistas optam por se desenvolver formas de arte de alta tecnologia /
baixa tecnologia, observando alguns princípios fundamentais do desenvolvimento
sustentável que são: mudança de comportamento diante da vida, valorização e respeito
pelo meio ambiente, sustentabilidade econômica ao nível do cidadão e da sociedade e
desenvolvimento do crescimento econômico através padrões sustentáveis de produção e
consumo. Além de oferecer um ponto de vista sobre o impacto de nossas chamadas ações
“virtuais” no mundo real, nosso trabalho é uma oportunidade para capacitar usuários,
através de oficinas, de tecnologias frequentemente consumidoras de energia e pouco
ecológicas. Pensado com uma economia de meios técnicos ótimos (placas Arduino,
reciclagem de materiais), o trabalho ecoa teorias ecosóficas que desejam uma melhor
harmonização entre as atividades humanas e a natureza.

Performances e lives em videoconferências: reencontros com a arte em rede

Tatiana Travisani / UAM

As performances sonoro-visuais em tempo real se caracterizam, primordialmente, pela


construção narrativa não linear, onde o artista compõe a obra durante seu próprio
acontecimento, na execução simultânea de imagens, sons e dados em geral. São
apresentações em que a improvisação e o acaso participam do processo criativo
permitindo ao público experimentar a realização de uma peça autoral sempre única. O
tempo simultâneo, integrando processamento de dados e a realização da performance,
opera o próprio resultado sempre independente e exclusivo, relacionando-se com o tempo
presente. Desta forma, o discurso poético ganha elementos ao redor da modalidade em sí,
das ações apresentadas num ambiente imersivo O resultado estético ocorre com a ação
dos performances, desta maneira tanto os dados quanto a atuação são determinantes para
a resposta final da obra, permitindo que ocorra uma simbiose entre corpo, dispositivos e


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espaço da atuação onde o inesperado e o azar são essencialmente incorporados de maneira


dialógica às peças. Nos últimos meses, em decorrência do isolamento social causado pela
pandemia da Covid-19, presenciamos e participamos de encontros mediados por
videoconferências que propunham lives performances remotas reunindo artistas, público
e mediadores. Sob essa nova configuração de evento, o que muda no processo criativo do
artista/performer, acostumado a conduzir sua criação a partir do espaço da apresentação
físico e das possibilidades de fruição do público? Seriam as lives uma retomada da origem
da arte em rede e sua proposição à ubiquidade dos corpos? Revistar é preciso.

MANGUEIRA DESEJO: Estratégias de arte e política em mundo distraído

Valzeli Sampaio (Val Sampaio) / UFPA

“Mangueira Desejo” é um projeto de arte e tecnologia que toma como base os dados
gerados em 2011 da geolocalização das mangueiras do sítio histórico de Belém – Pará,
para desenvolvimento de instalação de arte (em andamento) criando ambiente de
interação digital nas mangueiras de Belém do Pará, por intermédio de app para celular.
Esse aplicativo possibilitará a inserção de objetos virtuais no ambiente físico que podem
ser acessados em tempo real. O app permitirá a inserção de pequenas anotações digitais,
e essas escritas alimentarão uma nuvem virtual de desejos ao redor das mangueiras,
visualizados e editados por intermédio do aplicativo de realidade aumentada. O projeto
cria espaços de comunicação (visualização de dados) e localização baseados em mídia,
uma mídia locativa (Kalnins,2003); espaço de compartilhamento geolocalizado,
localidades mídias (Sampaio,2012); espaço relacional dinâmico (Rabello,2013); espaço
aumentado, (Manovicth, 2005); potencializado pela experiência cíbrida (Anders, 2002 )
física e virtualmente partilhada. O projeto toma pra si o ambiente da grande debandada
do mundo físico para o mundo virtual, e do império das mídias sociais e das curtidas e da
pós-privacidade, para instaurar espaço mediado por recursos de jogos, como forma de
visualização de dados que serão gerados e construídos de forma interativa, explorando as
mangueiras por intermédio da sua “gamificação”, buscando dinâmicas que podem
funcionar como combustível para dar visibilidade às mangueiras. A experiência situa o
espectador em um ambiente interativo agenciado por instâncias que se cruzam a partir de
uma relação do que podemos chamar de Espaço Relacional Dinâmico (RABELLO,
2013), que pode ser entendido a partir de um conjunto de ações subjetivas e técnicas que
emergem das experimentações artísticas mediadas por tecnologias, acoplando o interator
em um contexto sobrecarregado de dados dinâmicos e emocionais.


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_Textos Completos

Navegar em deriva: entre dados e visualidades

Drift Navigation: between data and visuals

Agda Carvalho 1
Cleomar Rocha2

Resumo:
O texto discute a ideia de deriva como um continuum, algo permanente, uma experiência presente
cotidianamente quando navegamos entre as redes sociais, pesquisamos ou levantamos dados. E nesta
condição de experiência, em que flanamos simultaneamente em múltiplos "lugares", nos deparamos com
um espaço entre, uma fenda de onde emergem subjetividades, pois enfrentamos a condição plural da
experiência, em suas dimensões afeto-perceptivas, cognitivas e estéticas. A partir dos três planos da
experiência, a afetiva, a cognitiva e a estética, a análise do estar no mundo se consuma, em uma abordagem
fenomenológica.

Palavras-chave: Deriva, experiência, visualização de dados.

Abstract:
The text discusses the idea of drifting as a continuum, something permanent, an experience present daily
when we navigate between social networks, research or collect data. And in this condition of experience,
in which we simultaneously flank in multiple "places", we are faced with a space between, a rift from which
subjectivities emerge, because we face the plural condition of the experience, in its affective-perceptive,
cognitive and aesthetic dimensions. From the three planes of experience, the affective, the cognitive and
the aesthetic, the analysis of being in the world is consumed, in a phenomenological approach.

Keywords: Drift, experience, data visualization.

Navegar é preciso

As alterações do cotidiano, tidas pela imposição do confinamento em decorrência da pandemia


da covid-19, intensificaram a experiência da navegação em rede e dispararam a condição da deriva
na semiosfera telemática, logo, remota. O comportamento, agora, dialoga com a sobreposição de
informações e a emergência de acessos simultâneos para atender as demandas profissionais e
sociais. Este texto faz uma reflexão da experiência que se instala na vida pandêmica ao observar


1
Artista Visual e Curadora. Pós Doutorado em Artes – IA Unesp. Doutora em Ciências da Comunicação
(ECA-USP). Estágio Pós Doutoral no Média Lab – UFG em Humanidades Digitais. Mestre em Artes
Visuais (IA - UNESP). Membro do GIIP: Grupo Internacional e Interinstitucional de Pesquisa em
Convergências entre Arte, Ciência e Tecnologia (UNESP). Docente do Curso de Design do Instituto Mauá
de Tecnologia. agdarcarvalho@gmail.com.
2
Pós-doutor em Poéticas Interdisciplinares (UFRJ), Estudos Culturais (UFRJ), e em Tecnologias da
Inteligência e Design Digital (PUC-SP), doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA),
Mestre em Arte e Tecnologia da Imagem (UnB). Professor da Faculdade de Artes Visuais, Universidade
Federal de Goiás. Coordenador Media Lab / UFG. Pesquisador Produtividade do CNPq.
cleomarrocha@gmail.com


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a condição de perambulação pela semiosfera. A navegação remota é a conexão com mundos que
se entrecruzam entre trabalho, relações sociais e íntimas. A experiência é múltipla e a
reorganização se dá pelos sentidos, quando a consciência encontra o mundo. A ideia de que
“navegar é preciso” instaura outra dinâmica na conexão com os espaços, em que as justaposições
de situações, acontecimentos e relações estão entrelaçadas, nitidamente pelos fios da ação. Somos
múltiplos pois estamos emaranhados, e nesta navegação a sensação de emergência nos acessos se
torna inevitável.

Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso.

Argonautas, nós, da sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso,

mas que não é preciso viver. (Pessoa, 2006a, p.125)

A ressonância das transformações tecnológicas na organização cotidiana articula a percepção do


mundo e, no sentido da experiência, ao apresentar novos modos de viver, anuncia novas
realidades que afetam os comportamentos. Observa-se que o ritmo acelerado das transformações
na sociedade industrial, no século XIX, desperta o “homem das multidões”, segundo
Baudelaire, o homem do mundo que segue “(...) contemplando com prazer a multidão, mistura-
se mentalmente a todos os pensamentos que se agitam à sua volta” (1996, p.17). E, nesta condição,
tenta atender o desafio de compreender os hábitos e costumes de uma época. Um desejo de
permanecer flanando como observador crítico das mudanças da metrópole, como se
buscasse “navegar” pelas ruas e perceber a multidão.

A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos


peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur,
para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no
numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. (Baudelaire,
1996, p.21)

Com a deriva proposta por Debord (1958), esta experiência com o mundo “(...) compreende o
deixar levar-se em sua contradição necessária: o domínio das variáveis psicogeográficas pelo
conhecimento e o cálculo de suas possibilidades” (s/p), ao dialogar com as oscilações e
solicitações imprevisíveis das espacialidades e as relações com os modos e estados de viver. E
agora, com um mundo compreendido por dados, que se mostram verbais, sonoros e visuais nas
interfaces gráficas computacionais, nos deparamos com uma sociedade a conhecer com as
interconexões digitais, pois somos abduzidos pelos pixels que nos expõem espaços remotos,
transitamos em nuvens, e mesmo com uma variedade de distâncias, sentimos a proximidade dos
outros. A multidão é encontrada em compartimentos e compartilhamentos, em mosaicos de
imagens e/ou vozes em videoconferências, que despertam a sensação de perder-se em distintas
janelas e na rede de possibilidades. A experiência da multidão é multidimensional e aciona um


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fenômeno labiríntico em uma jornada não linear com a deriva remota. A condição de estar
perambulando nas nuvens significa estar imerso no sistema de produção e compartilhamento de
dados e na imaginação visiva (Calvino, 1990). Para pensar essa experiência com a navegação em
rede partimos de seus três planos: o afetivo, o cognitivo e o estético (Rocha, 2020).

Deriva em devires
A vida é um turbilhão de acontecimentos, um mar que tentamos navegar. (...)
a arte de navegar o mar dos acontecimentos, desenhar a cartografia de suas
terras e correntes, orientar-se pelas estrelas norteadoras da filosofia, manter-se
tranquilo durante a tempestade, desbravar novos continentes desconhecidos.
(Nogueira, 2017, p.16)

A deriva traz essa vontade contínua de explorar lugares, ter experiências, perceber as variáveis
durante os percursos exploratórios, sentir as minúcias de um viver, e assim, misturar, absorver e
desvendar dados acumulados entre e nos espaços. Em 1953, Gilles Ivain, no Dérive Formulaire
pour um Urbanisme Nouvea, traz a proposta de experimentar a cidade, habitá-la com as contínuas
mudanças e subjetividades, para então conviver com a diversidade de comportamentos, em uma
constante deriva (Careri, 2012). Em 1956, a teoria da deriva de Guy Debord (1958) investiga as
variáveis na exploração psicogeográfica da cidade, uma experiência lúdica, que aceita o destino,
mas parte da compreensão do espaço e das suas relações.
Com a sociedade em rede, identifica-se outro tipo de caminhar, intensificada com a situação da
pandemia da Covid-19: uma deriva remota impactada pelas alterações dos sistemas que moldam
nos modos de viver. A cidade, nos primeiros meses da pandemia, praticamente se esvazia com
as restrições sanitárias, se revela um silêncio e uma vastidão de concreto. Sem a multidão e sem
aglomerações, outro ritmo invade o cotidiano, marcado pelo distanciamento social. Novas
perspectivas se voltam para o espaço íntimo, pois é o lugar de onde se vê o mundo ao redor. A
interação é síncrona e remota e a multidão é selecionada, identificada e organizada em
videoconferência ou nas redes sociais. A percepção se dá pela escuta e pela visão em meio a um
turbilhão de sons, vozes e imagens, que acionam múltiplas interações com as janelas que
permanecem abertas, ou ainda, com os acessos em vários dispositivos simultaneamente. Essa
condição intervém na experiência da deriva remota pois permanecemos perambulando nas
nuvens. Se as cidades se calam, as redes passam a gritar.
O cenário de desmoronamento do sistema político e social, pela emergência sanitária, processam
ações e reações que evidenciam a fragilidade do corpo, inclusive social, e revelam atitudes
desvairadas e desconexas. Nesse ambiente são disparadas as inter-relações com o mundo e as
coisas e a ativação da condição plural da experiência nos espaços telemáticos. “As subjetivações,
as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que se produzem e aparecem nas
multipheidades” (Deleuze & Guattari, 1995, p.8). A reinvenção da sobrevivência com a superação
do aprisionamento e o enfrentamento da navegação em deriva.


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Tem início a reorganização do comportamento e a busca do equilíbrio entre o desbravamento de


múltiplos espaços e o atravessamento diário de dados e informações que contaminam os modos
de viver. Deste modo, as experiências nos espaços são intensificadas pelas constantes mudanças
que conduzem e governam a consciência e as relações com estes devires (Deleuze & Guattari,
1995).
Como aponta Segaud (2016), os sistemas nas espacialidades estão invariavelmente em
movimento, pois estes são reorganizados pela mobilidade de pessoas, de vontades e sonhos, e
neste momento, o acúmulo de dados e informações são absorvidos e coexistem em
intersubjetividades. Sendo assim, para revelar o significado de estar no espaço e em relação com
o mundo e as coisas, é importante refletir sobre a dinâmica instaurada pela pandemia, e buscar
compreender as transformações na visão de mundo e a aparição de uma existência com a
percepção do entorno físico e remoto. Neste momento, buscamos entender o significado dos
espaços físicos na relação com os outros, com os objetos e na potencialização dos usos das
ferramentas tecnológicas que até então pareciam totalmente dominadas.

Figura 1. Laurent Mignonneau e Christa Sommerer, ANTópolis, 2020. Ars Electronica, 2020 Disponível
em: http://www.interface.ufg.ac.at/christa-laurent/WORKS/FRAMES/FrameSet.html. Acesso em
26/10/2020.

A compreensão da fragilidade do homem e das coisas diante de uma ameaça invisível aos olhos
fortalece a consciência da potência do ecossistema natural e da sua rápida reorganização e
regeneração. É neste cenário de manipulação do comportamento que a pulsação cotidiana sinaliza
a serendipidade. Entre desvios e transgressões nos modos de geração e processamento dos dados
e a tentativa de aproximação da natureza, acontece a manifestação de experimentos de interação
e entendimento do cotidiano, cujo foco é a experiência. É o que ocorre com a proposição interativa
ANTópolis (Laurent Mignonneau e Christa Sommerer, ANTópolis, 2020), que mescla arte e
design, uma mídia em uma fachada de 16 x 9 metros, em uma edificação na cidade de Linz, na


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Áustria. O trabalho alerta sobre a necessária interconexão com a natureza. Formigas digitais
apresentam sua organização e trilhas na projeção. A captação da imagem dos transeuntes que
desejam interagir é processada e elabora uma silhueta, um percurso, construído pelas formigas
(Figura 1). A cada imagem captada, uma reação das formigas, como no ecossistema natural, a
cada desafio ou trilha destruída, uma resposta para elaborar novos caminhos e enfrentar diferentes
situações (Figura 2). Os caminhantes geram os dados e vivenciam uma experiência inusitada com
a interação.

Figura 2. Laurent Mignonneau e Christa Sommerer, ANTópolis, 2020. Ars Electronica, 2020 Disponível
em: http://www.interface.ufg.ac.at/christa-laurent/WORKS/FRAMES/FrameSet.html. Acesso em
26/10/2020.
Nos espaços digitais nos deparamos com a necessidade de decifrar a proliferação de dados
e visualidades, que são relativos à pluralidade e a retroalimentação contínua de estímulos
que estão presentes na diversidade de janelas. Verifica-se um embate permanente com
distintos algorítmicos que buscam acumular e desvendar as informações e sentidos
presentes nos dados que são gerados, processados e infinitamente cruzados e
combinados, para a leitura de questões políticas, sociais e fenômenos naturais; ou então


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determinar direcionamentos e sugestões de conexões para atender aos interesses


individuais ou de grupos. Estes estímulos ativam a percepção e interferem nas
experiências da deriva remota, abrem-se fendas entre os espaços percorridos, e estes,
despertam a sensação de perder-se nos estados de consciência. Como aponta Merleau-
Ponty:

Toda vez que experimento uma sensação, sinto que ela diz respeito não ao meu
ser próprio, aquele do qual sou responsável e do qual decido, mas a um outro
eu que já tomou partido pelo mundo, que já se abriu a alguns de seus aspectos
e sincronizou-se a eles. (1990, p.291)

Os percursos desta navegação desorganizam hábitos e desconstroem linearidades ao dialogar com


conexões rizomáticas e incitar a extrapolação dos sentidos durante e na deriva. Com o
enfrentamento do emaranhado de fenômenos na semiosfera, a consciência se conecta com
mundos e com a multiplicidade de agoras, revela um tempo indeterminado, cuja caminhada está
no espaço flexível e imprevisível.

Os princípios característicos das multipheidades concernem a seus elementos,


que são singularidades; a suas relações, que são devires; a seus acontecimentos,
que são hecceidades (quer dizer, individuações sem sujeito); a seus espaços-
tempos, que são espaços e tempos livres; a seu modelo de realização, que é o
rizoma (por oposição ao modelo da árvore); a seu plano de composição, que
constitui platôs (zonas de intensidade contínua); aos vetores que as atravessam,
e que constituem territórios e graus de desterritorialização (Deleuze &
Guattari, 1995, p.8).

A pluralidade de situações resulta dos microprocessos sociais que apresentam a essência das
cidades e comportamentos alterados, e estes conjugam os devires. As constantes mudanças se
desdobram com a intensificação da virtualização nos modos de viver, a pulsação e reorganização
do ritmo social e do mundo íntimo, apresenta outra “experiência de nós mesmos” (Merleau-Ponty,
1999, p.12) em deriva.


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Figura 3. Agda Carvalho, Clayton Policarpo, Edilson Ferri, Miguel Alonso, Daniel Malva, Sergio
Venancio com participação de Cleomar Rocha., Janelas Afetivas, coletivo COM.6 - Composição sonora
Daniel Malva.VJ: Miguel Alonso. Frame da gravação. Performance online realizada em 21 de outubro de
2020 - Hub Eventos, Media Lab. Disponível em: https://youtu.be/sbF6BUwCzA4. Acesso em
26/10/2020.

E no campo da arte que a navegação em rede busca devires inesperados como na performance
on-line Janelas Afetivas, de 2020. O coletivo COM.6 traz a experiência do encontro em tempo
real e em espaços remotos. Os artistas encontram-se em uma videoconferência na plataforma
Google Meet e, por meio de um software de edição, transmitem simultaneamente as imagens e
sons para o YouTube. A edição borra os limites dos enquadramentos de cada artista, com uma
organização visual que não prioriza uma visão panóptica dos envolvidos aprisionados e ordenados
em compartimentos, sem movimentos agressivos, a espera do instante adequado para se
manifestar. A transmissão procura uma edição improvisada das imagens resultantes da
gestualidade dos performers, em diálogo com a sonoridade elaborada com o cruzamento de ruídos
cotidianos e sons. Durante a ação performática o acontecimento poético se dá com o encontro
de sobreposições, misturas e derivações de imagens. Uma resposta pictórica que lida com o
imprevisível e com as variáveis combinatórias que se abrem para a experiência (Figuras 3 e 4).

Figura 4. Agda Carvalho, Clayton Policarpo, Edilson Ferri, Miguel Alonso, Daniel Malva, Sergio
Venancio com participação de Cleomar Rocha., Janelas Afetivas, coletivo COM.6 - Composição sonora


30

Daniel Malva.VJ: Miguel Alonso. Frame da gravação. Performance online realizada em 21 de outubro de
2020 - Hub Eventos, Media Lab. Disponível em: https://youtu.be/sbF6BUwCzA4. Acesso em
26/10/2020.

Experiências na semiosfera


O mundo percebido, natural e sígnico, adquire a característica do digital, tornando-se cada
vez mais complexo e descontínuo. A emergência (Johnson, 2003) decorrente dessa
liquefação do percebido cria rebatimentos na condição da percepção, visto ser orientada
pela concepção do mundo, pela consciência (Merleau-Ponty, 1999). No horizonte da
multiplicidade do que percebemos, a condição plural oscila entre o mundo natural,
biosfera, e o universo comunicacional, a semiosfera (Watzlawick, 2007), exigindo da
experiência uma tomada de consciência oscilante, que sonda as superfícies da carne do
mundo, buscando o ancoradouro para tratar dos planos da experiência, agora
sobressaltada pela inquietação, dúvida, incerteza, sonhos e desejos que alimentam a
sensação de desassossego e emergência nos acessos, presenciais e remotos. Estes também
dialogam e estão misturados com o mundo íntimo, subjetivo, que dá cor específica a cada
sujeito, singularizando a experiência (Dewey, 2010), inclusive a social.
Como condição plural que aponta cada vez mais a singularidade da experiência, essa
emergência contemporânea reflete os planos afeto-perceptivas, cognitivas e estéticas da
experiência, em intensidades variáveis. A partir dos três planos da experiência, a afetiva,
a cognitiva e a estética, a consciência se depara com o mundo, em implicações e afetações
(Spinoza, 2008) que moldam o sujeito, a partir de suas experiências mesmas, sua
consciência de si e do mundo.
No plano afetivo a consciência estabelece vínculos com as coisas do mundo a partir das
afetações que lhe são alcançadas. A percepção é a luz que atravessa o corpo e provoca
reconhecimentos, alternando intensidades pela proximidade ontológica, subjetiva. Os
exteroceptores, atentos ao mundo, captam imagens, sons, cheiros e sabores, disparando
gatilhos existenciais que fazem oscilar sentidos, sentimentos. A configuração da cultura,
em seu sentido lato, existente no sujeito, é o contexto desse plano da experiência,
tornando a intensidade singular, ainda que a cultura seja social. É o plano mais imediato,
primeiro, em uma escala que depende essencialmente da subjetividade, como o é o
próprio conceito de experiência.
No plano cognitivo, gestado pelo intelecto, as articulações de sentido, o exercício
hermenêutico, preenche o espaço e flui, provocando novas configurações de


31

entendimento. A interpretação aqui depende essencialmente da intencionalidade


fenomenológica, da capacidade cognitiva. Logo, sua área de atuação está circunscrita ao
conhecimento, à informação. É preciso uma formação cultural específica para que a
consciência dos fenômenos ative sua intensidade. E, nesse plano, será tão mais intensa a
experiência quanto mais formação e informação sobre o fenômeno o sujeito cognoscente
tiver acessado. Edifícios singularizarão de modo mais intenso um arquiteto ou engenheiro
que um médico. Uma plantação impactará mais um biólogo que um aviador. O
comportamento de uma criança terá mais perspectiva de ser singularizado por um
psicólogo ou pedagogo que por um comerciante. De igual modo, uma solução tecnológica
terá maior impacto em um estudioso da área, que estará mais sensível aos modus operandi
do sistema, suas soluções programáticas e de interfaces, em uma abordagem mais
sintática que semântica.
No plano estético alcançamos o indizível, aquilo que tange o transcendental. É o ápice da
experiência, quando a nominação perde espaço para a imersão do eu. É o transcendente
no imanente. É o todo que reside em cada um. Essa extrapolação de impacto, de sentido,
é um transbordamento, aquilo que ultrapassa o reconhecimento, o analítico, e transborda,
borrando fronteiras, ativando circuitos capazes de colocar a percepção e a cognição em
estado de suspeição. É a própria consciência de uma articulação momentaneamente
perfeita, um encaixe do eu do mundo. Normalmente vinculada às Artes, ela não é
exclusiva desta área, embora resida fortemente nela. Sua intensidade é ontologicamente
forte, com articulações que empreendem os demais planos e os ultrapassam.
Os planos da experiência possuem intensidades variáveis e não são excludentes. Pelo
contrário, são como lâminas finas que formam uma superfície. A intensidade, como que
uma espessura que cada lâmina terá, é determinada pela consciência, portanto
individualizada, em conformidade com a existência de cada um. Assim, o filho importará
afetivamente mais ao pai que ao professor, enquanto este poderá ser mais impactado por
um livro técnico que o pai ou o próprio filho. E o poema de Fernando Pessoa provocará
uma experiência estética mais intensa em quem está mais sensível aos padrões estéticos
do modernismo literário português, que os afeitos aos poemas concretistas brasileiros,
que podem passar despercebidos por quem não desenvolveu instrumentos da
intencionalidade fenomenológica para tal.
Os planos da experiência são as lâminas que a formam, moldadas individualmente,
subjetivamente, pelo acúmulo e consciência da própria condição ontológica. E é na
subjetivação que se consolida, imediatamente ou não, essa tomada de consciência, sempre


32

renovada mesmo diante do mesmo fenômeno, visto que a consciência não é fixa, antes se
faz dinâmica, como o arfar que infla os pulmões, renovando um princípio da vida, em um
continuum.

Entrelaçamentos/ emaranhados

A ideia da navegação em deriva é a maneira de estar em um estado contínuo de descoberta, cujo


destino está na experiência de perder-se entre os dados e visualidades no/durante as infinitas
buscas e interações remotas. Um evento perceptivo se funda ao percorrer e adentrar as distintas
janelas. Estar emaranhado é viver entre camadas e envolvido na decifração do sistema que se
multiplica em outro sistema. Um continuum aciona as buscas e tateia as superfícies e os sentidos
do mundo. A escuta, a visão e o tato vasculham as distintas camadas de um universo ressonante
e potente, a ecoar na consciência.
Mesmo que o confinamento não caracterize uma condição permanente, neste momento estamos
apartados de boa parte do mundo físico, dos encontros, dos cheiros da cidade, do toque e dos
afetos entre pessoas. Fato que nos modifica e sinaliza o direcionamento das transformações nas
práticas, nas relações e nos modos de existir. A multidão já se revela outra, com a intensificação
de acessos, com o rompimento das fronteiras do mundo íntimo com o social e a vivência do
sentido dos espaços remotos, nos misturamos na semiosfera.
O caminho da deriva on-line apresenta a perspectiva de estar pronta a adaptação e relação com as
múltiplas conexões com o mundo, seja natural seja cultural - informacional e tecnológico. Abrir
janelas e acessar dados, transitando entre sistemas e suas interfaces, na tentativa de compreensão
da diversidade de parâmetros; ou estar em imersão perceptiva, cognitiva e estética, compondo
experiências comuns e singulares, intensas ou superficiais: as deambulações por espaços
telemáticos ampliam o sentido das derivas, ainda que, tecnicamente, apenas recebemos e
enviamos dados. Semanticamente, entretanto, circulamos e permitimos que pessoas circulem
pelos ambientes íntimos das casas, alcançados pelas câmeras, por olhares e ouvidos atentos que
vasculham, curiosos, as imagens e sons que chegam a eles. Estamos, a um só tempo, aprisionados
em nossas casas, mas com a consciência perambulando pelas imagens e pela imaginação
construída pelas redes digitais, por devires e por nossa capacidade perceptiva, cognitiva e estética.
É intrigante como os estados da consciência estabelecem diálogos com a variação de intensidades
e interações que se desdobram em fendas do mundo, se renovam para a percepção e conexão a
integridade da consciência frente ao mundo natural e das informações, que ali habitam. E, como
navegar é preciso se faz urgente, só nos restam os devires.

Referências
Baudelaire, Charles. (1996). Sobre a modernidade. São Paulo, Paz e Terra.


33

Calvino, Italo. (1990). Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso. São
Paulo: Cia das Letras.
Carvalho,A &Ferri,E. (2017). Nós entre outros: corporeidades e circunstâncias territoriais.In: Anais
do #16.ART . 16º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, Lisboa, Portugal.
Careri,F. (2013). Walkscapes. O caminhar como prática estética. São Paulo, Gustavo Gili.
Deleuze, G & Guattari, F. (1995). Mil Platós. Capitalismo e esquizofrênia. v1. Rio de Janeiro: Ed. 34,
Debord,G. Teoria da Deriva. Disponível em: https://bibliotecaanarquista.org/library/guy-debord-teoria-da-
deriva. Acesso em 15 de setembro de 2020.
Dewey, J. (2010). Arte como Experiência. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes. 646 p.
(Coleção Todas as Artes)
Jacques, P. B. (2012). Elogio aos Errantes. Salvador, EDUFBA.
Johnson, Steven. (2003). Emergência: A Vida Integrada de Formigas, Cérebros, Cidades e Softwares.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Merleau-Ponty, M. (1999). Fenomenologia da Percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2ª. ed.
São Paulo:Martins Fontes.
Nogueira, D. (2017). Viver Spinoza IN: Spinoza e nós:Volume 1: Spinoza, a guerra e a paz org. Rafael
Cataneo Becker ... [et al.]. – Rio de Janeiro, Ed. PUC-Rio.
Pessoa, F. (2006a). Livro do Desassossego. São Paulo, Companhia das Letras.
Rocha, C. (2020). Estética da conectividade: apontamentos. In: Cleomar Rocha, Felipe Londoño,
Suzete Venturelli. (Org.). Dimensões: Arte_Design_Tecnologia. Goiânia: Gráfica UFG / Media Lab BR,
v. 1, p. 29-36.
Spinoza, B. (2008). Ética. Trad. Tomaz Tadeu. 2ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica.
Santaella, L. (2004). Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus.
Watzlawick, P.(2007). Pragmática da Comunicação Humana – Um estudo dos padrões, patologias e
paradoxos da interação. São Paulo, Cultrix.
.


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Processo de criação em uma equipe de design de produto: banco esqueleto

Creation process of the product design team: skeleton bench

Alessandro Camara3
Milton Sogabe4

Resumo
Este artigo analisa o processo criativo de um modelo de desenvolvimento de projeto de design
de mobiliário, como atividade extracurricular para estudantes de diferentes semestres do curso
de graduação em design de produto do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. O
método para esta identificação do processo é o estudo de caso do Banco Esqueleto, construído
para reutilizar materiais descartados. Para isso, realizou-se uma investigação da ferramenta
metodológica de design aplicada, com um mapeamento das etapas de criação previstas e não
previstas no início do processo. Dentre as vantagens desta abordagem está a organização dos
processos de desenvolvimento de novos produtos, serviços e modelos de negócios.

PALAVRAS-CHAVE: Design de Produtos, Metodologia Projetual, Processo Criativo e Criação


em equipes.

Abstract
The article analyses the creative process of a furniture design development project as an
extracurricular activity, carried by students attending different semesters from the product
design course in the Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. The method for the process
identification is the study of case of the Skeleton Bench, built to reuse discarded materials. For
such purpose, an investigation of the design methodological tool was carried, mapping the
predicted and unpredicted stages of the creation, in the beginning of the process. An advantage
of this approach is the organization of the development process of new products, services and
business model.

KEYWORDS: Product Design, Project Methodology, Creative process and Team Building.

1. Introdução
Em cursos de graduação de Design de Produto, a metodologia projetual aplicada nas disciplinas
de projeto é uma ferramenta necessária para que os estudantes organizem as etapas do
desenvolvimento do trabalho, na busca por bons resultados. Uma destas etapas é o processo
criativo, que passa por uma série de passos para estudar os possíveis caminhos para solucionar o
problema determinado como pré-requisito no início do processo. Salles (2011, p.40) coloca o
processo criativo em um projeto de produtos como “o crescimento e as transformações que vão


3
Alessandro Camara, Designer. Mestrando em Design pela Anhembi-Morumbi. Pós-graduado em Ciência da
Computação pela FASP; Bacharel em design de produtos pela Belas Artes. Atuou como designer de eletroeletrônicos
por diversos anos na Itautec Philco e designer nas agências Orix Design, complexo e mais packing, atualmente
trabalha como mentor de conteúdo no @designquefaz e é docente nos cursos de design da Belas Artes e da Anhembi
Morumbi. www.alessandrocamara.com.br
4
Milton Sogabe, mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica, na PUC-SP, pós-doutorado na Universidade de
Aveiro, em Portugal. Docente da Universidade Anhembi Morumbi desde 2017. Pesquisador PQ-CNPq desde 2008,
relacionado à temas sobre arte, design, ciência e tecnologia. Artista multimidia.


35

dando materialidade ao artefato que a passa a existir, não ocorrem em segundos mágicos, mas ao
longo de um percurso de maturação.”
O coordenador do curso de design de produto e design gráfico, do Centro Universitário Belas
Artes de São Paulo, Aníbal Folco5, e também responsável pelo Studio Grid, destaca que o Studio
Grid era, nos anos de 2011 e 2012, um local de criatividade efervescente entre os alunos do Núcleo
de Design. No Studio Grid os alunos tinham a liberdade de experimentar a vivência de mercado
desenvolvendo produtos que solucionavam problemas observados no campo passando pela
metodologia projetual como norte a ser seguido, mas também a ser questionado e, se preciso, a
ser adaptado. Portanto o maior intuito desta experiência era o da criação de soluções, partindo de
um problema real, chegando a um resultado eficiente, mas sobretudo pautada por um método que
desse aos estudantes dados balizadores à segurança das respostas que eles buscavam. O estudo de
caso apresentado neste artigo ilustra justamente uma situação na qual a metodologia precisou ser
adaptada. Já que a solução não veio de uma necessidade diagnosticada do usuário, as peças
descartadas precisavam ser utilizadas de alguma maneira que novas oportunidades àquela
matéria-prima fossem conferidas. Muitas vezes em um projeto ‘convencional’ temos um
problema de um público e buscamos uma solução no desenho, materialidade e meio de produção.
Neste caso, não tínhamos o usuário, mas sim a matéria-prima. E por isso, adaptamos os passos
metodológicos.
O design é utilizado como fator determinante para que pessoas encontrem melhores relações com
os objetos e diante desse contexto, diversas iniciativas vêm utilizando abordagens de criação em
equipes para gerar novas possibilidades de produtos com boas soluções do ponto de vista estético,
ergonômico, funcional e também com foco no meio ambiente.

2. Metodologia projetual em design de produto

Nos planos de ensino das disciplinas de projeto do curso de design de produto do Centro
Universitário Belas Artes de São Paulo, os autores mais citados como referência bibliográfica na
área de metodologia projetual são Gui Bonsiepe, Bernd Lobach, Mike Baxter e Bruno Munari.
Em um compilado destes autores os professores organizam e requisitam dos alunos projetos com
a seguinte organização por etapas metodológicas:


5 Aníbal Folco, Designer Gráfico graduado e pós-graduado pelo Centro Univ. Belas
Artes de São Paulo, mestre em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Professor de
Tipografia, Identidade Visual, Orientação ao TCC e Projeto de Design do Centro Univ.
Belas Artes de São Paulo, onde também atuou como coordenador do curso de Design
Gráfico e Produto, de 2010 a 2012. Lecionou também nos cursos de Design da
Universidade Anhembi Morumbi, onde também atuou como coordenador do curso de
Design Gráfico com Ênfase em Tipografia.


36

Figura 1: Metodologia projetual

Fonte: Plano de ensino da disciplina design de mobiliário – 2017-1


Neste sentido, é muito importante utilizar uma metodologia para desenvolver um projeto de
design, Baxter (2011, p.19) identifica “A atividade de desenvolvimento de um novo produto não
é tarefa simples. Ela requer pesquisa, planejamento cuidadoso, controle meticuloso e, mais
importante, o uso de métodos sistemáticos.”. Este modelo de metodologia foi utilizado em uma
disciplina de design de mobiliário do 3º semestre do curso de design de produto, com o objetivo
de ensinar técnicas de determinação de necessidades, técnicas de pesquisa, identificação dos
meios materiais e instrumentais do projeto, técnicas de criatividade, técnica de gerência do projeto
e métodos de desenvolvimento do projeto.
O design de objetos inclui a preocupação tradicional pela forma e aparência visual dos produtos
do dia-a-dia, roupas, objetos domésticos, ferramentas, instrumentos, máquinas e veículos, mas se
expandiu para uma interpretação mais completa e diversificada das relações físicas, psicológicas,
sociais e culturais entre produtos e seres humanos. Esta área está evoluindo rapidamente para uma
exploração dos problemas de construção em que a forma e a aparência visual devem conter um
argumento mais profundo e mais integrador que une aspectos da arte, engenharia, ciências
naturais e ciências humanas. Neste contexto de inovação há uma concepção projetual que gera
significado filosófico e semântico, onde Krippendorff (2006) definiu design como uma questão
de criação de significado.
Desta maneira, Krippendorff (2006) coloca que projetar artefatos para outros, possibilita que esse
objeto venha a se apropriar de significados para seu usuário, dentro das suas próprias concepções.


37

O autor utiliza a semântica como estudo dos significados. A chave do conceito de significado, é
o reconhecimento que, os seres humanos criam em seus próprios mundos e se diferenciam através
dos artefatos, não em termos físicos, mas de acordo com o que eles significam para as pessoas,
incluindo a forma de comunicação entre eles. Assim, os significados não podem estar separados
de como as pessoas interagem com a tecnologia que suas culturas criam e as tornam significativas.
Olhar para todo o processo de design como uma criação de significado, significa que temos uma
nova perspectiva sobre design e inovação.
Na dissertação O Designer como Pesquisador: uma Abordagem Metodológica da Pesquisa
Aplicada ao Design de Produtos, Facca (2008) discute

Em função da crescente importância que o design tem adquirido no


desenvolvimento de novos produtos, a metodologia utilizada é fator
imprescindível para que se abordem cada vez mais aspectos envolvidos em
todas as etapas do processo, tais como: a problematização e solução de
problemas, o levantamento e análise de informações, o atendimento às
necessidades do usuário, uma melhor adequação na escolha de materiais e
processos de produção, uma redução do impacto no meio ambiente, uma
adequação à cultura local/global etc. Enfim, tudo o que for preciso para a
geração e desenvolvimento de produtos criativos e inovadores, valorizando
cada vez mais o design, sob os aspectos sociais, econômicos e culturais que
estão ao alcance do designer, principalmente quando atua também como
pesquisador. (Facca, 2008, p. 21).

A inovação dentro dos processos de design é uma busca natural entre os designers, e não
necessariamente a inovação pela tecnologia ou técnica, mas o simples pensar fora do
convencional e fazer o que ninguém fez ou de um jeito que ninguém fez. Tudo isso dentro de um
contexto de projeto, se torna muito importante para entender a força de criar algo novo usando
um método validado e também com objetivos claros e bem definidos de alcançar bons resultados.
Desta forma a originalidade surgirá como um grande diferencial competitivo. Sair do óbvio
mesmo sendo o mais óbvio, com certeza irá surpreender pessoas.

3. Processo criativo em design


Dentro das diversas maneiras de ampliarmos o processo criativo no envolvimento entre pessoas
com culturas e experiências diferentes, esta o impulso criativo, onde Donald W. Winnicott define
como algo que pode ser visto como uma coisa em si mesma, como algo necessário para que um
artista produza uma obra de arte, mas que também está presente quando qualquer pessoa – bebê,
criança, adolescente, adulto ou idoso – observa algo de maneira saudável ou realiza algo
deliberadamente. (2019, p.114). Desta forma, Ken Robinson em um TED TALKS de 2006 com
o título Será que as Escolas Matam a Criatividade demonstra que o estímulo a criatividade é um
instrumento significativo no desenvolvimento de pessoas, "minha convicção é que a criatividade
hoje é tão importante na educação como a alfabetização, e deve ser tratada com a mesma
importância".


38

A etapa conceber (figura 1) da metodologia projetual utilizada como guia para os projetos da
disciplina regular do 3º semestre e também utilizada no projeto desenvolvido no Studio Grid é
apresentada para os alunos com o objetivo de desenvolver inicialmente estudos bidimensionais,
para transformar os conceitos gerados nas etapas anteriores em linguagem gráfica, este desenhos
poderão ser feitos à mão livre, em folhas no formato A4 ou A3 e com a seguinte ordem:
1. Geração de alternativas: desenvolvimento de estudos, por meio de desenhos simples em vista
ortogonal ou perspectiva, sem se preocupar com detalhes, para deixar um fluxo de ideias
diferentes, surgirem e serem registradas rapidamente;

2. Sketches iniciais: desenhos mais estruturados de uma primeira seleção de ideias que foram
geradas na etapa anterior;

3. Sketches formais: estudos com as ideias mais promissoras, na busca por definir linhas formais;

4. Sketches funcionais: explorar as partes do produto com suas funções de uso, movimento, formas
de montagem, conexões, entradas e saídas;

5. Sketches detalhads: definição das estruturas, componentes, acessórios, montagem/desmontagem,


possíveis materiais, as partes que irão compor o produto deverão ser detalhadas em vista ou
perspectiva explodida etc.;

6. Desenho Pré-Dimensional: desenho preliminar em vistas ortogonais e com medidas que servirão
para a confecção do pré-modelo;

7. Pré-Modelo: primeira verificação da forma elaborada nos sketches em modelo tridimensional


volumétrico, podendo ser confeccionado em qualquer material dentro do dimensional
determinado no desenho pré-dimensional e sem haver preocupação com o acabamento,
preferencialmente em escala 1:1.

No 1º semestre de 2017, na disciplina de projeto de mobiliário, o aluno Lucas Lima, utilizou


alguns passos desta metodologia projetual apresentada, e conseguiu encontrar as soluções do
projeto seguindo as etapas sketches iniciais, formais, funcionais, detalhados, desenho pré-
dimensional e pré-modelo. Abaixo o resultado da cadeira de balanço que o aluno nomeou como
cadeira Switch (figura 2).


39

Figura 2: Processo criativo cadeira Switch.

Fonte: Arquivos de projeto do estudante e autor Lucas Lima.

Na mesma turma a aluna Renata Moraes, iniciou o processo criativo pelos desenhos, mas preferiu
evoluir os estudos em software 3D, na sequência partiu para a definição da criação no pré-modelo
em isopor. O projeto Monti! (figura 3) fechou o ciclo da disciplina e também foi finalista do
Prêmio Tok&Stok de Design Universitário edição 2017.

Figura 3: banco Monti!.

Fonte: Arquivos de projeto da estudante e autora Renata Moraes.

Elaborar projetos para o universo do design entre estudantes e fora das disciplinas regulares,
contribuem para o desenvolvimento das diversas competências abordadas nos cursos de design,
e são importantes para alimentar o processo pedagógico. Quando construídos em equipes,
fundamentalmente, são pautados em produzir um banco de dados e imagens que possa,


40

estrategicamente, produzir conteúdos resultantes de concursos, viagens, palestras, oficinas, ciclos


de estudos, realizados em processos criativos que envolvam a construção de conhecimentos
diferentes de design, para que seja possível estimular o trânsito entre diferentes linguagens e
manifestações do design é necessário criar diálogos singulares, potenciais geradores de
conhecimento e catalisadores de processos de criação. Desta forma, programas de inovação com
o foco no processo de criar algo diferente e com valor nas produções em equipe, onde a
incompletude do processo destaca também a sobrevivência de qualquer elemento a partir da inter-
relação com outros. Observamos que uma anotação se completa em outra ou em uma fala de um
personagem; um problema no desenvolvimento da obra se completa em leituras ou conversas com
amigos etc. Essa visão do processo de criação nos coloca em pleno campo relacional, sem vocação
para o isolamento de seus componentes, exigindo, portanto, permanente atenção a
contextualizações e ativação das relações que o mantêm como sistema complexo” (Salles, 2006,
p.22).
As empresas utilizam o conceito de equipes para obter resultados consistentes, e fica bem clara a
diferença entre grupos e equipes com a tabela (figura 4) organizada por (Katzenbach; Smith,
1993), onde os autores definem como “O desempenho de um grupo de trabalho é resultado do
que seus membros fazem individualmente. O desempenho de uma equipe inclui tanto os
resultados individuais quanto o que chamamos de produtos do trabalho coletivo. Um produto de
trabalho coletivo é aquele em que dois ou mais membros precisam trabalhar juntos, como em
entrevistas, pesquisas ou experimentos. Seja o que for, um produto de trabalho coletivo reflete a
real contribuição conjunta dos membros da equipe” .


41

Figura 04: Diferenças entre equipes e grupos

Fonte: (Katzenbach; Smith, 1993)

Encontramos muito ótimos exemplos da importância e também da eficiência de bons trabalhos


feitos em equipe nos esportes, Michael Jordan foi um dos maiores jogadores da liga de
basquetebol norte americana e em seu livro Nunca Deixe de Tentar, ele deixa claro que o “Talento
vence jogos, trabalho em equipe e inteligência vencem campeonatos” (Jordan,1994 p.20), ou seja,
mesmo sendo um grande talento, individualmente ele conseguiria obter ótimos resultados, mas
nada comparado ao alcance de bom talentos funcionando de maneira organizada e inteligente em
uma equipe, com um objetivo em comum “Embora não pareça ser nada especial, a
responsabilidade mútua pode levar a resultados impressionantes. Permite que uma equipe atinja
níveis de desempenho muito melhores do que os melhores resultados individuais de seus
membros. Para conseguir isso, um precisa fazer mais do que ouvir, responder de modo construtivo
e apoiar uns aos outros.” (Katzenbach; Smith, 1993).

4. Estudo de caso: Banco Esqueleto


Este projeto foi desenvolvido no Studio Grid, criado em 2011 no Centro Universitário Belas Artes
de São Paulo, seguindo as diretrizes curriculares estabelecidas pelo Ministério de Educação,
constando que as atividades complementares devem integrar o currículo dos cursos de graduação
e tem o objetivo de enriquecer o currículo do aluno com componentes que possam implementar
o seu perfil e possibilitar o desenvolvimento dos aspectos positivos e inerentes a cada aluno,
aprimorando conhecimentos, ajustando suas competências, dentro e fora do círculo acadêmico.
O Studio Grid é um laboratório de criatividade que envolve os cursos de graduação do núcleo de
design, as atividades são desenvolvidas pelos alunos dos cursos de design gráfico, design de
produto, design de interiores e design de moda. Com o foco na construção de projetos
interdisciplinares em parceria com a indústria ou criados de maneira independente pelo próprio


42

Studio, sempre com o acompanhamento e gerenciamento de um professor. Todos os semestres


são abertas inscrições para monitores que devem estar entre o terceiro e o oitavo semestre dos
cursos do núcleo de design. São selecionados 2 monitores de cada curso e no caso de uma grande
demanda de atividades, há a admissão de voluntários que são também avaliados segundo o
aproveitamento escolar. O Studio contribui para o curso, agregando ao perfil do aluno novas
atividades que fazem parte da agenda sócio-cultural-ambiental da cidade e do universo do design,
na qual possam se identificar com o projeto pedagógico. Os projetos, fundamentalmente, são
pautados em produzir um banco de dados e imagens que possa, estrategicamente, produzir
conteúdos como livros e cd´s resultantes de eventos (viagens, palestras, oficinas, ciclos de
estudos), realizados em parceria com a Coordenação do Núcleo de Design e com o Centro
Universitário.
Dentro deste ambiente preparado para projetar, uma equipe de estudantes de design foi formada
com os alunos Daniela Alvarenga, Hugo Sigaud, Rafael Dias Novagino e Ricardo Bueno, com a
liderança do designer e professor Alessandro Camara e sob a coordenação do professor Aníbal
Folco. Com o claro objetivo de encontrar uma situação de descarte de algum material na
proximidades da faculdade e principalmente por este material ser um possível causador de
problemas ambientais, os estudantes foram a campo e em um pequeno comércio de instalação de
som automotivo e películas colocadas nos vidros dos carros chamadas de insulfilm, encontraram
muitas placas de madeira (figura 6) que chegavam como suportes das bobinas das películas de
insulfilm sendo descartadas e eram um problema para o dono do estabelecimento, isso porque o
coleta convencional de lixo não levava aquele material e o comerciante tinha que pagar para
alguma empresa especializada retirar, ou seja, um custo que era muito difícil para a empresa
absorver.


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Figuras 05 e 06: Placas de madeira retiradas na empresa

Fonte: Studio Grid

Todo este material foi doado e uma ajuda foi prestada ao pequeno comerciante, os estudantes
retiraram cerca de 400 placas de madeira com 40 por 40 centímetros. Com o material em mãos
os estudantes definiram que iriam criar um móvel que seria doado para a faculdade e assim
colocaríamos o material em uma nova forma de uso com o menor recurso possível, foram seguidas
as etapas de pesquisa e conceituação de um projeto de design e na sequência iniciaram o processo
criativo com sketches e modelagens 3D, depois de alguns dias sem conseguir encontrar o objeto
que iriam fazer, a equipe resolver iniciar uma busca por soluções manuseando o material em
oficina de modelos e protótipos (figuras 07 e 08) e assim surgiram as primeiras peças do banco
esqueleto.

Figuras 07 e 08: Oficina de Modelos e Protótipos

Fonte: Studio Grid

Eles encontraram uma definição clara que o objeto seria um banco multifuncional e que seria
colocado nas áreas comuns da faculdade, foram iniciados estudos dimensionais para melhor
aproveitar o material que estava disponível e também para receber da melhor maneira possível o
corpo humano. Assim surgiu o banco esqueleto (figura 09), cada banco construído foi com 15
placas, com o formato de um cubo de 40 centímetros, no total foram produzidos 25 bancos na
própria oficina da faculdade pelos alunos e técnicos.

Figura 09: Banco Esqueleto


44

Fonte: Studio Grid

4. Considerações finais
A organização do trabalho da equipe por uma metodologia projetual de design, demonstrou
eficiência por permitir uma adaptação das etapas do processo criativo na busca por uma solução
eficiente do ponto de vista de aproveitamento de todo material coletado, o resultado gerou uma
serie de benefícios importantes como: colocar o material descartado em uso novamente e não
prejudicar o meio ambiente, diminuir os custos da empresa por não precisar pagar para alguém
retirar as madeiras, por permitir que os estudantes exercitassem a metodologia projetual
apresentada em sala de aula em um caso real e também por gerar uma contribuição para os
ambientes internos da universidade. Desta forma, a busca por solucionar problemas pode ser
iniciada por uma metodologia projetual como norte a ser seguido, mas também a ser questionado
e, se preciso, a ser adaptado para que os resultados apareçam.

REFERÊNCIAS
Baxter, Mike. Projeto de produto: guia prático para o design de novos produtos. São Paulo:
Edgard Blücher, 2011.
Buchanan, Richard. Wicked problems in design thinking. Design Issues, 8, n. 2. Cambridge:
MIT Press, 1992, p. 5-21.
Descartes, René. Discurso do método. Porto Alegre: L&PM, 2017.
Flusser, Vilém. O mundo codificado. São Paulo: Ubu Editora, 2017.
Katzenbach, Jon R.; Smith, Douglas K. A disciplina das equipes. Harvard Business. 1993.
Kelley, Tom. As 10 faces da inovação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
Munari, Bruno. Das coisas nascem coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
Arnheim, Rudolf. Arte & Percepção visual. São Paulo: Cengage Learning, 2012.
Bonsiepe, Gui. Design, cultura e sociedade. São Paulo: Blucher, 2011.


45

Facca, Claudia. O designer como pesquisador: uma abordagem metodológica da pesquisa


aplicada ao design de produtos. Dissertação (Mestrado em Design) - Universidade Anhembi
Morumbi, São Paulo, 2008.
Guimarães, Marília M. Criatividade na concepção do produto. Dissertação (mestrado em
engenharia) Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina, 1995.
Jordan, Michael. I can’t accept not trying. New York: Rare Air, 1994.
Krippendorff, Klaus. The semantic turn: a new foundation for design. Boca Raton: CRC
Press, 2006.
Löbach, Bernd. Design industrial: bases para a configuração dos produtos industriais. São
Paulo: Edgard Blücher, 2001.
Ostrower, Fayga. Criatividade e processos criação. Petrópolis: Vozes, 2014.
Robinson, Ken. Palestra proferida no TED Taks, Monterey (California), fev. 2006. Disponível
em: http:www.ted.com/talks/ken_robinson_says_schools_kill_creativity.html
Salles, Cecilia. Gesto inacabado. São Paulo: Intermeios, 2011.
Salles, Cecilia. Redes da criação. Vinhedo: Horizonte, 2006
Salles, Cecilia. Processos de criação em grupo: diálogos. São Paulo: Estação das letras e
cores, 2017.
Zavadil, P.; Silva, R.; Tschimmel, K. Modelo teórico do pensamento e processo criativo em
indivíduos e em grupos de design. PGDESIGN – Design & Tecnologia, 2016.


46

Você lê o contexto?

Do you read the context?

Ana Mae Barbosa


Resumo:
Podemos dizer que aquilo que distingue a arte educação modernista da arte educação pós-
moderna é o lugar dado a leitura da produção artística visual dos outros quer estes outros sejam
artistas, designers, artesãos, publicitários, videastas, produtores de lives, blogueiros, interneteiros,
etc. Falo de uma leitura que não é apenas temática nem formal em termos de linha, cor, espaço,
etc. mas de uma leitura interpretativa, crítica, contextualizadora. A Contextualização é a porta
aberta para a interdisciplinaridade e para a leitura do social. Por que foi excluída da BNCC?
Palavras chave: Leitura de imagem; Abordagem Triangular; Ver; Fazer; Contextualizar
Summary:
We can say that what distinguishes the modernist art education from the postmodern art
education is the place given to the reading of the visual artistic production of others whether
these others are artists, designers, artisans, publicists, video makers, producers of lives, bloggers,
internet workers, etc. I speak of a reading that is not just thematic or formal in terms of line,
color, space, etc. but an interpretive, critical, contextualizing reading. Contextualization is the
open door to interdisciplinarity and to the reading of the social. Why was it excluded from the
BNCC?
Image reading; Triangular Approach; To See; To Make ; To Contextualize

Se pretendemos educar para uma leitura do mundo, como dizia Paulo Freire, seria preciso
considerar de igual importância a Leitura Verbal e a Leitura de Imagens.
A leitura tem sido enfatizada na educação contemporânea por todas as correntes pedagógicas e
muito especialmente pela Pedagogia Crítica e pela Pedagogia Cultural. Falamos da leitura de
palavras, textos, livros e também da leitura de gestos, ações, necessidades, desejos, expectativas
e imagens.
Este princípio de leitura cultural independentemente da linguagem e do código, hoje, com muita
influência de Paulo Freire, tem orientado o melhor da produção de dissertações e teses sobre
Ensino de Arte no Brasil.
A leitura como identificação cultural, como necessidade de reconhecimento de si próprio e de
construção da realidade na qual estamos inseridos é o centro da educação que se pretende
desenvolver não só através das palavras, mas também através da imagem.
Contemporaneamente, na educação para/pelas Artes Visuais a leitura da imagem é tão importante
quanto o fazer artístico.
Podemos dizer que aquilo que distingue a arte educação modernista da arte educação pós-
moderna é o lugar dado a leitura da produção artística visual dos outros quer estes outros sejam
artistas, artesãos, publicitários, videastas, produtores de lives, blogueiros, interneteiros, etc.
As hierarquias entre produtores estéticos foram desmontadas mas o julgamento de valor de cada
obra, independente de categorização foi agudizado pela insistência na leitura da imagem.


47

Falo de uma leitura que não é apenas formal em termos de linha, cor, espaço, etc. mas de uma
leitura interpretativa, crítica, contextualizadora.
Leitura de livros e de imagens é decodificação e atribuição de significado para cuja construção
participam interligadamente objeto e leitor numa ação designada por Derrida como “subjectil”, a
qual transforma o leitor em um recriador do autor.

Leitura é deleite e construção de conhecimento.


Educar para ler imagens e livros é garantia de sucesso de aprendizagem, de instigação dos sentidos
e de ampliação da inteligência do espectador/leitor. Durante quase vinte anos pesquisei leituras
de imagens com crianças, jovens, adultos com cursos superiores e adultos com apenas cursos
primários em diferentes contextos como escola pública, escola particular, museus e até com
crianças morando no mesmo prédio, vivendo num mesmo espaço, porém particularizado pelo uso
e interferência de cada família. Sistematizei uma Abordagem apelidada de Triangular pelos
pesquisadores que comigo trabalhavam. Esta abordagem tem sido apropriada diferentemente por
diferentes pesquisadores e professores em diversas áreas. Em vez de descrevê-la com minhas
palavras prefiro usar um quadro sinopse que encontrei citado em uma dissertação sobre Ensino
das Ciências defendida em 2020. Nunca nem sequer imaginei a Abordagem Triangular usada no
Ensino das Ciências. Já li muitos trabalhos baseados na Abordagem Triangular em Teatro,
Música. Cinema e Dança. A vantagem desta Abordagem é que não é composta por disciplinas,
mas por processos mentais como tradução de imagem mental em imagem materializada,
processos de descrição, análise e interpretação e processos de identificação e comparação cultural
entre tempos, espaços e modos de vida diferentes.


48

Figura 1. Quadro retirado de DUARTE, Sanny Carla. Estratégias de leitura de obra pictórica e de
gráfico para o ensino de ciências nos anos finais do ensino fundamental. 2020. Dissertação (Mestrado
em Ensino de Ciência e Tecnologia) - Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Ponta Grossa,
2020, página 43. Disponível em http://repositorio.utfpr.edu.br/jspui/handle/1/4933

A contextualização é talvez o mais pervasivo processo deflagrado pela Abordagem Triangular.


Está referenciado a leitura da obra ou do campo de sentido da Arte e também ao fazer. Mal se
falava em Contextualização na Pedagogia quando em 1983 começamos a trabalhar com sua
explicitação.
Todas as disciplinas, todo o conhecimento humano categorizado pode ser movimentado no
processo de contextualização desde a Matemática, Ciências, Antropologia, História, Sociologia,
etc. Enfim, a obra convida o espaço ao redor as circunstancias de várias naturezas e a curiosidade
do sujeito para colaborar no entendimento da imagem que analiso e na imagem que produzo. A
Contextualização é a porta aberta para a interdisciplinaridade e para a leitura do social. Como
vocês sabem, a BNCC é produto da condução ideológica da direita inteligente mas mal
intencionada, reunida em instituições privadas aliadas ao MEC com a intenção de fazer da escola
pública lugar de formação de trabalhadores eficientes e defensores do status quo, embora mal
pagos. Ardilosamente retiraram da proposta para as Artes a Contextualização para evitar o
envolvimento com o social, para que não continuemos a despertar as consciências para as
desigualdades e para nos alienar e continuarmos a defender os interesses dos ricos e poderosos de
sempre. Eliminaram a Contextualização no ensino das Artes e mantiveram o Fazer Arte e a
Leitura da obra de Arte, ou da imagem que agora passa se chamar Apreciação ou fruição, igual a
“Deleite-se mas não pense”. As Artes voltarão a ser apenas uma hora de descanso na Escola?
Comecei as pesquisas para a Abordagem Triangular (1983) pensando em apreciação, mas o termo
contém implicitamente a ideia de aprovação. O que significo quando digo: -Eu aprecio muito
você? Estou implicitamente dizendo que eu lhe admiro. Percebi que “apreciação” poderia levar a
discursos de convencimento sobre qualidade da obra ou imagem, uma espécie de cooptação para
você gostar do que eu gosto (ARIAS, 2020) e passei a me referir a leitura. Mas o professor pode
escolher a abordagem metodológica para a leitura que quiser, aquela com a qual se sentir
identificado teoricamente, ou seja, mais bem preparado. Pode se basear em Semiótica, Teoria da
Gestalt, Iconologia, Estética da Recepção, etc. Tenho ótimas experiências usando a
descomplicada Estética Empírica, pois possibilita um diálogo mais íntimo e não mediado por
teorias entre sujeito e objeto. No caso da Estética Empírica, a teoria é a consciência da prática e
quanto mais prática de leitura de imagens uma pessoa tiver, mais aprofunda e diversifica a
produção de sentidos.
Quando fui professora da The Ohio State University trabalhei com Michael Parsons, o primeiro
pesquisador a analisar o desenvolvimento da capacidade de leitura de imagens de crianças e
adultos. Ele chegou à conclusão de que uma criança até seis anos mais ou menos e um adulto,


49

embora com curso universitário mas sem nenhuma experiência em ler imagens estarão
provavelmente na mesma fase de interpretação de imagens. Pude comprovar isto numa pesquisa
que fiz em 2001 com a coordenação do Dr. José Minerini Neto e as alunas na época Raquel Palaia
e Tatiana Prado com os passantes na Estação Sumaré do Metrô de São Paulo sobre a recepção da
obra pública de Alex Flemming lá instalada. A partir das etapas do desenvolvimento para a leitura
da obra de Arte detectadas por Parsons associada a de Abigail Housen e aos estudos sobre
cognição de Piaget, pudemos sistematizar a escalada das interpretações do público (no fim do
texto o esquema do desenvolvimento da leitura de imagens).

Figura 2. Estação Sumaré de Metrô, São Paulo (1998). Fonte: Acervo do artista Alex
Flemming.

A pergunta deflagradora era a mais genérica possível: O que você está vendo aí?
Uma geógrafa com curso superior disse: “Pessoas né, me parece que foram funcionários da época
da obra do Metrô, pessoas que construíram o Metrô ou estavam de alguma forma vinculadas, foi
o que me disseram. Fiquei curiosa de ver, achei muito legal. Ficou legal, uma coisa até um pouco
jornalística, bem legal, acho que a arte não tem muita fronteira né, acho que se emplacar alguma
coisa é bom... Uma vez eu fiquei num hotel em Salvador que tinha um painel mostrando quem
tinha trabalhado na obra com todas as fotos durante a obra, muito legal, então acho que de repente
é uma coisa legal”. (38 anos)
Ela não leu a imagem, narrou uma história tirada de sua experiência, ela teve que introjetar a
imagem e submetê-la ao seu imaginário. Está na fase inicial, a fase narrativa, intra-objetal da
mesma maneira que uma mulher empregada doméstica, sem curso superior que disse:
“Vi os rostos, mas não identifiquei ninguém. Tem um rosto que eu imagino que é do meu patrão,
porque eu acho a fisionomia parecida. Eu gostei, não sou assim... culta né, não tenho cultura
nenhuma mas eu gostei...... mesmo se eu não identificasse ninguém eu ia ficar olhando, tem uma
ali que parece o Marcelinho [Carioca, jogador de futebol], tem uma... vejo e fico imaginando as
pessoas. Todos os dias eu olho”. (45 anos)


50

Sua colega quase da mesma idade, empregada doméstica também na fase narrativa, intra-objetal
na qual a percepção da imagem é álibi para imaginação ou base para a tentativa de associação
com a representação realística de figuras e objetos, respondeu:
“Legal, é diferente, de todas as estações é o mais diferente. Não sei... só sei que no dia da
inauguração algumas pessoas que passaram eles pegaram para tirar foto. Eu fiquei sabendo isso.
Para quem está aqui esperando o Metrô, pensando nos problemas... distrai. Você analisa, quer
entender, ler o que está escrito ali... sei lá. Tem uma que parece comigo, aquela uma moreninha
bem escurinha, ali no canto”. (42 anos)
Um Designer Social de 19 anos foi classificável na primeira fase não por ser contra narrativo,
mas porque não leu a imagem e inventou uma outra narrativa por acaso alheia à conscientização
social que deveria ser um foco de sua profissão:
“Achei legal, uma coisa diferente que os caras fizeram, colocar imagem de pessoas, mas acho que
os caras deveriam assim... sei lá colocar assim tipo por exemplo uma imagem de Gandhi alí tá
ligado, de Bob Marley, umas pessoas assim que signifiquem alguma coisa pra gente assim que
eles colocaram pessoas que a gente não conhece que não têm espaço assim na mídia de alguma
forma não significam nada”. (19 anos designer social (sic).)
Já um jovem ajudante de cozinha deu uma resposta que pode corresponder a segunda etapa da
apreensão da imagem, na qual há a percepção de estrutura, embora desconhecida e atribuição de
significação Inter-objetal, interesse na formatação do objeto, inter-relação, enfim o objeto é visto
fora da experiência do sujeito mas ainda persiste a subordinação a ela.
Eis a resposta do jovem de 27 anos:
“Uma pá de pessoas. Pessoas comuns do dia-a-dia, uma pessoa de terno, uma pessoa com roupa
comum, uma pessoa indo pro serviço, indo pra escola... Não tenho nenhuma opinião feita sobre
isso aí não, acho diferente, pelo menos não é que nem os outros lugares que fica tudo parado, pelo
menos é uma forma diferente de mostrar nós que comandamos este país, né. Sem contar que o
artista ele mostra a cara do país; se alguém for conhecer nosso país fora do Brasil não vai um de
nós lá mostrar, quem vai é um artista, e pra ele mostrar a cara do país ele tem que mostrar o povo
do país”.
Um vendedor de feira respondeu:
“Vi a miscigenação de pessoas, uns brancos, japonês, negros... uma miscigenação de pessoas, é
isso que eu vi. Acho uma técnica, não conheço, uma técnica bonita não tinha visto ainda uma
técnica assim mas... de representativo seria o povo brasileiro... Miscigenação. Muito importante,
é a sensibilidade do artista com o seu povo”. (47 anos)
Esta última resposta também é classificável na segunda etapa, a intra-objetal que inclui respostas
sobre Estrutura e Expressão, pois considera embora não conheça o problema da técnica.
Quando as pessoas se interessavam, a conversa com os pesquisadores se alongava e estas pessoas
em geral já estavam na etapa trans-objetal que é a analítica ou judicativa. A relação sujeito-objeto


51

é ultrapassada, vai além da experiência passada e da mera aparência do objeto. Segue-se um


exemplo de uma entrevista mais longa:

1- Você viu as imagens que estão nos vidros da estação do metrô?


É do Ian Flemming.
Alex Flemming...
Alex Flemming.

2. Me explique o que você viu?


O que eu vejo, as pessoas que circulam pela cidade, que... são pessoas comuns... como todo
mundo, como você, como eu. E que são pessoas como todo mundo. Tentando se encontrar,
encontrar alguém.

3. O que você achou sobre o que viu?


Maravilhoso. Porque ela mostra toda a humanidade que existe... Até nessa coisa do trem, né... da
população, das pessoas que vão para o trabalho, vão passear, enfim. Extremamente humano, isso.
Muito delicado, muito verdadeiro. Pra mim a estação mais bonita do metrô é essa. Porque o metrô
tá todo para fora, e essa coisa do vidro, te permite ver além... você até enxerga um pouquinho do
horizonte, lá do lado do Pacaembu. Então é isso que faz a beleza da coisa. Você pode ver que são
pessoas desconhecidas e que ao mesmo tempo, você encontra toda hora. Pessoas normais,
comuns. E as letras também, a coisa do significado, da linguagem, da comunicação. Ás vezes da
não-comunicação, porque você não consegue ler uma palavra inteira, né. Então, essa coisa do
confuso, do encontro das pessoas. O que eu observo, assim, no metrô... uma pessoa que eu
encontrei hoje, provavelmente eu nunca mais vou ver na minha vida. Mas outro dia a porta abriu
e eu vi uma pessoa... Então, é uma coisa assim até divertida, interessante, bonita.

4. É importante uma obra de arte falar sobre esse assunto?


Não é importante, é fundamental. E como o artista enxerga dois dedos mais pra frente, ele percebe
melhor isso daí, né. Ele vive nesse mundo. Esse mundo paralelo, que não é todo mundo que
enxerga, né. Mesmo as pessoas que tomam o trem, sei lá quantas observam, param para olhar,
que estão na estação (as pessoas), Uma coisa que elas usam, elas estão dentro, e ás vezes estão
tão ocupadas com as coisas exteriores, com os problemas, com a vida, com a sobrevivência e tudo
o mais, e não param para olhar, mas... muita gente percebe, viu. E muita gente não gosta, viu.
Não gosta, fala “que coisa horrível, que gente feia”. Então, se você tiver, o primeiro olhar,
realmente você faz: “Nossa, mas que coisa esquisita”. Mas daí a gente não pode parar nesse
primeiro olhar, né. Você tem que ir pra segunda, terceira, quarta, quinta leitura, sei lá quantas


52

leituras. Então, é assim que eu vejo. A estação do metrô que é toda essa aglomeração, essa boiada
que passa, já ao mesmo tempo tem as individualidades, né. Essas coisas. Por exemplo, os rapazes
que estão trabalhando aí. Quantas pessoas param para se perguntar como foi a vida daquele moço
hoje: O que será que ele fez. Então é uma outra maneira de olhar. Uma outra maneira de ver. Se
alguém vê uma pessoa doente, diz: “ ah coitado do doente”, mas ninguém pensa naquele que tá
cuidando do doente, né. Você tem que desfocar o olhar para ter um olhar mais abrangente, mais
global, essas coisas. Até você, fazendo essa entrevista aqui, é uma coisa maravilhosa. Se tivesse
mais gente...

5. Você passa aqui todo dia?


Não. Terça-feira, certeza. Terça-feira eu passo. E eventualmente em outro dia. Agora, tudo o que
eu puder fazer de metrô eu faço. Vou ao cinema, vou passear, se puder tomar metrô, é melhor,
acho assim, uma benção, né. E o metrô de São Paulo é muito limpo, é muito organizado. Eu moro
aqui perto. Da minha janela, eu vejo a hora que abre a porta. Então, é um contato com a coisa.
Parece que abre as cinco horas. Ás vezes, eu levanto mais cedo, já tem gente abrindo, já tem um
dentro do trem que tá dirigindo, já tem um indo para o trabalho. Então, você fica imaginando a
vida das pessoas. É interessante. Eu tô aqui tomando meu café... e esse povo tá todo... É a vida...o
fluxo da vida. Essa coisa do trem, mesmo...Vai pra lá, vai pra cá...

6. Idade e profissão.
Sou professora aposentada (Ed. Artística). Tenho 58 anos.

Enquanto em quarentena e escrevendo este texto, vi na internet a intervenção bem humorada e


didática que Flemming fez na instalação da estação de metrô Sumaré, a qual ganhou máscaras de
proteção contra o Corona Vírus. Que vontade me deu de voltar a convidar o grupo de
pesquisadores de 20 anos atrás para entrevistar agora os frequentadores da Estação Sumaré. O
contexto é outro e o contexto interfere no processo de significação, da mesma maneira que uma
intervenção, por menor que seja, pode mudar a interpretação da obra e até torná-la outra obra.


53

Figura 3. Intervenção feita pelo artista Alex Flemming na sua instalação da Estação Sumaré de Metrô
durante a epidemia do Corona Virus ,2020. A segunda figura é a foto do próprio. Disponível em
https://www.diariozonanorte.com.br/metro-coloca-mascaras-nos-retratos-artisticos-da-estacao-sumare-
para-alertar-sobre-a-prevencao-a-covid-19/

Até então eu falei de leituras verbais sobre a imagem, mas há também o processo de leitura de
imagens através de imagens que pode ser celebrativa, crítica ou simples citação ou leitura
resignificadora, reorganizadora e reelaboradora, processo de desconstrução e reconstrução
Indubitavelmente, diferentes contextos e diferentes metodologias provocam leituras muito
diversas. O debate as vezes resvala para o preconceito do modernismo contra a narrativa, que é
ao mesmo tempo fase inicial da percepção de imagens e metodologia analítica. Cada época com
o seu preconceito. No pós-modernismo o preconceito foi contra o formalismo, embora aspectos
formais continuem sendo importantes para a construção de significações.
O contextualismo é um dos processos determinantes na leitura de imagens.
Se o trabalho de leitura de imagens da Arte feita através de imagem por especialistas em Arte é
intrigante, também o é a leitura gráfica, plástica, escultórica ou digital das imagens feita pelas
crianças. Outras variáveis intervêm como o desenvolvimento da expressão plástica e gráfica da
criança e também do desenvolvimento da percepção da imagem
Estou preparando um estudo mais longo da amalgama que tenho feito entre os estudos de Parsons,
Housen e Piaget Por enquanto trabalho com a sistematização abaixo :
Determinar etapas do desenvolvimento em relação à idade não é parte da pesquisa, mas somente
saber como vão se acumulando camadas de interpretação das imagens.

Desenvolvimento da percepção da imagem


54

Bibliografia

ARIAS, Nayeli Zepeda Compartir la mesa. Diseño centrado en personas para recursos
museográficos educativos DAT Journal. Vol. 5, No 2, 2020 pág. 129 à 139.
DUARTE, Sanny Carla. Estratégias de leitura de obra pictórica e de gráfico para o ensino de
ciências nos anos finais do Ensino Fundamental. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciência e
Tecnologia) - Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciência e Tecnologia, Universidade
Tecnológica Federal do Paraná, Ponta Grossa, 2020.
HOUSEN, Abigail. The eye of the beholder: measuring aesthetic development.Tese de doutorado
Harvard Graduate School of Education, 1983.
PARSONS, Michael. Compreender a arte. Lisboa: Editorial Presença, 1992.


55

Carnaval 4.0: a experiência/tecnologia em um processo colaborativo

Carnaval 4.0: experience/technology in a collaborative process

Ari Costa6
Agda Carvalho 7
Edilson Ferri8

Resumo
O texto relata a experiência de processo colaborativo e interdisciplinar no projeto Carnaval 4.09, com
metodologias abertas e flexíveis, envolvendo Universidades, empresas, operadoras de saúde e comunidade
para a discussão de caminhos possíveis das tecnologias impulsionadoras da Quarta Revolução Industrial na
sociedade. O propósito foi alertar a sociedade em geral dos seus possíveis impactos utilizando elementos
culturais da maior festa popular do país. Desafios foram superados para construir uma rede de colaboração
composta de atores heterogêneos em inédita parceria entre o Instituto Mauá de Tecnologia e a Escola de
Samba Paulista Sociedade Rosas de Ouro. Monitoramento de sinais biométricos com pulseiras dispostos
em dashboards traduziram a emoção no desfile; rastreabilidade de fantasias com etiquetas RFID
registraram o ciclo de vida e mostraram em tempo real a evolução da escola e experiências imersivas em
realidade aumentada deram vida ao robô ROXP4, símbolo do enredo.
Palavras-chave: Carnaval 4.0, rede colaborativa, rastreamento de fantasias, monitoramento de desfile.

Abstract
It is presented the collaborative and interdisciplinary experience in a process with open and flexible
methodologies developed during the Carnaval 4.0 Project among Universities, technological companies,
health operators, and the community in order to discuss the possible paths in Society for the driving
technologies for the Fourth Industrial Revolution. The purpose was to foster the society an alert on its
impacts, using the cultural elements of the largest popular festival in Brasil. Challenges were overcome to
build a collaborative network composed by heterogeneous actors in an unprecedented partnership between
the Instituto Mauá de Tecnologia and the Escola de Samba Paulista Sociedade Rosas de Ouro. Monitoring
of biometric data displayed in dashboards expressed the emotion in the parade; tracking of fantasies with
RFID tags recorded the life cycle and exhibited the evolution of the school in real time, besides this,
immersive experiences in augmented reality brought the robot ROXP4, to the scene.
.
Keywords: Carnaval 4,0, collaborative network, tracking of costumes, parade monitoring


6
Ari Nelson Rodrigues Costa. Engenheiro Eletrônico - POLI/USP. Físico pela USP. Mestre em Engenharia
Industrial pelo IMT. Especialista em Engenharia de Processos Industriais pelo IMT. Engenharia de
Embalagem pela Michigan State University, Pós-graduado em Engenharia da Qualidade pela POLI/USP,
Pesquisador do Centro de Pesquisas do IMT no NSPi – Núcleo de Sistemas Produtivos Inteligentes –
Indústria 4.0. Professor de Pós-graduação em Indústria 4.0 do IMT. aricosta2308@gmail.com.
7
Agda Carvalho: Artista Visual e Curadora. Pós Doutorado em Artes – IA Unesp. Doutora em Ciências da
Comunicação (ECA-USP). Estágio Pós Doutoral no Média Lab – UFG em Humanidades Digitais. Mestre
em Artes Visuais (IA - UNESP). Membro do GIIP: Grupo Internacional e Interinstitucional de Pesquisa
em Convergências entre Arte, Ciência e Tecnologia (UNESP). Docente do Curso de Design do Instituto
Mauá de Tecnologia. agdarcarvalho@gmail.com.
8
Edilson Ferri (Edilson Ferreira da Silva). Artista e Arquiteto. Mestre em Poéticas Visuais (UNICAMP).
Docente da Faculdade Impacta Tecnologia São Paulo. Membro do GIIP: Grupo Internacional e
Interinstitucional de Pesquisa em Convergências entre Arte, Ciência e Tecnologia (UNESP). E-mail
edilsonferri@gmail.com
9
Os autores agradecem ao IMT pelo apoio financeiro e operacional dado ao projeto nas pessoas dos
dirigentes: Francisco José Olivieri, Superintendente Geral; José Roberto Augusto de Campos, Diretor do
Centro de Pesquisas; José Carlos de Souza Junior, Reitor do Centro Universitário e Marcello Nitz da Costa,
Pró-Reitor Acadêmico do Centro Universitário.


56

Introdução
O texto relata a experiência de um processo colaborativo e interdisciplinar, com metodologias
abertas e flexíveis, com o envolvimento de Universidades e empresas para a discussão
dos possíveis impactos das tecnologias emergentes na sociedade atual.
O projeto teve início no primeiro semestre de 2019 e concluiu o experimento com o desfile de
carnaval paulista em fevereiro de 2020. Surgiu com o propósito de um grupo de pesquisadores
em alertar para a mudança de comportamento e de modos de viver com as transformações
decorrentes das tecnologias da Quarta Revolução Industrial. O mesmo propósito já havia levado
esse grupo de pesquisadores a publicar a obra Automação e Sociedade: Quarta Revolução
Industrial, um olhar para o Brasil, em 2018, no entanto, cientes que o público eventualmente
impactado por essa obra é pequeno, tomaram como exemplo o relato de Kai-Fu Lee (2018), que
considerou como o momento “Sputinik” da China a derrota do melhor jogador de Go do mundo
pelo experimento Alpha Go, usando IA - Inteligência Artificial. Esse momento de despertar para
a necessidade de incorporação das tecnologias emergentes e impulsionadoras de inovações, não
raro de forma disruptiva, ocorreu quando uma tradição milenar da cultura chinesa foi confrontada
com uma dessas tecnologias e o impensável até então aconteceu. Qual seria o sucedâneo na
cultura brasileira? A decisão pareceu muito evidente: o Carnaval.
O desafio imediato foi estabelecer a conexão entre uma comunidade que se apoia em processos
colaborativos empíricos e usa tecnologias tradicionais para manter a tradição do Carnaval e uma
comunidade científica e tecnológica disposta a levar o estado da arte do conhecimento e
incorporá-lo para mostrar os impactos dessas tecnologias na sociedade no futuro próximo. Uma
dualidade se abriu: como introduzir a temática no enredo mantendo a tradição e como tecnologias
tradicionais poderiam ser utilizadas para representar os impactos das tecnologias emergentes. Um
ritual de aproximação e de ganho mútuo de confiança antecedeu a proposta de manter a
construção tradicional para o desfile enquanto as tecnologias impulsionadoras emergentes
demonstrassem na avenida virtual o que ocorreria no mundo físico.
O IMT - Instituto Mauá de Tecnologia10 participou dessa iniciativa em parceria com outras
instituições de ensino, são elas: FEI - Fundação Educacional Inaciana Padre Sabóia de Medeiros
e USP - Universidade de São Paulo, bem como agentes de tecnologia e operadoras de saúde, para
a discussão do impacto das tecnologias emergentes na sociedade no contexto 4.0. Para tanto a
instituição iniciou um convênio de cooperação tecnológica com a Escola de Samba Paulista
Sociedade Rosas de Ouro, que disparou a convivência entre a academia e diversos profissionais
das empresas envolvidas neste processo na realidade da escola.


10
O Instituto Mauá de Tecnologia é constituído pelo Centro Universitário e pelo Centro de Pesquisa.


57

Figura 1: Imagem do Robô símbolo do enredo, ROXP4, 2019.


Fonte: UMANTECH

O IMT concebeu, planejou, coordenou e executou experiências imersivas usando tecnologias


emergentes no mundo biológico, com foco na saúde pelo monitoramento em tempo real de sinais
biométricos utilizando dois dispositivos: uma pulseira inteligente (smartband), para componentes
da escola e um colete com geolocalização utilizado por atletas de alto desempenho, para o
primeiro mestre-sala. Todos os dados coletados foram processado em uma plataforma em nuvem
(cloud computing) utilizando várias topologias com base nas Tecnologias de Informação e
Comunicação (TIC) com acesso liberado em dispositivos móveis e PCs. A tecnologia de Internet
das Coisas (IoT - Internet of Things) foi utilizada para um experimento de economia circular no
mundo físico, utilizando etiquetas de identificação por radiofrequência (RFID - radiofrequency
identification) e leitores para rastrear o ciclo de vida de todas as fantasias desde a entrega no
barracão até a devolução para reciclagem ao final do desfile. Um experimento de realidade mista
- virtual e aumentada (AR - augmented reality; VR - virtual reality) -, proporcionou a interação
com o robô mascote ROXP4 (Rosas de Ouro - eXperimento 4.0), mostrado na Figura 1, no
mundo digital por meio de aplicativo para dispositivos móveis e PCs. Esse aplicativo introduz o
avatar virtual do mascote nas cenas do mundo físico, permitindo que os usuários se fotografem
dançando ao seu lado. Em complemento, o aplicativo permitia “vestir” virtualmente uma fantasia
estilizada do QR Code (Quick Response Code), código de resposta rápida quando a câmera do
dispositivo era apontada para a fantasia.
Destaca-se o desdobramento da proposta em escopos nos mundos físico, digital e biológico - que
se fundem pelas tecnologias impulsionadoras da Quarta Revolução Industrial -, moldando o
enredo tradicionalmente desenvolvido para o desfile da Rosas de Ouro, de maneira a produzir
uma nova experiência como o possível adjacente (Johnson, 2011), que transborda do evento físico


58

do espetáculo, e evidencia a emergência de ações, provocando mudanças de comportamento e de


situações com a aproximação, e até a incorporação, da tecnologia pela comunidade e se
manifestando no Carnaval, questão que ficou evidenciada, no momento seguinte ao término do
espetáculo do Carnaval com a pandemia, quando se observou que as experiências já anunciavam
a antecipação de situações que surgiram com a COVID-19.
Nas mudanças destacam-se as três razões descritas por Schwab (2016, p.13), que o convencem
de uma “quarta e distinta revolução”: velocidade, … “em ritmo exponencial e não linear”;
amplitude e profundidade, “(...) combina várias tecnologias, levando a mudanças de paradigmas
(…) não está modificando apenas o que e o como fazemos as coisas, mas quem somos”; impacto
sistêmico, “(...) envolve a transformação de sistemas inteiros, (…), e em toda a sociedade”. Estão
aí claras a necessidade e a urgência em incorporar as tecnologias na nova forma de convivência
social.
As ações propostas no experimento levaram a reflexões que anteciparam situações ocorridas
cotidianamente no futuro imediato e que os pesquisadores ainda buscam compreender para
reorganizar e atender mudanças que se impõem na educação, na saúde, nas empresas e
organizações e, principalmente, nas relações sociais. Cada um dos envolvidos atuou em uma teia
colaborativa viabilizando grande parte das proposições, tendo como objetivo destacar os impactos
das tecnologias emergentes e as possibilidades de adaptação no cenário da Revolução 4.0. Nesse
experimento a proposta foi de explorar a função emergente de habilitar a capacidade do ser
humano de ser completo, seja na elevação do bem estar comum, seja na arte. Com essa visão toda
a equipe assumiu a atitude colaborativa e interdisciplinar para compreender e realizar a
experiência no campo da saúde por meio do entrelaçamento de ações acadêmicas, empresariais e
uma comunidade criativa mescladas com a arte advinda da tradição popular.

Colaboração em rede: a jornada do projeto

A prontidão para absorver a tecnologia é emergencial, mas é necessário pensar como a Revolução
4.0 pode impulsionar e contribuir nos processos sociais e cotidianos, e ainda manter a essência da
sua característica como acontecimento cultural, dos saberes populares. Deste modo, o projeto
construiu uma rede de colaboração com o entrelaçamento das experiências e pesquisas de
instituições de ensino, empresas e a Sociedade Rosas de Ouro. Com essa aproximação aconteceu
o aprendizado de gerenciar projetos com um olhar para os saberes tradicionais pensando em
potencializar a experiência com a tecnologia. Ocorreu uma reestruturação dos processos das
equipes com a vivência do processo de concepção e construção do enredo, pois ao aprender com
o sistema existente na realidade do grupo da escola de samba, que sempre conviveu com a
perspectiva do inesperado e com a ruptura de paradigmas, puderam impulsionar as experiências.
Como aponta Certeau (2013, p.74)


59

Mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro, ou seja, o espaço instituído por


outros, caracterizam a atividade sutil, tenaz, resistente, de grupos que, por não
ter um próprio, devem desembaraçar-se em uma rede de forças e de
representações estabelecidas.

As empresas atuaram em pequenos clusters flexíveis e multidimensionais, organizados em rede,


que poderiam se conectar entre si, sem governança central, adaptando-se às demandas mutantes
do projeto, atualizando a rede em tempo real, enviando soluções e propostas, buscando inovação
e realizando experimentos que se identificassem com o enredo e a organização do Barracão. A
jornada foi relevante para a transposição daquilo que era contado no mundo físico ser
representado no espaço digital. As proposições estavam relacionadas com o comprometimento
das equipes, orientadas pelas instituições de ensino, para a realização dos experimentos. Salles
(2017, p.159) aponta que:

Nos processos em equipe, trata-se do agrupamento de sujeitos em criação,


imersos nesse turbilhão de sensações, no qual duas questões se colocam como
bastante relevantes. Por um lado, são processos que não acontecem se não for
em equipe. (…) Por outro lado, esse turbilhão de sensações dos sujeitos (como
comunidade) acontece em meio a uma busca comum, convivendo com as
sensações geradas pela interação com os outros membros do grupo.

Os profissionais aprenderam a dinâmica de colaboração dos saberes tradicionais, presentes no


Barracão e na quadra da Sociedade Rosas de Ouro. A observação do sistema de gerenciamento
da escola foi decisivo para “a percepção da alteridade e práticas especiais entre sujeito e objeto”,
bem como a participação efetiva em situações e momentos diferentes que o desenvolvimento de
um carnaval exige, foi determinante para vivenciar uma situação - característica de processos de
criação - e a viabilidade de projetos que lidam com a imprevisibilidade e o acaso. “(…) a prática
metodológica da etnografia é marcada por uma gama de imprevisibilidades, incidentes e
descobertas que fazem com que os etnógrafos prezem a experiência de campo como crucial e
ponto alto nesse tipo de pesquisa (Espósito & Justo, 2017, p.93).
O carnaval foi o espaço desses experimentos, pois manifesta a utopia de um povo e está inserido
no nosso imaginário, trabalha com a diversidade e a complexidade, em uma organização
aparentemente improvável, transforma a distopia em mundos possíveis no seu processo
organizacional. Ao dialogar com utopias o carnaval foi o espaço adequado para o encontro e
a convivência de uma teia de colaboradores, em que a academia e a indústria articulavam
questionamentos sobre os impactos da evolução exponencial, trazidos com as tecnologias da
Quarta Revolução Industrial. Desenvolveram-se proposições que seriam introduzidas no processo
do carnaval, com a preocupação de não alterar as características ancestrais e essenciais desta
manifestação cultural. As ações se alastraram para além do mundo físico com interações
múltiplas, entre realidades diversas, um transbordamento do mundo físico, com a realização dos
experimentos que visavam a ampliação para o mundo virtual. A transposição de um enredo


60

representado fisicamente na avenida, transbordando para uma avenida digital apresentando os


impactos da tecnologia na sociedade por meio de experiências imersivas.
As experiências propostas pelo projeto apresentaram possibilidades e direcionamentos de uma
jornada integrando o espaço das universidades, das empresas e de uma comunidade criativa; uma
ação colaborativa que envolveu a atuação e a convivência e o despertar de ações que anteviram a
manifestação do carnaval na avenida. Esta aproximação aconteceu simultaneamente entre as
universidades, com a ação de professores pesquisadores, alunos monitores e corpo técnico do
IMT, da FEI e da USP e das empresas apoiadoras. A cada etapa identificam-se relações vivas
entre as experiências que são amalgamadas e a representação do imaginário e da realidade do
carnaval, percebidas posteriormente em uma verdade no sistema das etapas envolvidas no
processo que antecede o acontecimento do carnaval, neste caso, da comunidade Sociedade Rosas
de Ouro.

Pois se posso falar de "sonhos" e de "realidade", se posso interrogar-me sobre


a distinção entre o imaginário e o real, e pôr em dúvida o "real", é porque
essa distinção já está feita por mim antes da análise, é porque tenho uma
experiência do real assim como do imaginário, e o problema é agora não o
de investigar como o pensamento crítico pode se dar equivalentes
secundários dessa distinção, mas o de explicitar nosso saber primordial do
"real", o de descrever a percepção do mundo como aquilo que funda para
sempre a nossa ideia da verdade (Merleau-Ponty, 1999, p. 13).

Nessa jornada os experimentos despertaram a função emergente em projetos que


trabalharam com a utopia e a distopia, e este caráter ficcional despertou sugestões de
soluções que dialogaram com a diversidade e causaram uma infinidade de sensações, ao
enfrentar diferentes lugares e situações, que transitaram pelo improvável, por sonhos e
fantasias, e finalmente a realização do fenômeno do Carnaval.

O Instituto Mauá de Tecnologia no experimento

Nenhum conhecimento é redutível a palavras, e nenhum conhecimento é inteiramente


inexprimível.
Seymor Papert

O anúncio de que novas formas de relacionamento mediadas por tecnologia serão cada
vez mais presentes em nossos relacionamentos, e que este projeto surge no momento em
que as práticas de aprofundamento das tecnologias de rede estão em plena mudança, como
fora sinalizado no documento que estabeleceu os fundamentos dos sistemas cyber-físicos
aplicados à mobilidade, saúde, energia e produção (ACATECH, 2011), embrião da
iniciativa da Indústria 4.0 proposta pela ACATECH (2013).

Os futuros sistemas cyber-físicos contribuirão para a segurança, eficiência,


conforto e saúde humana como nunca antes (sic). Irão, portanto, contribuir


61

para resolver os principais desafios da nossa sociedade, como o


envelhecimento da população, recursos limitados, mobilidade ou a mudança
para as energias renováveis, para citar apenas alguns campos de aplicação
fundamentais. (...) Os modernos sistemas de saúde inteligentes irão conectar
pacientes e médicos, facilitar diagnósticos remotos e fornecer atendimento
médico em casa. Sistemas baseados na Internet para monitoramento remoto
de sistemas autônomos de produção estão sendo desenvolvidos para
manufatura, logística e transporte. Uma das próximas etapas é a auto-
organização. As máquinas controlarão de forma autônoma sua estratégia de
manutenção e reparo, dependendo do grau de carga de trabalho, e garantirão
capacidades de backup para manter a produção no caso de interrupções
relacionadas à manutenção. (ACATECH, 2011)

A iniciativa do IMT foi um experimento que resultou do cruzamento de esforços e


pesquisas de docentes11, corpo técnico12, 22 alunos bolsistas13 e monitores14 e 12
empresas15 que encaminharam o projeto Carnaval 4,0. Como primeira ação foi realizado
um convênio de cooperação com a Escola de Samba Paulista Sociedade Rosas de Ouro,
e posteriormente iniciados os experimentos que se encaminharam para a realização de
experiências imersivas com tecnologias emergentes no mundo biológico. Como aponta o
vídeo do processo do experimento. 16

Estamos mais interessados em usar designs de ficção para sugerir que as


coisas podem ser muito diferentes, consequentemente nossas ficções são
problemáticas, estranhas, perturbadoras e insinuam outros lugares, épocas e
valores. (Dunne & Raby, 2013, p.100)

Como uma abordagem naquele momento, aparentemente ficcional, já que não


conhecíamos o futuro próximo, abordou-se a saúde e o monitoramento em tempo real
adaptando smartbands comerciais em comunicação com smartphones, dos sinais
biométricos dos componentes da Escola, na quadra, nos ensaios técnicos e durante o
desfile. Os dados foram armazenados e processados em plataforma em nuvem (cloud
computing) e disponibilizados em smartphones, tablets, PCs, monitores, dashboards e
video walls. Todos os eventos registrados nos ensaios técnicos podem ser reproduzidos
virtualmente para identificação de ações de melhoria no desempenho futuro.


11
Agda Regina de Carvalho, Ari Nelson Rodrigues Costa, Ana Paula Scabello Melo, Eduardo Linzmayer, Fernando
de Almeida Martins
12
Caio Jorge Gamarra, Fabiana Geraldo, Rogerio Cassares
13
Gustavo Amaral Silva, Leonardo Bressan, Matheus Camargo Teixeira
14
Alana, Beatriz Garcia, Bruna Mylena, Carolina Leutilawer, Cássio de Souza Aguiar, Diogo Salazar, Eduarda
Borin, Gabriele Portela, Isabella Gottsfritz, José de Almeida Rocha, Juliana Faria, Kamila Tutia, Renata Rodrigues,
Rodrigo Santos, Thaynan, Thiago Pieralli, Victor Gongra
15
BookWeb: Edilson Ferreira da Silva; DASA: Regiane Dal Comuni, Isabela Damião; GRV: Valdecir de Oliveira
Pereira; GS1: Frederico Bellini Coelho, Luiz Renato Martins Coelho, Ricardo Verza Amaral Mello; GSC: Jaqueline
Leff; Infosphera: Rossana V. F. de Freitas; Rui Furriel de Freitas; MJS: Mauro José Sandri; Nokia: Paula Rocha,
Harada; N&DC: Renê Rodrigues, Leandro Nunes; Sacrini Design: Mauricio Sacrini; SPI: Elcio Brito; Ronaldo Brito;
Umantech: Andre Sernaglia
16
Link do Vídeo do processo do experimento do IMT -
https://www.youtube.com/watch?v=Jom0ZNnEjrc&feature=youtu.be


62

A ação contou com a aquisição de 300 pulseiras inteligentes e a implementação do


aplicativo Carnaval 4.0 - Tempos Modernos, para o monitoramento dos usuários no
período dos ensaios, dos desfiles preparatórios e do desfile final. Ao longo dos três meses
que antecederam o desfile vários participantes receberam as pulseiras para
monitoramento em seus ambientes de trabalho, residência e cotidiano com objetivo de
antecipar e mitigar os possíveis gaps que poderiam aparecer ao longo da experiência, para
tanto parcerias com operadoras de saúde também foram firmadas a fim de proporcionar
às pessoas monitoradas serviços de exames laboratoriais e aconselhamentos. É importante
destacar que todos os experimentos, inclusive das outras instituições de ensino, poderiam
ser acessados pelo aplicativo.
Os dados captados pelas pulseiras dos componentes das alas eram transmitidos em
conexão BlueTooth com o smartphone e armazenados em nuvem, onde eram processados
e enviados ao dashboard mostrado na Figura 2 que apresentava os parâmetros de Passos,
Distância percorrida, Calorias, Batimento Cardíaco e Carga da bateria.

Figura 2 - Dashboard de representação da leitura de dados biométricos do projeto Carnaval 4.0.


Fonte: Sacrini Design, 2020.

Durante a experiência, alguns componentes de cada ala, integrantes da bateria, os


destaques e os compositores foram convidados a utilizar as pulseiras e smarthphones,
para ceder seus dados, utilizando uma rede dedicada 4G LTE (Long Time Evolution), ao
longo do percurso, mais exatamente durante o trecho de avenida percorrido, enquanto
desfilavam defendendo sua agremiação, quando estavam em uma atividade conjunta
dentro do espaço monitorado. Esses dados foram armazenados e processados em nuvem
e disponibilizados no aplicativo e em um painel dashboard. O painel apresentava a média


63

de batimentos de cada ala e o batimento individual dos destaques e personalidades,


traduzindo a “emoção” da escola ao desfilar, colocando o espectador, em qualquer lugar
do mundo, dentro do espetáculo.
O monitoramento dos dados dos componentes da escola capturou diferentes reações de
seus componentes ao longo do percurso da avenida. O momento ainda tinha como
agravante as diferentes tensões, pois enquanto para o grupo de pesquisa esta é a
oportunidade de testar suas hipóteses, para o grupo de indivíduos que participavam da
experiência, esta é a hora que esperavam por todo um ano. O cotidiano é diferente nos
dois campos de vivência, não obstante as necessidades de utilização das tecnologias de
relacionamento sejam comuns aos diferentes grupos.
A sustentabilidade foi abordada em um experimento de Economia Circular pela
rastreabilidade das fantasias usando o sistema RFID com etiquetas (tags) serializadas
aplicadas diretamente em todas fantasias e detectadas por meio de leitores, para o
acompanhamento do material desde a fabricação, armazenagem, durante e após o desfile,
permitindo conhecer o índice de reciclabilidade das fantasias, seja pelo reaproveitamento
para o ano seguinte, seja por doação a agremiações do segundo grupo. Durante o desfile
os dados das etiquetas eram capturados pelos leitores, posicionados em quatro pontos ao
longo da pista, que transmitiam os dados por meio de gateways e modems para
processamento em nuvem, sendo disponibilizados em dashboards mostrando a evolução
em tempo real, ou mesmo as movimentações dos componentes durante os ensaios. Estas
ações aconteceram com a proposta de capturar, armazenar e processar os dados,
possibilitando a reprodução virtual da evolução da escola em conjunto com
comportamento “emocional” pelo batimento cardíaco capturado pelas pulseiras. A
experiência foi denominada “Emoção e Evolução”, como ilustrado nas Figuras 2 e 3.


64

Figura 3 - Leitura de dados de evolução da escola no dashboard do projeto Carnaval 4.0.


Fonte: Sacrini Design, 2019.

Este posicionamento geográfico dos participantes, mostrado em tempo real, utilizou


metodologias de análise de desempenho para sistema de produção de itens em série.
Equiparou-se o trecho a ser percorrido durante o desfile a uma linha de produção que
deveria “produzir” as 30 “alas” da escola em 65 minutos com tolerância de 2 minutos.
Similarmente aos sistemas produtivos, a “concentração” representou o “estoque” de alas
e a “dispersão” a “expedição” das alas produzidas. Como todo sistema de produção, o
ritmo, traduzido pela velocidade de atravessamento da linha, determina o desempenho,
no caso a “evolução” da escola. Esse ritmo foi aferido pela medição dos tempos de
percurso de cada fantasia entre 3 trechos da avenida, de forma que fosse possível
comparar a velocidade real em cada trecho à velocidade “especificada” para encerrar o
desfile em 65 minutos.
Esse método permitiu a ação de correção em tempo real para “alas” atrasadas ou
adiantadas, mostradas em vermelho no dashboard e nos smartphones, enquanto as alas
mostradas em verde estavam no ritmo correto. A equipe técnica e de cronometragem, a
Diretoria de Harmonia e os Coordenadores de Ala puderam dispor de informações
exclusivas para tomar decisões assertivas com base em dados contextualizados para
acompanhamento e a orientação dos responsáveis pelo item evolução em relação à
avenida e à velocidade dos blocos, para manutenção de suas posições com base nas regras
da competição, garantindo o desempenho nesse quesito de avaliação, critério de
desempate para a classificação.


65

Desenvolveu-se também uma demonstração em realidade mista com o robô símbolo do


enredo, ROXP4 - na verdade o “narrador” do enredo que contou a história das revoluções
industriais e instigou, ao olhar para um futuro próximo, mostrando a dicotomia entre um
mundo utópico e outro distópico, possibilidades decorrentes dos impactos da Quarta
Revolução. Esse experimento incorporava o ROXP4 nas cenas apontadas pela câmera do
celular, incitando o usuário a sambar com o mascote.

Resultados e reflexões
Coisas simples devem ser simples, coisas complexas devem ser possíveis.
Alan Kay.
O projeto Carnaval 4.0, apresenta a concepção colaborativa e interdisciplinar, objetivos
sociais, acadêmicos, empresariais e institucionais que, com essa aproximação, puderam
identificar potenciais no âmbito cultural e social de aplicação de ações e projetos para
educação e atender a carência social.
O grande desafio de aproximar o sistema analógico às tecnologias emergentes estava na
disparidade de processos, comportamentos e organização do carnaval dentro das
metodologias acadêmicas. Tomando a arte como ponto de abordagem, o reconhecimento
das atividades do fazer a partir do tema revolução, para incentivar a transformação de
hábitos tradicionais, buscou-se incorporar novas tecnologias na dinâmica dos processos
de apresentação das obras produzidas pela escola.
Proposições envolvendo tecnologia e saúde tem aplicações percebidas no campo
cotidiano dos atendimentos e no acúmulo de informações referentes a pacientes e
entidades, fabricante e distribuidores de diferentes elementos ligados ao funcionamento
do sistema de saúde, porém a ideia de rastreabilidade em tempo real, aplicada a
tecnologias de representação e interpretação de dados, traz um viés específico quanto ao
uso do monitoramento a favor da manutenção passo a passo em relação ao estado físico
do usuário.
A geração de gráficos e o arquivamento das informações para posterior análise de dados
dos usuários traz a possibilidade de estudo sobre o histórico do antes e depois da
experiência em relação ao desempenho individual e de conjunto. Desta forma as atenções
antes observadas pelo acompanhamento dos dados biométricos de alguns participantes
fizeram com que estes indivíduos tivessem um cuidado maior ao se esforçar para vencer
o desafio de cruzar a avenida em ritmo controlado.


66

Outros desdobramentos foram feitos a fim de expandir a experiência dos participantes


independentemente de estarem ou não na avenida. O desenvolvimento de um aplicativo
para aumentar o engajamento e proporcionar diversão aos usuários estreitou o
relacionamento da escola com seus participantes que puderam levar suas experiências
para seus cotidianos ampliando a rede de relacionamentos.
As novas condições de convívio, de certa forma obrigatórias, advindas da pandemia ora
em curso, aceleraram a necessidade de levantamento de dados, a partir das ações físicas
em espaços abertos e não controlados, pelo uso de gadgets de leitura de dados
biométricos, transmitidos em rede e processados dentro de uma plataforma de tratamento
de dados.
Como a pandemia alterou a realidade rapidamente com restrições e distanciamento social,
muitas das questões foram sinalizadas com o projeto e experimentadas no processo, o que
enfatiza o caráter de antecipação e de emergência das mudanças de comportamento
atreladas com a tecnologia, situações tão discutidas com as experiências desenvolvidas
no Carnaval.

Considerações Finais

Você só pode fazer uma certa quantia com as mãos, mas com sua mente, é ilimitado.
Conselho de Kal Seinfeld ao filho Jerry

A compreensão da mensagem decorrente da inserção dessas tecnologias impulsionadoras


no cotidiano levará a uma mudança sistemática e profunda (Schwab, 2016, p 17-22).
Diferentemente das três primeiras revoluções industriais: mecânica, eletricidade e
informação, essa revolução é muito mais profunda, pois, nos dizeres de Brynjolfsson
(2016), “As tecnologias da computação e os avanços digitais estão fazendo pelo nosso
cérebro o mesmo que as máquinas a vapor fizeram pelos nossos braços na Primeira
Revolução Industrial.” Já em 2014, McAfee e Brynjolfsson, no último capítulo de sua
obra discutiam a temática: “tecnologia e o futuro (o que é muito diferente de tecnologia
é o futuro”. Depreende-se que essas tecnologias habilitadoras têm funções sociais mais
profundas, pela visão utópica, colocando os traços humanos no centro da mudança
exponencial e, pela distopia, colocando a desigualdade como um desafio sistêmico
(Schwab, 2016; Leonhard, 2017).
O carnaval é um espaço de relações inesperadas e essa convivência permitiu o encontro
e o entrecruzamento de pesquisadores de instituições acadêmicas e de profissionais de
distintas empresas. De uma rede aparentemente impossível emergiu um laboratório de


67

identificação de novos paradigmas que se tornaram emergenciais em decorrência das


situações que se apresentaram com a pandemia e o COVID- 19.
A tecnologia que transforma a arte que molda e incorpora a tecnologia em seu cotidiano.
A multiplicação de experiências entre os mundos físico, biológico e digital. Uma
abordagem “cubista” da alteração fluida do contexto interpretando sob diversos olhares
os experimentos desenvolvidos e antecipando um futuro próximo - um “avatar” da
realidade que rapidamente se transformou em um novo mundo real em um ambiente de
pandemia.
O contexto da proposta de fundir os mundos físico e digital e o desdobramento do enredo
Tempos Modernos do evento físico para uma “avenida digital”, levaram as tecnologias
da Quarta Revolução Industrial a explorar a função emergente não percebida pelo sistema
da sociedade, cultura, academia e indústria incorporando as transformações trazidas pelas
tecnologias habilitadoras.
O levantamento de dados por meio da rastreabilidade permitiu a tomada de decisões para
o reconhecimento dos atributos físicos, enquanto a experiência se alastra para além do
mundo físico, despertaram interações múltiplas entre realidades diversas do mundo físico
e a sua ampliação no mundo virtual.
Os processos de desenvolvimento levaram a imersão da experiência à perspectiva de
histórias duais: um enredo na história da sociedade e a fusão com o futuro da Quarta
Revolução Industrial, uma passarela física e seu desdobramento digital possibilitaram a
aproximação da comunidade com a vivência da tecnologia.

Referências
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for innovation in mobility, health, energy and production. Acatech Position Paper. Hellinger, A. (coord).
Sankt Augustin, Alemanha.
__. (2013) Securing the future of German manufacturing industry: Recommendations for implementing the
strategic initiative INDUSTRIE 4.0. Final report of the Industrie 4.0 Working Group. Kagerman, H.,
Wahlster, W., Helbig, J. Frankfurt/Main.
Brynjolfsson, E. (2016). Um turbilhão vem aí. Entrevista para a Revista Veja. out 2016. Editora Abril, São
Paulo.
Espósito,A.& Justo, J. S. (2017) Etnografia e deriva: possibilidades na pesquisa, In Estudos
Contemporâneos da Subjetividade. Recuperado em 31 de outubro, 2020 em
http://www.periodicoshumanas.uff.br/ecos/article/view/2039
Certeau, M de. (2013) A invenção do cotidiano – artes do fazer. Rio de Janeiro, Vozes.
Dunne, A. & Raby, F. (2013) Speculative everything. Design, fiction, and social dreaming. London,
England, MIT Press.
Fu –Lee, Kai. (2018) AI Superpowers: China, Silicon Valley, and the New World Order Boston,
Houghton Mifflin Harcourt.
Johnson, S. (2011) De onde vêm as boas ideias. Zahar. Rio de Janeiro.
Kurzweil, R. (2000) The age of spirituals machines: when computers exceed human intelligence. Penguin
Books, New York.


68

Leonhard, G. (2017). Change2. Filme de 4 minutos do futurista alemão Gerd Leonhard. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=GgBfAlg5e8E. Acessado em nov 2017.
McAfee, A. & Brynjolfsson, E. (2014) The second machine age: work, progress, and prosperity in a time
of brilliant technologies. W.W. Norton & Company. New York.
Merleau-Ponty, M. (1999) Fenomenologia da percepção. São Paulo, Martins Fontes.
Schwab,K.(2018) A quarta revolução Industrial. São Paulo: Edipro.
Silva, E. B.& Scoton, M. L. R. P. D.& Dias, E. M. & Pereira, S. L.(org) (2018) Automação e sociedade: A
quarta revolução industrial: um olhar para o Brasil. Rio de Janeiro: Brasport.


69

IP3_AMARELO: Cybernatural e coexistência entre a natureza e máquina

Artur Cabral Reis17

Resumo
O presente artigo discorre sobre a investigação teórica e prática para o desenvolvimento da obra
computacional emergente e auto-organizada IP3_AMARELO, expondo os pensamentos e
conceitos os quais inspiraram sua a concepção. O texto apresenta também reflexões
fundamentadas no conceito de cybernatural proposto por Mitchell Whitelaw, o qual propõe-se
explicitar a possibilidade de uma coexistência entre o maquínico e o biológico, considerando a
díade natureza-artifício.
Palavras-chave: Cybernatural, natureza-artifício, arte computacional, IP3_AMARELO.

Abstract
This article discusses the theoretical and practical investigation for the development of the
emerging and self-organized computational work IP3_AMARELO, exposing the thoughts and
concepts which inspired its conception. The text also presents reflections based on the concept of
cybernatural proposed by Mitchell Whitelaw, which proposes to explain the possibility of a
coexistence between the machinery and the biological, considering the dyad nature-artifice.
Keywords:Cybernatural, nature-artifice, computational art, IP3_AMARELO.

INTRODUÇÃO

A arte relacionada à computação, principalmente na década de 1980 até meados de 1990,


procurou transformar sistemas maquínicos e regrados em sistemas com características orgânicas,
criando tecnologias que assumem aparências “biológicas”, valendo-se desse aspecto natural
mediante um índice direto da natureza, de caráter simbólico, baseado nas experiências mais
básicas e pessoais com a natureza, reproduzindo árvores e folhagens, por exemplo, ou seres de
aparência zoomórfica, e em alguns casos, apresentando o processo construtivo desses agentes
virtuais (WHITELAW, 2004).
A analogia biológica destes primeiros trabalhos artísticos, principalmente com vida artificial,
concentrava-se nos aspectos de representação da evolução e abordava temas como emergência e
criatividade, sem críticas em relação à tecnologia ou à nossa relação com o meio circundante
natural.
Mas, simultaneamente, surgia uma forma de crítica que provocou tensão entre intelectuais e
artistas, em função do que ocorria entre o ambiente natural e o contexto informacional, chamando
a atenção para emaranhamento ou separação de um exterior natural e um interior computacional.
Essa tensão que encobre os aspectos da dualidade do feito e do nascido, da computação e da vida,
natureza e artifício, é denominado pelo pesquisador Mitchell Whitelaw de cybernatural. A
grande contribuição desses trabalhos computacionais atuantes no contexto do cybernatural é,

17
Artur Cabral é artista computacional, doutorando no PPGART-UNB e professor substituto na
Universidade de Brasília. Atualmente faz parte da equipe do Medialab/UNB.


70

justamente, a explicitação, ainda que não intencional, da divisão ordenada do “binário” natureza
e tecnologia, que é “desbinarizado”, fundido e transposto, tornando natureza e tecnologia
substancialmente indistinguíveis.
A “desbinarização” não ocorre pelo fato do artifício simbólico das obras estarem
progressivamente mais semelhantes ao objeto referente no mundo natural, entretanto, se dá na
constituição desse artifício, na sua estrutura gerativa.
Os primeiros trabalhos artísticos no campo da vida artificial, de circulação internacional,
entendidos nesse período como natureza artificial, tendo como exemplo as obras de Sommerer e
Mignonneau ou de Miguel Chevalier, possuíam uma preocupação significativa com a
interatividade, pois é a partir da interatividade que esses trabalhos adquirem um engajamento
especial. Em síntese, a interatividade humano-máquina é algo central em uma série de trabalhos
significativos na história da arte computacional.

A Obra IP3_AMARELO e a noção de natureza

A ideia de conceber obras que tencionam a relação dos humanos com as máquinas e com a
chamada “natureza”, de certa forma evidencia a inestimável agência de ambas, nos distanciando,
enquanto artistas, da preocupação com a construção de ambientes artificiais interativos
complexos, a fim de nos aproximarmos da tentativa de prestar atenção e interrogar o que estes
ambientes omitem ou implicam.
Dessa forma, desenvolvemos no MediaLab/UnB a criação de uma obra computacional 18 na qual
a interatividade acontece através das relações internas da máquina. Tendo em vista que a obra se
fundamenta em algoritmos evolutivos e na mimética de vidas naturais, atribuímos ao computador
a função de manter e conduzir esta vida computacional, que a cada execução apresenta-se de
forma diferente. Neste projeto elegemos a árvores para representar a natureza, a adaptação da
forma de vida simulada através dos processos computacionais define a IP3_AMARELO (2018)
como ser vivo, por meio da sua capacidade de se auto-organizar. Para nós, este fenômeno
biológico simulado por meio de algoritmos computacionais estabelece também um diálogo entre
o ambiente “natural” e sua simulação.
Figura 29 - Frame obra IP3_AMARELO (2018). Exposta na Artis Intelligentia: Imaginar o Real
- Museu de Belas Artes, Porto, Portugal.


18
Participaram também do projeto Suzete Venturelli, Leandro Ramalho e Fernando Aguilar.


71

Fonte: Autor, 2018.


Um evento importante que consideramos nesta obra é o fator tempo, que cria uma outra
oportunidade de experimentação na perspectiva artística mediada na relação natureza-máquina,
uma vez que o tempo de evolução dessa vida computacional diferencia-se do tempo de
crescimento da vida natural, bem como do tempo dos fenômenos tecnológicos, os quais aceleram
a cada dia, considerando que a simulação da árvore apresenta um ciclo evolucionário circadiano,
ou seja, nasce e morre em um período de 24 horas.
Contudo, em um processo de autocrítica a respeito deste trabalho, percebemos que mesmo
suprimindo a interatividade humana no momento de apreciação desta obra interativa, esse sistema
ainda evoca uma analogia demasiada literal entre estruturas biológicas e computacionais,
reforçando uma noção antropocêntrica da natureza, como conseqüência de suas formas
representacionais. Estas questões nos perturbam e nos surpreendem. Somos atormentado pelo
surgimento de perguntas como: Se a computação pode reproduzir a natureza, o que acontece com
seu original biológico? E se, em vez de procurar reproduzir formas naturais familiares, esses
sistemas computacionais fossem abordados em seus próprios termos? Como se posicionam
contra o binário cibernético natureza-artifício?
Sendo assim, buscamos ir contra a ideia de pensar a ação humana – por consequência, a
construção de objetos – como algo antagônico à natureza ou como um instrumento de
domesticação da natureza. O pensamento do antropólogo Bruno Latour, se torna indispensável
para entendermos esta noção, por sua vez, considera que a criação humana de artífices são
inerente à natureza, estendendo-se também para a manipulação genética, construção de cidades,
criação de vidas artificiais computacionais, reflorestamentos, os quais são simultaneamente
naturais e artificiais, ou melhor, são sobrepostos pelas múltiplas naturalidades (LATOUR, 2014).


72

A arte tem um papel preponderante nessas discussões, pois contribui com uma nova forma de
entender o mundo, na medida em que dialoga de forma intensa como a humanidade, manipulando,
transformando e reproduzindo a natureza, além de propor um diálogo impetuoso referente a como
tudo isso tem afetado nossa noção de natural.
Um outro trabalho interessante para pensar estas circunstâncias, que tenciona esse conceito de
naturalidade, é a obra transgênica OneTrees (2000-2004) idealizada pela artista Natalie
Jeremijenko. Nesse projeto a artista clonou 100 árvores como uma maneira de expressar a
complexa interação da genética com a influência dos múltiplos agentes ambientais, que, segundo
a artista, muitas vezes é simplificada no discurso público sobre clonagem. Clones das árvores são
plantados em locais públicos na baía de São Francisco por serem geneticamente equivalentes.
Espera-se que possuam aspectos visuais e sistemáticos idênticos, porém, à medida que se
desenvolvem expressam as diferenças ambientais e as ações dos agentes aos quais estão expostos,
dando origem a árvores singulares. De forma simbólica, a artista explicita algo que de outra forma
não seria visível para um público não científico, e cria uma forte tensão entre os aspectos e as
ações considerados naturais e os considerados artificiais, e como eles se relacionam e criam
emaranhados, o quais não podemos caracterizar como naturais ou artificiais.

Figura 30 - Fotografia do projeto OneTrees

Fonte: Site Deeproot.19


Consequentemente, podemos entender que a natureza não se opõe à cultura, se considerarmos o
aquecimento global e o conceito de antropoceno. Porém, acreditamos ser necessário valorizar as
suas relações e negociações, fomentando uma centralidade distribuída.


19
Disponível em <http://www.deeproot.com/blog/blog-entries/onetrees-the-forgotten-tree-art-project> .
Acesso em 29 de dez. de 2019.


73

A professora e pesquisadora Ursula Huws (2014) infere que, livres de correntes binárias, podemos
então assumir um compromisso ético independente de uma hierarquia, com agenciamentos
irrestritos entre objetos técnicos, humanos, animais, plantas, rochas etc. Para tanto, devemos
pactuar o compromisso de aumentar as possibilidades dentro dessas relações, esvaindo-se das
abstrações isoladas que nos acompanham há séculos e nos afastando dos estereótipos para
repensar nosso agenciamento no mundo. Para a autora, a relação de três vias entre a natureza, a
tecnologia e o humano, tem sido um assunto recorrente na contemporaneidade e está mudando a
problemática da arte e de todo o pensamento ocidental. Huws nos convida a participar de um
projeto que busca reinventar a relação entre tecnologia e natureza, que, segundo ela, está
principalmente nas mãos dos artistas. Visto que enquanto artistas podemos agir como...

...uma espécie de comentarista freelancer, fornecendo insights sobre o


funcionamento do universo que vai além do literal, chamando nossa
atenção para a ironia, o pathos, a beleza ou a extraordinária natureza
do mundo em que habitamos. E aos impressionantes poderes para
destruí-lo ou transformá-lo, que estão nas mãos dos cientistas.
(HUWS, 2014, p. 40, tradução nossa)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No contexto da discussão a respeito da díade entre artifício e natureza, precisamos avaliar de


forma crítica a cultura ocidental, em especial a tentativa de criar uma dualidade entre natureza e
cultura. Por conseguinte, nossa produção artística, em especial o trabalho IP3_AMARELO busca
revelar, também, como artistas podem ser cúmplices na construção do cybernatural não
antropocêntrico, para expandir nossa consciência de sistemas biológicos que é o avesso do sistema
binário: natural e artificial. Desta forma, acreditamos que dispondo da presença da natureza nos
sistemas tecnológicos e informacionais, podemos alterar ou contestar as noções e convicções a
respeito da nossa relação com toda a biosfera.
Isto é, considerando que poucos cientistas têm a liberdade de sair das suas prisões disciplinares
para apresentar uma visão integrativa acessível a um público leigo. Assim sendo, neste projeto,
para entender a relação entre a compressão do humano e do mundo natural, a arte torna-se uma
ferramenta chave, produzindo um exercício necessário e urgente, de especular sobre as direções
futuras das tecnologias e a nossa relação com o meio circundante. Deste modo, acreditamos que
este é um dos papéis delegados aos artistas, além do papel de estimular uma reflexão e ceticismo
moderado por meio da criação de novas narrativas e modelos, criando uma articulação entre todas
as dimensões sociais de uma nova tecnologia, infiltrando-se em discussões e eventualmente
agindo na realidade concreta.
Referências


74

HUWS, Ursula Huws. Nature, Technology and Art: The Emergence of a New Relationship?
Leonardo. Vol. 33, No. 1 (2014), pp. 33-40.
LATOUR, Bruno. Agency at the time of the anthropocene. New Literary History. Vol..45, n.1,
p.1-18, 2014.
Natalie Jeremijenko «One Trees» . Medien Kunst Netz, 2012. Works. Disponível em:
<http://www.medienkunstnetz.de/works/one-trees/>. Acesso em: 03, outubro de 2020.
VENTURELLI, Suzete. Arte: espaço_tempo_imagem. Brasília: Edunb, 2004.
VENTURELLI, S., Rocha, C., Augusto da Silva, T., Coutinho, C., Cabral Reis, A., Bartholo, C.,
Mutti, G., Balduíno, G., Ramalho, L., Luize Martins, T., & Hargreaves, P. (2018). Poiesis of the
body. DAT Journal, 3(1), 147-155. https://doi.org/10.29147/dat.v3i1.78
WHITELAW, Mitchell. Metacreation – Art and Artificial Life. Cambridge, Mass.: The MIT
Press, 2004.


75

A prática da Equoterapia e da Educação em Arte Como Experiência de Ensino em tempos


de Pandemia

The practice of Equinetherapy and Art Education as a Teaching Experience in times of


Pandemic

Camille Venturelli Pic20

Resumo

Este trabalho apresenta como utilizar o espaço da Equoterapia e as atividades baseadas na


Educação em Artes Visuais e tecnologia para auxiliar no processo de aprendizagem de crianças
com o Transtorno do Espectro Autista – TEA, em tempos de pandemia. A prática da Equoterapia
e da Educação em Arte como experiência de ensino envolve também a apresentação de objetos
de aprendizagem, que foram desenvolvidos durante o curso de mestrado na Universidade de
Brasília, com autorização da Comissão de Ética da Universidade de Brasília. Este artigo é um
recorte da pesquisa de mestrado e buscou-se ampliar as referências oriundas da educação,
pensando-se em desenvolver mais práticas arte-educativas e objetos de aprendizagem para a
Equoterapia que auxiliem pessoas especiais.

Abstract

This paper work intends to discuss the use of the space of Hippotherapy and activities based on
Education in Visual Arts and technology to assist in the learning process of children with Autism
Spectrum Disorder – ASD, during the pandemic. The practice of Hippotherapy and Art Education
as a teaching experience also involves the development of learning objects. This article presents
learning objects which were developed during the master's course at the University of Brasília,
with the authorization of the UnB Ethics Committee. This present text is a profile of the master’s
course and looks forward to expanding the references coming from education, focusing on
developing more art-educational practices and innovative learning objects to assist people with
special needs who practice hippotherapy.

Introdução

Esse trabalho apresenta as reflexões sobre o aprendizado e o desenvolvimento de crianças, que


são importantes para a prática da Equoterapia21, considerando como metodologia a exploratória,
a partir de uma revisão bibliográfica e de experiências pessoais. Buscando-se relacionar
pensamentos e métodos da educação especial e da educação com a prática da Equoterapia, no
âmbito da aprendizagem de praticantes da terapia e do seu desenvolvimento global, levando em
consideração a capacidade do pensar e do ganho da autonomia. Durante a pandemia do novo
Corona Vírus, em Brasília, as famílias de crianças deficientes, principalmente dos diagnosticados


20
Mestre em Educação em Arte pela Universidade de Brasília, Instituto de Artes. Cursa Pedagogia na Claretiano –
Batatais, SP. venturellicamille@gmail.com.

21
Equoterapia é o termo designado pela ANDE-BRASIL, para o método terapêutico em que se utiliza “recursos
fornecidos” (WALTER, 2013.) pelos cavalos, principalmente através do seu movimentos tridimensional realizado ao
passo. Na Equoterapia, abordagens das áreas da equitação, da saúde e da educação são utilizadas para buscar o
desenvolvimento biopsicossocial de pessoas deficientes ou com necessidades especiais.


76

com o Transtorno do Espectro Autista, buscaram a Equoterapia para continuar auxiliando no


desenvolvimento dos seus filhos, achando que mesmo em uma pandemia, os tratamentos dos seus
filhos não podem faltar. Neste trabalho, também se reflete sobre o uso de objetos de aprendizagem
inspirados na Equoterapia. Nesse contexto, serão relacionados autores que baseiam seus estudos
sobre os aspectos do pensar e do fazer na educação, como por exemplo nas reflexões de práticas
de professores.
Primeiramente, apresenta-se a origem dessa proposta, que está contida na pesquisa que realizei
no curso de Pós-Graduação nível Mestrado do Departamento de Artes Visuais, com a dissertação
intitulada Arte_Equoterapia confluências na Educação em Artes Visuais com Crianças Autistas22.
A pesquisa foi defendida e aprovada no ano de 2019 e para a sua realização, foi necessária a
devida autorização do comitê de ética de pesquisa com seres humanos da Universidade de
Brasília. Durante o trabalho, foram feitas em média durante um ano, 30 sessões de Equoterapia,
com 6 crianças diagnosticada com o Transtorno do Espectro Autista – TEA, durante os dias de
atendimentos semanais (exceto em feriados, faltas por motivos pessoais e férias escolares) já
estipuladas com a equipe da Associação Nacional de Equoterapia – ANDE-BRASIL. Para realizar
a pesquisa, houve a mediação como pesquisadora responsável pelas sessões e apoio de outros
professores, efetivos na secretaria de educação do Distrito Federal, que são fornecidos para
trabalharem com a Equoterapia em Brasília, dando suporte à necessidades educacionais e ao
desenvolvimento biopsicossocial dos deficientes.
Durante os encontros, realizamos exercícios próprios da Equoterapia, da Equitação e também com
o cunho pedagógico e lúdico, propostos e protocolados pela pesquisa, os quais foram bem
organizados, mas que com cada criança surgiram percepções e maneiras de interagir diferentes.
Inicialmente, durante os dias que corriam, pode-se observar os aspectos da interação com o
cavalo, com a equipe, com o ambiente, com o cuidar, com o brincar, com o aprender, com o fazer
e com o se expressar, utilizando-se muito de elementos e materiais das artes.
Para realizar a pesquisa de mestrado, houve grande apoio nos documentos fornecidos pelo
Ministério da Educação, sobre as Política da Educação Especial e Inclusiva (MEC 2008; MEC
2014), em autores que trabalham desde a Psicologia da Educação como Lev Vygotsky (2001;
2010), que reflete sobre o desenvolvimento natural da criança e o percurso da aprendizagem;
Paulo Freire (1967) que analisa e contribui com as práticas dos educadores, inclusive em períodos
complicados na história do Brasil e da educação brasileira, como nos tempos de ditatura militar,
demonstrando que a pedagogia deve sempre ser revista e estará sempre em desenvolvimento;
Fernando Hernández-Hernández (2013) com a abordagem de arte/educação, que demonstra a
importância do ensino da arte, e as diversas faces que as pesquisas e investigações baseadas em


22
PIC, Camille V. Arte Equoterapia: Confluências na Educação em Artes Visuais com Crianças Autistas.
Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/35312


77

arte podem apresentar, demonstrando a seriedade e a necessidade deste tipo de estudo com os
resultados. Um deles, é identificar na produção cultural humana, que foi construída na história e
na contemporaneidade, um montante de culturas visuais. Como por exemplo, propagandas, obras
de arte, construções e arquiteturas, tecnologia de material de encilhamento de cavalos, desenhos,
entre outras.
É importante também apresentar o que é a Equoterapia, que foi designado no Brasil, como um
método e que utiliza o cavalo como “Instrumento terapêutico, para o desenvolvimento
biopsicossocial de pessoas deficientes e/ou com necessidades especiais” (ANDE-BRASIL, 2018).
Mas a importância do cavalo no desenvolvimento dos seres humanos, vai muito além, tanto em
relação aos aspectos da saúde, sociais, de desenvolvimento histórico, entre diversos outros
benefícios físicos e psicológicos, pois a relação com os cavalos, permitiram que demonstremos
as nossas emoções humanas, de uma maneira mais livre e mais conectada com a natureza. A partir
dessas relações da educação especial, da arte, da equoterapia, foi percebido que pode-se associar
essa forte relação para o desenvolvimento de linguagens e criações artísticas.
No intuito basear também o processo de escrita deste trabalho, apresenta-se autores especialistas
em autismo como a Temple Grandim (2018), que fala sobre o autismo de um ponto de vista de
pesquisadora, doutora e autista. Grandim, acredita que todos os cérebros fazem conexões
diferentes. Para ela, de uma maneira geral, sempre existirão muitas pessoas que farão mais
conexões cognitivas para o lado do pensar e outras que farão mais conexões cognitivas para
habilidades emocionais e sociais. A partir daí, já podemos ver as diversidades e complexidades
que existem na estrutura cerebral humana.
A partir das leituras e das experiências já vivenciadas antes e durante o mestrado, foi percebido a
potencialidade da união de diversas áreas de pesquisa e de vivência. Das quais foram propostas
algumas atividades da educação e das artes, utilizando-se de alguns materiais referentes. Algumas
destas atividades, eram feitas junto com os cavalos e outras após o montar a cavalo. Os resultados
foram observados a partir das anotações diárias sobre as realizações de cada criança, fotografias,
vídeos e também foi solicitado aos responsáveis dos participantes da pesquisa que preenchessem
uma avaliação no início da pesquisa, e outra no final. Essa avaliação é chamada de Autism
Treatment Evaluation Checlist - ATEC23, ela pontua o desenvolvimento global do entrevistado
sobre algumas categorias das suas vidas, para sabermos se tem havido evolução ou perda nos
principais desempenhos da sua trajetória e nas terapias atuais em um certo período de tempo.
Outro resultado que se deu durante o processo da pesquisa, foi o do desenvolvimento de alguns


23
O ATEC, foi desenvolvidos pelo Instituto de Pesquisa em Autismo dos Estados Unidos e pode ser encontrado através
do site em diversas línguas. Ele pontua a partir das respostas das categorias e apresenta como tem sido a melhora ou
piora do autista durante os tratamentos que tem realizado. Os campos para serem preenchidos, são sobre: Comunicação
e linguagem; Sociabilidade; Consciência Sensorial e cognição; Aspectos sobre saúde, questões físicas e sobre o
comportamento. O ATEC pode ser encontrado no site https://www.autism.org/autism-treatment-evaluation-checklist/


78

brinquedos e objetos de aprendizagem a partir das experiências do envolvimento do ensino da


arte e da equoterapia.
Para este trabalho, A prática da Equoterapia e da Educação em Arte Como Experiência de
Ensino em tempos de Pandemia, busca-se propor um olhar sobre as reflexões de educadores
que abordem princípios importantes da educação especial e que possam ser relacionadas com a
Equoterapia, objetos de aprendizagem e tecnologia.
A metodologia adotada foi a de revisão bibliográfica, podendo transitar entre pesquisa
exploratória e descritiva. Para se atingir os objetivos de reflexão, foi feito o levantamento
bibliográfico selecionado autores que levem em consideração o processo da individualidade dos
educandos, de aspectos de aprender brincando, do desenvolvimento sensorial, do processo de
autonomia, das necessidades educativas especiais e da importância da Equoterapia no
desenvolvimento das crianças, principalmente as especiais. Também avalia-se a contribuição do
uso de recursos materiais pedagógicos e de objetos de aprendizagem no desenvolvimento das
crianças durante a Equoterapia.
Visando justificar as escolhas em relação as referências e as metodologias, destaca-se reflexões
de educadores, principalmente da Maria Montessori (2010; 2017; 2019) e do Paulo Freire (1967;
1996). Os autores citados levam em consideração a individualidades dos educandos e do sistema
educacional, como nos aspectos sociais e culturais. Portanto, partindo das teorias de Maria
Montessori (2017), que exemplifica em suas pesquisas e suas práticas sobre a educação infantil e
com metodologias não convencionais para a sua época e que até hoje, suas ideias provocaram
fortes impactos no mundo todo, indicando que devemos promover às crianças, todas as
possibilidades de viverem a sua infância em plenitude, desenvolvendo as suas potencialidades. A
educadora e médica Italiana, pensou sobre as relações dos pais, cuidadores e dos educadores com
a educação e o desenvolvimento das crianças, o qual não deveríamos tratar com inferioridade por
estar em processo de crescimento. O ideal, para a autora, seria permanecer permitindo que as
crianças, desde muito jovens, tenham acesso ao mundo, e a processos de autonomia, que se
expressem e que façam a leitura do mundo a partir da sua perspectiva naturalmente. Assim, como
adultos, podemos tratar as crianças com respeito, dando-as um espaço seguro e apropriado para
aprenderem em um curso mais natural, explorando o campo sensorial e permitindo-lhes terem
acesso há ferramentas para que possam se desenvolver: “Creio que quando a humanidade adquirir
plena compreensão da criança, encontrará um modo muito mais perfeito para cuidar dela
(MONTESSORI in ROHRS, 2010).”
A educadora também observa em suas pesquisas que o ato de brincar das crianças é muito mais
do que apenas um momento de distração. Este trabalho tende a ser positivista e ir de acordo a
Maria Montessori (2019), percebendo que o ato de brincar é aprender. A brincadeira, é uma
maneira de inspirar e expirar os sentimentos, as informações, de se movimentar, de experimentar
e de sentir. Aprender brincando vai demonstrar como a criança vai ressignificar a sua vida e a sua


79

rotina, explorando bem os sentidos e fazendo as devidas conexões. O brincar das crianças nas
escolas de Montessori, referia-se a liberdade e da espontaneidade que elas tinham em trabalhar
com os objetos. Em um ambiente seguro e com objetos adequados e manipuláveis para as faixas
etárias dos educandos, foi observado que estes realizavam suas atividades com “amor e exatidão”
(MONTESSORI: 2010), pois as crianças são pessoas jovens, mas muito criativas e que são grande
descobridoras.
Então, por qual motivo tentar relacionar a brincadeira, arte, tecnologia e o aprendizado com a
Equoterapia? Sendo essa pesquisa uma reverberação de outras investigações acadêmicas e
pessoais, foi percebido que nos locais em que disponibilizamos tratamento com o uso do cavalo
como instrumento terapêutico, dependendo da necessidade da criança, muitas das vezes
conseguimos acessar o seu campo da imaginação e de maior interação através das brincadeiras,
de seus interesses no brincar (os autistas costumam trazer bem essa característica), de recursos
lúdicos e pedagógicos que são relacionados ao meio do cavalo, dos games, dos brinquedos de
casa, das terapias, ou até da escola. Alguns dos recursos, são através de materiais que tem
finalidade pedagógica ou de acalento, como por exemplo: Bolas, bichos de pelúcias, livros,
brinquedos de animais, carrinhos, brinquedos educativos, entre outros. Poderíamos então começar
a permitir que a criança explore todo o seu potencial de aprender mais de através do brincar na
Equoterapia? Seria um avanço na busca da autonomia?
Para Vanessa Rubim (2012), terapeutas podem, e professores devem ser “provocadores de
pensamento”. Relatou essa compreensão quando, buscou relacionar em sua pesquisa, a
Equoterapia e a escola. Tentando analisar, como os dois espaços podem auxiliar e se conectar
para um melhor processo de aprendizagem e da subjetividade no pensar do sujeito, que no caso
era uma pessoa com Síndrome de Down, com necessidades educacionais especiais. Rubim
(2012), escreveu que quando houveram trocas de informações sobre as necessidades e as
dificuldades nas atividades escolares, e que quando essas necessidades eram trabalhadas na
Equoterapia, percebeu melhoras no processo de aprendizagem escolar, principalmente em relação
a subjetividade e a capacidade do sujeito refletir. O sujeito da pesquisa, também sempre trazia
memórias do seu tempo com o cavalo para a as aulas na escola. Nesse caso, as observações da
pesquisadora mostraram a importância de olhar para as pessoas levando em consideração que
todas são únicas. Freire (1996), quando se posiciona sobre o valor do indivíduo, demonstra com
a sua reflexão, que as pessoas não podem ser apenas um elemento neutro na história,
exemplificando que o papel do professor é ir e permitir que os alunos cheguem a lugares
inalcançáveis. De acordo com o educador, as principais ferramentas que podemos usar para
transcender nosso lugar na sociedade serão a capacidade de pensar, de refletir, de discutir e de
saber agir, para então, poder mudar alguma coisa e contribuir.
Sobre a individualidade, é percebido no mundo todo, que muitas pessoas têm necessidades
educativas especiais. Para María Royo e Natividad Urquízar (2010), a educação especial será


80

definida como o atendimento especial e especializado para alunos que a partir de alguma
deficiência tenham dificuldades ou impedimento de aprender sincronizado com os outros alunos.
Desta maneira, esclarecem sobre alunos com necessidades educativas especiais:

“[...]Não só aqueles que apresentam determinadas limitações na


aprendizagem, de natureza mais ou menos estável, mas também todos
aqueles que, de forma pontual e por diferentes causas, possam necessitar
de ajuda para dirigir ou encaminhar naturalmente seu processo de
aprendizagem” (ROYO; URQUÍZAR, 2010. pg. 14).

Maria Montessori (2017), também irá refletir em suas práticas como as crianças com necessidades
especiais irão utilizar os objetos propostos por ela. De uma maneira geral, percebe que as crianças
com condições neurológicas atrasadas não farão o uso correto dos objetos montessorianos e nem
terão tanto interesse inicial como uma criança dita “normal”. O mediador das atividades deverá
então primeiro buscar com que essa criança especial, busque aos poucos o interesse e comece a
caminhar para um processo mais autônomo:

“A criança com necessidades especiais é ajudada, pelo contrário, a


“compreender” o material, graças à lição; sua atenção é atraída com
insistência sobre os diferentes contrastes e ele acaba por interessar-se e
começa a trabalhar. Contudo, o objeto em si mesmo será um estímulo
insuficiente para despertar sua atividade” (MONTESSORI, 2017,
p.188).

No Brasil, uma maneira de auxiliar as necessidades educacionais é pela Equoterapia. No nosso


país, normalmente as pessoas fazem a terapia uma vez por semana, durante 30 minutos. Esse
artigo leva a acreditar que se fossem feitas mais sessões de Equoterapia durante a semana, tendo
planejamento para dias de atividades de equitação, de desenvolvimento físico/motor, de
desenvolvimento emocional, sensorial e de aprendizagem, o processo de desenvolvimento global
das crianças, principalmente as especiais, seria mais potencializado. Quando montamos a cavalo,
nosso corpo se aquece, nos acalmamos, sensações acontecem, nos sentimos mais altos,
confrontados no início e depois felizes de estar e guiar um animal maior que nós. A cavalo,
podemos investigar caminhos, correr muito mais rápido que normalmente poderíamos, escutar os
pássaros, saltar obstáculos e finalmente ter mais liberdade.
Na Equoterapia, assim como nas escolas Montessori o movimento do corpo acontece durante as
atividades, assim como a ativação dos sentidos também. Os materiais usados, tanto no método
Montessori quanto no método da Equoterapia, costumam ser sensoriais. Mas não só o uso dos
materiais será um processo, é necessário que busquemos que as crianças passem a refletir durante
o uso dos materiais e na realização das atividades, indo ao encontro da autonomia. Paulo Freire
(1996), vai esclarecer que professores devem respeito ao processo de autonomia dos educandos,
devemos ter muito cuidado nos processos de crítica, de observação e de escuta.


81

Utilizar-se de brinquedos pedagógicos e objetos de aprendizagem, mostrou muitas possibilidades


para reconhecer o aprendizado das crianças com os cavalos, permitindo também que
identificássemos outras maneiras das crianças se comunicarem, terem possibilidades de interação
social e de se expressarem pela arte. Objetos de aprendizagem podem se caracterizados por serem
ferramentas para se aprender, permitindo também trabalhar a criatividade. Para Gisele Barbosa
(2014), serão recursos pedagógicos que colocarão o educando para refletir. Esses recursos podem
ser digitais ou não digitais.
Para Tatiana Fernández (2017), sobre o pensar artístico, existem os Objetos de Aprendizagem
Poéticos, que tem como objetivo “reinventar e reconstruir conhecimento que continua a se
transformar” e que trarão experiências estéticas e pedagógicas.
Sobre esses aspectos, na pesquisa Arte_Equoterapia: Confluências na Educação em Artes Visuais
com Crianças Autistas, foram desenvolvidos e apresentados os seguintes objetos de
aprendizagem: 1. Pregadores de Encilhamento, que foi caracterizado com um Objeto de
Aprendizagem Poético; 2. Pé de Pano, também como Objeto de Aprendizagem Poético; 3.
Espectro do Corpo Colorido, Objeto de Aprendizagem Tecnológico Artístico (termo pensado na
pesquisa), pois usou-se de referências da tecnologia, da arte e da aprendizagem. Com cada um
deles, a interação das crianças foi subjetiva de acordo com a sua potencialidade. A seguir, são
apresentadas imagens e algumas informações de acordo com Camille Pic (2019) sobre os objetos
de aprendizagem desenvolvidos na pesquisa de mestrado Arte_Equoterapia:

Pregadores de encilhamento
O Objeto de Aprendizagem Poético é utilizado de maneira lúdica sobre o aprendizado das
características dos materiais de encilhamento básico dos cavalos (sela, manta, rédeas, cabeçada),
podendo-se trabalhar também assimilação de informações, memória, representação de tipos de
imagem, cores e também desenvolver aspectos físicos e psicológicos, como a coordenação motora
grossa e fina, concentração, entre outros.


82

Figura 1 - Pregadores de encilhamento, Objeto de Aprendizagem Poético feito com pregadores


de roupa, barbante e imagens impressas plastificadas . Fonte: Arquivo Pessoal.

Pé de Pano
O objeto de Aprendizagem Poético Pé de Pano, serve para trabalhar a criatividade e também a
assimilação sobre algumas partes do corpo do cavalo durante a sessão de Equoterapia. Em solo,
por etapas, pedimos ao praticante para colocar as partes (crina, cola e cascos) no pé de pano,
mostrando as 2 opções de cores e permitindo que ele faça a sua escolha. Sobre as outras partes do
cavalo, como garupa, pescoço, barriga, patas, o praticante pode falar, apontar ou acariciar.


83

Figura 2 - Pé de Peno, Objeto de Aprendizagem Poético. Feito de tecido, algodão, velcro, botões
e tnt Fonte: Arquivo Pessoal.

Espectro do Corpo Colorido


Esse Objeto de Aprendizagem Tecnológico Artístico - OATA, teve como característica o uso de
tecnologia contemporânea através do uso do computador, dispostivo Kinnect, projetor, o software
processing 2.1 e tecnologias naturais como o picadeiro coberto do local da pesquisa, a energia,
areias, pessoas e cavalos. Com o uso do Espectro do Corpo Colorido, Foram feitas sessões
interativas com arte, pois nos aproximávamos e nos distanciávamos com os conjuntos de cavalos
e praticantes do dispositivo Kinnect, e assim que os corpos em movimento ou parados eram
percebidos pelos dispositivos e projetava-se imagens com cores mais quentes (para perto) ou
cores mais frias (para longe). Essas imagens eram eram projetadas no telão fazendo um
espelhamento com sombreado e traçado colorido dos corpos. Para alcançar este tipo de efeito, foi
programado no software, algoritmos de visão computacional 3D, que é capaz de identificar
objetos e o espaço. Nestas sessões, pode-se trabalhar questões de espacialidade, cores, percepção
corporal, desenvolvimento sensório-motor, condução do cavalo, entre outros.


84

Figura 3 - Espectro do Corpo Colorido, Objeto de Aprendizagem Tecnológico Artístico. Fonte:


Arquivo Pessoal.

Os objetos citados a cima, ainda são usados no dia-a-dia de sessões de Equoterapia com Arte pela
pesquisadora. Durante a atual pandemia, em Brasília, os responsáveis de pessoas com deficiência
continuaram a procurar o tratamento com a Equoterapia e para os auxiliar também no aprendizado
das crianças, foram pensados em materiais pedagógicos e objetos de aprendizagem que pudessem
ser utilizados, posteriormente em casa. Entre eles, o protótipo de um aplicativos informativo,
chamado de Meu Cavalo Bonitinho, que ainda em desenvolvimento já foi usado por praticantes.
Neste app, existem algumas informações e imagens de dois cavalos que são usados na
Equoterapia pelos praticantes do Centro Hípico Pietra César. De acordo com os responsáveis dos
praticantes, houve muito apreço por poder continuar desenvolvendo a aprendizagem em casa com
o tema cavalo.


85

Figura 4 - Captura de tela das páginas do app Meu Cavalo Bonitinho. Disponível em:
https://app.vc/meu_cavalo_bonitinho_2503730 Fonte: Arquivo pessoal.

Percebendo os objetos de aprendizagem, iluminam-se muitas possibilidades de se trabalhar arte,


design e Equoterapia de maneira confundida para auxiliar tanto no aprendizado de praticantes de
Equoterapia como no desenvolvimento criativo, desenvolvimento motor e emocional também.
Todos eles foram pensados em obter características de fácil entendimento como no seu design e
nos tipos de objetivos que podemos refletir para o ato do aprender-ensinar brincando. Um fator
importante também é ressaltar que os objetos de aprendizagem podem ser usados por crianças
com diversos tipos de deficiências como pessoas com o Transtorno do Espectro Autista,
Transtorno do Déficit de Atenção, Síndrome de Down, entre outras deficiências.

Conclusão
A partir das leituras, concluísse que existem possibilidades de serem acrescentadas ao
desenvolvimento da criança, recursos pedagógicos, artísticos, tecnológicos e adaptados para uso
na Equoterapia, com características principais sobre os aspectos lúdicos do ato de brincar
aprendendo. Essas associações podem ser grandes aliadas para ajudar as crianças especiais.
Permitindo que elas pensem e descubram sobre o mundo a sua volta, com ajuda do cavalo, ser
que de alma, é livre.
Apesar de Maria Montessori e Paulo Freire serem de culturas diferentes, ambos pensaram em
processos para desenvolver a autonomia dos educandos e costumam ver as práticas que ajudem
na independência como um critério importante. É visto também que o desenvolvimento sensorial
e do movimento do corpo, vai ajudar as crianças a desenvolverem globalmente.
Com este trabalho pretende-se que, para o futuro, que ocorram avanços na metodologia a partir
das reflexões aqui apresentadas, assim como, possa-se imaginar novos objetos de aprendizagem,


86

tanto poéticos como tecnológicos, conceituados a partir da própria área da pedagogia, cujos
pensamentos proporcionam apropriados caminhos educativos no contexto especiais dos
praticantes. Ou seja, como aponta Montessori é fundamental para as crianças não só executar as
atividades com mais autonomia e criarem novas conexões cerebrais e terem ganhos físicos, mas
é necessário conduzi-las a explorem as brincadeiras e os objetos para que possam passar a refletir
mais sobre o que estão fazendo.
É nesse caminho que une reflexões sobre o brincar, sobre a importância do espaço da escola, do
papel do professor, das potências da Equoterapia, da importância da subjetividade da brincadeira
e do aprendizado da criança, do desenvolvimento da criatividade para que se possa alcançar o
lugar do pensar e refletir. Brincar na Equoterapia com elementos que tenham características de
aprendizagem, os professores e os terapeutas, em comunhão, poderão permitir que haja o lugar
do aprender, do refletir e do modificar a partir da subjetividade da brincadeira de cada criança.
A partir dessas reflexões, é viável considerar que o praticante de Equoterapia, uma pessoa
especial, tenha a possibilidade de modificar e criar um novo objeto ou brinquedo ou até um novo
meio de brincar no espaço da Equoterapia. Podendo ser, assim, um participante ativo ou um pouco
mais energizado no seu processo de aprendizagem.
Nesse sentido, constatou-se que o espaço da Equoterapia é um local eficaz para que às crianças
especiais possam adquirir conhecimento e bem-estar, principalmente durante crises como na da
atual Pandemia. Além de práticas para a aprendizagem, quando se relaciona Educação, Arte e
Equoterapia dialoga-se com o desenvolvimento das habilidades motoras, do desenvolvimento da
linguagem, do desenvolvimento sensorial, do emocional e do social, utilizando-se de muita
criatividade.
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88

Performances multiespécie na produção artística contemporânea

Multispecie performances in contemporary art


Clayton Policarpo24
Resumo
Frente a crescente emergência de seres sencientes –com a eclosão de sistemas computacionais capazes de
realizar tarefas complexas e mediante avanço de pesquisas relacionadas ao comportamento e capacidade
cognitiva dos demais seres biológicos – já não há qualquer território ou área do conhecimento que possa se
postar como intacto à participação de agentes não humanos. No campo da arte, ao explorar o potencial
criativo expresso em trabalhos que contam com engajamentos interespécie somos destituídos de uma
exclusividade na criação, ao tempo que novas perspectivas estéticas podem ser desveladas. O presente
artigo pretende realizar uma leitura de trabalhos produzidos nas últimas décadas que tomam partido de
interações entre seres provindos de diferentes naturezas em seus processos de concepção, desenvolvimento
e difusão, de modo a apontar para possíveis encaminhamentos e potencialidades em ambientes
heterogêneos.
Palavras-chave: arte contemporânea, performance, Antropoceno, performance multiespécie

Abstract
In the face of the growing emergence of sentient beings - with the emergence of computer systems capable
of performing complex tasks and by advancing research related to the behavior and cognitive capacity of
other biological beings - there is no longer any territory or area of knowledge that can stand as intact the
participation of non-human agents. In the field of art, by exploring the creative potential expressed in works
that rely on interspecies engagements, we are deprived of an exclusivity in creation, while new aesthetic
perspectives can be unveiled. This article intends to read works produced in the last decades that take
advantage of interactions between beings from different natures in their processes of conception,
development and diffusion, in order to point to possible directions and potentialities in heterogeneous
environments.
Keywords: contemporary art, performance, Anthropocene, multispecies performance

Nas últimas décadas, diversas áreas têm se dedicado a investigações que buscam romper com um
modelo antropocêntrico de construção do conhecimento, difundido em toda cultura ocidental, ao
que tem sido chamado de “virada do não humano” (GRUSIN, 2015). Assomam-se a esse processo
uma série de eventos que corroboram a instauração de uma revisão das noções de humano e
humanidade, bem como dos processos de produção que lhes são característicos. Mediante um
horizonte que reitera a convicção de um estado e de uma sociedade que derivam da associação de
atores diversos, muitos dos quais não possuem forma humana, o entendimento de uma extensão
interespécie das relações repercute nas ciências, nas tecnologias e nas humanidades, no mesmo
momento em que o não humano tem se convencionado como uma expressão sintomática do
contemporâneo.


24
Doutorando e mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD), PUC-SP. Professor
temporário do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP. Integrante dos grupos Realidades (ECA-
USP) e Transobjeto (PUC-SP). Email: clayton.policarpo@gmail.com


89

No âmbito das artes, instauram-se debates acerca da capacidade de agentes para além do humano
desenvolverem expressões criativas. Para o presente artigo, buscamos recuperar algumas
experimentações artísticas que se fazem valer da ação performativa de seres biológicos e animais
não humanos em sua constituição. Assim, faz-se necessário um breve retrospecto das artes
performance – enquanto prática, método e visão de mundo –, de modo a vislumbrar aproximações
possíveis para produção e pesquisa que atuem nas intersecções entre arte, filosofia e ciência.
1. A performance como um paradigma
Com a origem que remonta aos experimentos de vanguarda da arte, na primeira metade do século
XX, sobretudo os surrealistas e dadaístas, a performance se estabelece a partir de proposições
díspares, que envolvem corporificação, localidade, presença e materialidade, ao tempo que
propõe questionamentos aos modelos social e artístico do modernismo. As propostas de obras que
buscam exceder o objeto de arte, e instituem o tempo presente e a materialidade como instâncias
que lhes são inerentes, têm pautado os movimentos criativos não apenas nas artes visuais, mas
também no teatro, na dança e na música. Ademais, não é infrequente que áreas para além das
artes se engajem com preceitos de performatividade, como é o caso de designers, arquitetos,
arqueólogos, cientistas, pesquisadores que têm sistematicamente adotado a performance,
elevando-a à posição de um dos maiores paradigmas do nosso século (Salter, 2010, p. xxi).
A institucionalização das artes da performance, que permitiu uma visibilidade enquanto prática
específica, ao mesmo tempo que buscou separá-la de outras dimensões que não se autodefinem
como tal, possibilitou um espaço de destaque no cenário artístico e a emergência de toda uma
rede de estudos e pesquisa, bem como mostras direcionadas para a área. Tendo em vista a
variedade de frentes de pesquisa dedicadas ao tema, e mesmo à abrangência que a arte da
performance adquiriu nas últimas décadas, não há a pretensão de realizar uma investigação
extensa sobre a prática. O levantamento aqui proposto busca alçar compreensão acerca de um
espectro ampliado da performance, que excede as realizações centradas em ações no corpo do
artista e que se efetivam em um espaço-tempo específicos.
O objeto de arte, no contexto contemporâneo, já não pode ser apreendido como encerrado em si
ou como um produto estático, alheio às forças que o compõem (ainda que tal modelo remanesça
em algumas produções e discursos). Mesmo que não seja significativamente afetada pelo público,
a obra tende a se configurar e se atualizar enquanto a cristalização de uma série de dinâmicas e
processos. Assim, a partir do resgate de algumas vertentes das ações e métodos performativos,
esperamos delinear um recorte dentro de um panorama da arte contemporânea, que seja capaz de
contemplar a participação de agentes não humanos.
Nos anos 1950, Jackson Pollock partiu de uma investigação em pintura através de
experimentações da técnica e da linguagem pictórica. Allan Kaprow foi o primeiro a associar a
pintura de Pollock com uma dança (Cufer, 2012, p. 24). “Com a tela enorme estendida no chão,
o que tornava difícil para o artista ver o todo ou qualquer seção prolongada de ‘partes’, Pollock


90

podia verdadeiramente dizer que estava ‘dentro’ de sua obra” (Kaprow, 2009, p. 40). Retirada do
cavalete vertical, a tela passa a ocupar o chão do ateliê, onde o artista imprimia sua gestualidade,
o que exigia não apenas uma nova consciência, mas uma consciência acrobática, capaz de atuar
em uma superfície que era ao mesmo tempo suporte para o movimento e para o olhar. Uma
coreografia que explicitava o ato físico de pintar, e que ampliava as dimensões de ação do corpo
dentro da pintura. Em “The American Action Painters”, Harold Rosenberg descreve a pintura
como um ato inseparável da biografia do artista. “A act-painting é da mesma substância
metafísica que a existência do artista. A nova pintura quebrou todas as distinções entre arte e
vida.” (Rosenberg, 1952, p. 23). Embora Rosenberg não mencione Pollock, o público
familiarizado com o cenário artístico estadunidense fez a associação de imediato.
Apesar da insatisfação expressa por alguns críticos (vide Greenberg, 1962), as noções de
processualidade e temporalidade assomam-se as diversas pautas expedidas na segunda metade do
século XX e manifestam-se como características transversais às práticas artísticas do pós-
modernismo. No campo da pintura, diversos artistas se apropriam da tela como interface para
registro de ações, por vezes realizadas mediante a presença de um público, que se efetivam como
resquícios de gestos e performances, ocorridos em uma temporalidade irrecuperável e fugidia. A
exemplo, o artista francês Yves Klein que, a partir da década e 1960, apresenta uma série de telas
criadas por meio de gestos e ações realizados por performers com o corpo nu e coberto de
pigmento azul.
A desmaterialização da obra, promulgada por Lippard e Chandler ([1971] 2013), ao renunciar à
mera materialidade da arte – e transformá-la em conceito, energia e movimento – não implica em
uma supressão da tangibilidade ou materialidade da experiência estética. O objeto-obra não se
dissipa no vazio, mas se estende para uma condição de impermanência e continuidade, em
relações que perpassam pelas diferentes etapas que integram a constituição da obra. Em
intervenções tridimensionais de grande escala, que instigam o público a circundar as obras
perceber novas angulações e perspectivas do espaço; em pinturas e intervenções que imprimem
um transcurso do tempo, que funcionam como índices de ações já executadas; em obras que
demandam diferentes graus de participação do público e/ou demais agentes externos à sua
concepção: a performatividade é manifesta como uma condição onipresente nas artes
contemporâneas.
A revelia da sistematização, que busca configurar um campo em particular, são identificáveis
aproximações e leituras que denotam a recorrência de um espectro performativo em territórios
dissonantes da arte. Para além da definição corrente, de uma ação que se configura em tempo real
e sujeita às intempéries, a performance adquiriu um caráter ubíquo e transversal às práticas


91

artísticas contemporâneas – “tudo é performance, exceto o que não é.”25 A “condição


performance” já não se limita à atualização de um ato do corpo no tempo e no espaço, mas persiste
nas inscrições promovidas por uma atuação ou gestualidade, por si, inacabadas.
Em um retrospecto das artes do pós-modernismo, é possível verificar a presença de noções
inerentes à temporalidade e performatividade em práticas que excedem os modelos
institucionalizados da performance. Uma evidência da onipresença da performance por entre
diferentes gêneros artísticos é A máquina performática, de Gonzalo Aguilar e Mario Cámara
(2017). O livro é pautado por uma recuperação do caráter performativo da literatura brasileira,
que “excede a hegemonia textual como única fonte de autoridade” e, ao abrir o texto a uma
multiplicidade de conexões e “construir uma sequência que recupere signos ínfimos e
despercebidos” (Aguilar & Cámara, 2017, p. 11-12), expande a literatura para um campo
experimental. Na constatação de uma instabilidade recorrente entre os mais diversos agentes –
bem como a verificação de um caráter processual, que é oblíquo a diferentes áreas de pesquisa e
atuação – outras atividades do cotidiano adquirem aspectos de continuidade e materialidade, antes
exclusivos do domínio da arte.
Situada em meio a uma série de reivindicações e processos que demarcam uma fragmentação de
um ideário de sujeito autocentrado, a performance corrobora o reexame da própria condição
humana e, ao exceder os domínios excessivamente antrópicos dos moldes verbais e linguísticos,
gera um território propício para expandir adiante dos formatos epistêmicos tradicionais. Neste
decurso, a própria consciência de corpo e corporalidade passam a abarcar existências outras, que
excedem o projeto da modernidade, e que antes eram resignadas a favor da manutenção de uma
presumida soberania e constância de uma compreensão específica acerca do humano. Uma vez
que relutam a uma definição totalizadora, e lidam com uma linguagem e modo de pensamento
que não podem ser substituídos por qualquer outro sistema disciplinar, as práticas performativas
inspiram novos caminhos de investigação e leitura para a virada do não humano.
2. Performances multiespécies: o não humano na arte
É fato que performers humanos agem e se apresentam em diálogo com o espaço, tecnologia e
objetos externos ao corpo; direcionando-os para seus objetivos específicos. Contudo, algumas
questões vêm à tona: como entidades não humanas podem performar na arte, mesmo quando
isentas de consciência ou intenção? Para além de medidores de eficiência, podem os objetos e
animais performar a fim de incorporar uma expressão genuína?
Na performance, no contexto das artes visuais, a atribuição de agência a elementos não humanos
não é uma pauta inédita. Objetos, animais, sistemas são, por vezes, dotados de certo protagonismo


25
A frase “nas artes contemporâneas, tudo é performance, exceto o que não é” é uma apropriação deliberada
de um aforismo promulgado pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro: “No Brasil, todo mundo é índio,
exceto quem não é” (Viveiros de Castro, 2006).


92

nas obras, ao tempo que são utilizados como instrumentos para investigações acerca do potencial
de interação entre o corpo humano e o meio em que este se insere. No livro Performance como
Linguagem (2013), Renato Cohen afirma que “o atuante não precisa ser necessariamente um ser
humano” (ibid., p. 28). Citando como exemplo instalações e objetos criados pelo artista brasileiro
Guto Lacaz, Cohen propõe uma radicalização do conceito de atuante “que pode ser desempenhado
por um simples objeto, ou uma forma abstrata qualquer” (ibid.).
Alguns exemplos emblemáticos de atuantes não humanos nas artes visuais podem ser localizados
em experimentos realizados nos anos 1960 e 1970. Em I Like America and America Likes Me,
ação proposta por Joseph Beuys26, em 1974, o artista se dispunha a conviver com um coiote
durante três dias, moldando suas condutas mediante o comportamento do animal selvagem, em
uma galeria de Nova York. Alguns anos antes, Hans Haacke propunha um esculturas cinéticas
nas quais o movimento era gerado por sistemas “vivos”. Em Grass Cube, 1967, um punhado de
grama cresce sobre um cubo de acrílico disposto na galeria, enquanto que em Weather Box,
1963/1964, é possível observar o ciclo de condensação da água no interior de uma peça
translúcida, em resposta ao calor do ambiente. Nas palavras de Haacke, suas obras são “um
agrupamento de elementos sujeitos a um comum plano e finalidade que interajam para chegar a
uma meta conjunta” (Haacke, apud Wroe, 2015).
No início dos anos 1980, Hubert Duprat inicia uma série de experimentos com insetos da ordem
Trichoptera, animais que possuem uma fase imatura aquática e na fase adulta apresentam asas e
grande parte do corpo coberto por cerdas (Duprat & Besson, 1998, p. 176). De acordo com o
artista, o trabalho envolve “a modificação do habitat natural da larva e, mais precisamente, a
substituição dos materiais de construção que ela normalmente encontra (areia, cascalho, raminhos
de plantas, cascas de planorbídeos e de outros caracóis de água) com novos materiais” (ibid., p.
173). Ao inserir as larvas dos insetos em aquários com flocos de ouro e pedras preciosas, Duprat
impele que construam ostensivos casulos de proteção, que são “uma espécie de ready-made
assistido, objetos encontrados alterados e promovidos ao nível de obras de arte” (ibid.). O filósofo
e crítico Christian Besson (ibid., p. 176), em diálogo com Duprat, nos diz que o trabalho do artista
perturba a etologia comum do inseto, introduzindo um ruído que tende a complexificar seu
Umwelt. Ainda de acordo com Besson, “no desvio do comportamento das larvas, na manipulação
artística, o efeito é duplo. Do ponto de vista biológico, um evento aleatório desencadeia a auto-
organização. Do ponto de vista humano, a intenção do pesquisador que produz esse efeito” (ibid.).
A performatividade que acompanha a dimensionalização da experiência estética não apenas
transcende o papel do artista, como também está condicionada a uma série de ações que são


26
JOSEPH BEUYS: ACTIONS, VITRINES, ENVIRONMENTS, 2005, London – UK. Tate Modern,
2005. Site da exposição. Disponível em: <https://www.tate.org.uk/whats-on/tate-
modern/exhibition/joseph-beuys-actions-vitrines-environments/joseph-beuys-actions-4>. Acessado em
junho de 2020.


93

desempenhadas por agentes provindos de outras naturezas. Das contingências desencadeadas


pelas obras acima mencionadas, a temporalidade da ação é um elemento determinante, contudo
esta corresponde a demandas que excedem o período reservado para observação e visitação dos
trabalhos, e mesmo as temporalidades do humano. Embora seja questionável que haja uma
intencionalidade artística nas ações nas ações acima descritas, são os comportamentos e
dinâmicas oferecidos pelo coiote, pela grama que cresce sobre o cubo, pelos ciclos da água e pelas
larvas de insetos que permitem a efetivação dos trabalhos de Beuys, Haacke e Duprat. A
performance e a performatividade não se circunscrevem ao corpo do humano – seja o corpo do
artista ou do público – mas avançam, de modo inelutável, sobre outras formas de existência.
3. O animal não humano na arte contemporânea
Nos trabalhos gerados a partir de tecnologias midiáticas a interação entre humanos, animais e
interfaces adquire contornos inéditos. Diante da recente ambição de se criar uma consciência
artificial, capaz de identificar e solucionar problemas complexos, sem a mediação do sujeito
humano, a consciência animal e sua dimensão estética passam a ser explorada como um modelo
pelos estudos de criatividade computacional. A Exposição de Arte e Estética de Inteligência
Artificial, realizada em 2016, no Instituto Okinawa de Ciência e Tecnologia (Oist), trazia, em
uma de suas alas, pinturas feitas por chipanzés. As obras integravam uma seção intitulada “Arte
de Máquina / Estética de Máquina” que, segundo os organizadores, seria o mais próximo que
podemos chegar de uma arte genuinamente não humana. De acordo com Hideki Nakazawa,
curador da mostra, os animais são capazes de criar sem nenhuma finalidade utilitária, enquanto
obras de arte produzidas por máquinas e algoritmos ainda dependem da formalização de uma série
de instruções (Nakazawa, 2018).
Gupfinger e Kaltenbrunner (2018), artistas-pesquisadores do Instituto de Estudos de Mídia, da
Universidade de Linz, interessados em desenvolver obras de arte sonora que possam ser
executadas por animais, sugerem quatro categorias que buscam explorar o potencial de agência
de entidades não humanas (ibid., p. 3). Para o texto que se segue, a partir da classificação realizada
por Gupfinger e Kaltenbrunner, é proposta uma expansão dos estudos que envolvem a criação
estética com auxílio de animais, de modo a alçar um campo mais amplo, ao tempo que contempla
o uso de diferentes linguagens tecnológicas na mediação entre animais e humanos. Tomando
como base o grau de ação e performatividade desempenhado pelos animais em obras
contemporâneas, são elencadas cinco diferentes categorias, que embora busquem evidenciar a
intensidade de agência dos organismos que compõem a obra, não se configuram em uma
linearidade com relação à evolução tecnológica. São elas: (1) obras que simulam a experiência
animal; (2) o movimento do animal como fonte de controle; (3) o animal como performer
involuntário; (4) animais treinados para realizar ações; (5) animais como performers voluntários.
A primeira categoria obras que simulam a experiência animal não possui correspondência com
as classes enumeradas Gupfinger e Kaltenbrunner, e se define por trabalhos que buscam


94

reproduzir determinados comportamentos do animal, ou mesmo possibilitar a reconstrução


parcial da experiência e, portanto, da consciência não-humana. É o caso, por exemplo, de alguns
dos experimentos em games que utilizam de tecnologias de realidade virtual para colocar o
interator no papel de um animal, simulando comportamentos e sentidos.
Em Desertesejo, trabalho desenvolvido por Gilbertto Prado em 2000, e atualizado nos anos de
2014 e 2018, é incitada a navegação em um ambiente virtual multiusuário em VRML, onde é
simulada uma experiência de se atravessar o deserto do norte do Chile. Em sua interação, o
usuário poderá escolher tomar a forma de um dos três avatares disponíveis: a cobra, a onça ou a
águia. Tais animais não estão representados nas imagens de Desertesejo, mas no ponto de vista
assumido pelo interator. “Se escolhermos a cobra, navegaremos no deserto rastejando na areia
como uma cobra; se escolhermos a águia, sobrevoaremos o deserto como a águia; e, finalmente,
se escolhermos a onça, correremos pelo deserto como esse animal” (Machado, 2018, p. 73).
Já as obras em que o movimento do animal é fonte de controle geralmente envolvem formas
primitivas de vida como bactérias ou outras classes mais simples, como vermes. Uma vez que tais
criaturas possuem capacidades sensórias muito limitadas, não parecem perceber e reagir qualquer
estímulo estético, e sua participação é meramente passiva. Em Genesis, apresentado em 1999 no
festival Ars Eletronica, Eduardo Kac introduz um gene sintético em um conjunto de bactérias
exibidas no espaço expositivo que, ao serem submetidas à luz ultravioleta, sofrem mutações e
alteram o seu código genético (Kac, 1999). Para a criação de seu “gene de artista”, Kac parte da
tradução de um trecho bíblico do livro de Gênesis para código Morse, e depois do código Morse
para DNA (a partir uma equivalência entre o padrão de traços e pontos do Morse aos quatro
constituintes fundamentais do ácido desoxirribonucleico – timina, citosina, adenina e guanina).
A sentença “Deixe que o homem domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre
todos os seres vivos que se movem na terra” é reconfigurada a partir da mutação no corpo das
bactérias e, após a exposição, novamente vertida para o inglês e exibida no site do artista.
Em seus experimentos em bio-arte e ao que chamou de “arte transgênica”, Kac desenvolveu
projetos que alcançaram grande repercussão mundial. Um de seus trabalhos mais emblemáticos
foi o GFP Bunny, realizado em 2000, e que deu vida a Alba, uma coelha verde fluorescente criada
a partir de uma mutação sintética de um gene luminoso encontrado em uma espécie de água-viva
(Kac, 2002, p. 37). A criação de Alba pode ser citada como um exemplo da categoria do animal
como performer involuntário. Neste segmento, os animais desempenham um papel ativo na
efetivação da obra, contudo as ações por eles desempenhadas são involuntárias e, por vezes,
refletem meros automatismos que não expressam qualquer criatividade ou improviso.


95

Em Canções Submersas27, trabalho de Vivian Caccuri apresentado no festival Emoção Art.ficial


4.0, em 2008, o movimento de quatro carpas, dispostas em uma piscina no espaço expositivo,
modifica em tempo real as faixas musicais que são ouvidas pelo público. Cria-se uma “cacofonia
fluida” que pouco tem a ver com a intenção dos peixes, mas é ativada e alterada mediante a sua
performance no espaço. As carpas da instalação sonora assumem o papel de performers
involuntários na co-criação da obra.
Enquanto as demais categorias parecem utilizar da ação animal como inspiração ou impulso
mecânico na ativação de obras predominantemente antropocentradas, os trabalhos que se
encaixam na classe de animais como performers voluntários buscam evidenciar um gesto estético
eminentemente animal, ao ponto de não importar se a produção é agradável para os parâmetros
humanos de arte.
Gupfinger e Kaltenbrunner (2018) se apoiam em pesquisas recentes no campo da biologia
cognitiva focadas no estudo de como os animais ouvem a música humana e como expressam suas
próprias habilidades musicais. Descobriu-se que espécies como papagaios cinzentos, cacatuas,
elefantes, primatas, pombos e carpas são capazes de discriminar entre diferentes compositores e
gêneros musicais, e preferem a música ao silêncio, ao tempo que também movem-se em
sincronicidade rítmica ao ritmo musical (ibid.).
Em Metamusic28, projeto desenvolvido pelos artistas-pesquisadores em parceria com o coletivo
Alien Productions29, são criados instrumentos e ferramentas que proporcionam a produção de
sonoridades eletrônicas por animais não-humanos. Inicialmente pensado como uma ambientação
sonora para os animais em um zoológico, Metamusic tornou-se uma proposta de instalações
sonoras eletrônicas para uso dos próprios habitantes do local. Desde 2012, os artistas, em
colaboração com os papagaios cinzentos do zoológico, têm desenvolvido e modificado
instrumentos para possibilitar a criação musical dos pássaros, adaptando o design dos
instrumentos e suas sonoridades para as habilidades motoras e capacidades sensórias dos
performers não-humanos.
4. Uma arte para (além dos) humanos?
Embora a estratégia possa assentir a existência de um modelo de criação não-humano, seja pela
validação a partir de circuitos de exibição e recepção das obras, ou a partir de uma análise do
potencial criativo de entidades diversas, o modelo de arte que se impõe permanece pautado pela
tradição antropocêntrica de criação de conhecimento. Mas seria possível outro modelo?
A provocação dos experimentos em arte, longe de se lançar em um gesto de cumplicidade à já
esgarçada noção de sujeito, tem se figurado como um contraponto pungente, impelindo dúvidas


27
Registro da obra Canções Submersas, de Vivan Caccuri, disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=4Nc-KVvPLSw>. Acessado em agosto de 2019.
28
Sobre o projeto Metamusic: <http://metamusic.at/>. Acessado em julho de 2019.
29
Mais informações sobre o coletivo Aliens Production disponíveis em: < http://alien.mur.at/>. Acessado
em agosto de 2019.


96

e questionamentos quanto ao homem e seus limites. Neste processo, e mediante a evolução de


dispositivos e sistemas, a tecnologia, mais uma vez, assume o protagonismo de um agente outro,
capaz de pautar a destituição do humano de uma essência de “humanidade” imutável e
inquestionável.
A derrocada do sujeito, destacada na produção intelectual dos anos 1960 e parcialmente atenuada
nas décadas subsequentes, volta a golpear a condição humana no século XXI, a partir das
urgências de uma revisão de seus parâmetros e de uma reformulação ontológica do próprio
homem. Uma das questões que incide sob tal contexto é: haveria algum traço distintivo na
definição da espécie? Ao explorarmos o potencial artístico de seres não humanos, somos
destituídos de uma exclusividade na criação estética. Diante de tal cenário, não há como excluir
a possibilidade de animais ou máquina se revelarem como grandes artistas, ao tempo que também
não podemos afirmar que não possam surgir novas formas de criatividade, ainda não
testemunhadas pelo humano. O campo a ser explorado é vasto, de modo que temos ciência de que
as insinuações aqui apresentadas, estão distantes de uma resolução.

Referências
AGUILAR, Gonzalo; CÁMARA, Mario. (2017) A máquina performática: a literatura no campo
experimental. Rio de Janeiro: Rocco.
COHEN, Renato. (2013) Performance como Linguagem. 3a edição. São Paulo: Editora
Perspectiva
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Performance. Londres : Tate Publishing. p. 23-29.
DUPRAT, Hubert; BESSON, Christian. (1998) The Wonderful Caddis Worm: Sculptural Work
in Collaboration with Trichoptera. Leonardo, Vol. 31, No. 3. p. 173-177
FOSTER, Hal. (2017) O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. Tradução Célia
Euvaldo. São Paulo: Ubu Editora.
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non-human musical expression. Multimodal Technologies Interact. Disponível em:
<https://www.mdpi.com/2414-4088/2/3/51>. Acessado em agosto de 2020.
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Acessado em outubro de 2020.
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<https://revistas.pucsp.br/galaxia/article/view/1265/768>. Acessado em outubro de 2020.
KAPROW, Allan. ([1958] 2009) O legado de Jackson Pollock. In G. Ferreira, & C. Cotrim
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LIPPARD, Lucy; CHANDLER, John. (2013) A desmaterialização da arte. Tradução Fernanda
Pequeno e Marina P. Menezes de Andrade. Arte & ensaios | revista do ppgav/eba/ufrj | n. 25 |
maio 2013. P. 150-165.
MACHADO, Arlindo. (2018) “El desafio de las artes telemáticas”. In: PRADO, Gilbertto; LA


97

FERLA, Jorge. Circuito Alameda. Cidade do México: Artes Visuales.


NAKAZAWA, Hideki. (2018) “O que falta para a inteligência artificial produzir obras de arte?”.
In: Folha de São Paulo, Ilustríssima. 20 de abril de 2018. Tradução Clara Allain. Originalmente
publicado na Revista Nautilus, em 15 de fevereiro de 2018. Disponível em:
<https://goo.gl/BL6Z72>. Acessado em agosto de 2018.
ROSENBERG, Harold. (1952) The American Action Painters. ArtNews. P. 22-50
SALTER, Chris. (2010) Entangled: Technology and the transformation of performance. MIT
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City. Interview. < https://www.theguardian.com/artanddesign/2015/feb/27/hans-haacke-
horseplay-city>


98

Redesign: As projeções audiovisuais na arquitetura paisagística

Redesign: Audiovisual projections in landscape architecture

Daniel Jesus de Souza Prazeres30


Suzete Venturelli31

Resumo
Este artigo se detém sobre o redesign da arquitetura paisagística no espaço urbano através de projeções
audiovisuais realizadas no período de 2018 até 2020, na cidade de São Paulo através das intervenções
artísticas na paisagem urbana. Nesse sentido o redesign sugere redesenhar ou submeter o espaço existente
a novas configurações, que no presente artigo, sugere a partir das projeções audiovisuais, como capaz de
gerar variáveis, com a diferenciação do estado original, renovando-o sem comprometer a totalidade do
espaço existente. Desse modo, pretende-se refletir sobre os elementos de redesign apresentados por Bruno
Latour, Vilém Flusser e Rafael Cardoso. Para o entendimento do espaço recorremos à Raquel Rolnik, Lúcio
Kowarick, Jaime Lerner e Benedito Abbud. Para a compreensão da intervenções urbanas, Anita
Rink,Nelson Brissac Peixoto e das projeções audiovisuais, os conceitos de Suzete Venturelli e Tommaso
Empler.
Palavras-chave: Redesign, arquitetura paisagística, projeção audiovisual, paisagem urbana.

Abstract
This article focuses on the redesign of landscape architecture in the urban space through audiovisual
projections and artistic interventions, carried out from 2018 to 2020, in the city of São Paulo. In this sense,
the redesign suggests redesigning or submitting the existing space to new configurations, which in the
present article, suggests from the audiovisual projections, as capable of generating variables, with the
differentiation of the original state, renewing it without compromising the totality of the existing space. In
this way, we intend to reflect on the elements of redesign presented by Bruno Latour, Vilém Flusser and
Rafael Cardoso. To understand the space we use by Raquel Rolnik, Lúcio Kowarick, Jaime Lerner and
Benedito Abbud. For the understanding of urban interventions, Anita Rink, Nelson Brissac Peixoto and
audiovisual projections, the concepts of Suzete Venturelli and Tommaso Empler.
Keywords: Redesign, landscape architecture, audiovisual projection, urban landscape.

Introdução
Este artigo se detém sobre o redesign da arquitetura paisagística no espaço urbano através de
projeções audiovisuais realizadas no período de 2018 até 2020, na cidade de São Paulo através
das intervenções na paisagem urbana de artistas e coletivos tais como, Roberta Carvalho32,


30
Autor, Daniel Jesus de Souza Prazeres é mestrando em Design pela Universidade Anhembi Morumbi
(PPGDesign). Especializações em Gestão de Projetos e Design de Interiores, graduado em Arquitetura e
Urbanismo. Docente do programa de pós-graduação da Belas Artes e responsável pelo estúdio que leva o
seu nome. <dprazeres@danielprazeres.com.br> ORCID: 0000-0003-4203-1326.
31
Coautora, Suzete Venturelli é professora e artista_designer computacional da Universidade Anhembi
Morumbi (PPGDesign) e Universidade de Brasília (PPGAV). Pesquisadora do CNPq. Coordena o
MediaLab/UAM. Participa de congressos e exposições nacionais e internacionais.
<suzeteventurelli@gmail.com > ORCID: 0000-0003-0254-9286.
32
Roberta Carvalho, estudou artes visuais na Universidade Federal do Pará (UFPA). Foi vencedora de
diversos prêmios, entre eles, o Prêmio FUNARTE Mulheres nas Artes Visuais (2014), Prêmio Diário
Contemporâneo (2011) e Prêmio FUNARTE Microprojetos da Amazônia Legal (2010). Dentre as
exposições coletivas e festivais de arte que já participou, em destaque estão: Periscópio – zipper Galeria
(São Paulo, 2016), 7ª Mostra SP de Fotografia (São Paulo, 2016), Visualismo – Arte, Tecnologia, Cidade
(Rio de Janeiro, 2015), SP ARTE/FOTO (2014), Grande Área Funarte (São Paulo 2014), Pigments
(Martinica, 2013), Festival Paraty em Foco (Paraty, 2012), Tierra Prometida (Barcelona, 2012), e Vivo
Art.Mov (Belém, 2011). Disponível em: < https://www.robertacarvalho.art.br/>Acesso em 03 out. 2020.


99

33 34
Vjsuave e VJ Vigas . Pretende-se contribuir para a compreensão da paisagem construída e
essa interação efêmera que colabora para os sentimentos de pertencimento e identidade cívica.
A arquitetura paisagística consiste na concepção e na interferência da paisagem seja ela construída
pelo homem ou pela natureza (ABBUD, 2007, p.31). Utiliza-se de inúmeros elementos e
ferramentas, que podem ser naturais como vegetação, pedras, madeira, água e sons; construtivos
como piscinas, churrasqueiras, quadras esportivas, pisos, muros, acessos, escadas, iluminação e
sensitivos, aqueles que incitam a visão, o olfato, a audição, o paladar e o tato. Inclui atividades
realizadas em espaços diversos tais como, áreas urbanas, praças, parques e calçadões bem como
ações de requalificação e revitalização do espaço urbano.
Constituiu-se como um campo de atuação profissional no século XIX nos Estados Unidos e na
Europa, particularmente na França, na Inglaterra e na Itália. No Brasil, essa atividade era vista
como uma atribuição do jardineiro, entretanto passou a contribuir na produção do espaço urbano,
pois atribuiu criatividade concebendo espaços com arte e ciência, favorecendo a interação do
homem com o ambiente.
A partir da década 1940 (ROLNIK, 2017,p.37), o padrão das cidades modificaram dado as
mudanças urbanísticas e sociais, como a evasão rural e o crescimento populacional nos centros
urbanos, incluindo o advento do automóvel e verticalização habitacional nos bairros centrais. Em
São Paulo a construção das vias expressas, canalização de rios e demandas de uso do solo,
corroboraram num desafio e novo desenho urbano, sendo a atividade paisagística protagonista e
campo necessário que reflete sobre a modernização dos centros urbanos.
Para o entendimento dessa paisagem, é necessário compreender as ações de mudanças no espaço
urbano, e entre eles aqueles que permite a cidade reagir, criar reações positivas e em cadeia,
portanto, “ajudar a trazer gente para a rua, criar pontos de encontro e, principalmente, fazer com
que cada função urbana catalise bem o encontro entre as pessoas”, (LERNER, 2015, p.45), permiti
ações periódicas e ideias criativas que refletem a consciência das pessoas, sendo o indivíduo,
coautor dessa produção. KOWARICK (2017), apresenta a produção do espaço urbano por meio
das desigualdades e conflitos da metrópole, complementando:
Novamente, convém enfatizar que a possibilidade de se chegar às
melhorias urbanas significativas é bastante restrito, por causa da
enorme anarquia em relação à expansão de nossas cidades. Mas isso
não significa que as políticas urbanas deixaram de ser objeto central
das estratégias integrativas em relação às massas populares urbanas.
Ao contrário, elas são constantemente utilizadas como margem de
manobra para canalizar e amainar as expectativas de amplos

33
VJsuave é composto por duas pessoas os artistas audiovisuais Ceci Soloaga e Ygor Marotta, atuam juntos
desde o ano de 2009, desenvolve projetos que envolve curtas-metragens, performances, instalações e
realidade virtual. Disponível em: <https://vjsuave.com/about/?lang=pt-br>. Acesso em 04 de out. 2020.
34
Leandro Mendes, o como é conhecido na área de projeções audiovisuais, VJ Vigas é um artista
catarinense, que usa luz para desenhar por meio do videomapping. Disponível em:
<https://www.nsctotal.com.br/noticias/leandro-mendes-um-artista-multimidia>. Acesso em 18 de out.
2020.


100

segmentos drasticamente pauperizados. É obvio que o despertar da


questão urbana como problema político decorre de ações
reivindicativas de várias ordens e matizes que numerosos grupos
desenvolvem no cenário de nossas cidades (...). (KOWARICK, 2017,
p.63).

Nesse contexto, as intervenções e as alterações do espaço urbano carregam em sua gênese as


relações do Estado e dos indivíduos na busca de compreender e de preencher o ambiente externo
das nossas cidades, LERNER (2015) e KOWARICK (2017), corroboram que o catalisador das
mudanças da paisagem é o indivíduo seja ele morador, visitante ou transeunte, no qual BRISSAC
(2009), aborda que as intervenções na paisagem urbana no campo da arte, propõem um olhar além
da superfície, sendo ela uma sobreposição de camadas.
Cada obra de arte se apresenta, então, como mero fragmento, uma
minúscula peça arbitraria recortada de um tecido infinitamente mais
amplo. Como se olhássemos a paisagem através de uma janela, o
quadro truncando a vista, mas nunca abalando a certeza de que a
paisagem continua para além dos limites do que podemos ver naquele
momento. (...) A paisagem então deixa de ser aquilo que se oferece lá
ao fundo para se converter no campo, plano e extenso, e, que se
articulam todas as coisas: uma grade. (BRISSAC, 2009, p.11).

A arte que iremos abordar será as atividades no campo da projeção audiovisual, que interage com
a paisagem urbana e propõe a democratização da obra de arte, abrange um público maior e mais
heterogêneo e com base cultural e repertório distinto em diferentes interpretações ou absorção da
obra.
Projeções Audiovisuais
Os avanços tecnológicos da era digital, a expansão da indústria cultural, e dos meios de
comunicações, bem como da globalização e do sistema capitalista, assim, a chamada arte mídia
representa investigações e formas estéticas e poéticas que se utilizam dos recursos tecnológicos
provenientes das mídias digitais, canais de difusão, indústria cultural, propondo alternativas
estéticas, abrindo portas para um processo criativo original e novo. Diante dessa provocação,
surge a projeção audiovisual, transitando do que é factual para o imaginário.
Roberta Carvalho é artista visual nascida em Belém do Pará, desenvolve trabalhos com
manipulação de imagens e videoarte com o objetivo de intervir na paisagem urbana. No ano de
2018 participou do Festival de Luzes de São Paulo35, com o projeto de projeção audiovisual
Symbiosis, que desde meados de 2007, projeta na natureza em copas de árvores e vegetações em
diversos espaços de cidades, numa simbiose de intervenção urbana, natureza, fotografia, vídeo
digital e instalação.


35
O Festival de Luzes de São Paulo, teve início em 2018, apresenta como objetivo ressignificar através de
projeções audiovisuais em monumentos, praças, arquitetura e na vegetação o espaço urbano. Disponível
em: < https://vejasp.abril.com.br/cultura-lazer/video-mapping-projecoes-predios/>Acesso em 03 out. 2020.


101

Figura 1: Festival de Luzes de São Paulo-2018 – Praça Victor Civita. Symbiosis - Roberta
Carvalho (2018)

Fonte: Disponível em: < https://fr-fr.facebook.com/luzes.sp/posts/1761424153970472/ >.


Acesso em 03 out. 2020.
Para compreensão da totalidade dessa intervenção, vamos buscar compreender o contexto no qual
ela foi inserida. A Praça Victor Civita36 está localizada em São Paulo na Rua do Semidouro, no
bairro de Pinheiros, próximo do Rio Pinheiros e de bairros de grande visibilidade como Vila
Madalena, Alto de Pinheiros e Jardins, o local é um antigo incinerador de lixo que estava
desativado e totalmente degradado.
Embora a área estivesse arborizada, seu terreno está contaminado, inviabilizando o uso como uma
praça convencional. Através da parceria do ministério público e da iniciativa privada foi possível
transformar o lugar, através de um projeto de autoria do escritório de Arquitetura Levisky
Arquitetos Estratégia Urbana e o projeto de paisagismo do escritório Benedito Abbud 37, foram
tomadas todas as medidas para garantir aos frequentadores, segurança para o uso do espaço.
Ao considerarmos que o design da arquitetura paisagística transforma o espaço bruto urbano em
um ambiente mais humano, o redesign (LATOUR, 2014), pode ser pensado como a ação de
trabalhar sobre esse espaço, de maneira a transformá-lo, mas, sem descaracterizar estruturalmente
no que havia anteriormente. A utilização do prefixo “re”, trata-se dessa nova ação, assim como


36
O projeto teve início em 2006, numa parceria entre o Instituto Abril e a Prefeitura de São Paulo, sua
concepção aborda temas da sustentabilidade sendo elas a econômica, a cultural e a ecológica. Disponível
em: < https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/09.106/2983 > Acesso em 03 out. 2020.
37
Entrevista da Arquiteta e Urbanista Adriana Levisky apresentando a concepção projetual, da Praça Victor
Civita e a contribuição desse espaço para a cidade. Disponível em:
<https://www.galeriadaarquitetura.com.br/projeto/levisky-arquitetos-estrategia-urbana_/praca-victor-
civita/508>Acesso em 03 out. 2020.


102

colocado nos verbos (re)organizar, (re)formar, (re)aproveitar, (re)significar e (re)formular, entre


outras possibilidades de repetições.

Figura 2: Festival de Luzes de São Paulo-2018 – Praça Victor Civita. Lightart - VJ Vigas (2018)

Fonte: Disponível em: < https:// https://www.instagram.com/vigas_av/ >.Acesso em 03 out.


2020.

Podemos incluir nesse entendimento que a projeção Simbyosis e a projeção do VjVigas, uma
possibilidade de realidade aumentada através do processamento digital, interage com o objeto,
sendo projetado sobre a vegetação e a pavimentação existente. VENTURELLI (2017),
complementa para o entendimento da projeção audiovisual, a interatividade nas relações do
artista/programador, do usuário/espectador.
Sua conexão com o objeto material sendo a projeção, e o imaterial produzido pela mensagem
transmitida, dessa produção de ciberarte se conectando com a cidade real e a cibercidade.
Figura 2: História das vítimas indigena do Covid19 – VjSuave (2020)


103

Fonte: Disponível em: < https://www.instagram.com/vjsuave/tagged/>.Acesso em 03 out. 2020.

Complementa EMPLER (2017), que a percepção da projeção audiovisual e seu impacto na


paisagem urbana, é dada pela velocidade de deslocamento desse indivíduo frente a projeção,
podemos perceber na intervenção da dupla de artistas Vjsuave, que interferiu na paisagem da
Avenida Paulista, com projeções que narram a histórias das vítimas indígenas do COVID-19 38,
através da SuaveCiclo, um equipamento que soma a mobilidade aos aparelhos eletrônicos,
capazes de projetar imagens e sons, nesse contexto “as imagens advindas do mundo material
atuam na psique individual como uma linguagem que afeta a psique e fundamenta as fantasias
pessoais e coletivas” (RINK, 2013, p.40).
A relação do presente ou a reverberação através das telas móveis, que podemos atribuir aos
registros da ação e a publicação em sites ou mídias sociais, no cenário urbano surge para contrastar
com a produção de subjetividade na sociedade.

O design, a projeção audiovisual e o paisagismo


Ao abordar essas transformações, percebemos que a ideia de redesign é pertinente de ser associada
ao espaço urbano e nas práticas paisagísticas no que se refere as ações de reformulação do espaço.
Nesse sentido o redesign sugere redesenhar ou submeter o espaço existente a novas configurações
mudando a paisagem, que no presente artigo, agregamos mais um elemento que sugere a partir
das projeções audiovisuais.


38
O novo agente do coronavírus (Covid-19) foi descoberto em 31/12/19 após casos registrados na
China. Disponível em: <https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca>. Acesso em: 04 out. 2020.


104

Portanto, o redesign paisagístico pode ser tomado como capaz de gerar variáveis, com a
diferenciação do estado original, renovando-o sem comprometer a totalidade do espaço existente,
tornando otimista uma relação comparativa do passado, presente e o fortalecimento da
identificação do espaço no resultado do trabalho.
Para FLUSSER (2017), todo artefato é produzido por meio da ação de dar forma à matéria
seguindo uma intenção no sentido de informar. Podemos aplicar este conceito a algumas vertentes
deste artigo, como o terreno que antecede a Praça Victor Civita, que transmitia a informação de
insegurança, de perigo, de obsolescência de espaço, de descaso político. A ação de projetar a
arquitetura paisagística e ter como resultado a praça, informa sobre a segurança, a valorização
urbana, aproveitamento das áreas da cidade, melhoramento dos espaços públicos e abordagens
sustentáveis. Podemos ressaltar ao espaço da avenida Paulista, que carrega diversos signos e
significados, daqueles que atribuem questões econômicas, políticas e de entretenimento, e que na
intervenção artística contribuem para a conscientização.
CARDOSO (2016), corrobora para o entendimento do design na complexidade do universo da
arquitetura paisagística e da paisagem urbana, e apresenta a cidade sendo constituída por diversos
sistemas interligados e incontáveis elementos num processo de criação e destruição de início e
fim, mas sem que ela venha se extinguir nunca, entende-se como um sistema complexo, de muitas
camadas e estruturas que inter-relaciona-se, sendo um microssomo do mundo. Nesse contexto a
projeção audiovisual surge como uma camada atribuindo mais um elemento ao design do espaço,
há uma relação interligada, entretanto, independentes, trazendo um novo significado ao estado
anterior.
Para LATOUR (2014), o design estende seu olhar para além dos detalhes de artefatos cotidianos,
possui uma visão ampliada do que seus detalhes, ele expande para cidades e paisagens, culturas,
corpos, genes, está em constante reelaboração e transformação. Nesse contexto a cidade e a
paisagem urbana se transformam em consequência do interesse de seus usuários, portanto o uso
da redesign, se faz presente sendo que parte de algo existente.
Contudo, para o entendimento do design da arquitetura paisagística no contexto urbano a partir
das projeções audiovisuais, a base teórica acolhe o pensamento de Vilém Flusser (2017), que
aborda o design dentro da vida cotidiana, na busca incessante do indivíduo pela superação de sua
condição natural, e ao codificar essa experiência busca dar sentido ao mundo dos homens.
A arquitetura paisagista dialoga com esse pensamento, ao proporcionar um ambiente que reforce
a busca de uma naturalidade genuína, que o impulsiona em direção a novas experiências humanas
e com novos significados.
Por fim, os escritos de Flusser, Latour e Cardoso dialogam no entendimento do que abordam a
transição da materialidade da arquitetura paisagística no contexto urbano à imaterialidade da
informação gerada pela projeção audiovisual resultando numa alteração da paisagem urbana e em


105

consequência interferindo na percepção do transeunte, sugerem que o design está diretamente


ligado à linguagem desses significados.

Referências
ABBUD, Benedito., Criando Paisagens Guia de trabalho em arquitetura paisagística. 3°Ed. São
Paulo: Senac, 2007.
BRISSAC, Nelson Peixoto. Paisagens Urbanas. São Paulo: 4º edição, Senac, 2009.
CARDOSO, Rafael. Design para um mundo complexo. São Paulo: UBU Editora, 2016.
EMPLER, Tommaso. Dynamic Urban Projection Mapping. Proceedings 2017, 1, 923.
FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: Por uma filosofia do Design e da comunicação.
Organizado por Rafael Cardoso; Tradução: Raquel Abi-Sâmara; São Paulo: Ubu Editora, 2017.
LATOUR, Bruno. Um Prometeu cauteloso?: alguns passos rumo a uma filosofia do design com
especial atenção a Peter Slotedijk). Agitprop: revista brasileira de design, São Paulo, v. 6, n. 58,
jul./ago. 2014.
LERNER, Jaime. Acupuntura urbana. Rio de Janeiro: Editora Record, 2015.
KOWARICK, Lúcio. Escritos urbanos. São Paulo: Editora 34, 2009.
RINK, Anita. Graffiti: Intervenção urbana e arte / Anita Rink. – 1.ed.- Curitiba: Editora Appris,
2013. 200p.
ROLNIK, Raquel. Territórios em conflito: São Paulo: Espaço, história e política. São Paulo: Três
estrelas, 2017.
VENTURELLI, Suzete. Intervenção do artista no contexto urbano com projeção mapeada
computacional. Comitê de Poéticas Visuais; UNB-Universidade de Brasília, 1999.


106

Janelas Afetivas: espaços de compartilhamento

Affective Windows: spaces of sharing

Daniel Malva39
Clayton Policarpo40
Agda Carvalho41
Edilson Ferri42
Miguel Alonso43
Sergio José Venancio Júnior44

Resumo
Este texto aborda as novas realidades pessoais e profissionais que o isolamento social trouxe, considerando
a proposta artística Janelas Afetivas (2020) elaborada pelo coletivo COM.6, que propõe um diálogo entre
distintas experiências de compartilhamento de mundo. Esta reflexão questiona a intensificação dos diversos
encontros realizados por softwares de videoconferência, ao abordar as relações de encontros por meio de
janelas remotas e as interrelações entre os mundos íntimos com suas nuances e situações reveladas pelas
constantes conexões e exposições de imagem no cotidiano. As variadas rotinas e as mudanças com o
confinamento disparam múltiplos comportamentos diante de telas e dispositivos diversos, e é nesta situação
que as janelas são ressignificadas com novas percepções e entendimentos de mundo. O nosso espaço é o
mesmo, mas o tempo é outro, já que o dia não é mais linear e as atividades aparentemente se repetem.
Palavras-chave: performance, audiovisual, pandemia, videoconferência, privacidade

Abstract
This text addresses the new personal and professional realities that social isolation has brought,
considering the artistic proposal Janelas Afetivas (Affective Windows - 2020), elaborated by COM.6
collective, which proposes a dialogue between different experiences of sharing. This reflection questions
the intensification of meetings carried out by video conferencing software. We take account of the
established relationships in these remote windows, as well as the interrelations between intimate worlds,
each with their nuances and situations revealed by the constant connections and image exhibitions. The
different routines and the changes in confinement trigger many behaviors in front of screens and devices.
In this situation, windows are resignified with new perceptions and understandings of the world. Our space
is the same, but our time has changed, since a day is no longer linear, and all activities apparently repeat
themselves.
Keywords: performance, video, videoconference, pandemic, privacy


39
Daniel Malva: Mestre pelo PPG em Artes do IA - Unesp, São Paulo. Membro do grupo de pesquisa cAt -
ciência/ARTE/tecnologia e do GIIP – Grupo Internacional e Interinstitucional de Pesquisa em Convergências entre
Arte, Ciência e Tecnologia (IA- Unesp). E-mail: info@malva.fot.br
40
Clayton Policarpo: Doutorando (bolsa Capes) e mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD),
PUC-SP. integrante dos grupos de pesquisa TransObjetO (TIDD – PUC-SP) e Realidades (ECA – USP). E-mail:
clayton.policarpo@gmail.com
41
Agda Carvalho: Artista Visual e Curadora. Pós Doutorado em Artes – IA Unesp. Doutora em Ciências da
Comunicação (ECA-USP). Estágio Pós Doutoral no Média Lab – UFG em Humanidades Digitais. Mestre em Artes
Visuais (IA - UNESP). Membro do GIIP: Grupo Internacional e Interinstitucional de Pesquisa em Convergências
entre Arte, Ciência e Tecnologia (UNESP). Docente do Curso de Design do Instituto Mauá de Tecnologia. E-mail:
agdarcarvalho@gmail.com.
42
Edilson Ferri: Artista e Arquiteto. Mestre em Poéticas Visuais (UNICAMP). Docente da Faculdade Impacta
Tecnologia São Paulo. Membro do GIIP: Grupo Internacional e Interinstitucional de Pesquisa em Convergências
entre Arte, Ciência e Tecnologia (UNESP). E-mail edilsonferri@gmail.com
43
Miguel Alonso: Artista plástico e arte educador, doutorando pelo PPGAV - ECA/USP. Mestre pelo PPG em Artes
da UNESP. Educador de Tecnologias e Artes no SESC - São Paulo. Formado em bacharelado e em licenciatura em
Artes Visuais na UNESP. Membro dos Grupos de Pesquisa Realidades (ECA – USP) e GIIP (IA/UNESP). E-mail:
miguelalonso@usp.br
44
Sergio José Venancio Júnior: Doutorando em Poéticas Visuais (ECA USP), bolsista CAPES PROEX. Mestre em
Artes Visuais (ECA USP). Membro do Grupo de Pesquisa Realidades (ECA – USP). Docente do Curso de
Especialização em Design Gráfico (IA Unicamp) e da Pós-Graduação em Arquitetura Digital (Belas Artes SP). E-
mail: svenancio@usp.br


107

Introdução

O projeto Janelas Afetivas, de autoria do coletivo COM.6, emerge como uma reflexão em
processo sobre o atual cenário marcado pela migração de ocupações cotidianas para espaços
digitais, desencadeada pela pandemia do SARS-COV2, em 2020. Em uma tentativa de formular
uma leitura poética da experiência de uma reconfiguração de hábitos e rotinas mediadas por
computadores e telas, o trabalho reúne os integrantes do COM.6 em uma transmissão em tempo
real, onde gestos performativos são transmutados em sons, texturas e sobreposições gráficas, de
modo a estabelecer diálogos não-verbais entre os diferentes agentes que compõem a ação. No
intuito de contextualizar a proposta e alçar uma compreensão ampla acerca do impacto
ocasionado pela consolidação de ferramentas de comunicação no cotidiano, o presente texto
propõe realizar um breve retrospecto das relações entre seres humanos, tecnologia e lugar vivido.
Buscamos entender os reflexos de uma dissolução das fronteiras entre público e privado, a partir
da leitura de alguns artistas que utilizam linguagens tecnológicas em seu processo de criação e
que dialogam com estas questões.
O texto também explora um mecanismo que permite a prática de poéticas visuais baseadas em
tecnologias audiovisuais em rede. Tais recursos oferecem possibilidades de exploração de
diálogos corporais e visuais de forma remota, por meio de plataformas de videoconferência. Estes
diálogos são captados, modificados e transmitidos por meio de um software de edição ao vivo e
um site de exibição em sistema streaming. Deste modo, enfatizamos o atravessamento da
tecnologia nos modos de vida e a ressonância da diversidade de produções artísticas, que no
momento atual, vivenciam o entrecruzamento do espaço físico e remoto, bem como a
intensificação de processos colaborativos que estão compartilhados na rede.

1. Preâmbulo para a ação em rede


No primeiro semestre de 2020, em virtude da urgência sanitária ocasionada pela propagação do
coronavírus, os serviços tidos como não essenciais – comércios, restaurantes, escolas etc. –
tiveram suas atividades presenciais interrompidas, sendo forçados a operar de maneira remota.
Atividades sociais que formaram ao longo do século passado nossa relação com o que
consideramos cotidiano. O uso das tecnologias passa a moldar, de maneira radical, nossos hábitos
de sociabilização e as diferentes maneiras que dispomos para experienciar a paisagem das cidades.

Condicionada na modernidade à noção de encontro físico nos espaços públicos


das cidades, a concepção de experiência corporalizada faz convergir outros
vetores e endereçar expectativas de natureza diversa no contexto atual, em que
as ações e as comunicações se realizam crescentemente em ambientes virtuais,
mediadas por telas e interfaces informacionais (Fatorelli, 2013, p.101).


108

Embora não se possa negar que existam contrastes econômicos e sociais no acesso a equipamentos
e serviços de conexão, o atual panorama tecnológico permite que atividades de trabalho, estudo,
lazer sejam mediadas por telas e dispositivos. Adicionalmente, trazem novas responsabilidades e
ampliam os campos de discussões que dizem respeito às relações humanas.
Ao tempo que percebemos uma confluência de rotinas para um mesmo suporte, rompem-se as
barreiras, antes já desgastadas, entre o público e o privado e entre o profissional e o pessoal. A
não separação entre os espaços que contemplam as diversas atividades que realizamos,
configuram o tempo da vida enquanto uma continuidade das obrigações de trabalho e lazer. Como
pontuado por Marcus Bastos (2020), temos a impressão “que as atividades feitas fora de casa
funcionam como uma espécie de baliza que organiza o relógio das pessoas, e ficar em casa resulta
numa situação em que aos poucos não fica mais tão clara a diferença entre a manhã, a tarde, a
noite, o dentro e o fora.” (ibid., p. 11). Esta situação de espaços múltiplos e simultâneos, a
indeterminação do tempo, que agora é flexível e a potencialização da vivência do
compartilhamento remoto são questionamentos que fundamentam a ação performática online
Janelas Afetivas, já que a tecnologia reverbera no meio em que se insere, ao tempo que
desencadeia novos hábitos e rotinas no sujeito.
Observa-se que, com o rádio, a televisão e o telefone, o mundo a nossa volta adquiriu uma leitura
não linear, o que tornou natural a absorção de novas linguagens advindas da rede (Di Felice, 2009,
p. 150). O debate acerca do impacto da eclosão de tecnologias em rede permeou pesquisas nas
áreas de desenvolvimento, comunicação, humanidades e artes. Com a evolução dos meios de
comunicação e a ampla disseminação de dispositivos móveis, as distinções entre físico e virtual
cedem espaço para uma inextricável mescla de experiências mediadas por ferramentas digitais.
As dificuldades de acesso à rede, antes impostas pelas limitações de tecnologias e infraestruturas,
são dissipadas para um modelo de conexão e disponibilidade ininterruptas. Com a popularização
dos smartphones, tablets e computação pervasiva – dispositivos que, em sua discrição,
permanecem invisíveis aos usuários, ao tempo que são capazes de configurar ações nas cidades –
a tecnologia passa a operar inerente à própria urbe. Neste contexto, irrompem as delimitações
dualistas entre espaço digital e físico, entre o presencial e o virtual, e geram-se campos de
intersecção que recebem nomes como espaço intersticial (Santaella, 2010), território
informacional (Lemos, 2011) e espaço cíbrido (Beiguelman, 2004).
O chamado “novo normal” é parte de um percurso que se inicia já nos primórdios da difusão de
computadores pessoais e serviços em rede. Com a digitalização da vida, e uma série de novos
métodos e procedimentos, é instaurado um regime de disponibilidade constante. Frente aos
impactos da crise sanitária do coronavírus são exigidas reações rápidas e a mobilização de
múltiplos setores da sociedade. A imposição de novas dinâmicas para o trabalho remoto, a ampla
digitalização de serviços – potencializadas pelas restrições de circulação no período (PWC
BRASIL, 2020) –, o uso de dispositivos para monitorar e rastrear os pacientes infectados pelo


109

COVID-19 são algumas das práticas mediadas por tecnologias que, ao serem adotadas como
tentativa de conter os impactos ocasionados pela pandemia, também incitam debates quanto aos
limites de privacidade e vigilância em uma sociedade hiperconectada. A nossa casa passa a figurar
como cenário para a transmissão de aulas, reuniões de trabalho, programas de TV, telejornais. As
oscilações do serviço de internet, os vídeos em baixa resolução e a pouca formalidade dos
ambientes domésticos repercutem situações inusitadas que contrastam com a formalidade que é
comumente exigida nos espaços de trabalho. Desse modo observa-se uma dissolução peremptória
do limiar entre “público” e “privado”, ao tempo que emergem reflexões sobre o tema, provindas
de diferentes campos do conhecimento.
2. O apagamento das fronteiras entre público e privado: experimentações nas artes
Nas últimas décadas, diversos artistas têm se empenhado em desenvolver proposições estéticas
que se propõem em desvelar novas camadas da tecnologia, por vezes não idealizadas em sua
concepção e consolidação. A onipresença das redes que passam a abarcar os diversos aspectos da
vida, ao ponto de embaralhar as definições de intimidade, são com frequência abordadas em obras
que utilizam as linguagens tecnológicas em seus processos de criação e difusão.
A dissipação entre fronteiras de “público” e “privado”, a partir do uso da tecnologia, remonta a
algumas das práticas precursoras da arte da performance. Bem como o registro do ambiente
particular com o uso de aparatos audiovisuais passa a ser um recurso comum na produção em
arte, de forma a configurar a estrutura de composição dos trabalhos artísticos. Entre os anos 1960
e 1970, diversos artistas buscaram explorar o potencial performativo da câmera de vídeo, no
registro de ações centradas no próprio corpo e em sua interação com um espaço imediato do ateliê.
Os trabalhos realizados pelos artistas precursores da videoperformance concentravam-se na
potência indicial da ferramenta. Eram comuns peças que registravam ações cotidianas encenadas
em espaços privativos, “o conjunto técnico de câmera e monitor tornou-se instrumentos para
gravar e revelar ações privadas dentro do estúdio dos artistas que não eram necessariamente
designadas para serem exibidas ao público” (Salter, 2010, p.123). As câmeras e monitores nas
performances agem como um novo espelho que exibe um rosto e um corpo transformados,
reduzindo ou avançando a velocidade, acelerando ou retrocedendo no tempo (ibid.).
Em Walking in an Exaggerated Manner Around the Perimeter of a Square, de 1968, Bruce
Nauman caminha colocando um pé frente ao outro com um movimento pronunciado de seus
quadris, seguindo o perímetro de um quadrado desenhado com fita adesiva no piso de concreto
de sua sala. Com duração de dez minutos, o vídeo capta a ação de Nauman a partir de um ponto
fixo e, a despeito de sua aparente simplicidade, incita uma ruptura com convenções do cinema,
televisão e arte. No Brasil, uma das obras considerada precursora na videoarte é Marca
Registrada, de 1975, realizada por Letícia Parente. A artista, munida de uma câmera, registra o
ato de “bordar” na sola do pé as palavras “MADE IN BRAZIL”. Na leitura de André Parente
(2014), a obra da artista “é marcada pela ideia de extrair do corpo uma imagem que nos dê razão


110

para acreditar no mundo em que vivemos. Os vídeos dessa artista são, cada um deles, preparações
e tarefas por meio das quais o corpo revela os modelos de subjetividade que o aprisionam” (ibid.).
A performance, executada sem uma audiência específica, atribui à documentação o status de obra.
Gravado em um plano sequência em um espaço doméstico, Marca Registrada faz uma analogia
a uma ocupação tradicionalmente feminina, o ato de bordar, ao tempo que “revela o processo de
coisificação do indivíduo” (ibid.).
Entre os anos 1980 e 1990, Sadie Benning desenvolve o trabalho If every girl had a diary, a partir
de vídeo-diários produzidos durante o período em que estava no colégio. Em uma série de
registros a jovem estabelece uma interlocução com sua câmera de brinquedo Fisher-Price, onde
revela suas inseguranças e conflitos em um processo de construção de personalidade. Ao assistir
os relatos de Benning somos tragados por um campo de visão íntimo, com imagens em close e
por vezes completamente ininteligíveis, que pressagiam as redes sociais de compartilhamento de
vídeos como o YouTube e, mais recentemente, o TikTok.
Com as tecnologias em rede e a proliferação de páginas pessoais, blogs e redes de sociabilização,
é promovida uma cultura de compartilhamento e de narrativas em primeira pessoa, o que faz com
que os limites entre público e privado se tornem ainda mais tênues. Enquanto a mídia de massa
se conformou como um meio unidirecional de transmissão, onde a influência do espectador pouco
interferia no formato dos conteúdos produzidos pelas emissoras de rádio e televisão, com a web
é apresentada a possibilidade dos usuários se colocarem como criadores em potencial. Munidos
de equipamentos capazes de produzir, armazenar e compartilhar conteúdos em diferentes
linguagens, o sujeito do século XXI permanece em hiperconexão e em um estado de alerta
constante.
Com as facilidades oferecidas pela integração de câmeras aos dispositivos móveis, que
também dispõem de acesso à internet, uma infinidade de proposições estéticas passa a
utilizar a rede como vitrine e promovem uma revisão dos modelos institucionalizados
de exibição. Uma das marcas de nossa época é a cultura de captura e
compartilhamento de imagens de si. Contas de Instagram reúnem projetos biográficos,
hedonistas e críticos, em uma profusão de narrativas. (Policarpo, 2020).

Estas possibilidades abriram precedentes de discussões e produções na arte, em que artistas se


apropriam destas ferramentas e utilizam sua causalidade como uma linguagem crítica ou para
compartilhar suas posições perante assuntos contemporâneos. Enxerga-se que essas novas
maneiras comportamentais extrapolam as transformações ambientais e contaminam o
comportamento ao criar, para estes novos ambientes, possibilidades de múltiplas existências.
O rompimento com uma suposta privacidade e os mecanismos de vigilância da tecnologia estão
presentes na obra Casa Aberta, 2009, de Claudio Bueno. Apresentado em diferentes ocasiões, o
trabalho se configura como uma instalação onde o visitante pode assistir uma transmissão de
vídeo realizada a partir da residência e do ateliê do artista. Além da situação absolutamente trivial
que o projeto oferece ao evidenciar o “aspecto ordinário e desinteressante da vida cotidiana”


111

(Bueno, 2009), o público também pode interferir na rotina do espaço privado: com uma chamada
de celular é possível ligar, desligar ou trocar os canais da televisão que integra o enquadramento
voyeurístico. Em texto curatorial da exposição “Demasiada Presença”, 2009, na Escola São Paulo,
Christine Mello coloca que as experimentações em arte e tecnologia propiciam uma ampliação
da noção de presença e, com isso, apontam para uma nova dimensão.
Traz-nos a dimensão de um espaço conectado a temporalidades simultâneas, cuja
natureza presencial é transitória, híbrida, entre a presença física e a virtual, entre o
lugar fixo e o móvel. Acentuam processos de interação entre diferentes espaços. As
experiências da arte nesse contexto promovem ações em espaços fluídos e intensificam
o desejo de presença, de tomar contato. Seus sentidos associam a vontade de estar
conectado à coexistência da esfera pública-privada. (Mello, 2009, n.p.)

Em 2010, Eva e Franco Mattes propõem explorar uma suposta banalização e perversidade
instituída nas relações de exibicionismo e compartilhamento, presentes no cerne da web 2.0. Em
No Fun, os artistas mostram o registro em vídeo da reação de um público involuntário a uma cena
de suicídio, encenada no ambiente de bate-papo por vídeo Chatroulette. A plataforma oferece um
emparelhamento aleatório entre os seus usuários, no intuito de forçar uma sociabilização e incitar
a vicissitudes de impulsos de voyeurismo e exibicionismo, onde permanecemos em um estado de
contemplação ou de reafirmação de um ego narcísico. Ao serem defrontados com uma ação
inusitada, como o suicídio teatral de Mattes, os usuários expressam pânico, desprezo, indiferença
e mesmo se excitam com a situação.
Esta experiência de onipresença da tecnologia, atravessa uma diversidade de atividades artísticas,
inserida nas intimidades cotidianas, dialoga com a proliferação de informações e está conectada
com o mundo ao redor. É uma situação que nos aproxima dos acontecimentos e fenômenos
públicos, e de certa forma, mistura o que é público e privado.
3. Processo e poética do projeto Janelas Afetivas
O coletivo COM.6 é criado em 2017, com o encontro de artistas-pesquisadores interessados em
trabalhar questões acerca do corpo e corporalidades possíveis mediadas pelo ambiente digital.
Algumas das principais questões que tangenciam as pesquisas e interesses comuns dos integrantes
passam a compor a sigla que nomeia o grupo (Corporalidade, Oralidade e Matéria = COM.6).
Desde então o grupo se reúne e produz obras artísticas e textos acadêmicos. Em virtude da
dificuldade em conciliar a agenda de compromissos dos integrantes, que desenvolvem outras
atividades profissionais e acadêmicas, a maioria dos encontros do coletivo, desde sua origem, tem
acontecido de modo remoto. Dessa forma, podemos dizer que o processo de criação em ambientes
online de compartilhamento, que passa a ser exigido em um contexto pandêmico, já figurava em
boa parte do processo de criação e desenvolvimento de projetos do coletivo. As dinâmicas de
trabalho remoto e as reflexões incitadas pelos embates entre distância e proximidade estão no
cerne da produção do grupo.


112

Janelas Afetivas surge como uma proposta de reapropriação de tecnologias em rede para
realização de experimentações audiovisuais em tempo real que, ao tempo que proporcionam
diálogos não-verbais entre os integrantes do coletivo COM.6, são transmitidas ao vivo para o
público via YouTube. Partimos da observação da confluência de rotinas diárias para as telas dos
dispositivos, em plataformas de videoconferência (Google Meet, Microsoft Teams, Zoom) que
ordenam os participantes em uma disposição de pequenas “janelas”. Tais interfaces lembram
tabuleiros — nelas vemos os nomes dos participantes, seus rostos e os cenários de suas
intimidades — e instauram um novo paradigma de sociabilização para o ano de 2020. Em um
exercício de desconstrução dos limites rígidos desse enquadramento imposto reside o projeto
Janelas Afetivas.
O mundo da simulação transforma o computador em um laboratório para a construção
de ensaio de identidades múltiplas, mas integradas, cuja flexibilidade, reversibilidade
e satisfação se apoiam em ter acesso à vontade a muitas personalidades diferentes
(Fontcuberta, 2012, p. 183)

Em formato de apresentações online, até então realizadas com duração entre 5 e 13 minutos, os
integrantes do coletivo realizam microperformances e ações de caráter performativo que
correspondem ao repertório particular de práticas diárias e intenções de cada artista. Ainda que o
improviso e o acaso sejam desejáveis na realização das "sessões" do trabalho, cada apresentação
é composta por uma sequência de procedimentos: 1) um encontro prévio entre os integrantes do
COM.6, para definição de temas que irão estimular e disparar as ações individuais na
apresentação; 2) desenvolvimento da composição sonora que guiará a apresentação, elaborada
com antecedência a partir de ruídos cotidianos e mixada por Daniel Malva; 3) encontro/atuação,
momento no qual os artistas realizam e transmitem suas ações individuais em um grupo fechado,
através de uma plataforma de videoconferência; 4) manipulação digital em tempo real das
imagens enviadas pelos performers e transmissão para o público via YouTube, com o auxílio do
software open source OBS (Open Broadcaster Software) por Miguel Alonso. Estas experiências
compartilham o mundo íntimo de cada um dos integrantes e na composição de mundos criam-se
outras sensações da realidade. Como aponta Fattorelli:
As tecnologias digitais instauram uma nova noção de realidade, e não o fim do real.
Uma realidade fragmentada, construída, dependente das interfaces e subordinada aos
procedimentos de modelização e de simulação, produto e efeito de novas partilhas entre
o ver e o saber, entre o visível e o invisível. (2013, p. 101)


113

Figura 1 - Janelas Afetivas, coletivo COM.6 e participação de Cleomar Rocha. Frame da gravação.
Performance online realizada em 21 de outubro de 2020 - Hub Eventos, Media Lab. Disponível em:
https://youtu.be/sbF6BUwCzA4. Acesso em 26/10/2020.

Ao mesmo tempo em que abrimos nossas intimidades, também somos invadidos por uma imensa
quantidade de informações. Estar conectados nos traz a sensação de responsabilidade para
resolver todas as demandas e cobranças de ações e resultados. Estas por sua vez rompem as
fronteiras físicas, portanto somos a todo instante expostos aos acontecimentos do mundo. Não só
compartilhamos e recebemos as intimidades alheias, mas também compartilhamos subjetividades.
É importante ressaltar que as discussões foram provocadas inicialmente por Bachelard (2008) e
misturadas com as vivências e referências de cada artista. Desta forma, o comportamento
performático e a representação do espaço configuram o canto do mundo dos participantes da
proposta.
Como é que aposentos secretos, aposentos desaparecidos, transformam-se em moradas
para um passado inolvidável? A casa nos fornecerá simultaneamente imagens
dispersas e um corpo de imagens, em ambos os casos provaremos que a imaginação
aumenta os valores da realidade (Bachelard, 2008, p. 23).

O espaço habitado, quando compartilhado, é outro, está além da realidade ao misturar-se com
outros mundos no imaginário. Este espaço está contaminado pelo mundo, mas ainda é o nosso
universo. A casa ainda é o abrigo, mas agora, em alguns momentos, compartilhamos vestígios
deste lugar. O lar se torna caminho deste fluxo de trocas entre os elementos internos e externos
ao corpo, que outrora habitavam outros lugares que não necessariamente faziam parte do ambiente
residencial. Agora, elementos cotidianos da casa e da vida doméstica também dialogam. Estes
movimentos são intermediados pelos componentes eletrônicos, que ganham no ambiente
residencial os papéis desempenhados anteriormente nos âmbitos profissional, acadêmico, social,
suprindo também as limitações de deslocamento.


114

O tempo é impreciso em uma proposta como Janelas Afetivas. O tempo da ação não é o mesmo
da recepção, pois é o tempo contaminado das transmissões, das perdas e falhas da movimentação
de dados, das limitações de processadores e memórias. É preciso lidar com as assincronias que
encurtam e dilatam as narrativas: cada membro provoca e espera, escuta, vê, imagina, e finalmente
reage às ações dos outros. Tal mistura performática gera derivações de nós mesmos em
ressonância ao tempo dos outros e das máquinas.
Uma vez amalgamados pelos diálogos não-verbais e intimidades compartilhadas, o eco imagético
dos encontros proporciona a diluição das janelas conformadas em videoconferência. Através de
distorções de cores, recortes e sobreposições, criam-se colagens audiovisuais que permitem
combinações ativas e fusões entre os vídeos transmitidos pelos artistas, de forma a romper com a
estética estéril das plataformas de reuniões, subvertendo algumas das convenções que se
estabeleceram para os encontros remotos desse período pandêmico.
Enquanto proposição poética, Janelas Afetivas não se encerra como uma obra em si, mas
desdobra-se em uma série de apresentações45. A cada apresentação, um experimento se instala na
rede, um trânsito entre as camadas dos ambientes remotos que se expandem em devaneios e
resultam em intersubjetividades.

Considerações Finais
A exacerbação de gestos cotidianos e íntimos frente às webcams incita a recuperação de debates
acerca do processo de revisão dos espaços privativos como locais de refúgio. A contínua cobrança
de ações e resultados, a qual somos submetidos quando conectados à rede, não permite que sejam
mantidas fronteiras rígidas entre as dimensões público/privado da realidade, enquanto que o
excesso de "janelas" e conexões podem gerar angústia e cansaço. A disrupção entre espaços
públicos e privados, explorada nos experimentos precursores da videoperformance e nos
trabalhos de Sadie Benning, Claudio Bueno, Eva e Franco Mattes, é elevada à potência diante das
ferramentas disponíveis e da vivência compartilhada, em uma situação de exceção, que padroniza
a rotina de uma parcela considerável da população mundial. Enquanto a abertura dos espaços
privativos dos artistas pioneiros da performance se dá de uma maneira sutil, que não aprofunda o
debate sobre o tema, a indiscrição da câmera nos demais trabalhos anteriormente mencionados
trazem a angústia e as dúvidas de uma adolescente, o fetiche de invadir a intimidade do artista e
as diferentes reações diante de um terror encenado, que oscilam do desespero ao sarcasmo. Em


45
Nos dias 17 e 24 de setembro de 2020, às 14h, a ação foi transmitida no evento Zonas de Compensação 7.0,
organizado pelo GIIP, Grupo Internacional e Interinstitucional de Pesquisa em Convergências em Artes, Ciências e
Tecnologias. (Instituto de Artes da Unesp, Campus São Paulo, SP). (https://youtu.be/RW4cnN7pLyQ?t=1627.
Acesso em 26/10/2020).
No dia 21 de outubro de 2020, às 20h, Janelas Afetivas é realizada e exibida como parte da programação de
performances da exposição EmMeio#12, no Hub de eventos organizado pelo Media Lab UFG, PUC-SP e
Universidade Anhembi Morumbi. A ação na mostra EmMeio#12 contou com a participação do professor Dr.
Cleomar Rocha. (https://youtu.be/sbF6BUwCzA4. Acesso em 26/10/2020)


115

diferentes graus é exposta uma hostilidade inerente às performatividades exibicionistas e


voyeuristas que hoje habitam as redes. A proposta de Janelas Afetivas é avessa a essa hostilidade,
agora manifestada na dureza e antipatia que as plataformas de videoconferência ocasionam. A
cada apresentação é instaurado um novo evento, uma celebração desconexa que pode ser vista
como uma certa ludicidade socioemocional diante o atual cenário.
Janelas Afetivas ocorre diante de um momento de exaustão pelo uso de tecnologias de
comunicação síncrona e remota, um cenário cuja dinâmica envolve o ligar e desligar de câmeras
e microfones a todo momento, bem como lidar com as preocupações e situações domésticas, que
agora estão misturadas às formalidades profissionais, ocasionando confusões na percepção de
tempo e espaço. Em situação de isolamento, a casa se transmuta em confinamento, e os softwares
de videoconferência acabam se tornando uma das poucas alternativas de experiência social, a
maioria das quais são inevitáveis por motivos de trabalho, estudo ou resolução de burocracias do
cotidiano. O esgotamento se amplifica pela rigidez e frieza de janelas digitais brilhantes que
compartimentam existências enquanto ressecam nossas visões e pontos de vista. A eterna
negociação social entre o que se é, o que se quer ser e o que se aparenta ser se dilui: não há como
sustentar tais diferenças nesse emaranhamento entre público e privado que altera o mundo íntimo
e, muitas vezes, interfere no corpo físico.
Mas nos resta o afeto, o querer estar e criar juntos. As mesmas tecnologias que nos cansam
permitem outros modos de afetividade e criatividade. O afeto supera a burocracia, o comum, nos
distancia das monotonias cotidianas, faz com que vontades sejam externalizadas e que o privado
e íntimo se tornem públicos como um discurso político, pois afetamos os outros e somos afetados.
Janelas Afetivas assume os julgamentos e riscos de tais situações, mas os subverte em forma de
proposição poética compartilhada. São alternativas para se viver o "novo normal".

Referências
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Bastos, Marcus. (2020) Através da janela: vídeo online em dias de tempos e espaços
desarticulados. In Grupo de Estudos Humanidades Computacionais. Instituto de Estudos
Avançados da Universidade de São Paulo. Recuperado em 26 de outubro, 2020, em
http://www.iea.usp.br/publicacoes/ensaios/atraves-da-janela-video-online-em-dias-de-tempos-e-
espacos-desarticulados
Beiguelman, Giselle. (2004) Admirável mundo cíbrido. Recuperado em 26 de outubro, 2020,
em https://www.academia.edu/3003787/Admir%C3%A1vel_mundo_c%C3%ADbrido
Bueno, Claudio. (2010) Casa Aberta. Recuperado em 26 de outubro, 2020, em
http://buenozdiaz.net/index.php/project/casa-aberta/
Di Felice, Massimo. (2009) Paisagens pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as formas
comunicativas de habitar. Annablume, São Paulo.
Fatorelli, Antonio. (2013) Fotografia contemporânea: entre o cinema, o vídeo e as novas
mídias. Senac Nacional, Rio de Janeiro.
Fontcuberta, Joan. (2012) A câmera de pandora: A fotografi@ depois da fotografia. Ed. G.
Gilli, São Paulo.
Lemos, André. (2011) Cultura da mobilidade. In: Nomadismos tecnológicos. Editora Senac, São
Paulo.


116

Mello, Christine. (2009) Demasiada Presença. Texto curatorial para a exposição realizada na
Escola São Paulo.
Parente, André. (2014) Alô, é a Letícia? In Revista Performatus, ed. 08, ano 2. Recuperado em
26 de outubro, 2020, em https://performatus.com.br/estudos/leticia-parente/
Policarpo, Clayton. (2020) Breve genealogia do retrato queer/cuir. In Vulgar. Ed. Do Autor, São
Paulo (no prelo).
PWC Brasil. (2020) Relatório Anual PricewaterhouseCoopers Brasil 2020. Recuperado em 30
de outubro, 2020, em
https://www.pwc.com.br/pt/publicacoes/assets/2020/relatorio_anual_20.pdf
Salter, Chris. (2010) Entangled: Technology and the transformation of performance. MIT Press,
Cambridge.
Santaella, Lucia. (2010) A ecologia pluralista da comunicação. Paulus, São Paulo.


117

A sexta extinção massiva de espécies em “O Sonho dos Deuses”: conexões criativas entre
quadrinhos, escultura e performance

The sixth mass extinction of species in “O Sonho dos Deuses”: creative connections between
comics, sculpture and performance

Edgar Franco46

Resumo

Os chamados quadrinhos expandidos (FRANCO, 2017) englobam todos os novos formatos


hipermidiáticos, mas também HQs publicadas em suporte papel que foram gestadas a partir de
ENOC – estados não ordinários de consciência (MIKOSZ, 2014) ou outros métodos não usuais.
Esse artigo trata do processo criativo da “HQ-escultura” (MACHADO, 2017) “O Sonho dos
Deuses”, desdobramento transmidiático de um ato performático do grupo Posthuman Tantra,
baseada numa experiência de ENOC e também inspirada em pesquisadores que têm denunciado
a sexta extinção massiva de espécies no planeta, sendo que ela tem como causa a ação devastadora
humana sobre a biosfera. Dentre esses pesquisadores destaco o cientista inglês James Lovelock
(2010), o cientista da computação Stephen Emmott (2013) e a jornalista estadunidense Elizabeth
Kolbert (2015). Todos são categóricos em apontar o iminente colapso de nossa espécie como
consequência da devastação de Gaia.

Palavras-chave: Quadrinho Expandido, Sexta Extinção, Processos Criativos.

Abstract

The expanded comic field encompasses all new hypermedia formats, but also comic books
published on paper that were generated using unusual methods. This paper deals with the creative
process of comic book “O Sonho dos Deuses”, a transmedia development of a performance act
by the group Posthuman Tantra, based on an non-ordinary states of consciousness (MIKOSZ,
2014) experience and also inspired by researchers who have denounced the sixth mass species
extinction on the planet, the cause of which is the devastating human action on the biosphere.
Among these researchers I highlight the scientist James Lovelock (2010), the computer scientist
Stephen Emmott (2013) and the American journalist Elizabeth Kolbert (2015). All are categorical
in pointing out the imminent collapse of our species as a result of the devastation of Gaia.

Keywords:Expanded Comic, Sixth Extinction, Crative Processes..

Quadrinhos Expandidos e ENOC

Para iniciar esse artigo é muito importante que eu resgate um conceito desenvolvido por mim no
livro “Quadrinhos Expandidos: das HQtrônicas aos Plug-ins de Neocortex” (FRANCO, 2017).
Nessa obra eu explico a conceituação daquilo que chamo de “HQ Expandida”, ou “quadrinho
expandido”. Sua concepção extrapola a ideia de “campo expandido” como rompimento de
fronteiras artísticas definidas tradicionalmente encontradas no texto seminal Sculpture in the
Expanded Field, escrito em 1979 por Rosalind Krauss. Também não me limito à convergência


46
Edgar Franco é o Ciberpajé, artista transmídia com pós-doutorados em artes pela Unesp e UnB, doutorado em artes
pela USP, e mestrado em multimeios pela Unicamp. Atualmente é professor do Programa de Pós-graduação em Arte
e Cultura Visual da UFG, Brasil. edgar_franco@ufg.br


118

midiática. O termo HQ Expandida foi utilizado pela primeira vez por Gazy Andraus para nomear
o seu trabalho Convergência, uma HQtrônica realizada a partir da filmagem da HQ homônima.
Andraus especifica a conexão direta do termo com as HQtrônicas quando diz:

Nessa “Arte Sequencial” ou “Nona Arte” expandida a transposição


vai além como uma arte híbrida unindo simulação mínima de
movimento com som para ela elaborado, tal qual uma HQtrônica. Ou
então, aproxima-se tal arte aos desenhos expandidos, podendo ser
também classificada como “HQ Expandida”, ao sair da publicação
bidimensional, podendo ser projetada em outros locais (como no
Cinema Expandido) (ANDRAUS, 2014, p. 887).

No entanto, a ideia de HQ Expandida proposta por mim no livro (FRANCO, 2017) não envolve
apenas novos formatos como as HQtrônicas, as VideoHQesculturas (MACHADO, 2017) e os
HQGIForismos. Apesar de englobá-los, extrapola os novos formatos de difusão e linguagens
emergentes e pensa o conceito expandido como articulação dos quadrinhos com novas formas de
saber através de processos criativos inusitados utilizando ferramentas criativas não ortodoxas
como os ENOC – estados não ordinários de consciência – através de métodos diversos como uso
de enteógenos, Respiração Holotrópica, e também criação ritual usando a técnica da magia de
sigilos. Desse modo o campo da HQ Expandida engloba HQtrônicas e todos os novos formatos
hipermidiáticos, as chamadas HQ-esculturas e Escultura-HQs (MACHADO, 2017), mas também
HQs publicadas em suporte papel que foram gestadas a partir de ENOC e técnicas de magia ritual.
Eu tenho utilizado alguns métodos específicos para chegar a esses estados não ordinários de
consciência: o uso dos enteógenos Psylocibe cubensis e Ayahusca, a utilização da técnica de
Respiração Holotrópica e o método de magia de sigilos inspirado em Austin Osman Spare e na
chamada Magia do Caos. É importante destacar que ao criar HQtrônicas a expansão sinestésica
se dá pelo envolvimento direto na criação de elementos narrativos que envolvem múltiplos
sentidos, o háptico, o sonoro e o visual; já ao criar HQs expandidas por ENOC ou magia ritual a
expansão sinestésica se dá diretamente na consciência do criador
Os atos performáticos que engendraram o álbum em quadrinhos “O Sonho dos Deuses” enfocado
nesse texto foram criados inspirados numa experiência de ENOC com o
enteógeno Psylocibe cubensis. Os enteógenos são plantas ou fungos que possuem
substâncias naturais psicoativas utilizadas em rituais xamânicos há centenas de anos.
Alguns dos mais conhecidos são a Ayahuasca, bebida produzida a partir de um cipó e de uma
folha naturais da Amazônia; o Peyote, cacto muito encontrado no México e o Psylocibe cubensis,
cogumelo encontrado com facilidade em muitas regiões das Américas Central e do Sul. Sobre a
palavra “enteógeno” Terence McKenna (2004, p. 247) destaca: “Termo cunhado por R. Gordon
Wasson, que ele preferia ao termo comum psicodélico. A palavra refere-se a uma divindade
interna sentida sob a influência da psilocibina”. Também são chamados de plantas de poder por
McKenna (1993, p. 11), e têm despertado o interesse de artistas das mais diversas vertentes já há
décadas, muitos deles relatam as transformações que seus processos criativos sofreram a partir do
uso dessas substâncias (FRANCO, 2017).
Vários artistas psiconautas – um dos termos utilizados para definir aqueles que experimentam as


119

“viagens cósmicas” induzidas por essas substâncias – compõem uma das vertentes da chamada
arte visionária (CARUANA, 2013, p.1). O pioneiro da arte telemática, Roy Ascott, tem buscado
inspiração na biofotônica e na polêmica teoria dos “Campos Mórficos” do biólogo inglês Rupert
Sheldrake. Ele faz reflexões sobre a expansão da consciência através da ingestão de substâncias
vegetais usadas em rituais xamânicos da América Latina e resgatadas por seitas atuais como Santo
Daime e União do Vegetal. Em 1997, seus estudos sobre transcendência, consciência e rituais
ancestrais levaram-no a visitar uma aldeia dos índios Kuikurus, na região do parque do Xingu,
Amazônia, Brasil; desenvolvendo com outros ciberartistas do país – entre eles Tânia Fraga, Maria
Luiza Taunay, Gilbertto Prado e Diana Domingues –, o projeto Rede Xamânica (The Shamantic
Web), que objetivava criar uma ponte entre o universo mítico dos povos indígenas amazônicos,
sua visão cosmogônica peculiar e abrangente e o novo universo “tecnoético” (FRANCO, 2017,
p.47).
Ascott acredita que simultaneamente ao uso crescente das novas tecnologias como fonte de
investigação das relações entre matéria e consciência, a humanidade irá utilizar cada vez mais a
antiga tecnologia dos xamãs para buscar a transcendência e novos estados de consciência. Ele
chama essa tecnologia de “tecnologia das plantas”, referindo-se às substâncias vegetais que
proporcionam alteração da consciência e já eram usadas por pajés tribais há séculos (ASCOTT,
2003).

Na perspectiva de Ascott e de suas conexões propostas entre as poderosas


tecnologias ancestrais das realidades vegetais e as modernas tecnologias
digitais das realidades virtuais, como artista, eu considero os enteógenos uma
forma de so are natural capaz de produzir mudanças em nosso hard are cérebro-
consciência e permitir o desenvolvimento de processos criativos diferenciados.
Batizei os enteógenos como “plug-ins de neocortex”, realizando nesse batismo
uma metáfora para com os plug-ins de computador, que nesse caso são
programas especí cos que expandem a capacidade do hard are e do so are
permitindo que a máquina exerça novas funções antes impossíveis sem a
instalação do plug-in. Esses “plug-ins de neocortex” podem ser chamados
também de “so ares livres da natureza” numa ampliação da metáfora,
tecnologias avançadas ancestrais que podem ser utilizadas gratuitamente na
contemporaneidade. Desse modo os enteógenos funcionam como plug-ins para
o nosso neocortex permitindo-nos acessarmos estados não ordinários de
consciência (FRANCO, 2017, p.48).

Posthuman Tantra: Performance Transmídia na Aurora Pós-humana


O universo transmídia de ficção científica chamado “Aurora Pós-humana” foi criado por mim
com o objetivo de servir como ambientação a trabalhos artísticos em múltiplas mídias. A poética
surgiu do desejo de vislumbrar um novo planeta Terra inspirado em perspectivas pós-humanas.
Um mundo futuro onde as proposições de cientistas, ciberartistas e transumanistas tornaram-se
realidade, no qual a espécie humana, como a conhecemos, está em processo de extinção. O corpo
e a mente estão reconfigurados e em constante mutação. Limites entre animal, vegetal e mineral
estão se dissipando, a morte não é mais algo inevitável e novas formas de misticismo e
transcendência tecnológica, a “tecnognose” (DAVIS, 2010), substituíram quase por completo as
religiões ancestrais. A Aurora Pós-humana é um universo em expansão, já que constantemente


120

estão sendo agregados a ela dados e novas características que regem essa futura sociedade pós-
humana. O meu desejo ao criá-la, não foi apenas refletir sobre o que os avanços tecnológicos
futuros poderão significar para a espécie humana e para o planeta, mas também produzir uma
ambientação que gere o “deslocamento conceitual” descrito por Philip K. Dick (SUTIN, 1995) e
assim criar obras que discutam a implicação dessas tecnologias no panorama contemporâneo, ou
seja, problematizar o presente por meio de narrativas e obras deslocadas para um futuro ficcional
hipotético (FRANCO & BARROS, 2015, p. 15).

Aconcepção básica do universo ficcional foi a de imaginar um futuro não


muito distante, no qual grande parte dos vislumbres da ciência e da
tecnologia contemporânea tornaram-se uma trivial realidade. A espécie
humana já experiencia rupturas drásticas de valores, de forma física e
cognitiva, implicando em transformações de ordem ideológica, religiosa,
social e cultural. Um futuro em que a transferência da consciência
humana para chips de computador seja algo normal, onde milhões de
pessoas abandonarão seus corpos orgânicos por novas interfaces
robóticas. Um futuro hipotético onde a bioengenharia também avançou
tanto que permite a hibridização genética entre humanos, animais e
vegetais, gerando infinitas possibilidades de mixagem antropomórfica.
Criaturas que em suas características físicas remetem-nos
imediatamente às quimeras mitológicas. Essas duas “espécies” pós-
humanas tornaram-se culturas antagônicas e hegemônicas disputando o
poder em cidades-estado ao redor do globo, enquanto uma pequena
parcela da população, uma casta oprimida e em vias de extinção, insiste
em preservar as características humanas, resistindo às mudanças
(FRANCO e BARROS, 2015, p. 16).


121

Figura 01 – Classes de Extropianos e Tecnogenéticos, por Edgar Franco

Dessas três espécies que convivem nesse planeta Terra futuro, duas são o que podemos chamar
de pós-humanas, sendo elas os Extropianos - seres abiológicos que habitam corpos robóticos,
resultado do upload da consciência para chips de computador – e os Tecnogenéticos
- seres híbridos de humano, animal e vegetal, frutos do avanço da biotecnologia e
nanoengenharia. Tanto Extropianos quanto Tecnogenéticos (Figura 01)contam com o auxílio,
respectivamente, de “Golens de Silício”, robôs com inteligência artificial avançada - alguns deles
reivindicam a igualdade perante as outras raças criando os Quilombots - e “Golens Orgânicos”,
robôs biológicos, serventes dos Tecnogenéticos. última espécie presente nesse contexto é a dos
Resistentes, seres humanos no “sentido tradicional”, estão em extinção e correspondem a menos
de 5% da população global(FRANCO, 2017). A Aurora Pós-humana, por sua ampla abrangência
conceitual, tem servido de ambientação ficcional para minhas criações em múltiplas mídias:
histórias em quadrinhos, HQtrônicas (histórias em quadrinhos eletrônicas) – como Ariadne
e o Labirinto Pós-humano e NeoMaso Prometeu; HQforismos; música eletrônica de base
digital – nos CDs das bandas Posthuman Tantra, Posthuman Worm e do projeto musical
Ciberpajé; web arte – como no site O Mito Ômega, baseado em vida artificial e algoritmos
evolucionários; instalações interativas – como Imobille Art apresentada na Mobile Fest
no MIS SP em 2009; ilustrações híbridas; aforismos; videoclipes; animações e
chegando às performancesmultimídia com o projeto musical performático Posthuman Tantra.
A criação de histórias em quadrinhos ambientadas na Aurora Pós-humana tem sido explorada
principalmente emdois contextos: a trilogia BioCyberDrama Saga, parceria com o lendário


122

quadrinhista Mozart Couto, tendo a primeira parte lançada pela editora Opera Graphica em 2003
e a saga completa lançada em um álbum intitulado BioCyberDrama Saga pela Editora da UFG
em 2013, com segunda edição ampliada em 2016; e a revista de quadrinhos experimentais
Artlectos & Pós-humanos. O álbum em quadrinhos “O Sonho dos Deuses” está
contextualizado na era decadente da Aurora Pós-humana, um tempo futuro pós-apocalítico
chamado de Crepúsculo Pós-humano.
O Posthuman Tantra propõe-se a ser uma conexão entre minhas criações visuais, o
universo ficcional da Aurora Pós-humana, a música eletrônica e as performances
transmídia. Como projeto musical já participou de compilações musicais em 4 continentes
e lançou álbuns solo e outros em parceria com diversas bandas nacionais e internacionais.
Foi a primeira banda brasileira do gênero dark ambient a assinar com uma gravadora
internacional, a Legatus Records (Figura 02), da Suiça, pela qual lançou 2 CDs,
posteriormente assinou com a gravadora inglesa 412 Recordings, pela qual lançou 4 CDs. As
performances ao vivo do Posthuman Tantra configuram-se como apresentações
multimídia, incluindo vídeos, aplicações computacionais e eletrônicas e ações artísticas
exclusivas criadas por mim em parceria com os integrantes do grupo de pesquisa
Cria_Ciber – que eu coordeno na Faculdade de Artes Visuais da UFG, ligado ao Programa de
Pós-graduação em Arte e Cultura Visual. As performances incluem interação dos performers
com vídeos exclusivos, efeitos de mágica eletrônica, efeitos de leds, interatividade
sonora entre performers a partir de uso de teremins e efeitos luminosos.
Também são utilizados efeitos computacionais em realidade aumentada (RA) eFace Detecting,
que conferem um caráter “cíbrido” (Figura 03) às performances, integrando
Simultaneamente o real e o virtual.

Figura 02 – Capa do CD “Neocortex Plug-in, do Posthuman Tantra (Legatus Records, Suíça,


2007); e foto do grupo performático Posthuman Tantra (2019). Acervo do autor.

O Posthuman Tantra foi uma das primeiras bandas do mundo a usar esse recurso no palco.
As performances do grupo envolvem fortes aspectos tecnognósticos/ciberxamânicos e propõe
aproximações entre transcendência e hipertecnologia através de uma contextualização
baseada na ficção científica e na perspectiva ritualística do ato performático. Ao
mesmo tempo, repudiam a assepsia das imagens publicitárias que induzem ao consumo


123

e à destruição da biosfera perpetrada pelas multinacionais auxiliadas pelas grandes agências


publicitárias globais. Em seus 11 anos de existência como grupo performático Posthuman Tantra
já performou em mais de 30 eventos acadêmicos nacionais e internacionais, tento passado por 4
regiões do Brasil.
Em seu contexto ritualístico o Posthuman Tantra coloca-se não apenas
como um grupo performático artístico, mas como uma força mágica de
transmutação, assumindo-se tecnoxamânico, unindo de maneira
singular aspectos da cultura ancestral nativa das tribos
brasileiras, sobretudo suas percepções transcendentes através da
incorporação de totens míticos animais e vegetais nos rituais de cura e
energização – as chamadas "pajelanças"- às novas perspectivas pós-
humanas abertas pela criação e incorporação de mundos digitais,
cosmogonias computacionais possibilitadas pelo amplo universo
das imagens numéricas e da hipermídia. O Ciberpajé mixa o mundo das
realidades vegetais - acesso a cosmogonias míticas através do uso de
enteógenos - com o das realidades cíbridas - criação de
cosmogonias digitais gerando um novo corpus transcendente
(FRANCO, 2019 – p.142-143).

Figura 03: O Ciberpajé em vários atos performáticos cíbridos do Posthuman Tantra. Acervo do
Autor.

O álbum em quadrinhos “O Sonho dos Deuses” foi um dos resultados de minha pesquisa de pós-
doutorado em artes no Instituto de Artes da UNESP, que investigou as conexões entre processos
criativos de performance e quadrinhos. A pesquisa intitulou-se "Posthuman Tantra &


124

Artlectos e Pós-humanos: Processos Criativos Transmídia em Performance e Quadrinhos"


e foi supervisionada pela Profa. Dra. Rosangela Leotte (IA/UNESP). A pesquisa
exploratória obteve exitosos resultados e promoveu conexões novas para o aprofundamento
das investigações, devido à bibliografia praticamente inexistente conectando os universos
poéticos da performance e das histórias em quadrinhos, os resultados de ordem
reflexiva e teórica e também os artísticos têm potencial de tornarem-se referencias para
quem for investigar esse tema.
As conexões entre os processos criativos de quadrinhos e performance fomentaram
também outros produtos artísticos transmídia que se conectaram diretamente às HQs e atos
performáticos criados durante o estágio pós-doutoral, expandindo a pesquisa. Assim, os produtos
artísticos da pesquisa foram dois novos atos performáticos do meu grupo Posthuman Tantra,
7 HQforismos, 2 HQs, o álbum em quadrinhos “O Sonho dos Deuses”, 3 EPs musicais do
Projeto Ciberpajé, e duas videoartes: “O Enterro dos Deuses”, animação pioneira no
Brasil a usar a rede neural Deep Dream e “(In)Finitum”, animação psicodélica baseada em
rotoscopia digital em rede neural (Figura 04). Todos eles inspirados inicialmente em
uma experiência enteogênica prévia e possuindo conexões transmidiáticas diretas que os
conectam, além de integrarem o universo ficcional
transmídia da Aurora Pós-humana.

Figura 04 – Poster e frames da animação e videoarte (In)Finitum, produzida por Ciberpajé e


Grupo de Pesquisa Cria_Ciber (FAV/UFG), 2020

Foram publicados no número 13 da revista Artlectos & Pós-humanos (Figura 05) os 7


HQforismos e as 2 HQs. O conjunto de HQforismos que abre a revista foi um desdobramento
criativo do ato performáticos “Lupus Noctis”, esse por sua vez inspirado no álbum em quadrinhos
“Ecos Humanos”, criado a partir de ENOC – estados não ordinários de consciência (com roteiro
meu e desenhos de Eder Santos). Após a realização dos HQforismos “Lupus Noctis” passou por
uma reformulação, incluindo novos elementos inspirados por eles, e depois do ato performático


125

ser apresentado em dois eventos nacionais, ele engendrou a criação da HQ de 11 páginas “Lupus
Diem”.

Antes de falar sobre a HQ “O Sonho dos Deuses” é importante destacarmos o processo criativo
do ato performático que inspirou diretamente a história em quadrinhos. Novas questões
transcendentes e imanentes eclodiram na criação da HQ “Lupus Diem” e elas inspiraram a
produção do ato performático do Posthuman Tantra chamado “Quilombot”, apresentado no
Festival de Artes Ciberpajelanças II, em Goiânia. “Lupus Noctis” e “Lupus Diem” também
inspiraram a concepção de 3 EPs do Projeto Musical Ciberpajé: “Madrugada de Lilases Pedras
Adornada” (parceria com Nix's Eyes de Brasília), “Lobo Infinito” (parceria com o Melek-Tha da
França) e “Loucos ou Deuses” (parceria com Filmy Ghost do Chile). Esses EPs e o ato
performático “Quilombot” foram inspiração direta para a segunda HQ “Lupus Crepusculum”, e
também para o álbum em quadrinhos colorido feito através de processos de escultura e fotografia
“O Sonho dos Deuses”, que em breve será publicado e que serviu de inspiração para a criação da
videoarte/videoclipe “Ciberpajé – O Enterro dos Deuses”. Todas essas obras têm existência
independente, mas ganham nova densidade quando fruídas paralelamente às demais narrativas
transmidiáticas ligadas a elas. No dia 24 de novembro de 2019, às 20:00hs o Posthuman Tantra
apresentou sua performance completa composta de 9 atos, incluindo os 2 novos atos "Quilombot"
e "Lupus Noctis" (Figura 06) que integraram a minha pesquisa de pós-doutorado em artes na
Unesp. A performance contou com os integrantes do grupo Posthuman Tantra: Ciberpajé (eu:
direção, criação, musicista e performer), I Sacerdotisa Rose Franco (musicista e performer), Luiz
Fers (performer e figurinista), Amante da Heresia (musicista e performer), Lucas Matheus Dal
Berto (VJ) e com a convidada especial Flávia Provesi (performer).


126

No ato "Quilombot" (Figura 07) o Ciberpajé entra em cena com um figurino exclusivo – que
inspirou e retroalimentou-se do figurino do personagem principal da HQ "O Sonho dos Deuses",
essa indumentária representa a busca transcendente psicodélica de um monge transumano. A
performer I Sacerdotisa traz em sua mão uma taça em formato de cabeça de lobisomem e dentro
dela estão dois cogumelos Psilocybe cubensis, os cogumelos são tirados da taça e passados pelo
corpo, logo depois são atados às costeletas do Ciberpajé, simbolizando a sua expansão
transcendente enteogênica. Com eles presos às costeletas o Ciberpajé simula brevemente uma
pajelança ao som da música eletrônica percussiva criada originalmente para a performance. Ao
fundo uma animação com artes criadas pelo Ciberpajé é projetada apresentando desenhos também
de inspiração enteogênica, ela é a única fonte luminosa durante o ato. A I Sacerdotisa apresenta
um crânio animal ao Ciberpajé - esse crânio tem vários circuitos integrados agregados a ele (obra
da artista Ilda Santa Fé) representando as tensões entre avanço tecnológico e aceleração da
destruição da biosfera. Dentro do crânio está um telefone celular, o Ciberpajé pega-o e o celular
começa a gritar "- Não, por favor!". A I Sacerdotisa coloca um microfone próximo ao celular para
ampliar seus gritos que vão tornando-se mais e mais desesperadores.


127

O Ciberpajé apresenta o celular ao público enquanto ele grita, então o performer Luiz Fers se
aproxima com uma máscara de gás no rosto e trazendo uma cruz de madeira. O Ciberpajé coloca
o telefone celular no centro da cruz de madeira, seus gritos seguem agonizantes. A música cessa
e agora só se ouvem os gritos do celular implorando. No momento final o Ciberpajé retira de seu
manto um martelo e alveja o celular e a cruz destruindo-os.
O ato "Quilombot" trata das buscas transcendentes através da reconexão com a natureza
proporcionada pelos enteógenos, e a libertação da robotização contemporânea que faz os seres
humanos viciados em redes sociais agirem de forma binária e maniqueísta como as máquinas,
tornando-se robôs de carne. A performance crucifica um aparelho celular que grita em desespero
para não morrer e é destruído ao final pelo monge psicodélico enteogênico transumano encenado
pelo Ciberpajé, refletindo também sobre as tensões contemporâneas entre tecnologia acelerada,
hiperconsumo, hiperinformação e a sexta extinção massiva de espécies no planeta.
Para a criação do álbum em quadrinhos “O Sonho dos Deuses” utilizei o conceito de HQ-
escultura desenvolvido pelo artista pesquisador Fábio Purper Machado, que ao tratar de suas
criações narrativas envolvendo esculturas e quadrinhos diz:

Fiz isso primeiro usando esculturas como referenciais para


desenhos de quadrinhos, e em seguida, num dos dois vieses do
meu projeto de mestrado em Artes Visuais[...], introduzindo
fotografias de esculturas como as cenas das HQs, o que chamei
de HQ-escultura. O segundo viés era a escultura-HQ, que
consistia em peças únicas tridimensionais envolvendo


128

elementos dos quadrinhos como a narratividade e o balão de


fala. (MACHADO, 2017, p.51)

Desse modo todos os personagens de “O Sonho dos Deuses” foram esculpidos utilizando massa
de biscuit e pintados posteriormente por mim (Figura 08). Lancei-me a esse inusitado experimento
atávico, completamente novo para mim, elaborar uma HQ a partir de processos escultóricos e
fotográficos. Do processo de elaboração ao resultado final - o álbum em quadrinhos com 5
capítulos e 48 páginas – levei cerca de 4 meses, tendo iniciado em novembro de 2019 e concluído
em fevereiro de 2020. A criação envolveu muitos experimentos inusitados para mim, e várias
tentativas e erros na construção de personagens e elaboração do cenário – improvisado em uma
mesa de minha casa e em um quarto que tornou-se estúdio para a parte final com a captação das
cenas pela fotografia, com iluminação controlada.


129

“O Sonho dos Deuses” narra a história do “monge enteogênico transumano” (Figuras 09 e 10)
retratado inicialmente na performance “Quilombot” pelo performer Ciberpajé (eu), o seu figurino,
personalidade enteogênica, e as reflexões do monge sobre as tensões contemporâneas entre
hipertecnologia, transcendência e devastação da natureza – culminando na sexta extinção massiva
de espécies no planeta Terra (KOLBERT, 2015; LOVELOCK, 2010; EMMOT, 2013) –
engendraram o roteiro da HQ-escultura. Na história o monge transumano é o último ser humano
vivo no planeta – no ápice do Crepúsculo Pós-humano – e ele usa o seus dias finais na busca de
entender porque nossa espécie se autodestruiu. Sua busca consiste em caminhadas por Gaia
desolada e desértica para encontrar-se com 4 criaturas/deuses que metaforizam aspectos
imanentes e transcendentes da espécie humana. Esses deuses são Naturae, a mãe cósmica natureza
representada por uma árvore morta; Téchne, a arte, cultura e tecnologia representadas por uma
criatura com crânio de corvo presente na performance Lupus Noctis e na HQ Lupus Diem; Diana
Funga, a deusa que representa os enteógenos e a busca de reconexão com a natureza cósmica
através de ENOC; e por último o Lobo Astral, criatura que representa o aspecto animal e selvagem
abandonado pela espécie humana.


130

“O Sonho dos Deuses” enquadra-se no conceito de quadrinho expandido em múltiplas de suas


facetas, primeiramente todo o processo que deflagrou a criação das outras HQs e dos atos
performáticos ligados transmidiaticamente a ela foram deflagrados por uma experiência minha
de ENOC com o enteógeno Psilocybe cubensis em 2017, que me fez reavaliar vários aspectos de
minha conexão intrínseca com o mundo natural e Gaia. Também por tratar-se de uma HQ que
utiliza um método expandido, a escultura, como seu processo de concepção e realização técnica.
A HQ amplifica questões cruciais para mim, tratadas em múltiplas narrativas no contexto do
universo ficcional da “Aurora Pós-humana”, trazendo uma história que liquefaz o gênero ficção
científica, ao subvertê-lo com a inserção de criaturas oníricas, conectando-se mais ao contexto do
gênero fantasia, mas mantendo certas perspectivas da FC, principalmente pela leitura de obras de
pesquisadores do campo das ciências que apontam o impacto destrutivo da ação humana no
planeta e a iminência de um colapso da vida na terra (LOVELOCK, 2010). As conexões
transmidiáticas de “O Sonho dos Deuses” com o ato performático “Quilombot” estabelecem
estruturas dinâmicas de suas criações com
elementos simbólicos, conceituais e poéticas que migraram de uma expressão para a outra
mantendo a sua essência, mas narrando outros aspectos de uma ampla história de tensões entre
humanidade, tecnologia, transcendência e natureza.

Referências
ANDRAUS, Gazy. “Convergência”, in Chaud, E e Sant’anna, T. F. (Orgs.).Anais do VII
Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual, Goiânia-GO: UFG, FAV, 2014, p.
887-889. ASCOTT, Roy. “Quando a Onça se Deita com a Ovelha: a Arte com Mídias Úmidas e
a Cultura Pós-biológica”, in: Arte e Vida no Século XXI – Tecnologia, Ciência e Criatividade
(Diana Domingues org.), São Paulo: Editora Unesp, 2003, pp.273-284. CARUANA, L. O
Primeiro Manifesto da Arte Visionária, Curitiba: Grande Loja da Jurisdição de Língua
Portuguesa, 2013.
DAVIS, Erik. Nomad Codes: Adventures in Modern Esoterica, New Yourk:Yeti Publishing,
2010.
EMMOT, Stephen. 10 Bilhões, Rio de Janeiro: Intrínseca, 2013.
FRANCO, Edgar
Silveira. “Ecos Humanos” e “Lupus Noctis”: conexões e desdobramentos criativos entre história
em quadrinhos e performance, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL


131

DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais.


Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p.131-149
_____________________. HQtrônicas: Do Suporte Papel à Rede Internet, São Paulo:
Annablume/Fapesp, 2a Edição, 2008.
___________________. Perspectivas Pós-humanas nas
Ciberartes, São Paulo: USP, Tese de doutorado em artes, 2006.
___________________. Quadrinhos Expandidos: das HQtrônicas aos Plug-ins de Neocortex,
João Pessoa: Marca de Fantasia, 2017.
FRANCO, Edgar silveira; BARROS, Danielle. Processos Criativos de Quadrinhos Poético-
filosóficos: A revista Artlectos & Pós-humanos, João Pessoa: Marca de Fantasia, 2015.
KOLBERT, Elizabeth. A Sexta Extinção – Uma História Não Natural, Rio de Janeiro: Intrínseca,
2015.
LOVELOCK, James. Gaia: Alerta Final, Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010.
MACHADO, Fábio
Purper. VideoHQescultura: uma poética narrativa. Tese de Doutorado, Programa de Pós-
graduação em Arte e Cultura Visual-FAV/UFG, Goiânia, 2017. MCKENNA, Terence.
Alucinações Reais: Uma viagem cósmica inspirada pelo uso das plantas de poder, Rio de Janeiro:
Nova Era, 1993.
_________________. O Pão dos Deuses, Lisboa: Via Óptima, 2008.
MIKOSZ,
José Eliézer. Arte Visionária – Representações visuais nos Estados Não Ordinários de
Consciência (ENOC), Curitiba: Editora Prismas, 2014.
SUTIN, Lawrence (org). The shifting
realities of Philip K. Dick: Selected Literary and Philosophical Writings, London: Vintage Books,
1996.


132

O programador como animador: Interfaces possíveis entre animação e programação por


meio do uso de placas embarcadas para produção de Animatronics.

The programmer as an animator: Possible interfaces between animation and programming


through the use of embedded boards for the production of Animatronics.
47
Flávio Gomes de Oliveira
Rosane Martins de Oliveira48
Resumo

Este trabalho se configura como um relato de produção de um personagem do tipo animatronic


para utilização no filme de animação: “Vida de Boneco”, vencedor do Grande Prêmio do Cinema
Brasileiro de 2017 na categoria melhor curta metragem de animação. Além de explicitar o
processo de produção, será feita uma pequena discussão sobre o uso de sistemas embarcados,
mais especificamente a placa Arduíno como base para produção deste tipo de personagem,
apresentando as possibilidades de uso, as vantagens e os problemas. Este tipo de personagem traz
uma possibilidade nova de performance para o personagem, podendo ser feita por meio de uma
programação antecipada de todas as possibilidades de ações possíveis ou por meio de um código
único, que após acionado, permite uma sequência inteira de ações performáticas, transformando
o programador em um animador.

Palavras-chave: Animatronics, animação, Arduíno.

Abstract

This work is configured as a production description of an animatronic character for use in the
animated film: “Vida de Boneco”, winner of the 2017 Brazilian Cinema Grand Prize in the
category of best animated short film. In addition to explaining the production process, there will
be a small discussion about the use of embedded systems, more specifically the Arduino board as
a basis for producing this type of character, presenting the possibilities of use, advantages and
problems. This type of character brings a new possibility of performance for the character, being
able to be made through an advance programming of all possible action possibilities or through
a unique code, which after triggered, allows an entire sequence of performance actions, turning
the programmer into an animator.

Keywords: Animatronic, animation, Arduino.

1. Arduíno e sistemas embarcados

Arduíno é uma placa com circuito integrado programável, de baixo custo que tem inúmeras
funções, dependendo da programação dada através da linguagem C/C++. Foi criada em 2005 por

47
Flávio Gomes de Oliveira, Professor do Curso de Design Gráfico da Faculdade de Artes Visuais da Universidade
Federal de Goiás, Doutor em Arte e Cultura Visual, atua principalmente na área de Design Gráfico com pesquisas em
animação, animação em stop motion, interações diversas, Arduíno, automação e jogos.
48
Rosane Martins de Oliveira, Especialista em Mídias na Educação, graduada em psicologia com atuação em
psicotecnologia, ensino a distância e presencial e informática para terceira idade.


133

5 pesquisadores: Massimo Banzi, David Cuartielles, Tom Igoe, Gianluca Martino e David
Mellism com o objetivo de usar um dispositivo funcional que permitisse que pessoas sem
experiência pudessem programá-lo facilmente para diversos
É um sistema embarcado, que funciona dentro de outro sistema, para reger ações e que tem por
objetivo trazer inovação tecnológica a diversas tarefas do dia a dia, como automação e robótica,
que tem consumo e tamanho reduzidos, preços acessíveis, possibilidade de verificação da
programação e ajuste para determinada tarefa, trazendo confiança e segurança em seu uso. Esses
sistemas são classificados em 4 tipos: Computação geral (vídeo games, por exemplo), Sistemas
de controle (controle de vôo, reatores nucleares etc), processamento de sinais (aparelhos leitores
de DVD, radares, sonares etc) e comunicação e rede (telefones celulares, smartphones, roteadores
e modems para acesso a internet), e usam duas classes de processamento: microcontrolado e
microprocessado.
Antes, para fazer um protótipo em eletrônica, era necessário fazer a placa do zero, fazendo estudos
e experimentos até a placa estar pronta para receber a programação. Com o Arduíno e a
possibilidade de acoplar componentes, essa etapa foi otimizada, pois o indivíduo pode buscar um
código na internet e modificá-lo de acordo com suas necessidades.
A placa inicial de arduíno foi desenvolvida por Massimo Banzi e David Cuartielles. David Mellis
desenvolveu o software inicial do Arduíno baseado em Wiring

Figura 01 – Placa de Arduino UNO, uma das placas mais populares.

(um programa código aberto para programadores, criado por uma equipe coordenada por
Hernando Barragán, Brett Hagman e Alexander Brevig (http://wiring.org.co/), que tem, inclusive,
uma página no facebook, onde os desenvolvedores convidam seus seguidores a testar atualizações
para o programa e placas que desenvolvem (https://www.facebook.com/Wiring.
OpenSourceHardware/) e colaboradores como Nicholas Zambetti. Tom Igoe, mestre em
comunicações interativas, ficou com a orientação dos projetos baseados em Arduíno e Giancarlo
Martino foi o responsável pela construção e design do hardware.


134

O nome Arduíno é em homenagem ao nome de um bar em Ivrea (uma comunidade na província


de Turim, região italiana de Piemonte), o bar recebeu este nome na época que um dos reis da
Itália comandava a cidade.
A Spark Fun electronics desenvolveu o Arduíno Pro e o pro mini. Junto com Leah Buechley,
criaram o Lily Pad Arduíno, que pode ser costurado sob o tecido, com uma alimentação embutida,
possibilitando roupas com sistema inteligente. Sensores e atuadores podem ser acoplados ao
sistema. E com Shigeru Kobayashi, Arduíno Fio foi criado (placa para aplicações wireless, que
foi descontinuada).
As indústrias Adafruit auxiliaram no desenvolvimento do Arduíno Micro (é parecido com o
Arduíno Nano, mas tem mais portas digitais e analógicas. Tem um formato compacto) e Gemma
(uma placa vestível, pequena, com conector de liga desliga acoplado e uma porta micro usb para
inserir a programação). A Telefônica ajudou a desenvolver o Arduíno GSM Shield, com
capacidade de enviar short messaging service, e serviços de dados, voz fax via internet. O arduíno
Robot, desenvolvido pela Complubot, era como um pequeno computador sobre rodas e permite
aprender sobre eletrônica, programação, mecânica, física e robótica.
Um dos dispositivos mais conhecidos é o Arduíno Nano, que foi criado junto com a Gravitech.
Com dimensões de 45X18mm, é uma placa pequena que pode ser usada diretamente em uma
protoboard, facilitando a organização dos projetos e dos circuitos integrados, permitindo que um
maior número de componentes seja ligado a ela na protoboard, pois ocupa espaço reduzido.
A ShareBot contribuiu para a criação do Arduíno Materia 101, que é a impressora 3D oficial da
Arduíno, com o controlador Mega2560, ideal para começar a imprimir em 3D e é compatível com
a maioria dos softwares gráficos existentes no mercado

2. Construindo um animatronic com Arduíno


Entre os anos de 2013 e 2015 foi produzido o filme “Vida de Boneco”, o curta metragem era um
experimento prático que compunha a tese do pesquisador Flávio Gomes. A proposta era produzir
um animatronic totalmente funcional para compor uma das cinco sequências do filme. Em síntese,
o filme, traz a história de um criador de bonecos que busca criar um boneco para lhe fazer
companhia, e a cada nova experiência, cria um boneco mais funcional e envolvendo novas
tecnologias, o primeiro boneco foi um boneco lúdico de tecido, o segundo, um fantoche de
espuma, o terceiro foi uma marionete de madeira, o quarto boneco foi um animatronic alvo deste
trabalho e por fim, o bonequeiro constrói um boneco à sua imagem, um boneco para animação
em stop-motion.
Após pesquisar vários processos e materiais, além de toda a tecnologia das placas embarcadas
para automação, foi escolhida a placa Arduino Uno para produção do animatronic, o processo de
produção seguiu o seguinte processo metodológico:
• Elaboração de esboços e design inicial;
• Escolha dos materiais;
• Testes do processo
mecânico;
• Projeto da carenagem e estrutura mecânica; • Corte das peças no processo à laser;
• Montagem do protótipo; • Programação;
• Captura dos movimentos.

2.1. Elaboração de esboços e design inicial


135

A proposta deste animatronic era de representar um robô dentro do universo ficcional


desenvolvido para o filme “Vida de Boneco”, neste sentido, foram usadas como referências para
elaboração do design, três importantes robôs do cinema, o R2D2 da série “Star Wars” (1977,
dirigido por George Lucas), o robô protagonista do filme “Um robô em curto circuito” (1989,
dirigido por Kenneth Johnson) e por fim o pequeno “Wall-e” (2008, dirigido por Andrew Staton),
protagonista do filme de mesmo nome.
O robô deveria simbolizar um robô funcional e não uma proposta de humanização da máquina, a
proposta aqui era realmente buscar a funcionalidade sobrepondo a estética. Outro fator que levou
a essa decisão estética foi as limitações técnicas, o arduino UNO só possui 13 portas para inserção
de motores, sensores, leds e servos, para produção de um robô do tipo humanoide, seriam
necessárias mais portas o que implicaria em fontes de energia mais potentes e mais espaço para
construção, encarecendo muito o projeto e inviabilizando a proposta.
Com base nestes estudos, foram feitos alguns esboços como pode ser visto na figura 2, esses
desenhos buscam dar base para a composição estética do animatronic e também estudar a
mecânica necessária para produção do mesmo.

2.2. Escolha dos materiais


O material escolhido para produção deveria atender a alguns requisitos, possibilitar uma
montagem estruturada, permitir um aspecto rígido, permitir manutenções de forma prática,
abrigar toda a parte eletrônica e possibilitar a inserção dos LEDs, sensor infravermelho, motores
e servos previstos para os movimentos do animatronic.

Figura 02 - Primeiros esboços para produção do animatronic.


136

Foram feitos alguns testes com materiais como PVC, Acrílico e MDF, o que apresentou as
melhores características para produção do animatronic foi o MDF, possibilita a colagem de forma
simples, permite a inserção de materiais secundários como pequenas lâminas de PVC, parafusos,
porcas e arruelas, além de ser de fácil manipulação, aceitar pintura com qualquer tipo de tinta e
permitir corte a laser. Foi utilizado uma lâmina de MDF de 3 mm cortada de forma estruturada
para criar as diversas peças que compõem o corpo do animatronic.

2.3. Testes do processo mecânico


Antes de efetivamente partir para o corte a laser das peças, foram feitos alguns testes utilizando
simulações das peças feitas em papelão no sentido de testar a viabilidade e funcionalidade das
peças.

2.4. Projeto da carenagem e estrutura mecânica


Após os testes e desenho das peças, partiu-se para o processo de corte das peças para montagem,
na figura 3 pode-se visualizar o projeto de corte do animatronic, formado por mais de 40 peças
com algumas peças reservas para possíveis manutenções. O projeto foi elaborado para permitir a
inclusão de todos os elementos eletrônicos e mecânicos necessários para operação do animatronic.

Figura 03 - Projeto de corte das peças do animatronic para placa de MDF

2.5. Corte das peças no processo à laser


Por fim o material foi enviado para a empresa que fez o corte, o corte foi feito em uma máquina
de corte a laser simples de grandes dimensões, utilizando um filete mínimo que reduz muito pouco


137

a dimensão das peças e facilita a montagem.

2.6. Montagem do protótipo


Após o corte, as peças foram coladas e parafusadas de forma a montar a estrutura básica do
animatronic, foi inserida uma lâmina fina de PVC opaco de 0,8 mm na parte frontal do corpo para
fechar o projeto e permitir a visualização mínima dos LEDs funcionais internos do Arduino e dos
sensores a fim de criar um resultado estético com princípios tecnológico, foram inseridos os
braços e feitas as ligações eletrônicas.
Além da placa de Arduino, o projeto conta com uma placa controladora composta por 4 relês para
operação dos dois motores de impulso com redução, seis servos motores de 9g para
movimentação das sobrancelhas, olhos, pescoço e braços, um receptor infravermelho para receber
o sinal do controle remoto, dois LEDs nos olhos, um Buzz pequeno para facilitar o processo de
programação já que os sons do robô seriam adicionados na edição do filme, toda a fiação
necessária para transmissão dos comandos, uma bateria de 9V para operação do Arduino, um kit
de 4 pilhas AA para funcionamento dos motores e um cabo USB para transferência da
programação. Na figura 4 pode-se ver como ficou a instalação final dos elementos dentro da
carenagem.

2.7. Programação
A parte de programação foi feita utilizando a linguagem específica da IDE do Arduino, o processo
de programação seguiu as seguintes etapas:
a. Delimitação do código infravermelho das teclas do controle remoto;
b. Definição dos movimentos de cada servo e associação dos movimentos às teclas específicas;
c. Associação dos outros elementos eletrônicos às teclas de comando.
Após a programação foram executados alguns testes para verificar a funcionalidade do
animatronic, após a verificação, foram elaborados alguns scripts especiais para executar ações
completas e estes scripts foram associados a outras teclas do controle remoto.

Figura 04 - Montagem do animatronic e inserção das ligações e elementos mecânicos.


138

Figura 05 – Animatronic finalizado e pronto para uso.


2.8. Captura dos movimentos
Para captura dos movimentos, a câmera (Canon T3i) foi posicionada em um tripé, sem seguida,
foi delimitado uma zona espacial de captura e o animatronic foi acionado, a partir deste momento,
ele executava as ações e a câmera capturava os movimentos.

3. O programador como animador


Dentro do processo de programação de um animatronic com as características do modelo
apresentado, o programador se torna um tipo de animador que deve antecipar as ações
performáticas do personagem e criar rotinas de programação que sejam capazes de se adequar às
diversas situações para as quais o personagem atuará.
Em geral, um animatronic possui uma série de comandos que podem ser acionados por um ou
vários joysticks ou rádios, os operadores posicionam o personagem em frente a câmera, e montam
os movimentos por meio destes sistemas remotos de acionamento, esse processo exige a
habilidade de um artista de marionetes, pois o operador do personagem precisa conhecer todos os
comandos possíveis e trabalhar com eles durante o momento da encenação. Neste caso, já
podemos considerar o manipulador como um animador que dá vida ao personagem frente às
câmeras.
Porém, no modelo de animatronic aqui apresentado, foi utilizada uma outra lógica de
funcionamento, durante o processo de programação, foram criados alguns scripts onde foram
inseridos todos os movimentos do personagem, de forma que o mesmo pudesse executar estes
movimentos em frente a câmera de forma automática, para tanto, no processo de programação foi
necessário estudar o movimento, a interpretação e o tempo de duração do movimento para criar
estes scripts, desta forma, pensando em uma linha de tempo, o script foi composto imaginando


139

que o servo motor do pescoço deveria girar 70o, aguardar o espaço de tempo de 6 frames, girar
novamente -70o, em seguida o motor de impulso deveria girar por meio segundo que representaria
15 frames, parar, o servo associado à sobrancelha direita iria se deslocar por 30o enquanto o da
sobrancelha esquerda se deslocaria -30o, e estes movimentos durariam 5 frames o que em
programação seria representado por um comando do tipo [delay (170);], sendo 170 a fração de 5
frames em 1 segundo que na programação é representado por [delay(1000);]. Enfim, o processo
de programação é uma forma de animação antecipada dos movimentos do personagem.

4. Conclusões e encaminhamentos
O processo de uso de uma placa embarcada para produção de um animatronic apresenta-se com
um leque de possibilidades muito grande, porém, existem pontos positivos e negativos com
relação a esse uso, dentre os pontos positivos do processo utilizado, vale a pena ressaltar a
praticidade e a possibilidade de refazer o movimento dentro da programação até que o mesmo
fique perfeito, da forma como foi programado, também vale a pena ressaltar a praticidade durante
a captura dos movimentos, basta acionar o animatronic e deixar que o mesmo execute os
movimentos. Dentre os pontos negativos pode-se destacar a dificuldade de trabalhar com um
personagem humano, o tempo da animação pode ser muito mecânico/matemático, enquanto o
tempo da atuação de um ator vai depender muito de seu processo artístico, não podendo ser
limitado pelo artefato eletrônico, neste sentido, o sistema de script utilizando não seria a melhor
proposta, e sim, uma atuação direta com animação em tempo real do personagem.
Concluímos que o uso da placa de Arduino para construção deste animatronic específico foi
validada de forma exitosa e que a modernização destas placas e a possibilidade de integração das
mesmas dentro de interfaces específicas do cinema como por exemplo o programa Dragonframe
usado para animação em stop motion, promete uma revolução muito boa no mercado
cinematográfico, possibilitando interações homem/máquina em processos artísticos e
interpretativos com possibilidades infinitas.
Referências
AYRES, Marcelo. Conheça a história dos robôs, UOL, 2007, disponível em
http://tecnologia.uol.com.br/ultnot/2007/10/01/ult4213u150.jhtm. Acesso em 11 ago 2013.
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação, Lisboa: Relógio d’água, 1981.
DI FELICE, Massimo. Estéticas pós-humanistas e formas atópicas do habitar, Metáforas da
Arte, 1 ed. São Paulo: MAC-USP, 2008, p. 79-97.
GALILEU, http://glo.bo/1qRxsTV. www.imdb.com, Internet Movies Database. Acesso em
10/08/2013.
https://www.facebook.com/Wiring.OpenSourceHardware/
http://wiring.org.co/
https://www.arduino.cc/ acesso em 31/03/2020
KAC, Eduardo. Art Journal, Vol. 56, N. 3, College Art Association, New York, Fall 1997, pp.
60-67
LOUREIRO, Tatiana. Asimov: Ficcionista e visionário do futuro, Super Interessante,
novembro de 1993.
OBRINGER, Lee. Como funciona o ASIMO, howstuffworks,
http://informatica.hsw.uol.com.br/asimo1.htm. Acesso em 10 ago 2013.


140

TYSON, Jeff. Como Funcionam os Animatrônicos. Howstuffworks, http://lazer.


hsw.oul.com.br/animatronicos1.htm. Acesso em 10 ago 2013.


141

Stranger Things: o uso de dados na construção de uma realidade particular


Stranger Things: the usage of data in building a particular reality

Fabíola Brito49
Bernardo Queiroz 50
Suzete Venturelli 51

Resumo
O ser humano não gosta do desconforto, do incômodo, da frustração e, consequentemente, da dor resultante.
Ao longo de toda a sua história, ele buscou minimizar as possibilidades de encontro com estes sentimentos.
Algoritmos de Machine Learning escavam as toneladas de dados que nós disponibilizamos online
diariamente em busca dos nossos desejos inconscientes de forma a poder transformá-los em imagens,
textos, vídeos, histórias irresistivelmente consumíveis. Séries como Stranger Things são construídas com
algoritmos de recolhimento de dados, que recolhem nossos desejos e nos retornam produtos feitos à nossa
imagem e semelhança. Este artigo se propõe a refletir sobre a necessidade de desconforto, incômodo como
sentimos necessários à humanidade. Será o ser humano capaz de lidar indefinidamente com sua própria
imagem? Ou será que, em um mar de monótona igualdade, o ser humano se voltará ao incerto e ao
diferente?
Palavras-chave: Algoritmos, Dados, Construção da Realidade.

Abstract
The human being does not like discomfort, annoyance, frustration and, consequently, the resulting pain.
Throughout his history, they sought to minimize the chances of encountering these feelings. Machine
Learning algorithms dig up the tons of data that we make available online on daily bases in search of our
unconscious desires in order to be able to transform them into images, texts, videos, stories irresistibly
consumable. Tv series like Stranger Things are built with data collection algorithms, which retrieve our
desires and return products made to our image and likeness. This paper aims to consider the discomfort
and the annoyance like necessary feelings to the humanity. Is the human being capable of dealing with
his own image indefinitely? Or will this sea of monotonous sameness be enough to put the human being
again in the course of the uncertainty and the difference?.
Keywords: Algorithms, Data, Construction of Reality.

Introdução

Este artigo é um estudo preliminar que tem por objetivo refletir e levantar questionamentos sobre
o uso de algoritmos de análise de dados no desenvolvimento de conteúdos para entretenimento.
Particularmente neste trabalho, nós levantamos questões sobre o que o ser humano realmente quer
e busca quando opta por consumir produtos, serviços e conteúdos que foram preparados de forma


49
Fabíola Brito, mestranda do Programada de Pós-graduação em Design da Universidade Anhembi Morumbi,
professora de Marketing e Tecnologia da Informação no Instituto Presbiteriano Makenzie e na Universidade Anhembi
Morumbi.
50
Bernardo Queiroz, Professor de Jornalismo na Universidade Anhembi Morumbi, Doutor em Comunicação e
Semiótica dela PUC-SP e Mestre pela UFPE
³ Suzete Venturelli, Pesquisadora artista e professora (UAM / UnB), Realizou pós-doutorado na Universidade de São
Paulo, Escola de Comunicação e Artes (2014); doutorado em Artes e Ciências da Arte, na Universidade Sorbonne Paris
I (1988), e mestrado (DEA) em Histoire et Civilisations - Université Montpellier III - Paul Valery, França, intitulada
Candido Portinari: 1903-1962 (1981). Graduada em Licenciatura em desenho e plástica, Universidade Mackenzie em
São Paulo (1978).


142

absolutamente personalizada utilizando seus comportamentos, seus gostos, suas histórias e, na


maioria das vezes, sem que ele seja ao menos capaz de compreender como este processo ocorre.
Para fazer esta reflexão, revisitaremos a série da plataforma de streaming Netflix, Stranger
Things, que apesar de não ser o primeiro produto da plataforma a utilizar a análise e o cruzamento
de rastros de digitais em seu benefício, foi o primeiro a totalmente desenvolvido a partir de
sugestões vindas dos algoritmos.
Observaremos o trabalho de Eli Pariser, em seu livro, The Filter Bubble: How the new persolized
web is changing what we read and how we think, de 2011 (A bolha dos algoritmos de filtro: Como
a nova web personalizada está mudando o que lemos e como pensamos, tradução da autora), no
qual o ativista já alertava para a transformação em curso na internet e em suas diversas
plataformas e seus possíveis impactos negativos.
Passando pelo documentário da própria Netflix, O Dilema das Redes, disponibilizado em outubro
de 2020, no qual ex-executivos de redes sociais como o Facebook, Pinterest e Instagram,
aparecem ao lado de especialistas e pesquisadores alertando sobre os impactos causados pela
manipulação de comportamentos humanos por meio de algoritmos de análise de dados.
Concluindo com questionamentos feitos pelo filósofo Byun-Chul Han em seu livro The Expulsion
of the Other, de 2018 (A expulsão do outro, tradução da autora) sobre nosso desejo de expulsar a
negatividade do outro, que surge no formato dos riscos, dores e desconfortos em nossas vidas,
preenchendo este espaço com a positividade de nós mesmos, com dados conhecidos, pensamentos
familiares – sem alarmes ou surpresas – em cada espaço possível de nossas vidas.

Stranger Things e a memória da sessão da tarde

Em junho de 2016 a plataforma de streaming de vídeos Netflix lançou a série Stranger Things. A
série foi um sucesso imediato com sua mistura de memórias afetivas, com grandes marcos da
cultura pop dos anos 1980 e um pouco de terror e suspense. Recheada de referências como ET –
O extraterrestre e Goonies, a série fez muitos adultos visitarem suas memórias infantis.
Mas, entre os inúmeros textos de mídias especializadas da época que tentavam explicar o
fenômeno falando sobre as referências cinematográficas, o enredo e o formato da narrativa, já era
possível encontrar os textos que nos chamavam a atenção para o fato de a série ter utilizado
algoritmos de análise de dados de internet em sua produção. Um deles chegando a questionar se
a série não seria uma “obra de arte dos algoritmos da Netflix”.
Apesar de não ter sido a primeira obra a utilizar os algoritmos para impulsionar sua existência,
diferente de House of Cards que é baseada em uma série homônima da BBC, Stranger Things é
a primeira totalmente pensada a partir dos rastros que deixamos ao navegar pela internet. Do
gênero escolhido – terror, suspense, ficção científica – aos atores principais – Winona Ryder e
Matthew Modine – à ambientação nos anos de 1980, tudo veio de alguma análise de dados.


143

A “obra de arte dos algoritmos” feita sob medida para o consumo rápido, em maratonas, chega à
sua quarta temporada em 2020, e talvez tenha perdido um pouco do encantamento da primeira,
mas certamente se tornou um marco na percepção de que os rastros que deixamos na internet
podem atuar como ferramentas para a construção de conteúdos e narrativas complexas e não
apenas para a venda de produtos de varejo.

Consumo sob medida, adequado ao seu momento

A Netflix é orgulhosa de seu algoritmo de recomendações, o mesmo responsável pela


identificação das variáveis que levaram à produção de Stranger Things, tendo gasto mais de cinco
bilhões de dólares para sua programação e afirmando que espera que ele se torne tão bom no que
faz que possa “recomendar uma série ou filme que se encaixe no seu humor atual”.
Sem alarmes e sem surpresas, conhecido, familiar, um campo seguro e confortável para relaxar
após uma semana difícil, mas é isso mesmo que deveríamos querer? Eli Pariser, em seu livro The
Filter Bubble: How the new persolized web is changing what we read and how we think, de 2011
(A bolha dos algoritmos de filtro: Como a nova web personalizada está mudando o que lemos e
como pensamos, tradução da autora), nos introduziu ao conceito de bolha de algoritmos ao
perceber que a internet havia se transformado em um espaço personalizável e em constante
adaptação a um usuário particular.
Ele traça uma eficiente linha do tempo, capítulo a capítulo, iniciando com as alterações postas em
prática pelo Google em 2006, e explica como e porque a internet deixou de ser um espaço com
os mesmos conteúdos disponíveis para todas as pessoas ao mesmo tempo, para se tornar um
espaço no qual uma curadoria algorítmica é aplicada antes que você possa ter contato com
qualquer coisa presente nela. E fala sobre sua preocupação a respeito de como esta curadoria
deixa de fora coisas que não acredita serem relevantes para um indivíduo, como se aquele texto
imagem ou vídeo, nunca tivesse realmente existido. O livro foi lançado em 2011.
Diferente de alguns autores que soam alarmistas, Pariser fala com preocupação, mas também com
a consciência de que algumas medidas precisariam ser tomadas diante da quantidade de
informações geradas na internet. Ele apenas não acredita que as medidas adotadas tenham sido as
mais éticas.
Para Pariser, que cresceu em uma cidade com a população total de 2,164 habitantes de acordo
com o Censo de 2010, a internet era uma porta aberta para o mundo, mas lidar com a quantidade
de informações presente nela havia se tronado impossível e as grandes plataformas começaram a
trabalhar em alguma forma de escolher por nós o que deveríamos ver, ler, acessar ou
simplesmente saber que existe. O valor escolhido para ser o crivo que permite a passagem ou não
de uma informação foi a relevância. Sendo relevância aquilo que parece ser mais próximos de
nossos gostos pessoais e comportamentos.


144

A preocupação do autor residia nos conteúdos que “deixam de existir” e na forma como estas
escolhas estavam, e estão, sendo feitas com base em nossos hábitos, e naquilo que gostamos ou
não, na nossa proximidade com algo ou alguém. Para Pariser, o alerta vem associado ao fato de
que nós não somos consultados nesta escolha e de que às vezes, nós podemos querer saber sobre
coisas que nos aborrecem, ou sobre coisas de algum lugar distante, ou sobre alguém com quem
não temos tanta amizade, ou sobre assuntos que não são os que comumente conversamos, mas
esta possibilidade pode ser tirada de nós à medida que a curadoria baseada na relevância foca
naquilo que nos é mais agradável.
Sobre toda esta personalização baseada nas escolhas que fazemos, na maioria das vezes de
maneira inconsciente, ele chega a dizer: “os filtros de personalização servem como um tipo
invisível de autopropaganda, nos doutrinando com nossas próprias ideias, amplificando nosso
desejo por coisas que sejam familiares”. (PARISER, 2011, paginação irregular, tradução da
autora)
Para enganar os algoritmos, o autor ensina a clicar nestes temas divergentes, nestas pessoas
distantes de forma que eles achem que isto também nos interessa. Porém hoje, após dez anos de
amadurecimento dos algoritmos, talvez seja necessário mais que isso.
No mês de outubro de 2020, a Netflix lançou em seu catálogo o documentário O Dilema da Redes.
Nele, vários ex-executivos de grandes redes sociais e outros aplicativos de internet como o
Facebook, Pinterest e Instagram, falam sobre como as preocupações apresentadas por Eli Pariser
evoluíram desde 2011. Entre as preocupações expostas agora por estes executivos está o resultado
do amadurecimento do que Pariser chama de bolha de relevância e o seu resultado prático no
mundo físico com a manipulação de informações e consequentemente de comportamentos.
Mas em nosso caso, o que chama a atenção é uma consequência apontada pelo PhD em psicologia
social, Jonathan Haidt. Ele observa que a exposição extrema à qual nossas crianças se habituaram,
ao postarem seus hábitos, suas rotinas, sua alimentação, amigos, roupas, comidas e pensamentos
diariamente, diversas ao dia em busca de aprovação pública e a eventual não obtenção desta
aprovação as tornou menos confortáveis em arriscar-se. Ele exemplifica com a vida romântica
destes adolescentes, apontando que o número de jovens da Geração Z que já participaram de
encontros românticos é menor em relação as gerações anteriores e continua caindo.

A expulsão da negatividade do outro em favor da positividade do mesmo

Para o filósofo Byung-Chul Han o outro é algo que deveria ser preservado em nossas vidas. Em
seus diversos livros, ele deixa presente uma característica da sociedade atual. Deslocar o foco do
externo para o interno e relaciona esta característica com diversas áreas de nossa vida cotidiana
como amor (A agonia do Eros, 2017), trabalho (A sociedade do cansaço, 2017) e representação
cidadã, passando é claro pela internet (No enxame, 2018).


145

Particularmente em seu The expulsion of the other, (A expulsão do outro, tradução da autora) Han
fala sobre toda uma nova qualidade de males que este afastamento do outro provoca. Males
difíceis de serem percebidos, pois aparecem revestidos da positividade do mesmo. Isto é, sendo
algo que eu já conheço, com o que eu já me relaciono, isso não deve ser algo que me oferece
risco. Para Han, ao nos afastarmos do outro, por exemplo, deixamos de ser incomodados,
inflamados, doloridos, o que pode ser confortável, mas que passa longe de ser bom, já que nos
adormece, deprime e sufoca. (HAN, 2018)
Como Pariser, Han fala dos perigos de nos rodearmos apenas de nossas próprias visões e ideias,
apenas daquilo que nos traz conforto, apenas daquilo que nos é familiar e que não nos incomoda.
Han é duro ao comparar este movimento ao das doenças de morte silenciosa como o infarto, que
vem do excesso de nós mesmos. Ele alerta para o que chama de violência do mesmo, observando
que esta é invisível, imperceptível, pois é revestida de positividade. Diferente do outro, que traz
em sua interação a violência da agressão, da diferença, da inflamação, que de acordo com ele,
permite que o corpo seja capaz de reagir por meio de seu sistema imunológico.
Em outras palavras, nós conseguiremos lutar contra um outro, apartado de nós, que nos invade,
mas contra nós mesmos não. Contra nós mesmos, talvez nem cheguemos a perceber o que está
acontecendo antes que seja tarde demais, e é por este motivo, para o autor, que corremos maior
risco.
Se relacionarmos as visões dos autores veremos que a proximidade e a urgência é a mesma. A
força do incômodo em ambos é a mesma, mas até que ponto nós queremos que isso seja diferente.
Até que ponto, nós, consumidores, trabalhadores (positivistas sob o olhar de Han, cobrando a nós
mesmos de nossas derrotas, senhor e escravo habitando o mesmo ser), nós gostaríamos de arriscar
a dor?
A série na plataforma de streaming nos leva de volta à infância, a um período despreocupado e
refúgio de devaneios de felicidade. As relações, em redes sociais virtuais, que nos uniu durante
um período, ao focar na relevância dos conteúdos, nos isolam, deixam assim de serem redes e nos
afastam de pessoas que nos questionem, que nos contraponham, que nos critiquem. Mantendo ao
nosso redor aqueles que nos fazem coro. Ao completar nossos pensamentos, os algoritmos nos
poupam algum trabalho de raciocínio e nós nunca paramos para refletir sobre o que ele deixou de
fora para conseguir responder com tanta velocidade e precisão.

Um possível retorno ao desconhecido

Como dito no início, nosso objetivo não chegar a uma conclusão e oferecer uma visão de futuro
possível, mas questionar se este ser humano, que prefere evitar a dor sempre que possível estará
em algum momento disposto a enfrentá-la. Em uma passagem documentário O Dilema das Redes,


146

o ator que interpreta um adolescente típico não consegue lidar com as frustrações cotidianas sem
o suporte oferecido pelas redes sociais, o que sugere imaturidade emocional.
Mais afastados, imaturos emocionalmente e temorosos dos riscos envolvidos na exposição direta
a outro ser humano, nos fechamos em bolhas de satisfação imediata e enviamos de volta à
indústria sinais que realimentam este processo e o amplificam em outros setores já que é prática
pautarmos o desenvolvimento de novos produtos em escolhas, muitas vezes inconscientes, feitas
pelos seres humanos.
Nos questionamos se em algum momento não deveríamos começar a pensar, e se fosse diferente
e projetar possibilidades disto acontecer.

Referências Bibliográficas

PARISER, Eli. The Filter Bubble: How the New Personalized Web Is Changing What We
Read and How We Think. Penguin Books, 2011.
HAN, Byung-Chul. Agonia do Eros. 1ª. edição, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 2017.
HAN, Byung-Chul. No Exame. Perspectivas do digital. 1ª. edição, Editora Vozes, Petrópolis,
RJ, 2018.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. 2ª. edição, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 2017.
HAN, Byung-Chul. The Expulsion of the Other: Society, Perception and Communication
Today. 1ª edição, Editora Polity, 2018.
MILLER, Gustavo. Stranger Things uma obra de arte do algoritmo da Netflix?.
https://cryptoid.com.br/banco-de-noticias/stranger-things-uma-obra-de-arte-do-algoritmo-da-
netflix/ Acesso em: 06 de out. de 2020.
O DILEMA das Redes. Direção de Jeff Orlowski. Estados Unidos: Netflix, 2020. (94 min.).
A NETFLIX e as maratonas: novo gráfico de maratonas revela as séries que são devoradas e as
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https://about.netflix.com/pt_br/news/netflix-binge-new-binge-scale-reveals-tv-series-we-
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de 2016. Disponível em:
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Personalization at Netflix. Netflix Technology Blog, 07 de dez. de 2017. Disponível em: <
https://netflixtechblog.com/artwork-personalization-c589f074ad76> Acesso em: 06 de out. de
2020.


147

O ESPAÇO URBANO e a PÓS-FUNÇÃO: Relendo Bernard Tschumi

Jaime Martin Vega Rocabado


Suzete Venturelli
Priscilla Almeida Cunha Arantes 52

Resumo
Neste artigo a questão da desconstrução do espaço urbano e os processos de design para sua
ressignificação e reconstrução no século 21 serão o foco de desenvolvimento deste trabalho. Por
natureza dar sentido a um espaço urbano compreende aspectos de uma rede complexa de
interpretações de informações as quais permeiam desde a semiótica a questões técnicas de: leitura
da cidade, históricas e sócio afetivas. (Lynch, 99, Cullen, 93 e Morin, 2003), no entanto o recorte
aqui proposto é a análise e interpretação quanto aos significados e lógicas de pós-funcionalismo
(Eisenman, 1995) que chamaremos de pós-função em interface a lógicas de usabilidade e
imaterialidade previstas nos trabalhos de Bernard Tschumi.
Palavras-chave: espaço urbano, rede complexa, pós-funcionalismo

Abstract
In this article, the issue of deconstructing urban space and the design processes for its
resignification and reconstruction in the 21st century will be the focus of development of this
work. By nature, giving meaning to an urban space comprises aspects of a complex network of
interpretations of information that permeate from semiotics to technical issues of: city reading,
historical and social affective. (Lynch, 99, Cullen, 93 and Morin, 2003), however the cut proposed
here is the analysis and interpretation regarding the meanings and logics of post-functionalism
(Eisenman, 1995) that we will call post-function in interface to logics of usability and
immateriality foreseen in the works of Bernard Tschumi.
Keyword: urban space, complex network, post-functionalism

Introdução

O design do espaço urbano, por natureza, se desenvolve por meio da vivência da forma espacial
tridimensional em escala humana, por meio da locomoção no espaço e no tempo. Tal lógica
compreende os processos de percepção e significação desenvolvidos de forma única em cada
indivíduo. (Lynch, 99 e Pierce em Melo, 2015). O que para tanto é necessário conhecimento
prévio, semiótico, para que se possa “navegar” pelo espaço urbano e dar não apenas significados,
mas interações e recriações em conformidade a interfaces de desenvolvimento presentes no
cotidiano dos indivíduos. Jacobs nos apresenta a relevância da subjetividade de cada indivíduo e
da sociedade urbana na constituição de significados e simbolismos para com a criação do que virá
a ser denominado cidade. (Jacobs, 2011)
Sob outro ponto de vista, Kevin Lynch2, discorre sobre o educar o olhar a partir de elementos de
uma linguagem tridimensional na escala humana, para então dar significados únicos a leitura

52
Jaime Vega é doutorando da Universidade Anhembi Morumbi; Suzete venturelli é doutora e atuan na Universidade
Anhembi Morumbi e Priscila Arantes é doutora e atua na Universidad Anhembi Morumbi.


148

espacial do espaço urbano vivenciado. Aqui propomos interfaces entre Jacobs e Lynch para com
proposições trabalhadas por Bernard Tschumi no design do espaço urbano do século 21.
O cenário de constituição modernista de atuais metrópoles como: São Paulo, Nova York, Xangai,
Paris, Rio, Dubai, entre outras, moldou e construiu um paradigma de ocupação territorial sob a
premissa funcionalista. A cidade como máquina de: morar, trabalhar e descansar. A cidade
construída e a ser vivenciada sob a técnica da função. Tal lógica é questionada em meados do
século 20, com especial atenção a correntes e conceitos pós-estruturalistas e/ou pós-modernistas
que apresentam apontamentos sobre questões complexas e subjetivas tão ou mais importantes do
que a “função técnica” das cidades. (Jacobs, 2011)
O olhar funcional e estanque modernista não é o suficiente para abarcar a complexidade que forma
a cidade.
Segundo Edgar Morin, em sua Teoria da Complexidade4, problemas complexos seriam apenas
compreendidos a partir de estudos e análises transdisciplinares que abarcassem olhares tanto:
hologramáticos como dialógicos e recursivos. O dialógico seria a ponte entre dicotomias, o
hologramático o que compreende o indissociável entre as partes e o todo e o recursivo a
observação da causa e efeito.
Por meio desta teoria e considerando as cidades e seus espaços urbanos que a conformam como
conjuntos de: alta complexidade, heterogeneidade e indissociabilidade da cultura dos que nela
vivem; optamos pela desconstrução do que conformaria o espaço urbano, para a não dissociação,
separação deste de forma estanque das interfaces e significados que o constroem.
Sob tal desafio, elencamos o trabalho de Bernard Tschumi, que sob a ótica da desconstrução
apresenta uma articulação possível para direcionar o proposto, analisar e interpretar a pós-função
do espaço urbano e seu design atual.
Tschumi apresenta em Event Cities, questionamentos que interfaceiam trabalhos de vários
autores, podemos identificar citações a trabalhos de Lynch, Cullen, Morin, Derrida, Deleuze,
Guattari, Baudrillard e Jacobs, dos quais aqui observamos: a leitura do espaço urbano, a
importância da subjetividade nos processos de significação e constituição da cidade, a
complexidade e necessária visão das partes e do todo, a
imaterialidade e inconstante realidade temporal das coisas, a casca e conteúdo, o tempo e o
registro e a impossibilidade de definição da cidade como obra finalizável, imutável por função,
mas sim como espaço de mutação contínua transdisciplinar, temporal, desterritorializável,
possível e indefinível a não ser como fruto da vontade temporal de quem a vivência. A cidade
como cenário de eventos de quem a habita, de quem por dentro a constrói e dá imanência.
Sob estes aspectos Tschumi desconstrói a cidade, o espaço urbano e suas partes subjetivas ou
físicas são sempre interligadas numa lógica de leitura espacial que convida a resignificação
contínua dos espaços físicos por meio da subtração do conceito de função destes. A casca ganha
importância quando esta não é um objeto encerrado em si, mas parte de um conjunto complexo
mutável ao desejo imaterial de quem a usa e dá assim o conteúdo. Tschumi apresenta aqui sua


149

proposta no Parc La Villete em Paris, 1998; com suas Folies, Linhas e Superfícies.

Registro em filme de evento (fogos de artifício) e lógica de desconstrução e significação. Event


Cities, 1998

Bernard Tschumi de forma “sinestésica” transmite o evento (fogos de artifício no Parc La


Villete), para uma lógica paramétrica de composição de espaço urbano, a partir de interfaces
entre conceitos de leitura da cidade semelhantes à Kevin Lynch, bem como o registro do
subjetivo vivenciável efêmero de um evento. Event Cities, 1998

Complexidade almejada registrada em diagrama de projeto, onde parte e todo são


indissociáveis, composta por lógica de linguagem de leitura da cidade e efemeridade de um
evento urbano. Event Cities, 1998


150

Transposição do diagrama de complexidade compositiva para espaço tridimensional físico


vivenciável. Notar que Linhas, Pontos (marcos) e Superfícies, se assemelham a linguagem de
leitura da cidade proposta por Kevin Lynch (5 elementos estruturantes da cidade: Vias, Limites,
Bairros, Marcos e Pontos Nodais))


151

Folie (ponto), uma casca a espera da imanência por meio da vivência temporal de um evento.
Event Cities, 1998

Design paramétrico das Folies, Event Cities, 1998


152

Design das Folies, Event Cities, 1998

Complexidade tridimensional sobreposta a representação gráfica bidimensional, Folie e Linha,


Event Cities, 1998

Bernard Tschumi, com seu Parc La Villete, propõe a materialização, a transmutação de conceitos
imateriais para materiais físicos. Do design paramétrico para o design subjetivo do espaço


153

público.
Em sua proposição, desconstruiu o espaço público urbano em: superfície, linha e ponto; num
segundo momento, criou pontes entre a representação material que tais elementos estruturais
significam para com o registro temporal de um evento significativo do imaginário dos indivíduos
que dão imanência à cidade.
A obra, permite sua leitura, porque parte de princípios de linguagem do espaço tridimensional
comuns aquela população urbana. Permite sua transmutabilidade, porque nenhum de seus
elementos é composto a partir de uma função específica, é uma casca, um cenário a espera de um
evento, para tanto tais fundamentos nortearam o design paramétrico do conjunto e das partes, as
folies se originam de partes intercambiáveis entre estas, as linhas hora estarão no solo hora
flutuando criando percursos e limites conforme transposição do registro do evento inicial, os
fogos de artifício de 1992 na área que virá a ser o Parc La Villete e por último, as superfícies
serão conformadas a partir da vivência do espaço e compreensão de linhas e pontos e texturas de
solo que o conformam.
O Parc La Villete, obra de 1998, se constitui como legado de vanguarda do fim do século 20 com
olhar para o século 21. Sua permanência como marco do desconstrutivismo bem como do
emprego de alta tecnologia e ressignificações para o design da cidade, são de grande valia 21 anos
depois, quando contemporaneamente se debate em meio a uma pandemia global o que é estar e
conformar um espaço público permanecendo a população confinada, em quarentena em suas
unidades habitacionais.

- a alta tecnologia com a existência de inteligências artificiais conectadas e autonomamente


propondo demandas produtivas e comandos de produção a partir da análise de big datas,
- a customização completa do design, agregando a este valores subjetivos e de durabilidade em
contraponto à abstração e simplificação de um objeto não visto para durar.
- a constituição de uma nova mão de obra integrada e especializada a sistemas computacionais
para eficiência da cadeia produtiva. Em consequência podemos identificar questões a serem
equacionadas nesta lógica:

- A supervalorização do objeto, a partir de sua customização industrial, poderá acarretar


a gasto maior de material, maior custo, maior impacto 
ambiental e menor inclusão
social, 

- Em países europeus como Alemanha, a reciclagem e/ou reutilização 
será uma das
premissas para produtos da Indústria 4.0 gerando um cenário mais sustentável, que
considera que a disponibilidade de recursos naturais e os impactos da produção industrial
e de consumo se inter-relacionam sob aspectos de diminuição da capacidade do planeta
em sustentar um imensa sociedade capitalista. 
Ao fim é necessário equacionar, que
devido ao uso de alta tecnologia, a produção industrial será incapaz de gerar em cadeia


154

produtiva o número suficiente de empregos para a manutenção de um consumo necessário


para todo o sistema. A criação e valorização de novos tipos de empregos se fará premente
porém provavelmente em tempos diferentes da adoção de tecnologias industriais, o que
poderá causar imenso desemprego e exclusão social. 


A proposição de cascas efêmeras, como o são as Folies, poderão ser questionadas numa
perspectiva futura de uma sociedade que irá valorizar a alta customização do design e a perenidade
do objeto construído. É possível imaginar uma tendência de volta à preceitos de forma e função
modernistas.
É possível encontrar soluções, sob a ótica do design do espaço urbano, ações como as do
urbanismo tático, que criam “Folies” efêmeras, conduzem a participação na ocupação e
ressignificação de espaços públicos, questionando o direito à cidade e o direito a ser parte de sua
construção. O customizar e consumir aqui é questionado pelo re-significar, simplificar e reciclar.


155

Urbanismo tático, São Paulo, 2019. A ressignificação e reocupação efêmera do espaço público

Como proposto por Latour, há um desafio imposto a este contexto, a sociedade sempre se
apresenta heterogênea e não estanque ao que propomos, seu desenvolvimento nunca é
homogêneo, a exemplo: se uma realidade poderia ser considerada modernista num trecho de
cidade, noutro trecho poderá ser pós- modernista e nunca ter passado sequer pelo modernismo.
Assim por dizer, teremos cenários onde o design urbano e a constituição da cidade estará, como
esperado, no âmbito de cenários completamente diferentes.
A exemplo: recentemente no Brasil, devido a pandemia, as políticas públicas educacionais
previam um cenário onde a imensa maioria da população estaria conectada à internet, o que de
fato se mostrou errôneo, não real. Convivem ao mesmo tempo populações com diferentes graus
de conectividade à big data bem como de acesso ao desenvolvimento e serviços previstos apenas
por meios digitais.
A contribuição de trabalhos como os de Edgar Morin para compreensão destes cenários
complexos se torna relevante ao designer que poderá encontrar referências em trabalhos como os
de Bernard Tschumi em como refletir e principalmente incluir
pessoas e seus valores para o design num século 21 extremamente: heterogêneo, mutante e
passível de coexistência de opostos em sua rede subjetiva e complexa de desenvolvimento.
___________________________________________________________________
1 Mougalas, começa a ser utilizado oficialmente em 2005, quando Roger Mougalas publica artigo sobre o tema. ROSS,
Joshua- Michéle. Roger Magoulas on Big Data. Ed. O'Reilly Radar (em inglês), 2010
2Kevin Lynch, em a Imagem da Cidade propõe elementos estruturais para a leitura da cidade, tais estruturas são apenas
elementos de linguagem, deixando a livre interpretação, o livre olhar de quem vivencia a cidade
3Jane Jacobs, em Morte e Vida das Grandes Cidades, defende a importância da cultura e de valores imateriais
subjetivos, na composição de significados, valores e construção das cidades.
4Edgar Morin, em Terra Pátria, quando em A natureza da natureza, apresenta suas proposições para análise e
compreensão de sistemas complexos.


156

5 Em Industria 4.0, Publicações Firjan. Cadernos SENAI de Inovação, São Paulo: 2016, as características do que serão
os novos meios de produção são tratados sob contextos no Brasil e Mundial.


157

As musas dos videogames: um limiar entre a objetificação e a hiper-realidade

The muses of videogames: a threshold between objectification and hyper-reality

José Antônio Loures Custódio53

Resumo
A proposta do artigo é problematizar as musas de uma contemporaneidade que flerta com a hiper-realidade.
Nesse contexto, as personagens de videogames com apelo sexual que migraram do meio digital para novas
corporalidades além do planejado por seus desenvolvedores. Assim é discutido como a personagem Liara
T’Soni, de Mass Effect (2007 – 2012), é desprovida de seu lado intelectual ao migrar para páginas
pornográficas; como a personagem Lara Croft da franquia Tomb Raider (1996 – 2018) transitou entre
diversas mídias sempre atualizando seu aspecto visual, mas em constante objetificação; E, por fim, o
trabalho também apresenta o caso do Afrodite Sex Shop, onde a personagem Afrodite de Smite (2014)
estampa a entrada do estabelecimento em Anápolis – GO.
Palavras-chave: Videogames, hiper-realidade, Lara Croft, Liara, Afrodite.

Abstract
The intent of the current article is to problematize the muses of a contemporaneity that flirts with hyper-
reality. In this context, the videogames characters with sexual overtones that migrated from the digital
environment to new embodiments beyond the planned by its developers. In addition, it discusses how the
character Liara T’Soni, from Mass Effect (2007 – 2012), is extracted from her intellectual attributes while
migrating to pornographic pages; as well as the character Lara Croft, from the Tomb Raider game series
(1996 – 2018), in which transited between different medias always updating her visual aspects, however,
in constant objectification; and, in closing, the article also presents the case of Afrodite Sex Shop, where
the character Afrodite, from Smite (2014), covers the entrance of the establishment in Anápolis – GO.
Keywords: Video games, hyper-reality, Lara Croft, Liara, Afrodite.

Introdução

Na Mitologia Grega, os frutos da relação entre Mnemósine – a titânide da memória e Zeus – o


senhor dos céus, foram nove filhas, cada uma representando um espectro das artes: Calíope,
poesia épica; Clio, história; Erato, poesia lírica; Euterpe, música; Melpômene, teatro de tragédia;
Polímnia, música cerimonial; Tália, teatro de comédia; Terpsícore, dança; e Urânia, astronomia
e astrologia. Poetas e artistas invocam as musas para engrandecer e inspirar suas narrativas
(MENEGHEL; IÑIGUEZ, 2007). As palavras sibiladas pelas musas também eram consideradas
a verdade, sendo a representação da união entre história e memória (FREIXO, 2007). Durante a
História da Arte, as musas eram representadas como mulheres com padrões de beleza compatíveis
com cada período, e em cenas festivas. Nesse sentido, na contemporaneidade, surgiram novas
musas capazes de transpassar realidades através dos videogames.


53
Artista multimídia e atualmente doutorando no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais - UnB.
Trabalha na linguagem da arte computacional, histórias em quadrinhos, web arte, fake arte e gamearte.
Mestre em Arte e Cultura Visual, pelo Programa de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual - UFG. Desde
2016 pesquisa sobre a sexualidade nos videogames em seu caráter histórico, visual e poético. Também
pesquisa sobre transhumanismo, jogos de tabuleiro, cibercultura e práticas divinatórias.


158

De maneira orgânica, esses aparatos tecnológicos em questão, foram se apropriando da


linguagem cinematográfica do cinema: os diversos enquadramentos, planos e ângulos
causaram uma rápida evolução tecnológica e permitiram a inserção de cenas mais
elaboradas e dramáticas54. Assim como a evolução tecnológica também permitiu modelos
de personagens cada vez mais realistas e complexos. Para Marcel Martin (2013, p. 31) a
câmera foi fundamental para o cinema alcançar o patamar de arte: seu nascimento
enquanto arte data do dia em que os diretores tiveram a ideia de deslocar o aparelho de
filmagem ao longo de uma mesma cena. Essa mesma câmera libertadora que surgiu nos
cinemas, também alcançou os videogames e foi responsável por expandir as
possibilidades de representação e a pluralidade de gêneros nos videogames.
Atualmente, com o uso de periféricos de realidade virtual, a união da câmera subjetiva
somada com óculos de realidade virtual resultou em uma imersão sonhada apenas em
filmes de ficção científica. Assim como o uso da câmera transformou o cinema em arte,
ela foi uma das responsáveis por permitir que os desenvolvedores enxergassem nos games
um potencial artístico. E como acontece com qualquer tecnologia, a indústria
pornográfica visualizou na realidade virtual a possibilidade de inovar e atrair mais
público.

Figura 1 – Cabines para acesso a pornografia em realidade virtual, distrito de Akihabara – Japão. Fonte:
https://www.vrroom.buzz/vr-news/business/porn-company-opens-vr-rooms-tokyo.

Por exemplo, a Soft on Demand – companhia japonesa dedicada à indústria pornográfica,


instalou cabines no distrito de Akihabara, situado em Tóquio (fig. 1). Nessas cabines o
usuário paga para usar os periféricos de realidade virtual, seleciona um filme de sua
preferência, e assim pode estar imerso dentro de uma produção pornográfica.


54
Vídeo de minha autoria sobre a evolução da câmera cinematográfica nos games pode ser acessado em:
https://www.youtube.com/watch?v=GqFHsJIfBWE.


159

A evolução tecnológica permitiu a câmera cinematográfica nos videogames e com isso a


criação de novas musas, essas que originalmente nasceram no ambiente digital através da
modelagem 3D. As personagens de videogames agora migram para o nosso cotidiano:
Liara T’Soni, Lara Croft e Afrodite. Cada personagem com suas especificidades, mas
sempre com uma dualidade em constante conflito: o intelecto e a objetificação. De
maneira geral, essa objetificação parte do consumidor-rei, uma espécie de perfil de
consumidor tradicional com a tendência de impor sua definição e preferências de como
se deve ser um jogo digital (BURNS, 2014). Esse jogador deseja interagir com corpos
objetificados de mulheres digitais, e assim reforçar uma experiência masculina
hegemônica (GOULART; NARDI, 2017).
Dentro desse cenário, o conceito de hiper-realidade proposto por Jean Baudrillard (1991)
se mostra fértil para discutir como essas musas digitais estão presentes em nossa
realidade. Para Baudrillard (1991, p. 9) simular significa fingir o que não se tem, nesse
sentido, as personagens de videogames perderam o seu referencial de origem, e agora
possuem autonomia para existir em um contexto hiper-real.

Liara T’Soni: musa da ciência

Imaginem a seguinte cena, você está em casa jogando videogame, enquanto descansa de
suas obrigações acadêmicas, tranquilo e se divertindo com a sua namorada, mas não uma
namorada qualquer, mas uma mulher azul. Isso aconteceu comigo enquanto jogava a
trilogia Mass Effect (2007 – 2012), a mulher azul em questão chama-se Liara T'Soni, uma
pesquisadora pertencente a raça asari (fig. 2).

Figura 2 – Personagem Liara T’Soni em Mass Effect 3.


Fonte: https://masseffect.wikia.com/wiki/Liara_T’Soni.


160

Vindas do planeta Thessia, as asari apresentam uma estrutura corporal similar a humana,
mas com tons de pele que variam entre o azul e verde. Na cabeça não há pelos ou cabelo,
e sim uma forma similar a espécimes marinhas. É importante ressaltar que sua população
é formada exclusivamente por mulheres, e também possuem uma longevidade que pode
passar dos milhares de anos. Em Mass Effect as asari são verdadeiras gênias da pesquisa
genética, militar, arqueológica e tecnológica, entretanto, também são as principais garotas
de programa e dançarinas em boates espalhadas nesse universo. Uma dicotomia
intrigante, de um lado as mentes mais brilhantes do universo, de outra, apenas o seu lado
sexual importa. Durante o sexo com uma asari não há apenas o elo físico entre os corpos,
mas uma forte ligação mental. Durante o sexo os olhos de uma asari se dilatam, nesse
momento acessam o sistema nervoso do parceiro, enviando e recebendo impulsos
elétricos através da pele. Assim os parceiros trocam sensações, emoções e até mesmo
lembranças, um acesso irrestrito a mente do outro. Contudo, nem sempre isso é seguro,
devido a uma falha genética gerada através da reprodução entre duas asari, e o resultado
pode ser uma Ardat-Yakshi. O puro sangue asari cria uma condição única, em que durante
o sexo uma asari destrói a mente do parceiro. Normalmente as asari nessas condições
são caçadas, aprisionadas, e no caso de resistência, eliminadas.
Após toda essa apresentação das características da espécie asari, fica claro o motivo da
minha escolha pela Liara para formar o meu par romântico em Mass Effect. Os
backgrounds cultural, intelectual, sexual, biológico, mental e físico colocam a
possibilidade de um relacionamento com Liara além de uma fantasia com uma mulher
azul. Sendo uma mistura de curiosidade com uma pitada de perigo eminente, pois mesmo
que a parceira não seja uma Ardat-Yakshi, durante o sexo a esta lê a sua mente,
descobrindo os seus desejos, medos e segredos mais obscuros. Uma experiência
transcendental, impossível de ser alcançada através de uma parceira humana.
Noções de gênero binárias não se aplicam à raça asari. A própria Liara diz: “homem e
mulher não tem um real significado para nós” (GLASSIE, 2015, p. 166). Então, a
personagem Liara não se enquadra em rótulos como lésbica, bissexual ou heterossexual,
ou seja, as asari se interessam pelo indivíduo e não pelo sexo e espécie (ibidem). A
indústria dos videogames está em uma longa e lenta mudança, contudo, ainda é dominada
por homens heterossexuais que produzem para outros homens heterossexuais. O sexo e a
sexualidade são raramente explorados além da heteronormatividade, e demais
sexualidades ainda são marginalizadas (GLASSIE, 2015). Por isso Liara e as asari
apresentam a principal função narrativa de fazer o jogador experimentar subversões da


161

heteronormatividade, baseados nas qualidades do ser, e não apenas no que é socialmente


aceito (ibidem). Durante o lançamento de Mass Effect (2007 – 2012) as personagens da
trilogia alcançaram o público adulto através de páginas pornográficas, com destaque para
Liara T’Soni (fig. 3):

Figura 3 – Vídeos pornográficos envolvendo a personagem Liara T’Soni.


Fonte: PornHub.

Para os consumidores de pornografia envolvendo videogames não importa a razão,


somente a simulação (BAUDRILLARD, 1991). Não existe um corpo físico como base
para as personagens, e sim um corpo digital que simula o orgânico. Encontramos uma
personagem digital competindo e até mesmo recebendo números de visualizações
superiores a produções pornográficas tradicionais. Nesse sentido, o gozo migra de uma
simulação real para o hiper-real (BAUDRLILLARD, 1991).
A narrativa envolvendo a genialidade de Liara é deixada de lado, e a mesma é
transformada em um mero objeto sexual destinado ao consumo. Liara, e
consequentemente as asari, são tratadas como seres que existem apenas para dar prazer,
fomentando o ignorar de seu aspecto intelectual. Assim percebemos uma representação
antagônica de acordo com o contexto em que encontramos a personagem. São os
pesquisadores e jogadores críticos que conseguem abstrair uma discussão mais profunda
sobre as asari e a representação da mulher.


162

Lara Croft: musa da exploração

Tomb Raider (1996) nasceu com a ideia de um jogo de ação, com exploração em ruínas
antigas repletas de armadilhas e animais mortais, em uma aventura em busca de relíquias
antigas. Acredito que essa descrição lhe recorde do icônico filme Indiana Jones (1981),
contudo, por tal motivo, os desenvolvedores optaram por uma protagonista mulher. A
equipe era formada exclusivamente por homens, com isso, imagino que a criação de Lara
foi similar ao filme Mulher nota 1000 (1981), onde dois adolescentes criam uma mulher
perfeita com o auxílio de um computador.
Lara Croft foi idealizada com 230 polígonos, o que limitava a inserção de maiores
detalhes no modelo, mas isso não impediu que seus protuberantes seios pontudos
ganhassem fama. Acidentalmente, Toby Gard – o artista responsável pela criação de Lara,
cometeu um erro que aumentou o tamanho dos seios da protagonista em 150%. O restante
da equipe gostou do impacto visual dos enormes seios, e assim foi decidido que Lara
Croft teria um apelo sexual, mesmo contrariando Toby. A partir desse momento a
personagem foi destinada a ser um ícone sexual, roupas curtas e inapropriadas para
explorar cenários como selva, deserto e montanhas. A clássica revista brasileira Super
GamePower (1997, p. 4) resumiu Lara Croft como: “radical, boa de briga e cheia de
curvas. Seu jogo é Tomb Raider, até o final para 32 bits”.

Figura 4 – Evolução da personagem Lara Croft, de 1996 a 2015.


Fonte: https://cheezburger.com/8982957312/picture-shows-the-steady-evolution-of-lara-croft-tomb-
raider.

Na juventude dos videogames, os personagens eram representados por uma pequena


quantidade de pixels, então os artistas abusavam da criatividade para deixar pequenos
quadrados reconhecíveis e também carismáticos. Lara Croft, em sua origem, contava com


163

apenas 230 polígonos (fig. 4). Já em Tomb Raider: The Angel of Darkness (2003) o
modelo tridimensional de Lara contava com mais de 5 mil polígonos. Em 2015, uma das
versões mais recentes da personagem, alcançou o número de mais de 40 mil polígonos,
uma quantidade consideravelmente superior a Lara Croft de 1996 (MUNHOZ, 2016). Em
2013 a série sofreu um reboot, e Toby Gard foi contratado como consultor, e assim foi
um dos responsáveis pela atualização do visual de Lara Croft, agora mais humana, com
uma carga emocional e consideravelmente menos sexualizada.
Em 2001 o jogo foi adaptado para os cinemas, e para encarnar a protagonista foi escolhida
a atriz Angelina Jolie, na época considerada uma das mulheres mais sensuais e belas do
mundo. Em 2018 o jogo foi novamente adaptado para os cinemas, mas dessa vez, tendo
como base o reboot, e como protagonista foi escolhida a atriz Alicia Vikander, vencedora
do Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo filme Garota Dinamarquesa (2015). Uma nova
visão sobre Lara Croft nos games, resultou em uma nova visão para o cinema, bem
diferentes da protagonista hipersexualizada de antes (fig. 5).

Figura 5 – Lara Croft no reboot de Tomb Raider, e Alicia Vikander no filme.


Fonte: http://www.ign.com/videos/2018/03/01/alicia-vikander-talks-pushing-her-limits-in-tomb-raider.

Figura 6 – Ensaio em comemoração aos 20 anos de Lara Croft.


Fonte: http://www.tombraidercollection.com/single-post/2016/07/18/Playboy-makes-a-tribute-to-the-
20th-anniversary-of-Tomb-Raider.


164

O apelo sexual da personagem persiste até hoje, recentemente a Playboy publicou um


ensaio sensual em comemoração do 20° aniversário do game, com direito a uma modelo
com seios poligonais (fig. 6). Segundo Baudrillard (1991, p. 30), atualmente os signos
artificiais são indissociáveis dos elementos reais, e podemos visualizar um exemplo disso
de maneira literal, com um ser humano simulando seios poligonais.
Para Tanya Krzywinska, a personagem Lara Croft não passa de uma ilusão tecnológica
libidinosa que fisga a atenção e a imaginação do consumidor, pois diferente de um ator
de cinema, que é feito de carne e osso, a protagonista de Tomb Raider é um modelo
tridimensional, e em seu interior são encontrados apenas códigos de programação
(KRZYWINSKA, 2015, p. 109). Como a personagem transita entre o real e o digital, isso
poderia explicar a sua constante fetichização por partes dos jogadores e do público em
geral.
Em 2018 esse fetiche por personagens digitais resultou em uma curiosa situação. A
personagem Lu – mulher digital da rede de lojas Magazine Luiza postou em seu Instagram
uma reclamação sobre os assédios sofridos: "Gente, tô chateada com algumas cantadas
pesadas que ando recebendo aqui nos comentários. E olha que eu sou virtual! Fico
imaginando as mulheres reais que passam por isso todos os dias!", consta na postagem,
em que aparece gesticulando em tom de lamento (ESTADO DE S. PAULO, 2018,
online).
Em 2013 me aventurei na série Tomb Raider com o reboot, e esse jogo me chamou a
atenção pelos sons emitidos pela protagonista. A nova Lara Croft geme, grita e fica
ofegante ao correr, pular, escalar, brigar, e esses sons são muito similares a produções
pornográficas. Dificilmente esses áudios foram inseridos ao acaso, os desenvolvedores,
em algum momento, decidiram colocar esses efeitos sonoros. Acredito que qualquer
pessoa poderia se enganar sobre a fonte dos gemidos de Lara Croft, independentemente
se é um jogador assíduo, ou não. Apesar de reformulada, a personagem ainda é perseguida
por seu passado, pois mesmo com roupas e equipamentos apropriados para a exploração,
uma aura sexual ainda é emanada por Lara Croft.
A evolução tecnológica permitiu a criação de personagens mais realistas, e,
consequentemente, mais sedutoras. Contudo, se trata de uma manipulação dos
desenvolvedores com o objetivo de criar um laço emocional entre as personagens e os
jogadores através do apelo sexual.

Afrodite: musa dos brinquedos sexuais


165

Anápolis é uma cidade majoritariamente cristã. Até mesmo a origem da cidade está
envolta em uma aura religiosa. Então me surpreendi quando fui ao centro da cidade e me
deparei com uma porta colorida que se revelou ser um sex shop. O fato de haver um sex
shop próximo à igreja matriz da cidade já é algo de se espantar, mas o que me impactou
foi a imagem na porta da loja. Um desenho de uma maga sensual em trajes azuis estava
decorando a porta (fig. 7).

Figura 7 – Entrada do Afrodite Sex Shop em Anápolis.


Fonte: Acervo pessoal do autor.

Conversei com a Taynara Larissa Camargo – proprietária do Afrodite Sex Shop,


e falei sobre os desenhos pornográficos, ela se assustou e disse: “Nunca pensei que isso
existia”. Após uma pesquisa, descobri que a personagem é na verdade Afrodite, uma das
personagens controláveis de Smite (2014). Poderíamos ter qualquer imagem para
estampar a porta, mas foi escolhida um desenho de uma personagem de um videogame.
O sex shop se chama Afrodite, e ao digitar o nome da deusa grega do amor no Google,
temos uma vasta opção de imagens, algumas mais próximas da realidade, pinturas,
esculturas e modelos (fig. 8):


166

Figura 8 – Afrodite em pesquisa Google.


Fonte: Google Imagens.

Acima os primeiros resultados da busca, e temos nove imagens com as cores rosa
e azul. Essa combinação de cores chama a atenção do usuário no meio das pálidas
esculturas gregas e de pinturas desbotadas. Dentre todas essas imagens, a Afrodite de
Smite (2014) é a representação feminina mais sexualizada em suas formas. Alguns meses
depois tive a oportunidade de conversar um pouco mais com a Taynara Camargo e
aprofundar o assunto, e realizei algumas perguntas55. A primeira: O que te fez escolher a
imagem de uma personagem de um videogame para representar o seu sex shop? E a
resposta foi “quando eu fui escolher o desenho, eu joguei no Google e achei essa imagem,
achei muito linda, muito atraente. Porém, eu não sabia que era de um jogo, mas ela é
muito bonita e chama bastante a atenção” (CAMARGO, 2019, online).
Então, a segunda pergunta: Por que essa imagem em específico simbolizou a
proposta do sex shop, e qual o motivo de ser escolhida no meio de tantas? Para essa
pergunta enviei para Taynara a imagem acima.

Pela questão que eu queria uma coisa que chamasse a atenção. As cores, o
contorno da imagem a sombra dela, achei muito atraente. Essas outras são
mais apagadinhas, e essa tem uma parte mais, digamos fofa que combina mais
com o meu estilo. Não gosto de uma coisa muito depravada meio puteiro.
Essas [as outras imagens] eu não achei legal nem bonito, eu gostei muito
daquela pela questão do brilho (CAMARGO, 2019, online).

Acredito que Camargo foi atraída tanto pelas cores do desenho quanto pelo
erotismo nas formas da personagem. Temos uma empreendedora que não conhecia os
desenhos pornográficos, e escolheu justamente uma personagem de videogame para ser


55
Conversa realizada via WhatsApp no dia 25 de junho de 2019.


167

a guardiã e imagem de seu negócio de objetos sexuais. Por fim, a terceira e última
pergunta: Como é ter um sex shop no centro de uma cidade conservadora e religiosa?

O tema sex shop e relação sexual sempre causa um certo constrangimento em


qualquer pessoa, sendo de qualquer religião, eles levam muito para o lado de
puteiro. Quando comecei a trabalhar com o meu esposo a gente teve bastante
problema em relação a isso. Então esse cuidado com a fachada, o que
representaria para as pessoas, o que as pessoas iriam ver e pensar, se elas
entrariam por ter uma imagem na porta, pelo nome, escolhas bem delicadas.
A parte física da loja é movimentada, mas as entregas são maiores, o público
prefere receber a mercadoria em casa do que vir direto aqui (CAMARGO,
2019, online).

É curioso como um desenho de uma personagem de videogame foi a escolhida para passar
a complexa mensagem escolhida por Camargo. Em suas palavras, o objetivo era não
passar uma imagem de depravação, logo, essa Afrodite foi escolhida como mediadora
entre o pré-conceito e a curiosidade sobre o tema, sendo uma imagem amigável. Porém,
sem perder o erotismo.
Camargo foi capturada por um sistema hiper-real sedutor que domina a todos
(BAUDRILLARD, 1991). A sexualidade encontrada nos videogames saiu do ambiente
computacional e alcançou uma realidade material. Um fenômeno que se alastra, sendo
cada vez mais comum em nosso cotidiano. Não nos damos conta desse processo, assim
como a dona do sex shop não soube aprofundar os motivos da escolha do desenho.

Considerações finais

Para Aaron Trammell e Emma Waldron (2015) muitas vezes os games perpetuam
estereótipos, onde a tecnologia é usada para reforçar a sexualidade com peitos,
chauvinismo, objetificação e outros elementos comuns da sociedade heteronormativa.
Assim, o consumidor-rei encontra nos jogos digitais o meio de perpetuação de uma visão
antiquada e misógina da representação da mulher.
Nesse contexto, encontramos Liara T’Soni, que dentro da narrativa de Mass Effect, é a
principal cientista e um dos seres mais inteligentes da galáxia. Contudo, a mesma é
encontrada em páginas pornográficas sendo desprovida da sua intelectualidade e sua raça
in game transformada em mero objeto sexual. Já Lara Croft, de maneira sistêmica e
persistente, é objetificada em diversas mídias. E, por fim, a personagem Afrodite foi
escolhida para ser a guardiã de um sex shop, e completamente apagada do contexto de
seu jogo de origem.


168

Jean Baudrillard (1927 – 2005) faleceu antes de ter a possibilidade de vislumbrar como
os videogames se tornaram uma constante fonte de imagens mais que reais. A evolução
da modelagem 3D e da inserção da câmera cinematográfica propiciaram um gigantesco
salto dentro da indústria dos jogos digitais.
As personagens de jogos digitais não estão mais cerceadas ao ambiente dos videogames,
e estão em um contínuo processo de transposição para o nosso cotidiano. Mas diferente
de um ser humano, essas personagens podem coexistir de maneira onipresente em
diversas mídias e no real. As musas gregas eram encontradas em museus e galerias através
de pintores e escultores, e agora novas musas vindas originalmente dos videogames são
encontradas em páginas pornográficas, ensaios fotográficos simulando seios poligonais e
na entrada de um sex shop.

Referências
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Burns, M. The King and his objects. (2014). Magical Wasteland. Disponível em:
<https://www.magicalwasteland.com/notes/2014/8/22/the-king-and-his-objects>. Acesso em: 12
out. 2020.
Camargo, T. (2019). Entrevista com Taynara Camargo [WhatsApp]. A Afrodite que transpassa
os videogames. Concedida a José Antônio Loures.
Estadão. (2018). Mulher virtual da Magazine Luiza reclama de assédio em comentários. Estadão.
Disponível em: <https://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,mulher-virtual-da-
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sobre o passado. (2007). Em: Anais do Associação Nacional de História – ANPUH XXIV
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169

Gamegrafia

Mass Effect. (2007). BioWare, Electronic Arts.


Mass Effect 2. (2010). BioWare, Electronic Arts.
Mass Effect 3. (2012). BioWare, Electronic Arts.
Smite. (2014). Titan Forge Games, Hi-Rez Studios.
Tomb Raider. (1996). Core Design, Eidos Interactive.
Tomb Raider. (2013). Crystal Dynamics, Square Enix.
Tomb Raider: The Angel of Darkness. (2003). Core Design, Eidos Interactive.


170

Espetáculo Pixel: uma fusão entre dança contemporânea e design gráfico


generativo

Pixel show: a fusion between contemporary dance and generative graphic design

Karen Eloise Shimoda56


Gisela Belluzzo de Campos57

Resumo
O presente artigo apresenta as relações entre dança e tecnologia no espetáculo Pixel de 2014, encenado pela
Companhia Käfig, com coreografia de Mourad Merzouki em parceria com os designers Adrien Mondot e
Claire Bardainne. No espetáculo, os corpos interagem com composições gráficas projetadas no palco,
obtidas por meio de softwares de modo a integrar em um todo, a materialidade dos corpos e a virtualidade
das imagens. O artigo traz um breve histórico de pesquisas realizadas na Bauhaus, que aliam movimentos
a elementos gráficos e possibilitam a exploração de diferentes abordagens artísticas. O suporte teórico traz
conceitos de performance abordados por Goldberg (2006) e Cohen (2013); observações sobre o uso de
formas e movimentos no design por Lupton e Phillips (2008); estudos em dança e tecnologia por Birringer
(2002) e algoritmos aplicados ao design por Aguirre Boza (2015).

Palavras-chave: linguagem gráfica, dança, design, performance, tecnologia.

Abstract
This article presents relations between dance and technology on Pixel show from 2014, staged by Käfig
Company with choreography of Mourad Merzouki in partnership with designers Adrien Mondot and Claire
Bardainne. In this show, the bodies interact with graphic compositions while they are projected on the
stage, obtained through softwares in order to integrate into a whole, the materiality of bodies and the
virtuality of images. The first part of this paper brings a brief history from past researchs for dance and
space, at Bauhaus school, allying movements and graphic elements, enabling the exploration of different
approaches. The theoretical support brings performance concepts approched by Goldberg (2006) and
Cohen (2013); observations of the use of design shapes and movments by Lupton and Phillips (2008);
studies in dance and technology by Birringer (2002) and algoritms applied for design by Aguirre Boza
(2015).

Keywords: graphic language, design, dance, performance, technology.

Introdução
As relações entre corpo, linguagem gráfica e tecnologia constituem o cerne da questão trabalhada
neste artigo, exemplificado pelo espetáculo de dança Pixel, de 2014, encenado pela Companhia
Käfig. Não é de hoje que designers, dançarinos, videomakers e outros criadores têm interesses
recíprocos em adentrar os respectivos domínios específicos das linguagens de cada um para


56
Karen Eloise Shimoda, Mestranda em Design pela Universidade Anhembi Morumbi, graduada em
Comunicação Social pela mesma universidade (2006) e pós-graduada em Design Gráfico pelo Centro
Universitário Senac (2010). Designer gráfica, pesquisa os temas relacionados à dança e design gráfico.
57
Gisela Belluzzo de Campos, Doutora e Mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), com Pós-
Doutorado em Design Gráfico pela Universidade de Buenos Aires. Designer, Artista Visual, Docente e
Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Design da Universidade Anhembi Morumbi. Desenvolve
pesquisas em linguagem gráfica no âmbito da arte e do design.


171

ampliar as possibilidades de expressão e comunicação. A mistura de técnicas, elementos de


linguagens e procedimentos, a qual chega, algumas vezes a caracterizar uma outra linguagem
advinda dessas misturas – fenômeno que chamamos hoje de hibridismo – tem, desde as
vanguardas do início do século XX, instigado esses criadores. Do mesmo modo, as tecnologias
de cada momento intrigam designers e os desafiam a pensarem suas produções incorporando ou
questionando os propósitos e as funções dessas ferramentas.
O espetáculo Pixel une a dança – uma expressão essencialmente corporal – à linguagem gráfica
projetada por imagens em tempo real, por meio de softwares gráficos generativos. Entendemos
que essa necessidade ou desejo de incorporar tecnologias recentes em um espetáculo de dança
tenha, no caso deste espetáculo em particular, e de outros similares, um sentido ao mesmo tempo
experimental e crítico. Experimental, porque ao usar recursos gráficos projetados no espaço do
palco, estes acompanham e ampliam os movimentos e gestos dos bailarinos, dá-lhes mais
extensão e importância, mescla-os à linguagem digital pixelada e cria, ao final, um espetáculo
híbrido entre dança e design. Crítico, porque a fusão de movimentos reais com a tecnologia
virtual, remete à relação e à convivência entre nossos corpos e as diversas máquinas e dispositivos
digitais que inundam praticamente todas as atividades as quais nos dedicamos em nossos
cotidianos.
No espetáculo Pixel, o corpo em movimento atua como um lápis que desenha sobre um papel em
branco, em um movimento contínuo, tornando linhas, texturas e diagramas visíveis, a partir de
pontos ou pixels, formando cenários que interagem com os movimentos dos corpos.
No início do século XX, bailarinos e designers já faziam este tipo de pesquisa envolvendo o
movimento do corpo, a tecnologia e a linguagem gráfica visual. Na Bauhaus, escola que primou
pela experimentação em torno das diferentes linguagens que permeiam o homem e sua relação
com o espaço arquitetônico e com os objetos, Oskar Schlemmer (1888-1943) pesquisou por meio
de composições visuais e desenhos, a relação do corpo com o espaço tridimensional
(GOLDBERG, 2006). Em Dança no espaço (1927), criou junto a seus alunos um experimento no
qual bailarinos realizavam movimentos rigorosamente “geométricos”, de acordo com uma
estrutura linear desenhada no palco.
Neste mesmo período, Schlemmer também produziu espetáculos com o Balé Triádico (1922),
conhecido como dança metafísica, o qual trouxe fusões de linguagens para compor o conjunto em
sequências onde se destacam figurino, música e dança, e em cujo palco, marcações e linhas,
claramente visíveis, são o fio condutor para que o bailarino se movimente. Boccara et al (2007,
p.4) descreve que: “Schlemmer desenvolve uma espécie de projeção da estereometria,
conectando-a à planimetria do espaço. O palco configurava-se em uma geometria do assoalho –
as formas das figuras que determinam a trajetória dos bailarinos e que são idênticas às formas dos
figurinos”. Além do visual, a trilha sonora tinha um papel muito importante nessa narrativa,
trazendo composições instrumentais de Bach a Paul Hindemith. Pinho (2013), analisa que: “a


172

música providencia um paralelo entre os figurinos e os desenhos mecânicos e matemáticos do


corpo, que levam à sua desmaterialização.” Essa afirmação aponta para o propósito da pesquisa
de Schlemmer com o balé que, na realidade, foi a construção de um anti-balé, um processo do
que viria a inspirar a dança contemporânea algumas décadas depois. A Bauhaus inspirou o
trabalho de muitos coreógrafos, bailarinos, músicos, diretores de teatro contemporâneos como:
John Cage, Merce Cunningham, Alwin Nikolais, Robert Wilson, Meredith Monk, The Judson
Dance Theater, Laurie Anderson e David Byrne, entre outros.
As apresentações duravam cerca de 12 horas e havia troca de 18 figurinos nos intervalos entre os
atos. Os movimentos eram desenhados de acordo com a geometrização abstrata dos figurinos e
da marcação do palco, assim os bailarinos seguiam linhas retas, círculos, elipses (GOLDBERG,
2011).
O conceito do ‘triádico’ traz muitos simbolismos envolvidos em sua concepção. Os espetáculos
eram divididos em três atos e cada um deles representa uma cor, sendo: ato amarelo (alegre), rosa
(solene) e preto (monumental). Os numerais têm relevância, pois temos o número um como
unidade de uma natureza fechada e egocêntrica; o dois para a dualidade, divisões e fragmentações;
e o três como símbolo do coletivo. Além da estrutura da encenação ser composta por três
bailarinos, sendo uma mulher e dois homens (BOCCARA et al, 2007). Estes bailarinos se
deslocavam pelo palco como se estivessem em um tabuleiro de xadrez e seus movimentos
seguiam linhas retas e diagonais. Tendo sido este trabalho específico desenvolvido dentro da
Bauhaus como um ponto importante de partida para este artigo, conseguimos relacioná-lo como
um campo de experimentações que projetaram o corpo e o movimento para áreas distintas do
campo da dança. Schlemmer recria a forma dos corpos dos bailarinos em seus figurinos, e explora
novos movimentos que se adaptam a estas formas. Estes movimentos são menos fluídos e mais
mecanizados porque o que interessa neste momento, como coloca Diniz (2017), é a discussão do
corpo, inerente ao contexto da época, caracterizado pela mecanização. Figurinos e
movimentações discutem “[...] o jogo entre duas materialidades: o corpo anatômico e o corpo
estrutura produzido por meio de formas, cores e espacialidades triádicas”; o corpo que é habitado
pelo figurino e que ocupa o espaço da habitação. Percebe-se por todo o espetáculo, a primazia das
formas, cores e traçados geométricos, elementos próprios à linguagem gráfica e visual, uma das
marcas da Bauhaus em sua pesquisa com o objeto e a forma mecanizada e seus espaços.
Havia, na pesquisa de Schlemmer, por um lado, a verificação da intersecção e fusão de
linguagens, e, por outro, a investigação sobre a presença proeminente da tecnologia, ambas
preocupações das Vanguardas do início do século XX. O espetáculo Pixel, de algum modo, traz,
no contexto contemporâneo, um aceno para a compreensão do corpo em movimento no contexto
da tecnologia digital, e o trabalho conjunto entre dança contemporânea e design gráfico

As diferentes linguagens no espetáculo Pixel


173

A obra Pixel é composta por 13 atos coreográficos, nos quais 11 bailarinos atuam dentro de
elementos circenses e do estilo hip-hop com a abordagem da dança contemporânea. Os corpos
estão envoltos por atmosferas criadas no palco por meio da iluminação, das cores dos figurinos e
da inserção dos elementos gráficos projetados, sempre a partir do pixel, o qual compõe diagramas
e redes que se movimentam o tempo todo. Esse tipo de atmosfera, segundo os realizadores, tem
a intenção de criar uma espécie de ilusionismo e colocar em dúvida o que é real e o que é virtual.
Em entrevista, Mondot e Bardainne descrevem o conceito criativo:
Nós usamos imagens que simulam uma ilusão de ótica. Nós queríamos deformar a
percepção, embaçar o caminho entre o que é verdadeiro e o que é falso, ultrapassar as
barreiras da realidade, que revelam coisas que não são “possíveis”. Nós queríamos
modificar, distorcer e distanciar nossas relações entre tempo e espaço, assim como um
dançarino de hip-hop com seu corpo. Este é o ponto de junção no qual a performance
surge: a busca pela ilusão. (Tradução nossa58)

Pelo viés do design generativo, a tecnologia operada pelo designer, se torna uma aliada na
construção destas coreografias ao propor encadeamentos, resoluções e desfechos, com base em
variações de dados (AGUIRRE BOZA, 2015). Os movimentos executados pelos bailarinos dão
os comandos de alteração, construção e desconstrução do espaço por meio das formas geradas em
tempo real. O design se adapta ao que é proposto pelas coreografias, ele é um coadjuvante na
encenação, os bailarinos (re)desenham o espaço com seus movimentos, têm o controle dessa
textura visual. Em alguns momentos, é possível estabelecer uma analogia com os smartphones,
em que o usuário seleciona o que deseja visualizar, arrasta os conteúdos com um toque dos dedos,
abre e fecha abas de conteúdos, amplia as imagens e salva nos dispositivos.
Os designers utilizaram o programa eMotion, criado pelo próprio Mondot, para desenvolver os
gráficos do espetáculo. O objetivo inicial era desenvolver uma tecnologia que simulasse, de forma
orgânica e intuitiva, o gesto do desenho feito pelas mãos. Na prática, o software transforma traços
simples em formas que se dispersam pelo espaço com apenas o toque do cursor. Essas formas são
todas pré-definidas dentro de uma área demarcada, como uma grade em 3D, e depois uma câmera
virtual processa o conteúdo e projeta no palco.
Figura 1 – Pixel. Vista do cenário a partir da sala de controle durante os últimos ajustes
(Outubro, 2014, Créteil)


58
We use images as trompe l’oeils. We want to deform perception, blur the lines between what is true and
what is false, cross the daily boundaries of reality, and reveal things that are not “possible”. We want to
modify, distort and offset our relationship to time and space, just like a hip-hop dancer with his or her body.
It is at that point of junction that the performance was born: the quest for illusion.


174

Fonte: BARDAINNE e MONDOT (2016, p.40)

A trilha, composta por Armand Amar Sarah, também é indispensável como narrativa sonora desta
jornada, e que torna os elementos digitais mais vivos e intensificados no espaço cênico. São 15
músicas instrumentais, com referências futuristas que utilizam o sintetizador e instrumentos
acústicos de corda como: violino, viola, violoncelo, baixo, intercalados com uma sobreposição
crescente da fusão de outros elementos sonoros que simulam o discar e o toque do telefone. Essa
composição de elementos acompanha quase que precisamente as transições de cenários, a
construção e desconstrução dos elementos gráficos e a fluidez dos movimentos dos bailarinos,
marcados pelos característicos passos de hip-hop e acrobacias. Para o coreógrafo Mourad
Merzouki, a trilha traz “tanto energia quanto poesia, para habitar os corpos dos bailarinos”.
(tradução nossa59)
Primeiro ato: O espetáculo se inicia com o grupo de bailarinos adentrando o espaço cênico, até
então imerso em uma escuridão. Aos poucos, os elementos gráficos passam a tomar o palco por
meio de uma fina tela translúcida que surge do alto do palco e, em movimento descendente ocupa
toda a extensão do fundo e do chão, acompanhando os movimentos dos bailarinos. A malha
gráfica mescla-se aos corpos, compondo jogos e truques visuais com o intuito de criar essa não
distinção entre corpos reais e imagens projetadas.
A iluminação mais escura, com apenas alguns pontos de luz localizados ao fundo dos bailarinos,
tem um baixo contraste com o figurino dos bailarinos, em tom ocre, marrom e verde escuro. Estes
figurinos combinam do uso de cores específicas para cada coreografia e a transição acontece de
maneira equilibrada, para que haja uma dinâmica entre os grupos de bailarinos que entram e saem
de cena, e que em dado momento irão se encontrar e equilibrar todas essas cores de forma que os
gráficos digitais não sobreponham os bailarinos.


59
Accompanying the performers, it brings out energy as much as poetry, inhabiting the bodies of the
dancers.


175

Segundo ato: a coreografia contemporânea traz elementos referentes ao estilo hip-hop. Na base
do palco há uma iluminação que simula chamas e destes pontos de luz saem fumaças virtuais em
pontos digitais que compõem a cenografia. Estas chamas são curvas, sinuosas, como se
dançassem sob o espaço, acompanhando o movimento do bailarino e se dissipando no ar.
Tempo e movimento são princípios estreitamente relacionados. Qualquer palavra ou
imagem que se move opera tanto espacialmente como temporalmente. O movimento é
um tipo de mudança, e toda mudança acontece no tempo. Entretanto, ele pode se
subentendido ou literal. Os artistas sempre procuraram representar o movimento dos
corpos e a passagem do tempo no reino do espaço estático, bidimensional. (LUPTON e
PHILLIPS, 2008, p. 215)

Dentro deste conceito temos a percepção de que estas mudanças ocorrem a todo instante no
decorrer dos atos, aqui analisamos o espaço em movimento, que também é tridimensional. As
formas projetadas são a extensão do movimento das mãos, da curva do corpo, como se o controle
daquela forma não estivesse nas mãos do designer, mas sim no controle do bailarino que está no
palco. Acredita-se que é desta ilusão a que os designers Mondot e Bardainne se referiam,
conforme parágrafo acima. Para o espectador é lançada a dúvida de quem cria essas imagens:
bastidores (designers) ou o bailarino ao vivo, com o corpo?
Figura 2 – Pixel, por Company Käfig em colaboração com Adrien M & Claire B

Fonte: ©Laurent Philippe e ©Agathe Poupeney (2014)

Na base do palco sobe uma poeira virtual, como a fumaça de uma vela, e no meio dela se abre um
portal de onde saem os bailarinos. Os mesmos interagem com essa poeira a deslocando para os
lados, para cima e para baixo, arremessando-as uns para os outros. A frente, um novo grupo de
bailarinos tomba para trás tomados pela queda deste gráfico, que ora é projetado no chão, ora
volta à tela frontal, fluída, atravessando o palco como ondas conduzidas pelos bailarinos, ao
formar diversos grafismos circulares, tanto na tela quanto no chão. O bailarino chega a manipular
esse gráfico como se este se dissolvesse entre seus dedos, como grãos de areia e, novamente,
acompanham a fluidez dos movimentos de hip-hop, num contínuo circular.


176

A iluminação se intensifica e o figurino dos bailarinos são agora com cores quentes que variam
entre os tons de amarelo, ocre e laranja, e se destacam e vibram em meio a malha gráfica.
Terceiro ato: um tapete virtual formado por pontos sofre intervenção de um grupo de bailarinos,
alternando entre pontos circulares que fazem movimentos de abrir e fechar no chão, mutáveis e
adaptáveis, e deixam rastros por onde passam. Em um giro de 360º no chão, um dos bailarinos,
por meio desse movimento, integra e desintegra essa malha gráfica em questão de segundos.

O grupo de bailarinos, com figurinos agora em tons mais sóbrios, são encurralados pelo gráfico
projetado e a iluminação para este ato é mais escura, se opondo ao ato anterior.

Figura 3 – Pixel, por Company Käfig em colaboração com Adrien M & Claire B

Fonte: ©Patrick Berge (2014)

Quarto ato: em uma tela plana há uma nova projeção onde vemos outro bailarino interagir com
a rede de pixels, tocando os pontos a sua frente e, por onde passa, o gráfico começa a se
desconstruir, se dissipando e congelando no espaço, assim como o movimento dos bailarinos, que
rotacionam este grafismo em câmera lenta, a 180º graus, locomovendo o mesmo para fora do
palco com os gestos das mãos.
Intercalado entre os atos, o grupo de bailarinos usa o figurino com cores quentes, tendo em vista
que os elementos gráficos estão projetados sob eles, a cor entra como um recurso importante afim
de destacá-los no centro da cena.


177

Figura 4 – Pixel, por Company Käfig em colaboração com Adrien M & Claire B

Fonte: ©Laurent Philippe (2014)

Quinto e sexto ato: um bailarino utiliza de um arco metálico para compor os movimentos do
bailarino em rotação, com uma coreografia circense. A iluminação é fundamental em todo o
espetáculo, pois este recurso cria uma atmosfera introspectiva que aos poucos revela o grupo de
bailarinos e complementam as projeções.

Mudança na cor: Como um luminoso de teatro que cria a aparência de movimento pelo
acender e apagar sucessivo de lâmpadas, a animação com cores cria movimento pela
iluminação ou mudança de tom de áreas ou objetos predefinidos. Aqui, uma onda de cor
parece atravessar um campo de objetos estáticos. Incontáveis variações são possíveis.
(LUPTON e PHILLIPS, 2008, p.224)

Neste ato, especificamente, a luz projeta cores e uma sombra ao fundo, criando uma nova camada
que intensifica a forma desse movimento. Posteriormente surgem três bailarinos ao fundo, que
realizam movimentos similares, mas com arcos digitais, projetados a sua frente. O grupo
toma este espaço com movimentos, desta vez a cenografia é desenhada por uma massa de corpos
que toma o palco com gestos e elementos reais. Há um duelo entre o arco real e o virtual
(imaginativo).
As cores sóbrias são utilizadas na iluminação e no figurino dos bailarinos para este ato.
Sétimo ato: os bailarinos deslizam pelo espaço, enquanto a potência destes movimentos os
impulsiona para fora do palco em direção a uma teia gráfica seguida por uma sequência de
breakdance60. No final deste ato os bailarinos estão imersos no chão, emaranhados virtualmente
por esta teia que volta a ser projetada no palco.


60
O breakdance é executado através de gestos bruscos e por vezes acrobáticos, dos quais se destacam os
movimentos ondulatórios do corpo, a rotação do corpo apoiado apenas na cabeça ou nas costas, os


178

Para este ato, se mantém a paleta de cores escuras do ato anterior.


Oitavo ato: acontece uma performance acrobática com dois bailarinos, metade do palco é
iluminado e a outra metade é projeção, onde há um recuo do gráfico respeitando a delimitação
proposta pelos movimentos, que se aproxima e se afasta dentro da proposta coreográfica.
Neste momento temos a volta da paleta com cores quente para os figurinos, considerando que,
novamente, os personagens então imersos no gráfico digital.
Nono ato: um grupo de bailarinos caminha pelo palco portando guarda-chuvas (físicos) como
suporte para interagir com o gráfico que simula a chuva. Na sequência, apenas um dos bailarinos
permanece no palco, este caminha em direção às gotas digitais projetadas, criando-se assim um
jogo de forças opostas, o guarda-chuva então é utilizado como proteção para que o bailarino “não
se molhe”.
Mantêm-se as cores quentes no figurino do ato anterior, seguindo o padrão de interação com o
grafismo.
Décimo ato: é retomada a coreografia onde os bailarinos deslizam no palco em meio de arcos
físicos e arcos projetados. A fusão do corpo do bailarino com o arco tornam-se um só elemento.
Este primeiro bailarino conduz o arco enquanto um segundo bailarino desliza no espaço e, a
verticalidade de seus movimentos acompanha o desenho deste arco. Ao fundo, outros bailarinos
interagem com arcos virtuais, e uma malha quadricular é formada no chão enquanto um arco
físico integra seu movimento até o que o elemento precisamente pare de se movimentar.
Há a mudança na paleta de cores para os tons ocre, marrom e verde escuro, porém, ao fundo,
percebemos uma pequena transição de grupos de bailarinos mesclam-se aos demais com figurinos
em tons quentes, os quais nos encaminham para os atos finais.
Décimo primeiro ato: uma bailarina literalmente desenha a forma com o seu corpo, com as
pontas do pé, envolta nesta malha de grid digital. A precisão dos seus movimentos possibilita que
haja esse re (desenho), preenchido com um novo significado, explorado pela coreografia que
passa a tomar o espaço com formas distorcidas, emaranhadas e imprecisas, para depois serem
reestabelecidas do ponto em que se iniciou o ato, momento em que a bailarina ajusta a forma
com apenas um gesto, como se puxasse um tecido físico, no controle do que estava sendo
projetado, sendo ela parte fundamental do processo criador para que a sequência seja possível e
crível.
A bailarina veste uma malha laranja que se destaca em meio a este grid luminoso projetado no
chão. A iluminação localizada ao fundo do palco acompanha o tom do figurino, conforme vemos
abaixo:
Figura 5 – Pixel, por Company Käfig em colaboração com Adrien M & Claire B


movimentos das pernas tipo moinho de vento ou o arrastamento dos pés. Disponível em:
<https://www.dancaderua.com/extras/historia-do-break-dance>. Acesso em: 26/02/2020.


179

Fonte: ©Laurent Philippe e ©Agathe Poupeney (2014)

Décimo segundo ato: em uma sequência de patins o palco é tomado por movimentos do bailarino
que desconstrói a malha gráfica do palco ao ponto de a textura virar apenas pontos espalhados do
espaço. O corpo do bailarino se torna um eixo de agrupamento e dissipação destes pontos que, ao
se espalharem, são arremessados para todos os lados e para a tela plana, desta forma temos a
ilusão de que, imageticamente, este gráfico também é lançado para o público.
As paletas de cores começam a se fundir neste ato, temos uma mescla de figurinos que utilizam
tons mais escuros e outros tons mais quentes.
Décimo terceiro ato (final): os bailarinos se deslocam por uma malha irregular com perspectivas
côncavas e convexas, onde os bailarinos deslizam e saltam entre os “buracos” e irregularidades
propostas pelo gráfico digital, criando barreiras que se assemelham a abismos e que dividem o
palco além de separar os corpos que se deslocam entre eles. Visualizamos os bailarinos saltarem
para não caírem ou se desiquilibrarem dentro dessas irregularidades virtuais projetadas. A
cenografia digital cria a simulação em perspectiva de uma vastidão infinita por onde os bailarinos
se deslocam como se estivessem caminhando por milhas de distância, encerrando-se assim o
espetáculo com os bailarinos, de todos os atos anteriores, juntos.
Figura 6 – Pixel, por Company Käfig em colaboração com Adrien M & Claire B


180

Fonte: ©Agathe Poupeney (2014)

Em Pixel, o bailarino em determinado momento se funde aos gráficos e juntos criam um novo
gráfico que, independentes, teriam outro significado. Essas conexões acontecem a todo momento
e desafiam o olhar do espectador, objetivo este buscado pelos designers gráficos Mondot e
Bardainne quando projetaram o conceito gráfico: transitar entre o espaço real e a ilusão por meio
do encontro dos recursos visuais com a dança.
No espetáculo, é possível perceber essa autonomia dos bailarinos para manipularem o conteúdo
visual que é apresentado, mesmo que tenha sido previamente ensaiado. Para o público, acontece
uma espécie de magia diante de seus olhos, pois, por vezes, têm-se a impressão de que os
bailarinos não são reais, já que o tempo e a precisão dos gestos são extremamente sincronizados
e cada detalhe é minuciosamente desenhado para criar essa dúvida. A tecnologia atua como
suporte para o movimento, leva-os para além do corpo, aumentando as suas possibilidades
enquanto extensões destes e enriquece os repertórios coreográficos.
Os bailarinos da Käfig, dentro do espetáculo, têm autonomia para conduzir essa narrativa, mesmo
que não haja conclusão, fazendo com que o processo parece estar em constante transformação. O
uso da tecnologia e o suporte técnico para o mapeamento destas novas realidades, são exemplos
de como a dança se adapta a estas mudanças. No espetáculo vemos claramente como foi utilizado
o melhor dessas vertentes para construir uma linguagem imersiva do corpo que decodifica formas,
mapeia espaços e comunica mensagens.

4. Considerações finais
Observamos o uso da tecnologia como campo de pesquisa nas produções artísticas, que amplia
os diálogos entre o design gráfico e a dança contemporânea, e ressignifica a maneira como o
público se relaciona com ela. Ao invés do distanciamento, é proposta uma aproximação por aquilo
com que se tem familiaridade, e assim, amplia-se um universo com mais possibilidade de
comunicação. O corpo, inserido na performance, a exemplo da Bauhaus até os dias atuais, abre


181

possibilidades para se estabelecer uma relação que se estende aos limites de espaço-tempo, onde
coreógrafos, designers e programadores estabelecem uma conexão que explora diferentes
linguagens visuais, afim de ampliar os conhecimentos e encontrar diferentes abordagens que
atendam às necessidades por acesso digital. O espetáculo Pixel compreende um espaço de criação
para o uso dessas tecnologias, com técnicas de mapeamento e algoritmos, para que o corpo
coreográfico possa desenhar formas, e que seus movimentos façam parte desta composição
gráfica, saindo do invisível para a visualidade projetada pelo uso do design generativo em
conceitos criativos.

Referências

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creación. Actas de Diseño, n.19, p.147-150, 2015.
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Subjectile, 2016.
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Art, v.24, n.1, p.84-93, 2002.
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percurso de uma reconstituição. Anais do Colóquio de Moda, Belo Horizonte: 2007.
BONSIEPE, Gui. Design, Cultura e Sociedade. São Paulo: Blucher, 2011.
CAMPOS, Ricardo Manorto de Oliveira. Deambulações em torno do projeto da antropologia
visual contemporânea: entre as imagens da cultura e a cultura das imagens. Revista Digital de
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Disponível em: https://doi.org/10.1590/2237-266063521.
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KATZ, Helena. Dança, robôs, desigualdade: como refundar a sociedade do comum. Anais do
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182

Reescrevendo a criação com ácidos nucleicos: a arte transgênica de Eduardo Kac e suas
implicações ético-culturais

Rewriting the creation with nucleic acids: Eduardo Kac’s transgenic art and its ethical-
cultural implications

Laryssa Valencise61
Regilene A. Sarzi-Ribeiro 62

Resumo
O presente artigo trata dos debates suscitados pela arte transgênica do artista brasileiro Eduardo Kac na
sociedade contemporânea. Tendo em vista o rápido avanço da biotecnologia, a cultura do upgrade migra
para o espectro orgânico, promovendo a criação de novos imaginários (Sibilia, 2002). Com a apropriação
dos recursos biotecnológicos para a criação artística, torna-se realidade a “arte viva” (Flusser) e, com ela,
surgem debates de caráter ético. Kac explora as relações entre criador e criatura, propondo novas
perspectivas sociais em diversos de seus trabalhos. Neste artigo, analisamos duas produções que abordam
aspectos da crença humana em torno da criação, fazendo referências perceptíveis a passagens bíblicas pelos
seus títulos: Genesis (1999) e O Oitavo Dia (2001). O artista promove, acima de tudo, uma discussão acerca
dos limites do poderio humano sobre a natureza, ou seja, da sua capacidade de transformar sua constituição
e a daqueles ao seu redor.
Palavras-chave: arte transgênica, bioética, Eduardo Kac, pós-humanismo

Abstract/resumen/resumé
This article brings the discussions raised by the Brazilian artist Eduardo Kac’s transgenic art in the
contemporary society. Due to the fast progress of biotechnology, the upgrade culture migrates to the
organic spectrum, promoting the construction of new imaginaries (Sibilia, 2002). The appropriation of
biotechnological resources for artistic creation makes“living art” (Flusser) come true, and therewith,
strong ethical debates. Kac explores the relations between creator and creature, suggesting new social
perspectives in many of his artworks. In this article, we examine two art pieces about human belief around
the creation that make noticeable references to biblical passages on its titles: Genesis (1999) and The
Eighth Day (2001). The artist promotes, above all, a discussion about the limits of the human might over
nature itself, i.e. the capacity of transforming its constitution and that of those around it.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: bioethics, Eduardo Kac, posthumanism, transgenic art

1. Arte Transgênica: A Bioarte dos Genes

1.1 Contexto: Biotecnologia e Pós-humanismo


A Revolução Biotecnológica, cujo início remonta à década de 1970, tem sido responsável por
alterar de forma intensa e acelerada a relação da humanidade com seu entorno e consigo mesma.
As técnicas de manipulação genética foram responsáveis por instigar inúmeras experimentações
e por amplificar a sensação de controle e de superioridade do homem sobre os demais seres vivos


61
Graduanda do 3º ano de Artes Visuais (Bacharelado) pela Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comunicação – FAAC/UNESP/Bauru. Membro do Grupo de Pesquisa labIMAGEM – Laboratório de
Estudos da Imagem – CNPq.
62
Líder do Grupo de Pesquisa labIMAGEM – Laboratório de Estudos da Imagem – CNPq. Docente
Permanente do Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia – PPGMiT e Professor Assistente
Doutor do Departamento de Artes e Representação Gráfica da Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comunicação – FAAC/UNESP/Bauru. Pós-doutora em Artes do Vídeo pelo Instituto de Artes da UNESP
– São Paulo. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP.


183

e sobre sua própria natureza, culminando com o Projeto Genoma Humano, em 1990, que realizou
o sequenciamento genético do ser humano.
Tais descobertas provocaram influências significativas nos campos sócio-culturais e político-
econômicos, e o ímpeto pela superação da natureza corpórea produz uma realidade pós-humana,
segundo a qual Sibilia discorre:

É nesse contexto que surge uma possibilidade inusitada: o corpo humano, em


sua antiga configuração biológica, estaria se tornando “obsoleto”.
Intimidados pelas pressões de um meio ambiente amalgamado com o artifício,
os corpos contemporâneos não conseguem fugir das tiranias (e das delícias)
do upgrade. Um novo imperativo é internalizado, num jogo espiralado que
mistura prazeres, saberes e poderes: o desejo de atingir a compatibilidade
total com o tecnocosmos digitalizado. Para efetivar tal sonho é necessário
recorrer à atualização tecnológica permanente: impõem-se, assim, os rituais
do auto-upgrade cotidiano. (Sibilia, 2002, p.13)

Revelam-se, assim, novos ideais estéticos e de consumo, bem como novos mecanismos
de lucro e de controle.

1.2. Origem e Definição


Conforme observado pelo filósofo Vilém Flusser em seu ensaio Arte Viva (1988), os
suportes artísticos convencionais não garantem uma preservação duradoura da
informação que estes carregam. A deterioração de papéis, telas, madeiras, metais e afins
é inevitável, mesmo que tomadas as devidas medidas de conservação dos mesmos.
Porém, a Revolução Biotecnológica do século XX permite o armazenamento de
informação em matéria viva, matéria esta que se divide, multiplicando-se e, de tempos
em tempos, sofrendo também mutações. Flusser (1988, p.2) afirma que “a biomassa como
um todo é pois correnteza dentro da qual informações são guardadas e variadas”,
apontando tal característica como um ponto positivo para o uso da biomassa como
material artístico. Tal apropriação ocorre com o advento da chamada bioarte, dentro da
qual destaca-se o artista brasileiro Eduardo Kac.

Kac possui um vasto histórico de produções que exploram os limites entre humanos,
animais e robôs. Tendo desenvolvido trabalhos artísticos em telepresença desde 1986 e
em biotelemática desde 1994, Kac passou a investigar a arte transgênica em 1998,
inaugurando-a no ano seguinte com a exposição da obra Genesis no festival Ars
Eletronica em Linz, Áustria. Em seu manifesto de criação da arte transgênica, Kac a
define como:


184

[...] uma nova forma de arte baseada no uso de técnicas da engenharia


genética para criar seres vivos únicos. Isso pode ser conseguido transferindo-
se genes sintéticos para um organismo, através da mutação dos próprios genes
do organismo, ou pela transferência de material genético natural de uma
espécie para outra. A genética molecular permite ao artista projetar o genoma
de uma planta ou animal e criar novas formas de vida. A natureza desta nova
arte é definida não somente pelo nascimento e crescimento de uma nova planta
ou animal, mas acima de tudo pela relação entre artista, público, e organismo
transgênico. (Kac, 2004, p.37)

Portanto, a arte transgênica surge em consequência das descobertas e avanços


biotecnológicos, bem como das questões suscitadas a partir de suas aplicações nos
círculos da vida social, médica, política e econômica. Apesar de sua presença cada vez
mais ampla na sociedade contemporânea, a engenharia genética e suas implicações éticas
se mantêm pouco discutidas, e quanto a isso Kac (2004, p.37) afirma: “Mais que tornar
visível o invisível, a arte precisa elevar nossa consciência do que permanece firmemente
além do nosso alcance visual, mas que, apesar de tudo, nos afeta diretamente.”.
Kac busca explicitar essas relações entre o ser transgênico e o homem utilizando-se de
tactical media, ou seja, não apenas propondo reflexões no campo da biotecnologia mas
também fazendo uso de seus próprios mecanismos para tal, trabalhando lado a lado com
cientistas e inserindo-se no meio sobre o qual expõe suas críticas e questionamentos.
Flusser aponta, a respeito do caráter criador de vida possibilitado pela biotécnica, que
A crítica de arte romântica, (e não apenas a romântica), afirma que “arte” é
um fazer que sopra vida em espírito novo, e que tal novo espírito ultrapassa o
próprio artista. Tal afirmação é metafórica, mas agora passa a ser
literalmente verdadeira. A biotécnica é arte que traduz as metáforas
precedentes em fatos. A biotécnica é “arte” no significado literal do termo.”
(Flusser, 1988, p.4).

A partir da biotécnica, Kac produz, em sua Arte Transgênica, não mais objetos de arte,
mas sim sujeitos de arte. O artista esboça realidades povoadas por organismos
geneticamente modificados, explorando as possíveis reações que essa situação suscita no
público e refletindo sobre novas perspectivas que vão muito além de uma noção de
supremacia humana sobre a natureza.

2. Genesis (1999)
Genesis foi exposta no festival Ars Eletronica em Linz, Áustria, no ano de 1999. A
instalação (Figura 1) foi constutuída por uma caixa de luz ultravioleta, sobre a qual estava
uma placa de Petri com uma colônia de bactérias E.coli modificadas (Figura 2), a qual foi
projetada em grande escala em uma das paredes da galeria. Nas demais paredes,


185

projetaram-se o genoma das bactérias e o trecho bíblico de Gênese no qual o artista


fundamentou sua criação.

Figura 1. Instalação de Genesis. Eduardo Kac. 1999. Ars Eletronica. Linz, Áustria. Fonte:
http://www.ekac.org/genesis.portugues.html

Figura 2. Detalhe de Genesis. Eduardo Kac.1999. Fonte: http://www.ekac.org/genesis.portugues.html

Eduardo Kac criou um gene sintético a partir do trecho do Velho Testamento que diz: “Deixe que
o homem domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os seres vivos que
se movem na terra” (Gênese 1, 28), transcrevendo-o ao código genético de organismos E.coli.
Para tal, o artista primeiro traduziu o trecho para código Morse e, a partir disso, aplicou um código
desenvolvido por ele mesmo especialmente para esta obra, em que cada elemento do Morse se
traduz em um nucleotídeo63 (Figura 3). O gene, introduzido nas bactérias sobre a caixa de luz
ultravioleta, sofria mutações por exposição luminosa controlada por participantes remotos via
web e por espectadores na galeria. Dessa forma, não apenas o código genético era alterado, mas
consequentemente o texto que o originou também.


63
Nucleotídeo: unidade básica na constituição dos ácidos nucleicos. No DNA, correspondem a adenina
(A), citosina (C), guanina (G) e timina (T). Fonte:
<https://dicionario.priberam.org/nucleot%C3%ADdeo>. Acesso em: 26 out. 2020.


186


Figura 3. Traduções realizadas por Kac em Genesis. Fonte:
http://www.ekac.org/genesis.portugues.html


A potência da obra Genesis se estabelece desde a escolha minuciosa do trecho bíblico até sua
derradeira mutação pela intervenção humana. Kac não apenas criou um gene sintético que passou
a compor um organismo vivo, mas também levou o público a relacionar-se com tal criatura
transgênica, propondo assim diálogos até então pouco explorados. O trecho bíblico escolhido é
uma sentença divina que implica uma noção duvidosa da supremacia humana sobre a natureza e,
conforme o texto sofre alterações pela ação do homem, cria-se um espaço para reflexão e
discussão quanto à postura humana diante de sua capacidade de interferir na constituição de
demais seres vivos. Segundo palavras do próprio artista,
No contexto do trabalho, a habilidade de mudar a frase é um gesto simbólico:
significa que nós não aceitamos seu significado na forma como nós o
herdamos, e que novos significados emergem conforme procuramos mudá-lo.
(Kac, 2001, p.118, tradução nossa)

Utilizando-se das bactérias E.coli como suporte para informação, o artista cria uma espécie de
livro vivo, que por sua vez é constantemente alterado por ação humana. Ele permite,
simbolicamente, que se reescreva a relação de dominância do homem e, por consequência, a
forma de se lidar com a manipulação genética. Eduardo Kac explicita que cabe à humanidade


187

ponderar e se posicionar de forma razoável diante da realidade que se apresenta, não endeusando
o gene, mas sim explorando suas capacidades e seus limites. Dado que a engenharia genética já
se aplica na sociedade, a questão da bioética se situa no presente e é concomitante às descobertas
da potência genética e suas implicações. Portanto, o genoma modificado é como uma Bíblia que
pode ser reescrita sem que haja condenação herética; ele, por sua vez, tem por objetivo a revisão,
a reflexão. A proposta de Kac sugere ao público reorganizar as “linhas tortas” das palavras de
Deus, rearranjando-as em conformidade com a discussão sobre o que seria, de fato, o correto.
Em uma segunda fase de Genesis, Eduardo Kac criou um modelo tridimensional de uma proteína
produzida pelo gene sintético – a proteína Genesis. A partir de análises de similaridade, descobriu
que ela possui estrutura 39% compatível com a proteína Chorion, encontrada em Ceratitis capitata
(mosca de fruta Mediterrânea). Curiosamente, tal proteína é responsável por formar a membrana
que protege o embrião em desenvolvimento, ou seja, está presente na gênese do organismo.
Posteriormente, Kac aplicou a proteína Genesis em sua obra Transcription Jewels (2001), que
expõe tanto o DNA Genesis purificado quanto a proteína Genesis. Visto que ambos foram
artificialmente criados e colocados fora de qualquer contexto biológico, são inúteis para a
biologia, sendo mesmo incapazes de gerar qualquer tipo de vida. Quanto a isso, o artista disserta:
Ao invés de explicar ou ilustrar princípios científicos, o projeto Genesis
complica e ofusca a extrema simplificação e redução das descrições padrões
de processos vitais na biologia molecular, restabelecendo a contextualização
social e histórica no centro do debate. (Kac, 2001, p. 121, tradução nossa)

Mais uma vez, o artista enfatiza sua preocupação com as implicações ético-sociais da
biotecnologia, atentando para o diálogo como maneira de desmascarar o discurso reducionista
que acompanha essa aplicação da ciência.

3. O Oitavo Dia (2001)


O Oitavo Dia é um trabalho de arte transgênica que consiste em um sistema ecológico artificial
autônomo de criaturas fluorescentes. Desenvolvido entre 2000 e 2001 no Institute for Studies in
Arts (Arizona State University, Tempe), a obra investiga as novas tendências do
desenvolvimento, em laboratórios, de criaturas fluorescentes isoladas. Kac reúne uma série de
espécies modificadas com a proteína GFP (Green Fluorescent Protein) - plantas, amebas, peixes
e ratos -, em um só ambiente, dando visibilidade a uma ecologia bioluminescente. Além disso,
ele inclui um robô biológico (biorrobô) que circula pelo espaço. Todas essas criaturas se reúnem
debaixo de um domo de acrílico, que permite visualizar como seria caso elas realmente
coexistissem no mundo em grande escala.


188

Figura 4. Eduardo Kac. O Oitavo Dia. 2001. Fonte: Figura 5. Eduardo Kac. Biorrobô
http://www.ekac.org/8thday.html de O Oitavo Dia. 2001. Fonte:
http://www.ekac.org/8thday.html

O biorrobô (Figura 5) possui um sistema similar a uma estrutura cerebral constituído por uma
colônia de amebas GFP, cuja atividade determina o comportamento do robô. Esses organismos
se localizam no biorreator transparente, que possibilita a visualização das amebas. O biorrobô se
move lentamente para cima e para baixo, ou ao seu redor, de acordo com a dinâmica da colônia,
e é controlado por participantes remotos via web que configuram seu sistema visual através de
um sensor de inclinação panorâmica. Dessa forma, funciona como um avatar para os internautas
no interior do ecossistema bioluminescente e como uma perspectiva do interior do domo para os
visitantes da galeria.
Kac é certeiro ao nomear seu trabalho, sugerindo através dele a adição de um dia ao período de
criação do mundo de acordo com as Escrituras Judeu-Cristãs. A partir disso, o artista propõe que
o homem, por meio da biotecnologia, adquiriu o dom até então exclusivamente divino de produzir
novas formas de vida, bem como passou a ter um compromisso com os ecossistemas emergentes.
O Oitavo Dia (2001) instiga seus espectadores a refletirem sobre a convivência entre humanos e
uma ecologia transgênica, ao proporcionar uma visão em primeira pessoa, para o público, de
dentro do sistema bioluminescente. O artista retira os seres transgênicos do espaço estéril do
laboratório e os aproxima do público, criando assim um ambiente favorável ao desenvolvimento
de afeto e empatia.

4. Implicações Ético-culturais
Ambos os trabalhos analisados possibilitam a percepção do homem como ser ativo na
manipulação da natureza e centraliza os debates e reflexões que partem deste princípio sob uma
perspectiva sociocultural. Em especial, Kac explora as relações entre criador e criatura, trazendo
à tona questões bioéticas que se impõem sobre uma realidade habitada por seres transgênicos.


189

Ademais, o artista aborda o imaginário humano ao redor da criação, presente tanto nas crenças
bíblicas quanto na fé depositada cegamente na engenharia genética. Kac demonstra, ao convergir
estes dois polos aparentemente opostos, que ambos estão envoltos por uma expectativa e uma
noção de que o homem domina os demais seres vivos, sendo necessário repensar estes
pressupostos no contexto contemporâneo.

Figura 6. Detalhe de O Oitavo Dia. Eduardo Kac. 2001.


http://www.ekac.org/8thdaymorepicts.html

As duas obras analisadas sugerem a dispensa da soberania humana, na medida em que colocam o
criador no mesmo patamar em que suas criaturas. Afinal, segundo Kac64, somos nós mesmos seres
transgênicos, visto que possuímos fragmentos de DNA de vírus e bactérias em nosso DNA,
conforme revelado pelo Projeto Genoma Humano. Portanto, nota-se que a visão da transgenia
como algo antinatural é equivocada e necessita de uma reformulação.
Levando em consideração as categorias prometéica e fáustica da tecnociência, propostas pelo
sociólogo português Hermínio Martins e adotadas por Sibilia (2002), é possível identificar o
discurso de Eduardo Kac como instrumento instigante para se repensar ambas as posturas.
Enquanto a ciência prometeica reconhece seus limites criadores e busca a melhoria do bem
humano apenas acrescentando atributos ao corpo orgânico, o projeto fáustico almeja a superação
da própria organicidade do corpo, vista como obsoleta; ele pretende reconstruir o humano através
de cirurgias plásticas, próteses, procedimentos de engenharia genética e afins (Sibilia, 2002).
Neste caso, a capacidade humana e seu domínio sobre a natureza são vistos como infinitos e
superiores a questões éticas, tendo por objetivo exclusivo sua própria execução enquanto reflexo
do progresso científico.


64
Ibidem


190

Kac admite que o conhecimento biotecnológico deva ser aplicado para maximizar os potenciais
humanos e superar o orgânico, visto por ele como uma barreira que não é mais capaz de separar
informações interiores e exteriores ao corpo – como ele sugere na obra Time Capsule (1997). Ele
reitera, ainda, que é preciso criar novas formas de vida através das ferramentas de manipulação
genética disponíveis, expandindo assim a biodiversidade.
Entretanto, o artista possui plena convicção de que a bioética deve prevalecer nas ações
científicas, de forma que suas obras sempre centralizam as questões sociais e políticas ao debater
a criação e manutenção de seres transgênicos. Nas palavras do próprio Kac (2004, p.37), “não
existe arte transgênica sem um forte compromisso e responsabilidade com a nova forma de vida
assim criada. Preocupações éticas são primordiais em qualquer trabalho de arte, e elas se tornam
mais cruciais do que nunca no contexto da bioarte.”
Conforme aponta Sibilia (2002), que se apoia na filosofia de Foucault, a biopolítica atual age por
meio do mercado, tendo por alvo a ampliação de consumidores. A propaganda de que a boa
aparência está diretamente ligada à saúde incentiva o público a adquirir produtos que prometem
rejuvenescer a pele, proporcionar cabelos mais sedosos e um corpo em concordância com os
padrões estéticos ideais. Entretanto, o grande interesse capitalista na biotecnologia se dá pela alta
produtividade e lucro que ela proporciona às grandes indústrias, tal como a agronômica e a de
cosméticos. Não há vantagens, do ponto de vista comercial, na investigação e na criação de formas
de vida autônomas, que por sua vez confrontam a visão consolidada da existência humana
enquanto soberana e exigem tratamento ético aos novos seres transgênicos.
Conforme Braga (1992, p. 4, apud Antonio, 2017, p.26), “Prometeu desafiou um deus. Fausto
quer ser deus”; da mesma forma, a tecnociência fáustica almeja a capacidade divina, motivo pelo
qual o historiador e filósofo Yuval Noah Harari criou o termo Homo Deus. Harari aponta que,
até o terceiro milênio, as três maiores preocupações da humanidade foram a fome, a peste e a
guerra. Ele afirma que a biotecnologia permitiu ao homem controlar a crise destes três fatores,
mas que sua aplicação indevida pode ser responsável pelo agravamento dos mesmos tópicos. A
negligência do governo e das grandes instituições provoca a continuidade e/ou a ascenção da
fome, por exemplo, por mais que a produção agrícola atinja níveis elevados graças aos métodos
transgênicos. “Não ocorrem mais surtos de fome por causas naturais, há apenas fomes políticas”
(Harari, 2016, p.11).
Quanto aos atuais usos da biotecnologia e à importância da bioarte neste cenário, Eduardo Kac
dispara:
Enquanto a engenharia genética continua a ser desenvolvida no porto seguro
do racionalismo científico, nutrida pelo capital global, infelizmente ela
permanece parcialmente isolada dos grandes temas sociais, dos debates
éticos, e dos contextos históricos locais (...). O uso da genética na arte oferece
uma reflexão sobre esses desenvolvimentos de um ponto de vista social e ético.
Isto coloca em foco assuntos correlatos relevantes tal como a integração
doméstica e social de animais transgênicos e o delineamento arbitrário do
conceito de "normalidade" através de teste e tratamento genéticos. Cria


191

também um contexto crítico no qual se examina e questiona o reducionismo e


a eugenia. (Kac, 2004, p.41)

Portanto, a arte transgênica de Kac possui papel fundamental na reorganização do imaginário


humano em torno dos genes e de suas potencialidades. O artista demonstra, por meio de suas
obras, que a transgenia possui aceitação unilateral. Enquanto objeto de desejo, comercial e
rentável, o transgênico é muito bem-vindo; mas, enquanto sujeito com vontades e necessidades
próprias, é tratado com repúdio e estranhamento, quando não com indiferença.
Assim sendo, os trabalhos de Eduardo Kac oferecem novas perspectivas para tratar aspectos já
presentes na sociedade contemporânea – tal como a vigilância genética, a biopirataria, o
genohype65 - e investigar seus impactos culturais, econômicos, políticos e sociais. Criando um
universo visual e interativo, o artista permite aproximar do público as questões bioéticas da
realidade pós-humana e envolvê-lo em reflexões urgentes, dado o avanço acelerado no campo da
biotecnologia.

Referências bibliográficas

Antonio, K.F. (2017). Transumanismo e suas oscilações prometeico-fáusticas: Tecnoapoteose na
era da ciência demiúrgica. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, Natal, RN. Recuperado de
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Harari, Y.N. (2016). Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã. São Paulo, SP: Companhia
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Kac, E. (2001). Bio Art: Proteins, Transgenics, and Biobots. In: STOCKER, Gerfried; SCHOPF,
Christine (Ed.). Who‘s doing the art of tomorrow?. Vienna: Springer Verlag. pp. 118-124.
Recuperado de http://90.146.8.18/en/archiv_files/20011/E2001_118.pdf .
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http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S167853202004000300004&script=sci_arttext&tlng=pt .
Kac, E. (2015). What if art could truly create biological life? In: What if…, 2015, Vienna.
TEDxVienna: 2015. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=IS_5WJteCC8 .
Sibilia, P. (2002) O homem pós-orgânico: Corpo, subjetividade e tecnologias digitais. (3. ed.).
RJ: Relume Dumará.
Tomasula, S. (Ed.). (2000). (GENE)SIS. In: DOBRILA, Peter T. (Ed.). Eduardo Kac:
Telepresence, Biotelematics, and Transgenic Art. Maribor, SLO: Kibla. pp. 85-96. Recuperado
de http://www.ekac.org/tomasulgen.html.


65
Termo cunhado por Neil A. Holtzman em Are genetic tests adequately regulated? Science, 286 (4539),
pp. 409-410, 1999 para caracterizar o discurso de afirmações exageradas e hipérboles anexadas ao DNA,
e o esforço para mapear o genoma humano.


192

Quando arte e educação tencionam e constroem um campo de pesquisa

When art and education tension and build up a research field

Leda Guimarães66

Resumo
A relação entre pesquisa e educação é tema de muita discussão e conflitos especialmente, quando
colocamos arte para tensionar no jogo das relações investigativas. Para desenvolver uma reflexão
sobre a complexidade desse relacionamento, selecionei alguns aspectos sobre a
institucionalização e expansão do campo da pesquisa em arte e educação no Brasil e sobre tensões
presentes na pesquisa em arte educação, seus conflitos epistemológicos e operacionais. Me
entendendo como parte de um coletivo que tem atuado e construído esse campo, defendo a
pesquisa baseada nas artes como uma episteme própria da nossa área. Todas essas questões
nascem de uma trajetória como professora de graduação e pós-graduação na área de artes visuais,
no contexto da educação pública.
Palavras-chave: Educação, pesquisa, sentidos, tensionamentos.

Abstract
The relationship between research and education is the subject of much discussion and conflicts
especially when we put art to tension in the game of investigative relations. To develop a
reflection on the complexity of this relationship, I selected some aspects about the
institutionalization and expansion of the field of research in art and education in Brazil and on
tensions present in art research education, its epistemological and operational conflicts.
Understanding myself as part of a collective that has acted and built this field, I defend research
based on the arts as an episteme proper to our area. All these questions are born from a trajectory
as a professor of graduation and graduate studies in the area of visual arts in the context of public
education.
Keywords: Art, education, senses, tensions forms.

Mapeando conflitos e tensões

A relação entre pesquisa e educação é um tema perpassado por conflitos e tensões especialmente
quando colocamos arte para tencionar as relações investigativas entre os dois termos, ou, quando
colocamos educação para tencionar o jogo entre pesquisa e arte. Para desenvolver uma reflexão
sobre a complexidade desses relacionamentos, procurei referências de como o campo arte,
educação e pesquisa vai se institucionalizando por meio dos cursos de formação inicial e
continuada, discussões conceituais presentes na pesquisa com seus conflitos epistemológicos e
operacionais. Apresento também questões sobre a pesquisa no campo da arte educação mais
especificamente sobre a pesquisa baseada nas artes como uma episteme própria que gera conflitos
na compreensão de pesquisa dessa própria área. Todas essas questões nascem de uma trajetória


66
Lêda Guimarães é professora da Faculdade de Artes Visuais da UFG nos cursos de Licenciatura em Artes
Visuais (presencial e EAD) e no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual do qual é atual
coordenadora. Interesse de pesquisa: formação de professores em artes visuais e visualidades populares.
Foi conselheira para a América Latina no InSEA (2013-2017), ex-presidente da FAEB (2017-2018) e faz
parte da diretoria da ANPAP (2019-2020).


193

como professora de graduação e pós-graduação na área de artes visuais no contexto da educação


pública.
Quando fiz a graduação na Licenciatura em Educação Artística com habilitação em artes plástica,
pouco ou quase nada se falava em pós-graduação como desdobramento da formação inicial que
estávamos recebendo para o exercício docente no campo das artes. A base dessa formação inicial
era devidamente “instrumentalizada”, por história e teorias da arte, pelas práticas artísticas
(desenho, pintura, gravuras, esculturas, fotografia) sem nenhuma disciplina que discutisse a
pesquisa em arte e arte educação. Os conflitos existentes passavam pela dicotomia ser artista ou
ser professor, e embora, especialmente nos ateliês, já estivéssemos em exercícios investigativos
poéticos não se falava abertamente de pesquisa.
Em um texto intitulado “A Pesquisa em Arte em três atos” Arlindo Machado (2016), como
primeiro ato, afirma que não existe arte sem pesquisa e esclarece que não se refere a pesquisa
acadêmica ou universitária mas sobre a produção artística em si, que nasce de investigação de
um, ou vários aspectos tais como questões técnicas ou tecnológicas, linguagens, questões estéticas
ou ainda sobre o próprio tema da arte. (2016, p.47). No segundo ato Machado coloca a pesquisa
que é realizada dentro da própria arte, pelos próprios artistas, quando estes se detêm a gerar além
da obra, uma reflexão sobre a mesma. Já o terceiro ato é aquele que diz respeito à própria
materialidade da pesquisa (p.50) e nesta recai o conflito da hegemonia do texto sobre a imagem,
conhecido embate em nossos programas de pós-graduação em arte, também presentes em nossas
graduações, a medida em que estas reforçam no currículo a formação para a pesquisa.
No exercício docente no ensino superior, o Trabalho de Conclusão de Curso como instância de
pesquisa define o rito de passagem da condição de estudante para profissional. Disciplinas de
Iniciação a investigação pavimentam essa formação para além do treinamento em normatizações.
Mais recentemente, os Programas de Iniciação Científica bem como os de iniciação à docência
também colaboram na construção da perspectiva investigativa na formação inicial em artes
visuais. A ideia da pesquisa foi aos poucos se constituindo como um lugar da práxis, mas, gerando
diversos questionamentos tais como por exemplo, se a pesquisa em arte pode ser considerada de
caráter científico uma vez que considera-se que o artista lida com a criação não submetida à
parâmetros científicos tais como rigor, com probabilidade, verdade etc. Para Hernandez

El arraigo de esta tradición como forma legítima de considerar lo que


es (y no es) investigación ha llevado por ejemplo a considerar que son
sólo los científicos vinculados a las Ciencias Experimentales quienes
realizan investigación (de verdad), y a establecer una visión/posición
jerárquica de éstos respecto, por ejemplo a los científicos sociales o a
quienes realizan su tarea en el campo de las Humanidades
(HERNANDEZ, 2008, p. 88).
Tavares (2016) ao discutir “inter-relações entre arte, pesquisa e ciência” apresenta com base em
Christopher Frayling uma tipologia de pesquisa artística: a) pesquisa em arte e design; b) pesquisa


194

por meio da arte e do design e c) pesquisa para a arte e design (p.73). No detalhamento dessas
tipologias, a presença da educação centra-se na segunda uma vez que, segundo a autora, a
pesquisa por meio da arte e do design “diz respeito à investigação realizada por meio da prática,
partindo do princípio de que o problema existe fora da arte ou do design”. Acrescenta ainda que
para Frayling “estes tipos de pesquisa referem-se à noção de ensinar por meio da arte, fazendo
menção a proposta de Hebert Read na ´década de 40 (p. 74). Sem dúvida, a concepção de Read
impacta o campo do ensino da arte no Brasil e na América Latina “instaurando” o movimento da
“educação pela arte” que ainda vigora em muitos âmbitos da arte educação. No entanto, esse
movimento vingou mais relacionado a própria prática educativa do que a prática investigativa,
campos de tensão da reflexão pretendida nesse artigo.
Tavares cita outras tipologias organizadas mais em 2007 por Borgdorff no texto O Debate sobre
Pesquisa nas Artes: No primeiro tipo a prática da arte é considerada o objeto de reflexão, o
segundo tipo, mais uma vez, temos a questão da aplicabilidade, onde a arte não seria o objeto da
investigação, mas, o seu objetivo (caráter instrumental), e no terceiro tipo “a investigação não
assume a separação entre sujeito e objeto, e não observa o afastamento entre o pesquisador e a
prática da arte”. (pgs. 74/75). Temos então as nomenclaturas em inglês “practice-based research,
practice-led reasearch e practice as rerearch”. A autora não pretende levantar julgamentos de valor
sobre as diferentes tipologias, aponta as similaridades entre os terceiros tipos tanto de Frayling
quanto de Borgdorff, quanto por outro autor (Macleod) “são investigações feitas com meios
específicos avançados e de campo, combinando a análise com base em amplo conhecimento, bem
como sentidos ativados para detectar diferenças nas qualidades sensoriais, mas que, todavia,
diferem do rigor de uma pesquisa científica” (p. 75). Para nossa reflexão proposta nesse artigo,
as tipologias de segundo tipo parecem ser as que abrigam as instâncias educativas, mas, e se, nós,
arte educadores, também pesquisadores, estivermos nos movimentando em outras direções
buscando ultrapassar essas fronteiras tipológicas? Quais seriam nossos enfrentamentos?
Lidamos com a dúvida se a pesquisa em arte educação, ou na formação docente, estaria conectada
ao fazer artístico, uma vez que reza a lenda, que “artista cria, professor ensina”. Vou chamar essas
dúvidas de fantasmas. O primeiro, surge do conflito vindo da ideia romântica de arte como
expressão, é vazia de cognição. O segundo fantasma, é interno a casa, mas nem por isso camarada.
Gira em torno da desconfiança da confiabilidade da pesquisa em arte ou arte educação ocupando
o sacrossanto recinto da pesquisa acadêmica. Embora a pesquisa constitua uma das competências
exigidas na graduação dos licenciandos em Artes Visuais, convivemos com os fantasmas e não é
à toa que a exigência de um TCC ou monografia de final de curso para licenciados surge com
certo atraso em relação a outros campos de conhecimento.
No parecer CNE/280 sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Artes
Visuais, bacharelado e licenciatura, aprovado em 2007 e homologado em 2008, encontramos no
perfil desejado do formando de que os cursos de graduação em Artes Visuais "devem formar


195

profissionais habilitados para a produção, a pesquisa, a crítica e o ensino das Artes Visuais" e sua
formação deve contemplar "o desenvolvimento da percepção, da reflexão e do potencial criativo,
dentro da especificidade do pensamento visual". No entanto, ao detalhar as especificidades de
cada formação fica clara a dicotomia que o documento estabelece entre bacharel e licenciado:

No que tange à diferenciação entre licenciando e bacharelando, a


Proposta de Diretrizes Curriculares do curso de Artes Visuais esclarece
que "através da aquisição de conhecimentos específicos de
metodologias de ensino na área, o licenciado acione um processo
multiplicador ao exercício da sensibilidade artística" e, "além de
artista/pesquisador, preparado para atuar no circuito da produção
artística profissional e na formação qualificada de outros artistas, o
bacharel em Artes Visuais tem a possibilidade de atuar em áreas
correlatas, onde se requer o potencial criativo e técnico específicos. Da
mesma forma, o licenciando pode desempenhar papéis nas
diversificadas atividades para-artísticas" (CNE, 2007, p.4).

Em um texto em coautoria com a profa. Moema Rebouças sobre identidade docente e pesquisa
escrito para o. III Encontro Internacional sobre Educação Artística realizado pelo professor Dr.
Fábio Rodrigues na URCA em 2012, entrevistamos professoras de cursos de Licenciatura na UFG
e na UFES responsáveis por orientar trabalhos de conclusão de curso levantamos três hipóteses
que continuam atuais em 2020: (GUIMARÃES E REBOUÇAS, 2014):

• A primeira hipótese é que as discussões sobre a pesquisa e o seu papel na formação do


professor de artes não possui o destaque necessário na academia, o que contribui para que
cada professor orientador do curso fique como numa redoma impermeável e, como não
há conexão entre seus pares, faz com que o lugar da pesquisa possa estar sendo pouco
explorado nesses cursos.
• A segunda hipótese, decorrente da primeira, se refere à concepção de pesquisa que é
trazida para a formação de docentes em artes. Suspeitamos que esta concepção ainda se
atém a estruturas rígidas do pensamento científico, desvalorizando o pensamento
divergente dos processos da própria arte.
• A terceira hipótese é que a concepção de pesquisa ao se afastar do campo da “educação
artística”, dificulta que se estabeleça a conexão pesquisador/professor a partir e com bases
mais próximas do cotidiano do fazer pedagógico.
Não temos respostas certas para as três hipóteses, no entanto, as entrevistas evidenciaram que
para as professoras entrevistadas, a formação continuada de mestrados e doutorados, propiciou
de forma mais sistematizada o exercício de investigação e, que esse reverbera nas suas ações
docentes na graduação, tentando fortalecer as discussões sobre a pesquisa e o seu papel na
formação do professor de artes, desconstruir concepções rígidas de entre pensamento científico e
artístico-educativo e estabelecer a conexão artista/professor/pesquisador como base da formação
docente em artes visuais.


196

Essas questões nos acompanham e são constante refeitas. Ainda em 2008, as pesquisadoras
Schmidlin e Fávero em um texto apresentado para a 17 ANPAP sobre o Artista/Professor no
currículo de Artes Visuais da UDESC levantam as seguintes questões: A prática do professor
instiga a prática artística? Como se complementam? Há disponibilidade de tempo/espaço para
manter nutrida a produção poética dentro das exigências acadêmico/burocráticas? Qual o sentido
e como conduzem o problema: produção plástica e produção do professor (acadêmica) e de que
forma o pensamento e a produção acadêmica influencia os ditames contemporâneos, ou é o
contrário, os ditames contemporâneos influenciam a academia?
Vemos que as questões levantadas pelas pesquisadoras tensionam a situação de professores e
professoras no campo das artes visuais que são docentes no ensino superior nos cursos
bacharelados e licenciaturas onde enfrentam desafios do tempo burocrático institucional nas
diversas tarefas a serem cumpridas, deixando (ou correndo o risco de deixar) de lado a parte da
criação artística. De fato, é comum ouvir queixas de que o tornar-se professor (a) vai se
distanciando do fazer-se artista. Não encontro tempo para me dedicar a minha produção, dizem
uns e outras, e nesse sentido, a última questão que indaga sobre os “ditames contemporâneos”,
pode servir para questionar se essa aparente dissociação entre professor artista é fruto de quais
ditames: da arte? Da docência? Da pesquisa? Conheço uma professora, excelente artista, que
pediu o des-cadastramento de uma pós-graduação, pois as questões burocráticas não deixavam
espaço para o desenvolvimento do seu trabalho poético. Por mais que eu argumentasse que fora
da pós-graduação também seria assim, não posso deixar de lhe dar razão, pois o cotidiano
institucional pode de fato sufocar não só a criação poética, como também a criação docente e
mesmo os processos autorais da pesquisa. No entanto, é dentro do ventre da fera que operamos e
onde, me parece, que a contemporaneidade, busca outras formas de existência para essa relação
arte, educação e pesquisa.

A institucionalização do campo
Quando terminei a graduação em 1985 fazia uma ´década que o primeiro curso de pós-graduação
em Artes havia sido criado na USP (1975). Ainda não havia a pressão da pós-graduação como
única porta para o ingresso como professor (a) de ensino superior. Assim, minha formação
continuada (mestrado, doutorado e pós-doutorado) é realizada já dentro da academia e posso
afirmar da diferença que esse percurso provocou na minha docência. Mas, por outro lado, posso
dizer da diferença que fez a minha experiência docente para a construção da pesquisadora. Um
percurso oroborus, de retroalimentação. Dito isso, posso hoje olhar a expansão do campo da
pesquisa na criação de cursos de pós-graduação no Brasil, e me entender (assim como aos meus
e minhas companheiras de jornadas) como parte desse fenômeno. Ana Mae Barbosa, minha
orientadora de doutorado, deixava claro a sua preocupação em formar doutores que estivesse
atuando em universidades com possibilidade de ingressarem nos cursos de pós-graduação. Sua


197

noção de formação de rede de pesquisadores sempre foi um ato político para a sistematização do
campo da arte, educação e pesquisa no Brasil.
Atualmente, o número de Programas de Pós-Graduação na área de Arte é o seguinte: 2 PPG na
região Norte, 13 na região Nordeste, 5 na região Centro Oeste, 32 da região Sudeste e 14 na região
Sul. A disparidade entre regiões é uma das questões a serem resolvidas com a formação de mais
doutores e a criação de mais cursos na área. Outra disparidade, é que desses programas apenas
2% é de programas específicos a ensino de arte. Mesmo observando que a maioria dos PPGs tem
em suas estruturas uma linha de pesquisa voltada para ensino, a baixa porcentagem também nos
alerta para o fantasma não camarada em nossa área. O mestrado acadêmico Prof-Artes amplia a
formação específica para a educação. Ofertado em rede nacional em 15 IES associadas:
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Universidade Estadual Paulista
(UNESP, Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal do Pará (UFPA),
Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Universidade Federal de Uberlândia (UFU),
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal da Bahia
(UFBA), Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade Federal da Paraíba (UFPB),
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG), Universidade Federal do Amazonas (UFAM) /
Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Universidade Federal do Mato Grosso do Sul
(UFMS) / Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Universidade Regional
do Cariri (URCA). Esse programa investe na qualificação de professores no exercício docente
nas disciplinas de artes na rede pública do país. Nota-se a inserção desse programa nos estados
do Nordeste e chama atenção a pareceria entre universidade federal e estadual nos estados do
Maranhão e do Mato Grosso do Sul.
Além dos programas já efetivados, no final de 2019 a CAPES aprovou os doutorados em História
da Arte da INIFESP, Estudos Contemporâneos da Arte na UFF e de Artes Cênicas na UFRJ.
Também foi aprovado um mestrado profissional em dança na Faculdade Angel Viana no Rio de
Janeiro. Com isto, a área de Arte conta agora com 70 programas.
Considerando-se que estes PPGs nas suas diferentes vertentes se empenham em manter uma
produção em revistas, periódicos, livros, realização de eventos, organização de anais, além das
teses e dissertações produzidas, a área de arte é uma realidade na relação arte, educação e
pesquisa, contribuindo para a qualificação também da formação inicial nos cursos de graduação.
Para o pesquisador espanhol Ricardo Marin Viadel, podemos conferir espaço e identidade para
as investigações do ensino de arte (educação artística) pois constituem “un territorio muy
especializado dentro de las investigaciones educativas, por un lado, y de las investigaciones sobre
el arte, por otro”. O autor menciona o número de suficiente de manuais de investigação, de revistas
internacionais especializadas, congressos nacionais e internacionais e de grupos de investigação”
para poder afirmar que desde algumas décadas a Educação Artística se configura como um


198

território de investigação com sua própria identidade situado “justo en la intersección entre los
problemas de las artes visuales y los problemas educativos (p.271-272).
Também podemos mencionarNo Brasil a ANPAP - Associação Nacional de Pesquisadores em
Artes Plásticas - criada em 1987, já nasce com um comitê que iria abrigar pesquisadores (as) e
suas investigações no ensino/aprendizagem das artes visuais os quais em estreita relação com a
formação e a produção nos cursos de pós-graduação em artes visuais no Brasil. Um coletivo em
expansão que na sua diversidade transversaliza campos e outros interesses com a docência
(tecnologias, museologia, história e memória, aspectos didáticos/metodológicos, processos de
criação poética, etc.), desenvolve pesquisas oriundas do exercício docente em espaços/formais e
não formais de ensino e alimenta inquietações “englobando metodologias de ensino, mediações
estéticas e culturais; formação do docente das artes, das relações entre arte, cultura e mídias e
tecnologias e dos processos de criação (descrição do CEAV - site Anpap).
Já a FAEB - Federação de Arte Educadores do Brasil, tem ao longo dos seus trinta e um anos de
existência, construído em sua configuração, o espaço da pesquisa. Vale ressaltar que quase todos
anpapianos do CEA - Comitê de Ensino de Artes Visuais - são (ou já foram) faebianos. Assim,
também existe uma retroalimentação das questões da pesquisa entre essas duas associações. Isso
implica em uma produção específica para os eventos que tem promovido uma “fortuna crítica”
da pesquisa na relação arte, educação.
Nessa fortuna crítica, temos presenciado o surgimento de trabalhos que se pautam pela Pesquisa
Baseada nas Artes, Investigação Baseada na Imagem, Artografia, Bricolagem, Pesquisas
narrativas e ou, autobiográficas dentre outras possibilidades. Artografia que reúne os termos artist
(artista), teacher (professor), research (pesquisador) é uma aglutinação proposta pela Dra. Rita
Irwin que almeja a "integração das artes, nesse caso especificamente as artes visuais, com
métodos de pesquisa educacional". Segundo a autora esse neologismo foi criado para "identificar
uma prática docente e uma escrita investigativa (“grafia”) – o relatório de uma pesquisa, um texto
monográfico, uma dissertação, uma tese – fundamentadas na articulação entre “artist-researcher-
teacher, integrando theoria, práxis e poiesis, ou teoria/pesquisa, ensino/aprendizagem e
arte/produção” (IRWIN, 2008, p. 88).
Esta e outras terminologias que indicam que outros ventos podem impulsionar caminhos mais
conectados com as nossas questões, como aponta Hernandez citando Elliot Eisner, arte educador
pioneiro dessa proposta desde os anos setenta do século vinte:

Desde estas perspectivas que miran al sujeto y a la narrativa que da


cuenta de la experiencia, de lo que se trata, como señala Eisner (1998:
283), es de “abrir nuevas vías de pensamiento sobre cómo llegamos a
saber y exploramos las formas, a través de las cuales lo que sabemos se
hace público. Tales formas, como la literatura, el cine, la poesía y el
vídeo se han utilizado durante años en nuestra cultura para ayudar a que
las personas vean y comprendan cuestiones y acontecimientos


199

importantes. En raras ocasiones se han utilizado en la realización de


investigación educativa. Estudiamos la enseñanza con herramientas
estadísticas muy poderosas, pero rara vez la estudiamos también como
un arte práctico. Mi propósito es plantear otros modos de ver cómo
puede realizarse la indagación en cuestiones educativas”
(HERNANDEZ, p. 88).
Eisner (1984, p.40) nos orienta para o fato de que uma pesquisa, para ser realizada, não necessita
ser nem empírica e nem quantitativa, pois constitui-se como uma atividade intelectual cujo
objetivo é desenvolver conceitos, modelos e paradigmas que almejam compreender e assim
explicar como funciona o mundo. Neste movimento é preciso ressaltar que professor (a)
pesquisador (a) é aquele (a) que inserido em um determinado contexto (social, histórico,
organizacional, institucional, espacial e temporal) poderá intervir e propor práticas docentes em
artes a partir de sua própria inserção e olhar comprometido que o processo investigativo lhe
permitiu construir. (Guimarães e Rebouças, 2014).
Mais e mais pesquisas estão sendo desenvolvidas nesse sentido, como por exemplo, a tese de
Daniele de Sá Alves “Formações (C)A/R/Tográficas Experiência em processo na arte, na
educação e na pesquisa para a formação de professores artistas” defendida no Programa de Pós-
graduação em Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro sob a orientação da profa.
Isabela Frade, uma docente que trabalha nesses atravessamentos. De acordo com o resumo a tese
teve “como objeto de estudo a questão da experiência da arte, da experiência em arte e da
experiência com a arte na formação de professores apostando na sua força para o aprendizado
significativo em processos de pesquisa, criação e docência no âmbito das licenciaturas em artes
visuais” (ALVES, 2019)
Importante fazer referência ao projeto Apotheke da profa. Jociele Lampert que tem questionado
com projeto a em um curso de artes visuais em uma universidade pública (UDESC) como
“construir um espaço de ensino e aprendizagem que compreenda o tempo e o espaço no ateliê de
pintura. Lampert diz que “ Tal questão parte não somente da perspectiva de mapear metodologias
operativas desenvolvidas na pesquisa em Arte, mas do sentido de instaurar outro modo ou
paisagem, gerando deslocamentos para uma consonância contemporânea frente à Arte e à
Educação e que dinamize o processo formativo do artista professor neste espaço”. A tônica então
recai nessa formação que não tem modelos de operacionalização, por exemplo, para Lampert

Uma das formas relevantes para pensar a construção da subjetividade


do artista professor pode ser através de um pensamento reflexivo sobre
as experiências apreendidas durante o processo. Dewey evidencia a
relevância de entender o processo como essencial no aprendizado e a
busca pela percepção e reflexão como fundamentais na construção do
sujeito. (LAMPERT, GOULART e FACCO, 2017, p. 4162)

Ana Mae Barbosa (2005, p.12) ao se referir a Freire e a Eisner ressalta que os dois educadores
consideram a educação “[...]mediatizada pelo mundo em que se vive, formatada pela cultura,


200

influenciada pelas linguagens, impactada por crenças, clarificada pela necessidade, afetada por
valores e moderada pela individualidade”. Portanto, construir investigações em arte, educação,
arte-educação, ensino de arte e o que mais se conecte a esses termos, constitui um movimento que
ao mesmo tempo é composto por uma experiência (no sentido que lhe atribui Dewey), pois é ela
que apontará as “faltas”, as incompletudes”, “as inquietações” que a investigação intentará
responder (Guimarães e Rebouças, 2014).

Arrematando as pontas desfiadas: entre fantasmas e operações coletivas

Para arrematar essas reflexões recorro a um texto da profa. Irene Tourinho que a partir de um
levantamento realizado por outras pesquisadoras (PILLAR e REBOUÇAS, 2008) sobre um
panorama de Pesquisa na ANPAP do Comitê de Educação em Artes Visuais no17° Encontro
Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em
Artes Visuais. A partir dos dados dos trabalhos apresentados nesse comitê, Tourinho organiza
Tópicos de leitura e reflexão, dos quais trago as questões do Tópico I: Paradigmas
epistemológicos e pedagógicos:

Como a educação estética e artística podem auxiliar na formação de


sujeitos complexos? (2) qual é o uso social de uma inteligência própria
a sensibilidade, especificidade da arte? Qual seria o campo intelectual
do ensino de Artes Visuais? O que se busca no ensino de arte? Qual a
importância da palavra e da representação plástica em minha vida
individual e coletiva? O que é o belo? O que é o estético? Qual a
distância entre arte e artesanato? O que caracteriza cada um desses
campos de conhecimento? Que fronteiras ultrapassar? Quais preservar?
Que deslocamentos fazer? Existe dúvida em arte? (TOURINHO, 2008,
p.3352).

Refletindo sobre essas questões, diria que que temos percebido movimentos que buscam outras
relações, quiçá, outras tipologias, uma vez que sempre vamos estar envolvimentos em formas de
organizar e compreender nossas experiências. Estamos precisando de outros mapeamentos para
ver quais questões surgiram depois destas, quais permaneceram, que novos aportes metodológicos
chegam para fortalecer o campo. Na relação pesquisa e educação tensionada pela arte, vamos
construindo mundos. Sempre diversos, inacabados e em formação. Coloco aqui inquietações do
“artistodocente” Narciso Telles (2017) que ao apresentar o livro da profa. Valéria G. Araújo
indaga:

[...] como as práticas artísticas entram no contexto universitário e na


pesquisa acadêmica, com seus modelos e formatações? Como os
professores universitários podem desenvolver práticas artísticas como
pesquisa? Quais as formas e locais para a prática artística dos docentes


201

universitários da área? Como aderir ao processo artístico um certo rigor


conceitual ‘acadêmico’? (Apresentação)

Telles sustenta que a noção de Artista-docente parte da percepção não dissociativa entre a
atividade artística e a pedagógica no âmbito teatral, e aqui, podemos substituir a teatro para
qualquer outra área: visuais, dança, música, design, cinema. Ao trazer alguns dados da construção
do campo tais como expansão da pós-graduação, natureza dos eventos, produção de teses e
dissertações, publicações, etc., quis pontuar que esses questionamentos sobre a indissociabilidade
e os fantasmas que gera, presente entre nós, vem ganhando espaço tanto conceitualmente, quanto
em nossas práticas docentes. Como argumenta Telles (2017),

[...] a dissociação entre a prática artística e a docente, muito comum no


meio universitário, não alcança a mesma dimensão nas práticas
pedagógicas dos grupos. Nestes, as esferas artística e pedagógica
encontram-se interligadas, num processo recíproco de
aperfeiçoamento. No ensino universitário a atividade de docência e de
pesquisa encontram-se, quase sempre, distanciadas do exercício
artístico. O conceito de artista-docente, e acrescentaríamos o de
pesquisador, implicaria, no âmbito universitário, uma aproximação
entre estas esferas de trabalho. (s/p).
Tenho acompanhado de perto o trabalho da professora artista e pesquisadora Lilian Amaral, de
São Paulo, participando de diversos projetos que envolvem, como ela mesmo diz, práticas
artísticas/ docentes, vinculadas à uma Geopoética e uma Geofonia que emerge do lugar habitado,
entendido como um território geográfico - físico, humano e cultural, resultado do uso e
apropriação real e simbólica que as pessoas fazem no lugar, do Território. Esse tem sido outro
caminho para a formação artistasdocentes, artivistas que se engajam em questões de comunidade,
causas ambientais, e discussões sobre o que pode ser patrimônio para cada grupo ou pessoa.
A imbricar aspectos biográficos na escrita pensei nessas esferas de trabalho artedocente para
enfatizar tensões constituintes da relação arte, educação e pesquisa dando continuidade a muitas
outras vozes que se debruçam sobre o assunto. Entender-me em um coletivo de professores (as)
pesquisadoras visceralmente envolvidos (as) com essa construção de um campo em expansão,
com suas potencialidades e dificuldades, enfrentando suas idiossincrasias, mas, necessário em um
país onde liberdade, cultura, educação, ética, estética e responsabilidade social encontram-se sob
forte ataque. Pensar a conjunção entre arte, educação e pesquisa é uma forma de resistir e fincar
nossos corpos na construção desse campo conhecimento fazendo gerar outros reconhecimentos
docentes no chacoalhar dessas placas tectônicas.

Referências
Alves, Daniele de Sá. Formações. (2019). (C)A/R/Tográficas: experiência em processo na arte,
na educação e na pesquisa para a formação de professores artistas. 2019. 293 f. Tese (Doutorado
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202

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203

Capitalismo de vigilância e artveillance: um estudo sobre a reprodução de conhecimentos


estereotipados pelos algoritmos

Surveillance capitalism and artveillance: a study about the reproduction of knowledge


stereotyped by algorithms

Lorena Ferreira Alves67

Resumo
Este artigo68 parte do estudo sobre as implicações sociais na atual economia de dados, cujo enfoque está na
discussão a respeito do capitalismo de vigilância e indiferença formal de Shoshana Zuboff, e os
conhecimentos gerados pelos algoritmos de Antoinette Rouvroy. As reflexões sobre os danos sociais
provocados por insights gerados pelos cálculos algorítimos, é realizado através da análise das obras de Joy
Buolamwini e Heather Dewey-Hagborg, cujas investigações das artistas levantam problemáticas sobre
discriminações raciais reforçadas pelos uso te tecnologias de vigilância.
Palavras-chave: capitalismo de vigilância, arte e vigilância, algoritmos estereotipados.

Abstract
This article is part of a study on the social implications in the current data economy, whose focus is on the
discussion of Shoshana Zuboff's capitalism of surveillance and formal indifference, and the knowledge
generated by the algorithms of Antoinette Rouvroy. The reflections on the social damage caused by insights
generated by algorithmic calculations are realized through the analysis of the works of Joy Buolamwini
and Heather Dewey-Hagborg, whose investigations by the artists raise problems about racial
discrimination reinforced by the use of surveillance technologies.
Keywords: surveillance capitalism, art and surveillance, stereotyped algorithms.

Capitalismo de vigilância e insights algorítmicos

O capitalismo de vigilância, conceito criado pela economista e socióloga Shoshana Zuboff, se


trata de sua investigação acerca da monetização do big data e suas aplicações sociais. As
discussões levantadas por Zuboff em seu artigo Big other: surveillance capitalism and the
prospects of an information civilization, serão discutidas no decorrer deste artigo com o objetivo
de levantar perspectivas sobre as atuações das tecnologias de vigilância de dados na Internet, seus
impactos sociais e futuros possíveis das relações entre população e organizações que
desenvolvem, fornecem ou aplicam tecnologias que fazem uso do big data com fins lucrativos.
A mineração de dados vigiados na web segue, segundo Zuboff (2015), uma lógica capitalista de
acumulação que faz referência à produção em massa do capitalismo do século XX, esta lógica
acumulativa se expressa atualmente na necessidade de extração massiva de dados, a vigilância de
qualquer comportamento possível de ser monitorado. Em um mundo de civilização informatizada,


67 Lorena Ferreira Alves, doutoranda em Artes Visuais no Programa de Pós Graduação em Artes Visuais
da Universidade de Brasília.
68 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.


204

a monetização de dados se refere às ações que produzimos a cada instante na Internet ou fora dela.
Uma vez monitorada, a gigantesca quantidade de dados retiradas de variadas fontes e contextos,
são destinadas ao armazenamento, troca monetária entre empresas e análises algorítmicas.
O valor do big data está nos insights que as análises algorítmicas podem gerar a partir dele, cuja
principal vantagem é a descoberta de padrões de comportamento que torna possível a produção
de conhecimentos preditivos do que um indivíduo pode vir a desejar ou necessitar, aumentando
assim as probabilidades de ganhos econômicos das empresas. Estes insights69, termo utilizado por
companhias prestadoras de serviços tecnológicos para se referir às descobertas que são possíveis
através da utilização do big data, estão presentes no desenvolvimento de inteligência artificial,
machine learning e Internet das Coisas. Um exemplo é a empresa IBM que desenvolve tais
tecnologias para oferecer soluções corporativas por meio de serviços que empregam análises e
previsões a partir de cálculos algorítmicos de dados complexos.
Perspectivas resultantes de cálculos algorítmicos para aplicações em estratégias de marketing,
pesquisas científicas, ou uso governamental de segurança, estão sendo discutidas quanto ao seu
grau de subjetividade ou a falta desta. As singularidades presentes na vida de cada indivíduo estão
sendo padronizadas. O indivíduo se torna assim usuário ou um perfil, cujos traços de
personalidades são dispostos em modelos estabelecidos pelos insights descobertos nos cálculos
algorítmicos.
Sobre esta problemática, Antoinette Rouvroy (2014) atenta para o “conhecimento” gerado através
da análise algorítmica do big data, alertando sobre a ausência de uma democracia de diálogo entre
indivíduo e o sistema algorítmico que elege as informação direcionada a ele, havendo dessa forma
o perecimento do livre arbítrio por parte do indivíduo sobre as informações que são mediadas pela
Internet. As atuais formas digitalizadas de socialização, comunicação e educação operam de
acordo com os conhecimentos gerados pelo cálculo algorítmico, forma outra de percepção que
não seria possível graças às avançadas tecnologias de vigilância de dados e suas ferramentas de
análises:
Para dizer a verdade, Big Data significa sobretudo o cruzamento de um limiar
a partir do qual seríamos obrigados (pela quantidade, a complexidade, a
velocidade da proliferação de dados) a abandonar as ambições da
racionalidade moderna que consiste em ligar os fenômenos às suas causas, em
favor de uma racionalidade que se poderia dizer pós-moderna, indiferente à
causalidade, puramente estatística, indutiva, limitada à identificação de
padrões, ou seja, padrões formados por correlações observadas não no mundo
físico mas entre dados numéricos, independentemente de qualquer explicação
causal. (Rouvroy, 2014, p.2)


69 “Big data analytics: Leverage the most effective big data technology to analyze the growing volume, velocity and
variety of data for the greatest insights”. Trecho de apresentação acerca das vantagens advindas da utilização do big
data elaborado pela International Business Machines Corporation (IBM). Recuperado em 30 de outubro, 2020, de
https://www.ibm.com/analytics/hadoop/big-data-analytics


205

A reflexão de Rouvroy se refere aos insights extraídos pelas análises de dados que estão sendo
incorporados em praticamente todos os campos que afetam nossas vidas, sendo elas econômicas,
sociais, políticas, educacionais e da saúde. Rouvroy (2014), explica que este conhecimento toma
o lugar do espaço público de discussão, uma comunidade que se reúne para decidir o que é melhor
para todos. Agora as decisões são automatizadas e os indivíduos são direcionados aos “mundos”
padronizados resultantes dos conhecimentos gerados pelos cálculos de dados massivos
descontextualizados de suas fontes.
Esta descontextualização gera, o que Zuboff denomina de indiferença formal, um distanciamento
entre empresas que utilizam o big data e a população. Zuboff analisa em sua investigação textos
acerca da economia empresarial em tempos de big data publicados por Hal Ronald Varian, chefe
de economia do Google, discutindo como o processo de extração é levado em conta por esta
empresa. Zuboff (2015) diz que os dados são considerados como meros bits e sua extração ocorre
em via única, ou seja, os dados são destacados de suas fontes para alimentar e realimentar os
cálculos algorítmicos, passando por um processo de desfragmentação para serem empregados em
diversas possibilidades de cálculos com o objetivo de gerar resultados ou previsões desejadas
pelas empresas, retornando ao indivíduo como informações de fins mercadológicos.
A descontextualização dos dados de sua fonte pensados apenas como informações que alimentam
as análises preditivas dos algoritmos, produz o distanciamento discutido por Zuboff. Este
distanciamento também pode ser pensado como uma maneira de isenção de responsabilidade por
parte das empresas sobre qualquer consequência danosa à população advinda da utilização das
tecnologias algorítmicas. Dessa forma, qualquer dano poderia ser interpretado como um problema
técnico de cálculo.
Não obstante, estamos assistindo fatos de consequências danosas à população geradas através da
utilização de dados pessoais para analises algorítmicas. Um dos principais exemplos no uso de
insights algorítmicos para persuasão social, ocorreu durante a campanha eleitoral de Donald
Trump em 2016 nos EUA. O escândalo envolvendo a empresa privada de mineração e análise de
dados Cambridge Analytica70, encerrada no ano de 2018, utilizou informações pessoais de cerca
de cinquenta milhões de usuários norte-americanos do Facebook para traçar perfis que estariam
aptos a aceitar conteúdos eleitorais favoráveis ao presidente Donald Trump.
Após o escândalo sobre o envolvimento de extração de dados pessoais da empresa Facebook,
houve o aumento de cobranças por medidas de transparência sobre o uso de dados pessoais, e a
tomada de responsabilidades sociais por parte da empresa. No ano de eleição presidencial dos


70 Texto sobre o escândalo na íntegra em “Cambridge Analytica e a nova era Snowden na proteção de dados
pessoais”. Recuperado em 30 de outubro, 2020, de
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/20/tecnologia/1521582374_496225.html


206

EUA em 2020, Nick Clegg71, chefe de assuntos globais do Facebook, anunciou novas estratégias
para restringir a desinformação (ou fake news) na plataforma. Dentre as medidas tomadas está o
impedimento de circulação de informações falsas, incitação à violência, e supressão de
campanhas eleitorais, medidas que evolvem também outros países além dos EUA.
Outro apontamento acerca da indiferença formal discutido por Zuboff (2015) está na necessidade
de conhecimento cada vez mais especializado para a análise de dados massivos e variados, o que
contribuí no distanciamento entre empresa e população, em que a população não alcança um
conhecimento acessível sobre o funcionamento de análises algorítmicas, impedindo assim as
capacidades de expressar feedbacks para as empresas. Dessa forma, com a falta de transparência
de como e para onde os dados estão sendo utilizados, os indivíduos fazem uso de aplicativos como
o Facebook ou Instagram sem saber como reivindicaria de maneira efetiva a privacidade de seus
dados ou formas conscientes de utilizá-los.

Arte e vigilância como denúncia aos algoritmos estereotipados

A elaboração de discussões sobre as consequências sociais advindas da vigilância de dados na


Internet, vem sendo constantemente apresentadas e atualizadas em obras de arte e vigilância (ou
artveillance). Trabalhos artísticos que dizem respeito às tecnologias de vigilância realizados no
século XXI, discutem problemáticas que vão além dos temas de invasão e perda de privacidade,
denunciando imposições de poderes por parte de empresas que coletam e administram o big data.
A obras apresentadas a seguir, partem de investigações sobre a reprodução de preconceitos e
esteriótipos advindos de análises algorítmicas empregadas em tecnologias de inteligencia
artificial e machine learning.
O primeiro exemplo consiste no trabalho desenvolvido pela cientista da computação e artista Joy
Buolamwini, investigadora no MIT Media Lab (Laboratório do Instituto de Tecnologia de
Massachusetts). Sua pesquisa e produção artística se refere aos impactos danosos à sociedade
provindas da inteligência artificial. Buolamwini diz que durante seu primeiro semestre de estudos
no laboratório, recebeu um software de reconhecimento facial que não conseguia identificar seu
rosto negro, situação que mudou quando ela vestiu uma máscara branca e então seu novo “rosto
branco” foi reconhecido. As condições de erros de interpretação de rostos negros em tecnologias
de reconhecimento facial, foi um dos fatores que levou a artista a desenvolver investigação e
ações antirracistas sobre o uso destas tecnologias, sendo o resultado de seu trabalho expresso no
documentário Coded Bias (2020)72.


71 Matéria “Facebook promete restringir usuários se eleição nos EUA virar um caos”. Recuperado em 30
de outubro, 2020, de https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/09/facebook-promete-restringir-
usuarios-se-eleicao-nos-eua-virar-um-caos.shtml
72Informações sobre o documentário podem ser acessado por meio de link: https://www.ajl.org/spotlight-
documentary-coded-bias


207

Buolamwini (2019) diz que tecnologias de reconhecimentos facial são treinadas com imagens de
homens predominantemente de pele clara, formando assim tecnologias discriminatórias e de
exclusão, onde pessoas que não se encaixam nas normas padronizadas por estas tecnologia, se
veem pressionadas a mudar sua própria aparência para serem aceitos por estes sistemas.
Buolamwini argumenta sobre a imposição de poderes e a exclusão de pessoas negras operadas
pelas tecnologias de vigilância, citanto sua investigação em serviços de inteligência artificial dos
principais monopólios do big data, como as empresas Amazon, IBM e Microsoft.
Ao pesquisar tecnologias de machine learning em serviços de reconhecimento facial destas
empresas, Buolamwini (2019) aponta, nos resultados de seu estudo, que ao interpretar rostos de
gêneros masculinos de pele clara as taxas de erros não foram superiores à 1%, enquanto que para
rostos femininos o taxa de erro foi de 35%. Assim a “subrepresentação de mulheres e pessoas de
cor na tecnologia, e a subamostragem destes grupos nos dados que moldam a IA, levou à criação
de uma tecnologia que é optimizada para uma pequena parcela do mundo” (Buolamwini, 2019,
n.p.)



Imagem da apresentadora Obrah Winfrey analisado pelo software de reconhecimento facial Amazon
Rekognition em estudo realizado por Joy Buolamwini.
Fonte: https://time.com/5520558/artificial-intelligence-racial-gender-bias/

Como forma de minimizar os problemas de racismo e exclusão provocadas pelas tecnologias de
reconhecimento facial, conscientizar a população sobre os danos provocados por estas
tecnologias, e instigar o envolvimento comunitário nas tomadas de decisões advindas de empresas
e instituições que fazem uso destas tecnologias, Joy Buolamwini junto ao Algorithmic Justice
League e o Center on Technology & Privacy at Georgetown, criaram o Safe Face Pledge73, um
compromisso público destinado à empresas e instituições que utilizam tecnologias de
reconhecimento facial. Ao assinar o Safe Face Pledge, a empresa ou instituição concorda em
garantir o uso não letal desta tecnologia para tomada de decisões (como forma de impedir por
exemplo, o uso indevido de tecnologias de reconhecimento facial pela polícia dos EUA), e


73Compromisso Safe Face Pledge. Recuperado em 30 de outubro, 2020, de
https://www.safefacepledge.org/


208

proporcionar a transparência sobre o uso de tecnologias de reconhecimento facial, publicando


informações acessíveis sobre como a análise facial é utilizada e para onde os dados extraídos
estão sendo encaminhados ou vendidos.
Outro exemplo de discussão sobre a utilização de bases de dados para identificação de rostos pode
ser observado na obra Stranger Visions74 (2013) da artista e biohacker Heather Dewey-Hagborg.
A artista produz obras no campo da vigilância genética, em que transforma rastros de DNA de
corpos humanos em dados a serem interpretados por tecnologias de previsão de traços faciais. Em
Stranger Visions, a artista coleta amostras de DNA (como fios de cabelo, bitucas de cigarro e
chicletes) nas ruas da cidade de Nova York para extração e análise. Os rostos são produzidos de
acordo com as características das informações genéticas coletadas, e a simulação dos rostos são
impressas em formato 3D de tamanho real.


Stranger Visions - Heather Dewey-Hagborg, 2013.
Fonte: https://deweyhagborg.com/projects/stranger-visions

Dentre as questões levantadas pela artista sobre a vigilância genética, Dewey-Hagborg discute
sobre o determinismo genético presente em empresas de Forensic DNA Phenotyping (FDP), que
realizam análises avanças de DNA destinadas à investigação forense, como a Parabon
NanoLabs75, que presta serviços para o departamento de polícia dos EUA. Ao investigar
empiricamente como os dados de DNA são utilizados para a criação de simulação de rostos,
Dewey (2015) relata que os traços são gerados a partir de dualidades de características, como por
exemplo, a aparência de um rosto feminino e um rosto masculino ou africano e europeu, cujos
traços são estereótipos ultrapassados que não levam em consideração outros diversos fatores de
aparência facial, como a mudança de sexo de um indivíduo, ingestão de hormônios, dieta,
cirurgias estéticas ou fatores ambientais.


74 Link de acesso à obra em: https://deweyhagborg.com/projects/stranger-visions
75 Link de acesso da empresa em: https://snapshot.parabon-nanolabs.com/


209

Além dos laboratórios de engenharia de DNA simularem rostos humanos sem integralizar a
diversidade de fatores de mudanças estéticas e ambientais, Dewey (2015) relata que as análises
de ancestralidade são realizadas com uma perspectiva estereotipada do que são traços africanos,
europeus, asiáticos, nativo americano e oriental, categorização esta que foi criada pela ciência
racista do século XIX. Os rostos gerados pelos laboratórios de simulação a partir dos genes
desconsideram a mestiçagem populacional, enquanto que Dewey (2015) ainda lembra que a
distinção de raça negra ou branca não pode ser identificada geneticamente, sendo que não há
nenhum gene ou conjunto de genes que contenha um código de raça, sendo portanto a raça fruto
de uma construção social.

Os esteriótipos étnicos aplicados em algoritmos para a simulação de rostos estão sendo


considerados como fonte de autoridade científica e funcionam como mais uma ferramenta de
criminalização do corpo negro:

Em vez de tornar o procedimento policial mais justo, a fenotipagem forense de


DNA ameaça minar décadas de protesto, educação, e agitação de reforma
política para acabar com a caracterização racial, o racismo institucional, e a
discriminação. As implicações aqui não são teóricas, abstratas, ou
probabilísticas, são vidas humanas, e são vidas desproporcionadamente
negras. Rick Kittles, o geneticista por detrás do africanancestry.com, disse
recentemente a Duana Fullwiley que tinha deixado de partilhar DNA com os
cientistas que desenvolvem sistemas FDP porque "eu não quero ajudar a
colocar mais negros na prisão". (2015, n.p.)

Considerações

Mediante as reflexões apresentadas acerca das tecnologias de vigilância de dados, sua


comercialização, e suas implicações sociais, a neutralidade desta tecnologia não pode ser
creditada devido os múltiplos fatos assistidos de consequências danosas, como indução política,
preconceitos e exclusões sociais. Os “insights” gerados pelos algoritmos utilizados pela
inteligência artificial e learning machine, estão atuando como uma ferramenta que reforça
esteriótipos sociais e discriminação do corpo negro ao invés de minimizá-los, como analisado nas
obras de Joy Buolamwini e Heather Dewey-Hagborg.
Os insights provindos dos cálculos algoritmos discutidos por Antoinette Rouvroy não devem
retirar a autonomia de discussão pública e constante reavaliação política sobre as formas de como
o big data está sendo utilizado. É necessário que as discussões pública e política sejam
consideradas em órgãos que lideram o desenvolvimento tecnológico de nosso tempo, para que o
pensamento de impotência humana sobre a tecnologia seja contestado, pensamento este
expressado por Hannah Arendt, acerca do conhecimento humano diante os avanços científicos,
“seria como se o nosso cérebro, condição material e física do pensamento, não pudesse
acompanhar o que fazemos, de modo que, de agora em diante, necessitaríamos realmente de
máquinas que pensassem e falassem por nós” (Arendt, 2007 p.11)


210

Uma vez identificados os conhecimentos estereotipados, excludentes e discriminatórios advindos


dos cálculos algorítimos, que estão reproduzindo de forma automática e impessoal os problemas
sociais até então não resolvidos, como por exemplo o racismo, faz-se necessário que empresas
conduzam suas ações para se adequar a situações presentes, de forma a suprimir os efeitos
negativos causados pelas tecnologias de extração e análise de dados.
As iniciativas realizadas por Joy Buolamwini, são exemplos de ações para minimizar o cenário
de indiferença formal entre população e empresas pertencentes ao capitalismo de vigilância
discutidos por Shoshana Zuboff. Compromissos como o Safe Face Pledge, buscam minimizar a
indiferença formal, instigando a produção de acesso informativo sobre as formas de
funcionamento da inteligência artificial e o uso de dados para reconhecimento facial, bem como
a conscientização da população sobre os danos aos direitos e dignidade humana afetados por essas
tecnologias. Dessa forma, é preciso encontrar maneiras para que a utilização de tecnologias de
vigilâncias de dados seja compromissada com as necessidades de melhoria de qualidade de vida
pública, e não apenas uma ferramenta para favorecimento de uma pequena parcela da população.

Referências
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211

Diálogos entre a arquitetura da informação e os primórdios da visualização de dados

Dialogs between information architecture and the beginnings of data visualization

Marcus Vinicius Fainer Bastos76

Resumo
O artigo discute as proximidades entre os conceitos de visualização científica e arquitetura da informação,
entendidos como precursores da visualização de dados em sua configuração contemporânea. Em diálogo
com autores que balizam a área, procura formular um diálogo entre a visualização de dados e a arte,
considerada como campo de possibilidades não exploradas para a tangibilização de informações complexas.
Palavras-chave: arte, arquitetura, dados, informação, visualização.

Abstract/resumen/resumé
The article discusses the proximities between the concepts of scientific visualization and information
architecture, understood as precursors of data visualization in its contemporary setting. In dialog with
authors that shape the are, it proposes a dialog between data visualization and art, considered as a field
of unexplored possibilities concering the tangibilization of complex information.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: art, architecture, data, information, visualization.

O conceito de visualização de dados acompanha a história da computação gráfica desde seu


princípio. Segundo alguns pesquisadores da área, os antecedentes da visualização de dados
remontam mesmo ao surgimento da própria Internet, em dispositivos de organização não-linear
do pensamento, como o Memex, concebido em 1945 por Vanevar Bush, ou as experiências com
hipertexto de Theodore Nelson, na década de 196077.
Deste ponto-de-vista, a visualização de dados antecede a própria existência do computador, e
situa-se no cerne do pensamento computacional. Este é um dos elementos — mas não o único,
como ficará claro ao longo deste texto — que permite aproximar visualização de dados e
arquitetura da informação. Um dos grandes desafios na criação do computador foi justamente
conceber a arquitetura de dados que permite seu funcionamento.
A arquitetura de informação também está no cerne do pensamento computacional. Seria até
possível dizer que a arquitetura de informação permite as entradas de dados em que os algoritmos
vão transitar resultando em saídas na forma de visualização de dados. Tudo o que é visto através
da tela de um dispositivo digital é uma forma de visualização de dados, pois empresta uma face
tangível às operações binárias que o tornam operacional. Mas dizer que tudo é algo ajuda pouco


76
Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, onde é professor vinculado ao Departamento de
Artes, desde 2003, e ao programa de pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, desde
2012. Publicou os livros Audiovisual ao Vivo: tendência e conceitos (com Patricia Moran, Intermeios,
2020), Limiares das Redes (Intermeios, 2014) e Cultura da Reciclagem (Noema, 2007, ebook).
77
Cf. Hanns, Daniela Kutschat. (2014). Visualização de dados e “tangibilização” da informação: uma
questão cognitiva, in: Beiguelman, Giselle; Magalhães, Ana Gonçalves. Futuros Possíveis. Arte,
museus e arquivos digitais. São Paulo: Edusp.


212

em termos de definição. Por isso, a seguir será feito um recorte em torno do uso consensual e
restrito do termo visualização de dados.
Em 1987, um termo que antecede a expressão visualização-de-dados, ganha atenção inédita,
graças ao relatório Visualization in Scientific Computing. Editado por Maxine Brown, Thomas de
Fanti e Bruce McCormick, o texto levanta argumentos para estimular o financiamento para a área
do que então se chamava visualização na computação científica. O princípio de reunir
informações como ponto-de-partida para uma explicação visual já estava estabelecido, mas o
contexto era outro.
Os processos de visualização científica demandavam equipamentos de alto custo, portanto
restritos a laboratórios em centros de pesquisa avançados. Por este motivo, estes primórdios
implicam em práticas restritas, conhecidas apenas por peritos com acesso às máquinas necessárias
para dar conta de sua capacidade computacional. Uma das diferenças da visualização de dados
contemporânea é que os computadores domésticos com programas gratuitos podem realizar
aquilo que antes só era possível em estações gráficas especializadas.
O artigo de Brown, De Fanti e Mc Cormick propõe uma definição de visualização científica que
abrange um dos aspectos mais importantes das práticas em questão, quando afirma, em seu
resumo executivo, que aplicar “gráficos e técnicas visuais à ciência computacional é uma área
completamente nova de empreendimento, que os membros deste painel nomearam visualização
em computação científica”78.
Os autores se referem ao painel organizado pela National Science Foundation, de título Panel on
Graphics, Image Processing and Workstations. Seu objetivo era estabelecer e ordenar prioridades
na aquisição de equipamentos e programas para processamento de gráficos e imagens em
institutos de pesquisa que estivessem desenvolvendo trabalhos avançados de computação
científica, como o relatório explica, ainda no resumo executivo já citado acima.
Reforçando o aspecto da definição que interessa para relacionar a visualização científica à
visualização de dados, é preciso destacar as palavras “gráficos” e “técnicas visuais”. Os processos
em questão buscam encontrar expressões de conceitos científicos através de imagens. Se isto
parece ordinário, é preciso lembrar que, nos anos 1980, a ciência era muito mais baseada em
textos do que atualmente. Mesmo nos dias de hoje, apesar de muitas mudanças de mentalidade, o
texto ainda se mantém em lugar de grande importância no mundo científico.
Fazendo um parêntesis rápido, vale lembrar que, em que pesem trabalhos pioneiros dos poetas
concretos já nos anos 1950 (e mesmo alguns antecedentes remotos como Mallarmé e cummings),
os anos 1980 foram um dos momentos de maior atividade no campo da poesia visual, o que indica


78
Brown, Maxine; De Fanti, Thomas; McCormick, Bruce. (Novembro de 1987). Visualization in
Scientific Computing. Computer Graphics 21, 6.ACM Siggraph: Nova Iorque. P. VII.


213

um clima cultural mais amplo em que a imagem passa a ter um papel crescente em diferentes
áreas.
Todavia, é importante ressaltar como este salto intersemiótico ainda fica restrito à visão. Em
Visualização de dados e “tangibilização” da informação: uma questão cognitiva, Daniela
Kutschat Hanns destaca esta ênfase que a cultura ocidental coloca no olhar: “[q]uando se fala em
visualização de dados, confirma-se uma herança ocidental filosófica baseada na visão como portal
elevado para o conhecimento”79. Foge ao escopo deste artigo, mas um dos aspectos da explosão
informacional contemporânea é um redirecionamento multissensorial da cultura, com o
surgimento de experiências cada vez mais voltadas a outros sentidos, para além da audição e da
visão.
Deste ponto de vista, o termo tangibilização-de-dados é mais adequado, como o artigo de Hanns
sugere, apesar de não formular de forma explícita. Da mesma forma que os anos 1980
representam, pelo menos nos círculos mais avançados da cultura, uma década de busca por formas
de mediação visual, o início do século 21 representa uma busca pelas possibilidades de mediação
por meio do tato, do olfato, e de outros sentidos que fogem à dimensão aural e visual que
predominou a partir do que McLuhan chamou de galáxia de Gutenberg80. Isto será retomado mais
ao final deste artigo.
No resumo executivo do relatório de Brown, De Fanti e Mc Cormick, a definição de visualização
na computação científica também propõe se tratar de uma ferramenta para “ver o não visto”. O
texto afirma que “como uma ferramenta, a visualização na computação científica promete
melhoras radicais na interface homem/computador e pode tornar acessíveis problemas do tipo
human-in-the-loop”81.
Em computação, o termo human-in-the-loop se aplica a modelos computacionais que demandam
interação humana. Portanto, outro aspecto importante dos processos de visualização é a opção por
formatos que não se fecham em si, como era comum nas mídias analógicas e eletrônicas. É o
início do envolvimento do usuário nas escolhas de fruição, o que o torna um participante mais
ativo dos processos de informação e entretenimento
Esta capacidade de tornar o não visto tangível é outro fator importante dos processos de
visualização, mas denuncia a ênfase no olhar apontada anteriormente. Através de auxílios visuais,
torna-se possível enxergar padrões onde aparentemente só havia desordem (ou, pelo menos,
complexidade além da compreensão). Este aspecto da visualização científica, que se tornou


79
Hanns, Daniela Kutschat. (2014). Visualização de dados e “tangibilização” da informação: uma questão
cognitiva, in: Beiguelman, Giselle; Magalhães, Ana Gonçalves. Futuros Possíveis. Arte, museus e arquivos
digitais. São Paulo: Edusp. P. 267.
80
Cf. Basbaum, Sergio. (2014). Sinestesia e percepção digital, in: Aly, Natalia; Bastos, Marcus. Audiovisual
Experimental. Arqueologias, diálogos, desdobramentos. São Paulo: Pontocom.
81
Brown, Maxine; De Fanti, Thomas; McCormick, Bruce. (Novembro de 1987). Visualization in Scientific
Computing. Computer Graphics 21, 6. ACM Siggraph: Nova Iorque. P. VII.


214

central na visualização de dados, é algo que vai aproximar seus processos do que na época vinha
sendo chamado de arquitetura da informação, como será desenvolvido adiante.
Outro aspecto relevante desta definição aparece alguns parágrafos depois, ainda no resumo
executivo do relatório. O texto afirma que “uma complexidade significativa pode ser mais
compreendida através das técnicas de visualização na computação científica que através das
clássicas”82. Portanto, a visualização na computação científica está ligada a problemas complexos.
A palavra complexidade é importante, nesta definição. No final dos anos 1980, há um crescimento
no interesse pelas teorias do caos, que vão levar ao chamado pensamento complexo. Em 1987, o
livro Caos, de James Gleick, foi finalista do prêmio Pullitzer, e Edgar Morin já desenvolvia seu
pensamentos sobre complexidade. No livro, esta relação entre caos, complexidade e soluções
computacionais está explícito deste a introdução. Gleick afirma:

O caos criou técnicas especiais de uso dos computadores e tipos especiais de


imagens gráficas, fotos que apreendem uma fantástica e delicada estrutura
subjacente à complexidade. A nova ciência gerou sua linguagem própria, um
elegante jargão de fractais e bifurcações, intermitências e periodicidades,
difeomorfismo folded-towel e mapas smooth noodle83.

Em Máquina e Imaginário, Arlindo Machado vai formular a ideia que leva à conclusão deste
artigo, inferida a partir da proposta de expandir a tangibilização de dados feita por Hanns. Ele diz,
de forma poética, no contexto de uma discussão sobre Mandelbrot e a repercussão de suas
imagens tanto no campo da ciência quanto no da arte, que “[a]s imagens da arte são cada vez mais
científicas. As imagens da ciência são cada vez mais artísticas”84.
Os pensamentos formulados em torno do caos e da complexidade levam em conta as relações
sistêmicas entre as coisas, no modo como elas se afetam indiretamente, por relações que não são
possíveis de entender por lógicas de causa e consequencia. Na passagem da década de 1980 para
1990, a quantidade de informação disponível aumenta de forma exponencial. Isto vai tornar cada
vez mais imprescindível o surgimento de práticas de organização desta crescente complexidade.
Os fenômenos cotidianos que, em um mundo menos entrópico, ainda podiam ser entendidos por
lógicas de causa e consequência — em que pese os limites epistemológicos deste tipo de
pensamento, redutor em qualquer contexto —, tornam-se caóticos, no sentido técnico do termo.
Em 1898, é publicado Ansiedade de Informação, que vem a se tornar um marco no pensamento
sobre como transformar informação em compreensão, como diz o subtítulo do livro. Seu autor,
Richard Wurman, vai se firmar como um dos pesquisadores mais importantes em temas ligados


82
Idem. P. VII.
83
Gleick, James. (1989). Caos. A criação de uma nova ciência. 16 ed. Rio de Janeiro: Campus.
84
Machado, Arlindo. (1996). Máquina e Imaginário. São Paulo: Edusp.


215

aos modos de organizar, tornar tangíveis e visualizar dados complexos. Seu vínculo com o design
implica em um foco no olhar semelhante ao da visualização científica. Mas, diferente desta, na
arquitetura da informação há uma perspectiva de democratização de conteúdos inacessíveis.
Logo nas primeiras páginas, o livro introduz uma informação impressionante: uma edição do New
York Times, em um dia da semana, contém “mais informação do que o comum dos mortais
poderia receber durante toda a vida na Inglaterra do século XVII”85. Com o passar dos anos e a
popularização de serviços de disseminação de informação digitais, que tem menos limites físicos
que as mídias analógicas e eletrônicas, estes números aumentaram exponencialmente, atingindo
valores in-críveis, no sentido flusseriano: em que não se pode acreditar. A cada minuto, 300 horas
de vídeo são publicados no YouTube; 77.160 pessoas assinam o Netflix; 4.166.667 pessoas curtem
publicações no Facebook; 110.040 pessoas fazem ligações de Skype. Certamente, quando este
artigo for lido, esses números já terão aumentado de forma significativa.
Esta quantidade vertiginosa de informações escapa do que podemos conceber sem ajuda de
métodos de compreensão de dados intangíveis. Mesmo informações mais concretas são difíceis
de serem aprendidas, quando escapam do escopo do que as pessoas podem conceber sem auxílio.
Por exemplo, é muito difícil imaginar que espaço 500 milhões litros de água ocupam. A
visualização-de-dados, e linguagens relacionadas, como a infografia, representam estas
informações com recursos que as pessoas podem entender de forma mais palpável — por
exemplo, explicando que 500 milhões de litros de água enchem 20 piscinas olímpicas, e
representando visualmente esta relação.

Um exemplo da aplicação desta lógica é o gráfico de Nigel Holmes em que ele mostra que,
se a quantidade de pasta de dentes consumida em um dia nos Estados Unidos formasse uma
linha, seria suficiente para ligar Nova Iorque a Los Angeles. Com dados complexos, este tipo
de representação tangível é um desafio ainda maior. Um exemplo é a visualização dos
padrões de vôo no espaço aéreo dos Estados Unidos, feita por Aron Koblin.

Assim como a visualização na computação científica, a arquitetura da informação busca tornar o


complexo compreensível. Em A brief history of information architecture, de Andrea Resmini e


85
Wurman, Richard. Ansiedade de Informação. São Paulo: Cultura Editores Associados, 1991.


216

Lucas Rosati, a arquitetura da informação é definida como “uma prática profissional e um campo
de estudos focado em resolver os problemas básicos de acesso, e uso, das vastas quantidades de
informação disponíveis hoje”86. Esta definição adota um entendimento mais amplo, mas também
mais voltado para as práticas, do que o conceito de arquitetura da informação que foi se consagrar,
quando Richard Wurman publica o livro homônimo.
Ao afirmar que, normalmente, se ouve falar de “arquitetura da informação em conexão com o
design de sites na web, tanto grandes quanto pequenos, e quando wireframes, rótulos e
taxonomias são discutidos”, e ressaltar que hoje em dia a arquitetura da informação é
“principalmente uma atividade de produção, um artesanato /…/ e /…/ não uma ciência mas, algo
muito parecido com o design industrial, uma arte aplicada”87, o texto reduz o escopo do termo.
Não só a dimensão exclusivamente visual, mas o caráter utilitário, empobrecem as possibilidades
do campo. Na prática, a arquitetura da informação tem ido muito além desta definição.
Todavia, é um texto importante pelo resgate histórico que apresenta, desmitificando um pouco o
papel de Wurman. Não que sua importância seja reconhecida, mas ela é colocada em perspectiva
em relação a um saber coletivo que vinha se constituindo no ambiente do pensamento
computacional. O texto se refere ao aparecimento do termo em um artigo de pesquisa da IBM,
escrito em 1964, de título Arquitetura do Sistema IBM/360, em que o termo arquitetura está
definido como “a estrutura conceitual e o comportamento funcional, distinguindo a organização
dos fluxos de dados e controles, projeto lógico, e implementação física”88.
Doze anos depois, numa palestra na conferência de 1976 no American Institute of Architecture,
Richard Wurman vai usar o termo arquitetura da informação no contexto que se tornará notório.
Quase vinte anos depois, ele vai consagrar o conceito num livro de mesmo título. Já em
Ansiedade de Informação — portanto num ponto intermediário entre as duas aparições do
conceito de arquitetura da informação em seu trajeto —, além de identificar o problema do
excesso de informação que leva à necessidade das práticas de visualização na computação
científica e ao termo arquitetura da informação, Wurman propõe soluções. Logo no índice, que
também é uma espécie de mapa de navegação, ele afirma:
Como os livros são uma das principais causas de ansiedade da informação,
eu gostaria de garantir que você não se sentirá ansioso com a leitura deste
exemplar. Por isso, fugi do formato convencional em aspectos que, a meu ver,
irão reduzir o tipo de ansiedade normalmente provocada pelos livros. Se sua
preocupação é alguém citar este livro sem que você tenha completado a
leitura, dê uma olhada no índice. Ele ocupa 21 páginas e foi elaborado para
parecer um plano de aula. Nele você encontrará tudo de que precisa, não
apenas para um bom resumo, mas também para ajuda-lo a traçar seu próprio
roteiro de leitura.


86
Resmini, Andrea; Rosati, Lucas. (Outono de 2011). A brief history of information architecture. Journal of
Information Architecture 3, 2. P. 33.
87
Idem. P. 33.
88
Idem. P. 34.


217

Ao longo do livro, a organização visual que estabelece uma hierarquia clara entre as partes do
texto e se vale sempre que possível de imagens didáticas, resultam em uma lição sobre os modos
como a edição visual pode facilitar a leitura de um livro. Esta postura de Wurman decorre da
compreensão de que informação e conhecimento são duas coisas distintas. Este ponto-de-vista,
que pode ser relacionado com o artigo O narrador, de Walter Benjamin, aparece em Ansiedade
de Informação em uma citação a Theodore Roszak, em que este afirma que:

Informação não é conhecimento. Você pode produzir dados primários em


massa e incríveis quantidades de fatos e números. Mas não pode fazer
produção em massa de conhecimento, que é criado por mentes individuais,
partindo de experiências individuais, separando o significativo do
irrelevante, realizando julgamentos de valor89.

Quando, em 1986, Richard Wurman lança o livro que vai associar seu nome ao conceito de
arquitetura da informação em círculos mais amplos, ele consegue sinterizar os pensamentos sobre
formas de ver o não visto e tornar o complexo compreensível numa frase concisa e elegante: para
ele, arquitetura da informação é “tornar o complexo claro”. Não é um processo sem desafios. Ele
remete a certos processos reiterativos, que são recorrentes nas leituras de seus livros.
Em Ansiedade da Informação, Wurman sustenta a necessidade, na época em que o livro foi
escrito, de as pessoas aprenderem a aprender90. De seu ponto-de-vista, diante da quantidade
desproporcional de dados e conhecimento disponível, não faz mais sentido o aprendizado como
um processo de transferência de certos saberes consolidados. É preciso preparar as pessoas para
a leitura crítica e a produção de conhecimento a partir do desconhecido. Isto se tornou ainda mais
necessário com o passar dos anos.
Na introdução do livro Information Architects, Peter Bradford recorre a uma construção
semelhante para formular o principal desafio da arquitetura de informação: como explicar a
explicação?91 Não se trata de um problema novo, pois se refere ao desafio de representar conceitos
abstratos com imagens, algo que o cineasta Sergei Eisentein considera possível através do que
chama de montagem intelectual.
Eisenstein chegou mesmo a iniciar o roteiro de um filme a partir do livro O capital, de Karl Marx,
para explorar ao máximo esta possibilidade. Seu objetivo não era um filme com uma voz narrando
os conceitos do filósofo. Ele pretendia transmitir ideias como a de mais valia pela articulação
entre imagens, de modo que dois quadros articulados por fricção dialética resultariam num
conceito que não está expresso em um ou outro separados, mas resulta da junção qualitativa de
ambos. Apesar de nunca ter sido realizada, a obra antecipa experiências que vieram acontecer
mais adiante, no circuito do filme ensaio.


89
Wurman, Richard. (1991). Ansiedade de Informação. São Paulo: Cultura Editores Associados. P. 36.
90
Idem.
91
Bradford, Peter. Foreword, in: Wurman, Richard. (1997). Information Architects. New York: Graphis.


218

É importante considerar que a ênfase na visão, citada anteriormente, resulta em limites que as
pesquisas na área deveriam levar mais em conta. Hanns lembra, através de Papanek, que a análise
de antigos mapas táteis tridimensionais dos antigos Inuit permitem concluir que seu “senso de
orientação afiado /.../ devia-se à necessidade de sobreviver (caçar e pescar) e à experiência de
viver em um ambiente espacial aural não linear, em uma sociedade não formatada pelo
pensamento linear”92.
O ambiente digital também pode ser entendido como (pós-)aural e não linear. Este é um dos
argumentos de textos como Sinestesia e Percepção Digital, artigo de Sergio Basbaum citado
anteriormente, e Sonic Time Machines, livro de Wolfgang Ernst. Em seu artigo, Basbaum propõe
que as experiências sinestésicas na arte antecipam o espaço acústico proposto por McLuhan,
argumentando na direção de uma passagem do modernismo à cultura digital cuja principal
implicação é um retorno ao multissensorial.
A cultura digital imprimiu notável aceleração ao mundo. Estes ambientes que
chamamos imersivos são apenas espaços distintos dentro do ambiente maior
de uma cultura planetária em que estamos mais e mais imersos no instante: a
noção de historicidade dissolve-se na circularidade do instante sinestésico;
as experiências do tempo narrativo e do espaço contemplativo visual se
dissolvem em sensação. Estamos, novamente, num mundo mágico, onde
emergem todo o tipo de metáforas e discursos espirituais e míticos de nossa
experiência93.

Em Sonic Time Machines, Ernst propõe o conceito de sonicidade para dar conta de um modo de
pensar contemporâneo marcado pelas microtempor(e)alidades do digital. Ele também se refere ao
espaço acústico de McLuhan, e propõe um vínculo deste com a modernidade que o digital supera.
Seu pensamento propõe um entendimento sônico — ao invés de musical ou aural — das
operações computacionais que ele considera se propagarem em ondas que pulsam e oscilam como
ritmos num espaço-tempo. Daí a necessidade do neologismo, que se diferencia dos estudos
sonoros buscando construir uma epistemologia de um mundo que pulsa em frequências
calculadas.
Hoje, o que McLuhan entendia como um espaço acústico — sincronia
induzida por eletricidade — é substituído na cultura da comunicação via
internet por temporalidades radicalmente assíncronas, não-lineares,
discretas. Ao invés de uma noosfera homogênea (no sentido de Teilhard de
Chardin), existem ritmos descontínuos; batidas ao invés de ondas. O fluxo
familiar do tempo está sendo substituído pelo tempo calculado,
cronometrado, matemático94


92
Hanns, Daniela Kutschat. (2014). Visualização de dados e “tangibilização” da informação: uma questão
cognitiva, in: Beiguelman, Giselle; Magalhães, Ana Gonçalves. Futuros Possíveis. Arte, museus e arquivos
digitais. São Paulo: Edusp. P. 267.
93
Basbaum, Sergio. (2014). Sinestesia e percepção digital, in: Aly, Natalia; Bastos, Marcus. Audiovisual
Experimental. Arqueologias, diálogos, desdobramentos. São Paulo: Pontocom. P. 129.
94
Ernst, Wolfgang. Sonic Time Machines. Explicit Sound, Sirenic Voices and Implicit Sonicity. Amsterdam:
Amsterdam University Press, 2016. P. 33-4.


219

Isto implica em um retorno aos períodos que antecederam a modernidade, naquilo que, no livro
A escrita, Vilém Flusser denominou de pensamento mágico que antecedeu a história. Da mesma
forma que no pensamento de Basbaum e Ernst, Flusser propõe um contemporâneo que resgata e
modifica o que veio antes de modernidade, o que ele vai chamar de pós-história. É nisto que eles
se diferenciam de McLuhan, de onde partem para seguir adiante em sintonia com suas épocas.
Não se trata, portanto, de uma superação, mas de um gesto mcluhaniano em relação ao próprio
McLuhan, que morreu sem ver o desdobramento dos processos que intuiu.
Combinado ao crescente papel do usuário na fruição da informação que já foi mencionado
anteriormente95, esta multissensorialidade faz do contemporâneo convertido em números algo
mais próximo da cultura Inuit, na forma que Hanns a descreve brevemente em seu artigo, que do
século 20.
Em Visualização de dados e “tangibilização” da informação, Hanns afirma que o “com o digital,
os modelos de visualização e de tangibilização de informações parecem se aproximar de
processos cognitivos que envolvem o raciocínio, a memória, a experiência, o aprendizado e os
afetos”, concluindo que o “desafio para os desenvolvedores de sistemas de tangibilização e de
modelos de visualização é, acima de tudo, cognitivo, visto que é preciso abrir possibilidades
conectivas, viabilizar o dar sentido a”96. Trata-se, portanto, menos de uma ruptura com a visão
que de uma complexificação em que olhos e ouvidos são aumentados por outros sentidos,
tornando a experiência da percepção mais rica.
Este processo acontece de forma complexa, como Ernst argumenta no já citado Sonic Time
Machines. O que ele chama de sonicidade refere-se a uma operação multisenssória, como os
exemplos que cita do sistema Nipkow, do Phonovision (Baird) e do Optophon (Hausmann)
tornam explícito. Apesar do nome que faz parecer um processo aural, trata-se de uma superação
do verbal por meio de processos computacionais, em que o cálculo das coisas muda sua natureza.
Este entendimento multisenssório daquilo que por vezes tem sido chamado de pós-digital aparece
num texto de Julio Plaza, de 1983:
Escrita e imagem absorvem-se e iconizam, criando ritmos espaço-temporais
silenciosos e próprios, ao mesmo tempo em que, pela repetição de padrão
ponto-luz, cria o efeito sinestésico do tatear, andar e apalpar: o espaço e o
tempo como que escorregando entre os dedos. O videotexto é visual-
ideográfico, basicamente tátil97.


95
Para uma discussão mais longa sobre o tema, apoiada nos artigos Do ponto-de-vista à dimensionalidade, de Martin
Grossman, e Strategies of Interactivity, de Dieter, ver: Bastos, Marcus; Policarpo, Clayton. O artivismo e as novas
subjetividades políticas na arte contemporânea. In: Santaella, Lucia (Org.). (2019). Desafios Humanos no
Contemporâneo. São Paulo: Estação das Letras e Cores. P. 227-244.
96
Hanns, Daniela Kutschat. (2014). Visualização de dados e “tangibilização” da informação: uma questão cognitiva,
in: Beiguelman, Giselle; Magalhães, Ana Gonçalves. Futuros Possíveis. Arte, museus e arquivos digitais. São Paulo:
Edusp. P. 275.
97
Plaza, Julio. Arte e Videotexto, in: 17ª Bienal de São Paulo — Catálogo. São Paulo: 1983. P. 107.


220

Pré-modernidade e oriente (na figura do ideograma) como avessos do mundo forjado pelo olhar,
através da escrita e da perspectiva. O artigo de Hanns, através dos exemplos que analisa, dá pistas
sobre os rumos que podem levar a visualização-de-dados a territórios férteis e convertê-las em
processos multissensoriais de tangibilização-de-dados, que promovam conquistas cognitivas
impensadas na cultura ocidental moderna, baseada principalmente no olhar. A arte é o ambiente
em que pele e cheiro tem se tornado parte dos repertórios explorados de forma cada vez mais
intensa. A arte que lida com dados é a forma expressiva que tem enfrentado de modo mais
produtivo os dilemas de como tornar claros ou tangíveis coleções enormes de dados. Mas isto já
é assunto para outro artigo.

Referências
Basbaum, Sergio. (2014). Sinestesia e percepção digital, in: Aly, Natalia; Bastos, Marcus.
Audiovisual Experimental. Arqueologias, diálogos, desdobramentos. São Paulo: Pontocom.
Bastos, Marcus; Policarpo, Clayton. (2019). O artivismo e as novas subjetividades políticas na
arte contemporânea. In: Santaella, Lucia. (Org.). Desafios Humanos no Contemporâneo. São
Paulo: Estação das Letras e Cores.
Brown, Maxine; De Fanti, Thomas; McCormick, Bruce. (Novembro de 1987). Visualization in
Scientific Computing. Computer Graphics 21, 6, ACM Siggraph: Nova Iorque.
Ernst, Wolfgang. Sonic Time Machines. Explicit Sound, Sirenic Voices and Implicit Sonicity.
Amsterdam: Amsterdam University Press, 2016.
Hanns, Daniela Kutschat. (2014). Visualização de dados e “tangibilização” da informação:
uma questão cognitiva, in: Beiguelman, Giselle; Magalhães, Ana Gonçalves. Futuros
Possíveis. Arte, museus e arquivos digitais. São Paulo: Edusp.
Plaza, Julio. Arte e Videotexto, in: 17ª Bienal de São Paulo — Catálogo. São Paulo: 1983.
Resmini, Andrea; Rosati, Lucas. (Outono de 2014). A brief history of information architecture.
Journal of Information Architecture 3, 2. Disponível em
http://journalofia.org/volume3/issue2/03-resmini/. Acesso em 29 de Outubro de 2020.
Wurman, Richard. (1991). Ansiedade de Informação. São Paulo: Cultura Editores.
______________. (1997). Information Architects. New York: Graphis.


221

Design e cultura maker: O pensar e o fazer criativo como abordagem na aprendizagem


ativa

Design and maker culture: creative thinking and doing as an approach to active learning

Maria Paula Marcon98


Ana Mae Barbosa99
Suzete Venturelli100
Resumo
Este artigo tem enfoque na atividade pedagógica do ensino superior que adota a Project Based
Learning - PBL - como abordagem curricular. O texto apresenta possibilidades em que prática
projetual do Design e os conceitos da cultura maker podem atuar neste contexto como suporte
para a aprendizagem ativa, mobilizando educadores e aprendizes de forma criativa dentro e fora
da sala de aula. A pesquisa de caráter exploratório teve como base estudos teóricos sobre a
temática e levantamento da atividade discente no laboratório maker do Centro Universitário São
Judas Tadeu em Santos no primeiro semestre de 2019. A amostra quantitativa teve como fonte a
base de dados do laboratório e a qualitativa por intermédio de observação in loco que permitiu
identificar um padrão projetual desenvolvido pelos discentes bem como levantar considerações
sobre os impactos positivos da abordagem aplicada na jornada educacional.

Palavras-chave: Design, Cultura Maker, Metodologia Ativa.

Abstract
This article focuses on the pedagogical activity of higher education that adopts Project Based
Learning - PBL - as a curricular approach. The text presents possibilities in which the design
practice of Design and the concepts of the maker culture can act in this context as a support for
active learning, mobilizing educators and apprentices in a creative way inside and outside the
classroom. The exploratory research was based on theoretical studies on the theme and survey
of the student activity of the assembling laboratory of the Centro Universitário São Judas Tadeu
de Santos in the first semester of 2019. The quantitative sample was based on the laboratory
database and the qualitative through -local observation that allowed to identify a design pattern
developed by the students, as well as to raise considerations about the positive impacts of the
applied approach in the educational path.

Keywords: Design, Maker Culture, Active Methodology

O advento tecnológico segundo Lilian Bacich e José Mohan (2018) e Rui Fava (2014) tem sido
um dos principais moldadores de comportamento do aprendiz contemporâneo, que consome e
compartilha a informação de maneira cada vez mais visual e fragmentada, por intermédio das

98
Mestranda em Design pela Universidade Anhembi Morumbi. Bolsista PPGDesign UAM. Graduada em Design
pelo Centro Universitário São Judas Tadeu – Campus UNIMONTE. MBA em Gestão estratégica de pessoas pela
mesma instituição. Atua como gestora de projetos em empresa da indústria náutica, e docente em projeto de
contraturno escolar gerenciado pelo Instituto Ânima.
99
Livre-Docente pela ECA-USP. Pós-Doutorado pela Columbia University e pela University of Central England.
Doutora em Educação Humanística pela Boston University. Mestre em Arte Educação pela Southern Connecticut
State College. Especialista em Educação para Adultos pela Secretary of Education of New Haven. Docente do
PPGDesign e dos cursos de graduação da Escola de Artes, Arquitetura, Design e Moda da Universidade Anhembi
Morumbi.
100
Pós-Doutorado na Universidade de São Paulo, Escola de Comunicação e Artes. Doutorado em Artes e Ciências da
Arte, na Universidade Sorbonne Paris I. Atualmente é Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq) nível 1B. Professora titular do PPGDesign e dos cursos de graduação da Escola de Artes,
Arquitetura, Design e Moda da Universidade Anhembi Morumbi.


222

mais diversas interfaces, tanto virtuais quanto materiais, o que faz com que a oferta do conteúdo
apenas no formato expositivo atue de maneira ineficaz para uma parcela significativa dos
estudantes segundo Portugal e Couto (2014) fenômeno que coloca as instituições de ensino frente
a necessidade de implementar novas abordagens para a oferta dos componentes curriculares que
são estruturados por um conjunto de informações e práticas que atuam como veículo do
conhecimento que se espera ser acessado pelo aprendiz a cada disciplina ao longo da jornada
pedagógica.
Os métodos de ensino foram se transformando por conta do perfil do aprendiz contemporâneo,
que exige das escolas uma nova postura, o que vem fazendo com que as instituições sigam
evoluindo para um contexto mais atual conforme afirma Fava (2014), inserindo a abordagem de
Metodologias Ativas como a PBL - aprendizagem baseada em projetos - que direciona o aprendiz
a atuar de maneira mais comprometida na construção do seu conhecimento, formato que atribui
ao professor um papel de mentor do conhecimento e estimula o aprendiz ao protagonismo no
processo de aprendizagem por intermédio de práticas com foco de resolução de problemas de
forma criativa em situações reais. (BACICH e MORAN, 2018), (BENDER, 2014).
Para atender as propostas metodológicas na qual se insere a aprendizagem ativa se fez necessário
a elaboração de novos ambientes de aprendizagem, o que é evidenciado por (DINHAM. 1989,
p.80) quando afirma que “a função de ensinar é organizar, projetar e implementar um contexto
em que a aprendizagem possa florescer”, fatores que exige que o espaço onde a oferta do conteúdo
acontece seja planejado de forma que se estimule o pensar e que permita o fazer de forma criativa,
fenômenos inerentes ao processo de aprendizagem ativa.
Em algumas instituições de nível superior esse contexto vem sendo desenvolvido e implementado
por intermédio de capacitação docente e salas de aula com estruturas diferenciadas que oferecem
suporte tecnológico para as atividades bem como mobiliário que permite diferentes configurações
de acordo com a atividade desenvolvida, abandonando o padrão das carteiras enfileiradas.
FIGURA 01 - Sala e laboratório para Aprendizagem Ativa São Judas - Unimonte


223

Laboratórios de atividade “mão na massa”, os chamados makerspaces vem sendo implantados


nestas instituições como suporte para as atividades práticas, são espaços abertos onde discentes,
docentes, técnicos e “fazedores”4 locais se encontram para troca de saberes e criação de projetos
reais que são pessoalmente significativos. Os espaços contam com suportes que partem desde
simples ferramentas de uso manual como um martelo até equipamentos com tecnologia de ponta
para fabricação digital como impressoras 3D, fresadoras CNC e máquinas de corte à laser.
O contexto de aprendizagem criado por intermédio da inserção das metodologias ativas,
sobretudo a PBL, e a elaboração de novos espaços de aprendizagem como os makerspaces vem
fazendo emergir a adoção de práticas usuais em processos de design e a prática da cultura maker
pelos aprendizes. Considerando esse fenômeno, o objetivo desse estudo foi investigar sob a ótica
metodológica como ele acontece a fim de identificar práticas projetuais do design neste processo,
a contribuição da cultura maker, e levantar considerações sobre a relevância do design na
abordagem do método PBL no ensino superior. Para o estudo foi realizada pesquisa bibliográfica
sobre a temática apresentada e um levantamento quantitativo e qualitativo da atividade discente
no laboratório maker do Centro Universitário São Judas Tadeu em Santos - SP.
A prática projetual do Design e o pensar criativo
A aprendizagem baseada em projetos - PBL - tem como característica estimular a autonomia
discente por propor uma abordagem que incentiva a participação ativa dele, fazendo com que saia
do papel de apenas receptor da informação e evolua para transformador da informação, se
tornando protagonista durante o processo de aprendizagem. O protagonismo acontece quando o
aprendiz atua criação de projetos trabalhando em pares, fazendo com que o grupo se envolva de
forma conjunta na solução de um problema do mundo real ou na resposta a uma pergunta
complexa, desta forma, faz com que demonstrem seus conhecimentos e o grau de aprendizado ao
criar uma proposta aderente como solução para o desafio em questão. Na PBL os professores dão
vida ao aprendizado, atuando como mediadores do conhecimento, facilitando o diálogo e a
interação entre os pares, que conforme afirma William Glasser (2001) é um fator que agrega valor
e amplia a aprendizagem. O papel do docente nas práticas ativas segundo Glasser, proporcionam
um ambiente de aprendizagem de maior qualidade por permitir ao aluno o reconhecimento da


224

relevância do estudo que lhe é proposto, por intermédio do apoio durante a jornada bem como
pela orientação nos caminhos para uma autoavaliação do desempenho. Essa postura docente
molda nova feição de relação entre discentes e docente, o que transforma a rotina educacional em
um processo mais democrático do ponto de vista do aprendiz, o que tende a despertar maior
interesse do mesmo em toda a jornada pedagógica.
Associar a prática de PBL com o Design faz sentido ao passo que em ambas as atividades o
projetar se torna fator implícito a ação, e esse processo ocorre com foco na resolução de uma
questão que envolva de alguma forma a transformação da condição humana. O termo design se
caracteriza por seus múltiplos significados, Vilém Flusser (2007) afirma que algumas definições
para a palavra que tanto como substantivo ou como verbo tem relação explícita com a atividade
de projetar, e Bruno Munari (2008) complementa relacionando o termo com a resolução dos
componentes de um problema de forma criativa, o que permite fazer uma relação direta com a
abordagem orientada a desafios da prática da PBL, algo que está claramente explicitado nas
palavras de Bonsiepe:
Já contamos com exemplos no campo do ensino chamado “aprendizado baseado em projetos” ou
“ensinamento orientado por problemas”. E isso, inclusive, se aplica a disciplinas como história e
economia, que não se consideram como disciplinas projetuais. Os promissores resultados
experimentais alcançados sugerem uma reinterpretação do papel do professor e do aluno.
Também permitem especular sobre a possibilidade de essa abordagem se generalizar, afetando o
futuro do ensino de todas as carreiras universitárias. Não me parece improvável a possibilidade
de que, no futuro, toda a educação universitária seja orientada para o projeto, no sentido de
solucionar problemas, (BONSIEPE, 2012, pág. 20 e 21).
Um dos pontos que caracteriza a atividade projetual do design é que esta segue orientada por
métodos, e um dos métodos que tem estado presente nas discussões na área da educação é o design
thinking, modelo mental e metodológico popularizado por Tim Brown. A elaboração de projetos
orientados pela abordagem do design thinking promove um modo de pensar e fazer que tende a
enriquecer o processo de aprendizagem ativa, pois segundo Tim Brown (2010), o método se apoia
na capacidade do indivíduo em ser criativo e propor soluções para resolução de desafios
complexos em diversas esferas da atividade humana, o que certamente pode incluir o contexto de
vivência do aluno para que a aprendizagem seja significativa.
O processo evolutivo que transcorre entre o desafio apresentado e a proposta de solução, provoca
no aprendiz uma diversidade de interpretações e articulações das informações que lhe foram
apresentadas até que este possa chegar ao aprendizado, propiciando um processo cognoscitivo
que ocorre por intermédio da interação de fatores que transitam entre a captação da informação e
o pensar e fazer projetual em busca de uma proposta de solução para o problema em questão.
Sobre o termo informação, é importante pontuar que no contexto do design de informação,
Bonsiepe (2011) explica que é preciso exteriorizar as informações (torná-las visíveis) para
ampliar o conhecimento. Considerando que o conteúdo das disciplinas é a informação e o produto
fruto da atividade projetual do aluno a torna visível, podemos considerar que esse fenômeno pode
ser observado nos resultados atingidos com a aprendizagem ativa, ao passo que a ação do aprendiz
em experimentar criar soluções para um desafio, permite que o mesmo atravesse um processo de
materialização das informações que foram retidas durante uma leitura ou acessadas durante a


225

explanação em sala de aula. Ao produzir artefatos tangíveis o aprendiz promove uma relação entre
as informações recebidas e o problema em questão, e ao promover a interação entre a informação
captada e sua aplicação no contexto real, a proposta que surge desse processo resulta no que
podemos relacionar como uma visualização da informação, que segundo Bonsiepe (2011, pág.
86) “pode ser caracterizada como um procedimento para tornar processos ocultos ou pouco
visíveis em processos bem visíveis” transformando as “ informações codificadas discursivamente
em informações visuais”. O processo que culmina em criar soluções para problemas reais tende
a facilitar o entendimento do aprendiz e o permite comunicar o seu aprendizado de maneira
consciente, ação que segundo Glasser (2001) amplia a compreensão e o aproveitamento do
conteúdo que lhe foi apresentado.
A cultura maker e o fazer criativo
O movimento maker pode ser considerado um desdobramento tecnológico da a cultura do faça
você mesmo (DIY - Do It Yourself), que parte do pressuposto de que as pessoas podem
reaproveitar produtos e materiais, construindo, consertando ou ressignificando artefatos com suas
próprias habilidades, provocando uma nova maneira de pensar e fazer como observa Fábio
Silveira (2016). O movimento maker avança do conceito dos antigos laboratórios de garagem que
trabalhavam idéias isoladas e de pouco potencial por possuir meios escassos de produção, para
um contexto mais atual, impulsionado pela revolução tecnológica, fenômeno que conforme
afirma Chris Anderson (2012) contribuiu para maior autonomia aos fazedores, considerando que
os novos aparatos tecnológicos e os meios de comunicação, segundo Gavassa, et all (2016) vem
auxiliando na aceleração do processo de projetação, prototipagem, experimentação,
compartilhamento e na produção, por intermédio dos e veículos de comunicação on line e
equipamentos de fabricação digital.
A cultura maker tem como premissa a experimentação, a criatividade e o compartilhamento, é um
fazer criativo de forma colaborativa. O movimento ganhou força ao passo que a indústria se
tornou digital, e os processos de concepção de produtos ganharam novo formato. Conforme
afirma Anderson (2012), o projeto de um artefato a partir da nova revolução industrial começa a
ser criado na tela de um computador e pode ser compartilhado como arquivos digitais para serem
avaliados, testados e aprimorados por pessoas em várias partes do globo. Partindo dessa nova
lógica industrial, os fazedores que protagonizam a cultura maker fazem uso de ferramentas
digitais na elaboração de seus projetos; o compartilhamento visando a colaboração no processo e
a padronização dos tipos de arquivos dos projetos para facilitar o compartilhamento. Essas
práticas serviram como base para a elaboração do Manifesto do Movimento Maker, publicado
por Mark Hatch, CEO e cofundador da TechShop em 2014.
TABELA 01 - Manifesto do movimento maker

Fazer é a maior característica dos seres humanos. Nós temos que fazer, criar, e
Faça expressar nós mesmos, para nos sentirmos completos e felizes. Este sentimento
é muito forte quando fazemos coisas materiais.


226

Compartilhando o que você faz e o que você aprendeu sobre o que fez é a forma
Compartilhe pela qual esta satisfação de fazer é percebida. Você não pode fazer e não
compartilhar. Fica sem graça e sem sentido!

Há poucas coisas mais desprendidas e prazerosas do que presentear com coisas


que você mesmo fez! O ato de fazer insere um pouco de você no objeto.
Presenteie
Presentear alguém é como dar um pedaço do seu verdadeiro eu. Estes presentes
em geral se tornam os bens mais estimados que possuem.

Você deve aprender para fazer o melhor possível. Você deve sempre buscar
aprender mais sobre os seus feitos. Mesmo que você já seja um especialista ou
Aprenda
um artesão experiente você ainda precisará aprender, querer aprender, e forçar-
se a

buscar novas técnicas, materiais e processos.Construir um caminho de


aprendizagem ao longo da sua vida garante uma existência produtiva, e feliz.

Você deve ter acesso às ferramentas adequadas para os seus projetos. Investir
Equipe-se e desenvolver acesso local a todas as ferramentas que você precisa para fazer
o que você desejar fazer.

Divirta-se com o que você estiver fazendo, e você vai se surpreender, e se


Divirta-se
orgulhar com o que vai descobrir.

Junte-se ao Movimento Maker e espalhe para todos a sua volta, o prazer de


Participe fazer. Participe de seminários, festas, eventos, feiras, exposições, aulas e
encontros com outros makers e participe de grupos de discussão.

Este é um movimento que exige apoio emocional, intelectual, financeiro,


Apoie político e institucional. A melhor esperança de mudar o mundo somos nós, e
nós somos os únicos responsáveis por fazer um futuro melhor .

Aceite as mudanças que naturalmente vão ocorrer enquanto você for


avançando nesta missão. Uma vez que fazer é a principal característica dos
Mude
humanos, você começará a estar cada vez mais parecido e conectado às coisas
que você faz.

Permita-se Seja tolerante com os seus erros, aprenda com eles, recomece! Atinja o grau de
errar perfeição que você quiser, mas não deixe de fazer e refazer por medo de errar.

Fonte: Texto retirado e traduzido do livro The Maker Movement Manifesto: Rules for Innovation
in the New World of Crafters, Hackers, and Tinkerers. Echos, 2015.


227

A cultura maker transita por diversas áreas que envolve o fazer criativo, caminha desde o
artesanato, marcenaria até a eletrônica avançada, e vem mudando o modo de se fazer artefatos,
ganhando cada vez mais o perfil de criação em rede, que segundo Anderson (2012) subsidia um
círculo virtuoso que agrega maior valor às criações.
Por conta do perfil tecnológico e o caráter
colaborativo da cultura maker, o movimento vem ganhando espaço nas instituições de ensino
superior, um bom exemplo é o Lifelong Kindergarten do MIT, que segundo Mitchel Resnick,
2020 é um espaço para desenvolver as bases do aprender criando como crianças em um jardim de
infância. Espaços como este segundo Resnick, 2020 e Ladislau, 2020 auxilia na criação de
ambientes de aprendizagem mais envolventes para o aluno, e produtivos no que diz respeito às
demandas dos objetivos de aprendizagem propostos pelas instituições. Os aprendizes são
estimulados a se apropriar dos espaços makers existentes dentro e fora das instituições de ensino
para realizar projetos, que são frutos dos desafios propostos dentro da sala de aula, a ideia começa
a ser pensada durante a aula e ganha forma nos espaços maker, que possuem equipamentos que
facilitam e prototipação e experimentação das ideias, criando um ciclo de aprendizagem no qual
o aluno é protagonista durante o processo, contando com o suporte do professor, dos colegas, de
técnicos dos laboratórios makers, e de outros fazedores que com frequência marcam presença,
enriquecendo a experiência e o repertório desses espaços.

Design e cultura maker como prática de aprendizagem ativa no Ensino Superior

A fim de ilustrar a aplicabilidade da abordagem do design e da cultura maker na criação de um


contexto de aprendizagem ativa, apresento um levantamento realizado no Ânima Lab do Centro
Universitário São Judas Tadeu - campus Unimonte, situado na cidade de Santos - SP. A amostra
coletada é referente ao período de atividade no primeiro semestre de 2019.
O Ânima Lab é um conjunto de laboratórios que fazem parte do Instituto Ânima, uma organização
da sociedade civil sem fins lucrativos, com atividade visando o fomento à pesquisa e inovação
ligados à Educação. As unidades do Ânima Lab fazem parte da rede Fab Lab Brasil5 e estão
instalados em parceria com universidades privadas em vários pontos do país, sendo utilizados
como uma ponte entre a universidade e a sociedade civil por intermédio da realização de projetos
socioculturais. O Ânima Lab Santos iniciou seu funcionamento em Novembro de 2015, apenas
como um makerspace, o primeiro da rede laboratórios. Em outubro de 2016 seus espaços e
recursos foram ampliados, expandindo para o formato de laboratório de inovação em educação,
visando contribuir como suporte na realização de projetos interdisciplinares de forma prática e
atuar como vetor na aproximação entre os educandos e situações problema reais da sociedade ao
entorno da universidade, contribuindo para um contexto onde a prática da PBL acontece de fato.
Em setembro de 2017 houve mais uma ampliação do espaço, integrando salas para a prática de
metodologias ativa, laboratório de informática e espaço de coworking, formatando um padrão
para potencializar o atendimento no âmbito que parte da pesquisa e inovação ao
empreendedorismo universitário, permitindo a integração com outros laboratórios das IES
parceiras, formando a rede Ânima Lab.
A equipe do espaço é composta por um coordenador, dois técnicos e dois estagiários: O


228

coordenador é responsável pelo planejamento pedagógico do espaço, pela gestão da equipe e dos
projetos, além do relacionamento entre o espaço e a sociedade civil; Os técnicos são profissionais
experientes com as práticas da cultura maker, estes realizam o atendimento aos alunos e a
comunidade; Os estagiários prestam suporte no atendimento, além de serem desafiados a realizar
um projeto pessoal em cada ciclo de estágio, prática que visa para enriquecer a experiência de
aprendizagem. Geralmente são estudantes dos cursos de Arquitetura, Design, Engenharias e
Pedagogia.
No ano de 2019 foram realizados 1.168 atendimentos para estudantes dos mais variados cursos,
incluindo atendimento para executores de projetos de extensão universitária, que ocupou 24% da
atividade do makerspace. Ao fim do ano letivo foram registrados na base de dados do laboratório
um total de 278 projetos realizados por grupos de alunos. Os cursos que mais utilizaram os
recursos dos espaços makers para a realização de projetos foram Arquitetura, Design,
Engenharias, Medicina Veterinária, Publicidade e Enfermagem.
GRÁFICO 01 - Projetos registrados por curso no Ânima Lab Santos - 2019

Fonte: Relatório semestral Ânima Lab - Santos, 2019.

O levantamento quantitativo também permitiu identificar o perfil dos discentes em relação aos
conhecimentos e habilidades inerentes a projetação e confecção de produtos com recursos
disponíveis em makerspaces. Uma parcela significativa (70% dos discentes) declaram possuir
habilidades com ferramentas manuais como martelo, arco de serra, chaves de fenda, paquímetro
entre outros, já a parcela com habilidades diminui quando se trata de ferramentas elétricas como
lixadeira orbital, furadeira, serra elétrica etc (40%). Outro domínio importante para um bom
aproveitamento dos recursos de um makerspace é a habilidade com softwares de desenho vetorial
e modelagem digital, necessárias para preparar arquivos que são utilizados para a fabricação
digital, 47% dos discentes declaram possuir alguma destas habilidades.


229

GRÁFICO 02 - Conhecimento e habilidades declarados por discentes

Fonte: Relatório semestral Ânima Lab - Santos, 2019.

Um ponto importante levantado com a amostra quantitativa foi conhecer a motivação que leva o
discente a entrar em contato com as práticas do makerspace, identificada por intermédio do tipo
de projeto executado, que se diversificaram em atividades propostas por docentes durante a aula
( 51%), projetos de extensão universitária, que em grande parte possuem como elemento
motivador o empreendedorismo (15%), Projetos Interdisciplinares (13%), Projetos de conclusão
de curso, conhecidos como TCC (11%). Os discentes também realizaram projetos para uso
pessoal, como case para fones de ouvido, capa para sketchbook, restauração e customização de
instrumentos musicais entre outros projetos (10%)
Com o levantamento qualitativo foi possível identificar dois perfis distintos de discentes
“fazedores” que aqui serão diferenciados por forma de nomenclaturas: Os que projetam de
maneira consciente, objetiva e intencional, “projetistas conscientes” e os que projetam
intuitivamente, porém de forma intencional, os projetistas intuitivos.
Os projetistas conscientes
são geralmente discentes dos cursos de design, alunos mais avançados dos cursos de arquitetura
e engenharias. Estes discentes sabem escolher o método adequado para resolver o problema
determinado e possuem conhecimento de processos produtivos e ferramentas que viabilizam a
fabricação. Seguem as etapas conforme o método escolhido e fazem uso do makerspace nas etapas
de desenvolvimento de modelos e protótipos da ideia, e vão evoluindo nos testes até que resolvam
todas as questões do desenvolvimento do produto e finalizam o processo com um protótipo muito
próximo do modelo final para a fabricação.

GRÁFICO 03 - Categoria de projetos realizados por curso


230

Fonte: Relatório semestral Ânima Lab - Santos, 2019.

FIGURA 01 - Prototipagem do projeto de mobiliário de um grupo do curso de Design

Fonte: Relatório semestral Ânima Lab - Santos, 2019.

Já os projetistas intuitivos são discentes de cursos variados e não possuem domínio de métodos
de desenvolvimento de produto e projetam tomando como ponto de partida a própria ideia que
surge por intermédio da questão problema levantada em sala de aula. A partir da ideia concebida,
o projeto segue frequentemente o seguinte processo: Uma etapa de design - no sentido de projetar,
planejar (FLUSSER, 2011) - que provoca um pensar crítico criativo ao passo que o grupo tem
que avaliar as possibilidades de execução da ideia inicial levando em consideração aspectos como
aparência, funcionalidade e recursos tecnológicos para a produção, ou seja, como sugere Teixeira
(2018, pág. 58) “ é preciso quebrar os problemas em partes, partir de pressupostos para então
chegar à solução, formulando teorias e construindo-as por meio da experimentação” processo este
que consequentemente faz com que o grupo retorne a etapa de ideação para propor algo mais
viável em termos de produção e aderente a funcionalidade. Com a ideia mais bem definida, a


231

etapa seguinte é a do fazer, que por intermédio da experimentação com ferramentas e recursos
disponíveis provoca novas reflexões criativas, surgindo insights que ocorrem por conta da
ampliação do espectro de possibilidades identificadas resultantes do ato do fazer.
FIGURA 02 - Projetos de alunos do curso Biomedicina - Negatoscópio

Fonte: Relatório semestral Ânima Lab - Santos, 2019.


232

FIGURA 03 - Projetos de alunos do curso Pedagogia - Jogos pedagógicos

Fonte: Relatório semestral Ânima Lab - Santos, 2019.

A sequência cíclica “idear, planejar, fazer, idear, fazer” possui semelhança com o processo
denominado por Mitchel Resnick do MIT Media Lab de Espiral da Aprendizagem Criativa6. A
sequência vai se repetindo em busca que o artefato idealizado atenda a parâmetros definidos pelos
projetistas intuitivos na etapa de planejamento, ou até que o grupo fique satisfeito com o resultado
e prontos para a etapa final, que se consolida com a entrega do produto, processo ilustrado na
FIGURA 04.

FIGURA 04 - Processo de desenvolvimento dos projetistas intuitivos.

Fonte: A autora. Santos, 2019.

Considerações
Conforme levantamento com os participantes desta amostra, foi possível perceber que apesar da
maioria dos projetos executados por discentes no makerspace resultarem na confecção de


233

artefatos que variam desde produtos de uso pessoal à protótipos de equipamentos para uso
profissional, uma parcela importante destes alunos não somam habilidades com os equipamentos
disponíveis, principalmente os fabricação digital, o que os descaracterizam como verdadeiros
adeptos a cultura maker. Também foi possível identificar que os alunos não possuem
conhecimento relacionado a métodos projetuais de design inerentes ao desenvolvimento de
produtos, com exceção dos graduandos em design. No entanto estes fatores não se mostraram
como impeditivos para que ocorra um processo que atenda ao objetivo pretendido com a
abordagem da PBL, que se propõe em conferir ao aprendiz maior envolvimento e melhor
assimilação do conteúdo por intermédio da aprendizagem ativa, viabilizando a construção de
conhecimento e habilidades necessárias para a conclusão do curso, além de deixá-lo com maior
preparo para o mercado de trabalho.
A eficiência do método de aprendizagem ativa da PBL é facilmente evidenciada nos cursos em
que a atividade projetual é intrínseca como o design (BONSIEPE, 2012) ao passo que as
atividades propostas nas disciplinas são pautadas por métodos que visam a criação de um produto
como resultado. Já na atividade dos outros cursos, a eficiência do método pode ser percebida pelo
processo que vai se desenhando pela atividade dos discentes, que se desenvolve por intermédio
de um processo intuitivo porém intencional, tendo como ponto de partida a provocação em sala
de aula, que os estimulam a pensar maneiras criativas de resolver uma determinada questão
problema, e a partir deste desafio os discentes se organizam em grupos para a discussão do
problema em questão, avançando rapidamente para uma ideia, que surge frequentemente por
intermédio de esboços, fluxogramas ou até mesmo com o auxílio de ferramentas criativas como
brainstorm e mind map, segundo relatos dos projetistas intuitivos.
A partir da ideia já concebida é que se inicia a jornada mais rica da aprendizagem, onde se pode
evidenciar o processo da PBL acontecendo, ao passo que os discentes protagonizam a
materialização da ideia que se desenvolve pautada no foi discutido em sala de aula, nos
conhecimentos acumulados ao longo do curso e por intermédio da possibilidade de execução, que
é viabilizada por conta da estrutura do makerspace e da cultura de troca e compartilhamento de
conhecimento característica desses espaços, que conforme relato dos discentes, auxilia na
criatividade por ocasião dos recursos disponíveis que geram infinitas possibilidades.
Podemos considerar que a aprendizagem baseada em projetos pode assumir um caráter mais
efetivo em termos de aprendizagem ativa ao passo que os alunos sejam orientados por um método
para a resolução da questão desafiadora, desta forma a atividade será desenvolvida de maneira
mais consciente, o que tende a otimizar o processo, permitindo atingir melhores resultados ao
produto do fruto de todo processo, lembrando que este não visa a produção de um artefato, mas
sim a materialização do conhecimento por intermédio da atividade prática e o protagonismo do
aluno durante a jornada. No entanto não podemos descartar a riqueza do aprender criando,
atividade característica da cultura maker e que se mostrou fortemente presente no processo
vivenciado pelos aqui chamados projetistas intuitivos.
O design thinking pode ser uma opção para a abordagem da PBL em diferentes cursos ao passo
que o método se configura na resolução de problemas reais com base na empatia, na colaboração,
na criatividade e na experimentação. A empatia provoca o aluno a trabalhar no entendimento da


234

questão problema de forma mais aprofundada por assumir o olhar para a questão sob outra ótica,
isso amplia a etapa de pesquisa e minimiza o impulso de partir de imediato para a ideia. A
colaboração mantém o caráter de aprendizagem em pares proposto pelo método ativo, além de
incentivar a interdisciplinaridade do grupo, fator que enriquece a troca de conhecimento. A
criatividade quando trabalhada pautada por uso de ferramentas usuais nos métodos de design
aumenta o fluxo criativo do grupo envolvido no projeto e a experimentação mantém a riqueza
presente no processo de aprender fazendo como sugere diferentes pesquisadores citados ao longo
deste texto como Glasser 2001, Gavassa, 2016 e Resnick, 2020 quando dissertam de forma
positiva sobre a relação entre a práxis e a experiência com o processo cognitivo da aprendizagem.

Referências


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235

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Silveira, F. (2016)
Design & Educação: novas abordagens. p. 116-131. In: MEGIDO, V. F.
(Org.). A Revolução do Design: conexões para o século XXI. São Paulo: Editora Gente.
Teixeira, C. S.; Souza, M. V. (2018). Educação Fora da Caixa: Tendências Internacionais e
Perspectivas sobre a Inovação na Educação. Coleção mídia, educação, inovação e
conhecimento; vol. 3. São Paulo.


236

Knobby Clubrush: Neurobiologia e Arte Robótica

Knobby Clubrush: Neurobiology and Robotic Art

Marília Lyra Bergamo101

Resumo
Esse artigo apresentará o objeto estético Knobby Clubrush, baseado no conceito científico de neurobiologia.
Para este campo da ciência, plantas são como inteligências coletivas, ou comparado-se ao mundo animal
são inteligências de enxame. Essa característica faz com que uma planta possa ser observada não como
uma individualidade, mas um assemblage. Dentro deste raciocínio, várias características de comportamento
e as soluções evolutivas formais das plantas podem ser incorporados para o desenvolvimento de arte
robótica. Sendo assim, o artigo apresenta os fundamentos do pensamento da neurobiologia e como eles
podem ser transpostos para o desenvolvimento de uma robótica de cunho poético a partir de um exemplo
concreto. Knobby Clubrush é um objeto estético construído dentro desse modelo, e neste trabalho, é usado
como referência para argumentação sobre a neurobiologia e a arte robótica.
Palavras-chave: Arte Robótica, Estética, neurobiologia.

Abstract
This article will present the artwork Knobby Clubrush, based on the scientific concept of neurobiology.
For this field of science, plants are like collective intelligences, or compared to the animal world they are
swarm intelligences. This characteristic means that a plant can be seen not as an individuality, but as an
assemblage. Within this logic, various behavioral characteristics and the formal evolutionary solutions of
plants can be incorporated for the development of robotic art. Therefore, the article presents the
foundations of neurobiology and how they can be transposed to the development of robotics as poetics
based on a concrete example. Knobby Clubrush is an aesthetic object built within this model, and in this
artwork, it is used as a reference for arguments about neurobiology and robotic art.
Keywords: Robotic Art, Aesthetics, neurobiology.

1. Introdução

O campo científico da neurobiologia reconhece que as plantas evoluíram como organismos


sésseis, por isso seus corpos são modulares sem órgãos individuais, e essa distinção do mundo
animal criou obstáculos para reconhecê-los como organismos inteligentes (Mancuso et al. 2015).
As plantas são, geralmente, distinguíveis como indivíduos e se comunicam entre si ou com
parentes, esta comunicação permite uma coordenação sistêmica (Karban, 2015). Embora as
soluções de sobrevivência nas plantas são frequentemente opostas às desenvolvidas pelos
animais, elas também são capazes de imitar e negociar, e sua inteligência se assemelha a redes
(Mancuso, 2018). Ainda assim, de acordo com Mancuso (2018), as abordagens em design e
engenharia são geralmente baseadas nas funções dos animais e em várias situações pode não ser
um avanço tecnológico.


101
Professora Adjunta do Departamento de Desenho da Escola de Belas Artes da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Sua pesquisa tem ênfase em Arte e Tecnologia, Sistemas Complexos e
Design para mídias interativas, atuando principalmente nos seguintes temas: arte computacional e design
digital.


237

Tomando a visão na neurobiologia como pressuposto científico, este artigo discute as questões
teóricas e práticas que envolvem o desenvolvimento tecnológico de sistemas estéticos baseados
no pensamento da Neurobiologia. Este é um tema recorrente de pesquisa, e em 2019, publiquei
um capítulo introdutório ao tema chamado Arte Computacional Botânica: Argumentações sobre
a replicação do modelo de comportamento de plantas (Bergamo, 2019). Neste artigo Knobby
Clubrush: Neurobiologia e Arte Robótica, apresento uma discussão mais ampla sobre o tema,
envolvendo novas pesquisas sobre o aspecto cognitivo e comportamental das plantas, bem como
um trabalho de arte próprio chamado Knobby Clubrush de reprodução de tal sistema.

2. Mecanismos de inteligência e evolução em plantas

2. Os sistemas complexos são sistemas de inteligência emergente, e apresentam sempre três


propriedades comuns: uma rede de componentes individuais, cada um seguindo regras
relativamente simples sem controle central - sem líderes; as partes devem usar informação e
sinalização de interações internas e externas; e as partes incorporam mudanças em seu
comportamento para aprimorar suas chances de sobrevivência ou sucesso, por aprendizado ou
processo evolucionário (Mitchell, 2009). Redes são sistemas complexos, e as plantas são, segundo
a neurobiología, sistemas descentralizados (redes) de inteligência cognitiva, e portanto, sistemas
complexos. Plantas apresentam todas as propriedades desses sistemas, sua inteligência é formada
de partes descentralizadas, que fazem uso de sinais e informações para auto-coordenação,
aprendem e evoluem neste processo. Para a discussão de aprendizado nas plantas, é necessário a
existência de uma memória que seja integrada ao sistema de tomada de decisões, e esse processo
de memória/decisão/recriação de memória é defendido neste artigo como a capacidade de
inteligência diretamente relacionada à existência física de uma estrutura capaz de gerar tais
processos.
Segundo Witzany (apud Baluška et al, 2018), todos os processos de coordenação e organização
nos organismos são o resultado de interações comunicativas entre células, tecidos e órgãos. Esta
afirmação pressupõe que existe uma conexão direta entre matéria e memória, que segundo o autor
se dá através de marcações epigenéticas de certas seções cromossômicas, visando modos de
memória, que são essenciais para diferentes grupos de moléculas, como uma espécie de “imagem
congelada” da soma total dos processos de biocomunicação de um organismo em um contexto
situacional epigeneticamente relevantes.
As plantas costumam ser vistas e estudadas como autômatos de crescimento semelhantes a
máquinas, mas sua a coordenação só é possível pelo uso de sinais e memória, e não por pura
mecânica. Ainda segundo Witzany, nas plantas são mais de 20 grupos diferentes de moléculas
com funções comunicativas que foram identificados, e até 100.000 substâncias diferentes,
conhecidas como metabólitos secundários, que são ativamente usadas na zona da raiz. Outra


238

questão importante apontada pelo autor é que as plantas podem, sobrescrever seu código genética
que herdaram de seus pais e reverter para o de seus avós ou bisavós, o que contradiz a convicção
tradicional de que o DNA de novas gerações são herdados somente dos pais. Assim, as plantas
são capazes de substituir sequência do código parental menos apropriadas no código atual,
substituindo estes por outro de gerações anteriores, como uma espécie de cópia de backup. Mas
em condições normais, a composição genética operativa provém dos pais. Isto significa que
plantas transferem heranças, além da combinação genética parental, características reguladoras
do genoma ancestral.
Toda essa informação sobre a relação entre, a genética, a fisicalidade da memória e a capacidade
de restauração epigenética das plantas descreve como desconhecemos seus mecanismos de
aprendizado, inteligência e evolução. Segundo Ramsey Affifi (apud Baluška et al, 2018), o
psicólogo e filósofo John Dewey escreveu um artigo em 1986, na The Psychological Review que
rebate as suposições prevalentes na época sobre a relação entre os organismos e seus ambientes.

“Até mesmo uma planta deve fazer algo mais do que se ajustar a um ambiente
fixo; deve se afirmar contra seu entorno, subordinando-o e transformando-o
em matéria e alimento. . . O ambiente deve ser plástico até as extremidades do
agente” (Tradução Minha, Dewey, página 313)

Para Affifi, Dewey argumentou que o estímulo e a resposta não eram eventos independentes e
correspondentes aos elementos sensoriais e motores do organismo. O autor afirma que algo que
serve como um estímulo é constituído pela atividade motora do organismo e só continua a ser um
estímulo por causa desta atividade motora contínua. Toda atividade sensorial dirigida tem uma
base motora, enquanto toda atividade motora dirigida é também sensorial. Assim, as abordagens
comportamentais (Behaviorism) que levam a resultados empíricos bem-sucedidos (leia-se:
previsíveis), mantêm uma interpretação mecanicista dos fenômenos e afirma que esse modelo não
é adequado para uma tomada de decisão contingente, que contenha escolha, experimentação,
contexto e/ou propósito. Affifi defende que a pesquisa com plantas precisa evitar a repetição deste
erro, uma vez que não há centralização do processo de tomada de decisão em plantas, ainda que
existe um sistema radicular análogo a um cérebro102. Uma vez que, a informação sensorial que
chega às raízes é processada e leva a algum tipo de mudança física. Portanto não há adaptação
passiva às situações externas, e sim uma relação de seleção ativa e modificação comportamental.
Sendo assim, Affifi concluí que “se as plantas são organismos inteligentes, não devemos esperar
encontrar isso impondo uma interpretação mecanicista e linear de estímulo e resposta às suas


102 Muitos cientistas, incluindo o Darwin, já utilizaram a metáfora do cérebro em analogia ao
sistema radicular das plantas.


239

ações” (Affifi, apud Baluška et al, 2018, pagina 23). Sendo assim, deveríamos procurar evidências
de que plantas se envolvem em coordenadas sensório-motoras intencionais e unificadas que a
levam a modificar o significado do que encontram e alterar o comportamento de acordo. Essa
discussão é fundamentalmente importante para este artigo, uma vez que interfere diretamente na
seleção de um modelo tecnológico a adotado para construção de sistemas complexos baseados
em plantas. Não é possível, a partir dessa discussão, que ao tratar do desenvolvimento desses
sistemas, passemos a considerá-los por premissas estímulo-resposta, é preciso a inclusão de uma
estrutura de intencionalidade e relevância que levem a um objetivo, seja evolutivo ou de
crescimento.

3. O modelo tecnológico em neurobiologia

Para a neurobiologia, há um conceito fundamentalmente intrínseco no pensamento humano de que as


máquinas autônomas repliquem características humanistas, ou zoológicas. Para Mancuso (2018) esta
situação revela que nossa percepção em direção a produção de novas tecnologias está sempre relacionada
a replicação, expansão e melhoramento de funções humanas. O modelo tecnológico proposto pela
neurobiologia está relacionado às pesquisas em tecnologia bio-inspiradas, que olham para a natureza como
modelo de resolução de problemas tecnológicos. Seguindo essa linha, o desenvolvimento tecnológico
inspirado em plantas deveria observar como essas consomem muito pouca energia, fazem movimentos
passivos, são construídas em módulos, robustas e de inteligência distribuída. São sistemas de enorme
plasticidade e adaptação a mudanças contínuas ambientais, sua principal característica é a fotossíntese
multicelular, com algumas exceções, e constituem-se de uma porção elevada do subsolo e um sistema de
raízes.

Plantas se relacionam diretamente com o modelo de construção de tecnologia distribuída, seus corpos são
formados de unidades de repetição que juntas constituem sua arquitetura e define sua fisiologia (Mancuso,
2018). O autor ainda aponta que mesmo a definição de indivíduo usada em referência ao reino animal tem
pouca relevância no mundo das plantas, uma vez que nem mesmo a estabilidade genética parece ser
relevante para o mundo das plantas, sejam vistas as famosas chimeras de plantas. Portanto a arquitetura das
plantas se aproxima sempre ao conceito de assemblage, onde as unidades básicas desta arquitetura possuem
vida curta, mas a colônia poderia viver virtualmente para sempre.

4. Knobby Clubrush Arte Robótica

Knobby Clubrush é o nome comum de uma planta nativa facilmente encontrada nas paisagens ao redor das
praias de Melbourne na Austrália. Seu nome científico é Ficínia Nodosa. Esta planta é um junco com caules
subindo a um metro, parece ser uma bela espécie adaptada com uma estrutura nodosa em seu topo que
parece ser aerodinamicamente projetada para áreas ventosas. De acordo com as ideias apresentadas Knobby
Clubrush como Arte Robótica foi elaborado em três fases distintas onde se avaliou constantemente um


240

equilíbrio entre a forma e os desafios técnicos. O processo seguiu uma linha do tempo de aptidão, e a
prototipagem foi desenvolvida de forma que cada etapa fosse um aprimoramento da materialidade e
objetivos conceituais da peça.

4.1 Agente Robótico com Inspiração Biológica

Em Knobby Clubrush, cada haste robótica foi tratada como um agente robótico-computacional, e essas
estruturas de inteligência fabricada são organismos epistêmicos nascidos dentro de uma ação circunscrita
intencional, uma ação criativa. Criados com propósitos individuais, esses agentes artificiais simulam e
desenvolvem configurações para gerar auto-organização de inspiração biológica como resultado de suas
interações.
O protótipo inicial foi desenvolvido para experimentar algum potencial de sensibilidade e atuação, a ideia
principal era criar uma estrutura robótica onde o movimento resultante seria aparentemente percebido como
uma ação ambiental sobre o agente. Essa experimentação de criatividade em materiais e eletrônicos
formulou uma série de pesquisas. A haste precisava usar uma matéria flexível o suficiente para causar uma
certa capacidade de se dobrar e ao mesmo tempo ser resistente para suportar o Knobby (parte superior em
forma de esfera). O Knobby precisava ser uma estrutura plástica e sensível na peça onde os sensores
deveriam ser incluídos e com uma materialidade que permitisse sua criação por meio de computação
(usando como gerador de forma final uma impressora 3D).

Como resultado, na abordagem inicial, o knobby capta internamente o vento para a exposição de sensores
usando um acelerômetro, um giroscópio, um sensor de temperatura e um microfone. Esta parte sensível se
comunica com a raiz, que é a parte ativa. Em Knobby Clubrush as raízes não crescem, elas aumentam
dinamicamente a capacidade do caule de se expor. A Figura 1 mostra a estrutura do agente, onde uma
pequena mola acoplada a um conjunto de arranjos lineares impressos em 3D permite o movimento usando
um motor servo. Este mecanismo expõe a mola a mais ou menos atividade e, como consequência, a haste
sobe ou desce. Com a haste mais alta a mola fica mais sensível e exposta ao vento, caso contrário, tende a
permanecer menos flexível.
Foi levado em consideração que o agente deveria ter uma camada de percepção, onde os valores rastreados
pelo ambiente se tornassem acessíveis para a lógica interna do agente. Na natureza, a força induzida pelo
vento é calculada pela soma das forças do vento atuando em cada ponto da haste e coroa (Geitmann e Gril,
apud Ennos, 2018), e a fórmula abaixo foi usada

wForce = ∑(XYZ) / 2 * p * A * z * u;

onde, ∑ (XYZ) é a soma dos valores capturados pelo Giroscópio + Dados Acc nos eixos X, Y e Z, p é o
valor constante do ar 1,226, e a diferença entre a posição do sensor e a base do protótipo foi considerada (z
+ - = 100 cm), também outros dados foram interpretados como A = 1 (um agente por vez), e u é a velocidade
do vento horizontal, a soma de o X dados103;


103 Na peça final, esse valor de z passa a 30,5 cm, e A = 9 passa a 9 (nove agentes)


241

Como estratégia evolutiva, as plantas cooperam no processamento da informação e na tomada de decisões


(Thompson, 2018), e no processamento da aprendizagem, o conceito de memória e inteligência estão
intimamente relacionados (Baluška et al. 2018), como resultado, o agente de Knobby Clubrush precisava
de uma memória interna que o habilitasse a salvar algumas informações. Memória e sensibilidade geram
dados que são enviados a uma camada criativa, onde as ações são conduzidas de acordo com o interesse, o
tédio e a curiosidade (Saunders, 2019).


Fig 1. Imagem representativa do agente robótico da haste, que ilustra a proporção, mecânica radicular e
plasticidade nodosa - Knobby (Arquivo da Artista).

4.2 Desenvolvimento de muitos agentes

Um sistema descentralizado foi primordial para esta peça, pois de acordo com a teoria do
neurobiologia, a distribuição de funções sem especializações principais dos órgãos é o que mais
distingue as plantas do reino animal (Mancuso, 2018). A abordagem mais valiosa deste conceito
em robótica é o design de funções de distribuição em estruturas físicas e felizmente parte da
tecnologia robótica baseada em estruturas eletrônicas pode ser facilmente modulada. Assim, o
módulo de unidades estáveis foi selecionado para desenvolver o segundo estágio de prototipagem,
esses componentes foram comprados separadamente e a decisão final foi usar o MPU-6050 6-
DoF Accel and Gyro Sensor, Silicon MEMS Microphone Breakout - SPW2430 e um TCA9548A
I2C Multiplexer. Um Arduino Shield foi desenvolvido especialmente para Knobby Clubrush, esse
Shield conteria as conexões necessárias para unir as partes distribuídas dos agentes ao sistema


242

raiz, e tudo isso era controlado por uma placa Arduino R3 Uno. Embora a placa Arduino e o Shild
(Figura 2) tenham sido necessários para disponibilizar a peça para ser replicada, eles podem ser
considerados conceitualmente controversos sobre as partes de divisão da planta, pois representam
uma abordagem centralizada necessária para desenvolver o software .

Fig 2. Arduino Shield desenvolvido com o suporte da Sensilab Monash Technology (Acervo da Artista).
Para desenvolver uma relação biológica, esses agentes precisam cooperar e competir por recursos,
além disso, os cruzamentos permitem a geração de novos agentes em um processo evolucionário
da arte (McCormack, 2019). Este processo não pôde ser totalmente implementado internamente
no Knobby Clubrush, e uma divisão social foi feita (Figura 3). No código, cada agente com
habilidades de acelerômetro procura a posição uns dos outros para evitar a competição,
escolhendo posições diferentes. Porém, se todos estiverem competindo, aquele que se move no
momento morre e pode renascer se ocorrer uma condição social. No campo social, cada agente
desenvolve internamente funções de interesse, tédio e curiosidade (Saunders, 2019), mas se o
acaso acontecer e o agente tiver a sorte de ter morrido curioso pode ser revivido. Isso só poderia
ser implementado na camada de computação Knobby Clubrush. O principal desafio ainda
consistia no fato de que os agentes em Knobby Clubrush são peças robóticas, que em teoria
poderiam ser substituídas: uma haste foi desenvolvida de forma que pudesse ser destacada da
mola e uma nova pudesse ser criada. Os fenótipos não seriam produzidos por si próprios, como
ocorre na arte evolutiva do software, mas exigiria a agência de de um desenvolvedor humano,
mas tecnicamente podem ser substituídos fisicamente.


243


Fig 3. Arquitetura de software. A1 a A4 (Agentes Winder): com a capacidade de sentir, agir e receber
informações de outros agentes, A5 a A8 (Agentes Capturer): com a capacidade de detectar e receber
informações de outros agentes, A9 (Agente Turner): com a possibilidade de receber informações de outros
agentes e atuar no meio ambiente (Acervo da Artista).
4.3. Knobby e Assemblage

As formas na natureza são resultados de muitas interações com o meio ambiente e da seleção natural, nem
uma única folha está livre desse processo de tempo e sobrevivência (Ball, 2016). A matéria é plástica, e
deveria ser também em Arte Robótica, em Knobby Clubrush eu concentrei essa plasticidade no topo dos
agentes, onde foi necessário um invólucro para ser mecanicamente capaz de movimentos aerodinâmicos e
proteger as partes sensíveis (Figura 4). Foi uma decisão importante nesta obra, pois o desenvolvimento de
formas geradas por algoritmos tem aumentado nas áreas de Design e Arquitetura, onde instruções geradoras
de computador podem ser impressas (Cogdell, 2019). Como resultado, para gerar o Knobby, um padrão de
cones foi criado por código. Todos os cones foram criados com pequenos orifícios na parte superior para
permitir que o ar e o vento afetem os microfones e sensores de temperatura, todos apresentam pequenas
diferenças nas laterais dos orifícios e inclinações dos eixos Z. Uma segunda camada do mesmo padrão é
usada para criar um espaço interno dentro do Knobby. Em Knobby Clubrush esse padrão é aleatório, mas
representa um potencial de implementação de resultados de agentes bem adaptados para serem transmitidos
às gerações futuras.


Fig 4. Knobby impresso em 3D, baseado em um código gerador de padrões de cones com duas camadas
(Acervo da Artista).


244

O assemblage (Figura 6) é composto por nove agentes, conforme divisão apresentada na arquitetura do
software (Figura 3). Foi desenvolvida uma estrutura modular impressa em 3D para unir um agente do tipo
Winder a outro do tipo Capturer, estes são conectados formando um bloco que permite a inclusão de um
Turner no centro. Todos os cabos da área sensível à raiz são organizados com uma matéria de aço e cabos
verdes cobertos por uma película isolante de plástico seco (Figura 5). Os cabos são organizados com
terminações que devem ser conectadas a uma blindagem e a uma placa controladora. A montagem final
pode ser replicada muitas vezes e, no futuro, poderia ser incluída uma comunicação em rede entre as peças.

Fig 5. Knobby impresso em 3D, com cabos verdes cobertos por um filme isolante de plástico seco (Acervo
da Artista).


245

Fig 6. Knobby Clubrush Assemblage. Desta foto foram retirados o Shield e a placa de controle, e também
apresenta apenas uma haste nodosa como apelo plástico da peça, também disponível em
https://youtu.be/vm6-Flt7lOE (Acervo da Artista).
Discussões

Para efeito de análise da complexidade, há a necessidade de observar a geração de padrões pelo


sistema, portanto foram coletados dados do primeiro agente. Na primeira etapa dados foram


246

coletados do primeiro agente, com todos os sensores e uma unidade única. Estes dados foram
capturados em uma base de dados, cada teste teve uma duração de aproximadamente 15 minutos.
Na figura 7, a interação humana pode ser detectada por enormes dados de vento incomum
(vermelho escuro) e são considerados posição inicial. Quando apenas movimentada pelo vento o
agente se permite liberar força para as raízes e mas há retorno com as mudanças de vento muito
rápidas. A segunda posição de validação dos dados é a posição de descanso algumas vezes toquei
a planta sem realmente forçá-la a reiniciar sua posição com a interação como essa ação atuaria
em relação às raízes. Na terceira posição, a planta recebe muitas variações de vento, mas está no
meio de outra, então mantém sua decisão de relaxar a força da raiz e continuar crescendo.


Fig 7. Dados coletados em 07/11/2019, o agente responde ao vento de forma contínua e crescente, e mantém
sua taxa de crescimento baixa quando a vibração é maior que a frequência do vento (acervo da artista).
O segundo protótipo, que inclui vários agentes teve sua coleta de dados realizada em 28 de Dezembro de
2019 e alguns dados são apresentados nas figuras 8 e 9 abaixo.

Fig 8. Dados coletados em 28/12/2019, força do vento capturada pelos agentes detectores de vento (acervo
da artista).


247

Fig 9. Dados coletados em 28/12/2019, vento versus curvatura da planta nos agentes A1, A2, A3, A4.
(acervo da artista).

Com vários agentes a coleta de dados tinha a intenção de mapear a ausência de isolamento entre
as partes, e também as pequenas diferenças de valores que tornavam cada agente uma estrutura
única. Na figura 8 observa-se que nenhum dos agentes que detectam o vento ficam sem receber
dados e há uma integração no padrão de recebimento dos mesmos, mas essa captura também
revela que o posicionamento de cada um fará com que os valores das capturas sejam únicos para
cada agente. O mesmo se repete na captura do vento versus o valor de curvatura das plantas, há
um padrão de detecção do vento que é condizente com o posicionamento de cada agente.

Trabalhos futuros

O Knobby Clubrush não pode ser finalizado, pois sua última etapa foi concomitante com o fechamento do
laboratório devido à pandemia do Covid-19 em Março de 2020. Para esse tipo de pesquisa é necessário o
ambiente do laboratório, de pesquisa e de experimentação da materialidade e fisicalidade das respostas do
próprio corpo robótico. Portanto há a intenção de retomada no desenvolvimento de novas estruturas de
agenciamento robótico com os princípios da neurobiologia com a reabertura dos laboratórios, mas não a
retomada desse modelo exato o Knobby Clubrush. Tenho intenção de produzir outras formas de agentes
eletrônicos e analisar seu comportamento enquanto inteligência de enxame.

Referências
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248

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Thompson, K. (2019 ) Darwin’s Most Wonderful Plants: Darwin's Botany Today. London: Profile
Books.


249

Metrologia nas imagens: tempos e distâncias na abstração

Metrology in images: times and distances in abstraction

Miguel Alonso A. Carvalho104

Resumo
O presente trabalho propõe uma leitura que busca relações entre as formas gráficas e dimensões
(altura, largura, profundidade, tempo) nas obras Dynamic Crossings, 2017, Grupo Realidades
(ECA-USP); e Lumen, 2005, Regina Silveira. As dimensões aparecem em uma forma metafórica
de metrologia que mistura as unidades internacionais de medida do tempo e das distâncias,
assumindo suas formações como conceitos e a ideias de "imaginação" e “abstração” presentes nas
imagens técnicas a partir de textos de Vilém Flusser. Propondo assim que a transformação de
quatro dimensões (altura, largura, profundidade, tempo) em duas (altura e largura), estão inseridas
nas formas de criação e de fruição das obras e que o encontro da superficialidade destas acarreta
mudanças na percepção de como as imagens podem ser lidas.
Palavras-chave: Imagens técnicas, Grupo Realidades (ECA-USP), Metrologia, Regina Silveira,
Vilém Flusser.

Abstract
The present work proposes a reading that seeks relationships between graphic shapes and
dimensions (height, width, depth, time) in Dynamic Crossings, 2017, Grupo Realidades (ECA-
USP); and Lumen, 2005, Regina Silveira. Dimensions appear in a metaphorical form of
metrology that mixes the international units of measurement of time and distance, assuming their
formations as concepts and ideas of "imagination" and "abstraction" present in technical images
from texts by Vilém Flusser. Thus proposing that the transformation of four dimensions (height,
width, depth, time) into two (height and width), are inserted in the forms of creation and fruition
of the works and that the meeting of their superficiality brings about changes in the perception of
how images can be read.
Keywords : Technical images, Grupo Realidades (ECA-USP), Metrology, Regina Silveira,
Vilém Flusser.

Introdução

O presente trabalho propõe uma leitura que busca relações entre as formas gráficas e as dimensões
temporais, apresentadas nas obras artísticas Dynamic Crossings, 2017, Grupo Realidades (ECA-
USP); e Lumen, 2005, Regina Silveira.
A estrutura proposta considera a passagem do tempo sentida e desenhada pelo interator e outras
que os artistas e as artistas propõem, como uma forma de medição, dentro de uma proposta de


104
Miguel Alonso: Artista plástico e arte educador, doutorando pelo PPGAV - ECA/USP. Mestre pelo PPG em Artes
da UNESP. Educador de Tecnologias e Artes no SESC - São Paulo. Formado em bacharelado e em licenciatura em
Artes Visuais na UNESP. Membro dos Grupos de Pesquisa Realidades (ECA – USP) e GIIP (IA/UNESP). E-mail:
miguelalonso@usp.br


250

metrologia105, que mistura as unidades internacionais de medição do tempo e das distâncias e


sopesa o histórico dessas unidades, em suas relações diretas com o corpo humano e com os
movimentos astronômicos que antigamente eram utilizados para criar tais medições.
Assumindo o fato de a imaginação envolver diretamente a percepção sensível. Questões físicas,
do mundo concreto, e questões da capacidade de abstração, imaginação, e que ambas estão em
uma relação direta no campo artístico, quebra-se a separação tradicional de corpo/mente, do
dualismo cartesiano. O presente trabalho aborda a ideia de "imaginação" nos textos de Vilém
Flusser, aprofundando a análise feita das imagens técnicas e da consideração de que a abstração
é a transformação de quatro dimensões (altura, largura, profundidade, tempo) em duas (altura e
largura).
Desta forma, a leitura das obras propostas funciona como um questionamento da experiência
estética do fruidor, observando se as formas de criação e de fruição das obras artísticas podem
estar associadas com conceitos científicos de mensurabilidade do espaço, em uma manifestação
transdisciplinar, que considera os elementos teóricos embutidos nas unidades, buscando os
esforços de traduções e abstrações que são feitos para a elaboração de imagens técnicas.

Dynamic Crossings
Apresentamos primeiro a obra artística Dynamic Crossings, 2017, realizada pelo Grupo
Realidades106( ECA/USP) e de autoria de Marcus Bastos, Silvia Laurentiz, Cassia Aranha, Loren
Paneto Bergantini, Ana Elisa Carramaschi, Marcelo Carvalho, Lali Krotoszynski, Monica Moura,
Dario Vargas, Sergio Venâncio. A obra integrou a exposição do evento ISEA107 de 2017. A obra
é uma instalação multimídia interativa, que desenvolve uma relação direta com a arquitetura da
torre Herveo, em Menisales, Colômbia, ponto de referência no horizonte montanhoso da cidade.
As mudanças de tempo que esse trabalho traz estão relacionadas com o movimento da terra em
relação ao sol e a codificação proposta pelos autores.
Destacamos esta obra pelas relações entre os padrões gráficos das sombras, diretamente atrelados
com os movimentos da terra em relação ao sol, durante 24 horas e a tradução dessas sombras da
torre em novos padrões gráficos, gerados como desenhos elaborados dentro da linguagem
Processing de programação. A relação entre sombras feitas pelo sol com os desenhos gráficos
programados é modulada com dados captados no local da galeria e por quatro tipos de Qr Codes
espalhados entre a torre e o local expositivo. As novas iluminações, representadas pelos grafismos
na instalação, estão diretamente ligadas às interações entre pessoas distantes da obra, por Qr
codes, e de pessoas no espaço expositivo. Essa relação de integração, que modifica dimensões
das sombras e dos tempos, estão sendo discutidas aqui.


105
Estudo das unidades de medidas.
106
Grupo de pesquisa Realidades: Das Realidades Tangíveis as Realidades Ontológicas e seus
Correlatos, da Escola de Comunicações e Artes da USP ( Universidade de São Paulo), desde
2010, Coordenação Silvia Laurentiz e Marcus Bastos.

107 4
ISEA - International Symposium on Electronic Arts. 2017, Manizales BIO-CREATION
AND PEACE.


251

A obra relaciona, a partir de uma câmera que captura o deslocamento do público presente na
galeria e pelas interferências consciente de quem acessa os códigos espalhados pela região do
Centro Cultura da Universidade Rogelio Salmona, Universidad de Caldas(CCU). Ao interferir
pelos Qr Codes o indivíduo compartilharia a localização remota via web, o que permite que com
acesso ao Qr code qualquer localização pudesse afetar as sombras e os padrões, entretanto,
conforme descrito pelos autores, as distancias são atreladas aos quatro tipos de códigos, dessa
maneira, mesmo que o interator esteja em outra cidade ou pais, sua localização está atrelada ao
tipo específico.
A integração entre dados do ambiente da exposição e dados remotos modificam os desenhos e
formas, reconfigurando a instalação. Segundo os autores e autoras, “Esse procedimento tem como
objetivo aproximar real e virtual, e busca relacionar a presença dos passantes tanto aos aspectos
visuais das linhas animadas como da materialidade expressa pelo formato das sombras da torre
em relação à digitalidade de sua representação em tela.”
(http://www2.eca.usp.br/realidades/pt/obras/dynamic-crossings-isea-2017/, acesso em
20/10/2020).
Além das interferências no processo de configuração de novos padrões gráficos, traduzidos pelo
software, a interação das pessoas no espaço expositivo vai além dos deslocamentos da câmera.
Assim como observado na documentação dos vídeos da exposição, é nítida a interação das
sombras dos indivíduos na projeção feita na sala da Galeria. Tal interferência pode ou não ter sido
proposital dos autores e autoras, para saber melhor sobre essa proposição ainda será necessário
levantar as posições dos distintos membros do grupo5.
Dynamic Crossings possui uma maneira própria de desenhar o tempo, com as distancias
arquitetônicas das sombras, dos interatores no ambiente expositivo, das interferências conscientes
feitas pelos Qr codes e pela reação das sobras dos presentes na sala. É possível extrapolar essas
relações como uma sinergia dos marcadores regulares do tempo no espaço físico, relacionados
com os movimentos terrestres em relação ao sol, mas que se transportam para tempos subjetivos,
criados nas imagens digitais, elaborada pelo software e pela relação direta das sombras na sala.

Lumen, 2005, Regina Silveira


Como segundo ponto para a presente leitura, temos a obra Lumen, 2005, de Regina Silveira. Essa
obra pode ser referenciada como obra/instalação ou exposição, as duas formas de se referir a esse
trabalho da artista brasileira se deve por apresentar a ligação íntima entre três trabalhos distintos
e ao mesmo tempo comporem uma ambiência ímpar entre as obras e o espaço expositivo. Lumen
foi feita no Palácio de Cristal de Madrid, Espanha, espaço administrado pelo Museu Nacional
Centro de Arte Reina Sofia (Madrid, Espanha) em 2015.
Lumen foi pensada especificamente para a estrutura do palácio de cristal, que tem sua arquitetura
marcada pelas estruturas de metal que criam geometrias preenchidas por vidros simétricos e
assimétricos. A artista recebeu do museu as plantas do prédio e o desenvolvimento da obra foi
acompanhando as questões de medidas e da preservação do edifício histórico. A
Obra/exposição/instalação é composta por três distintos trabalhos. O primeiro aqui destacado é o
Memória em azul, criado especificamente pensando o palácio. Segundo entrevistas da artista, essa


252

obra propõe duas narrativas de tempos distintos, ela é a explosão dos vidros e estruturas do palácio
5 Uma questão interessante da criação de obras artísticas realizadas em grupos, principalmente
aqueles que trabalham nos entremeios entre tecnologias e artes, é avaliar as perspectivas dos
diferentes integrantes e de suas visões da concepção e da montagem das obras, além disso do
desenvolvimento desta no decorrer de uma exibição, considerando questões técnicas e das
interações dos públicos.

que são reorganizadas e reconstruídas juntamente com o céu da cidade de Madrid – tão caro aos
madrilenhos, como diz a própria autora. Essa obra é composta por adesivos vinílicos, elaborados
a partir de fotografias do edifício, recortados de um azul translucido, as superfícies azuis são
transpassadas por linhas pretas e pela própria estrutura metálica do prédio, o que junta a explosão,
a reconstrução junto ao céu iluminado representado pelo azul e a estrutura física fixa do palácio.
É uma memória reconstruída no presente, considerando a narrativa de um futuro, a memória de
um edifício histórico. É uma memória que se modifica com a própria passagem do sol além disso
com a interferência das outras duas obras.
Além de Memória em azul, Lumen traz os trabalhos Quimera e Luz, duas obras já existentes, mas
expostas e criadas em outros contextos que passam a ser ressignificadas nesse espaço. Luz se
assemelha materialmente à primeira obra da artista aqui descrita, por ser composta por adesivo
colado na abóboda do prédio, entretanto, apesar de possuir um azul transparente e também
interferir na relação dos vidros e dos metais arquitetônicos, Luz traz a palavra, o substantivo
“Luz”, que passa a funcionar como uma máscara para a iluminação solar, criando um projetor
gráfico que espalha a grafia das letras pelo chão do palácio. A interação de Luz e Memoria em
azul com o chão do palácio remete aos efeitos dos vitrais coloridos em igrejas, efeito marcante
por exemplo na Sagrada Família de Gaudí, em Barcelona. Entretanto diferente de vitrais
coloridos, o azul do céu explodido e a “luz” feita pelo sol, afetam o chão como um tapete, que é
afetado pelas sombras do público, uma junção entre os diferentes tempos narrados pela autora
que se relacionam com o céu.
Formada por uma imagem de dimensões gigantescas de uma lâmpada elétrica incandescente - de
filamento-, contraposta à uma sombra enorme em formato de gota, a obra Quimera se configura
como um paradoxo e um portal para o prédio. A imagem/sombra se apresenta justamente no
espaço no qual em uma representação usual de uma lâmpada acesa veríamos a luz, mas,
entretanto, essa gota é totalmente preta, um paradoxo entre o claro/escuro. Essa lâmpada é icônica
e remete a iluminações artificiais, um objeto técnico para a iluminação.
A lâmpada incandescente reforça a gota negra, que se abre e se torna a entrada para um espaço
marcado pela luz solar, para o interior do prédio translucido. Lumen é marcado então tanto pelas
sombras usuais das estruturas de metal, acrescentadas pelas explosões em azul, quanto pela luz
solar filtrada e mascarada pelos adesivos.

4 x 2: Abstração e imaginação nas dimensões das imagens


Ao olharmos para as duas obras apresentadas, uma primeira relação que podemos buscar é o fato
de serem instalações artísticas, o que acarreta espaços físicos expositivos, e, aprofundando essa
relação, as duas obras trazem questões de arquiteturas geométricas, seja na torre comunicações


253

de metal ou no palácio histórico de vidro e metal. Tal observação está ligada também às sombras
desses edifícios e aqui se destaca essa passagem de tempo em um ciclo circadiano (de 24 horas).
Além disso, nas duas obras percebe-se o deslocamento solar juntamente com a interação do
próprio deslocamento das pessoas. Sendo que em Dynamic Crossings essa interação fica
diretamente atrelada ao interator para seu real funcionamento na criação dos grafismos pelo
software. Já em Lumen, a interação é mais sutil, pois independente da presença das pessoas, os
desenhos das sombras ainda iriam funcionar dentro da estrutura proposta pela artista, que está
mais ligada as movimentações no céu da cidade do que num sistema com o público.
A complexidade de cada obra pode ser abordada de diversas formas e as relações possíveis entre
elas são diversas, o que poderá gerar um outro texto, mas considerando a leitura aqui proposta,
iremos aproximá-las pelo pensamento das imagens técnicas, pensando como por mais diferente
que sejam essas instalações ambas partem de conceitos abstratos. Da medição e planificação do
edifício no caso de Lumen e da medição e criação de uma simulação virtual na Dynamic
Crossings.
A leitura proposta aqui, parte de conceitos apresentados por Vilém Flusser, em seu celebre livro
A Filosofia da Caixa Preta, 1983, comparando-o com outra obra do autor, O universo das
imagens técnicas: elogio da superficialidade, 1989. Essa relação das imagens técnicas com
conceitos teóricos se torna fundamental na aproximação de obras artísticas com formas de
medição, aqui trazendo a ideia metafórica de metrologia. Considerando esse ponto de partida, as
imagens técnicas seriam então aquelas criadas e mediadas por dispositivos técnicos, ou melhor,
estão atreladas a processos de conceituação, de texto, pensando os parâmetros de Flusser.
Relacionado com os conceitos da imaginação e da abstração de Flusser, destacamos a escalada
da abstração. Essa escalada seriam momentos que buscam conceitualizar as relações das formas,
com as quais cada tipo de imagem acaba sendo elaborado, seja uma imagem mais tradicional ou
uma intermediada por conceitos técnicos.
Flusser elabora uma estrutura de quatro gestos do corpo que simbolizariam esta escalada da
abstração, uma certa cristalização dos processos dessas imagens. Esses gestos seriam então: 1- o
avanço; 2-a visão; 3- a explicação contextual de visões, e 4 – o tatear.
O avanço, primeiro gesto, é a relação de sentir os objetos do mundo e os ambientes. É ao mesmo
tempo pensamento e ligação com a materialidade das coisas. Basicamente, sentir e perceber o
mundo e criar objetos a partir disso. O mundo concreto está em tato com o abstrato. Gesto
simbolizado pela “Mão”; A visão, segundo gesto, é a reveladora de contextos, representando uma
ligação sensória da imagem visual, em uma forma de reflexo do universo. Pela visão se percebe
o efeito da imagem, seu poder, sua circularidade que logo será transportada para uma lógica. O
concreto, em sinergia e sintonia com o abstrato, se transfere para a visualização, gesto
simbolizado pelos “olhos”; A explicação contextual de visões seria então o terceiro gesto, que é
a transformação da circularidade em uma lógica de começo/meio/fim, a estruturação da lógica. É
quando a abstração, que sai do concreto, funda a criação de uma cronologia que funciona por
ações de causa e efeito, por elementos que se juntam, mas que obrigatoriamente acontecem um
depois do outro, para finalmente se juntarem em uma ideia abstrata. Esse gesto é simbolizado
pelo “dedo”, que “aponta as conexões”; Apertar teclas, tatear, é o quarto e último gesto, e é um


254

símbolo na leitura de Flusser. São as teclas nas pontas dos dedos. Esse gesto é uma forma de
perceber o concreto, novamente acoplado ao abstrato, onde estão as máquinas, dispositivos e
aparelho que criam as imagens técnicas, entretanto, diferentemente do primeiro gesto, essa
ligação deriva de conceitos prévios, que é uma junção de diferentes materiais abstratos. Gesto
simbolizado pelas pontas dos dedos, ligar o interruptor.
O primeiro e o segundo gestos estão ligados às imagens de uma forma geral e tradicional, são a
percepção sensível do mundo concreto. Sua força é a percepção da vivência e deles foram geradas
inúmeras leituras e mundos. São deles que Flusser explora a ideia de Idolatria. “Idolatria:
incapacidade de decifrar os significados da ideia, não obstante a capacidade de lê-la, portanto,
adoração da imagem.” (FLUSSER, 2002, pg.5). Cultivar as imagens ao extremo, das do mundo
e as das ações que são sentidas nos corpos. Abstrato e concreto em um laço sincrônico extremo.
Os segundo e o terceiro gestos estão relacionados nas formas de desenvolvimento textual. Nos
quais a partir do mundo concreto (das sensações, dos ambientes etc.) os seres humanos criam
sentidos e significados que são cristalizados em palavras. Trilhando caminhos que buscam por
argumentos para os fatos, para os acontecimentos. Nesses gestos se destaca o texto. Conforme
explicita Flusser, o que seria então a supervalorização do pensamento textual é o conceito de
textolatria. “Textolatria: incapacidade de decifrar conceitos nos signos de um texto, não obstante
a capacidade de lê-los, portanto, adoração ao texto.” (FLUSSER, 2002, pg.5). O texto em si acaba
sendo uma forma de modelar a forma com que as pessoas pensam. Sua característica temporal
seria a anacrônica, pois a leitura faz uma ligação direta entre autoras e autores e leitoras e leitores
que não necessariamente estão no mesmo tempo. Embora anacrônico em sua leitura,
transpassando milênios entre leitores e autores, o texto tem como característica um tempo linear
– começo/meio/fim. A textolatria, é o momento no qual esses elementos chegam a um ponto que
tudo fica abstrato. No extremo do texto, o universo se define por conceitos, por ideias, teorias,
leis, até o ponto de se tornar pontos extremamente abstratos, postulados pré-estabelecidos, como
se fossem pontos soltos de virtualidade, como diz Flusser, sem ligação direta com o concreto,
com o mundo em si.
Se coloca aqui o quarto gesto, o qual invoca o primeiro, transpassando os outros dois. Este gesto
busca as sensações do concreto, está ligado com elementos perceptíveis nos órgãos sensórios dos
corpos, a luz se acende ao apertar o botão, as imagens aparecem na tela e na folha de papel. Porém,
também é extremamente abstrato, é o Salto da Abstração. Este gesto faz a volta para as imagens
perpassando o texto, ou melhor, perpassando os conceitos. Recordando que, para Flusser, ao
abordar a imagem, a forma de percebê-la é em um movimento circular, isso quer dizer então que
você tem um vaguear pela superfície da imagem. A ideia de Scanning “movimento de varredura
que decifra uma situação.” (FLUSSER, 2002, pg.5). Já ao abordar o texto, a forma de percebê- lo
é linear.
Considerando essa compactação da filosofia de Flusser, destacamos aqui um caminho que vai do
concreto, do objeto, junto ao abstrato, simbolizados pela idolatria. E outro caminho que vai do
abstrato, dos conceitos, para o objeto, a textolatria. Mas como essas relações se juntariam para a
elaboração de uma metáfora de metrologia que abarque leituras para obras artísticas tão
complexas quanto as trazidas nesse trabalho?


255

A imagem técnica é um híbrido de imagem com textos, com conceitos. Ela faz os concertos serem
perceptivos, concretos, um caminho no qual a imagem se faz por elementos abstratos que se
tornam concretos. É com a imagem técnica que surge a principal proposta de Flusser, a
necessidade de uma filosofia que aborde esses elementos que estão simbolizados pela fotografia
e que podem trazer novas estruturas para a forma de pensar e construir o mundo, uma filosofia
que trabalhe a superficialidade que permite a visualização de conceitos. Uma forma de usar esses
dispositivos de forma artística, criadora de narrativas.
Os dispositivos técnicos e as imagens técnicas, possuem uma forma concreta com suas próprias
dimensões, isso ocorre em Dynamic Crossings e em Lumen. O conceito de superficialidade é o
que possibilita a metáfora de metrologia, que seria uma análise desenvolvida das medidas de
medição do mundo, propostas junto com a nova filosofia à ser criada vislumbrada por Flusser.
A superficialidade, que aparece em “O Elogio da Superficialidade”, seria então, considerando
essa leitura feita de Flusser, um lugar ótimo para a fruição da imagem técnica. A superficialidade
não é a falta de complexidade, não são as análises rasas. A Superfície de uma imagem,
simbolizada por uma fotografia, por exemplo, é o lugar da percepção. Se você se aproximar
demais dessa fotografia, desse papel impresso, você começará a ver sua granulação, sua reticula.
Se você se distanciar demais, você verá borrões de cores, sua altura e largura. Caso se distancie
mais ainda, só verá um pedaço de papel. A superficialidade é um lugar, um lugar de percepção,
aqui proposta como uma unidade de medição.
Um cuidado necessário, ao dizer que a superficialidade seria um lugar, é afirmar que não estamos
sendo literais, nem que essa metrologia seria exata. Esse lugar seria um conceito que define uma
forma de olhar para as imagens feitas não só por dispositivos técnicos, mas também por artistas.
Esse lugar provavelmente está entre a textolatria e a idolatria de Flusser, o que acarreta os perigos
de uma e outra também.
A superficialidade é um elemento que permite a imagem técnica ser percebida. Dentro dos dois
livros de Flusser fica clara que a relação de trabalho, de criação, de dependência, com esses
dispositivos (câmeras fotográficas, por exemplo) podem ser negativas ou positivas, a questão de
sermos funcionários das máquinas e dos aparelhos é crucial. Mas a questão de o dispositivo
permitir o jogo entre quem está percebendo e as imagens, é um elemento diferencial no trabalho
deste filósofo. A superficialidade está nos dispositivos e no público nas duas obras apresentadas
aqui.

Metrologias
A leitura conjunta neste trabalho, juntamente entre as obras Dynamic Crossings e Lumen, se faz
principalmente pela proximidade de serem instalações artísticas, por trabalharem com a
iluminação atrelada ao ciclo solar, pela incorporação das sombras e dos deslocamentos do
público, pela relação direta entre estrutura arquitetônica e as imagens geradas. Tais relações entre
as duas obras são o que aqui propomos como uma metáfora de metrologia, que não se daria por
uma pura medição, mas pelos efeitos na percepção dos públicos, que surgem de todas as
dimensões da estrutura das obras, seja em relação a uma arquitetura existente ou a efeitos visuais
atrelados, por software na obra do Grupo Realidades, ou interação direta nos cálculos dos adesivos


256

colados de Regina Silveira. Uma medição antropomórfica que busca as experiências como
unidades de medida, dentro de obras que se configuraram a partir de influências de formalização
de conceitos.
A Metrologia é a ciência dos estudos das medições, abrangendo aspectos das práticas dos campos
das ciências e tecnologias e que se associam com necessidades de medições, geralmente atreladas
com pesquisas, meios de produção e de trabalho. Sendo assim, a Metrologia traz tanto aspectos
teóricos quanto práticos. Na maioria dos casos, essa ciência é deixada distante do campo artístico,
embora a observadora ou o observador encontre facilmente relações práticas nas diversas
linguagens artísticas, em suas obras e seus questionamentos.
Na maior parte de sua história, a humanidade utilizou as partes do corpo humano para referenciar
medidas. Atualmente ainda existem unidades de medidas usuais que possuem esse caráter, como
por exemplo as polegadas, a jarda, entre outras. As formas de pesos e medidas são manifestações
de conceitos, ideias e principalmente de convenções sociais, atrelada a questões econômicas e
políticas.
Mesmo quando a relação entre medidas era feita a partir de partes humanas, essas partes estavam
ligadas com questões de poder e organização social, isto é, eram referências diretas aos corpos
dos nobres, como por exemplo do rei. Essa relação de poder acarretava grandes diferenças nas
medidas de uma região para outra, as fronteiras geográficas se atrelavam a essas relações.
Ao se observar as relações das formas de medidas, podemos considerar algumas mais ligadas a
imagens, essas seriam as unidades relacionadas diretamente com o corpo humano, associando
então com a ideia de idolatria de Flusser. Outras mais relacionadas a conceitos, textos, essas
seriam as unidades utilizadas principalmente após a Convenção do Metro formalizada em Paris,
em 20 de maio de 1875, criando a Conferência Geral de Pesos e Medidas (CGPM) e o Bureau
Internacional de Pesos e Medidas (BIPM), seriam dimensões da textolatria.
Ao observar a complexidade das quatro dimensões citadas por Flusser (altura, largura,
profundidade e tempo), é possível ver um panorama histórico muito grande das diversas unidades,
ainda mais considerando questões político-sociais imbricadas em suas escolhas. Mas aqui, para
colaborar com a leitura das obras trazidas é importante ver como a conversão dessas dimensões
estão próximas e que as imagens técnicas são aquelas que surgem a partir de conceitos, mas que
possuem o efeito de uma imagem, rompendo com a linearidade lógica do texto.
As obras Dynamic Crossings e Lumen ao considerarmos suas formas de experimentação, trazem
para as medidas da arquitetura dos locais e da sensorialidade do tempo uma terceira forma de
medir o mundo, pela qual considera a experiencia de quem percebe a obra, relacionado com as
formas de criação destas, mas que em certa medida estão ligadas com conceitos preestabelecidos
(de arquitetura, ciência, engenharia e arte).
Tal proposição de uma metrologia da experiencia, no pensamento e na criação de obras artísticas,
ainda é muito recente e precisa de mais trabalho, principalmente que considerem as questões da
dimensão temporal. Sendo assim, este primeiro texto apenas apresenta as duas obras e propõem
a ligação entre elas e a filosofia de Flusser, com os diversos elementos apontados, e
principalmente a ideia de abstração. Entretanto há a necessidade uma maior especificação dos
panoramas e das origens das unidades de medidas citadas, que será feita posteriormente.


257

Referências:
INMETRO. Vocabulário Internacional de Metrologia: Conceitos fundamentais e gerais e termos
associados (VIM 2012). Duque de Caxias, RJ: INMETRO, 2012. Acesso em 25/10/2020.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo:
Annablume, 2008NANOARTE
https://videos.bol.uol.com.br/video/regina-silveira--lumen-0402193564D0B14366 Acesso em
25/10/2020.
http://www.inmetro.gov.br/inovacao/publicacoes/vim_2012.pdf. Acesso em 25/10/2020.

https://reginasilveira.com/LUMEN. Acesso em 25/10/2020. https://www.gov.br/inmetro/pt-


br/assuntos/metrologia-cientifica/metrologia-cientifica-e-tecnologia-2013-
laboratorio-nacional-de-referencia-metrologica-do-brasil. Acesso em 25/10/2020.
http://www2.eca.usp.br/realidades/pt/obras/dynamic-crossings-isea-2017/, acesso em
20/10/2020.


258

Design de interfaces: desenvolvimento e aplicação de metodologias projetuais de ensino


baseadas em experiências cotidianas

Diseño de interfaces: desarollo y aplicación de metodologias proyectuales de educacion


basadas en experiências cotidianas

Nicolas Andres Gualtieri108

Resumo
O homem como individuo, em interação com seu entorno encontra-se constantemente estimulado pelas
interfaces de usuário mediadas pelas tecnologias. Entender esse processo exige uma reflexão a respeito do
ensino, esse ensino que nos abre portas para o presente e o futuro das nossas interfaces. No decorrer dos
últimos anos como professor de design de interfaces na UFG compreendi que os processos projetuais de
design de interfaces estão totalmente vinculados aos da cultura visual, e também àqueles das experiências
cotidianas dos alunos com os meios tecnológicos e as interfaces com as quais eles interagem. Isso determina
novos processos metodológicos de ensino que buscam trazer as experiências cotidianas para estimular os
alunos e produzir projetos que os atravessem como futuros profissionais do campo. Compartilho, nesse
artigo metodologias, experiências e resultados, quando, desde o ensino, começamos a produzir as interfaces
que fazem parte do nosso cotidiano.

Palavras-chave: interfaces, design, cultura visual, metodologias projetuais, ensino, experiências

Resumen
El hombre como individuo, en interacción con su entorno, es constantemente estimulado por interfaces de
usuario mediadas por tecnologías. Comprender este proceso requiere una reflexión sobre la enseñanza
que nos abre puertas para el presente y el futuro de nuestras interfaces. En los últimos años como profesor
de diseño de interfaces en UFG, entendí que los procesos de diseño de interfaces están totalmente
vinculados a los de la cultura visual y también a las experiencias cotidianas de los estudiantes con los
medios tecnológicos y las interfaces con las que interactúan. Esto determina nuevos procesos
metodológicos de enseñanza que buscan traer experiencias cotidianas para estimular a los estudiantes y
producir proyectos que los atraviesen como futuros profesionales. En este artículo, comparto
metodologías, experiencias y resultados cuando, desde la enseñanza, comenzamos a producir las interfaces
que forman parte de nuestro dia a dia.

Palabras clave: interfaces, diseño, cultura visual, metodologias proyectuales, enseñanza, experiencias

Introdução

Diariamente narramos histórias, histórias que começam como resultado de lembranças emotivas
que são muito significativas para nós (DEWEY, 1967). Da mesma maneira, algumas pesquisas
surgem a partir das experiências pessoais, em diversos campos do conhecimento, que nos
marcam, inquietam e falam a respeito de nós porque "nossas formas são o conteúdo da nossa


108
Nicolás Andrés Gualtieri – Argentino, com Bacharel em Design Gráfico e Comunicação Visual pela
FADU/UNL (Argentina), Especialista em História e Narrativas Audiovisuais pela FH-UFG, Mestre e
Doutorando em Arte e Cultura Visual pela FAV-UFG. Atualmente professor do Curso de Design Gráfico
na FAV-UFG e Diretor de Arte em Box comunicações / E-mail: nicoagualtieri@gmail.com


259

existência, assim como os discursos e realizações simbólicas que preferimos e promovemos


cotidianamente dão a forma a nossas imagens" (VICTORIO FILHO; CORREIA, 2013, p.50).
Trabalhando como diretor de arte, ao longo de 4 anos no Centro Integrado de Aprendizagem em
Redes da Universidade Federal de Goiás (CIAR/UFG), me adentrei no mundo da Educação a
Distância (doravante EAD) e principalmente na produção de objetos de aprendizado. Junto aos
meus colegas, participei do desenvolvimento de plataformas e materiais gráficos e audiovisuais
na procura de contribuir com uma maior qualidade e mais possibilidades de acesso aos diferentes
níveis de ensino.
Uma questão recorrente e bem debatida com meus colegas, ao longo desses anos de trabalho no
CIAR/UFG, foi perceber que muitas das plataformas utilizadas para ensino possuíam problemas
estruturais pela falta de atualização das interfaces. Por momentos, os espaços digitais não
consideravam muito as experiências dos usuários e muito menos a relação que eles estabeleciam
com essas plataformas nos contextos do cotidiano. Tem estudantes que acessam desde diversas
plataformas, suportes e espaços. Variando de celular para computador fixo, realizando uma leitura
focada no conforto do lar, uma leitura dinâmica mais interativa em um polo de aprendizado ou
adiantando leituras no percurso que o ônibus faz de um ponto da cidade a outro.
A falta de intuitividade das plataformas, a antiguidade dos recursos para indicar novas
ferramentas, a falta de acessibilidade, dentre outros, são levantamentos e reclamos recorrentes
dos estudantes. Isso nos faz refletir sobre como estamos desenvolvendo nossas interfaces, e mais
ainda, de que maneira os designers e desenvolvedores pensam a interação dos usuários com essas
interfaces. Considero esse processo instigador, me fazendo refletir a respeito do ensino desses
profissionais que desenvolvem as imagens e interfaces que consumimos e utilizamos para nos
comunicar, mediar, ensinar e apreender.

Desenvolvimento

Foi esse o desafio que aceitei quando, como professor substituto no ano de 2019, ministrei a
disciplina de Design de Interfaces no curso de Design Gráfico modalidade presencial da
Universidade Federal de Goiás. O design de interfaces é uma das áreas mais complexas do design
de comunicação visual. É uma disciplina dos últimos períodos do curso porque precisa do
conhecimento prévio de disciplinas mais complexas. Nesse ponto do curso, os conhecimentos do
profissional são direcionados para o desenvolvimento de ferramentas acessíveis e intuitivas que
priorizam o design de experiência de usuário e sua navegabilidade. Como mencionei
anteriormente, esses conceitos formam parte dos reclamos recorrentes dos estudantes da EAD.


260

Ao longo dos meus estudos de doutorado em Artes e Cultura Visual na Faculdade de Artes Visuais
da Universidade Federal de Goiás, recorri a autores de referência como Aguirre (2009) ou
Miranda (2013) que apresentam a necessidade de metodologias e dinâmicas de ensino que
dialoguem com o quotidiano dos estudantes (ALVES, N. 2003). Por momentos parecia um olhar
afastado e difícil de trazer para a sala de aula, quando em verdade, ele já estava inserido, só que
não conseguia visualizá-lo.
Uma vez que somos provocados pelos estudos da cultura visual (MIRANDA F., 2013), não
podemos negociar a sua participação no nosso cotidiano. Atravessa-nos de tal forma que
desarticula e propõe intervenções nas nossas metodologias, dinâmicas e processos. Foi isso o que
aconteceu comigo ao longo desse percurso como pesquisador. Quando iniciei o meu caminho
como professor substituto, tentei desconstruir, ao longo das aulas e disciplinas, muitos processos
que carregava comigo.
Tendo em vista as abordagens da cultura visual e a minha experiência no campo do
desenvolvimento dos materiais para EAD, propus como avaliação da disciplina um trabalho
integral que constava em desenvolver a interface digital de um projeto. Num primeiro momento
seria no formato web de desktop e posteriormente se realizaria a adaptação para algum dispositivo
móvel pensando no formato de aplicativo. Entendendo que na versão desktop a interface contaria
com uma série de funções que na modalidade móvel não teria e vice-versa. A projeção de uma
identidade visual flexível possibilitaria também a adaptação tanto do visual quanto das funções
correspondentes específicas para cada dispositivo.
A escolha da temática e a abordagem na pesquisa foi o que trouxe um verdadeiro desafio para os
estudantes. Deviam elaborar uma proposta de interface inovadora a partir de necessidades e usos
quotidianos. Isso fez com que eles repensassem as atividades que a diário desenvolviam. Eles
deviam também compreender de que maneira uma interface poderia propor soluções ou estimular
novas interações.
Assim, tendo como base as metodologias projetuais de design (MUNARI, 1981), as diretrizes das
metodologias ativas (COHEN, M. 2018) e as abordagens do cotidiano apresentadas pelo campo
das artes e da cultura visual, desenvolvi processos flexíveis nos quais os alunos perceberam
carências de interfaces em espaços onde atualmente não existiam ou não tinham sido pensadas.
A continuação, narrarei alguns resultados obtidos nesse processo.

Sabemos que alguns estudantes universitários procuram moradia perto dos Campus de ensino e
que buscam também gerar uma rede de pessoas próximas para poder sentir segurança nos espaços
onde moram e convivem. Foi essa a proposta de uma das equipes que trouxe a problemática para
o desenvolvimento das interfaces. Conceitos, ferramentas de usuário e até as relações
morfológicas, giraram entorno de oferecer um espaço agradável e seguro para que os estudantes,
que deixam seu lar familiar, encontrem mediante a interface um espaço de contenção na procura


261

desse novo lar. Como dado, é importante destacar que todos os membros da equipe passaram pela
experiência de procurar espaços onde morar, trazendo suas problemáticas como soluções na
interface desenvolvida.

Figura 1 – Layout da plataforma de aluguel desenvolvida pela equipe. Fonte: Imagem cedida pelos
alunos a partir de termo TCLE.

Outra das equipes, considerando a possibilidade de jornalismo cidadão, propus uma interface para
realizar reclamações de situações de infração no trânsito. Utilizando a plataforma os usuários
disponibilizariam fotos, informações e reclamos para ajudar na regulação do sistema de trânsito
na cidade, gerando uma parceria com o Departamento Estadual de Trânsito de Goiânia. O
resultado é um sistema gamificado (MATTAR, 2010) que dialoga com a necessidade cotidiana
dos alunos de se manifestar frente a determinadas situações em prol de um melhor convívio.


262

Figura 2 – Layout da plataforma de notificações de infração de transito. Fonte: Imagem cedida pelos alunos
a partir de termo TCLE.

Outra das propostas inspiradas no cotidiano tem a ver com uma interface de receitas e culinária.
Os alunos apresentaram o contexto dos estudantes que, uma vez que deixam a casa familiar
precisam se desenvolver sozinhos nas tarefas de casa, isso inclui a culinária, resolvendo o almoço
e a janta com aquilo que tem na geladeira.
Portanto, desenvolveram uma plataforma com caraterísticas visuais similares aos de uma
geladeira onde, registrando os elementos que fisicamente eles possuem nas casas a plataforma
disponibiliza receitas para evoluir no nível culinário. O sistema propõe receitas saudáveis,
econômicas, rápidas ou mais elaboradas, dependendo o interesse do usuário. Ferramentas de
múltiplas escolhas, categorias e subcategorias, contagens regressivas e até passo a passo nas
versões portáteis caracterizaram esse projeto, cuja ideia nasce diretamente da cozinha dos alunos.

Figura 3 – Fluxograma da plataforma de gerenciamento de alimentos. Fonte: Imagem cedida pelos alunos
a partir de termo TCLE.


263

A alimentação parece ser um tópico recorrente e essencial dentre os estudantes, ao ponto de


termos um último projeto também direcionado para essa área. Com viés totalmente diferente ao
anterior, essa última proposta trabalha com o tédio dos alunos por cozinhar e levar uma
alimentação saudável. Partindo dessa base é proposta uma gamificação que permite envolver ao
usuário de maneira mais lúdica a partir de missões, níveis que permitem acesso a novos conteúdos
e uma estrutura de navegabilidade extremamente intuitiva para deixar mais leve o processo de
elaboração dos alimentos. A proposta, nascida das experiências dos alunos do time, abraçou os
elogios da turma toda por abordar uma problemática recorrente ante a falta de tempo por conta
das exigências da vida universitária.

Figura 4 – Layout da interface desenvolvida para ensino de culinária. Fonte: Imagem cedida pelos alunos
a partir de termo TCLE.

Os projetos foram apresentados em instância avançada e passaram pela avaliação de diferentes


usuários. Posteriormente, disponibilizaram os manuais de criação e materialização, alguns desses
projetos encontram-se já em instâncias de programação.
Acredito que, mediante esses exemplos, podemos pensar de maneira indireta saídas ou soluções
alternativas para as problemáticas que enfrentam os alunos da EAD nas plataformas de ensino.
A procura de soluções de interfaces para problemas do dia a dia nos ajudam a nos posicionarmos
no lugar do outro, trazendo um lado mais humano, compreensivo e ao mesmo tempo com foco
no acesso. Contribuindo também para desmitificar que todo objeto didático ou interface acessível
não pode ser visualmente agradável.


264

Considerações Finais

O processo desenvolvido pode parecer isolado por momentos, mas compreender a necessidade
de abordar os problemas cotidianos dos alunos e consequentemente dos alunos que participam da
Educação a Distância nos permite refletir e procurar soluções aos questionamentos que
recorrentemente ouvimos deles a respeito das interfaces educativas.
Projetar alternativas de interface para outros problemas cotidianos pode ajudar a pensar em novas
ferramentas ou opções para as plataformas de ensino. Nos permite brincar e pensar nas diferentes
navegabilidades, construções de menus ou alternativas de acessibilidade. Também poder pensar
a respeito dos recursos de gamificação na procura de novas estratégia de engajamento e motivação
na educação. Inclusive, pensar em funções variáveis dependendo do dispositivo utilizado,
determinando quais atividades requerem mais tempo e atenção, e quais podem ser desenvolvidas
ao longo do dia enquanto o estudante realiza outros afazeres.
O atual contexto de pandemia do COVID-19 nos colocou em uma posição de pensar mais ainda
sobre as maneiras em que nos relacionamos e vinculamos com as interfaces. Trazendo
questionamentos como: qual é o objetivo do desenvolvimento de uma interface? Que atividades
são realizadas a diário pelos nossos usuários? Desenvolvemos interfaces para serem utilizadas em
quais contextos? De que maneira essas interfaces se relacionam com o nosso cotidiano? Por que
interfaces de outros sistemas de comunicação por momentos possuem resultados visuais ou
interativos mais efetivos que algumas plataformas de ensino?
Acredito que se desenvolvemos melhores interfaces e plataformas de interação conseguiremos
aproximar as pessoas e o conhecimento, sem necessidade de entrar em conflito com suas rotinas
ou estilos de vida. Fazendo do processo de aprendizado uma interface que nos atravesse
constantemente ao ponto que nos permita relacionar o apreendido com a realidade palpável do
dia a dia.

Referências
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MARTINS, R. Educação da cultura visual: narrativas de ensino e pesquisa. Santa Maria, RS:
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3, p. 189 – 200 | ISSN 1808-5377, 2012
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metodológicos da investigação na cultura visual: seria possível metodologizar o
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(Orgs.). Processos & práticas de pesquisa em cultura visual & educação. Santa Maria: Ed. da
UFSM, 2013, p. 49-60.


266

Tipografia nos títulos e créditos de filmes em realidade virtual

Typography in virtual reality movie titles and credits

Nelson Caramico109
Suzete Venturelli110

Resumo

Este artigo apresenta a evolução do motion graphics em que imagens e textos são apresentados
em movimento, inicialmente no cinema em aberturas de filmes, títulos e créditos, depois na
televisão. A moldura fixa da tela bidimensional mudou com o desdobramento da linguagem
fílmica em ambientes de imersão de realidade virtual para o vídeo 360º, imagem tridimensional
que envolve o observador que escolhe para onde vai olhar. O ambiente de imersão é explicado
nos pontos de vista da tecnologia e percepção do observador, com óculos de realidade virtual. O
foco principal é a tipografia em filmes convencionais e a variação para ambientes tridimensionais.
São abordados a legibilidade e unidades de medida para textos em movimento em ambientes de
vídeo 360º.

Palavras-chave: Tipografia, realidade virtual, design, motion graphics.

Abstract

This paper presents the evolution of motion graphics in which images and texts are presented in
motion, initially in the movie openings, titles and credits, then on television. The fixed frame of
the two-dimensional screen has changed with the unfolding of film language in virtual reality
immersion environments for 360º video, a three-dimensional image that involves the viewer who
chooses where to look. The immersion environment is explained from the point of view of
technology and perception of the observer, who uses virtual reality glasses. The main focus is
typography in conventional films and variation for three-dimensional environments. Readability
and units of measurement for moving texts in 360º video environments are addressed.

Keywords: Typography, virtual reality, design, motion graphics.

Introdução
As tecnologias de realidade virtual vêm sendo aperfeiçoadas e se tornando mais populares com
os óculos de realidade virtual que possibilitam experiências em que o observador é envolvido em
ambiente de imersão imagético e atualmente os criadores de conteúdos para videogames,
maquetes arquitetônicas, simuladores, filmes e animações estão voltados também para essas
tecnologias que exigem abordagem diferente na concepção de interfaces. O presente artigo
apresenta alternativas de apresentação de grafismos e principalmente tipografia em vídeos ou


109
Universidade Anhembi-Morumbi, Rua Jaceru, 247 – São Paulo – SP - CEP: 04705-000
nelsoncaramico@gmail.com.
110
Universidade Anhembi-Morumbi, Rua Jaceru, 247 – São Paulo – SP - CEP: 04705-000
suzeteventurelli@gmail.com.


267

animações exibidos através de óculos de realidade virtual, alternativas de visibilidade e


legibilidade no design de títulos e créditos dentro da linguagem de motion graphics, modalidade
de design gráfico, originalmente aplicado em aberturas, títulos, créditos e legendas nos filmes,
animação e televisão, combinação de grafismos e texto na dimensão do tempo dentro de uma
moldura definida pela tela. Quando se aplica o motion graphics para vídeo 360º, em ambiente de
imersão, com óculos de realidade virtual, não existe a tela delimitada pelo quadro e nem a leitura
em sequência linear porque o espectador está envolvido pela imagem por todos os lados e pode
escolher para onde vai olhar assim como se olha uma pintura e dentro dessa diferença, o presente
artigo propõe alternativas de apresentação de grafismos, principalmente a tipografia.

Motion Graphics, aberturas, títulos e créditos

Para Yael Braha e Bill Byrne (2011), o propósito dos títulos é apresentar o nome do filme e
creditar o elenco e equipe. Louis Dorfman (1976), no livro “Film & TV Graphics 2”, explica que
Saul Bass foi responsável pelo desenvolvimento do design de títulos e aberturas de filmes que
são como capas de livros que convidam o leitor para o conteúdo interno. O correspondente na
televisão, a vinheta de abertura, é sinal de reconhecimento do espectador do programa a ser
exibido: “Vai começar meu programa favorito”. (1976, p.212).
No livro “Film & TV Graphics”, John Halas (1976), afirma que: “Cinema e televisão penetram
em todas as áreas da comunicação, do entretenimento à ciência, da educação à publicidade”.
(1967, p.8). Para Halas (1967, p. 134) a abertura do filme “estimula o interesse do público, define
a atmosfera geral, estabelece o estilo e clarifica o conteúdo da estória, apresentando referências
abstratas e simbólicas aos elementos do filme”.
Podemos associar a abertura de um filme, como sendo um ponto de entrada que o espectador
continue assistindo o filme, descrito por William Lidwell, Kristina Holden e Jill Butler (2010) no
livro Princípios Universais do Design:

As pessoas realmente julgam os livros pela capa, os sites da Internet


pelas primeiras páginas, e os prédios pelas recepções. A primeira
impressão de um sistema ou ambiente tem uma grande influência sobre
as percepções e as atitudes subsequentes, o que afeta a qualidade das
interações posteriores. Essa impressão é formada principalmente no
ponto de entrada do sistema ou ambiente. (LIDWELL, HOLDEN e
BUTLER, 2010. p. 80).

Jon Krasner (2008) cita frase de Paul Rand: "Design gráfico é pintura com tipografia." (2008, p.
185). A tipografia é fundamental para reforçar mensagens em design gráfico. A combinação de
imagens e tipografia que adiciona o recurso da linguagem verbal e o acréscimo de movimento
define o termo motion graphics. A tipografia cinética explora a visualização "em tempo real" das


268

propriedades fonéticas da linguagem falada, como espontaneidade, entonação etc. Para Paul
Rand, às vezes o tipo não é entendido como texto, mas como imagem que cria experiências
semióticas complexas por meio de metáfora e movimento.

Fomos condicionados a ver tipografia como sendo distinta das


imagens. Um dos segredos do design inovador é considerar os
elementos de texto como figuras puras constituídas de formas positivas
e negativas. A escolha de tipos que expressem adequadamente a
mensagem também é fundamental para alcançar uma comunicação
eficaz. Compreender a anatomia básica dos tipos e classificações
gerais de fontes oferece uma apreciação pela integridade do design do
tipo de letra e facilita a identificação e seleção de fontes para tomar
decisões de design com propósito. (KRASNER, 2008, p. 200).

Flusser explica a importância do posicionamento do espectador diante da tela de cinema e como


a disposição das poltronas impõem o ponto de vista favorável ao entendimento do filme

O ponto de vista é estabelecido a partir de uma poltrona no cinema. Se


nos sentarmos nela, poderemos ler o que o filme quer dizer. Se nos
recusarmos a sentar e aproximarmos da tela, veremos pontos de luz
destituídos de significado. Uma vez sentados na poltrona, não teremos
problemas: "saberemos" o que o filme significa. (FLUSSER, 2013, p.
114).

No filme em realidade virtual o espectador não escolhe a poltrona, ele está posicionado no centro
do ambiente, em primeira pessoa, e poderá ver imagens em todas as direções, diferentemente do
espectador da poltrona de cinema.

Motion graphics combina textos e imagens em movimento, Para Vilén Flusser os textos são
códigos conceituais que precisam ser aprendidos para serem decodificados e nos levam a um
ponto de vista objetivo, enquanto as imagens, códigos imagéticos nos levam a um ponto de vista
subjetivo com base em convenções que não precisam ser aprendidas.

Por outro lado, ao lermos um jornal, não precisamos aceitar o ponto


de vista que tentam nos impor. Se soubermos o que a letra "a" significa,
não importa o modo como a olhamos, ela sempre terá o mesmo
significado. Mas não poderemos ler o jornal se não tivermos aprendido
o significado dos símbolos ali impressos. Isso demonstra a diferença
entre a estrutura dos códigos conceituais e imagéticos e suas
respectivas decodificações. Códigos imagéticos (como filmes)
dependem de pontos de vista predeterminados: são subjetivos. São
baseados em convenções que não precisam ser aprendidas
conscientemente: elas são inconscientes. Códigos conceituais (como
alfabetos) independem de um ponto de vista predeterminado: são
objetivos, são baseados em convenções que precisam ser aprendidas e


269

aceitas conscientemente: são códigos conscientes. Portanto, a ficção


imaginativa relaciona-se com os fatos de um modo subjetivo e
inconsciente, e a ficção conceitual faz o mesmo de maneira objetiva e
consciente. (FLUSSER, 2013, p. 114).

A configuração da tipografia na tela com imagem em movimento depende da função do texto na


narrativa, Yael Braha e Bill Byrne (2011), conforme nossa tradução, definem a terminologia dos
títulos e créditos de filmes, Figura 1:

Figura 1: Títulos e créditos. Fonte: Creative Motion Graphic Titling for Film, p. 31.

1. Cartão de título único, usado na abertura para exibir o nome dos atores principais e pessoas
criativas do filme (diretor, produtor, roteirista, diretor de fotografia, compositor).
2. Cartão de título duplo com dois créditos, normalmente usado para exibir os nomes dos atores
coadjuvantes e de pessoas criativas adicionais.
3. Cartão de título triplo que contém três créditos, usado para exibir os nomes de atores
coadjuvantes adicionais.
4. Cartão de título múltiplo, contém mais de três créditos com nomes de atores ou extras.
5. Cartão de título principal que exibe o título principal do filme.
6. Títulos de rolagem que se movem sequencialmente dentro do quadro, usados como títulos
finais. Repetem os créditos dos títulos de abertura e depois, exibem os nomes dos integrantes do
elenco, equipe técnica, trilha sonora, aluguel de equipamentos, locações, etc.
7. Título colocado no terço inferior da tela, geralmente usado para exibir o nome da pessoa que
está sendo entrevistada ou um local.


270

8. Legendas na parte inferior da tela ou na parte superior da tela (para não cobrir informações
importantes). Usadas para traduzir diálogos em outro idioma.
9. Intertítulos ou cartelas exibem a hora, local, prólogo ou citações. Os intertítulos foram muito
usados no cinema mudo para apresentar diálogos ou informações complementares.

Yael Braha e Bill Byrne (2011) continuam explicando que a leitura do texto na tela é reforçada
pelo tipo de letra, tamanho da fonte, cor, contraste e com o fundo. A legibilidade é um aspecto do
design que não deve ser ignorado. No texto em movimento, a legibilidade depende da posição do
espectador e de seus movimentos de cabeça e olhos. O cone da visão do espectador deve ser
levado em conta para leitura das linhas de texto. O cone de visão, diante de uma tela plana, varia
entre 30 e 60 graus de ângulo total. Em um cone de visão de 30 graus, o espectador vê 15 graus
com cada olho. Um espectador sentado mais próximo da tela precisará de um cone de visão mais
amplo para detectar toda a superfície da imagem, fará movimentos dos olhos e da cabeça para
acompanhar as imagens e os textos em movimento, a ação e o tipo na tela. Um espectador sentado
na última fila precisará de um cone de visão mais estreito; com menos movimentos de cabeça e
olhos e maior facilidade para decifrar as informações na tela. O conteúdo principal das imagens
deve ser colocado dentro de uma margem de segurança, que corresponde 90% da área da tela e
em 80% no caso dos textos.

Tipografia em vídeo 360º

Jason Jerald (2016) define o ambiente real como o mundo real em que vivemos, realidade
aumentada (RA) que acrescenta elementos ao mundo real já existente, virtualidade aumentada
(VA) como sendo resultado da captura de conteúdo do mundo real e inserção desse conteúdo em
realidade virtual e ambientes virtuais criados artificialmente sem capturar nenhum conteúdo do
mundo real. Define o termo presença como a sensação de "estar lá" dentro de um espaço, quando
fisicamente localizado em um local diferente.
Para Anastasiia Ku (2018) imersão é a percepção de estar fisicamente presente em um mundo
não-físico. A imersão pode ser dividida em 4 categorias: imersão emocional (narrativa), quando
o espectador é envolvido em uma história ao ler um livro ou assistir um filme; imersão espacial,
quando o espectador sente que realmente está em um ambiente simulado que parece real; imersão
sensório-motora, relacionada às ações baseadas no ritmo, o que por natureza implica repetição,
ligadas a alguns estímulos baseados em ritmo e feedback sensorial, como a música de fundo ou a
apresentação visual de elementos de um jogo; imersão cognitiva (estratégica), associada ao
desafio mental. Os jogadores de xadrez, por exemplo, experimentam imersão cognitiva ao
escolher uma solução correta entre uma ampla gama de possibilidades, neste contexto da
Realidade Virtual, os espectadores ficam imersos em um cenário baseado em objetivos. Para


271

Oliver Grau (2007) imersão é um mundo artificial em que o observador é totalmente envolvido
pelo espaço imagético. Figura 2.

Figura 2 – Campo de visão esférico. Desenho de John Boone.


Fonte: Arte virtual da ilusão à imersão, p. 31.

Para maior imersão, é recomendado assistir vídeo 360º vestindo um óculos de realidade virtual,
HMD (Head-Mounted Displays). Com os óculos é possível a utilização de hápticos, dispositivos
que permitem a interação e simulação de forças artificiais entre objetos virtuais e o corpo do
observador. Segundo Jonathan Tustain (2019), o vídeo 360º deriva de uma imagem plana
produzida a partir de diversos ângulos da câmera a partir de um ponto de vista fixo e costurada
por meio de vários tipos de mapeamento. O mapeamento de projeção equirretangular, Figura 3, é
uma técnica “inventada por cartógrafos gregos há mais de dois mil anos” (2019, p. 44), até hoje
utilizada para representar uma superfície esférica em planos como nos mapas mundi. A projeção
de mapa em cubo, Figura 3, é utilizada nos videogames desde os anos 1980 e atualmente pelo
Facebook 360. Esse formato “não distorce a imagem nem contém pixels redundantes, e ainda
consegue economizar no tamanho do arquivo.” (2019, p.44). É “uma esfera dividida em seis
partes iguais projetadas sobre as faces de um cubo.” (2019, p.44).


272

Figura 3 – Projeção equirretangular e projeção de mapa em cubo.


Fonte: Tudo sobre Realidade Virtual, p. 44.

Segundo Jonathan Tustain (2019), no Vídeo 360º o espectador tem a sensação de estar presente
em lugares diferentes dos da vida real, podendo olhar em várias direções e os atores podem falar
diretamente com ele. Imagens e vídeos 360º envolvem o espectador em todas as direções para
que ele possa mover a cabeça para onde desejar, mas é preferível localizar os elementos principais
da cena em um ângulo de 180º diante do espectador porque na vida real não gostamos de virar a
cabeça. Para Ryan Betts (2016) é difícil a obtenção de foco em objetos a menos de 0,5 metros de
distância e o que estiver a mais de 20 metros de distância perderá a ilusão de profundidade em
3D. Figura 4.


273

Figura 4 – Betts, R. Pratical VR - A Design Cheet Sheet


https://virtualrealitypop.com/practical-vr-ce80427e8e9d. Acesso em 01/11/2019.

A sequência de imagens no filme convencional forma uma narrativa linear, por ser emoldurado
em tela fixa, no caso do vídeo 360º a moldura não é estabelecida, o espectador faz a leitura da
imagem de acordo com pontos de interesse como se estivesse vendo uma pintura. Para Flusser
(2013), a leitura de um filme acontece com tempo linear em que os fotogramas aparecem em
sequência, tempo de captação da imagem similar ao tempo de leitura de pinturas e tempo
relacionado com a história contada no filme, Flusser ressalta que existem outros níveis de tempo
mais complexos. A leitura linear de um filme pode ser comparada à leitura de um texto escrito
mas para Flusser existem diferenças.

Podemos visualizar essa diferença facilmente. Ao lermos as linhas


escritas, estamos seguindo, "historicamente", pontos (conceitos). Ao
lermos os filmes, estamos acompanhando, "historicamente",
superfícies dadas (imagens). A linha escrita é um projeto que se dirige
para a primeira dimensão. O filme é um projeto que começa na segunda
dimensão. Mas se entendermos "história" como um projeto em direção
a alguma coisa, torna-se óbvio que, na leitura de textos, "história"
significa algo bem diferente do que significa na leitura de filmes.
(FLUSSER, 2013, p. 107).

Segundo The Ultimate Guide to 360 Video Production, da Samsung, em vídeo 360º o espectador
fica diante da perspectiva da visão panorâmica a partir de sua localização, diferentemente do filme
convencional emoldurado em uma área fixa. Cada cena tem um ponto de entrada: primeira visão
do espectador, portanto é importante definir a posição da câmera, por onde o espectador vai olhar


274

e interagir com a cena. A câmera deve permanecer de preferência estática, porque câmera em
movimento pode provocar enjôo. É importante manter uma distância mínima entre a câmera e os
elementos fotografados para garantir um nível de conforto de visão binocular111. A distância
mínima também é importante para a narrativa, o espectador pode ser incomodado com o
sentimento de intimidade de um rosto de um ator a 30 centímetros. Por seu aspecto tridimensional,
podemos associar o vídeo 360º com uma peça teatral, com a diferença que em um vídeo 360º o
espectador está no centro do palco e não como espectador em quarta parede112, mas as imagens
apresentadas em realidade virtual não são a representação do mundo das coisas por meio das
próprias coisas como acontece no teatro e sim uma sequência de imagens bidimensionais que
parecem ser tridimensionais quando exibidas com o uso dos óculos HMD. Flusser faz a
comparação entre cinema e teatro.

...uma vez que o palco tem três dimensões e que podemos caminhar
dentro dele; a tela de cinema é uma projeção bidimensional, e nunca
poderemos adentrá-la. O teatro representa o mundo das coisas por
meio das próprias coisas, e o filme representa o mundo das coisas por
meio da projeção das coisas; a leitura de filmes se passa no plano da
tela, como nas pinturas. (FLUSSER, 2013, p. 107).

Ryan Betts (2016) argumenta que na tela bidimensional, você escolhe o tamanho do tipo e espera
que o observador se aproxime ou se afaste para ler o conteúdo. Em realidade virtual, o tamanho
do tipo precisa ser definido de acordo com a distância. Se o tipo estiver muito próximo, o
observador precisará cruzar os olhos. Se o tipo estiver muito distante, o conteúdo pode não ser
visto como importante.
Volodymyr Kurbatov (2017) estabelece 10 regras de uso de foutloontes em realidade virtual:
1. Medidas usadas em telas planas (pixels, ems) não funcionam em realidade virtual. O tamanho
percebido pelo observador é medido em graus.
2. Posição e rotação são importantes em realidade virtual. O texto deve estar no nível dos olhos,
a uma distância mínima de 1,6m e deve ser perpendicular ao observador
3. Largura da linha: Entre 20 e 40 caracteres por linha. Com fonte grande precisa ser mais curta.
4. Fonte sem serifa, com formas quadradas. Com exceção de grandes títulos.
5. Fontes light não funcionam bem.
6. Em tela plana o espaço entrelinhas recomendado é entre 1,2 e 1,5. Em realidade virtual é
recomendado entrelinhas de 1 a 1,3 para manter o foco do observador.


111
Os olhos captam as imagens individualmente que são transmitidas para o cérebro e processadas para nos
possibilitar sensação espacial de distância e profundidade.
112
Parede imaginária diante do palco por onde a plateia assiste passiva o que está sendo encenado.


275

7. No desktop e no mobile, o alinhamento ao centro e à direita não são recomendados. Em


realidade virtual qualquer alinhamento é bom. Na relação entre legenda e objeto por exemplo.
Depende do contexto.
8. O contraste em realidade virtual é sempre indicado. Na leitura em tela plana, com a interface
do observador em fundo branco, é melhor não usar a cor preta pura para textos. Cinza escuro
melhora a legibilidade e parece menos contrastante. Em realidade virtual a baixa resolução e o
foco ruim do observador tornam esses detalhes imperceptíveis.
9. Texto podem ser animados para atrair a atenção do observador em realidade virtual,
diferentemente da tela plana.
10. Deixar claro onde o texto é um link a ser acionado.

O artigo de Ryan Hinojosa (2018) define a unidade de distância denominada DMM. 1 DMM é 1
milímetro visto a 1 metro de distância. É uma unidade angular. Na Figura 5, todas as três telas
têm uma distância de visualização diferente. Desses pontos de vista, todos os três serão lidos e se
movimentarão da mesma maneira.

Figura 5 – Distância em DMM.


Fonte: https://developers.google.com/vr/design/sticker-sheet. Acesso em: 31 ago. 2019.

Considerações finais

O design de interfaces para experiências imersivas de realidade virtual, demanda estudos


multidisciplinares. Podemos considerar o vídeo 360º como um desdobramento do vídeo
convencional com algumas diferenças. A leitura em sequência linear dos planos do filme


276

convencional dá lugar a uma de superfície em que o espectador direciona o olhar assim como
faria para ler uma pintura. No vídeo convencional, o espectador assiste a narrativa passivo como
se estivesse diante de uma quarta parede invisível, mas no vídeo 360º a posição do observador,
envolvido pela cena, corresponde à posição da câmera, ele pode escolher para onde olhar. A
interface para vídeo 360º contendo grafismo com títulos, créditos e legendas, tipografia
combinada com outros elementos imagéticos e áudio, deve ser projetada prevendo o ponto de
vista observador. A legibilidade na tipografia em vídeo 360º se torna efetiva quando prevê as
limitações do ambiente virtual no que diz respeito à resolução e percepção do observador. Devem
ser respeitados o ângulo de visão e distância entre os textos e observador de acordo com a unidade
angular denominada DMM.

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277

Arte-Ciência-Tecnologia: a transdisciplinaridade como argumento curatorial


em três exposições de Arte Contemporânea

Arte-Ciencia-Tecnología: la transdisciplinariedad como argumento curatorial


em tres Exposiciones de Arte Contemporáneo

Nara Cristina Santos 113

Resumo
Este artigo trata de um estudo sobre três exposições de Arte-Ciência-Tecnologia organizadas por
pesquisadores, entre curadores e artistas, de diferentes Instituições de Ensino Superior no Brasil
e na Argentina: Mata - 200 milhões de anos (2011), FACTORS 4.0 (2017), Transdisciplinaridade
Arte, Ciência e Neurociência (2020). A curadoria compartilhada busca, tanto na estratégia
expositiva quanto no desafio teórico, discutir a concepção de transdisciplinaridade como
argumento curatorial. Esta concepção é aliada a diferentes conceitos em cada uma das mostras e
gera questões emergentes, provocadoras de novas práticas expositivas e outros discursos para
contribuir com o campo da Arte Contemporânea e sua história.

Palavras-chave: Exposições, Arte Ciência Tecnologia, Transdisciplinaridade, Arte


Contemporânea, História da Arte.

Resumen:
Este artículo trata de un estudio sobre tres exposiciones de Arte-Ciencia-Tecnología organizadas
por investigadores, entre curadores y artistas, de diferentes Instituciones de Educación Superior
en Brasil y Argentina: Mata - 200 millones de años (2011), FACTORS 4.0 (2017),
Transdisciplinariedad Arte, Ciencia y Neurociencia (2020). La curaduría compartida busca,
tanto en la estrategia expositiva como en el desafío teórico, discutir la concepción de
transdisciplinariedad como argumento curatorial. Esta concepción se conjuga con diferentes
conceptos en cada uma de las muestra y genera preguntas emergentes, provocando nuevas
prácticas expositivas y otros discursos para aportar al campo del Arte Contemporáneo y su
historia.

Palabras llave: Exposiciones, Arte Ciencia Tecnología, Transdisciplinariedad, Arte


Contemporáneo, Historia del Arte.

Transdisciplinaridade como argumento curatorial

A produção em Arte-Ciência-Tecnologia pode ser entendida como uma tendência, entre outras,
na Arte Contemporânea. Para pensar o contemporâneo, partimos de Groys114, para quem ser “con-
temporâneo” é o camarada do tempo, alguém que “colabora com seu tempo”. Entre os artistas
contemporâneos que colaboram com o seu tempo, estão aqueles que lançam ideias, propõe


113
Nara Cristina Santos. Pós-doutorado/UFRJ. Doutora em Artes Visuais/UFRGS com estágio na Paris VIII/França.
Professora do PPGART/UFSM. Pesquisadora em História, Teoria, Crítica e Curadoria, com projetos transdisciplinares
em Arte-Ciência-Tecnologia. Coordena o LABART e o grupo de pesquisa Arte e Tecnologia/CNPq. Tem convênios e
publicações no país e no exterior. Membro do CBHA e da ANPAP. www.ufsm.br/labart e naracris.sma@gmail.com
114
GROYS, Boris. Volverse Público. Buenos Aires: Caixa Negra, 2018, p. 83-100. Na cena artística contemporânea,
para ele, seria um tipo de time-based art, que também estaria associada a arte do vídeo, da instalação, cinema, dos
meios, e de sua documentação, que se exibe hoje diante de um “espectador em movimento”, cujo o tempo é seu
verdadeiro con-temporâneo.


278

questões emergentes e produzem nas confluências e interseções da Arte-Ciência-Tecnologia115.


Eles têm uma atuação comprometida com as questões de seu tempo, sejam elas quais forem,
inclusive com o modo de produzir e exibir obras cuja temporalidade se estabelece no
acontecimento da presença, participativa, interativa e imersiva, para um público ativo. Essa
atuação favorece tanto a discussão e entendimento conceitual que as obras suscitam para a Arte
Contemporânea, nas distintas estratégias curatoriais formalizadas e ou experimentais, quanto
naquilo que elas podem contribuir para uma História da Arte pensada a partir de exposições.
Enquanto os artistas investigam outras linguagens e tendências em Arte-Ciência-Tecnologia, os
historiadores, teóricos e críticos pesquisam estratégias curatoriais, práticas expositivas,
dispositivos expográficos e entrecruzamentos conceituais para com a Arte Contemporânea. Nesse
sentido, uma concepção surge, a partir do trabalho que desenvolvo como curadora ao longo do
tempo, e instiga a pesquisa entre as distintas áreas: a transdisciplinaridade.
Este artigo trata de três exposições que têm como estratégia curatorial uma concepção de
transdisciplinaridade e um conceito específico a cada mostra, que perpassa e problematiza
questões de Arte-Ciência-Tecnologia para tratar, entre outras, das produções interativas em arte
digital, arte computacional, arte e robótica, arte e ciência, arte e natureza. Cada exposição tem
como argumento curatorial transdisciplinar seu respectivo conceito: “Mata 200 Milhões de Anos”
(2011), o conceito de nanoarte; “FACTORS 4.0” (2017), o conceito de bioarte; e,
“Transdisciplinaridade Arte Ciência e Neurociência”, o conceito de neurociência (2020).
A curadoria aponta muitas vezes questões complexas116 para a Arte Contemporânea, não
necessariamente difíceis de resolver, mas sempre provocadoras de novas estratégias em Arte-
Ciência-Tecnologia. Entre elas, entender não apenas a atuação do curador diante de uma
abordagem transdisciplinar, mas compreender inicialmente que estamos todos diante da
diversidade de linguagens e da pluralidade de tendências próprias da contemporaneidade. O que
inclui a produção associada diretamente a dada especificidade tecnológica, seja ela mais ou menos
vinculada à ciência. Por exemplo, entre as linguagens e tendências, desde videoarte, webarte, arte
telemática, bioarte, nanoarte, arte robótica, mobile arte, arte sonora, performances e instalações
multimídia, virtuais, interativas, imersivas, projetos em realidade virtual, aumentada, mista, até
pesquisas com seres vivos, semivivos ou não vivos. Na atuação curatorial hoje, pode-se
compreender esta diversidade como um campo no qual emergem poéticas artísticas híbridas, em
torno da transdisciplinaridade.


115
WILSON, Stephen. Information Arts: intersection of Art, Science and Technology. London/Massachussets: MIT
Press, 2002.
WILSON, Stephen. Art Science Now. New York : Thames & Hudson, 2010.
116
A curadoria na arte contemporânea se tornou amplamente reconhecida como uma profissão significativa, presa nos
impulsos centrais da vida contemporânea, mas também capaz de oferecer interpretações surpreendentemente originais
das complexidades e contradições de nossa contemporaneidade. SMITH, Terry. Talking Contemporary Curating. New
York: ICI, 2015, p. 15.


279

No 1º Congresso Mundial sobre Transdisciplinaridade, realizado no Convento da Arrábida,


Setúbal/Portugal, em 1994, se apresenta e se discute a Carta da Transdisciplinaridade117, de
Basarab Nicolescu, Edgar Morin, e Lima de Freitas. Desta carta, três artigos podem ser
destacados:
Artigo 3: A transdisciplinaridade é complementar à aproximação disciplinar: faz emergir da
confrontação das disciplinas dados novos que as articulam entre si; oferece-nos uma nova visão
da natureza e da realidade. A transdisciplinaridade não procura o domínio sobre as várias outras
disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que as atravessa e as ultrapassa.
As diferentes disciplinas do campo científico e artístico dialogam de modo igual e aberto para
pensar outra realidade. E, neste caso, para a produção de obras de arte que se constituem como
projetos cuja concepção transdisciplinar é atravessada por conceitos emergentes.
Artigo 5: A visão transdisciplinar está resolutamente aberta na medida em que ela ultrapassa o
domínio das ciências exatas por seu diálogo e sua reconciliação não somente com as ciências
humanas mas também com a arte, a literatura, a poesia e a experiência espiritual.
Compreender a reconciliação das ciências com a arte, também significa dar-se conta que suas
inter-relações podem ser pensadas a partir da arte para com as ciências, pois não deveria haver
domínio de uma sobre a outra.
Artigo 6: Com relação à interdisciplinaridade e à multidisciplinaridade, a transdisciplinaridade é
multidimensional. Levando em conta as concepções do tempo e da história, a
transdisciplinaridade não exclui a existência de um horizonte trans-histórico.
A concepção multidimensional aponta a temporalidade como essencial para pensar um horizonte
trans-histórico, mas também pode levar a compreender que o pensamento científico já é trans-
histórico118.
Entende-se a transdisciplinaridade neste artigo, no seu diálogo e reconciliação com a arte, como
‘além do campo, fora do campo, outro campo’, o que pressupõe disciplinas que cooperam entre
si, além e através delas mesmas, para um projeto comum que gera unidade no resultado. E
compreende-se o diálogo transdisciplinar não apenas como um modo de organizar o
conhecimento a partir de diferentes disciplinas, para constituir um pensamento sistêmico, mas
também como um modo de se deixar atravessar, na produção poética em Arte-Ciência-
Tecnologia, por uma ação complexa.
Nestas três exposições a curadoria é compartilhada119, desta autora com pesquisadores da mesma
área, mas também colaborativa, ou seja, com profissionais de outras áreas de conhecimento


117
https://fr.scribd.com/document/155577806/Carta-de-Transdisciplinaridade
118
Para pensar a questão, a partir de: BOURDIEU, Pierre. Science de la science et reflexivité. Paris: Raisons d’agir,
2001.
119
Compartilhada entre pesquisadores da área de Artes Visuais, seniores do Brasil e exterior, como também com
estudantes em formação no grupo de Pesquisa Arte e Tecnologia/CNPq, mestrandos, doutorandos e pós-doutorandos
do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/PPGART/UFSM, Brasil. www.ufsm.br/ppgart


280

atuantes mais como colaboradores do que propriamente curadores. Essa é uma questão
interessante para pensar do ponto de vista do lugar da prática e da pesquisa de cada um, o cientista
e, nesse caso, não o artista, mas o curador de exposições de arte.
Explorar a transdisciplinaridade na Arte e nas Ciências levanta questões sobre os aspectos
epistemológicos inerentes ao cruzamento das Ciências com as Artes. (...) Como podemos articular
o procedimento experimental redutivo, mas rigoroso, com uma evolução necessária para novos
paradigmas que são simultaneamente complexos e abertos? Os artistas também enfrentam
paradigmas de seu tempo? Ou se envolver nas artes implica se libertar de paradigmas
restritivos?”120
Esse questionamento remete a exposição Mata 200 milhões de anos (2011). Na curadoria
colaborativa desta mostra, a experiência vivenciada entre pesquisadoras das Artes e das Ciências,
demonstrou que era preciso não apenas de reconhecer os paradigmas que nutrem as distintas
áreas, mas discutir e propor inicialmente outros paradigmas em consonância com aquilo que nos
unia na proposta transdisciplinar. Ou seja, algo além do campo para compreender as interseções
da Arte-Ciência-Tecnologia na sua complexidade estética, artística, científica e tecnológica,
desde as diferentes áreas de conhecimento. Talvez a ação colaborativa tenha levado a pensar
outros paradigmas, ao mesmo tempo em que revelou a necessidade de libertar-se de qualquer
modelo. Nesse sentido, a ideia tem sido conectar diferentes disciplinas ao trabalho curatorial, para
manter contato com outras áreas ou subáreas para gerar não apenas uma exposição, mas produção
de conhecimento a partir da experiência transdisciplinar.
Walter Zanini (1925-2013)121 afirmava que, já na década de 1960, a História da Arte passa a ser
mais transdisciplinar, conjugando outras disciplinas como a sociologia e a psicologia. Mas é
somente com as novas mídias na arte, quando a obra única dá lugar aos dispositivos, aos vídeos,
filmes, fotos, e quando a questão do espectador também é repensada de alguém mais passivo para
exercer uma interação, que começa a surgir a relação entre o historiador da arte e as linguagens
eletrônicas. A história da arte pode, então, para ele, se constituir a partir das exposições, e
acomodar práticas artísticas intermédias e de escopo transdisciplinar.
A transdisciplinaridade é, portanto, a concepção que perpassa todo argumento curatorial das
exposições realizadas, não como uma defesa de ideia das curadoras, mas como uma definição, ela
mesma, de um conjunto de atividades desenvolvidas em laboratório e grupo de pesquisa
institucionais122. Estas ações fundamentam tanto a organização das exposições em Arte-Ciência-
Tecnologia, quanto o discurso das curadoras para com a História da Arte.


120
KAPOULA, Zoï; VOLLE, Emmanuelle; RENOUL, Julient; ANDREATTA, Moreno (Editores). Exploring
Transdisciplinarity in Art and Sciences. Cham: Ed. Springer, 2018, p. 5.
121
FREIRE, Cristina (org). Walter Zanini. Escrituras Críticas. São Paulo: Anna Blume/Mac USP, 2013, p. 79-80.
Mais informações em: JESUS, Eduardo (org). Walter Zanini: Vanguardas, Desmaterialização, Tecnologias na Arte.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018.
122
Cabe enfatizar que a concepção de transdisciplinaridade, aos poucos sedimentada na sequência de exposições a
partir de 2011, se mostrou muito adequada aos projetos curatoriais desenvolvidos por esta pesquisadora e pelo grupo


281

Como se constitui o discurso das curadores123? Neste caso parte-se de um discurso prévio para
reafirmar a produção em Arte-Ciência-Tecnologia como uma tendência da Arte Contemporânea.
O que se defende como discurso, tanto no projeto quanto na atuação, é uma estratégia curatorial
compartilhada ou colaborativa, desafiadora a partir da concepção transdisciplinar ao propor um
conceito problematizador para pensar cada exposição. O trabalho da curadoria busca selecionar
artistas e obras, discutir questões emergentes a cada argumento curatorial e contribuir para o
conjunto de soluções da mostra, tanto teórico-críticas, quanto prático-expográficas. Ainda,
debater a atividade do curador também como crítico, no contexto institucional de espaços de
exibição públicos, como museus, galerias e salas de exposição, não necessariamente vinculado
ao mercado da arte. Para tratar do argumento curatorial transdisciplinar, seguem três exposições,
das quais são apresentadas uma obra de cada.

Exposição Mata 200 milhões de anos124 (2011) - Obra “Tecendo o Tempo ou Sendo Tecida
pelo Espaço” (2011)

A exposição Museu Interativo Arte, Ciência, Tecnologia e Patrimônio Cultural: Mata 200 milhões
de anos, no MASM, configura-se como transdisciplinar envolvendo diferentes áreas através de
uma curadoria colaborativa. A obra “Tecendo o Tempo ou Sendo Tecida pelo Espaço”, de Anna
Barros, está fundamentada no conceito de nanoarte125, como concepção transdisciplinar em Arte,
Ciência e Nanotecnologia. Para a artista a obra faz parte do conjunto de instalações realizadas a
partir de fragmentos de uma árvore petrificada colhida na cidade da Mata-RS126, um Ypê e sua
semente.


de pesquisa Arte e Tecnologia/CNPq, junto ao Laboratório de Pesquisa em Arte Contemporânea, Tecnologia e Mídias
Digitais/LABART/PPGART/UFSM. Endereço institucional: www.ufsm.br/labart Redes Sociais:
www.instagram.com/labart.ufsm/ e www.facebook.com/labart1228
123
O discurso dos curadores pode ser exercido em três níveis o projeto curatorial, texto e catálogo, em que pode se
apresentar uma posição pessoal; a prática curatorial na organização da exposição, em que pode ser considerado autor;
e, a posição do curador no mundo da arte, em que se evidencia a relação que tem sua atividade com artistas, críticos,
incluindo mercado e instituições. GLICENSTEIN, Jérôme. L’Invention du Curateur. Paris : Presses Universitaires de
France, 2015, p.180.
124
No ano de 2009, a artista Anna Barros esteve em Santa Maria-RS, Brasil, participando do 4º Simpósio de Arte
Contemporânea: curadoria e crítica. Antes de chegar à cidade, demonstrou interesse em conhecer a cidade da Mata na
mesma região central do estado, o que lhe foi oportunizado através de uma expedição à “Cidade de pedra que já foi
madeira”. No ano seguinte a artista apresenta no 5º Simpósio de Arte Contemporânea: poéticas digitais, o resultado de
suas pesquisas em nanoarte, com a instalação “200 Milhões de Anos: Árvore Pedra”, na Exposição Arte-Poética-
Digital. Foi esta obra que inspirou a exposição Museu Interativo Arte, Ciência, Tecnologia e Patrimônio Cultural: Mata
200 milhões de anos em (2011), que aconteceu no Museu de Arte de Santa Maria (MASM), com curadoria colaborativa
de Nara Cristina Santos, das Artes Visuais, e Maria Rosa Chitolina, das Ciências, ambas da UFSM.
125
A nanoarte, como outras nomenclaturas utilizadas pelos artistas nas produções em Arte, Ciência e Tecnologia,
decorre de uma área específica, neste caso da nanotecnología ou nanociência, que trabalha com estruturas de dimensões
muito pequenas, entre 1-1000 nanômetros (um nanômetro [nm] compreende um bilionésimo de um metro [m]), seja na
engenharia molecular, para colocar cada átomo e cada molécula no lugar desejado, seja na ciência dos materiais para
se aproximar de nanopartículas (gerando imagens de interesse estético), por exemplo. No caso de Anna Barros, as
imagens em escala nano, que a artista trabalha através da animação, foram obtidas através de Microscópio Eletrônico
de Varredura e Microscópio de Força Atômica, a partir dos fragmentos de madeira petrificada.
126
Mata-RS, Brasil, “Cidade de pedra que já foi madeira”. Patrimônio Paleobotânico em decorrência de grande número
de madeira petrificada, com idade de 200 milhões de anos.


282

Nesta obra, as amostras são da árvore petrificada, varridas no microscópio de força atômica que,
tornam-se atuantes, dentro do universo poético, em três animações digitais em 3D; elas conservam
a percepção tátil da topografia gerada pelos microscópios. Enfatizando a percepção tátil e háptica,
reinantes no mundo da nano, duas das animações são projetadas sobre um tapete texturizado,
detonadas pela movimentação das pessoas. Elas guardam a característica de tecitura de animações
renderizadas em wire frame. Outra animação é vista sobre a parede fronteira, anexa ao tapete,
gerando um ambiente imersivo e interativo.127

Imagem 1
Tecendo o Tempo ou Sendo Tecida pelo Espaço (2011)
Instalação interativa/nanoarte/animação digital 3D.
Fotografia: Acervo LABART/UFSM.

O conceito transdisciplinar de nanoarte vincula-se a Nanotecnologia na área da Engenharia


Molecular, ou da ciência dos materiais, para se aproximar de nanopartículas gerando imagens de
interesse estético, por exemplo. Na produção em Arte-Ciência-Tecnologia proporciona pesquisas
de imagens em escala nano, obtidas através de microscópio (Eletrônico de Varredura e de Força
Atômica). Nesta obra, são exploradas imagens de madeira petrificada de um sítio paleobotânico.
Na Arte Contemporânea, a nanoarte pode se constituir como uma tendência de pesquisa


127
Parte de texto da artista para flyer da exposição. Santa Maria, 2011. Publicado posteriormente em versão atualizada
em BARROS, Anna. Nanoarte. São Paulo: Ed SESI-SP, 2013, p. 52.


283

transdisciplinar, para discutir não apenas as relações de escala, mas também de espaço e tempo
em torno da matéria.

Exposição FACTORS 4.0 128 - Obra “Bot_anic” (2012)

No Festival Arte Ciência e Tecnologia, o argumento curatorial transdisciplinar está fundado em


conceitos diferentes a cada ano, como por exemplo bioarte na quarta edição. Em 2017 o evento
ocorre no espaço expositivo da Sala Cláudio Carriconde do Centro de Artes e Letras CAL/UFSM.
O conceito de bioarte pode apontar não apenas uma pesquisa da área da Arte entrelaçada com a
área da Biologia, mas, também, da Biotecnologia e da Bioengenharia.129
Na relação mais direta entre arte, biologia, tecnologia e a natureza o artista Guto Nóbrega, com
apoio do Grupo NANO/UFRJ, apresenta um trabalho com plantas e microambientes, em uma
concepção denominada por ele como hiperorgânica. Na obra Bot-anic (2012), ele cria um ser
híbrido entre o orgânico e o artificial, composto por uma planta e por um sistema robótico. Esse
projeto interativo convida o público presenciar uma planta reagindo ao ambiente, em estado de
repouso e de interação. O sistema robótico permite que a planta reaja ao ambiente e ao visitante
presente na exposição, e se desloque para onde há luz, ingrediente fundamental para sua
sobrevivência. O trabalho permite refletir sobre uma possível autonomia das plantas e seus
comportamentos emergentes, em uma experiência que pode afetar a consciência do interator sobre
a relação entre plantas e máquinas e ampliar a sua compreensão do ambiente.


128
O Festival Arte Ciência e Tecnologia expõe anualmente desde 2014, obras e projetos de artistas
brasileiros e desde 2016 também de ibero-americanos, todos com pesquisas consolidadas ou emergentes,
que colaboram para pensar e questionar a Arte hoje. Os artistas convidados têm suas obras selecionadas
através de uma curadoria compartilhada, e na quarta edição, em 2017, por Nara Cristina Santos/UFSM e
Mariela Yeregui/UNTREF. A mostra reúne artistas nacionais e estrangeiros: Ana Laura Cantera, Paula
Guerzensvaig, Robots Mestizo, da Argentina; Gabriela Munguía e Lupita Chávez, do México; Eduardo
Kac, residente nos EUA: Fernando Codevilla e Leonardo Arzeno, Gilbertto Prado e Grupo Poéticas
Digitais, Guto Nóbrega e Grupo NANO, Raul Dotto e Waleska Timmen, Rebeca Stumm, Yara Guasque,
do Brasil. O evento integra a primeira BIENALSUR como marco km1055, na Universidade Federal de
Santa Maria, Brasil e, desdobrada, no Museu da Universidade Tres de Febrero/UNTREF, Caseros,
Província de Buenos Aires, Argentina. www.bienalsur.org
129
RINCÓN, Daniel Lopez. Bioarte. Arte y vida en la era de la biotecnología. Madri: AKAL, 2015.


284

Imagem 2
Bot_anic (2012), Guto Nóbrega e NANO/UFRJ.
Bioarte/Robótica/Instalaçäo interativa.
Fotografia: Acervo LABART/UFSM.

O conceito de bioarte acolhe diferentes práticas artísticas produzidas através de seres vivos e
recursos naturais em contato com meios e tecnologias artificiais. Nesta edição do Festival130, a
bioarte não só perpassa propostas que abordam relações metamórficas entre os dispositivos e os
ambientes naturais, mas vale-se da tecnologia para criar um vínculo entre diversos mundos sutis
e frágeis, e as possíveis ressignificações diante da presença de organismos vivos. Essa concepção,
mais recente na Arte Contemporânea, propicia relações transdisciplinares na produção artística,
pois a bioarte pode ser considerada como um conceito transversal para pensar a Arte, a Ciência e
a Nanotecnologia, suas implicações políticas e éticas no campo da sustentabilidade.

Transdisciplinaridade Arte, Ciência e Neurociência (2020)131 – obra [POR NÃO SER


EXISTINDO]: deslocamentos para a empatia (2013-2019)


130
SANTOS, Nara Cristina; YEREGUI, Mariela (org.) FACTORS 4.0 é BIENALSUR. Santa Maria: Ed
PPGART, 2018. Disponível em: http://coral.ufsm.br/labart/index.php/factors/factors-4-0# e
http://coral.ufsm.br/editorappgart/index.php/noticias/19-catalogo-factors-4-0
131
A exposição “Transdisciplinaridade Arte Ciência e Neurociência”, foi organizada para acontecer junto
ao evento Transdisciplinaridade nas Ciências e nas Artes, vinculada ao projeto institucional CAPES
PrInt/UFSM. A mostra reúne artistas brasileiras e estrangeiras que trabalham questões em torno da arte
em diálogo com a ciência, a neurociência e também com a tecnologia. São elas Raquel Zuanon e Tania
Fraga, do Brasil; Mariela Yeregui, da Argentina; Maria Manuela Lopez e Marta de Menezes de Portugal;
e, Pia Tikka, da Finlândia. Curadoria de Nara Cristina Santos e pós-doc Hosana Celeste Oliveira. Online
no Instagram da Sala Cláudio Carriconde e Labart, em função da pandemia de Covid-19.


285

Nesta exposição o conceito transdisciplinar é a Neurociencia, que também trata de como o cérebro
humano se comunica, e seus processos de memória, cognição, incluindo “a capacidade para
escolher entre alternativas de ação - não ação incluída, e estender nossa faculdade para originar e
forjar ações futuras” (FUSTER, 2015, p. 22). Esta mostra reúne artistas com propostas distintas,
algumas em vídeo adaptadas para mostra online, em função do contexto pandêmico.
A instalação propicia uma experiência sensível de co-criação da obra, que se reconfigura e se
atualiza na interação constante do público com as imagens projetadas no espaço. Para Delannoy
(2015, p.144-143), a “experiência acontece em um contexto biológico e atualiza os conteúdos de
nossa percepção”, ao mesmo tempo em que se dá no entorno, e no espaço percebido. Afinal se o
“espaço físico é distinto do espaço percebido, como se constitui o espaço vivido, como espaço
corporal e espaço de ação”, inclusive de projeção. A obra revisita ‘Narciso’, mas contrasta o mito
narcísico da contemplação apaixonada da própria imagem quando potencializa o sentimento de
empatia no público, por meio da percepção de sua imagem e de si próprio como condição à
alteridade. “[Por Não Ser Existindo]: displacements towards empath” tanto discute a empatia na
convivência com os outros, quanto cumpre o que se propõe na interação ativa do público, ao
provocar emoções, ativar memórias e gerar deslocamentos em direção à empatia. No campo
transdisciplinar Arte, Neurociência e Computação.

Imagem 3
[POR NÃO SER EXISTINDO]: deslocamentos para a empatia (2013-2019),
Rachel Zuanon e Geraldo Lima UAM/UNICAMP
Computação cognitiva, ubíqua e instalação interativa
Fotografia: Acervo artista para LABART/UFSM.


286

O conceito de Neurociência se abre para um universo de complexidade, onde o corpo humano é


capaz de administrar nossa percepção da realidade, construindo uma relação inédita com o espaço
e o tempo, para pensar a memória, a cognição e a empatia como experiência sensível na arte. Na
Arte Contemporânea, as diferentes linguagens ou tendências geram poéticas artísticas que se
apropriam e se constituem através do vivo e natural, tanto quanto do robótico e artificial, para
desconstruir experiências perceptivas e sensoriais pré-estabelecidas e transformar os modos de
sentir.

Finalizando
O curador na área da Arte parte de seu lugar de investigação e pode estabelecer um vínculo com
pesquisadores de outras áreas, como a Ciência e Tecnologia, cujo trabalho, processo e resultado
da investigação apontam questões que não pertencem mais a nenhuma das áreas, mas ao que se
constitui para além delas, ou seja, um campo de conhecimento transdisciplinar em constante
emergência.
As três exposições apresentam-se como escolhas pertinentes para analisar as estratégias
curatoriais, tanto na concepção de transdisciplinaridade como argumento abordado nas
exposições Mata 200 milhões de anos (2011), FACTORS 4.0 (2017) e Transdisciplinaridade Arte,
Ciência e Neurociência (2020), quanto nos respectivos conceitos específicos de nanoarte para a
obra “Tecendo o Tempo ou Sendo Tecida pelo Espaço”, bioarte para a obra “Bot_anic”, e
neurociência para [POR NÃO SER EXISTINDO]: deslocamentos para a empatia (2013-2019).
A concepção de transdisciplinaridade como argumento curatorial em exposições de Arte-Ciência-
Tecnologia aponta diferentes conceitos a cada mostra e gera questões emergentes, provocadoras
de novas práticas expositivas e outros discursos para pensar o campo da Arte Contemporânea e
sua história. Nesse sentido, podemos pensar as exposições como ações transdisciplinares cujos
conceitos problematizam não apenas as mostras, mas também aquilo que pode ou não se
configurar como tendência na Arte? As curadorias podem ser entendidas como
multidimensionais? E se o forem, estas exposições em Arte Contemporânea se configurariam
como Trans-Históricas?

Referências
BARROS, Anna. Nanoarte. São Paulo: Ed SESI-SP, 2013.
BOURDIEU, Pierre. Science de la science et reflexivité. Paris: Raisons d’agir, 2001.
FREIRE, Cristina (org). Walter Zanini. Escrituras Críticas. São Paulo: Anna Blume/Mac USP,
2013.
FUSTER, J. M. Neurociencia. Los cimentos cerebrales de nuestra libertad. Ciudad de México:
Ediciones Culturales Paidós, 2015.
GLICENSTEIN, Jérôme. L’Invention du Curateur. Paris : Presses Universitaires de France, 2015.
GROYS, Boris. Volverse Público. Buenos Aires: Caixa Negra, 2018
KAPOULA, Zoï; VOLLE, Emmanuelle; RENOUL, Julient; ANDREATTA, Moreno (Editores).
Exploring Transdisciplinarity in Art and Sciences. Cham: Ed. Springer, 2018.


287

RINCÓN, Daniel Lopez. Bioarte. Arte y vida en la era de la biotecnología. Madri: AKAL, 2015.
SANTOS, Nara Cristina; YEREGUI, Mariela (org.) FACTORS 4.0 é BIENALSUR. Santa Maria:
Ed PPGART, 2018. Disponível em: http://coral.ufsm.br/labart/index.php/factors/factors-4-0# e
http://coral.ufsm.br/editorappgart/index.php/noticias/19-catalogo-factors-4-0
SMITH, Terry. Talking Contemporary Curating. New York: ICI, 2015.
WILSON, Stephen. Information Arts: intersection of Art, Science and Technology.
London/Massachussets: MIT Press, 2002.


288

Design de interfaces: desenvolvimento e aplicação de metodologias projetuais de ensino


baseadas em experiências cotidianas

Diseño de interfaces: desarollo y aplicación de metodologias proyectuales de educacion


basadas en experiências cotidianas

Nicolas Andres Gualtieri132

Resumo
O homem como individuo, em interação com seu entorno encontra-se constantemente estimulado pelas
interfaces de usuário mediadas pelas tecnologias. Entender esse processo exige uma reflexão a respeito do
ensino, esse ensino que nos abre portas para o presente e o futuro das nossas interfaces. No decorrer dos
últimos anos como professor de design de interfaces na UFG compreendi que os processos projetuais de
design de interfaces estão totalmente vinculados aos da cultura visual, e também àqueles das experiências
cotidianas dos alunos com os meios tecnológicos e as interfaces com as quais eles interagem. Isso determina
novos processos metodológicos de ensino que buscam trazer as experiências cotidianas para estimular os
alunos e produzir projetos que os atravessem como futuros profissionais do campo. Compartilho, nesse
artigo metodologias, experiências e resultados, quando, desde o ensino, começamos a produzir as interfaces
que fazem parte do nosso cotidiano.

Palavras-chave: interfaces, design, cultura visual, metodologias projetuais, ensino, experiências

Resumen
El hombre como individuo, en interacción con su entorno, es constantemente estimulado por interfaces de
usuario mediadas por tecnologías. Comprender este proceso requiere una reflexión sobre la enseñanza
que nos abre puertas para el presente y el futuro de nuestras interfaces. En los últimos años como profesor
de diseño de interfaces en UFG, entendí que los procesos de diseño de interfaces están totalmente
vinculados a los de la cultura visual y también a las experiencias cotidianas de los estudiantes con los
medios tecnológicos y las interfaces con las que interactúan. Esto determina nuevos procesos
metodológicos de enseñanza que buscan traer experiencias cotidianas para estimular a los estudiantes y
producir proyectos que los atraviesen como futuros profesionales. En este artículo, comparto
metodologías, experiencias y resultados cuando, desde la enseñanza, comenzamos a producir las interfaces
que forman parte de nuestro dia a dia.

Palabras clave: interfaces, diseño, cultura visual, metodologias proyectuales, enseñanza, experiencias

Introdução

Diariamente narramos histórias, histórias que começam como resultado de lembranças emotivas
que são muito significativas para nós (DEWEY, 1967). Da mesma maneira, algumas pesquisas


132
Nicolás Andrés Gualtieri – Argentino, com Bacharel em Design Gráfico e Comunicação Visual pela
FADU/UNL (Argentina), Especialista em História e Narrativas Audiovisuais pela FH-UFG, Mestre e
Doutorando em Arte e Cultura Visual pela FAV-UFG. Atualmente professor do Curso de Design Gráfico
na FAV-UFG e Diretor de Arte em Box comunicações / E-mail: nicoagualtieri@gmail.com


289

surgem a partir das experiências pessoais, em diversos campos do conhecimento, que nos
marcam, inquietam e falam a respeito de nós porque "nossas formas são o conteúdo da nossa
existência, assim como os discursos e realizações simbólicas que preferimos e promovemos
cotidianamente dão a forma a nossas imagens" (VICTORIO FILHO; CORREIA, 2013, p.50).

Trabalhando como diretor de arte, ao longo de 4 anos no Centro Integrado de Aprendizagem em


Redes da Universidade Federal de Goiás (CIAR/UFG), me adentrei no mundo da Educação a
Distância (doravante EAD) e principalmente na produção de objetos de aprendizado. Junto aos
meus colegas, participei do desenvolvimento de plataformas e materiais gráficos e audiovisuais
na procura de contribuir com uma maior qualidade e mais possibilidades de acesso aos diferentes
níveis de ensino.

Uma questão recorrente e bem debatida com meus colegas, ao longo desses anos de trabalho no
CIAR/UFG, foi perceber que muitas das plataformas utilizadas para ensino possuíam problemas
estruturais pela falta de atualização das interfaces. Por momentos, os espaços digitais não
consideravam muito as experiências dos usuários e muito menos a relação que eles estabeleciam
com essas plataformas nos contextos do cotidiano. Tem estudantes que acessam desde diversas
plataformas, suportes e espaços. Variando de celular para computador fixo, realizando uma leitura
focada no conforto do lar, uma leitura dinâmica mais interativa em um polo de aprendizado ou
adiantando leituras no percurso que o ônibus faz de um ponto da cidade a outro.

A falta de intuitividade das plataformas, a antiguidade dos recursos para indicar novas
ferramentas, a falta de acessibilidade, dentre outros, são levantamentos e reclamos recorrentes
dos estudantes. Isso nos faz refletir sobre como estamos desenvolvendo nossas interfaces, e mais
ainda, de que maneira os designers e desenvolvedores pensam a interação dos usuários com essas
interfaces. Considero esse processo instigador, me fazendo refletir a respeito do ensino desses
profissionais que desenvolvem as imagens e interfaces que consumimos e utilizamos para nos
comunicar, mediar, ensinar e apreender.

Desenvolvimento
Foi esse o desafio que aceitei quando, como professor substituto no ano de 2019, ministrei a
disciplina de Design de Interfaces no curso de Design Gráfico modalidade presencial da
Universidade Federal de Goiás. O design de interfaces é uma das áreas mais complexas do design
de comunicação visual. É uma disciplina dos últimos períodos do curso porque precisa do
conhecimento prévio de disciplinas mais complexas. Nesse ponto do curso, os conhecimentos do
profissional são direcionados para o desenvolvimento de ferramentas acessíveis e intuitivas que
priorizam o design de experiência de usuário e sua navegabilidade. Como mencionei
anteriormente, esses conceitos formam parte dos reclamos recorrentes dos estudantes da EAD.


290

Ao longo dos meus estudos de doutorado em Artes e Cultura Visual na Faculdade de Artes Visuais
da Universidade Federal de Goiás, recorri a autores de referência como Aguirre (2009) ou
Miranda (2013) que apresentam a necessidade de metodologias e dinâmicas de ensino que
dialoguem com o quotidiano dos estudantes (ALVES, N. 2003). Por momentos parecia um olhar
afastado e difícil de trazer para a sala de aula, quando em verdade, ele já estava inserido, só que
não conseguia visualizá-lo.
Uma vez que somos provocados pelos estudos da cultura visual (MIRANDA F., 2013), não
podemos negociar a sua participação no nosso cotidiano. Atravessa-nos de tal forma que
desarticula e propõe intervenções nas nossas metodologias, dinâmicas e processos. Foi isso o que
aconteceu comigo ao longo desse percurso como pesquisador. Quando iniciei o meu caminho
como professor substituto, tentei desconstruir, ao longo das aulas e disciplinas, muitos processos
que carregava comigo.
Tendo em vista as abordagens da cultura visual e a minha experiência no campo do
desenvolvimento dos materiais para EAD, propus como avaliação da disciplina um trabalho
integral que constava em desenvolver a interface digital de um projeto. Num primeiro momento
seria no formato web de desktop e posteriormente se realizaria a adaptação para algum dispositivo
móvel pensando no formato de aplicativo. Entendendo que na versão desktop a interface contaria
com uma série de funções que na modalidade móvel não teria e vice-versa. A projeção de uma
identidade visual flexível possibilitaria também a adaptação tanto do visual quanto das funções
correspondentes específicas para cada dispositivo.
A escolha da temática e a abordagem na pesquisa foi o que trouxe um verdadeiro desafio para os
estudantes. Deviam elaborar uma proposta de interface inovadora a partir de necessidades e usos
quotidianos. Isso fez com que eles repensassem as atividades que a diário desenvolviam. Eles
deviam também compreender de que maneira uma interface poderia propor soluções ou estimular
novas interações.
Assim, tendo como base as metodologias projetuais de design (MUNARI, 1981), as diretrizes das
metodologias ativas (COHEN, M. 2018) e as abordagens do cotidiano apresentadas pelo campo
das artes e da cultura visual, desenvolvi processos flexíveis nos quais os alunos perceberam
carências de interfaces em espaços onde atualmente não existiam ou não tinham sido pensadas.
A continuação, narrarei alguns resultados obtidos nesse processo.
Sabemos que alguns estudantes universitários procuram moradia perto dos Campus de ensino e
que buscam também gerar uma rede de pessoas próximas para poder sentir segurança nos espaços
onde moram e convivem. Foi essa a proposta de uma das equipes que trouxe a problemática para
o desenvolvimento das interfaces. Conceitos, ferramentas de usuário e até as relações
morfológicas, giraram entorno de oferecer um espaço agradável e seguro para que os estudantes,
que deixam seu lar familiar, encontrem mediante a interface um espaço de contenção na procura
desse novo lar. Como dado, é importante destacar que todos os membros da equipe passaram pela


291

experiência de procurar espaços onde morar, trazendo suas problemáticas como soluções na
interface desenvolvida.

Figura 1 – Layout da plataforma de aluguel desenvolvida pela equipe. Fonte: Imagem cedida pelos
alunos a partir de termo TCLE.

Outra das equipes, considerando a possibilidade de jornalismo cidadão, propus uma interface para
realizar reclamações de situações de infração no trânsito. Utilizando a plataforma os usuários
disponibilizariam fotos, informações e reclamos para ajudar na regulação do sistema de trânsito
na cidade, gerando uma parceria com o Departamento Estadual de Trânsito de Goiânia. O
resultado é um sistema gamificado (MATTAR, 2010) que dialoga com a necessidade cotidiana
dos alunos de se manifestar frente a determinadas situações em prol de um melhor convívio.


292

Figura 2 – Layout da plataforma de notificações de infração de transito. Fonte: Imagem cedida pelos
alunos a partir de termo TCLE.

Outra das propostas inspiradas no cotidiano tem a ver com uma interface de receitas e culinária.
Os alunos apresentaram o contexto dos estudantes que, uma vez que deixam a casa familiar
precisam se desenvolver sozinhos nas tarefas de casa, isso inclui a culinária, resolvendo o almoço
e a janta com aquilo que tem na geladeira.
Portanto, desenvolveram uma plataforma com caraterísticas visuais similares aos de uma
geladeira onde, registrando os elementos que fisicamente eles possuem nas casas a plataforma
disponibiliza receitas para evoluir no nível culinário. O sistema propõe receitas saudáveis,
econômicas, rápidas ou mais elaboradas, dependendo o interesse do usuário. Ferramentas de
múltiplas escolhas, categorias e subcategorias, contagens regressivas e até passo a passo nas
versões portáteis caracterizaram esse projeto, cuja ideia nasce diretamente da cozinha dos alunos.

Figura 3 – Fluxograma da plataforma de gerenciamento de alimentos. Fonte: Imagem cedida pelos alunos
a partir de termo TCLE.

A alimentação parece ser um tópico recorrente e essencial dentre os estudantes, ao ponto de


termos um último projeto também direcionado para essa área. Com viés totalmente diferente ao


293

anterior, essa última proposta trabalha com o tédio dos alunos por cozinhar e levar uma
alimentação saudável. Partindo dessa base é proposta uma gamificação que permite envolver ao
usuário de maneira mais lúdica a partir de missões, níveis que permitem acesso a novos conteúdos
e uma estrutura de navegabilidade extremamente intuitiva para deixar mais leve o processo de
elaboração dos alimentos. A proposta, nascida das experiências dos alunos do time, abraçou os
elogios da turma toda por abordar uma problemática recorrente ante a falta de tempo por conta
das exigências da vida universitária.

Figura 4 – Layout da interface desenvolvida para ensino de culinária. Fonte: Imagem cedida pelos alunos
a partir de termo TCLE.

Os projetos foram apresentados em instância avançada e passaram pela avaliação de


diferentes usuários. Posteriormente, disponibilizaram os manuais de criação e
materialização, alguns desses projetos encontram-se já em instâncias de programação.
Acredito que, mediante esses exemplos, podemos pensar de maneira indireta saídas ou
soluções alternativas para as problemáticas que enfrentam os alunos da EAD nas
plataformas de ensino. A procura de soluções de interfaces para problemas do dia a dia
nos ajudam a nos posicionarmos no lugar do outro, trazendo um lado mais humano,
compreensivo e ao mesmo tempo com foco no acesso. Contribuindo também para
desmitificar que todo objeto didático ou interface acessível não pode ser visualmente
agradável.

Considerações Finais


294

O processo desenvolvido pode parecer isolado por momentos, mas compreender a necessidade
de abordar os problemas cotidianos dos alunos e consequentemente dos alunos que participam da
Educação a Distância nos permite refletir e procurar soluções aos questionamentos que
recorrentemente ouvimos deles a respeito das interfaces educativas.
Projetar alternativas de interface para outros problemas cotidianos pode ajudar a pensar
em novas ferramentas ou opções para as plataformas de ensino. Nos permite brincar e
pensar nas diferentes navegabilidades, construções de menus ou alternativas de
acessibilidade. Também poder pensar a respeito dos recursos de gamificação na procura
de novas estratégia de engajamento e motivação na educação. Inclusive, pensar em
funções variáveis dependendo do dispositivo utilizado, determinando quais atividades
requerem mais tempo e atenção, e quais podem ser desenvolvidas ao longo do dia
enquanto o estudante realiza outros afazeres.
O atual contexto de pandemia do COVID-19 nos colocou em uma posição de pensar mais ainda
sobre as maneiras em que nos relacionamos e vinculamos com as interfaces. Trazendo
questionamentos como: qual é o objetivo do desenvolvimento de uma interface? Que atividades
são realizadas a diário pelos nossos usuários? Desenvolvemos interfaces para serem utilizadas em
quais contextos? De que maneira essas interfaces se relacionam com o nosso cotidiano? Por que
interfaces de outros sistemas de comunicação por momentos possuem resultados visuais ou
interativos mais efetivos que algumas plataformas de ensino?
Acredito que se desenvolvemos melhores interfaces e plataformas de interação conseguiremos
aproximar as pessoas e o conhecimento, sem necessidade de entrar em conflito com suas rotinas
ou estilos de vida. Fazendo do processo de aprendizado uma interface que nos atravesse
constantemente ao ponto que nos permita relacionar o apreendido com a realidade palpável do
dia a dia.

Referências
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MARTINS, R. Educação da cultura visual: narrativas de ensino e pesquisa. Santa Maria, RS:
UFSM, 2009, p. 157-188.
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representação e projeto: tópicos para uma metodologia de ensino de design fundamentada
na ação e prática cotidianas. InfoDesign | Revista Brasileira de Design da Informação | v. 9 | n.
3, p. 189 – 200 | ISSN 1808-5377, 2012
ALVES, N. Cultura e cotidiano escolar. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, n. 23,
p. 62-74, Ago. 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S1413247820030002 00005&lng=en&nrm=iso


295

BARROS J. ; BEZERRA, P. Mediação da cultura visual no cenário contemporâneo. Anais


do VIII Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual: arquivos, memórias, afetos.
Goiânia, GO: UFG/ Núcleo Editorial FAV, 2015.
BARBOSA, Maria Carmen Silveira. Por amor & por força: rotinas na educação infantil. 2000.
278 p. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação,
Campinas, SP. Disponível em: <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/253489>.
Acesso em: 27 jul. 2018.
CERTEAU, Michel. A Invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
COHEN, M. Alunos no centro do conhecimento. Fonte: Disponível em: DIESEL, A.,
BALDEZ, A. L., & MARTINS, S. N. (2017). Os princípios das metodologias ativas de ensino.
Fonte: Revista Thema, 23 de maio de 2018
COMOLLI, Jean-Louis. Prefácio. In: Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção,
documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 9-31.
DEWEY, J. Experiencia y Educación. Buenos Aires: Losada, 1967
GLASSER, W. (2017). William Glasser. Fonte: PPD: Disponível em:
http://www.ppd.net.br/william-glasser/ Acesso em: 01 de junho de 2018
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MARTINS, J. B. Observação participante: uma abordagem metodológica para a psicologia
escolar. Semina: Ci. Sociais/Humanas, Londrina, v. 17, n. 3, p. 266-273, set. 1996.
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MATTAR, João. Games em educação: como os nativos digitais aprendem. São Paulo:
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MUNARI, Bruno. Das coisas nascem coisas. Lisboa: Edições 70, 1981.
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VALENTE, J. A. (2013). Aprendizagem Ativa no Ensino Superior: a proposta da sala de
aula invertida. Fonte: Disponível em: Acesso em: 25 de maio de 2018
VICTORIO FILHO, Aldo; CORREIA, Marcos B. F. Ponderações sobre aspectos
metodológicos da investigação na cultura visual: seria possível metodologizar o
enfrentamento elucidativo das imagens? In: MARTINS, Raimundo; TOURI-NHO, Irene
(Orgs.). Processos & práticas de pesquisa em cultura visual & educação. Santa Maria: Ed. da
UFSM, 2013, p. 49-60.


296

Entre Narciso e Janus: nomadismo e ubiquidade na videoarte de Wagner Morales

Between Narciso and Janus: nomadism and ubiquity in Wagner Morales video art

Regilene A. Sarzi-Ribeiro133

Resumo
Trata-se de um estudo sobre aspectos da linguagem que revelam o modus operandi em
consonância com o modus humanus do vídeo que, à imagem e semelhança do homem, se
comporta como uma entidade inquieta, nômade, incerta, informe, mutável e camaleônica. Seria o
vídeo um ente que transita entre o humano não humano? Seria o vídeo, a linguagem polimorfa
desenvolvida pelo homem para estruturar a comunicação onipresente e ubíqua tal como vivemos
na era pós midiática? O vídeo tem comportamentos que transitam entre Narciso e Janus, entre o
ver e o ser visto, entre se reconhecer e se transformar, sem identidade ou forma. Para este recorte
o artigo apresenta uma análise do vídeo Não Há Ninguém Aqui #1 (2000) de Wagner Morales.
Após a videoarte, a imagem movimento e as artes audiovisuais revelam um traço essencial das
poéticas videográficas: a não linearidade espaço-temporal tecida pelas deambulações e mixagens,
fruto do nomadismo eletrônico-digital.
Palavras-chave: linguagem ubíqua, nomadismo, videoarte, Wagner Morales,

Abstract
It is a study on aspects of language that reveal the modus operandi in line with the modus humans
of the video which, in the image and likeness of man, behaves as a restless, nomadic, uncertain,
shapeless, changeable and chameleonic entity. Would the video be an entity that transits between
the non-human human? Would it be the video, the polymorphic language developed by man to
structure the ubiquitous and ubiquitous communication as we live in the post-media era? The
video has behaviors that pass between Narciso and Janus, between seeing and being seen,
between recognizing and transforming, without identity or form. For this clipping, the article
presents analysis of the video Não Não Nobody Aqui # 1 (2000) by Wagner Morales. After video
art, movement image and audiovisual arts reveal an essential feature of videographic poetics:
the non-linear space-time woven by wandering and mixing, the result of electronic-digital
nomadism.
Keywords: ubiquitous language, nomadism, video art, Wagner Morales,

Vídeo – entre Janus e Narciso

Este ensaio é resultado de parte de uma pesquisa trienal sobre a arte do vídeo na arte
contemporânea, a partir do pensamento de que tudo é vídeo e de que a linguagem do vídeo está
presente em grande parte do pensamento visual na atualidade. Muito embora o período que
concentrou o maior número de estudos sobre o vídeo tenha sido o final dos anos 1990 e a primeira
década do Século XXI, resta questionar de que vídeo estamos falando? Afinal grande parte das
pesquisas atuais sobre arte e tecnologia estão interessadas na imagem numérica, nos códigos e


133
Docente permanente do Programa de Pós-graduação em Mídia e Tecnologia (PPGMiT) e Professora Assistente
Doutora da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação/UNESP/Bauru/SP. regilene.sarzi@unesp.br.


297

nas relações sistêmicas que envolve o fazer poético. Então por que insistimos em investigar o
vídeo?

Exatamente porque ele é a base de tudo o que tem se observado como linguagem na arte
contemporânea e ainda meio, suporte, veículo e plataforma que entrega, oferece e promove modos
de expressão e manifestação artística que expandem nossas experiências espaço-temporais por
meio da áudio-visualidade. Entre os objetivos da pesquisa destacamos a proposta de ampliar a
compreensão dos processos de produção das artes audiovisuais no Brasil e na América Latina e
analisar como as relações espaço-temporais constituem as arquiteturas, paisagens e as formas
imagéticas da arte do vídeo, e assim justificamos o recorte proposto e a discussão do tema, por
meio do estudo de uma obra em vídeo do artista Wagner Morales.
A partir de inúmeras experimentações com a linguagem do vídeo surgem diferentes fusões e
expansões do meio videográfico na contemporaneidade que provocam a reflexão de conceitos
como a ubiquidade e o nomadismo, os quais norteiam esta pesquisa da linguagem videográfica e
seu aspecto metalinguístico. Muito já se discutiu e se conhece sobre os dispositivos e aparatos,
ou sobre como a máquina é determinante no processo criativo com vídeo e de igual forma, já se
pesquisou sobre a arte do vídeo (Machado, 1988, 2007), as extremidades do vídeo (Mello, 2008),
o amplo espectro de manipulação da imagem e desconstrução das linguagens da fotografia e do
cinema presentes no vídeo, os entremeios (Sarzi-Ribeiro, 2018) e o hibridismo (Sarzi-Ribeiro,
2018, 2019) e mestiçagem de linguagens e de sua afeição pelos sistemas de controle e vigilância
(Sarzi-Ribeiro, 2019), a ubiquidade do vídeo (Sarzi-Ribeiro, 2019) e ainda seu processo
comunicativo e artístico. Então pode se perguntar: o que ainda resta estudar no vídeo? O que
estamos buscando são novos métodos para revelar outras facetas da linguagem, desconectada das
abordagens cristalizadas de análise da linguagem videográfica, entendo a mesma por meio de sua
complexidade.
Não se trata mais de buscar sua especificidade, absolutamente, mas de reconhecer que é preciso
investigar aspectos da linguagem que revelam o modus operandi em consonância com o modus
humanus do vídeo que, à imagem e semelhança do homem, se comporta como uma entidade
inquieta, nômade, incerta, informe, mutável e camaleônica. Seria o vídeo um ente que transita
entre o humano não humano? Seria o vídeo, a linguagem polimorfa desenvolvida pelo homem
para estruturar a comunicação onipresente e ubíqua tal como vivemos na era pós midiática? Por
que ele, o vídeo dotado de incerteza quanto à sua forma e sem ter um meio ou especificidade
único, se transforma ao prazer da sua jornada entre os meios e suportes?
O que notamos é que o vídeo tem comportamentos que transitam entre Narciso e Janus, entre o
ver e o ser visto, entre se reconhecer e se transformar, sem identidade ou forma. Na mitologia,
Janus é o deus romano bifronte que tem uma face voltada para o futuro e outra para o passado, é
a divindade da transformação, mutação. Janus é a metáfora daquele que conserva o passado em


298

sua forma original, mas adquire novas configurações ao se projetar no futuro. É a metáfora do
sujeito mutante e futurista. Jano, em latim janus ou lanus, é considerado o deus do começo e dos
fins, é o deus romano dos portais, das passagens, as vezes masculino as vezes feminino, em suas
mãos ele segura uma chave (figura 1).

Figura 1. Jano (janus) deus romano das passagens, transições. Fonte:


https://cristianaserra.wordpress.com/2014/08/16/jano-deus-dos-comecos-e-das-
transicoes/

Ao mesmo tempo, Jano reconhece o passado e mira o futuro. Jano era reverenciado em datas de
nascimento, casamento ou quando se iniciava um evento ou fase importante na vida de alguma
pessoa. Jano também representava a transição entre a vida primitiva e a civilização, e a vida entre
o campo e a cidade. Sua origem é incerta. Ele teria nascido em Tessália, na Grécia, filho do deus
Apolo com a mortal Creusa. Quando se associa o vídeo ao deus Jano faz-se menção a dualidade
do ver e ser visto e das características acima ressaltadas, como modelo de passagem, abertura de
chaves para compreensão da civilização e a saída da vida primitiva, do tradicional, em direção ao
novo, ao incerto, ao desconhecido, o futuro.
Tal qual como o comportamento do vídeo e seu modus operandi que se projeta e se lança a partir
da rede configurando-se video – eu vejo. Ver e ser visto, impossível não conectar ao mito de
Narciso, que é o deus que se apaixonou pela própria imagem ao se debruçar à beira de uma fonte
de água cristalina para se banhar, mas viu refletida a própria imagem. Narciso é a representação
do ato de se reconhecer, de ver a si mesmo, ensimesmado e embevecido com sua própria beleza.
Essa relação entre o narcisismo e o ato de ver e ser visto provocado pelo vídeo quando surgiram
as primeiras expressões da arte do vídeo foi amplamente destacada pela crítica de arte norte-
americana Rosalind Kraus (1978), (figura 2).


299

Figura 2. Narciso. Michelangelo Caravaggio. 1594-1596. Óleo sobre tela, 110x92cm.


Palácio Barberini. Galeria Nacional de Arte Antiga, Roma. Fonte:
http://www.arte.it/notizie/roma/caravaggio-e-l-enigma-di-narciso-17117

Muito se fala sobre a convergência dos meios e das linguagens, mas defendemos que o vídeo é
um ente cuja ubiquidade alimenta sua capacidade de migrar e se tornar uma onipresença. De
Narciso a Janus, e por seu aspecto narcisístico como defendeu Rosalind Kraus na década de 1970,
e sua capacidade mutável que é capaz de adquirir forma conforme o meio ou a plataforma a partir
da qual será o canal comunicacional, a ubiquidade e o nomadismo do vídeo sustenta e mantêm
sua onipresença nos ecossistemas midiáticos e artísticos.
Trata-se de uma linguagem capaz de alimentar a memória pessoal e ao mesmo tempo edificar
histórias coletivas. Esta pesquisa nasce ainda da necessidade de ampliar a compreensão do vídeo
para além das já conhecidas aproximações para com o cinema, expressas em nomenclaturas como
pós-cinema, outro cinema, terceiro cinema, live cinema e transcinema. Acreditamos que para
compreender a presença ubíqua do vídeo na contemporaneidade é preciso investigar o próprio
meio e sua linguagem nômade: o vídeo em sua complexidade hoje. Dessa forma, temos os vídeos
expostos em diferentes formas que consistem na disposição espacial das formas temporais do
cinema em telas múltiplas e simultâneas em instalações artísticas que permitem fruir o vídeo de
forma não linear, por meio de derivas, como um flâneur, em narrativas abertas que nos levam a
habitar o cinema.

Nomadismo e ubiquidade na videoarte de Wagner Morales


Mas o que queremos é habitar o vídeo. Investigar as várias formas do vídeo na arte contemporânea
significa buscar entender como elas estruturam elementos centrais da linguagem do vídeo e seu
processo de criação. Para tanto, analisamos o primeiro vídeo da série Não Há Ninguém Aqui


300

(2000-2002) do artista multimídia, cineasta e curador brasileiro Wagner Morales, composta de


três vídeos experimentais que associam antropologia e deriva. Os vídeos envolvem mensagens de
voz de secretaria eletrônica de pessoas estranhas.
O vídeo Não Há Ninguém Aqui #1 (2000) começa com uma voz feminina, que chama pelo nome
de Pedro e diz seu nome, diz quem ser aquela que o chama. Surgem luzes e aos poucos a tela
escura ganha os contornos luminosos das luzes de postes elétricos que passam pelo quadro de
forma acelerada, o que nos leva a perceber a visão de dentro de um veículo cuja velocidade
deforma a luz avermelhada das ruas. Imagens da cidade a noite, ruas e calçadas vazias, revelam
a solidão daqueles lugares, a ausência de pessoas. Em alguns momentos a chuva molha o
retrovisor do carro e a imagem fica borrada pelos pingos da água, provocando uma nostalgia na
paisagem, marcada pelas lâmpadas das ruas desertas.
Quando surge pela primeira vez uma figura é vista em uma cena muito rápida composta por um
painel publicitário que tem estampada a foto da atriz Ana Paula Arósio fazendo um gesto com a
mão que imita um telefone, em uma campanha da Embratel. Nesta mesma cena, nota-se um
relógio que indica vinte e uma horas e quatorze minutos, e o horário da noite ressaltado pelas
luzes dos postes da cidade. O carro continua transitando pelas ruas e logo deixa ver uma fileira
de luzes que apontam para a profundidade da avenida por onde o mesmo circula e o movimento
do carro faz a câmera oscilar para cima e para baixo mostrando ora o volante ora as luzes em linha
reta. A câmera começa a registrar pessoas dentro de outros carros, sem dar a ver o veículo, mas
nota-se que são mulheres e estão sozinhas (figura 3).

Figura 3. Não há ninguém aqui #1. Wagner Morales. 2000, vídeo, 4'30". Fonte:
http://site.videobrasil.org.br/acervo/obras/obra/82916

Em alguns trechos, que parecem passagens entre um bloco e outro de imagens, a câmera faz
movimento bruscos e tem um balanço que dificulta o reconhecimento das imagens que passam
rapidamente pela tela, imagens toscas, chuviscadas e ambíguas que nos remetem a confusão
visual e descontrole da câmera que a deriva parece se mover de um lado a outro.
Na sequência, surgem cenas de mulheres realizando compras, seja em uma livraria, mulheres mais
velhas, jovens, no shopping, no supermercado, passando compras no caixa de uma loja, pagando


301

a conta, sempre vistas de longe. Estas cenas revezam imagens desfocadas com imagens com foco,
em um vai e vem de aproximação e distanciamento da câmera de vídeo.
As imagens da cidade retornam e vemos o carro parado frente a um semáforo, vermelho, e o
retrovisor está molhado pela chuva, as luzes não têm nitidez e são círculos luminosos desfocados
que interferem na percepção da paisagem. O sinal abre e o carro continua a transitar pelas ruas
desertas da cidade, madrugada a fora. Na paisagem, calçadas, pontos de ônibus, muros, casas,
escolas, bares, padarias, postos de gasolina, as árvores e a passagem por bairros, da cidade
noturna, desertos e solitários. Durante todo o trajeto, ouve-se uma música dentro do carro, que
acompanha todas as cenas, mas a altura não é suficiente para reconhecer o estilo ou a letra, apenas
uma melodia frenética e agitada. Mas o som que conduz o ritmo temporal do vídeo são vozes
femininas, de diferentes mulheres ao telefone, registradas por uma secretaria eletrônica (figura
4).

Figura 4. Wganer Morales. Não há ninguém aqui #1 2000, vídeo, 4'30". Fonte:
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa23483/wagner-morales

Destacamos alguns trechos das vozes femininas por meio de uma breve transcrição. Primeira voz
diz: “Pedro, aqui é Ângela que tá falando, eu sou uma mulher bastante especial tá, é sou
carinhosa, sou bonita por dentro e por fora, sou uma pessoa simples, sou independente, e estou
me sentindo muito só”. Segunda voz: “eu estou tão nervosa pra deixar o recado que eu acabei
nem me explicando direito, mas eu queria que você me ligasse, gostaria de conversar com você”.
Terceira voz: “eu tô achando que com certeza sou eu, essa pessoa que você tá procurando pra
namorar, beijo”. Quarta voz: “Pedro ao mesmo tempo que a ansiedade é desgastante, é excitante
também”. Quinta voz: “não sei por que, mas eu cismei com você, liga pra mim, tô esperando você
me ligar”. Sexta voz: “Pedro eu sei que eu já devo ter te enchido, até pela própria carência por
eu estar sozinha, mas eu gostaria para eu não me sentir assim tão sozinha que você me ligasse
mesmo para me dizer que você já encontrou alguém”. As vozes femininas descrevem seus perfis,
revelam traços de sua personalidade e afirmam que também estão solitárias a procura de alguém,
e no final, uma das vozes, que aparece várias vezes nos registros da secretaria eletrônica, volta à


302

cena e fala “oi Pedro perdi a esperança, não vou ligar mais, pelo jeito você já encontrou alguém,
paciência, perdi essa, tudo de bom pra você, beijo, tchau”, e ouvimos um sinal que afirma que a
mensagem foi apagada. Assim termina o vídeo.
A obra nasce a partir de uma intervenção do artista que poderíamos considerar um experimento
antropológico. Morales, que é formado em Antropologia pela Universidade de São Paulo (em
1991), primeiro criou um personagem masculino fictício que publicou um anúncio nos
classificados sentimentais do jornal Folha de São Paulo, que provocou a ligação de várias
mulheres interessadas, cujas mensagens foram gravadas pela secretaria eletrônica e serviram
como texto e temática para seu roteiro de vídeo, que na realidade não configura-se como um
roteiro traduzido de forma linear, mas um leitmotiv, um disparador do processo criativo da obra
final em vídeo. Morales tem uma trajetória artística diversificada e uma produção que transita
entre o experimental e o documental. No site da Associação Cultural Videobrasil, encontra-se a
seguinte sinopse do vídeo Não há ninguém aqui #1:
[...] Imagens noturnas, captadas do interior de um automóvel em movimento, flagram
mulheres ao acaso, remetem-nos tanto às câmeras de vigilância espalhadas pela cidade,
como à solidão anônima da procura amorosa. O trabalho faz parte da série homônima,
composta por três vídeos realizados entre os anos 2000 e 2002. Mesclando vida real e ficção,
experimentação narrativa e documentário, refletem sobre as diferentes facetas da solitude e
da incomunicabilidade (Associação Cultural Videobrasil, 2003, s/p.)

Interessante observar como o artista conecta os sons das vozes femininas as imagens da cidade e
compõe conexões com mulheres de diferentes formas, como no trecho em que uma das vozes
afirma ser bonita por dentro e por fora e tem se a imagem da atriz Ana Paula Arósio, ou quando
as vozes femininas revelam suas idades e as imagens correspondentes são as de mulheres maduras
fazendo atividades cotidianas como trabalhando, fazendo compras e ou dentro de carros
transitando pela cidade. Não se trata de uma correspondência lógica, nem mesmo de criar uma
narrativa por meio desta conexão entre o som e a imagem, mas de provocar uma abertura, uma
rasura, que permite a construção de mundos imaginários e ao mesmo tempo possíveis, reais entre
as mulheres das imagens e as mulheres das vozes.
O vídeo tece um jogo entre o real e o ficcional por meio de uma narrativa não linear cuja estrutura
visual é tecida pelo sonoro e estimulada através do ritmo, da textura e das camadas de som que
ora se complementam, ora se distinguem das imagens. A arquitetura espaço-temporal no vídeo
Não Há Ninguém Aqui #1 (2000) de Wagner Morales tem como alicerce o sonoro que amplifica
o movimento, o ritmo e atua como elemento construtivo da cadência ou encadeamento das áudio-
visualidades.
O nomadismo está presente como metáfora da imagem circulante e redundante que sai de um
lugar em direção a outro desconhecido. A deriva, as áudio-visualidades se movimentam em
círculos, como um transeunte que parte sem saber o ponto de chegada. Morales comenta um
possível entendimento do conceito de nomadismo na atualidade associado ao tempo:


303

[...] o conceito de nômade, pressupõe um sujeito que, seja por razões culturais ou políticas,
se desloca fisicamente no espaço geográfico do mundo. O que observamos hoje no universo
das tecnologias de informação e da arte eletrônica é um outro tipo de nomadismo. Um
nomadismo onde o domínio sobre o espaço cedeu lugar ao domínio sobre o tempo. O ritmo
em detrimento do deslocamento, a velocidade como valor em si mesmo e não como
consequência de um deslocar-se no mundo (Morales, 2003, s/p.).

Quando refletimos sobre a ubiquidade do vídeo e ainda sobre as diferentes temporalidades que
podemos experienciar por meio do vídeo sobretudo a partir da experiência de mover-se sem sair
do lugar, mais uma vez é Morales quem esclarece o fenômeno contraditório da estaticidade,
quando uma vez mediados pelas tecnologias estamos em constante movimento. O caminho e o
percurso que antes eram percorridos por territórios geográficos, hoje são vencidos de forma
remota e ou virtualmente, favorecendo tempos como o aqui e agora, a presentidade e a ubiquidade.
Hoje, com as teletecnologias, nossa ânsia pelo movimento é saciada no tempo e não no
espaço. Não mais um espaço a ser explorado pelos nossos corpos, mas um espaço móvel que
se desloca velozmente nas telas imóveis que habitam nossa vida. O nômade contemporâneo
não sai do lugar. Ao contrário, funda uma espécie de nomadismo sedentário, trazendo
consigo uma nova concepção de espaço: ao invés de perspectivo e concreto, este torna-se
chapado e fluido. A nossa atual conquista espacial é uma conquista que se dá a partir do
veículo audiovisual e não de veículos automotivos. Talvez tenhamos saído do mundo da
dinâmica para entrarmos no da inércia onde o as tecnologias audiovisuais simulam não só
os lugares aos quais querem o chegar, mas a sensação de se chegar sem sair do lugar. O
nômade contemporâneo pode, finalmente, chegar sem ao menos ter partido (Morales, 2003,
s/p).

Assim o vídeo se torna uma presença constante cuja ubiquidade é reiterada pelo modus operandi
de ver e ser visto numa circularidade que ao mesmo tempo gera mutações, se reinvente mas
também se mantêm nômade, um constante vir a ser. Associados as questões de identidade e
relações interpessoais, o vídeo que tem propositalmente um diálogo com questões antropológicas
e de comportamentos, que assume as vozes femininas como interlocutoras do processo de
interação entre o eu e o outro, o qual se dá por meio da linguagem videográfica, nesta obra de
Wagner Morales.

Considerações finais
Os elementos – nomadismo e ubiquidade – podem ser destacados na obra em estudo neste ensaio
por meio, sobretudo, da observação da estrutura compositiva do vídeo na qual a velocidade e o
ritmo, de encadeamento dado as imagens, não ficam condicionados ao movimento do carro ou
pessoas, mas ao ritmo das vozes femininas. Metaforicamente a solidão revelada pelas imagens,
vistas por alguém de dentro de um carro, reverberam as falas das mulheres que deixaram seus
recados para o número daquela secretaria eletrônica.
Seria o Pedro guiando aquele carro? Seria aquele que deriva pela cidade deserta e de forma
ambígua parece ter prazer em estar sozinho embora pareça estar a procura de algo? O vídeo é um
contraponto entre a imagem de fora do carro e a sonoridade interna, tanto das vozes femininas
que estaria fora dali, quanto do som que se ouve com dificuldade dentro do carro.


304

O vídeo é modelar, olha para o cinema no passado e transmuta a linguagem audiovisual dando a
aula uma forma visual tecida a partir do sonoro – harmonia, melodia e ritmo, mas também
silêncio, ruídos, velocidade, cadência, textura e forma. Cada vez mais observamos que o
nomadismo e a ubiquidade do vídeo estão associados a experiência visual construída pelo sonoro,
não se trata apenas de reconhecer a sinergia ou correspondências entre o visual e o sonoro na
linguagem do vídeo dentro de uma perspectiva da linguagem audiovisual. Trata-se de estudar a
linguagem videográfica por ela mesmo e buscar entender que o sonoro exerce forte influência
modelar sobre o visual, como vimos na videoarte de Wagner Morales.
Mesclando vida real e ficção, experimentação narrativa e documentário, refletem sobre as
diferentes facetas da solitude e da incomunicabilidade. A partir das vozes, ou seja, do sonoro, o
artista realiza diferentes derivas pela cidade, de casa para o trabalho e dentro de um apartamento
tecendo uma rica conexão entre som e imagem e ainda dando ao vídeo traços próprios da
linguagem do vídeo que rompem com a narrativa para projetar-se sobre outros lugares e
experiências a outras áudio-visualidades.
O campo do conhecimento pertinente é aquele que se abre para a discussão de novos nexos, e não
se resume a revisões de literatura, principalmente quando se procura um olhar descolonizado para
pesquisa do vídeo, um olhar que rompa com as metodologias de estudos cristalizadas sobre a arte
do vídeo. E disso resultam novas perguntas, novas inquietações como esta que começa a assumir
o vídeo como uma forma de se fazer ver ou enxergar o som, uma forma de estruturar a visualidade
do som transformando-o em uma experiência audiovisual.
Daí pensarmos que se som se desloca, circula e transita pelo espaço, ele pode adaptar-se a
inúmeras plataformas e o vídeo seria o campo da imagem por excelência para o som
definitivamente se fazer uma forma de experiência visual. O vídeo é um ver-se pautado pelo
tempo atemporal, pela simultaneidade, é ao mesmo tempo um estar vendo e ser visto, e isso se
daria por meio da linguagem sonora cujos elementos – ritmo, harmonia e movimento – se
projetam no tempo para além da espacialidade.
Tais processos se tornam cada vez mais complexos com o vídeo na cultura digital. Os artistas do
vídeo na contemporaneidade se apropriam da linguagem videográfica fazendo dela um campo
experimental que se adapta a qualquer forma ou meio, que migra para qualquer suporte e se
transforma conforme o projeto, seja para construir narrativas pessoais, expressar angústias e
inquietações ou para despertar traços sensíveis, políticos e ou estético-culturais da linguagem e
junto carregam as estruturas temporais, sonoro-visuais, ou como preferimos nomear as áudio-
visualidades provocadas pelo vídeo. O nomadismo e a ubiquidade são elementos chave para
compreensão da mutação constante das estruturas sonoras em visuais que o vídeo provoca,
experienciadas temporalmente. Após a videoarte, a imagem movimento e as artes audiovisuais
revelam um traço essencial das poéticas videográficas: a não linearidade espaço-temporal tecida
pelas deambulações e mixagens, fruto do nomadismo eletrônico-digital.


305

Referências

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306

Can Machines Do Art?: Non-Human Interventions in Art and Fashion

Reynaldo Thompson & Tirtha Mukhopadhyay

Abstract

The first step in the evolution of technologically driven visual art genres was taken with the
application of controlling spray guns and electrical brushes by David Alvaro Siqueiros 1920. The
decisive break occurs again in contemporary fashion designs and installations (Savage Beauty
2011). Hence we have to emphasize upon the growing insularity and autonomy of technologically
rebellious art – in the reduced human intention in patterns on dresses exhibited by the fashion
maverick Alexander McQueen. We shall be able to appreciate the fact that the form of
representation is most likely to be similar to a mechanics of accidence and autonomy, rather than
control, and reflective of the independence of the machine itself, now called the machine being.

Although conditions necessary for the technique of drip painting has been studied in detail (Taylor
et al 205; Taylor 26), the physical method of dripping and throwing paint as an expression of
what Jackson Pollock called “chaos” evolved into a kind of unpredictable non-human
134
intervention (Moses 5; Clark 355; Altieri 24) in domains of art that is only beginning to get
acknowledged. The first step in the evolution of technologically driven visual art genres was taken
with the application of controlling spray guns and electrical brushes by David Alvaro Siqueiros,
the Mexican muralist in his conception of the great revolutionary murals painted after the Mexican
independence of 1920. But the second decisive breach with the past occurs with the direct
intrusion of digital (robotic) arms and the later, completely hidden sensor mechanisms of
biorobots and cybernetic designs. The history of artistic production has undergone changes
corresponding to the insightful use of machine behavior in the contemporary electronic era. But
even then, one may fail to notice that in the theoretical corpus of such art as of the great muralists
of the Mexican Revolution and in Pollock, critics have looked at on the visual plane of the art,
rather than the technical mode of its production. The visual art of Pollock for instance, has only
been explained in terms of the extensions of fractal geometry (Taylor 34). What Siqueiros’ blast
contains in a central nodal area of the painting like the Collective Suicide (MoMA) is the
enigmatic symbolism of states of being, relegated to its most invisible, neural level; it reappears
without location, like a rhizome of its memory in two directions: first, in contemporary fashion
design and installation (Savage Beauty 2011). Hence, we have to acknowledge upon the growing
insularity and autonomy of technologically rebellious art – in the reduced human intention in
patterns on dresses, such as those exhibited by the fashion maverick Alexander McQueen.


134
I n, what we appear to need are art practices that adhere to the urgencies of
the nonhuman, and first and foremost, that means that we have to refashion
what we have it in mind to do when we invoke 'description’.


307

Second, human role is partially supplanted in machine installations like Jean Tinguely’s revolving
chain, with their frenetic technological interventions and motion. This development occurs at the
same time as when we see an aesthetics of abstract robotics like the biocybernetic machines of
Gilberto Esparza (Kac 60; Burnham 35). The form of representation is similar to a mechanics of
accidence and autonomy, rather than control, and reflective of the independence of the machine
itself - just as Aristotle described a possible symbebekos of material conditions in which an object
acquires characteristics from an indeterminate future of possibilities (Metaphysics Book VIII).
What emerges from the long history of technical interventions in art is the recognition of a chance
impulse, inviting a contemporary aesthetics of the material conditions of art – the objects have
themselves undergone transformation. Experimentation becomes creative, as the logic of
technical innovations, like the fractal drip of Pollock’s “chaotic” art becomes a non-teleological,
indeterminate creation. The experimental enthusiasm of David Alfaro Siqueiros (1896-1954) led
him to trace murals by an electric projector (a technique used years later by the abstract
expressionist Franz Kline in his paintings of broad brushstrokes, which were retouched with the
brush, but also to the use of new products such as automotive paints, sprays and air guns, thus
leading to an adaptation of the technical conditions imposed by the new architecture. The vitality,
momentum and frenzy at the new discovery - characteristics defined by Luis Cardosa y Aragon -
allowed the muralist to organize workshops for American students who shared the same spirit in
their minds. Manuel Rodríguez Lozano a contemporary painter inspired by Siqueiros states that
the latter’s last painting at the Polyforum Cultural in Mexico City was "a painting robot; he and
his disciples used nothing more than mechanics: they photograph the subject, pull out the slide,
135
project it and put the gun in the air. " It is clear that the terms in which Rodríguez Lozano
expresses Siqueiros’ artistic technique vis a vis will have resonance in the current scenario. What
we shall establish is the secret rise of the technical agency of art, and its living colonial power
over the sphere of modern art and media, including self-sustaining robotic, or proto-Cyborgian
representations.
The pictorial-visual conditions prevalent during the period when Pollock’s major works were
executed in the sixties, now already started changing with respect to the murals made at the
beginning of the century. Technical perfection is supplanted by more radical experimentation in
the artistic process. We must remember that in the second decade of the last century Marcel
Duchamp (1887-1968) with his work Apolinère Enameled 1916-1917, a readymade painting
modified with gouache and pencil on painted sheet, originally inaugurated Sapolin Enamel; it
hinted that an advertisement poster could re-appear as a painting with a sequence of touches that
could produce the best results – in case of Duchamp’s enamel sheets, the surface becomes a


135
Casado Navarro, Arturo and others. El Arte Mexicano. Arte Contemporáneo. Volume n.13. SEP, Salvat.
Quéretaro, México: 1986


308

metaphor of the arbitrary process which conjures something as perfect as the poetry of Apollinaire
out of unsuspected material or medium. It is not surprising then that in the 1950s, Jean Tinguely
through his investigations of mechanical automatons created the serie of Meta-Matic in the mid
fifties, one of those was the piece Meta-Matic no. 6 (a drawing machine) in 1959. In this a
mechanistic non-subjective Automat drew on the paper surface (for Kant drawing was considered
as the precursor of all works of plastic art and therefore of the same essence as the subject)136.
Like his art Tinguely’s aesthetic criticism was aimed to counteract the abuse of mechanized
systems of our times as they tended to hypnotize capitalist society. Donald Kuspit refers to the
work Homage to New York, one which Tinguely produced in 1960, as a:

self-destroying machine - not exactly a technological prodigy and obviously having no


constructive value – it was about to what extent such technology-dependent art produces an
"aesthetic" attraction 137.

Tingueley’s art shows that the aesthetics of the machine had opened a wide range of conceptual
and expressive forms, and would remain an unfinished dream within the framework of this kind
of art; we could simply remind ourselves of more artists who have been guided in their creative
efforts by the use of technological mechanism for the plan or presentation of their work.
With the coming of the nineties a new direction can be seen in the machine arts of Rebecca Horn
(b. 1944). In her performances two decades earlier Horn’s use of bodily extensions such as
breasts, fingers, arms or masks already revealed the place that would be taken years later by the
mechanical arms powered by an electrical source and then more recently by those adapted to
computer systems. Her explorations in this sensitive ground plan for mechanical systems soon
turned to the production of more sophisticated designs which were achieved with the help of
specialist engineers in the field. Her kinetic sculptures emphasize on the spiritual absurdity of
contemporary life. About her sculpture 1972 Finger Gloves, used for an exhibition at the Tate
Gallery mentions the following note on their website:

The ideas of touching or of sensory consciousness are explored in this work. Horn has described
how wearing these gloves alters her relationship with her surroundings, so distant objects are
within reach "the gloves-fingers are light. I can move them without any effort. Feel, touch,
achieve anything, but keeping some distance from the objects. The lever arm of the elongated
fingers intensifies the various sensory data of the hand; ...I feel myself touched, I see me
grasping, I control the distance between the objects and me. Implied in the work is the idea that
touching permits intimacy between our own body and those of others138.


136
In painting, sculpture, in all the Visual Arts, in architecture, in the layout of gardens, as they are fine arts, drawing is essential,
and in this, the basis of all the provisions for artistic taste is not what recreates feeling, but what pleases for its form. Kant,
Immanuel. Critical judgment. Collection Austrual. Espasa Calpe. Madrid. 1990.
137
Kuspit, Donald. El fin del arte. Aka. Madrid: 2006 p. 60
138138
http://www.tate.org.uk/servlet/ViewWork?workid=25&tabview=work (From the display caption April 2004) [my
translation] Ideas of touch and sensory awareness are explored in this work. Horn has described how wearing these gloves altered
her relationship with her surroundings, so that distant objects came within her reach: ' the finger gloves are light. I can't move them
without any effort. Feel, touch, grasp anything, but keeping a certain distance from the objects. The lever-action of the lengthened
expressions the various sense-data of the hand fingers; ...I feel me touching, I see me grasping, I control the distance between me


309

An evolution in Horn’s work takes her from the objective system of a body and its sensory
dimensions to experiments with more sophisticated mechanisms, which culminated in production
of the piece Les Amants in 1991. In this work machines act as humans, or more precisely, as the
title suggests like lovers who in accordance with the classical European creed of imaginative
(Platonic) creativity also draw and paint. Horn says:

My machines are not washing machines or cars. They have a human quality and must change. They
get nervous and must stop at some point. If a machine stops itself, it does not mean that it is broken.
It is only tired. The tragic or melancholic aspect of machines is very important to me. I don't want
them to work forever. It is part of its life and must stop and fade...139

In Horn’s words, mechanical systems tend to take an anthropomorohic, and a definitively humane
personality to which scientists hope robots will arrive at a given time.
Years later and at the dawn of the new millennium, innovation in the creation of mechanized
systems came directly not from the artistic circle, but paradoxically from developments in the
fashion industry, specifically with Alexander McQueen’s Spring-Summer Collection of 1999, in
which robotic arms fired paint on the model, simulating an attack of machines. Gone are the
blasting gestures of Siqueiros, Jackson Pollock or Yves Klein’s living brushes. The theatricality
of the model and the non-human performencers conceived by McQueen is not without a strong
erotic charge. A machine delivers a kind of spray on the impeccable white dress of the model.
The dress becomes a canvas under a threatening, phallic gun. The idea of the blasting in Pollock’s
painting is transformed by McQueen into a violent attack loaded with anthropo-psychic sensuality
– in a sense this also resembles La Mariée mise à nu par ses célibataires, meme, produced between
1915 and 1923 by Marcel Duchamp who projects the metamorphosis of human beings in a
technological mechanism. McQueen’s action is reflected in the affirmation of Marcuse’s
conviction that “the death instinct becomes, in its own right, the companion of Eros in the primary
instinctual structure, and the perpetual struggle between the two constitutes the primary
dynamic”140. From Marcuse’s perspective, the duel in McQueen’s work is established between
the robotic arms and the woman; the arm-guns unload their ink (black and yellow) on the woman.
Aggression reaches a climax when the legs and the face of the girl are seen to be stained.


and the objects.' Implicit in the work is the idea that touching makes possible an intimacy between our own body and those of
others.
139
http://images.google.com/imgres?imgurl=http://www.artnet.com/Images/magazine/features/kuspit/kuspit9-17-07-
11.jpg&imgrefurl=http://www.artnet.com/magazineus/features/kuspit/kuspit9-17-07_detail.asp%3Fpicnum%3D11&usg=__3j7-
RvFIV7O86GG5mhTOfRLd_pQ=&h=460&w=341&sz=185&hl=en&start=2&sig2=LVSEBNd2WNIPF_ZevCK7Ng&um=1&itbs
=1&tbnid=VOUKJGwvgM
zIM:&tbnh=128&tbnw=95&prev=/images%3Fq%3Drebecca%2Bhorn%2Bles%2Bamants%26um%3D1%26hl%3Den%26sa%3D
G%26tbs%3Disch:1&ei=uWzQS9fXAsOBlAfgmsUR
Rebecca Horn, "The Bastille Interviews II, Paris 1993" [my translation] My machines are not washing machines or cars. They
have a human quality and they must change. They get nervous and must stop sometimes. If a machine stops, it doesn't mean it's
broken. It's just tired. The tragic or melancholic aspect of machines is very important to me. I don't want them to run forever. It's
part of their life that they must stop and faint
140
Marcuse, Herbert. Eros and civilization. Edit. Ariel. Barcelona, Spain. [1953] 2003. p 40


310

Similarly, Vanessa Beecrof explores the body in the commercial context of the system. For
example, in the work VB61 completed in 2007 Beecroft gave a twist to Siqueiros or
Pollock’s drips, or Mc Queen’s inkjet sprays by depicting a corporal massacre of deaths and blood
to focus on the genocide in Sudan. Santiago Sierra treated a no less controversial theme, such as
illegal immigration with the performance titled Line of 250 cm tattooed on six persons paid
(1999) in which the line, tattooed on the skin of illegal immigrants can appear only to be deleted
by death, thus also echoing the idea of branding of cattle. In all such paintings we get to see the
genealogy of the technical, de-subjectivized arm participating in an art work, and creating a new
anthropomorphic machine arm in its place, a machine-being living out its life like a graphic
function.
If we consider how Alexander McQueen designed his fabric we get to see the how patterns are
evoked in a randomized manner – creating an aesthetics of Mendelssohnian blocks of color or
pendant streams. The couture has an erotic outline but its visual fillings are generated by digitally
improvised printing on appliqué. It is indeed possible to predict a digital or robotic loom which
could generate shapes from the drip, in a cycle of feedback and transformation; the site precisely
of a visual performativity and reflection. In Savage Beauty 2010 a skull gets superimposed on a
manikin’s face. The feedback graph, as we know, always utilizes a pattern from a data base of
impressions. The adjustments of a spray printer, or a fabric loom which could generate
randomized patterns would none the less be improvising on the stock of pre-existing patterns in
the history of textiles but then the total effect is likely to be startling: the innovation shall not
necessarily need to be a result of thought and contemplation –or as such be a product of the
subjective certitude of a pre-Modernist aesthetics or art, but paradoxically it so by virtue of
evolving in that instant of space. But machine-art can take various directions. Computer generated
art can take us further down a surreal pathway whose potential might never have been realized
by human cognition alone - given the existing levels of neural evolution. In fashion industry
garments now flow out of this proto-human but artificial intelligence that represents patterns
whose stock vestiges lie in the actual biological brain of the human designer but more radically
in the advancing drift of an intelligent machine. The print may become more bizarre rather than
beautiful in its conventional sense, like the colored patterns which are initially generated in nature
for camouflage or mating protuberances. McQueen’s Highland Rape (1995-96) is a wonderful
example of the impromptu pattern, the frenzy of a digitally generated blood strings here being a
direct competitor of any finitely humane imagination with its narrowly conventional organic
designs. Perhaps even Pollock’s crazy dotted lines are transcended in the flowing twisters of the
Plexiglas shows (1998 -2000) which neither resembled the necessities of the catwalk, nor differed
from the gameplan of a consumer oriented fashion industry.
The robotic arm has of course played a more significant role in the automobile industry, and in
all other instances of the post-industrial age where painting a consumer article has been left to the


311

perfection that only robots can achieve - with a level of precision that come to humans only by
chance or stroke of luck. Indeed machines may teach us by reverse engineering that humans are
also not alien to the process of motion that propels robots to execute targets.141 Post-
Enlightenment aesthetics has largely ignored the duration of time that is required before it is
possible for an individual to generate a piece of visual information, and with so much affective
content as conventions will allow. In fact the individual itself is an illusion. The individual acts
with a neuropsychological baggage of equipment – hence the proposition of the necessity of
duration and the engineering that make artistic creation possible at all. The creative process is a
non-subjective, instrumental feedback engineering in which end of a product remains invisible
till a point of time in which intervention ceases for itself, to leave behind a visually executed body
(Bedau 395; Correia 795). The great sculptures of the Renaissance must have been born out of
a process of adjustments made across a context of visual conventionsm. They may be understood
only in terms of the insights developed from the manner in which a robotic arm functions in order
to achieve a so-called end result (Kac 65; Lin 4). Machines which function in accordance with
feedback intelligence provide a norm for artistic modifications –incidentally the process is visible
in the fashion industry more than in visual archetypes like painting or even photography, unless
the latter undergoes alteration and enhancement with the help of multimedia. The line of
demarcation seems to be clear. Machines have the smartness that humans have been using from
its Acheulean and even earlier pre-historic phases. Now that they can function like automatic
creators they can also reveal the secret technology of aesthetic reproduction, unlike in Descartes
or Kant’s allegories of the spirit, in the methods implicit in the spirit of that allegory.

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(2004), pp. 3-22.
Stein, Philip. Siqueiros. International Publishers, New York: 1994
Taylor, Richard P, Adam P. Micolich and David Jonas. The Construction of Jackson Pollock's
Fractal Drip Paintings. Leonardo, Vol. 35, No. 2 (2002), pp. 203-207. 4.
Taylor, Richard P. A.P. Micolich and D. Jonas, "Fractal Expressionism," Physics World 12 (1999)
p. 25


313

Padrões emergentes criados a partir de algoritmos de funções randômicas

Emergent patterns generated from random functions algorithms

Rui Alão142

Resumo
Este artigo explicita como experimentos feito através de código com funções randômicas pode lançar luz
sobre o processo de emergência em sistemas complexos adaptativos. Através destes algoritmos o
pesquisador é capaz de simular comportamentos que podem gerar padrões emergentes relevantes para o
campo do design.
Palavras-chave: complexidade, algoritmos, padrões, emergência.

Abstract/resumen/resumé
This article explains how the experiment done through code with random functions can shed light on the
emergence process in complex adaptive systems. Through these algorithms the researcher is able to
simulate behaviors that can generate emerging patterns relevant to the design field.
Keywords: complexity, algorithms, patterns, emergence.

Introdução

Nossa pesquisa desenvolvida nos últimos anos é ligada a métodos projetuais em design
que possam dar conta de problemas de grande complexidade. A percepção de que a área
de design está mal equipada para lidar com problemas realmente complexos está se
tornando consensual e tem dado origem a algumas pesquisas na área desde a década de
80. O assunto complexidade no contexto da teoria dos sistemas é muito pouco abordado
nos cursos de design em geral, mesmo quando falamos nos programas de pós graduação,
tanto dentro quanto fora do país.
Por complexidade aqui me refiro a contextos em que se lida com um número muito grande
de agentes ou autômatos celulares com comportamento próprios e que disparam eventos
próprios dentro de sistemas complexos adaptativos, como eventos em cascata e o
surgimento de padrões emergentes. O estudo da complexidade pode ser de grande
interessa para a área de design uma vez que há possibilidade de algum tipo de analogia


142
Rui Alão é designer digital, sócio do estúdio Carambola Digital, arquiteto pela FAU USP, especialista
e mestre em Design pela Universidade Anhembi Morumbi e doutor na área de Design e Arquitetura na
FAU USP. Professor de graduação e pós graduação do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e
na Universidade Anhembi Morumbi. Participa como pesquisador do MediaLab (UAM) e do Grupo de
Pesquisa Design e Convergência (Belas Artes).


314

entre os fenômenos de auto-organização e os métodos projetuais, como será discutido


adiante.

Fenômenos dos sistemas complexos

Os eventos em cascata, também chamados de “grandes eventos”, são típicos dos sistemas
complexos adaptativos. Eles ocorrem quando um evento dispara uma série de outros
eventos e estes outros, gerando o chamado efeito borboleta. Os efeitos borboleta tendem
a desestabilizar os sistemas e a deixá-los mais suscetíveis a estímulos de qualquer
natureza. Existem eventos em cascata em vários domínio, desde as avalanches até as
crises econômicas de grande alcance, como a de 2008, que deixa seus rastros até os dias
de hoje.
O extremo oposto dos eventos em cascata são as demonstrações de resiliência. Estes
fenômenos ocorrem quando um sistema é atingido por um estímulo muito poderoso e,
logo que este desaparece, desaparecem também os efeitos destes estímulos. É assim
quando jogamos uma pedra num lago e sua superfície se reconstrói logo após o evento.
Outro exemplo é o atentado contra as Torres Gêmeas em Nova Iorque em 2001. Neste
último caso, a cidade ficou muito abalada por um ou dois dias, mas logo depois voltou ao
seu cotidiano, reconstruindo suas relações e demonstrando sua resiliência. Este fenômeno
é característico dos sistemas complexos muito interconectados que se reconstruam
rapidamente.
Um outro fenômeno típico dos sistemas complexos adaptativos é a emergência, isto é, o
surgimento de um padrão a partir das interações dos seus elementos constitutivos. John
Holland é um estudioso da complexidade em geral e é um pioneiro dos algoritmos
generativos. Nas palavras dele,
Emergência é, sobretudo, produto de interações relacionadas e dependentes
de contexto. Tecnicamente estas interações, e o sistemas resultante, são não
lineares: o comportamento do sistema maior não pode ser obtido pela soma
dos comportamentos de suas partes constituintes... o todo é, de fato, mais do
que a soma de suas partes. Não podemos mais realmente entender estratégias
num jogo de tabuleiro através da compilação de estatísticas de movimentos de
suas peças mais do que podemos entender o comportamento da uma colônia
de formigas em termos de médias. Sob estas condições, o todo é
realmente mais do a soma de suas partes. (HOLLAND, 2009, p. 121)
143


143
Tradução do autor: Emergence is above all a product of coupled, context-dependent interactions.
Technically these interactions, and the resulting system, are nonlinear: The behavior of the overall system
cannot be obtained by summing the behaviors of its constituent parts… the whole is indeed more than the
sum of its parts. We can no more truly understand strategies in a board game by compiling statistics of the


315

Os fenômenos emergentes são especialmente interessantes para a área de design pois eles
são uma forma de auto-organização, ou seja, uma forma espontânea de organização que
é capaz de propor padrões metodológicos para a área de design, ou seja, padrões de
interação colaborativa que são capazes de enfrentar problemas complexos da área que
não são capazes de ser enfrentados pelos métodos tradicionais de projeto.
Em trabalhos anteriores tentamos lidar com estes cenários, ora trabalhando
especificamente dentro do contexto dos fenômenos emergentes (ALÃO, 2008) ora
apontando para possibilidade metodológicas de enfrentamento da complexidade no
âmbito do design (ALÃO, 2015).
Nos dias de hoje é muito comum que problemas de alta complexidade sejam tratados a
partir de uma abordagem colaborativa e, neste processo, os agentes frequentemente se
auto-organizam de forma análoga aos fenômenos emergentes em sistemas complexos. É
o caso das iniciativas Open Source, por exemplo, ou de projetos como a Wikipedia, no
qual usuários do mundo inteiro geram um repositório coletivo e cooperativo sem um
controle central.
Esta é uma característica diferenciadora do movimento Open Source:
a sua exploração de forma inteligente do poder da produção
colaborativa. O que torna este poder extraordinário é a capacidade de
melhorar com o tempo, curando-se organicamente, como se o enorme
exército de colaboradores de um projeto como o Linux fosse um sistema
imunológico, sempre vigilante e ágil na reação a qualquer coisa que
ameace o organismo. E apesar dos receios naturais causados por um
modelo de desenvolvimento inovador para os padrões tradicionais, os
projetos de Open Source não descambam para a anarquia, mas
mantém uma coesão impressionante. (TAURION, online)

Este caráter de “cura”, como coloca Taurion, é de certa forma análogo ao da resiliência
mencionado pouco acima: o sistema retorna a estados mais estáveis, como que se
preparando para outros estímulos na medida em que se reconstrói. E os padrões de auto-
organização dos usuários que contribuem para seu conteúdo têm caráter emergente.
Assim, estudar a criação destes padrões em sistemas complexos — ou em simulações
computadorizadas — pode gerar insights sobre como se comportam.


movement of its pieces than we can understand the behavior of an ant colony in terms of averages. Under
these conditions, the whole is indeed more than the sum of its parts.


316

Novidade e resiliência

Os sistemas complexos tendem a adquirir o que se pode chamar de “vida própria”, isto é,
tornam-se tão complexos e criam tantas interdependências que exibem algumas
características de seres vivos. Os sistemas aprendem, evoluem, aumentam e
eventualmente se reproduzem, mesmo quando são apenas entidades baseadas em código.
As hierarquias que surgem dentro de um sistema complexo adaptativo são de natureza
diversa das hierarquias tradicionais. Estamos acostumados a lidar com hierarquias de
cima para baixo, de caráter impositivo, como numa empresa, onde um diretor tem poder
sobre um chefe e este sobre analistas etc. A hierarquia que predomina nos sistemas
complexos é de baixo para cima, isto é, estruturas superiores (em escala) são geradas a
partir de padrões de interação e comportamento de agentes em níveis inferiores. É como
se uma empresa fosse ágil o suficiente para autoprojetar sua própria estrutura de poder e
funcionamento conforme sua função se modificasse.
Alguns teóricos do campo do design enxergaram o potencial inovador dos processos
emergentes e hoje tentam implementá-lo tanto em modelos teóricos quanto no mundo
prático. É o caso de Gregory Van Alstyne e Robert Logan, professores da Universidade
OCAD, no Canadá.
Nós propomos que o design possa cultivar o processo de emergência;
pois é somente através de desdobramentos emergentes bottom-up,
interativos massivos que produtos e serviços novos podem ser
melhorados com sucesso, e introduzidos e difundidos no mercado.
(LOGAN e VAN ALSTYNE, online)144

Neste mesmo sentido e com esta mesma expectativa, tentamos criar processos emergentes
através da modelagem de software, gerando agentes randômicos e projetando
comportamentos experimentais para que, soltos no ambiente, possamos observá-los e
verifica-los. Geralmente este processo envolve uma infinidade de ajustes e alterações no
código até que algum traço emergente se manifeste.

Algoritmos como ferramenta


144
We propose that design must harness the process of emergence; for it is only through the bottom-up
and massively iterative unfolding of emergence that new and improved products and services are
successfully refined, introduced and diffused into the marketplace


317

Os experimentos trazidos para o Hub 2020 foram criados a partir de algoritmos que usam
funções randômicas. A intenção destes experimentos é a de perceber como se formam
padrões emergentes a partir de inputs aleatórios. A ideia é sempre a de gerar
comportamentos emergentes a partir de agentes interdependentes (que se influenciam
mutuamente) e algumas poucas regras impostas pelo próprio algoritmo. Frequentemente
os padrões que emergem destas experiências são um tanto inesperados e surpreendem
seus criadores, como foi o caso do algoritmo tratado neste artigo especificamente, cujo
código se encontra anexo a este artigo.
O trabalho exposto145 foi criado para a linguagem Processing146, mas o código
apresentado de fato no evento foi transposto para outra biblioteca javascript, p5.js147, para
que fosse possível que outras pessoas pudessem, no decorrer da exposição, ver o resultado
numa página web, pois enquanto o código Processing não pode ser apresentando
diretamente numa página web, o p5.js pode. O algoritmo foi concebido para descobrir
qual o padrão resultante de uma distribuição de vários pontos que se perseguem
mutuamente a partir de posições aleatórias num grid bidimensional. Assim, define-se logo
nas primeiras linhas do código o número de pontos a ser criado. O padrão definido para
cada ponto é que ele deve perseguir o ponto anterior, diminuindo o espaço entre eles a
cada ciclo. Para isso, divide-se a distância entre o ponto corrente e o anterior em um certo
número de segmentos e fazemos o ponto se movimentar a distância de um segmento por
ciclo.
O padrão resultante é o de uma elipse. Mesmo quando usamos números mais altos, como
50 ou 100, existe uma clara tendência para que a matriz de pontos venha a encontrar
estabilidade em torno de uma forma elíptica. De forma análoga, outros experimentos
podem ser idealizados para que se incentive a ocorrência de fenômenos emergentes para
que, a partir de posterior análise, se descubra as interações que deram forma ao que se
observa.


145
Acesso à simulação apresentada e ao código fonte através da URL
https://www.caramboladigital.com.br/expohub/
146
www.processing.org
A linguagem Processing é voltada para o aprendizado de programação a partir de uma visão artística. Ela foi criada
por Ben Fry e Casey Reas com o auxílio do MIT MediaLab e do Instituto Ivrea de Design.
147
www.p5js.org
O p5.js é uma biblioteca javascript que guarda muitas semelhanças com o Processign. Ela foi criada para tornar a
programação acessível a artistas e designers. Atualmente o projeto é liderado por Moira Turner e foi criado por
Lauren McCarthy.


318

Referências

ALÃO, Rui S. D. Design e emergência: concepção de projeto no design contemporâneo.


Dissertação de mestrado. São Paulo: UAM. 2008.
ALÃO, Rui S. D. Projeto e complexidade. Reflexões sobre um design colaborativo. Tese de
doutorado. São Paulo: FAU USP. 2015.
HOLLAND, John. Emergence: from chaos to order. New York: Basic Books. 1999.
LOGAN, Robert. VAN ALSTYNE, Greg. Designing for Emergence and Innovation:
Redesigning Design. Disponível em
‹http://www.bealinstitute.org/blog/system/files/VanAlstyneLogan_DesEme_Artifact.pdf›.
Acessado em março de 2015.
TAURION, Cezar. Open Source Software: evolução e tendências. Disponível em
‹http://www.smashwords.com/books/download/48905/1/latest/0/0/open-source-evolucao-e-
tendencias.pdf›. Acessado em janeiro de 2014.

Anexo 1
Código do sketch em p5.js


let n=20; // número de agentes
let x = [];
let y = [];
let d = 10; // diametro das bolas
let passos = 50;// passos para diminuir distancia

function setup() {
createCanvas(960, 600);
fill(255,0,0, 188);
noStroke();
for (let i = 0; i <n; i++) {
x[i]=random(960);
y[i]=random(600);
}
}

function draw() {
background(0);
for (let i=0; i<n; i++) {
if (i==(n-1)) {
x[i] = x[i] - (x[i]-x[0])/passos;
y[i] = y[i] - (y[i]-y[0])/passos;
} else {
x[i] = x[i] - (x[i]-x[i+1])/passos;


319

y[i] = y[i] - (y[i]-y[i+1])/passos;


}
ellipse(x[i], y[i], d, d);
}
}

function mousePressed() {
// Ações do mouse
for (let i = 0; i <n; i++) {
x[i]=random(1200);
y[i]=random(900);
}
}


320

Travessias entre natureza e arte

Crossings between nature and art

Sandra Rey148

Resumo

A partir da abordagem e posicionamento a respeito do tema da mesa, — Ecocentrismo, natureza


e arte — o artigo propõe trabalhar a transdisciplinaridade do conceito de paisagem que opera tanto
em áreas científicas como a geografia, o meio ambiente, e as ciências sociais, quanto na arte e no
campo da estética. A partir da experiência no desenvolvimento de um projeto artístico,
“Desdobramentos da paisagem”, a análise incide sobre as inferências que se sucedem quando o
conceito de paisagem migra do território para o campo da arte e da estética considerando que a
artealização de um ecossistema em paisagem supõe uma dinâmica, e interação recíproca entre o
sujeito e a natureza.

Palavras chave: ecocentrismo, meio ambiente, paisagem.

Abstract

By the approach and positioning regarding the theme proposed, - Ecocentrism, nature and art -
the article approach the transdisciplinarity of the concept of landscape that operates both in
scientific areas such as geography, the environment, and the social sciences, and artistic field as
art and aesthetics. Based on the experience in the development of an artistic project, “Unfoldings
of the landscape”, the analysis focuses on the inferences that occur when the concept of landscape
migrates from the territory to art and aesthetic fields, considering that the mutation of an
ecosystem in landscape supposes a dynamic and a reciprocal interaction between the subject and
nature.

Keywords: ecocentrism, environment, landscape.

Durante muito tempo os organismos sociais e os direcionamentos políticos foram orientados pelo
pensamento do homem como sendo o centro de Universo em torno do qual gravitam os demais
seres, em papel meramente subalterno e condicionado. Porém, diante dos processos acelerados
de degradação da natureza as questões que envolvem o meio ambiente e ecologia passam pelo
enfrentamento de diversos pontos de ordem cultural, social, filosófica e política na medida em
que se torna urgente uma nova forma de relação entre homem e natureza. E os aspectos já
definidos nessa relação requerem, parece-nos, uma mudança radical em nossas percepções,
conceitos e valores.


148
Sandra Rey. Artista Plástica, desenvolve produção artística em grandes e pequenos formatos, vídeos, instalações e
livros de artista a partir de pesquisas em fotografia sobre natureza envolvendo aspectos da cultura e tecnologia digital.
O processo artístico implica um vínculo estreito entre pesquisa formal, técnica e reflexão teórica, resultando na
articulação do pensamento visual com a escrita. Expõe, realiza curadorias e publica textos e artigos sobre questões
referentes à pesquisa em Artes Visuais e escritos de artista. Ë pesquisadora nível 1 no CNPq. Docente no PPG Artes
Visuais da UFRGS.


321

Não se pode deixar de reconhecer que a crise no meio ambiente resulta de uma visão mecanicista
do mundo. Essa visão, ignorando os limites biofísicos da natureza e os estilos de vida das
diferentes culturas, promoveu a acelerada degradação do meio ambiente, e o aquecimento global
do planeta.
É sobre a consideração do homem como eixo principal de um determinado sistema que se
organiza o conceito de antropocentrismo. Etimologicamente, o vocábulo deriva do grego
(anthropos = espécie humana) e do latim (centrum, centricum = centro), daí o pensamento
antropocêntrico somente reconhecer o valor das coisas, dos bens e da natureza enquanto sejam
úteis para os humanos.
Para que se começasse a refletir sob outra perspectiva acerca da relação homem-natureza, levou
muito tempo.
No entanto, pode-se afirmar que em todas as épocas e períodos, sempre existiu uma minoria
contestadora que criticava a colocação do ser humano em uma posição privilegiada em relação
aos demais seres, e à natureza. Em oposição ao antropocentrismo, surgem movimentos com base
nos conceitos de ecocentrismo e a filosofia denominada ecologia profunda, cujos fundamentos
criticam os padrões de consumo da modernidade e propõe uma ética ambiental reconciliadora, na
qual homem e natureza estabeleçam uma relação mais equilibrada.
Na gênese do ecocentrismo estão presentes tanto um movimento de celebração da natureza,
quanto a crise da concepção de progresso. As ideias na base do ecocentrismo levam ao
entendimento de um direito comum entre o humano e todos os seres em seus diversos
ecossistemas, e questionam o uso de bens ambientais com base no modelo de dominação, no qual
o homem pode usufruir indiscriminadamente, e para qualquer finalidade, de todos os bens da
natureza e dos demais seres.
Esses movimentos orientados pelo ecocentrismo apontam para uma mudança de consciência na
medida em que postulam pela não separação entre ser humano e o meio ambiente natural,
reconhecendo o valor intrínseco de todos os seres vivos, e pensando o humano como um dos fios
da teia da vida.
O materialismo moderno é questionável a partir de uma perspectiva ecológica. Perante as
circunstâncias provocadas pelas sociedades neoliberais, precisamos encontrar meios para uma
vida mais sustentável tanto para nós, humanos, como para os demais seres e a natureza.
Seria ainda possível elaborar novos significados na relação do homem com a natureza?
É nesse contexto mais amplo que introduzimos o conceito de paisagem, pensando-o como
transdisciplinar atravessando várias áreas do conhecimento, entre elas, a geografia, ecologia,
arquitetura, artes visuais e estética. Na geografia, por exemplo, a paisagem é definida como uma
área da superfície terrestre que nasce como resultado da interação entre diversos fatores (bióticos,
abióticos e antrópicos) e que conta com um reflexo visual no espaço. Maderuelo (2005) considera
que,


322

...em cada maneira de ver a terra, em cada maneira de descrevê-la ou representa-


la supõe-se que haja um tipo diferente de pensamento. Se estabelece assim, uma
relação entre objeto e sujeito através do olhar que se torna intencional e
instrumental e que põe em evidência um paralelismo sinestésico entre olho e
pensamento. Vemos somente aquilo que somos capazes de reconhecer, e pensamos
conforme aprendemos a ver a diversidade fenomênica do mundo.

Visto o conceito de paisagem presentar-se como um conceito transdisciplinar, como operar a


travessia das questões que cercam a natureza, e o meio ambiente, para as questões da arte?
Achamos natural pensar que a paisagem faça parte de um ecossistema e que esta constituiria um
de seus aspectos. Porém, pensar os problemas que enfrentamos em relação a biossistemas não
incluem, necessariamente, pensar a paisagem. Embora legítimo considerar que a paisagem faça
parte do meio ambiente, esta não é redutível ao entorno físico e geográfico. Roger observa que o
conceito de paisagem não é um conceito científico, pois esta não é redutível a um ecossistema,

... podemos dizer que a paisagem é a realidade de um espaço terrestre


percebido e deformado pelos sentidos. (Roger, 1997, p.130)

O conceito de paisagem é uma noção mais antiga, de origem artística, que implica a percepção
em uma análise essencialmente estética.

(...) A paisagem, enquanto ideia que representa o meio físico, é o outro, algo que
se encontra fora de nós e nos rodeia, mas enquanto constructo cultural é algo que
concerne muito diretamente ao indivíduo, já que não existe paisagem sem
interpretação. (Maderuelo, 2005, p.36).

Entre as várias concepções sobre paisagem, a visão que foi muito difundida durante o
Renascimento definia paisagem como “uma porção do espaço que pode ser observada com um
golpe de vista”. Tendo influência de fatores estéticos, a paisagem é a apreensão do mundo de uma
forma individual.
Os conceitos de natureza e meio ambiente, são conceitos de inspiração predominantemente
científica. Já o conceito de paisagem tem origem no século XV com o desenvolvimento da
perspectiva e a invenção de um novo espaço de representação que, pouco a pouco, e
laboriosamente, vai inscrevendo a paisagem no espaço pictural.
A Natureza, no conjunto multiforme dos seus objetos, tem sido considerada, ao longo da História
da Estética, como um motivo central da experiência estética e como objeto de reflexão teórica.
Portanto, precisamos retornar à pergunta: como operar o atravessamento do conceito de natureza
para a paisagem?
Para melhor compreendê-la, coloquemos a questão de outra maneira: como passar do ecossistema
para a percepção, do determinismo do mundo real, para os processos simbólicos agenciados pela
arte?


323

O processo de artealização de um ecossistema — em paisagem — supõe uma dinâmica de


interação recíproca entre o sujeito e natureza.
Provavelmente levando em conta as distopias entre natureza e paisagem que Roger desvincula o
conceito de meio ambiente da paisagem. A palavra paisagem deriva do francês paysage; esse
termo tem origem na palavra “pays”, que pode ser definido, de forma simplificada, como regiões
que apresentam relativa homogeneidade física. O “pays”, segundo Rogé, “é o grau zero da
paisagem, o que precede sua artealização, seja direta (in situ) seja indireta (in visu)”.

... e é aos artistas a quem cabe lembrar-nos essa verdade primeira, porém esquecida:
que um território não é, por si só, uma paisagem, e que há, entre um e outro, toda
uma elaboração da arte. (Roger, 1997, p.18)

No contexto da minha prática artística o processo de artealização da natureza — em paisagem —


se dá a partir da interação recíproca entre o sujeito e natureza. Implica na permuta constante entre
experiência de vida com questões que envolvem o meio ambiente, e interrogações inerentes à
própria arte. Essas permutas organizam-se como um círculo que nunca se fecha e que,
diferentemente do círculo vicioso da repetição, se apresentaria como virtuoso, no sentido de
sempre estar aberto para novos desdobramentos desse encontro sujeito-natureza.
O “grau zero da paisagem” no meu projeto artístico acontece em deslocamentos na natureza, no
ato de caminhar, percorrer determinada extensão, sem mapas ou coordenadas pré-estabelecidas.
A vivência promovida pelo ato de caminhar e fotografar detalhes da natureza, no entorno, é
fundadora dos processos em ateliê.
A presença da palavra “desdobramento” no título do projeto “Desdobramentos da Paisagem”
indica as constantes trocas, reciprocidades, e tensões, entre a experiência vivida nas caminhadas
em sítios naturais (in situ) e o processo de instauração de imagens no desenvolvimento do trabalho
em estúdio (in visu).
Esse seria, digamos, o escopo da prática artística que venho desenvolvendo há vários anos e que
se fundamenta em pensar a relação do humano com a natureza a partir de caminhadas em sítios
naturais, fundamentadas na noção de experiência e, num segundo momento, em processos de
montagem em estúdio.

Paisagem para desobstruir obstáculos (tríptico)


70 x 260 cm. 2015-20


324

“Desdobramentos da Paisagem” coloca o desafio de promover uma retomada da consciência da


Natureza tendo como horizonte a noção de experiência através de caminhadas em ecossistemas
pouco contaminados pelos processos de globalização.
Ao longo do tempo, venho observando várias questões que se atravessam no desenvolvimento
desse projeto, por exemplo, a prática in situ é orientada para a transmutação da experiência
estética na natureza em experiência artística no ateliê. Assim, a fotografia adquire um duplo
estatuto no projeto: ao mesmo tempo, documento (dos sítios atravessados) e matéria prima
(material) para fazer arte envolvendo processos de montagem digital.

A fotomontagem é um gênero de expressão visual baseado na justaposição e


fusão semântica de imagens fotográficas sobre um mesmo plano, ou suporte, que foi
conceitualmente consolidada como técnica e meio de expressão artística e ideológica
desde 1920, com a influência do cubismo e no seio do movimento dadaísta.
(Capistrán, 2008, p.19)

Tanto em seus processos de produção, quanto na recepção, a arte leva a experimentar novas
conexões dos pensamentos, e a mente a formar novas redes de significados. A fotomontagem
permite a criação de imagens a partir de fragmentos, possibilitada pela invenção de diversos
métodos que, associados uns aos outros dentro de um mesmo espaço visual, se integram para
formar uma unidade nova, tanto na forma quanto no conteúdo.

Antropoceno [1], (díptico), 10x164,81cm, 2019


325

No contexto atual, de que maneira situar a experiência artística frente a acelerada degradação da
natureza? A natureza não é mais íntegra e inviolada, tal como a vemos nas pinturas do
Renascimento. Está sendo constantemente atacada pelas máquinas que recortam as florestas para
abrir estradas, é frequentemente golpeada por motosserras que derrubam, em poucos dias, floresta
que a natureza levou centenas de anos para erguer.

Série Jardim das Delícias, Fotografia, 2012

Então, como colocar em trabalho o conceito de paisagem, a não ser através de fragmentos de
imagens que, quando reunidas, possam incitar a imaginação a perceber que o que se apresenta
como imagem única é constituído por pedaços heteróclitos de um mesmo lugar e, por essa via,
despertar a consciência sobre a desagregação da natureza tal como a concebíamos até pouco
tempo?
A experiência estética na base dos processos artísticos, e de sua recepção, seria capaz de alterar
na consciência que temos do mundo, e de nós mesmos? Essas questões, como bolhas de ar que
saltam à superfície quando expiramos embaixo da água, frequentemente emergem do processo
artístico.
É importante lembrar que a arte não é o domínio das certezas, ou da verdade passível de ser
comprovada pelas ferramentas da ciência, a arte situa-se no âmbito da singularidade. Mais
importante que encontrar respostas é colocar questões que possam ser potencialmente
desdobradas em impulsão para a atividade criadora.


326

Sejam as questões que orientam a pesquisa dos artistas oriundas das ciências sociais ou exatas,
sejam oriundas da própria arte, o importante é que possam fomentar a atividade criadora. E as
contradições e ambiguidades, num processo artístico, não constituem fragilidades, simplesmente
apontam para a complexidade do pensamento aí envolvido. É preciso ter presente que a arte não
se atém nos limites de uma ciência exata, ela situa-se no universo da disparidade.

Notícias do Paraíso. Fotomontagem, 89x126cm, 2018.


Para finalizar, aproximaremos um filósofo que se dedicou a pensar a arte em suas relações com
as ciências. Para Heidegger, na origem de uma obra de arte não está em questão as descobertas
sobre como o universo funciona, como os átomos e moléculas se comportam, ou a invenção de
ferramentas e técnicas que forneçam maior controle sobre a natureza e a nossa existência. Embora
seja inegável que a atividade artística seja beneficiada dos avanços da ciência, a arte pertence a
outro lugar.

A que lugar pertence a obra? A obra pertence, como obra, unicamente ao âmbito
que se abre através dela própria. Pois o ser-obra da obra vigora e vigora somente em
tal abertura. Dissemos que na obra o acontecimento da verdade está em obra.
(Heidegger, 2010, §72, p101)
Essa verdade que está em acontecimento na obra de arte pertence, como aponta Heidegger, “ao
âmbito que se abre através dela própria”. Será, portanto, uma verdade sempre circunstancial e
singular, fundada na relação sujeito-objeto, vínculo indissolúvel no qual o sujeito-artista encontra-
se profundamente implicado no objeto que produz.


327

Referências
Barrés, Patrick. Expériences du lieu: architecture, paysage, design. Paris: Archibooks, 2008.
Capistrán, Jacob B. Fotomontaje. Madrid: Ed. Cátedra, 2008.
Heidegger, Martin. A origem da obra de arte. São Paulo: Ed 70, 2010.
Maderuelo, Javier. El Paisage, génesis de um concepto. Madrid: Abada Editores, 2913.
Roger, Alain. Court Traité du Paysage. Paris: Gallimard, 2013.


328

A função simbólica da nanotecnologia no design têxtil

The symbolic function of nanotechnology in the textile design

Sarah de Godoy149
Milton Sogabe150

Resumo
Este artigo analisa a função simbólica da nanotecnologia no design de têxtil para vestuário. O método
utilizado é o de estudo qualitativo, na modalidade descritivo-observacional, associado às questões
simbólicas do design, as quais derivam principalmente dos aspectos estéticos do produto. O estudo revelou
que a função simbólica da nanotecnologia no design têxtil tem na materialidade a distinção sutil entre o que
constitui o objeto e o que emana dele.
Palavras-chave: Função simbólica, Nanotecnologia, Design Têxtil, Vestuário

Abstract
This article analyzes the symbolic function of nanotechnology in the design of textile for clothing. The
method used is that of a qualitative study, in the descriptive-observational modality, associated with the
symbolic issues of design, as which mainly derive from the aesthetic aspects of the product. The study
revealed that the symbolic function of nanotechnology in textile design has in materiality the subtle
distinction between what constitutes the object and what emanates from it.
Keywords: Symbolic function, Nanotechnology, Textile Design, Clothing

Introdução
Este artigo analisa a função simbólica da nanotecnologia no design de têxtil para vestuário, por
meio de um estudo qualitativo, na modalidade descritivo-observacional, associado às questões
simbólicas do design. Os aspectos relacionados à função simbólica da nanotecnologia
incorporada ao design têxtil para vestuário são determinados por todos os aspectos espirituais,
psíquicos e sociais do uso, que possibilitam ao ser humano, por meio de sua capacidade espiritual,
fazer associações com as experiências passadas. Neste contexto, é apresentado o significado da
nanotecnologia e seus mecanismos de ressignificação no design têxtil, considerando que a
nanotecnologia é integrada ao design têxtil por sua capacidade de reconfigurar têxteis utilizando
o mesmo mecanismo fabril para a produção da nova proposta.
A escolha deste tema se dá pelas transformações da sociedade, que impulsionaram uma busca
inevitável por melhorias na qualidade percebida nos produtos industriais. Isso porque, no século
XXI, satisfazer a necessidade do consumidor não depende apenas da qualidade técnica que um


149
Sarah de Godoy, Mestranda em Design pela Universidade Anhembi Morumbi com foco em
nanotecnologia e suas aplicações no Design de Moda no Brasil. Pós Graduada (Lato Sensu) em Gestão de
Marketing pelo Centro Universitário Senac de São Paulo/SP; Graduada em Desenho de Moda pela
Faculdade Santa Marcelina - FASM/SP.
150
Milton Terumitsu Sogabe, Realizou pós-doutorado na Universidade de Aveiro, Portugal. Doutor e
Mestre em Comunicação e Semiótica, pela PUC-SP e licenciado em Educação Artística, pela FAAP-SP.
Produção artística nos anos 70 em desenho, gravura e grafite, nos anos 80 em arte-telecomunicação, anos
90 em instalações interativas e século XXI em arte pós-digital. Docente do PPG Design da Universidade
Anhembi Morumbi. Bolsista produtividade PQ CNPq desde 2008.


329

produto pode oferecer, mas também da capacidade desses produtos em significar algo para o
usuário final (CARDOSO, 2016; SOLOMON, 2004; NORMAN, 2008).
Para melhor entendimento deste artigo, sua organização se dá em dois macromomentos, sendo o
primeiro a análise da nanotecnologia no design têxtil. E o segundo, o estudo qualitativo, na
modalidade descritivo-observacional, associado às funções simbólicas do design, onde a
nanotecnologia é apresentada como recurso para ressignificação de tecidos destinados à
confecção de artigos para vestuário.

Nanotecnologia no design têxtil


Nanotecnologia envolve a investigação e design de materiais ou dispositivos em níveis atômico
e molecular, sendo os nanomaterias arranjos de matéria em escala de comprimento de
aproximadamente 1 a 100 nanômetros, que exibem características únicas devido ao seu tamanho.
Um nanômetro equivale a um bilionésimo de um metro e abrange aproximadamente 10 átomos
(MILLER; SERRATO; REPRESAS-CARDENAS; KUNDAHL, 2004). Nesse sentido, para a
categorização de um produto ou processo trabalhado em nanoescala, adota-se a definição
desenvolvida pelo ISO TC 229 (International Organization for Standardization), em que se
verificam duas características fundamentais: a) produtos ou processos tipicamente, mas não
exclusivamente, abaixo de 100nm (cem nanômetros); b) propriedades físico-químicas diferentes
dos produtos ou processos em escalas maiores.
No século XXI, com a Quarta Revolução Industrial151, a nanotecnologia tem colaborado com o
desenvolvimento de diversos setores como: tecnologia de informação, energia, meio ambiente,
segurança, tecnologia de alimentos, transporte, têxtil, entre outros. Na indústria têxtil,
especificamente, a nanotecnologia é empregada como inovação incremental (TIGRE, 2006). A
inovação incremental, segundo Christensen (2000), explora formas ou tecnologias existentes, por
meio de pequenas mudanças, melhorias e reconfigurações, baseadas em conhecimento
estabelecido e capacidades organizacionais existentes.
A nanotecnologia é considerada inovação incremental no design têxtil por sua capacidade de
reconfigurar têxteis e atribuir-lhes novas características e propriedades específicas que podem, ou
não, complementar e/ou potencializar as já existentes em sua estrutura e composição, utilizando
o mesmo mecanismo fabril para a produção da nova proposta (NORMAN, 2018). Nesse sentido,
nanotecnologia no design têxtil para vestuário é projetada para atender necessidades específicas
dos usuários, tais como: controle de temperatura, retardo de chamas, proteções ultravioleta e
antimicrobiana, repelente de elementos como água, óleo, odor e insetos. Esses tecidos também


151
De uma forma simplificada trata-se de uma indústria que utiliza ao máximo as tecnologias da
informação, comunicação e localização (TI) mais avançados, e a robótica para desenhar, projetar e produzir
produtos (AMARAL, 2016).


330

apresentam um aprimoramento na sua performance no que diz respeito a conforto, qualidade,


desempenho, acabamento, resistência e estabilidade (JOHNSON E COHEN, 2010).
Na indústria têxtil, a nanotecnologia pode ser empregada nas etapas de fiação, tecelagem e
beneficiamento. Neste contexto, o design têxtil considera o tecido no seu todo, isto é, como objeto
bidimensional em que ambos os lados (direito e avesso) são indissociáveis das propriedades e
características do todo (MELO, 1981). Neste cenário, o pensamento projetual para o
desenvolvimento de têxteis com nanotecnologia tem caráter sistêmico, uma que vez que os
aspectos relacionados às funções práticas, estéticas e simbólicas estão integrados e são
interdependentes para que o objetivo final da proposta seja alcançado (BERTALANFFY, 1972).
Os aspectos relacionados às funções práticas da nanotecnologia incorporada ao design têxtil para
vestuário, compreendem às relações entre um tecido e seus usuários no nível orgânico-corporal,
isto é, fisiológico de uso. É por meio dos aspectos funcionais que as necessidades fisiológicas dos
usuários são satisfeitas. Os aspectos funcionais dos produtos preenchem as condições
fundamentais para a sobrevivência do ser humano e mantêm a sua saúde física. Sob a ótica da
percepção, uso sensorial de produtos (percepção dos produtos com os sentidos, principalmente a
visual, tátil e sonora) se dá por meio dos aspectos estéticos do produto (LÖBACH, 2001).
Os aspectos relacionados à função estética da nanotecnologia incorporada ao design têxtil para
vestuário são responsáveis pela relação entre um produto e um usuário no nível dos processos
sensoriais. A função estética dos produtos é um aspecto psicológico da percepção sensorial
durante o seu uso. Configurar produtos significa dotá-los de funções estéticas, atendendo à
percepção multissensorial do usuário. O uso sensorial de produtos depende de dois fatores
essenciais: das experiências anteriores com as características estéticas e da percepção consciente
dessas características. Os aspectos estéticos se impõem à nossa percepção, unindo-se a outras
funções e as superando, além de promover a sensação de bem estar, identificando o usuário com
o produto, durante o processo de uso (LÖBACH, 2001).
Neste contexto, compreendemos percepção como o processo pelo qual as pessoas selecionam,
organizam e atribuem significado às sensações causadas pelos receptores sensoriais a estímulos,
como imagens, sons, odores, gostos e texturas. Considera-se que os significados atribuídos a essas
sensações sejam o resultado de um processo de aprendizagem consolidado em dois aspectos
fundamentais: a objetivação dos processos e os significados subjetivos (SOLOMON, 2009;
BERGER; LUCKMANN, 2004). A percepção possibilita uma relação originária com a existência
das coisas que se apresentam a nós como fenômenos e é impensável sem o sujeito vivido que
percebe a partir de uma presença vivida (MERLEAU-PONTY, 1999).

A função simbólica da nanotecnologia


A função simbólica da nanotecnologia deriva principalmente dos aspectos estéticos do produto e
se manifesta por meio de elementos como forma, cor, tratamento de superfície, entre outros. A


331

função simbólica e a função estética têm estreita relação e interdependência entre si. A função
simbólica pode-se juntar a função prática, a função estética, ou ambas. Sempre, porém, umas das
funções terá prevalência sobre as outras. Se predominar a função simbólica falamos de um
princípio de configuração simbólico-funcional ou de uma estética simbólico-funcional
(LÖBACH, 2001).
Neste contexto, a “significação” é aqui entendida como o processo mediante o qual significados
vão sendo acrescentados, subtraídos e transformados em relação ao conjunto total das formas
(CARDOSO, 2016). Nesse sentido, os aspectos associados à função simbólica da nanotecnologia
incorporada ao design têxtil para vestuário, inquestionavelmente lida com significados – sejam
eles comerciais, simbólicos ou de outra ordem (LATOUR, 2014, p. 6). Os tecidos com
nanotecnologia, que são produtos industriais, são frutos de processos rigidamente controlados de
fabricação, distribuição e comercialização, que se originam por meio de um projeto, no qual o
propósito maior é embutir significados aos objetos: codificá-los com valores e informações que
poderão ser depreendidos tanto pelo uso quanto pela aparência percebida sensorialmente e pela
capacidade mental de associação de ideias (LÖBACH, 2001; CARDOSO, 2016).
Desta forma, a produção de têxteis destinados a confecção de artigos para vestuário, que possuem
nanotecnologia, implica um novo pensamento sobre design têxtil e ciência para inovar em
soluções, considerando que a possível democratização dos têxteis com nanotecnologia destinados
à confecção de artigos para vestuário, reside no potencial do processo de aplicação da
nanotecnologia em fibras e tecidos, para que a concepção das necessidades do usuário seja
atendida, de forma que a proposta final resulte em um novo produto com uma nova funcionalidade
ou com um upgrade, que supere as características originais (BAURLEY, 2003; TAIEB et al
2010).
Neste viés, o design têxtil se apresenta como um processo de configuração de tecidos, que visa
torná-los mais vivos, mais comerciais, mais usáveis, mais agradáveis ao usuário, mais aceitáveis,
mais sustentáveis, dependendo das diversas restrições com as quais o projeto precisa lidar
(LATOUR, 2014). Segundo Latour (2014), a expansão do conceito de design têxtil, indica uma
mudança profunda em nossa constituição emocional: no momento em que a noção do que
significa “fazer”, no caso, têxteis com nanotecnoliga, também está sofrendo profundas
modificações, as quais resultam no pensamento de que as coisas já não são “feitas” ou
“fabricadas”, mas sim cuidadosamente – ou cautelosamente – elaboradas através do design. É
portanto, extremamente importante atentarmos para o quão profundamente encaramos os
artefatos cotidianos, elementos constituídos pelas diversas facetas do design (LATOUR, 2014).

Considerações finais
O estudo revelou que a nanotecnologia, que consiste na redução do tamanho de materiais que
deverão ser manipulados e/ou estruturados para serem incorporados no design têxtil para


332

vestuário, a fim de ampliar o espectro perceptivo do usuário em relação aos aspectos relacionados
às funções práticas, estéticas e simbólicas, tem na materialidade dos produtos, a distinção sutil
entre o que constitui o objeto e o que emana dele, a qual se coloca historicamente em diversas
áreas do pensamento humano por contraposições variadas como coisa em si × fenômeno; forma
× conteúdo; representante × representação; significante × significado (CARDOSO, 2016;
SENAI-SP, 2013; MEDEIROS; PATERNO; MATTOSO, 2006)
A análise dos aprimoramentos relacionados à função simbólica no design de têxteis para vestuário
por meio da atuação da nanotecnologia como inovação incremental aponta que, o
desenvolvimento de têxteis com nanotecnologia, partem de demandas mercadológicas e tem
como eixo questões de funcionalidade. Contudo, a nanotecnologia no design têxtil integra os
aspectos relacionados às funções simbólicas e estéticas às funções práticas, a fim de promover
conforto, bem estar e estilo aos usuários, suprindo as necessidades técnicas e simbólicas atreladas
aos tecidos, que antes não tinham essa propriedade.

O desenvolvimento da nanotecnologia como inovação incremental no design têxtil poderá


inaugurar uma nova fase da função das roupas para os usuários, atuando como uma segunda pele
tecnológica, que transcenderá as necessidades atuais, para as quais é empregada. Dentro deste
contexto, a aplicabilidade da nanotecnologia no design têxtil poderá se tornar democrática,
passando a abranger todos os nichos e segmentos de mercado, atuando de maneira profilática,
protetora, detectora e informadora de seus usuários.

Referências
BAURLEY, S et al. (2007) Communication-Wear: user feedback as part of a co-design
process. Lecture Notes in Computer Science, v. 4813.
BERGER, Peter. L. e LUCKMANN, Thomas (2004). A construção social da realidade: um
livro sobre sociologia do conhecimento. Lisboa: Dinalivro.
BERTALANFFY, Ludwig von (1972). Teoria Geral dos Sistemas. Petrópolis: Vozes.
CARDOSO, Rafael (2016). Design para um Mundo Complexo. São Paulo: Cosac Naify.
CASTRO, E.M. de Melo e (1981). Introdução ao Desenho Têxtil. Lisboa: Editorial Presença.
INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR STANDARDIZATION (ISO) (2017). Ballot on
ISO/DTR 12885: nanotechnologies: health and safety practices in occupational settings.
Geneva. Documento em PDF: norma não publicada em discussão pública.
JOHNSON, Ingrid e COHEN, Allen C (2017). Fabric Science. New York, NY: Fairchild
Publications, v. 9.
LATOUR, Bruno (2014). Um Prometeu Cauteloso? Alguns passos rumo a uma filosofia do
design (com especial atenção a Peter Slotedijk). Agitprop: revista brasileira de design, São
Paulo, v.6, n. 58, jul/ago.
LÖBACH, Bernd (2001). Design Industrial: Bases para a Configuração de Produtos
Industriais Editora Edgard Blücher Ltda.
MEDEIROS, Eliton S.; PATERNO, Leonardo G.; MATTOSO, Luiz H. C. Nanotecnologia. In:
DURÁN, Nelson; MATTOSO, Luiz Henrique Capparelli; MORAIS, Paulo Cezar de (2006).
Nanotecnologia: Introdução, preparação e caracterização de nanomateriais e exemplos de
aplicação. São Paulo: Artliber.
MERLEAU-PONTY, Maurice (1999). Fenomenologia da Percepção. Editora Martins Fontes.


333

MILLER, John C.; SERRATO, Ruben; REPRESAS-CARDENAS, José Miguel; KUNDAHL,


Griffith (2004). “The Handbook of Nanotechnology: Business, Policy and Intellectual
Property Law”. First Edition, New Jersey, Wiley.
NORMAN, Donald A. (2008). Design emocional: porque adoramos (ou detestamos) os
objetos do dia a dia. Rio de Janeiro: Rocco.
SENAI-SP (2013). Nanomundo: um universo de descobertas e possibilidades. São Paulo:
SENAI-SP.
SHULTE, Paul A.; SALAMANCA-BUENTELLO, Fabio (2007). Ethical and scientific issues
of nanotechnology in the workplace. Ciência Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 5,
sep./oct.
SOLOMON, M. (2009). Consumer Behavior: Buying, Having, and Being. New Jersey, Upper
Saddle.


334

Estratégia Interativa para Neutralizar a Reificação

Sidney Tamai152
Thiago Stefanin153
Dorival Rossi154
Luiz A. Vasques Hellmeister155

Resumo
A proposta desse artigo é a reflexão sobre a estratégia da optativa "Programação e Parametria em campo
ampliado entre Arte e Arquitetura" oferecida em 2017 e 2018 através do curso de Artes da FAAC-Unesp-
Bauru, através da: a) concreção, transducção e individuação do objeto técnico como descoisificação.(G.
Simondon) b) interação do sensível espaço/tempo no prescritivo do objeto digital. c) reprodutibilidade
técnica e aura digital (M.Betancourt) d) na dimensão política do dissenso como um Sensorium específico
espaço-temporal (J.Rancière). Essas quatro abordagens estratégicas se apresentam concretamente nas três
etapas da optativa: 1) a lógica dos Dispositivos Técnicos com programação, parametria, sistemas,
diagrama dos códigos/algorítmico, arduínos, sensores. 2) a materialidade formal do digitável na forma
que in-forma. 3) na construção da Linguagem Poética disciplinares e transcisciplinares. Conclusões:
reorientações focais da optativa, como a de ampliar processos interativos e open-source para neutralizar a
reificação, ou seja, a “coisificação” das relações sujeito/objeto.

Palavras chave: poética, estratégia, interatividade, política, digital

A proposta do artigo é a reflexão sobre a optativa "Programação e Parametria em campo ampliado


entre Arte, Design e Arquitetura" oferecida em 2017 e 2018 (FAAC-Unesp), através das três
etapas processuais dessa Optativa. É uma reflexão para qualificar a proposta da Optativa onde
todos são interatores na relação entre humanos/humanos e humanos/objetos e objetos/objetos,
portanto, é entendê-la como um conjunto completo e não alienante onde as etapas são postas em
cheque a partir de alguns parâmetros conceituais para informar e impulsionar novas abordagens
desde os dispositivos técnicos, sua base material/virtual até sua poética. Serão quatro abordagens
estratégicas sobre as três etapas das práticas na Optativa, dos dispositivos técnicos, da
materialidade formal e da poética.

Abordagem estratégica 1

Concreção, interatividade, transducção e individuação do objeto técnico como descoisificação.


152
Doutor, Unesp-Faac ARTES/ARQUITETURA (Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"),
Sidney.tamai@unesp.br , 19-997512085
153
Mestre, Unesp-Faac Midia/Tecnologia, thiago_stefanin@hotmail.com , 14-98180136
154
Doutor, Unesp DESIGN-FAAC (Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho")
dorival@faac.unesp.br
155
Doutor, Unesp-Faac ARTES/ENGENHARIAS (Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"),
luiz.hellmeister@unesp.br


335

Nessa primeira abordagem pensamos a partir dos trabalhos de Gilbert Simondon que analisa o
objeto técnico dentro do contexto da 1ª e 2ª revolução industrial e também a reflexões dos
pesquisadores Jorge Lúcio de Campos e José Pinheiro Neves que permitem repensar a clássica
ideia de objeto técnico como um autômato da re-produção funcional, alienante e só.
Primeiramente é preciso entender as máquinas, os objetos técnicos, atuam como estabilizadores
da entropia do mundo e da sua coesão social. (G. Simondon/J.L. Campos). Compreender que o
objeto técnico é um desejo do humano que lhe dá sentido na utilidade que dele faz, porém, esse
objeto técnico busca a autonomia em relação ao ser humano biológico.
As máquinas não são, portanto, exemplares de fixidez, automatismo e passividade, ao contrário.
Os dispositivos técnicos que assim funcionam, como no automatismo, são anti-máquinas e
utilizadas em sua alienação técnica, longe da eficiência e coesão interna, não aberta a inserção de
dados, portanto, com baixa interatividade. Um exemplo de alienação técnica incorporada a
natureza, enquanto mecanologia (ciência que se ocupa das máquinas) são os controles biológicos
para a produção, como as sementes de trigo condicionadas que geram sementes apenas uma vez
de depois morrem, entropia que elimina o processo de vida contínua por inteiro, gerando uma
dependência artificial das empresas produtoras de sementes.
As máquinas, com dispositivos técnicos de que falamos são outras, são anti-entrópicas
funcionando contra a desordem e a perda energética em infinito desequilíbrio. Essas máquinas
artificiais, assim entendidas, tendem a se individualizar por um processo concretização, que se
assemelha ao processo natural humano, onde o atuar no mundo lhe confere individualidade e
também singularidade, por exemplo. Passa de uma artificialidade desarticulada para uma
interação de componentes internos na direção da coesão e eficiência únicas.
Esse processo de individualidade e singularidade dos objetos técnicos são frutos de uma contínua
evolução das técnicas, são uma camada de conhecimentos, de sistemas, processos, procedimentos
e entendimentos amplos dos objetos. Re-enfatizando que para serem individualizados, os objetos,
passam pelo processo de concretização a partir do desejo e necessidade humana, tornando aquela
matéria funcional e útil; são autorregulados, com estrutura aberta e "indeterminada" o que permite
interfaces sensíveis com outras máquinas constituindo conjuntos e sistemas técnicos. As partes
sensíveis articuladas formam objetos únicos de partes separadas.
Escrevendo de outra maneira, quanto mais o objeto técnico se separa deste corpo de conhecimento
técnico onde supostamente podem estar todos os objetos do mundo, para este ser um super
funcional, mas ele se torna indivisível, improvável e inesperado. Quanto mais o objeto técnico
evolui mais deixa de ser artificial ou como nos diz José Pinheiro Neves em seu artigo: “Seres
humanos e Objetos técnicos”, (pag. 6):
"A artificialidade não é uma característica que denota a origem fabricada do objecto por
oposição à espontaneidade produtora da natureza: a artificialidade é aquilo que é interior


336

à acção artificializante do homem, quer esta acção intervenha sobre um objecto natural
ou sobre um objecto inteiramente fabricado." (Neves, J.P. 2007)

Nessa situação criada do próprio objeto, de interatividade máxima, o objeto técnico perde seu
caráter de artificialidade opositiva ao humano. Os inputs de dados são amplificados por sensores
introduzindo dados sensíveis que respondem além do inteligível do nível do humano, aos
ambientes e ao amplo suporte de vida humana natural. São também amplificados pelas redes de
dados em crescente sintonia e conectividade. (Imagem 1) Portanto essa esfera técnica é mediada
(com inputs progressivos) pelos humanos que traz os objetos e dispositivos técnicos para a
ordem natural dos humanos.

Imagem 1 – Diagrama de Paul Baran e alunos interagindo, dos insights até a produção, na Optativa como
na forma Distribuída das informações/conexões de Paul Baran.

A artificialidade distante, perversa, fixa, muda, surda e insensível do objeto técnico que apenas
rentabiliza é colocada em crise ao qualificar estes por inputs interativos dos grupos sensíveis,
assim, alteramos a relação homem/máquina e afastamos a coisificação tanto dos objetos técnicos
quanto da ação do trabalho humano.

Abordagem estratégica 2
Interação do sensível espaço/tempo no prescritivo do objeto digital.
Nesse contexto apresentado o objeto contemporâneo se abre para outro nível de imputs, de
interatividade e indeterminação, então a questão aqui é que como articular o sensível em um
objeto programável. O objeto abstrato está alinhado a produção contemporânea que se constrói
mais aberta, com interfaces sensíveis para a integração horizontalizada e não hierarquizada, como
até então: extremamente simbolizada e fixada previamente em uma estrutura de significados.
Nessa nova condição entraram os sensores como uma interface amplificadora e interativa das
informações externas, quer sejam do ambiente ou imputs sensíveis de quem organiza, programa
ou propõe um objeto, um arranjo espaço/temporal ou um ambiente, sejam estes físicos e ou
transitivos em sistemas e processos de base digital. Esse conjunto percebe e entra (imput) em um


337

sistema como informação das variações desse ambiente, seja com intensidade da luz, do som, do
movimento, umidade, calor, pressão, ou como quaisquer sensações concretas que indiciam tudo
que possa ser identificado pela variação do sinal da informação. Os sensores que fazem a
transdução do sensível passam, portanto a serem interfaces e pontos de intervalos se posicionando
como espaços para invenções.
Os sensores amplificam a leitura do mundo material, natural, de todo o contexto sensível e os
incorpora por indicialidade sinestésica, em um processo analógico, aproximando o natural ao
objeto técnico pelo próprio processo onde o caráter do que é artificial é também cada vez mais
natural, também, na dimensão humana biológica. Estamos a caminho de programar o sensível,
com estratégias sensíveis. (imagens 2 e 3).

Imagem 2 – parede interativa. Projeto de alunos da optativa com sensores de distância, leds, arduíno com
programação. Horizontalidade nos processos de ensino/aprendizagem, habilidades e opensource.

Um bom exemplo de articulação entre programação e sensores é esse trabalho de Pors & Rao,
onde a obra se modifica ao entrar os expectadores no ambiente, de desorganizada, relaxada passa
a se portar ortogonalmente.
http://www.porsandrao.com/

Imagem 3 – trabalho de Pors & Rao, que articula sensores e programação. Monocromos imperiais, metal,
tecido, carbono, plástico, borracha, alumínio, sensores, componentes mecânicos, 427 x 328 x 6,5 cm /
Galeria SKE na Art Basel Hong Kong 2018. https://www.architecturaldigest.in/content/art-basel-
hong-kong-2018-gallery-ske-presents-pors-rao/


338

Abordagem estratégica 3
Aura na era da reprodutibilidade técnica e no digital a partir das considerações de Michael
Betancourt.
São críticas que qualificam e amplificam nossas considerações, como a da produção sem consumo
do digital que nos despreocupa com o mundo físico, separando meios e efeitos, que nos dá a ilusão
da produção infinita, como na modernidade e ainda gera um valor sem custos como bits sem
átomos.
Baixar arquivos na internet desmaterializa nossa relação com a fisicalidade, desmaterializa a
infraestrutura para transmissão e acessibilidade de dados amplificando a ideia de abundância da
informação e igualdade nos acessos. Aura Digital que supõe abstração e alienação nos processos
de produção, considerando que o digital elimina as formas de produção convencional material,
ou seja, considerações distintas da produção dos objetos técnicos da 1ª e 2ª revolução industrial
eletromecânica até meados dos anos 50 do século XX.
Walter Benjamin, em seu texto clássico “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica” nos
escreve que a Aura na obra de arte é posta em crise pela reprodutibilidade técnica mecânica dos
meios, modificando a ideia de autenticidade e sua história única. Em outro exemplo, no qual o
signo parece não se esvair como no poema de Gertrud Stein ...“uma rosa é uma rosa, é uma rosa
uma rosa” onde a repetição da palavra rosa desgasta seu valor de comunicação em um processo
entrópico.
Nessa crítica de MB a disponibilidade da obra por reprodução em massa, ao contrário, faz por
aumentar a aura desse objeto ou representação desse objeto, aumentando seu valor simbólico,
como acontece nas cidades culturais/turísticas e suas obras únicas re-vistas em massa pela web,
tvs e mobile.
É preciso então considerar que o Objeto Digital tem algumas características distintas do Objeto
Material onde Walter Benjamin discorre sua Aura como objeto artístico. Os Objetos digitais são
informações armazenadas, são dados organizados de infinita reprodução e disponibilidade, são
também virtuais e únicos na identidade. São programas (pré-configurados), isoláveis e em certo
sentido imortais que instrumentalizam o previsível na sua concreção. (imagem 4) A constância
da informação é dada pelo caráter prescritivo das linguagens de código binário das máquinas de
programação distinto das descritivas-denotativas dos humanos, sem, entretanto, estabelecer uma
dicotomia entre humanos e máquinas. Cabe aqui a diferenciação entre o caráter prescritivo e o
descritivo das linguagens. O Prescritivo, enquanto instruções regradas com ordenação lógica de
como se deve fazer alguma coisa, onde está implícita uma ação futura. O Descritivo, enquanto
relato informativo sobre algo que descreve e explica a lógica da coisa.


339

Imagem 4 - de objetos virtuais navegáveis.


Marcos Novak (a esquerda)– Transarchitectures virtual architecture. Experimentações para amplificar o
habitar virtual desde os anos 1980, onde inventou o conceito de arquitetura liquida para o cyberespaço.
https://v2.nl/archive/people/marcos-novak
Asymptote – grupo arquitetônico com o projeto Guggenheim Virtual de 1999. Imagem capturada web
09/08/2020 – https://www.e-flux.com/architecture/post-internet-cities/140714/learning-from-the-virtual/

Diferente dos objetos físicos que tem limite de acessibilidade onde a produção de um número
infinito íntegro de exemplares, o objeto digital não tem perda de dados pela re-produção; portanto
toda reprodução digital pode ser idêntica uma as outras ou não por exemplo ao colocar novas
linhas de programação otimizando o objeto, mas eliminando a ideia de original e cópia com
perdas.

Abordagem estratégica 4
Na dimensão política do dissenso como um Sensorium específico espaço-temporal (J.Rancière)
Duas questões nos chama a atenção em seu artigo, na primeira começamos com uma citação
esclarecedora de J.Rancière sobre a Arte:
"Ela é política antes de mais nada pela maneira como configura um sensorium espaço-
temporal que determina maneiras do estar junto
ou separado, fora ou dentro, face a ou no meio de… Ela é política enquanto recorta um
determinado espaço ou um determinado tempo, enquanto os objetos com os quais ela
povoa este espaço ou o ritmo que ela confere a esse tempo determinam uma forma de
experiência específica, em conformidade ou em ruptura com outras: uma forma
específica de visibilidade, uma modificação das relações entre formas sensíveis e regimes
de significação." (pgn 2)

Arte não é política pelas mensagens que transmite pelo seu "conteúdo" revolucionário
representado. Sua dimensão política está no recorte, na singularidade que apresenta
estranhamento do real ao inventar novos fluxos de espaço-tempo. Não faz simetria simbólica na
relação tipicamente de representação, mas estabelece descompasso e incompletude mobilizando
os participantes para novos significantes sensíveis. (imagens 1 e 2)

A segunda questão é o caráter ficcional da obra de arte.


“Neste sentido, arte e política têm em comum o fato de produzirem ficções. Uma ficção não
consiste em contar histórias imaginárias. É a construção de uma nova relação entre a aparência
e a realidade, o visível e o seu significado, o singular e o comum.” (pgn 8 - J.Rancière)


340

Essa nova relação entre a aparência e a realidade, dada pela ficção, nos faz pensar na articulação
com o processo de individuação do objeto técnico artístico por diferenciação na hora de sua
concretização. Individuação, que por transdisciplinaridade que por atração de novos
procedimentos, não trilhados, propõe novas ficções para novos objetos técnicos artísticos, mesmo
que seja um objeto digital, e para novos entendimentos dos objetos técnicos artísticos.

Conclusões parciais: reorientações necessárias na proposta geral, como a interatividade e open-


source para neutralizar a reificação.
A Reificação é entendida aqui como define o dicionário Oxford Languages: “qualquer processo
em que uma realidade social ou subjetiva de natureza dinâmica e criativa passa a apresentar
determinadas características - fixidez, automatismo, passividade - de um objeto inorgânico,
perdendo sua autonomia e autoconsciência.” É o que normalmente relatamos como
“coisificação”, certa alienação que se estabelece na relação entre sujeito e objeto salientando a
objetificação do que é humano. (ex: quando a rede considera seus usuários um produto disponível
para empresas de comércio on-line). Essa orientação com maior e melhor interatividade através
de imputs mais sensíveis desloca a ideia de objeto quase como escravo e o recoloca com interator
de interfaces sensíveis. Esse conjunto é avaliado nos itens que se seguem.
1) Reorientação na lógica dos Dispositivos Técnicos com programação, parametria, sistemas,
diagrama dos códigos/algorítmico, Arduínos, sensores.
-Articulações inéditas, novas ficções, pois é exigido, com novas estratégias adequadas aos novos
objetos em cena.
-A programação, parametrias, sensores e todos os aparatos técnicos disponíveis em escalas mais
democráticas, são a própria essência da inclusão do sensível nos processos de decisão e produção
da obra de arte contemporânea. O uso de ferramentas de prototipagem open-source.
Resultados de avaliações processuais:
Como estratégia de avaliação foram propostas exercícios de registro e acompanhamentos da
evolução dos projetos, em experiência inicial apos uma oficina de introdução do pensamento
computacional utilizando Arduino e kits de robótica educacional. Foi introduzido os processos de
prototipagem com computação física e também discorrido sobre os procedimentos para a criação
de algoritmos
No final da oficina foi solicitado que os grupos participantes registrassem o desenvolvimento,
suas tentativas, erros e desejos para os próximos exemplos. Abaixo trecho dos relatos dos alunos:
I “conseguimos piscas as cores e acrescentar intervalos entre as cores. Gostaríamos de entender
melhor os códigos e bibliotecas para criar mais coisas”
II “Conseguimos alterar: o padrão do led (aceso ou piscando), a cor dos leds, frequência com que
os leds piscavam, alternância entre as cores, intensidade das cores. Gostariamos de ter feito os
leds alterarem de cor de forma suave(smoothing), mas não conseguimos”


341

III “Variáveis do Arduino e do Led. Conseguimos acender as cores do led RGB e arrumar as
portas nas respectivas cores. Misturar as cores. Fazer fade de transição de cores, alterações no
código FADE, usamos o código Smooth para mudar todas as cores (efeito arco-iris), usar o Blink
com 3 cores.” (Imagem 5)
A sequência de atividades foi continuada para esclarecer procedimentos de construção de
algoritmos, demonstrações de computação física com Arduino junto de reflexões poéticas e
artísticas que foram selecionadas com o objetivo de uma curadoria artística que sirva de escopo
aos interesses desenvolvidos na optativa.

Imagem 5 – trabalhos de alunos da Optativa

2) Amplificação na materialidade formal do digitável na forma que in-forma.


-Novas ficções baseadas em novas formas de produção nos levam a inventar outras articulações
sensíveis na forma. Novos meios de produção e a mudança de nível do objeto final que passa a
ser um sistema, mais que um projeto é sim um objeto virtual, aberto para todas colaborações e
com propostas customizadas a partir de novas interações e desejos do usuário. As qualidades que
estavam na materialização do objeto deslocam-se para a sua construção virtual. Temos ou
teremos portanto novos objetos técnicos sensibilizados. Esse novo nível de inventar, programar,
renova a condição das partes como módulos integrativos, ou ainda o sistema integrativo por
adição e subtração das impressões 3d.
-A materialidade ganha sensibilidade e a estende a todo o sistema técnico artístico proposto, a
todo o contexto, pois é estrutural.
-As orientações passaram a estimular a transformação da sala de aula em laboratórios aberto, os
alunos compartilharam conhecimentos, técnicas e ferramentas dos envolvidos e convidados que
foram sendo conectados ao longo do desenvolvimento da optativa de acordo com as necessidades
que surgiam. Essa conexão releva laços de outros tempos da optativa e de novos locais e serviços
disponíveis em uma evolução crescente e diversificada.
Diferente do entendimento de M.B. nas proposições de obras interativas, não só responsivas, o
co-participante/autor altera da programação a materialidade de objeto virtual e descoisifica seu
isolamento do contexto, da concreção. Altera também o conceito de autoria e propriedade
intelectual para novas concepções em andamento.
3) Amplificação na construção da Linguagem Poética disciplinares e ou transitivas.


342

-A quantidade de elementos novos que aparecem desses procedimentos inéditos permite e propõe
a construção de novas poéticas, não havendo espaço para sobrepor estéticas antigas e redundantes
ao que de novo acontece.
-O sistema todo produz índices, e quem determina o caráter do objeto é o interpretante na relação
entre significado e significante. Portanto o "objeto", casa, luminária, celular são abertos, novos
objetos transitivos, que ampliam o significado original de sua nomeação. Em progressão existirão
tantos objetos quanto desejos e necessidades houver.
Esse conjunto articulado do sensível nos aponta para uma arte inicialmente interativa e corpórea.
Se a arte opera com blocos sensíveis espaço tempo, esse é a abertura que aumenta a quantidade
de interfaces sensíveis e, portanto o número de possibilidades na produção de uma arte a partir
dessas e inúmero e cria loops de criação/repetição/teste/erro/versão/entrega.
Alguns trabalhos dos alunos postados na web:
https://youtu.be/Aicg1JWlrnc bixiga sonora
https://www.facebook.com/100000536861289/videos/1858570340837510/ luminária trevosa
https://www.facebook.com/100001923915420/videos/1579605222113593/ parede interativa

Conclusões gerais:
Essas distinções de estratégias abordadas no primeiro item a partir de Gilbert Simondon impactam
o curso da Optativa nas suas três etapas analisadas, ou seja a dos dispositivos técnicos, da
materialidade formal e da poética.
Os dispositivos técnicos devem ser entendidos em suas individualidades, como desejo humano,
portanto interativo e longe de uma artificialidade muda e surda. A Transdisciplinaridade faz subir
uma etapa o objeto, sobe para o nível do processo virtual e não mais se configura só no objeto
construído, materializado. Trata-se de um processo virtual topológico que toma a forma
necessária através da sua concretização, sua materialização dentro de uma escala variável entre
bits e átomos.
As máquinas deixam de ser construídas e construtoras para crescerem e fazerem crescer, mais
próximo de um processo de programação biológica.
A materialidade formal do digitável que a forma informa, passa pelo entendimento que ela não é
uma coisa, coisificável, em oposição ao humano como um objectum. Essa aproximação do
humano e do natural por intensa interatividade, como poder ouvir por sensores o som produzido
pelos girassóis, traz outras referências distantes das formas abstratas, como são os poliedros
platônicos regulares (imagem 6 abaixo), que são voltados pra si mesmo já na própria concepção
geométrica.


343

Imagem 6 - poliedros platônicos fechados geometricamente em si mesmos.

Referências biológicas, morfogênicas, portanto se apresentam por aproximação da corporeidade


humana. Algo que cresce e não construído. Crescimento de dentro pra fora, através dos imputs
sensíveis em uma morfogenia digital. (imagem 7)
Nessa condição geral, minimiza-se a ideia de Magia e sim amplia a noção de Processos
consequentes através das etapas de Programação, de parâmetros e dos imputs, certa lógica entre
causas e efeitos, que implica na participação ativa do artista, arquiteto ou design em todas as
etapas do curso.
A poética resultante caminha para o singular próximos de uma ficção do real, dado os caracteres
de o irredutível, indivisível e inesperado. Uma nova ideia de único, de obra de arte única.

Imagem 7 - biomateriais de Neri Oxman do MIT (a esquerda) e Iris Van Herpen – parametrias e
morfogenesis nos vestíveis. Imagens captura Web: http://serimovel.com/index.php/tag/neri-
oxman/

Referências/Bibliografia

Benjamim, Walter - A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, 1955,


traduzido em português por José Lino Grünnewald e publicado em A idéia do cinema (Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 1696) e na coleção Os pensadores, da Abril Cultural, é a
segunda versão alemã, que Benjamin começou a escrever em 1936 e só foi publicada em 1955.
Betancourt, Michael - Objeto digital – Públicado na CTheory em 2007


344

https://journals.uvic.ca/index.php/ctheory/article/view/14486 - “A Aura do Digital”, tradução


para o português do FILE: Electronic Language International Festival
https://journals.uvic.ca/index.php/ctheory/issue/view/849
Campos, Jorge Lúcio de; Chagas, Filipe - Os conceitos de Gilbert Simondon como fundamentos
para o design
http://www.bocc.ubi.pt/pag/campos-jorge-chagas-filipe-conceitos-de-gilbert-simondon.pdf
capturado em 15/08/2020
Kolarevic, Branko (traduzidos por alunos fau Unesp) -"Digital Morphogenesis" artigo 18 pgs.
2017
http://www.idrarchitects.com/dt/readings/02DigitalMorphogenesis.pdf
Neves, J. P. “Seres humanos e objectos técnicos: a noção de “concretização” em Gilbert
Simondon.” Comunicação E Sociedade, 12, 67-82.
https://doi.org/10.17231/comsoc.12(2007).1097
“Por uma alternativa ao construtivismo social e ao determinismo
técnico: a perspectiva de Lebeau e Simondon”, in Carlos Veloso Veiga e Jean-Martin Rabot
(Coord.s), Novas Tecnologias, Utopia e Imaginário, Braga, NECSUM, 2006, pp. 101-113.
https://www.researchgate.net/publication/277091423_Por_uma_alternativa_ao_construtivismo_
social_e_ao_determinismo_tecnico_a_perspectiva_de_Lebeau_e_Simondon - 2018 download
Oxford Languages: dicionário link: https://languages.oup.com/google-dictionary-pt/
Ranciére, Jacques – “Politica da Arte” – Artigo 15 pgs 2010 - tradução: Mônica Costa Netto,
publicado na Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas -
DOI: 10.5965/1414573102152010045 (Reserarchgate.net web)
1 Conferência realizada por Jacques Rancière em abril de 2005, no seminário Práticas estéticas,
sociais e políticas em debate. São Paulo: Sesc Belenzinho
Simondon, Gilbert - Do Modo De Existência Dos Objetos Técnicos – 2010 – Editora
Contraponto RJ, 384 páginas -ISBN: 9786556390031 - Tradução: Vera Ribeiro.


345

Equilíbrio Práxis Científica e Poiesis Artística: experiências pessoais na documentação e


conservação da arte computacional.
Balance between the Scientific Praxis and the Artistics Poiesis: personal experiences in
computational arts documentation and preservation.

Teófilo Augusto da Silva156

Resumo
Diante da existência da área interdisciplinar que se convencionou chamar de “Arte e Tecnologia” retoma-
se a discussão das contribuições do pensamento científico e do pensamento artístico na elaboração do Saber
humano e de suas relações com o Mundo. Defendo aqui que é o artista-pesquisador no equilíbrio destes
saberes que consegue transformar sua prática e expandir a teoria na área. Este equilíbrio também é
necessário para a documentação das obras de arte desta linha de expressão, caso em que se tenta chegar a
uma linguagem comum às duas áreas. Nesta comunicação, fruto de minha pesquisa para o doutorado,
pretendo trazer um apanhado geral sobre a forma de pensamento e das experiências que pessoalmente tenho
tido na busca deste equilíbrio e como tenho tentado elaborar uma forma de documentação para os mesmos.

Palavras-chave: Ontologia da Arte Computacional, Arte e Ciência, Documentação e Preservação.

Abstract/resumen/resumé
Given the existence of the interdisciplinary area that was conventionally called "Art and Technology", the
discussion about the contributions of scientific and artistic thoughts to the elaboration of human knowledge
and its relations with the world is resumed. I argue here that it is the artist-researcher in the balance of this
knowledge that manages to transform his practice and expand the theory in the area. This balance is also
necessary for the documentation of the works of art of this expression line, in which case an attempt is
made to arrive at a language common to both areas. In this communication, the result of my research for
the doctorate, I intend to bring a general overview about the way of thinking and the experiences that I have
personally had in the search for this balance and how I have tried to elaborate a form of documentation for
them.

Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Computational Arts Ontology, Art and Science, Documentation and
Preservation.

Introdução

O cenário da pandemia que dominou o ano de 2020 demonstrou, de certa maneira, que há ainda
uma lacuna no entendimento do que é a práxis científica, afinal houve uma aceitação de
posicionamentos sem embasamento de fatos apurados por experiências e uma forte ligação com
a condição do pensamento religioso radical que inclusive passou a comandar políticas públicas157,
características semelhantes ao que o mundo vivenciava quando no período da revolução científica
no século XVII.
O fato é que eu acredito que este cenário cujos problemas consequentes são enfrentados pela
Ciência, foi na verdade construído por ela mesma, pois com sua tentativa de se fazer de discurso


156
Professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), Doutorando em Artes Visuais
(PPGAV/UnB). Bolsista ProDoutoral Unifesspa/CAPES. Fundador do Media Lab/Unifesspa. Pesquisador Media
Lab/BR.
157
No mês de agosto deste ano a Câmara Legislativa do Distrito Federal aprovou um projeto de lei que proibiria toda
nudez em exposições de arte em espaços públicos. https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/08/19/camara-
legislativa-aprova-projeto-que-proibe-nudez-em-exposicoes-culturais-publicas-no-df.ghtml


346

“neutro” e de tentar explicar as coisas de maneira unívoca, ou unissêmica, acabou por se distanciar
das massas. Esse pensamento científico, que mais tarde torna-se um “modelo” (molde e, portanto,
replicável?) não terá cumplicidade apenas no assassinato do Latim (tornou-se uma língua morta
para ser imutável), mas de diversas outras coisas em prol do desenvolvimento: tortura e morte de
animais e pessoas de todas as idades, destruição de áreas naturais, testes que transformaram
espaços e culturas, fronteiras formadas artificialmente; tudo em prol do desenvolvimento racional
e científico.
Em uma segunda consequência de seu distanciamento e hermetismo, a ciência e os cientistas
criaram para si uma reputação de intelectuais irrefutáveis (quando não por outros dos seus) e
esqueceram das origens da própria Ciência nos seios da Filosofia e das ditas Humanidades158
mascarando assim componentes humanos de suas condutas e tudo que não se encaixava no
Método Racional e objetivo, próprios do que se espera de um pesquisador em neutralidade. E
assim, podemos deduzir que se a tríade do conhecimento humano (Filosofia/Ciência/Arte) não se
reconhecer entre os seus, pode estar fadada a se afastar exatamente da produção de conhecimento,
provocando uma avalanche de achismos e levando à sociedade humana à calamidade.
Na contramão, e talvez demonstrando um sopro de esperança que apenas a sociedade do devir
poderá ser testemunha, o desenvolvimento do conhecimento artístico que se deu ao investigar as
novas tecnologias da comunicação e da informação, que por sua vez vêm em uma crescente
expansão desde a invenção da câmera fotográfica, aproximou os três ramos dos saberes humanos
e retomou a pauta sobre as formas de conhecimento e suas validades para discussões de grupos
de pesquisa e de eventos científicos.
Também forçados pela pandemia, o cenário da onipresença do computador em nossa vida
cotidiana foi acelerado e hoje, mais do que na época da invenção do microcomputador, passamos
não apenas a integrar o computador em nossa vida diária, mas em atividades que ainda resistiam
a digitalização que passaram a ser totalmente virtuais.
Desta forma, o algoritmo, uma série de instruções para o funcionamento do computador, se torna
onipresente mediado pelo computador, passando a comandar filtros empíricos para o Mundo,
determinados, no início, pelos nossos hábitos e depois os reforçando-os, toma conta das Redes
Sociais digitais, dos anúncios nos sites e até mesmo em e-mails que recebemos. Essa onipresença
algorítmica também colabora para a necessidade de investigarmos mais à fundo esse fenômeno e
a necessidade é tão palpável que vários países europeus já cogitam implantar ou já implantaram
em seu currículo de Ensino Básico a Introdução à Linguagem da Programação, ou seja, estamos


158
Nota do Autor: Warren Sack (2019, p. 1) ao descrever os passos históricos que levaram à invenção do
computador e do software, caracteriza que antes da revolução científica do século XVII não existia a
figura do cientista; pessoas como Charles Darwin ou Mendel seriam conhecidos como “filósofos
naturais”. Os “filósofos naturais” de antes do século XVII publicavam seus tratados em Latim (a língua
morta) e, afirma Sack, o termo “scientia” tem em seu conceito algo mais amplo que a palavra “ciência”
para nós hoje, significaria algo parecido com “conhecimento”


347

já nos preparando para uma virada no conhecimento humano em que máquinas e seres humanos
se aproximarão cada vez mais na sua comunicação.
É fato que o Algoritmo não é característica específica das Ciências da Computação, inclusive é
importante ressaltar que para Sack (2019), os códigos, os algoritmos, em suas versões prototípicas
eram usados para realizar a ligação entre as artes liberais e as artes mecânicas:

“Historically, it is possible to say that this position was first sketched out in the
seventeenth century in proposals to develop artificial, philosophical languages that
were used to knit together the liberal arts (e.g., logic, grammar, and rhetoric, the
liberal arts of language) and the mechanical arts (e.g., those practiced by artisans
in workshops producing pins, stockings, locks, guns and jewelry). In brief, these
artificial languages became what we know today as computer programming
languages.” (p.2)

Mas mesmo assim, foi apenas com o surgimento do micro computadores e sua popularização
com a entrada dos componentes computacionais no dia a dia, que a ideia de instruções
programadas foi se construindo na sociedade. Ainda em 1990 Vilém Flusser (2011) já
introduzia uma preocupação no entendimento de como esses Algoritmos159 estão entranhados
dentro da construção cultural humana.

O Programa de Flusser, o numérico em Couchot e o Cibernético em Moles

Nesse ponto o objetivo não é fazer uma dissertação sobre as formas como diferentes pensadores
visualizam a ideia de algoritmo/código/programa, e sim, demonstrar que não apenas esses
conceitos são tão hegemônicos na sociedade presente que devem ser entendidos pela totalidade
da população para que cada indivíduo realmente seja livre para tomar suas próprias decisões.
Segundo, - e neste ponto peço perdão pelo reducionismo - enquanto Flusser (2011) é um pensador
ligado à comunicação, Moles (1990) é um Engenheiro que fala sobre arte e Couchot (2003) é um
artista que fala sobre computador.
Para este estudo, o importante a considerar no conceito de programa apresentado por Flusser
(2011) ele tem uma gênesis cultural, não é fruto de uma linguagem hermética baseada na
matemática, mas sim uma série de instruções que são passadas culturalmente, ou seja, na criação
do indivíduo e na sua própria vivência em sociedade. Convém ressaltar que para o mesmo, a
palavra aparelho que hoje comumente ainda vemos associada a um objeto, era na realidade algo
mais abstrato, mas podemos conceituar o aparelho como um espaço (físico, virtual ou metafórico)
reservado para a atuação dessas instruções.


159
Nota do Autor: Neste ponto faço uma livre comparação entre os termos “Programa” usado por Flusser
(2011) e o termo “Algoritmo” que tende a ser o termo mais técnico dentro das Ciências da Computação.


348

Um dos importantes marcos para a área “Arte e Tecnologia” foi a invenção de uma câmera
fotográfica, para Flusser, apesar de ser mencionada apenas no terceiro capítulo do livro “Filosofia
da Caixa Preta” (Flusser, 2011, p. 37)160 também a câmera aparece como objeto de estudo para
um tratado sobre liberdade e sobre o funcionamento da sociedade pós-industrial.
Também é no capítulo 3 que ele realiza uma separação da ciência em duas categorias que não se
anulam ou se rivalizam, como hoje temos com as ciências duras e as ciências leves,

“Grosso modo, há dois tipos de objetos culturais: os que são bons para serem consumidos
(bens de consumo) e os que são bons para produzirem bens de consumo (instrumentos). Todos
os objetos culturais são bons, isto é: são como devem ser, contêm valores. Obedecem a
determinadas intenções humanas. Esta, a diferença entre as ciências da natureza e as da
cultura: as ciências culturais procuram pela intenção que se esconde nos fenômenos, por
exemplo, no aparelho fotográfico, portanto, segundo tal critério, o aparelho fotográfico parece
ser instrumento.” (Flusser, 2011, p. 38)

Ele continua,

“Instrumentos têm a intenção de arrancar objetos da natureza para aproximá-los do homem.


Ao fazê-lo, modificam a forma de tais objetos. Este produzir e informar se chama ‘trabalho’. O
resultado se chama ‘obra’.” (Flusser, 2011, p. 39)
E, ainda,

“Instrumentos são prolongações de órgãos do corpo (...) por serem prolongações alcançam
mais longe e fundo a natureza, são mais poderosos e eficientes. Os instrumentos simulam o
órgão que prolongam: a enxada, o dente; a flecha, o dedo; o martelo, o punho. São ‘empíricos’.
Graças à revolução industrial, passam a recorrer a teorias científicas no curso da sua
simulação de órgãos. Passam a ser ‘técnicos’ (...). Passam a chamar-se ‘máquinas’.” (Flusser,
2011, p. 39).

Bem, instrumentos e máquinas, portanto, fazem trabalhos (no sentido marxista, como bem nos
avisa o filósofo), mas o fazem sem processar qualquer informação do mundo, um moinho não
sabe quando não há mais grão a processar, continua a girar ao sabor do vento. Mesmo a máquina
mais avançada, quando não integrada a um computador ou manipulada por um ser humano é
apenas um objeto que foi “programado” para executar uma função específica.
O computador já não é uma máquina, pois ele pode ser programado diferentemente, e quando a
ele são disponibilizados instrumentos adequados, ele pode processar informações coletadas por
ele mesmo. Assim, computadores podem ser máquinas e instrumentos metaforicamente, assim
como um ser humano também o pode.


160 Nota do autor: Os capítulos 1 (“A Imagem”) e 2 (“A imagem técnica”) agem como capítulos de introdução aos
conceitos. A câmera é o que torna a primeira imagem técnica realidade, ou seja, quando o primeiro texto científico se
torna imagem é por conta da primeira foto registrada.


349

A ideia de programa então alcança para Flusser uma correlação com o desenvolvimento do
Aparelho, uma máquina que não realiza trabalho propriamente dito, mas manipula símbolos.
Assim como as metáforas do instrumento e da máquina podem ser usados para o computador
assim como para qualquer ser humano, o conceito de poder ser programado também se insere a
qualquer ser humano tanto quanto em qualquer computador. Programa, como já falamos acima,
seria uma série de instruções para lidar com determinados inputs e como gerar certos outputs,
para Flusser o ser humano é programado culturalmente; a forma de vermos o Mundo que nos
cerca, a maneira que escolhemos como reagir a determinadas ações de agentes do Mundo, são
incutidas pelo nosso ambiente cultural: viriam então dos seus familiares, da sua religião, da sua
educação. O computador então também passa a ser programado por aqueles humanos que por
sua vez são programados pela cultura.
Entendendo que o computador é um aparelho manipulador de símbolos, partimos para tentar
entender o processo de produção de imagem dentro de um sistema de codificação para
computador.
Edmond Couchot rotula todas as obras visuais criadas dentro do espaço computacional como arte
numérica (Couchot, 2003, pp. 154-298). Essa questão de relacionar imediatamente o Computador
com a Matemática (e consequentemente com as ciências “exatas”) vem da própria história do
aparelho computacional cujos primeiros representantes eram grandes máquinas de calcular. No
português brasileiro, utilizamos para o aparelho o mesmo nome dado a uma profissão anterior à
Revolução Industrial. Sack (Sack, 2019, pp. 93-94) aponta uma citação de Leibniz sobre esta
forma de trabalho que para o filósofo era degradante:

“He [Leibniz] wrote that ‘it is unworthy of excellent men to lose hours like slaves in the labor of
calculation which could safely be relegated to anyone else if the machine were used’” (Sack,
2019, p. 93).
Em francês (ordinateur) e em espanhol (ordenador) também colocam o aparelho computacional
como um instrumento para colocar as coisas em ordem (“ordenar”).
Contudo, no início do capítulo 4 da obra de Couchot, “A tecnologia na arte: da fotografia à
realidade virtual”, ele aponta que as imagens no ambiente computacional são antes de uma
visualidade uma informação:

“não mais de signos, mas de sinais codificados – os bits – tratáveis pelo computador, no qual
imagens, sons e textos podem ser convertidos ou que podem se converter em imagens, em sons
e em textos” (Couchot, 2003, p. 155).
Constatando que “o artista não trabalha mais com a matéria, nem com a energia, mas com
símbolos” (Couchot, 2003, p. 157), ele continua a colocar que a essência do computador é o
algoritmo e o cálculo, mesmo que no fim das contas as imagens produzidas dentro do ambiente
computacional sejam símbolos ordenados. Acredito, após a leitura de Flusser e Sack que o que


350

sabemos do computador e sua forma de se relacionar com essas informações seja apenas uma
representação filosófica do se passa dentro do Programa do Aparelho computacional. Apoiado
em Flusser, podemos afirmar que a imagem que em qualquer momento teve uma passagem pelo
aparelho computacional pode ser colocada como imagem técnica e pode ser interpretada pela
matemática assim como qualquer outra imagem pictórica (e isso era feito desde antes do uso da
perspectiva no Renascimento).
Concordo novamente com Flusser quando ele afirma que ainda estamos utilizando termos e
classificações vindas de um tempo que já não comporta as criações atuais. Com isso cabe uma
ressalva, não estou anulando todo o esforço do professor, mas apenas estou sugerindo que
precisamos continuar avançando nas pesquisas sobre a ontologia e a taxionomia das obras de arte
computacionais.
Neste ponto fico surpreso ao ler em “Arte e Computador” do engenheiro Abraham Moles:

“É um pouco prematuro tirar conclusões quanto à influência do pensamento mecânico sobre


uma sociedade em pleno devir. Mas é nossa missão, tentar prefigurar-lhe os comportamentos,
quanto mais não seja para agir sobre eles.” (Moles, 1990, p. 252)

Como vimos anteriormente para Flusser o termo máquinas para um Computador não faria muito
sentido, contudo, utilizá-lo como ele o fez, demonstra que ainda fazemos uso de termos da
Mecânica para tentar descrever e entender nosso Mundo. Inclusive ele aponta no mesmo
parágrafo da citação anterior que este momento é um exemplo da passagem do quantitativo ao
qualitativo como descrito por Hegel, e de certa maneira tenta realizar um exercício de
futurologismo:

“O artista não será substituído por máquinas [...] pois a atividade artística é fundamentalmente
criação e não reprodução. Poderá dizer-se que ele vai ser não substituído, mas desviado na sua
função. Na medida em que aceitar essa reconversão, ele irá transformar-se em programador.”
(Moles, 1990, p. 252)

A programação de computadores: aplicação linguística e junção das visões científica e


artística.

Como vimos, a habilidade de escrever na linguagem dos computadores tem sido cada vez mais

valorizada na sociedade atual, e não apenas para a comunidade artística. Toda esta introdução

inicial do artigo foi apenas para demonstrar que o pensamento de Warren Sack sobre a origem do

aparelho computador como criação das humanidades e não das ciências duras tem fundamento

em teóricos clássicos. Desta maneira, acredito que a chave para uma profícua criação artística no

ambiente computacional e sua documentação está num equilíbrio entre estas duas visões de

mundo.


351

Ao observar programadores (não artistas) trabalhando, pude constatar que apesar de lançarem

mão de pedaços de códigos padrões para resolução de pequenos problemas, o experimentalismo

empírico, comum às artes, estava presente ao testarem modificações próprias aos algoritmos.

Este comportamento justifica que Sack tenha comparado a codificação com o Trivium

(Gramática, Retórica e a Lógica) dedicando cada parte do seu livro a uma destas artes. Fato que

entender a programação como uma das muitas linguagens a que a humanidade deve se dedicar a

ser letrada.

No que nos interessa, entender a codificação algorítmica como um exercício de linguagem nos

ajuda na documentação de obras artísticas computacionais, uma vez que seria um exercício de

descrição comum nas obras da literatura.

Para este fim, um processo muito utilizado para que o programador possa rastrear seus passos é

o de realizar comentários ao longo do código de programação, geralmente iniciado por símbolos

como “//” ou “/* */”, de forma a indicar para o computador que aquela série de caracteres ali não

são parte dos comandos a serem executados. Existem prós e contras ao realizar esses comentários;

o que temos a favor é que as observações podem ficar muito próximas daquilo que desejo

descrever, além disso posso utilizar códigos que agilizem o entendimento ou realizar uma ponte

com outros códigos anteriormente escritos pelo programador. Na contramão estão dois pontos

relevantes: primeiro que é um processo mais demorado e que se não houver disciplina pode

interromper o processo criativo, o segundo é que estes caracteres a mais podem impactar no

tamanho físico de um arquivo, de maneira que possa se tornar mais difícil rodar o programa em

determinados equipamentos ou situações (como exemplo podemos citar a memória de um

Arduino Uno que sem nenhum tipo de adição é encontrado no mercado com o tamanho de 2 Kb,

o que dão exatas 2000 caracteres e nesses entram todos os caracteres colocados para o

comentário).


352

Desta maneira, imagino que um jeito mais prático para tudo isso seria elaborar uma forma de

otimizar os comentários potencializando-os com anotações extra código como em um caderno

(diário de artista talvez) e na versonificação de forma a considerar uma forma de proto-código

para preservar a ideia.

Como meu objetivo principal para a Tese do Doutorado é a elaboração de um Protocolo para

preservação de obras de arte computacional, eu passei a ser o principal espécime de estudo na

aplicação das ferramentas de documentação para a preservação.

Experiências pessoais em criação estética e documentação

A problemática da documentação para conservação das obras computacionais surgiu para mim

quando como professor tive a necessidade de mostrar aos alunos como funcionaria determinada

obra apenas pela descrição dada da mesma na Internet, uma vez que a universidade em que leciono

fica bem deslocada dos centros distribuidores de arte. Como já havia interesse da minha parte em

desenvolver minha produção artística, considerei que seria o momento ideal para também

documentar a trajetória.

EVO_CIRCUITO

O primeiro projeto que me envolvi desde o início quando entrei como aluno de doutorado foi o

EVO_CIRCUITO (Figura 1). Este objeto que é escultura e instalação, tentava explorar a

capacidade de aleatoriedade em obras de arte computacionais.

Baseado na concepção de Couchot (Couchot, 2003) sobre a arte permutacional, o

EVO_CIRCUITO produzia um som que ia se alterando dentro de três fatores: (1) aleatoriedade

mecânica: a parte central do objeto era basicamente um grande sanduíche de madeira em que o

recheio eram os componentes como um Arduino mini, um Raspberry Pi 3, a fonte e uma série de

sensores feitos com fios e parafusos. Esses sensores mais rudimentares eram responsáveis pela

aleatoriedade de efeitos causados na música tema da obra. Conforme o disco girava em uma

velocidade mínima (usou-se um rotor de impressora 3D para controlar o movimento), a disposição


353

dos parafusos ativava uma das possibilidades de permutação do objeto, de modo que o Interator

quando passava para as outras possibilidades de aleatoriedade nunca imaginasse qual seria o

efeito que sua atividade faria na música. (2) Os sensores táteis externos: os discos externos,

esticados como braços de um polvo, eram sensores capacitivos. Estes reagiam de maneira

diferente para cada corpo que o tocasse, além da própria pressão aplicada que podia também

variar. (3) O código responsável pela geração da música (produzido em SONIC PI) possui

mecanismos de aleatoriedade já inseridos.

Estes três mecanismos tornavam a música aleatória, e ao mesmo tempo, como o código fazia sua

própria alteração, ela era a narrativa da própria existência do objeto. Toda esta descrição seria

perfeita se ao levar a obra para Buenos Aires, enfrentando uma série de percalços para leva-la de

forma que chegasse intacta, ao plugar a fonte na tomada a mesma não iniciou. Após testar todos

os cabos, ligar e religar todo o cabeamento, verificar as soldas e os encaixes, desisti. De volta ao

Brasil fiz o procedimento e voilá! Ele liga.

Este tipo de problema poderia ser evitado se ao levar a obra a organização tivesse em mãos a

documentação contendo as especificações técnicas. Eu ainda sou um artista iniciante, mas

imagina todo o trabalho de meses de pesquisa e criação de um laboratório ou coletivo que

conseguiu espaço para expor do outro lado do mundo e após pagar o seguro e a taxa de

importação descobre que por conta de uma frequência da fonte (mesmo estando na voltagem

correta) o aparelho não liga.

MEMORILHA

Figura 2


354

Memorilha (2019)

Memorilha surge de uma primeira tentativa de entender a natureza de uma obra artística em sua
ideia de instância e versonificação. Os termos da Ciência da Computação se encaixam
adequadamente no conceito que eu queria apresentar. Como podemos observar na Figura 3, um
objeto artístico inicial (fruto da ideia inicial do autor) pode dar origem a várias versões de um
mesmo objeto, assim como pode dar origem a outros objetos a partir de qualquer de suas versões
e estes objetos subsequentes podem igualmente em qualquer de suas versões dar origem a outros
objetos.
Quando objeto fruto de uma mesma ideia é exposto em ocasiões diferentes vindo de materiais
diferentes, eu visualizo não como outro objeto, mas como instâncias de um mesmo objeto/ideia.
O termo “Instance” (a versão em inglês do termo é mais comum) é encontrada tanto na
programação em linguagem orientada a objeto quanto nos softwares de computação gráfica. No
primeiro, uma instância é um objeto concreto, filho de uma classe, algo como a Idea de Platão em
que o conceito puro daquele objeto é preservado, e cada variação do mesmo continua a ser
relacionado à classe de que veio, mas é uma instância por si só. Na computação gráfica o conceito
é o mesmo, porém a utilidade é a de facilitar o processo de renderização.
De qualquer forma, um objeto instanciado continua a ser fruto da mesma ideia. Como exemplo
poderíamos citar a obra “Bichos” de Lygia Clarke, cuja instância original do objeto criado pelas
mãos da artista não pode ser tocada pelos visitantes do museu (algo que a própria artista pelo visto
não tinha intenção). Para resolver tal fato, criaram-se outros objetos iguais àquele primeiro, mas
que os visitantes teriam a possibilidade de manipulá-los. Fora os discursos da perenidade das
obras intencionadas pela artista, não vejo qualquer intenção dos museógrafos e curadores da obra
em intervir na ideia da artista.

Figura 3


355

VERSÕES INSTÂNCIAS

OBJETO 2

OBJETO 1

ORIGEM DA
IDEIA
VERSÕES INSTÂNCIAS

OBJETO #

VERSÕES INSTÂNCIAS

Esquema sobre Versonificação, Instância e caminhos da ideia criativa (2020)

A Figura 4 representa a sequência criativa prevista para a obra MEMORILHA. No início do


desenvolvimento da ideia, apresentei a versão digital para tornar visível, até para mim mesmo, o
que eu gostaria de realizar com o objeto. Após, parti para o estudo dos materiais e selecionei
aqueles que iriam dar a melhor aproximação com a ideia inicial. Ao final, eu gostaria de levar
parte do objeto para criar outro objeto artístico que seriam projeções de imagens sobre a peça
impressa em 3D.
Cada uma dessas ideias passou a ser registradas em um Caderno de Artista e fez parte de artigos
e comunicações, bem como está apresentado no meu site pessoal. Nesse ponto, ainda cabe uma
ampla análise ontológica sobre o que seria então o objeto em suas versões e o que seriam as
instâncias do mesmo.

Figura 4

Versão digital

Versão física

Projeção
Visual
Esquema de Instâncias e Objetos


356

Timing V.0.0.1

Figura 5

Timing V.0.0.1

Esta foi a primeira obra inteiramente computacional, foi feita e pensada para ser apresentada em
um computador utilizando o Framework Processing 3. Neste processo, a versonificação fica
evidente e obedece ao padrão apresentado por produtores de software.
O Timing é a obra em que minha participação como artista ficou mais evidente, apesar de ainda
estar na primeira das versões alfa. Nela eu comecei a experimentar a utilização dos comentários
como parte essencial da documentação do código.
Essencialmente, a primeira impressão do processo é que realmente ele se torna um pouco mais
lento do que o esperado e talvez até mesmo atrapalhe o andamento criativo, porém tenho certeza
que ao trabalhar no salvamento do arquivo físico, eu consigo junto com outros documentos como
o próprio diário, retomar o processo criativo em qualquer ponto da jornada, necessitando assim
de um certo tipo de metodologia que permita equilibrar essa pausa no processo criativo para
escrever o que o coração e a mente já visualizam.

Figura 6


357

/*
Timing V 0.0.1
Digital Computational ArtWork by Teo "Messner"
Augusto
Coding Deraldo Messner da Silva & Teófilo Augu
sto da Silva
September - October 2020
*/

//PWindow é uma classe que cria outra(s) janel


a(s) do seu sketch.
PWindow win;
float x, y, dia, dia2, savedTime, totalTime;
float red, green, blue, alfa;

public void settings() {


// size(800, 640);

//Function that allows the sketch to run in fu


llscreen mode. Notice that the number in the b
rackets means the number of the monitor that y
ou whant to launch each window.
fullScreen(1);
}

Parte do código de Timing V.0.0.1 (2020)

Considerações para o momento

Por mais que a criação artística envolvendo os computadores como aparelhos tem início ainda na
década de 1960, ainda há muito a se ter como concordância na base teórica principalmente sobre
nomenclatura e taxionomia. A Arte é conhecida por não gostar de ser enjaulada e a tecnologia
informacional é conhecida por sua rápida evolução, o que leva a preocupações sérias sobre como
iremos administrar os materiais de nossa história e da criação artística deste período.
Reforço que a leitura de Flusser, Couchot, Moles e Sack, além de outros que influenciaram meu
pensamento mas que não são diretamente mencionados neste texto, sedimentou em minhas
reflexões a necessidade que temos de entender tanto o ambiente científico (que inventou o
computador) quanto o ambiente artístico (que demonstrou e continua a demonstrar novas
maneiras de lidar e aplicar o computador no dia a dia) para que possamos compreender as
melhores metodologias de criação para a preservação das obras de arte computacionais.
Imagino que meu esforço possa ser futuramente também direcionado à outras expressões da Arte
das mídias instáveis161, mas este trabalho já tem sido feito por outros excelentes pesquisadores
como pode ser observado nos outros trabalhos apresentados neste evento. Isso demonstra para
mim que a pesquisa nesta área está avançando e sendo levada à sério, deixando claro que o
fantasma da obsolescência que cerca as obras de arte computacionais já está sendo mais do que
um mero incômodo.


161
Nota do Autor: Para saber mais sobre Mídias Instáveis (“Unstable Medias”), procurar o “Manifesto
for the Unstable Media” da V2_. Disponível em: < https://v2.nl/archive/articles/manifesto-for-the-
unstable-media>, acessado em 30 de Outubro de 2020.


358

Referências

Couchot, E. (2003). A tecnologia na arte: da fotografia à realidade virtual. Porto Alegre:


Editora da UFRGS.
Depocas, A. (2002). Digital Preservation: recording the recoding - the documentary strategy.
Acesso em 10 de Outubro de 2020, disponível em Daniel Langlois Foundation Site:
https://www.fondation-langlois.org/html/e/page.php?NumPage=152
Flusser, V. (2011). Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Annablume.
Moles, A. (1990). Arte e Computador. Porto: Edições Afrontamento.
Sack, W. (2019). The Software Art. Cambridge, MA: The MIT Press.


359

Reflexões sobre a pesquisa no ensino das Artes Visuais a partir de relato autobiográfico

Reflections on research in the teaching of Visual Arts from an autobiographical account

Thérèse Hofmann Gatti Rodrigues da Costa162

Resumo
A pesquisa em arte tem aprimorado e diversificado seu campo de abrangência nas últimas décadas de forma
intensa. Mas nem sempre foi assim, como mostra o relato do Professor Silvio Zamboni, no seu livro “A
pesquisa em Arte” onde registra a incipiência da área no CNPq nos idos de 1984. Neste registro ele também
lembra da criação da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas – ANPAP em 1986. Essas
ações aconteceram nos anos da minha graduação em Licenciatura em Educação Artística na Universidade
de Brasília (1985-1990). Viver as artes na UnB, na capital do país, no momento da redemocratização e ter
tido a oportunidade de ter como professores grandes mestres reintegrados pela anistia ao lado de jovens
professores recém doutores que chegavam do exterior foi uma experiência ímpar que hoje, 35 anos depois,
posso avaliar que fizeram o diferencial na minha postura como profissional, professora, extensionista e
pesquisadora.
.
Palavras-chave: Educação em Artes Visuais; Relato autobiográfico; pesquisa em artes; materiais em
arte.

Abstract
Art research has intensively improved and diversified its scope in the last decades. But this was not
always the case, as shown by Professor Silvio Zamboni's report, in his book “A Pesquisa em Arte”, where
he registers the incipience of the area at CNPq in the 1984s. Plastic Arts - ANPAP in 1986. These actions
took place in the years of my undergraduate degree in Art Education at the University of Brasília (1985-
1990). Living the arts at UnB, in the capital of the country, at the time of redemocratization and having
the opportunity to have as teachers great masters reintegrated by the amnesty alongside young professors
who recently arrived from abroad was a unique experience that today, 35 years later , I can assess that
they made the difference in my posture as a professional, teacher, extensionist and researcher.

Keywords: Education in Visual Arts; Autobiographical reporting; research in arts; materials in art.

Introdução – os primeiros passos

Segundo Marie-Christine Josso (2004)


A narrativa de um percurso intelectual e de práticas de conhecimento põe em evidencia
os registros da expressão dos desafios de conhecimento ao longo da vida. Esses registros
são precisamente os conhecimentos elaborados em função de sensibilidades particulares
em um dado período. (...) Nessa perspectiva, cada um conta as suas experiências no
registro ou nos registros da sua aprendizagem no plano da consciência. (Josso, 2004,p.43)

Neste contexto começo estas reflexões a partir do meu percurso como aluna no ensino superior
para tratar da perspectiva da pesquisa no ensino das Artes Visuais na graduação. Ingressar na
Universidade de Brasília (UnB) no segundo semestre de 1985, antes de completar 18 anos, foi


162
Professora do Departamento de Artes Visuais da UnB. Doutora em Desenvolvimento Sustentável
CDS/UnB. Área de atuação é Artes, com ênfase em Educação em Artes Visuais. Suas linhas de pesquisas
são Metodologias, Educação e Materiais em Artes Visuais, Políticas Públicas e Inovação, Ensino a
Distância e Inclusão Social. Patentes: PI 9605508-1 (Reciclagem de Papel Moeda) PI 0305004-1A
(Reciclagem de Acetato de Celulose- Filtros de cigarro)


360

como ingressar em um mundo cheio de encantamentos que povoava minha adolescência de


expectativas. A aprovação no curso de Licenciatura em Educação Artística na UnB e logo depois
no Bacharelado em Belas Artes na UFMG, em 1986, possibilitaram escolhas que definiram minha
trajetória profissional.
Morar em Brasília, para esta mineira de Belo Horizonte, foi a concretização de um sonho
acalentado desde que minha madrinha se mudou para a capital em 1978. Brasília era meu destino
preferido nas férias. Esta cidade cheia de espaços abertos, horizontes infinitos, monumentos
arquitetônicos impressionantes e ainda em construção no final dos anos 1970 e início dos anos
1980 estimulavam minha criatividade e imaginação.
Naquela época, 1985, quem ingressava na UnB, cursava o primeiro semestre de disciplinas
comuns a todos os cursos como Estudos dos Problemas Brasileiros 1 e 2, Introdução à Sociologia,
Língua Portuguesa, Língua Inglesa, Prática Desportiva e Iniciação à Metodologia Científica.
Desta forma alunos aprovados em diferentes cursos estudavam juntos nos anfiteatros do Instituto
Central de Ciências, nosso “Minhocão”, e compartilhavam as expectativas nesta nova fase da
vida. Neste primeiro semestre convivi com colegas que foram aprovados nos cursos de Geografia,
Relações Internacionais, Arquitetura, Sociologia entre outros.
Somente no primeiro semestre de 1986 é que conheci o prédio “SG1” (Serviços Gerais 1), local
do então Departamento de Desenho que era, naquela época, ligado à Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo. Lá comecei a cursar as disciplinas específicas do curso de Licenciatura em Educação
Artística como Elementos de Linguagem, Estética e História da Arte 1, Oficina Básica de
Desenho, Oficina Básica de Artes Plásticas 1, Oficina Básica de Artes Cênicas 1. E também no
prédio Oficina de Maquetes e Protótipos, localizado um pouco distante do prédio SG1, onde eram
as instalações da marcenaria e das disciplinas de Escultura e Análise e Exercício dos Materiais
Expressivos 1 (AEME).
Ao iniciar a disciplina AEME um mundo de possibilidades se descortinou para mim. Literalmente
“me encontrei” no curso e na minha vocação. Com uma turma pequena, éramos por volta de 8
alunos, fomos encantados pela Profa. Zuleica Nunes da Silva de Medeiros com sua metodologia
e didática que nos estimulava a conhecer a “cozinha” das artes plásticas163 com receitas de
diferentes tintas, carvão, giz de cera, giz pastel e o papel artesanal. Ela também desenvolvia
atividades de extensão e nos estimulava a pesquisar mais sobre as “velhas receitas” dos materiais
expressivos. Com sólida formação em pintura a Profa. Zuleica nos apresentou a Ralph Mayer
(1895-1979) e Edson Motta (1910-1981) cujas obras passaram a ser referência para mim em
relação aos Materiais Expressivos. E na temática do papel artesanal tínhamos como referência
Dard Hunter (1883-1966).


163
Na época a denominação era Artes Plásticas


361

Como eu já havia cursado a disciplina de Metodologia Científica no semestre anterior, já possuía


as bases introdutórias de pesquisa e com o entusiasmo e orientação da Profa. Zuleica, que nos
instigava a descobrir mais sobre este universo dos materiais expressivos e também uma
apaixonada pelo papel artesanal, passamos um semestre com diversas atividades e muitas
possibilidades se apresentando.
Por questões familiares e tendo sido aprovada no vestibular da UFMG com ingresso no segundo
semestre de 1986, tranquei minha matrícula na UnB e fui para Belo Horizonte cursar o
bacharelado na Escola de Belas Artes da UFMG. Eu já sabia que também na UFMG a pesquisa
de papel artesanal estava presente sob a orientação da Profa. Marlene Trindade. Estava empolgada
para conhecer a realidade das atividades nesta área na Belas Artes. Porém ao iniciar o semestre
tive a informação de que a Profa. Marlene Trindade havia sofrido um acidente em julho de 1985
e, naquele momento, as atividades que ela desenvolvia na recém criada disciplina Artes da Fibra164
estavam sob a responsabilidade de um professor substituto que não atuava com a temática do
papel artesanal. Cursei as disciplinas básicas do início do curso que eram Estudo da Forma,
Desenho I, Perspectiva e História da Arte I. Findo o semestre e o ano de 1986, tendo sido aprovada
em todas as disciplinas, e com as questões familiares que me levaram a Belo Horizonte tomando
outro rumo, dentro do ciclo da vida, voltamos a Brasília e retomei meu curso na UnB.
Assim, a partir do primeiro semestre de 1987 literalmente não saí mais da UnB e das atividades
do recém criado Laboratório Experimental de Materiais Expressivos – LEME, me dedicando às
pesquisas e atividades de extensão propostas.
Neste período também vários professores que haviam saído da UnB na época do regime militar
retornam anistiados. E os alunos são brindados com a convivência e as aulas de Athos Bulcão,
Léo Dexheimer, Marília Rodrigues, Hugo Mund, Avatar Moraes, Lena Coelho, Glênio Bianchetti
entre outros mestres queridos.
Continuando as voltas da vida e também por questões particulares e familiares a Profa. Zuleica
Medeiros pede demissão da UnB e se muda para Florianópolis/SC em 1989 onde instala a
empresa de papel artesanal “Papel Terra”.
Vários professores se revezam na oferta da disciplina Análise e Exercício dos Materiais
Expressivos e eu fui monitora de cada um deles.
Além dos professores anistiados tivemos o ingresso de novos professores no Departamento que
chegavam tendo recém concluído o doutorado no exterior e nos trazendo muitas novidades como
as professoras Suzete Venturelli e Maria Beatriz de Medeiros.
Com a paixão pelo papel artesanal já me dominado completamente continuei minha busca pelo
aprimoramento dos meus conhecimentos em outras áreas da UnB. Assim cheguei ao


164
A disciplina Tapeçaria foi transformada em Artes da Fibra e teria seu início em agosto de 1985. Mas o
acidente que vitimou a Profa. Marlene Trindade em julho do mesmo ano não permitiu que ela iniciasse a
oferta da disciplina como havia planejado. In Hofmann-Gatti, T.


362

Departamento de Engenharia Florestal onde cursei a Disciplina Celulose e Papel, com o Prof.
Joaquim Carlos Gonçalez no primeiro semestre de 1989. Desta forma as questões específicas da
obtenção da celulose e das propriedades das fibras destinadas à produção de papel bem como seus
diferentes processos de polpação me foram ensinados. Começava aí também uma parceria intensa
com o Prof. Joaquim e os alunos que se interessavam pela área de celulose e papel sendo nosso
laboratório na maquete o locus de experimentação e pesquisas sobre a produção artesanal de papel
dos engenheiros florestais. Também tive a oportunidade de conhecer várias fábricas de celulose
e papel nas visitas organizadas pelo professor.
Ao concluir minha graduação no primeiro semestre de 1990 fui para Florianópolis trabalhar com
a Zuleica na empresa Papel Terra. Mas outra vez, pelas voltas da vida, retornei a Brasília no final
do ano de 1990 e no início de 1991 começava a lecionar na UnB como professora substituta. Ao
mesmo tempo fui aprovada no concurso para a Secretaria de Educação do Distrito Federal e logo
requisitada pela Profa. Helena Barcellos, outra mestra querida, para atuar com ela na Secretaria
de Cultura onde desenvolvemos um belo projeto do CIAC165 do Paranoá.

A atuação como docente na UnB – o ensino, a pesquisa e a extensão

Iniciei minhas atividades como professora substituta no agora Departamento de Artes Visuais do
recém criado Instituto de Artes166 em abril de 1991, aos 23 anos, ficando responsável
prioritariamente pela disciplina AEME.
Com a área de artes tomando corpo junto ao CNPq como nos relata Silvio Zamboni (1998) a
pesquisa em arte começa a ganhar visibilidade e as bolsas de iniciação científica abrem espaço
para os projetos em arte.
Dei continuidade às atividades do LEME e também submeti projetos para receber alunos de
Iniciação Científica. Para mim a prática de ensino, pesquisa e extensão sempre foi integrada e
indissociada. Desde a graduação atuava em cursos no polo de extensão que a UnB possuía na
cidade de Ceilândia onde trabalhávamos com meninos e meninas de rua na confecção dos
materiais em arte e do papel artesanal. E agora como docente dei continuidade a estes projetos
integrando os alunos da disciplina AEME.
Na UnB os alunos podem cursar disciplinas de quaisquer áreas de conhecimento, de quaisquer
cursos, e isto permite um intercâmbio de saberes muito positivo. Tive vários alunos de diferentes
cursos nas minhas disciplinas e também bolsistas de Iniciação Científica como alunos do curso
de Engenharia Florestal e de outros cursos além das artes, que vinham pesquisar conosco sobre o


165
Centro Integrado de Atendimento à Criança (CIAC), escola pública de atendimento integral criada na
gestão do Presidente Fernando Collor de Mello em 1991.
166
O Instituto de Artes - IdA, foi criado (ou recriado) em 1990 com a união dos Departamentos de
Desenho e de Música e sendo criado o Departamento de Artes Cênicas.


363

papel artesanal. Ao longo destes 29 anos de docência tive a oportunidade de participar da


formação e de orientar projetos de pesquisa e extensão muito diversificados e instigantes. Além
de ter continuado a minha própria formação no mestrado e doutorado na UnB.
Participamos também de projetos de outros professores como o Projeto de Xilocalendários da
Profa. Stela Maris de Figueiredo Bertinazzo onde fizemos a produção dos papéis artesanais para
as gravuras em xilografia. Foi um desafio ter uma produção para um projeto de arte atendendo às
especificidades exigidas pela Stela. Mas foi um prazer enorme superar as dificuldades e
principalmente ver o belo resultado ao final. Foram feitas algumas séries dos xilos calendários os
quais ainda temos no nosso acervo.

Figura 1. Xilo calendários – Stella Maris de Figueiredo Bertinazzo

Foto: Regina Santos. Fonte: Universidade de Brasília. Arquivo Central. AtoM UnB.

Neste percurso de pesquisa do papel artesanal desenvolvemos tecnologia para reciclar o papel
moeda descartado pelo Banco Central (BACEN). O trabalho surgiu desde 1992 quando fizemos
exposições sobre papel artesanal no BACEN e palestras sobre a reciclagem e o reaproveitamento
de papeis. Com as mudanças de moeda que o país teve neste período e também com a motivação
da ECO92167 surgiu o interesse do BACEN em verificar a possibilidade de reciclagem das notas
inservíveis. Começamos as pesquisas no LEME e convidamos dois colegas químicos para o
desafio. E em 1996 conseguimos registrar a patente da reciclagem do papel moeda. Essa foi a
primeira patente da UnB e é das Artes!


167
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de
Janeiro, em junho de 1992. Também conhecida como Cúpula da Terra, ela reuniu mais de 100 chefes de
Estado. (https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foi-a-eco-92/)


364

Com este espírito de aceitar desafios e ter muito orgulho da minha profissão de professora de
Artes, recebo meus alunos a cada semestre. E ao longo destes anos a disciplina AEME foi
substituída pela disciplina Materiais em Arte 1 e 2 e recentemente foi criada a disciplina Práticas
de Ensino Materiais em Arte específica e obrigatória para os alunos do novo curso de Licenciatura
em Artes Visuais.
Com a ação integrada de ensino, pesquisa e extensão a cada semestre apresento aos alunos o
desafio de pesquisar novos materiais a serem usados nas aulas de artes visuais. Nossa metodologia
começa com a perspectiva autobiográfica, onde cada aluno inicia o semestre pesquisando a
origem do próprio nome. De onde vem o nome pessoal? Qual o significado? Qual a etimologia
da palavra? Por que recebeu este nome?
Nesta linha também são estimulados a pesquisar sobre suas origens, onde nasceram, em que ano
nasceram, o que acontecia na cidade e no país no ano em que nasceram. E também sobre suas
ancestralidades, resgatando as histórias e memórias dos pais e avós. Esta metodologia de resgate
autobiográfico é referenciada nos trabalhos de Marie-Christine Josso (2004) e Elizeu Clementino
de Souza (2011) entre outros.
A partir da narrativa pessoal, a corrente das histórias de vida traduz e transpõe no domínio da
formação um processo mais geral, que é aquele da maneira pela qual os indivíduos se apropriam
do mundo histórico, social, cultural no qual eles vivem. (Momberger, 2011, p.49)

Esta linha metodológica tem possibilitado aos alunos o resgate de histórias pessoais e familiares
adormecidas e pouco valorizadas. Nossos alunos tem realidades muito diversas e extremas. E
Brasília tem estas disparidades sociais típicas do Brasil concentradas na menor unidade federativa
do país com 5 779,999 km². Temos na capital os maiores Índices de Desenvolvimento Humano
(IDH) a poucos quilômetros de distância de bairros de extrema pobreza. Convivemos com as
representações diplomáticas de diversos países do mundo, sendo garantida a matrícula na
Universidade para os filhos de diplomatas e embaixadores. Além de toda classe política de
senadores e deputados cujos filhos também podem se transferir para a UnB.
Este universo de jovens em uma comunidade de mais de cinquenta mil alunos e seis mil
servidores, possibilita uma riqueza de trocas de saberes e de experiências presenciais que neste
ano de 2020 ficou adormecida com a pandemia do Covid 19. Ao terem contato com suas
realidades e as realidades dos demais colegas, compartilhando descobertas e curiosidades
culturais, a proposta das pesquisas autobiográficas permite também que os alunos pesquisem
sobre as culturas de suas famílias e os materiais em artes.
Em um trabalho de resgate autobiográfico realizado pela então aluna Pâmella Otanásio168, foi
identificada a propriedade aglutinante da canela em pau quando fervida. A tradição familiar de
tomar chá de canela inspirou a Pâmella a pesquisar mais sobre esta especiaria, fazendo com que


168
Pâmella hoje é mestra em artes pela UnB e professora da Secretaria de Educação do DF.


365

ela descobrisse que o chá de canela concentrado era um bom aglutinante para a produção de giz
pastel.
O desafio da pesquisa em uma disciplina de início de curso estimula os alunos a superarem
dificuldades e deficiências no trabalho de investigação científica que vem desde o ensino
fundamental. Foi também em uma turma desta disciplina que o Marco Antonio Barbosa Duarte,
aluno de biologia à época, propôs a pesquisa do reaproveitamento das bitucas de cigarro. Este
trabalho, feito em parceria com o Professor Paulo Suarez, resultou na nossa segunda patente
registrada em 2003, onde transformamos as bitucas de cigarro em papel.
Para Zamboni (1998, p.95), “tanto a ciência quanto a arte, enquanto processos criativos e
instrumentos do conhecimento humano, guardam semelhanças estreitas. Tanto em uma quanto
noutra, é necessária a combinação dos aspectos racionais e intuitivos para se desenvolver os
produtos gerados por suas atividades”.
Nossas pesquisas seguem a linha do resgate dos materiais tradicionais usados nas Artes Visuais
e do papel artesanal. O estímulo a este espírito investigador é mais valorizado do que o resultado
obtido. Trabalhamos com os alunos na perspectiva que um resultado negativo, ou seja, a hipótese
inicial não se confirma, também é relevante e é valorizado pela perspectiva do processo usado no
decorrer da pesquisa. Os alunos são orientados a registrar todas as etapas do trabalho e os seus
resultados, e a refletirem e avaliarem o que não deu certo ou o que teve um resultado positivo.
Neste sentido e estimulando os alunos a interagirem e conhecerem os vários laboratórios dos
diversos departamentos da universidade já desenvolvemos pesquisas sobre o uso da carapaça do
camarão como pigmento em parceria com o laboratório do Departamento de Farmácia, a extração
de óleo de castanha do Pará para tinta a óleo feita no Instituto de Química, a pesquisa das fibras
de Arundo Donax para a produção de papel feita no Instituto de Biologia, entre outras.
Vários destes trabalhos seguiram os alunos ao longo da formação acadêmica se desdobrando em
projetos de extensão, de iniciação científica, trabalhos de conclusão de curso e projetos de
mestrado.

Conclusões

Estas breves reflexões e resgates de memórias mostram nosso percurso na formação de


profissionais na universidade pública. São licenciados e bacharéis na graduação e mestres e
doutores na pós-graduação em Artes Visuais, profissionais de alto nível que consolidam o papel
das artes em geral, e das artes visuais em específico, no cenário nacional.
Ainda temos um longo percurso na consolidação da área de artes como área de pesquisa e como
área primordial na formação cidadã. Por isso também a importância da realização deste evento
que já tem 19 edições e que se integra em rede para se fortalecer e se reinventar. Da mesma forma


366

devem ser estimuladas as ações da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas –


ANPAP, criada em 1986, bem como intensificar a campanha para novas afiliações.
Este ciclo virtuoso de profissionais bem formados e de eventos que divulgam os trabalhos
realizados na área de artes potencializa o interesse de cidadãos para a nossa área de conhecimento,
estimulando o ingresso de novos alunos e pesquisadores nos cursos de artes.

Referências

Hunter, D. (1978). Papermaking – The history and technique of na ancient craft. Nova York:
Dover
Josso, M.C. (2004). Experiências de Vida e Formação. São Paulo: Cortez.
Mayer, R. (2015). Manual do Artista. (5a ed.) São Paulo: Martins Fontes.
Momberger, C.D. (2011). Os desafios da pesquisa biográfica em educação. In E.C.de Souza
(Org.). Memória, (auto) biografia e diversidade – questões de método e trabalho
docente. (pp. 43-58). Salvador: EDUFBA.
Motta, E., Salgado, M.L.G. (1976). Iniciação à pintura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Zamboni, S. (1998). A pesquisa em arte. Um paralelo entre arte e ciência. Campinas/SP:
Editora Autores Associados.


367

Narrativas Híbridas na Teurgia-Alquímica de Onilé

Hybrid Narratives in Onilé Theurgy-Alchemy

Victor Hugo Alves Araújo169

Resumo

As obras apresentadas neste artigo são denominadas Oferendas Performativas e propõem um


exercício experimental entre arte, tecnologia e a religiosidade afrobrasileira. Essas obras não
pretendem ser pedagogias para rituais a fim de formatar liturgias. Nesse sentido, elas são
executadas de modo a não espetacularizar as manifestações da religiosidade no âmbito
afrobrasileiro. No contexto da arte na América Latina essas obras são manifestações dedicadas
aos Orixás em um movimento de descolonização do pensamento e da produção artística. Desse
modo, o artigo investiga o processo de hibradação das narrativas mitológicas em implicações na
religiosidade afrobrasileira e na arte contemporânea. A hipótese trabalhada no artigo é que a
reconexão com saberes da ancestralidade pode fomentar propostas criativas que operam uma
reconfiguração das relações do humano com a natureza, através de uma arte que considera
enquanto potências criativas: a religiosidade afrobrasileira, a performatividade e a tecnologia.

Palavras-chave/Palabras clave/Mots clefs: Oferendas Performativas, Narrativas Híbridas,


Performance-Ritual

Abstract

The works presented in this article are called Performative Offerings and propose an
experimental exercise between art, technology and Afro-Brazilian religiosity. These works are
not intended to be pedagogies for rituals in order to format liturgies. In this sense, they are
executed in a way that does not spectacularize the manifestations of religiosity in the Afro-
Brazilian context. In the context of art in Latin America, these works are manifestations dedicated
to the Orixás in a movement to decolonize thought and artistic production. In this way, the article
investigates the process of hybridization of mythological narratives with implications for Afro-
Brazilian religiosity and contemporary art. The hypothesis worked on in the article is that
reconnecting with knowledge of ancestry can foster creative proposals that operate a
reconfiguration of human relations with nature, through an art that it considers as creative
powers: Afro-Brazilian religiosity, performativity and technology.

Keywords: Performative Offerings, Hybrid Narratives, Performance-Ritual

Animismo X Naturalismo

Na religiosidade afrobrasileira o movimento comunicacional das narrativas é amplamente


desempenhado pela oralidade em um oráculo, o jogo dos búzios. O jogo de búzios é um oráculo
jogado por um iniciado, que pode ser um Babalorixá (pai de santo ou sacerdote) ou uma Ialorixá
(mãe de santo ou sacerdotisa). O iniciado efetua o lançamento de dezesseis caracóis em cima de


169
Victor Hugo Alves Araújo, Mestre em Artes Visuais pelo Programa de Pós-graduação da Universidade de
Brasília. O artigo aqui apresentado é uma revisão de duas seções de sua dissertação de mestrado denominada:
Oferendas Performativas - Esculpindo sonoridades digitais no panteão afrobrasileiro.


368

uma peneira de palha ou prato fornecendo dezessete possibilidades denominadas odus.170


(SEGATO, 2005, p.80) (PRANDI, 2003, p.567) O odu é um “tipo de destino” com uma
mensagem relacionada ao modo do cair dos caracóis abertos ou fechados em determinada posição
na peneira ou prato. Os odus são diretamente relacionados aos orixás171, pois dessa interação
emerge a narrativa da mensagem dos orixás para o consulente. Podemos perceber que há um
processo de hibridação nesse diálogo, pois nela o consulente interpela uma comunicação com o
sagrado, o iniciado ou iniciada possibilita a abertura para um feedback, e o oráculo fornece a
resposta por meio de uma mensagem desempenhada numa narrativa mítica.
Na mitologia afrobrasileira “Onilé” é a divindade que carrega nela a base de toda a vida,
nascimento e morte é a “Dona de Ilé”, “Dona da Terra”, recebe também a alcunha de “Aiê”172.
(PRANDI, 2003, p.568) Esse paralelo também é encontrado em diversas culturas em imagens,
esculturas e artefatos, com uma gama muito variada de formas, que se remetem a Terra Mater, a
Tellus Mater173 ou Mãe Natureza. (CAMPBELL: 2015) Nessa religiosidade o humano não é um
produto ou resultado da natureza, ele é a própria natureza manifestada na forma humana, em sua
conexão com as divindades. Podemos fazer um paralelo com a hipótese da Terra como um
superorganismo174, onde cada Orixá, e sua filho ou filha tem seu espaço onde se relacionam.
Conforme Prandi (2003, p.25) coloca, a fonte escrita primária mais completa dos mitos
afrobrasileiros é um caderno de autoria do professor Agenor Miranda175. Essas narrativas
estabelecem a dinâmica das interações entre os orixás e os humanos. Elas funcionam como um
espelho comportamental, pois os orixás “alegram-se e sofrem, vencem e perdem, conquistam e
são conquistados, amam e odeiam. Os humanos são apenas cópias esmaecidas dos orixás dos
quais descendem” (Ibid., 2003, p.24). A reciprocidade constrói o elo entre Orun (Céu) e Aiê
(Terra). A religiosidade afrobrasileira é aqui em tratada em um recorte dos cultos considerados
afrocêntricos constituídos no fluxo da diáspora africana para as Américas em suas variações mais
sincréticas, ou menos, tais como: a macumba, a umbanda, a pajelança, a jurema, o catimbó, o
candomblé, o xangô. Singleton e Souza (2009, p. 449) delinearam a diáspora africana como: “A
dispersão mundial dos povos africanos e de seus descendentes como consequência da escravidão
e outros processos de imigração.” Essas manifestações religiosas podem ter sua definição


170
Podemos encontrar vários significados para a palavra Odu: “nome de uma das mais velhas feiticeiras Iá Mi
Oxorongá, que teria sido mulher de Orunmilá”, ou “signos do oráculo iorubano, formados de mitos que dão
indicaçöes sobre a origem e o destino do consulente.” (PRANDI, 2003, P.567), ou “tipo de destino, descoberto pelo
jogo do oráculo” (SEGATO, 2005, P.80).
171
Conforme Prandi (2003, p.569), divindade, deus do panteão Iorubá.

172
Conforme Prandi (2003, p. 68) aponta: “Orixá feminino pouco conhecido no Brasil, homenageado, contudo, em
candomblés tradicionais da Bahia e candomblés africanizados, especialmente no início do xiré.”

173
Mãe Terra. (tradução nossa)

174
Conforme aponta LOVELOCK, J. E. (1997), sua hipótese é que a Terra com sua biosfera e os componentes físicos
da Terra: atmosfera, criosfera, hidrosfera e litosfera integrados formam um sistema que procura manter o processo de
homeostase como um superorganismo.
175
Agenor Miranda Rocha, o Pai Agenor, foi um bàbálorìṣà da Religião dos Orixás no Candomblé. Foi iniciado aos
cinco anos de idade, em 1912, ao orixá Oxalá. Ver mais em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Agenor_Miranda> Acesso
em: 17/08/2019.


369

enquanto um conjunto heteróclito176 concebido, trabalhado e preservado por diversas


comunidades, em diferentes períodos históricos, nas quais envolvem arte, religiosidade e
medicinas naturais em seu contexto. (CARVALHO, 2010, p.44) Essas manifestações culturais
são concretizadas de forma independente da estrutura oficial do Estado e estabelecem relações
constantes de troca entre si. (Ibid., p.44)
As obras apresentadas neste artigo são denominadas Oferendas Performativas e propõem um
exercício experimental entre arte, tecnologia e a religiosidade afrobrasileira. Essas obras
apresentadas não pretendem ser pedagogias para rituais a fim de formatar liturgias177. Nesse
sentido, elas são executadas de modo a não espetacularizar as manifestações da religiosidade no
âmbito afrobrasileiro. No contexto da arte na América Latina essas obras são manifestações
dedicadas aos Orixás em um movimento de descolonização do pensamento e da produção
artística. Desse modo, elas evocam conexões entre a ancestralidade na religiosidade afrobrasileira
e o exercício performativo na arte contemporânea. A perspectiva utilizada para construção da
análise das obras ocorre em uma abordagem antropológica êmica178, na qual o artista está inserido
no recorte cultural pesquisado, neste caso praticante da religiosidade afrobrasileira. O artigo é
articulado de forma transdisciplinar (COUCHOT, 2001) e sistêmica (NÓBREGA, 2009) entre
diferentes domínios de conhecimento acadêmico e não-acadêmico tais como: arte, natureza,
mitologia e ciências. Essa rede de saberes possui elos que conectam ciência e ancestralidade em
pontos de mutação179 da jornada do artista. Fazemos agora um paralelo entre a religiosidade
afrobrasiliera e a religiosidade cristã através das práticas de iniciação, nele podemos perceber
como ocorre a dinâmica da religiosidade experienciada de maneira “esotérica” ou “exotérica”.
(LEUENBERGER: 2009) No caso do cristianismo, desde a idade média existem pessoas, grupos
e organizações praticantes do cristianismo em seu exercício esotérico com seus ritos de iniciação,
voltados para uma possível auto-realização. Podemos citar como exemplos as confrarias: dos
Cavaleiros Templários (séculos XII a XIV), dos "Amigos de Deus" (Der Gottesfreund, séculos
XIV a XVI), Fedeli D'Amore (séculos XIII a XV), e na modernidade o caminho “Rosacruz, o
Martinismo, a Teosofia.” (Ibid., 2009) Contudo, precisamos nos remeter ao cristianismo exotérico


176
Adjetivo com o significado o que contraria as regras da arte, o que é excêntrico, fora do comum, composto por
elementos distintos e variados, heterogêneo. Definido pela sua diversidade de estilos e gêneros; eclético. Consultado
em 30/06/2019 em Dicio, Dicionário Online de Português.
177
A palavra liturgia “compreende uma celebração religiosa pré-definida, de acordo com as tradições de uma
religião em particular; pode incluir ou referir-se a um ritual formal e elaborado ou uma atividade diária.” Ver mais
em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Liturgia
178
Segundo ROSA, M. e OREY, D C. (2012 p.867), “a abordagem êmica procura compreender determinada cultura
com base nos referenciais dela própria. Em outras palavras, a abordagem ética é a visão externa, dos observadores e
investigadores que estão olhando de fora, em uma postura transcultural, comparativa e descritiva, enquanto a
abordagem êmica é a visão interna, dos observados que estão olhando de dentro, em uma postura particular, única e
analítica.”
179
Segundo CAPRA, F. (1982), o ponto de mutação é o ponto de desconstrução dos paradigmas antigos ligados ao
método reducionista, científico ou mecânico para um método holístico ou sistêmico.


370

com suas manifestações religiosas institucionalizadas e massificadas para delinear mais


aproximadamente a diferença entre a religiosidade experienciada de maneira “esotérica” ou
“exotérica”. No cristianismo exotérico, existe uma “tensão entre humanidade e divindade, um
imperativo”, pois sua “cosmologia acontece enquanto promessa”, ou seja o contato com a
divindade é vivenciado na distância que somente finda ao alcançar o post-mortem, e na direção
vertical de adoração que exige a súplica através da moralidade codificada pela escrita. (SEGATO,
2005, p.147)
Isso se reflete no “modelo ocidental” em uma experiência cosmogônica, na qual há “um espaço
não-preenchido entre o modelo proposto e a existência real.” (Ibid., 2005, p.147) O espaço não-
preenchido pode ser associado ao gap metafísico cartesiano em movimento de anseio pela
plenitude. Esse anseio pode gerar uma grave insatisfação. O gap metafísico é a noção cartesiana
da dualidade supranatural entre nós e mundo, entre o corpo e mente. (FOGLIANO In: ROCHA e
SANTAELLA 2017, p.22) Será essa insatisfação o combustível das ideias progressistas da
modernidade? As sociedades que participam do denominado "modelo ocidental" possuem como
característica a prevalência de três campos de atuação: a ciência, a tecnologia, a economia.
(BERGER In: DOMINGUES, 2003, p.41) Na arte essa atuação cria um sistema de arte
constituído por: artistas, galerias, museus, negociantes e público. Nos campos de atuação desse
modelo ocidental a noção de materialidade é o que valida o natural. Isso acarreta na exclusão de
outras noções do natural de domínios que dialogam à margem das fronteiras dessa noção de
materialidade, como por exemplo a religiosidade. Nessa noção esses domínios são reduzidos a
um estado de subcultura, e somente o conhecimento científico contém a possibilidade de
verificação universal. (Ibid., 2003, p.41) Esse ciência-centrismo se torna uma crença que unifica
o modelo de modernidade ocidental. (Ibid., 2003, p.41) Essa crença surge da perspectiva colocada
por Descartes180 que criou uma distinção entre o homem e o animal, na qual o animal é tratado
como insensível, inconsciente, e imune ao sofrimento. Essa perspectiva fomenta a crença de uma
humanidade diferenciada, separada dos demais processos da natureza, consequentemente a
natureza torna-se um objeto. Hoje sabemos das consequências graves que esse discurso produziu
desde do processo escravista, na qual diversos povos foram tratados como meras ferramentas de
trabalho, a exploração de diversas espécies de animais para fins mercadológicos, até a completa
devastação de vários ecossistemas. Esse discurso, conforme destaca Viveiros de Castro (2012,
p.152), fomenta uma distinção fundacional das ciências humanas no projeto da modernidade,
onde a ordem do cosmológico e a do antropológico, natureza e cultura são separadas. Assim,
conforme destacam Descola e Pálsson (2001, p.14): “o paradigma dualista” exercido pelo

180
Essa perspectiva é colocada em: DESCARTES, René. Discurso do método. Coleção Os pensadores, vol. XV.
Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jr. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 33- 80.


371

pensamento imbricado às representações e racionalismos eurocêntricos nos impossibilita de


“compreender adequadamente as formas locais do saber ecológico”.
Nas religiosidades que possuem sua cosmogonia ligada a natureza, o mundo está sempre em cisão
e abertura. Nele os seres vegetais, animais e outras entidades pertencem a uma “comunidade
sócio-cósmica”. (DESCOLA, 2006 p.12) Nessa construção de mundo o conhecimento não é
gerado pela expectativa, mas a auto-realização, a plenitude, é uma tarefa possível dependendo
unicamente por exemplo: da nossa maestria em conexão com os Orixás e o odu onde nos
encontramos no momento. O conhecimento é acessível, pois o mito é “deste mundo”. Dessa
forma, o sentido da horizontalidade do processo comunicacional com os deuses é imanente, e
presentificado. Assim percebemos que essa comunidade sócio-cósmica é “animada por um
mesmo regime cultural”, na qual são agenciados “modos diferentes de se apreender uns aos
outros” pela narrativa mitológica no fluxo de hibridação do axé181. (DESCOLA, 2006 p.12)
A verticalidade na transcendência da idade média europeia está ligada ao projeto modernista das
galerias, enquanto recinto “homogêneo e asséptico”. Na arte percebemos esta objetificação
manifestada nas galerias. Nelas as paredes são pintadas de branco, o chão é polido ou encarpetado
e o teto possui uma iluminação artificial. Essa proposta caracteriza o que podemos denominar de
cubo branco. (O ́DOHERTY: 2002) Tal proposta sugere um espaço homogêneo e hermético
derivado do ascetismo182 ritual proveniente da idade média, onde "não se come, não se bebe”,
“não se enlouquece, não se canta, não se dança." (Ibid., 2002, p.XIX) A religiosidade
afrobrasileira opera em contraponto a esse ascetismo, pois no ritual se come, se bebe, se dança,
se canta e até mesmo o "enlouquecimento" é permitido nos estados de transe ocasionados pela
possessões dos orixás. Entretanto, existem algumas pessoas e grupos ocidentais que na idade
média estabeleceram o contato com a religiosidade através da natureza: os alquimistas.
A alquimia é conhecida como a “arte hermética” por ter a origem de seu conhecimento atribuída
às Tábuas de Esmeralda escritas por Hermes Trismegisto. Contudo, ela não necessariamente
precisa ser praticada em um determinado recorte cosmológico, pois pode ser prática de forma

181
Conforme PRANDI, (1991, pp.1-50) “Axé é força vital, energia, princípio da vida, força sagrada dos orixás. Axé é
o nome que se dá às partes dos animais que contêm essas forças da natureza viva, que também estão nas folhas, sementes
e nos frutos sagrados. Axé é bênção, cumprimento, votos de boa-sorte e sinônimo de Amém. Axé é poder. Axé é o
conjunto material de objetos que representam os deuses quando estes são assentados, fixados nos seus altares
particulares para ser cultuados. São as pedras e os ferros dos orixás, suas representações materiais, símbolos de uma
sacralidade tangível e imediata. Axé é carisma, é sabedoria nas coisas-do-santo, é senioridade. Axé se tem, se usa, se
gasta, se repõe, se acumula. Axé é origem, é a raiz que vem dos antepassados, é a comunidade do terreiro. Axé se ganha
e se perde.”
182
O ascetismo é uma relação com a religiosidade em um estilo de vida austero visando ao desenvolvimento espiritual,
ou seja “muitos ascéticos acreditam que a purificação resultante do corpo com a prática ascética ajuda a purificação da
alma, a compreensão acerca de uma divindade ou a encontrar a paz interior. Tais objetivos também poderiam ser obtidos
com a automortificação, rituais, ou uma severa renúncia ao prazer. Ascéticos defendem que essas restrições auto
impostas trazem grande liberdade em várias áreas de suas vidas, tais como aumento das habilidades para pensar
limpidamente e para resistir a potenciais impulsos destrutivos.” Ver mais em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Ascetismo_(filosofia)> Acesso em: 17/08/2019.


372

operativa, como por exemplo: nas práticas da medicina natural e da culinária. Seu princípio é que
a origem do mundo provém de uma prima-materia. (LEUENBERGER, 2009, p.166) Essa matéria
pode ser transformada nos processos: mortificatio (morte), sublimatio (passar do sólido para o
gasoso – sublimação), coagulatio (coagulação), calcinatio (queima), solutio (dissolver com
água), putrefatio (decomposição da carne), separatio (separação), coniunctio (união), tinctur
(tintura ou união). (ROOB, 2015). Nessa perspectiva a natureza é percebida em constante
transmutação e tem seu elemento mais denso no chumbo significando associado ao corpo. Nesses
processos de transmutação os alquimistas acreditam que seja possível encontrar a pedra filosofal,
que transforma o chumbo em ouro. A alquimia operativa trabalha com os elementos da natureza,
contudo o processo de transmutação do chumbo em ouro é uma metáfora para o processo de auto-
realização, nela reside a conexão da divina natureza com o humano, que acaba por se torna um
cosmos. A ritualística afrobrasileira possui uma rica abordagem em processos de manipulação
dos elementos da natureza em sua alquimia operativa, nos atos de: macerar, ferver, unir, dissolver.
As ervas possuem um papel chave como “condensadores das energias solares e cósmicas”, pois
“captam várias energias, mas especialmente determinada energia que vem através das Linhas de
Força ou correntes eletromagnéticas”. (RIVAS NETO, 2002 p.177) Elas podem ser utilizadas em
banhos de elevação, descarga ou fixação. Esses banho servem para imantar o Axé nos corpos. Os
incensos, perfumes, ou essências têm a finalidade de harmonizar pessoas ou espaços para abertura
de outros níveis conscienciais. (Ibid., 2002 p. 181) O tabaco fumado no cachimbo tem o papel de
limpar e curar os males. (Ibid., 2002 p.203) As velas funcionam como amplificadores das
mentalizações, orações, visualizações e “são potentes catalisadores da idéia e dos desejos.”(Ibid.,
2002, p.281) Dependendo “do número, cor e disposição geométrica das velas”, caracterizam e
direcionando as vibrações do espaço consagrado. (Ibid., 2002, p.281) Os cordões ou as “guias
naturais captam energias, formando campos elétricos/magnéticos e gerando campos de forças
atrativas ou repulsivas.” (Ibid., 2002 p.284) Mas como a arte pode incorporar fluxos teúrgico-
alquímicos?

Narrativas Híbridas - fluxos de incorporação nas artes


Como o artista pode ser o agenciador de um cosmos? A arte oferece aos artistas a possibilidade
“de acordo com suas disciplinas e artes, de fundir as novas imagens da mitologia, ou seja, eles
produzem as metáforas contemporâneas(...).” (CAMPBELL, 1997, p.21) Nessa fusão a interação
possui o papel de possibilitar o desempenho das narrativas híbridas. Nas artes desde o início do
século XX aconteceram diversas práticas artísticas que procuravam questionar as relações de
instauração da obra (poética do artista) e de recepção da obra (estética), através da hibridação da
obra com espaço e suas possibilidades poéticas.183 A participação foi trabalhada na arte, a partir


183
Podemos citar os exemplos de obras conhecidas por intervenções ou instalações que executavam esse


373

dos anos 60, no sentido de uma inclusão da participação na obra por meio da instrução, da
provocação, como modo de subverter uma arte formalista. Essas obras ocorriam ações
denominadas happenings. Essa ação possuía um tempo determinado e ocorria com a participação
do público. Dessa prática podemos citar os artistas: Allan Kaprow, John Cage, Wesley Duke Lee,
Flávio de Carvalho. O interesse é voltado não para o resultado da obra, mas para o processo
criativo, e a legitimidade de uma unicidade da autoria é questionada, portanto:

Isso de fato se enquadra na preocupação pós-moderna com o


significante, e não com o significado, com a participação, a performance
e o happening, em vez de com um objeto de arte acabado e autoritário,
antes com as aparências superficiais do que com as raízes. (HARVEY,
1996, p. 56 apud VENTURELLI 2004, p.75).

Nos anos 60, artistas começaram a ter um interesse na produção de obras com a utilização de
computadores dessa época podemos citar os artistas: Georg Ness, Max Bense, Frieder Nake,
Michael Noll e Waldemar Cordeiro. Max Bense dá início a denominada Estética Generativa, na
qual da codificação no computador eram geradas imagens simulando os processos criativos, e de
crescimento. Nos início dos anos 80, ocorreu o advento de novas possibilidades no uso do
computador os termos interação e interatividade começam a ser usados pelos artistas. Dessa época
podemos citar os artistas: Roy Ascott, Edmond Couchot, Eduardo Kac, Gilberto Prado e Suzete
Venturelli. Roy Ascott propõe a Arte Telemática, na qual: “Os conceitos fundamentais da arte
como ação, interação com a arte em processo, a obra de arte como arena, arte como transformação,
mudança, fluxo e fluxo.” (ASCOTT, 2003, p.282) Essa arte está voltada para a experiência
transpessoal através de uma “interconexão de todas as coisas, da permeabilidade e instabilidade
das fronteiras” como uma arte-tecnologia das redes, hipermídia e ciberespaço. (Ibid., 2003, p.320)
Esses artistas estão focados nas relações de interação no processo criativo da obra, no qual
sensorialidade é uma função chave. Ela é trabalhada por meio das interfaces, zonas intermediárias,
nós de sensibilidade em suas implicações físicas e psicológicas. Percebemos portanto, um
movimento histórico nas interfaces e suas possibilidades de inclusão de interação da audiência na
obra no seguinte sentido da:
(...)participação passiva (contemplação, percepção, imaginação, evocação etc.), participação ativa
(exploração, manipulação do objeto artístico, intervenção, modificação da obra pelo espectador),
participação perceptiva (arte cinética) e interatividade, como relação recíproca entre o usuário e
um sistema inteligente. (PLAZA, 2003, p.10)
Julio Plaza (2003) divide a produção artística relacionada a três graus de abertura para a


movimento: “Merzbau”(1923) de Schwitters ou "1200 Sacos de Carvão"(1938) de Duchamp.


374

participação do público. A “abertura de primeiro grau” ligada a interpretatividade, à polissemia,


à ambiguidade, à multiplicidade. A “abertura de segundo grau” ligada as possibilidade de
transformações estruturais e temáticas em uma arte de participação, onde o público manipula e
interage com a obra modificando seu sentido. A “abertura de terceiro grau”. na qual a tecnologia
das “interfaces técnicas, coloca a intervenção da máquina como novo e decisivo agente de
instauração estética”. (Ibid., 2003, p.9) Nessa interação ativa podemos observar um processo de
transdução. ”Por transdução entendemos uma operação física, biológica, mental, social, pela qual
uma atividade se propaga gradativamente no interior de um domínio, fundando esta propagação
sobre a estruturação do domínio”. (SIMONDON, 2009, p. 380) Nessa operação o objeto técnico
atinge sua individuação. No domínio das artes é nesse processo que obra pode atingir sua
individuação, na qual a obra torna-se um sistema artista-obra-observador. Esse processo acontece
conforme Simondon (1980): "o ser técnico evolui pela convergência e pela adaptação a si mesmo;
é unificado a partir de dentro de acordo com o princípio da ressonância interna". (SIMONDON,
[1958] 1980, p. 13) Esse sistema ao atingir sua individuação pode ser entendido como um
organismo estético.
Se a relação é pensada dessa maneira, pode-se dizer que o objeto
técnico é capaz de projetar um campo coerente de potencialidades
para seu observador. Objeto técnico e observador tornam-se um todo
integrado ao meio associado, e podem desenvolver uma relação
simbiótica como organismos estéticos. (NÓBREGA 2009, p.95)

Imagem 7 - Estrutura do Organismo Estético, 2009, Guto Nóbrega.

No caso das Oferendas Performativas podemos observar nesse fluxo individuação o que,
Mircea Eliade(1992), Joseph Campbell (1997), colocaram como a função primordial do
mito: a narrativa. Essas narrativas discorrem sobre a criação do Mundo, em uma
cosmogonia, e o desenvolvimento humano em uma cosmologia. Conforme Mircea Eliade


375

(1992, p.5) aponta: “É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o
converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que
o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural.” Portanto, as obras ao
estabelecerem o movimento comunicacional entre o mundo espiritual e o mundo material
operam sua individuação em seu campo de atuação enquanto organismos estéticos.
Assim, como na religiosidade afrobrasileira a dinâmica das forças colocadas no
lançamento dos caracóis no jogo dos búzios estabelece um equilíbrio estrutural coerente
exibido no posicionamento após a queda na peneira, que concretiza um tipo de destino,
um odu, acontece uma Performance-Ritual dedicada aos orixás.

Imagem 1 - Oferenda Performativa 1 - LAROYÊ EXU! EXU MOJUBÁ! Registro: Phil Jones


376

Imagem 2 - Oferenda Performativa 2: Ogum Yê! Patakori Ogum! Registros: Teo Augusto


377

Imagem 8 - Oferenda Performativa 3 - Polifonia Alquímica Registro: Fábio e Letícia - Laboratório Nano
- UFRJ

As obras aqui apresentadas podem ser consideradas odus da interação artista-obra-


observador. Na obra Oferenda Performativa 3: Polifonia Alquímica a sonoridade foi
executada pela captura dos movimentos do performer, da fogueira, e do latido dos cães
da fazenda, na qual ocorreu a performance e o seminário de pesquisa avançada (SPA).
Em três momentos os observadores-participantes da obra e o performer perceberam um
processo de modulação do som desses componentes. No som inicial da fogueira
interagindo uma sonoridade que se remetia ao fogo de forma que ocorreu um processo de
hibridação. Nesse processo não ficava evidente qual era o fonte do som. No caso dos
cachorros os observadores afirmaram que sentiram uma espécie de dinâmica deles com a
densidade do processo sonoro, pois começaram em silêncio e após determinado tempo da
performance, começaram a modular latidos com os sons bem ruídosos. No terceiro caso
um dos observadores relatou um sensibilidade de modulação entre a temporalidade da
queima da fogueira relacionada com a temporalidade da performance.


378

Portanto observamos, que no processo de interação da Oferenda Performativa 3: Polifonia


Alquímica, enquanto um sistema artista-obra-observador ocorreu, segundo a perspectiva
colocada, em uma abertura de terceiro grau, com a participação dos observadores sendo
do tipo perceptiva. Nessa abertura a obra exerceu sua pedagogia mitológica transmitida
em uma narrativa híbrida, na qual as sonoridades operaram fluxos de incorporação em
um jogo performado nas redes tecnológica e orgânica no processo da Teurgia-Alquímica
de Onilé.

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Consciousness / Roy Ascott Edited And With An Essay By Edward A. Shanken University Of
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LEUENBERGER, Hans-Dieter. História Do Esoterismo Mundial. São Paulo: Editora
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“antropologia” São Paulo: MANA 18(1): 151-171, 2012.


380

_Apresentações – on-line

Palestras HUB2020

Reynaldo Thompson : https://www.youtube.com/watch?v=H9m22Wg_NbU



François Soulages: https://www.youtube.com/watch?v=pd9wR_2136Q&t=289s


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Mesa 10: https://youtu.be/21A4gJXnkHQ
Mesa 12: https://www.youtube.com/watch?v=yIjZEdbqopE&feature=youtu.be
Mesa 27: https://youtu.be/HD46M12o-zI
Mesa 29: https://www.youtube.com/watch?v=K7l_Y8a_f5I
Mesa 30: https://www.youtube.com/watch?v=S2ykHgLZg3A&t=11s
Mesa 32: https://studio.youtube.com/video/-LPlOcAYP8k/edit
Mesa 33: https://www.youtube.com/watch?v=OKYlbRfXJOE
Mesa 34: https://youtu.be/5ZeQKIaIEr0
Mesa 42: https://www.youtube.com/watch?v=KBfWE5jXnSc











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_Exposição EmMeio#12.0 – on-line (https://emmeio.gitlab.io/)



Curadoria: Artur Cabral Reis e Joênio Costa




_Performances

A Revolução dos Bichos
https://www.youtube.com/watch?v=uvXasrmGIuo


Janelas Afetivas
https://www.youtube.com/watch?v=sbF6BUwCzA4


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Pontos de In-Re-Flexão
https://www.youtube.com/watch?v=DEGH9fUqQik


Live coding com Pietro Bapthysthe
https://www.youtube.com/watch?v=p6zDhyCQb2k


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_Obras


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