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Joseph

Beuys e o abandono à arte


Por Fabio Cypriano
Instituto Goethe – 7/11/2011


“Eu não me interesso em como as pessoas se movem, mas o que move as pessoas”
Pina Bausch


Com isso abandono a arte, Joseph Beuys, 1985

INTRODUÇÃO

Agradeço ao Instituto Goethe, em especial ao Wolfgang Bader, pelo convite para a palestra
no Terceiro Ciclo do Pensamento Alemão, que se transformou nesse texto. Graças a ele
pude refletir de forma sistemática sobre Beuys, um artista fundamental para minhas
pesquisas para o doutorado sobre Pina Bausch, entre 1997 e 2000, em Berlim.
Não posso esquecer que sua obra “O fim do século 20” (Das Ende des 20. Jahrhunderts)
(1982 – 83) exibida no museu Hamburger Bahnhof, em Berlim, foi, para mim, um grande
mistério e, ao mesmo tempo, um gatilho que me levou ao seu universo e à arte
contemporânea, já que na época eu era um leigo total nesse assunto.
Foi através da obra de Beuys, assim como da obra de Pina, que descobri que a aparência
não é suficiente para se entender uma obra de arte, que não é só através dos olhos que se
compreende uma criação contemporânea.
Com “O fim do século 20” aprendi a ver além da superfície: a instalação é composta por 21
rochas de basalto que representam entorpecimento, solidificação ou mesmo um cemitério
coletivo. O basalto, é bom lembrar, contém cristais que não são vistos a olho nu. Em cada
rocha, Beuys fez um buraco circular e dali retirou um cone, reintroduzindo-o novamente,
desta vez colado com feltro e barro, como a sinalizar que mesmo o mais sólido e imutável
pode sofrer transformações através da ação humana.
Segundo Peter-Klaus Schuster, curador da mostra “Um século de arte alemã”, que ocorreu
em três grandes museus de Berlim, em 1999, e que colocou Beuys como o artista central de
sua seleção sobre a arte alemã no século 20, “O fim...” trata da “ambivalência das enormes
catástrofes do século e, ao mesmo, tempo como uma imagem positiva do valor da vida
humana”.
É essa visão essencialmente humanista, que elege todo homem não só um revolucionário,
mas também como um artista, responsável por contribuir na construção de uma nova
sociedade, definida por Beuys como “escultura social” que, acredito, o coloca como um dos
principais pensadores do século 20, e cujas ideias pretendo abordar nessa fala que estou
chamando “O abandono à arte”, inspirado em um cartão postal de 1985, intitulado “Com
isso abandono a arte”, para se refletir sobre o caráter absolutamente radical de suas
proposições.
O título original desse trabalho, aliás, é “Hiermit trete ich aus der Kunst aus” e a tradução
que adotei é a que consta do livro “Joseph Beuys”, de Alain Borer, na ilustração 148.
Literalmente, ela pode não ser a tradução mais adequada, mas, conceitualmente, como
veremos a seguir, ela é totalmente pertinente.
Eu gostaria ainda de ressaltar a importância em se falar sobre Beuys e sua obra, num
momento, especialmente no Brasil, quando a arte contemporânea é tão celebrada pelo
mercado, como se apenas aquilo que se pode comprar tem algum valor.

1 –Beuys: o mito

Para se compreender o pensamento de Beuys é fundamental conhecer sua própria
biografia. Não se trata aqui de justificar sua obra como uma ilustração de sua vida, mas da
própria inter-relação que ele buscou entre arte e vida, uma vinculação que se tornou
essencial na forma de se conceber a arte nos anos 1960 e 1970, período que tem em Beuys
uma de suas principais figuras.
Esse momento particular do século 20 fez com que artistas como Andy Warhol, Hélio
Oiticica , ou o próprio Beuys, criassem em torno de si uma série de lendas, como uma
amostra simbólica de suas concepções a respeito da arte. Cada um, à sua maneira, criou
sobre si uma série de lendas que, sejam verdadeiras ou falsas, pouco importa, são a
maneira como encarnaram sua própria concepção de arte.
No caso de Beuys, seu uniforme foi sempre a de um tipo simples: o chapéu de feltro, a
jaqueta de pescador, os jeans e os sapatos pesados, como alguém pronto ao trabalho braçal,
em uma das mais antigas profissões. A construção de sua figura pública, uma espécie de
pescador de almas, relaciona-se ainda diretamente com a lenda que o artista construiu em
torno de sua biografia.
Como diz Borer, na publicação citada:

Uma lenda não é nem verdadeira nem falsa, ela é, em latim, aquilo que deve ser lido e dito,
aquilo que é narrado sobre a obra e seu autor, “o ponto em que a biografia deixa de ser
extrínseca”: tudo aquilo com o que a figura legendária contribui e colabora na medida em que
o próprio artista vigia zelosamente, e isso em toda obra, o que será dito sobre ela. (BORER,
12)

É assim, portanto, que devemos ler a mitológica história de Beuys e sua queda de avião na
Criméia: como um preâmbulo à sua obra. Ela é narrada, em sua biografia, publicada por
Heiner Stadhellhaus, da seguinte forma:

Ainda jovem, começou o estudo de medicina, pretendendo devotar-se aos mais humildes, esse
desejo, no entanto, foi destruído quando pilotava o seu Stuka, depois de ingressar na
Luftwaffe [a força aérea nazista] em 1941. No ano de 1944, aos 22 anos, ele miraculosamente
escapou da morte na Ásia. O seu avião, um JU 87, caiu numa região, coberta de neve chamada
Crime ou Criméia. Joseph ficou inconsciente por vários dias, semicongelado, foi levado por
genuínos tártaros, que cuidaram de suas chagas. O povo, natural do lugar, logo o tomou por
um dos seus: “Você não alemão, você tártaro”, e trouxe-o de volta à vida, enrolando-o em seus
tradicionais cobertores de feltro e aquecendo-o com gordura animal. Depois de seu retorno,
tendo encontrado abrigo em uma fazenda, Joseph enfrentou uma crise profunda, familiar a
todos os grandes artistas, que lhe permitiu elaborar os princípios básicos de sua arte.
(BORER, 13)

Não podemos esquecer que Beuys assume ai que participou da esquadra nazista e seu
martírio se torna, assim, uma espécie de redenção, como se ele fosse transformado de
maneira tão vital com esse episódio, que tivesse uma gênese a partir da ajuda dos tártaros,
com seus meios fraternais e primordiais de salvamento.
É a partir dessa história que Beuys justifica não só o caráter de suas proposições artísticas
como um campo que deve salvar o ser humano de suas crises, dando a ela um caráter
terapêutico; mas também explica os materiais envolvidos em suas obras, especialmente o
feltro e a gordura animal, elementos que representam uma forma de proteção, através do
calor, como materiais orgânicos que possibilitam uma relação vital à natureza, lembrando
como o ser humano é parte integrante dela.

Arte não deve se resumir à retina – por isso estou engajado com a substância, como
“um processo do espírito (soul)” (HARLAN, 14)

É como Beuys justifica o uso dos elementos naturais em sua obra. Na versão de “Cadeira
com gordura” , de 1981, (a primeira foi realizada em 1964), ou “Terno de Feltro”, de 1970,
vemos como o artista não está preocupado em criar uma escultura de maneira tradicional
mas em provocar uma reflexão sobre o papel da artista, construindo uma narrativa a partir
desses materiais. Assim, Beuys preocupa-se em reorientar o sentido e a função da arte.
Durante o nazismo, a arte moderna foi combatida oficialmente através da mostra Arte
Degenerada, uma espécie de manifesto contra os movimentos modernistas como a
Bauhaus, o cubismo e o expressionismo alemão, que pregavam na arte uma nova forma de
observar o mundo. O que os nazistas defendiam, então, era o retorno das belas artes, das
formas clássicas como as mais adequadas à sociedade ariana que se pretendia erigir como
soberana.
“Arte Degenerada”, a exposição que teve início na Haus der Kunst de Munique, em 1937, e
depois seguiu para mais 11 cidades na Alemanha e na Áustria, reuniu 650 obras de 112
artistas, entre eles Paul Klee, Kurt Schwitters, Marc Chagall, Mondrian e Lasar Segall. Em
quatro meses, em Munique, a mostra reuniu mais de dois milhões de visitantes.
Quase vinte anos depois, em 1955, Arnold Bode criou em Kassel, uma exposição, a
Documenta, cujo objetivo central foi reapresentar ao público alemão os modernistas
censurados no regime nazista. Essa mostra, que se tornaria de periodicidade qüinqüenal, e
hoje funciona como o grande farol da arte da arte contemporânea, foi uma das grandes
plataformas usadas por Beuys para suas ideias. Ele participou de quatro de suas edições
_em 1964, 1972, 1977 e 1982_, contribuindo para a reconstrução do pensamento artístico
alemão de forma decisiva.
E qual foi essa forma? Em Beuys existe uma pergunta essencial:

Qual a necessidade que justifica a criação de algo como arte?

E sua própria resposta é bastante clara:

Se essa questão não se torna o foco central da pesquisa, e isso não é resolvido numa
forma verdadeiramente radical, que de fato veja a arte como o ponto de início para
produzir alguma coisa, em qualquer campo de trabalho, então qualquer pensamento
de desenvolvimentos posteriores é apenas perda de tempo. (HARLAN, 10)

Quando Beuys defende que a arte é o ponto de partido para produzir algo em qualquer
campo, ele está afinado com aqueles que, nos anos 1960 e 1970, viam na arte o único
espaço possível para novas práticas que descondicionassem o ser humano de, ao menos,
duas visões então hegemônicas, faces do mesmo processo civilizatório, tal qual descrito por
Norbert Elias: o pensamento racionalista e o condicionamento do corpo através de formas
de comportamento então vistas como civilizadas, mas que o contrapõe às forças da
natureza, como se o homem estivesse delas excluído.
Um dos pontos centrais do pensamento de Beuys é, justamente, a “defesa da natureza”,
como prega numa obra, uma fotografia de 1984, numa concepção holística, que se relaciona
em grande medida com antroposofia de Rudolf Steiner (1861 – 1925), ou seja, da
necessidade de integração entre homem e natureza. É a partir daí que, explica o artista, sua
obra deve ser compreendida.

Meus objetos são para ser vistos como estímulos para a transformação da ideia de
escultura, ou da arte em geral. Eles devem provocar pensamentos sobre o que
escultura pode ser e como o conceito de escultura pode ser estendido para materiais
invisíveis usados por todo mundo:
Formas de pensar – como moldamos nossos pensamentos ou
Formas de falar – como damos forma aos nossos pensamentos ou
ESCULTURA SOCIAL: como moldamos e damos forma
ao mundo em que vivemos:
Escultura como um processo evolutivo;
Todo mundo artista (HARLAN, 9)

Dessa forma, chegamos aqui no cerne da concepção de arte de Beuys: usar a arte como uma
plataforma de transformação da sociedade, como um estímulo para a reconstrução do
mundo. Como afirma Harlan, em outra publicação:

A principal preocupação de seu trabalho artístico é a reformulação do campo social. Ele
chama o organismo social de escultura social. (FARKAS, 27)

No entanto, não se trata aqui de uma plataforma meramente política, Beuys não é apenas
um militante da transformação no campo social, mas também um revolucionário das
formas plásticas, por isso seu discurso e sua prática artística não podem ser separados:

“Arte é um tipo de ciência da liberdade” (Harlan, 10)

Afirma Beuys, numa concepção muito próxima a defendida pelo crítico de arte brasileiro,
Mario Pedrosa, para quem “a arte é o exercício experimental da liberdade”, sua ideia mais
conhecida e propalada.

Beuys utilizou diversos meios como instrumentos para a divulgação de suas idéias. Ele foi
autor de uma produção monumental, dezenas de obras, mas especialmente múltiplos, que
por seu caráter democrático, outra das bandeiras dos anos 1960 e 1970, estavam mais
adequados às suas propostas. Entre 1965 e 1986, ele produziu nada menos que 557
múltiplos, alguns com tiragem de 12 mil cópias, como a caixinha de madeira escrita
“Intuição!”. Ele também produziu cerca de 300 cartazes, apropriando-se ainda da
propaganda como um de seus meios de expressão, o mesmo que fazia o regime nazista,
mas, obviamente, com objetivos totalmente distintos.
Quando Beuys criou o pôster “A revolução somos nós”, em Nápoles, no ano de 1971, ele
explicou, em entrevista a Giancarlo Politi, da revista Flash Art (n. 168), o sentido do uso
desse meio:

Para se comunicar, o homem se serve da linguagem, usa gestos, a escrita, picha um
muro, pega a maquina de escrever e extrai letras dela. Em resumo, usa meios. Quais
meios usar para uma ação política? Eu escolhi a arte. Fazer arte é, portanto, um meio
de trabalhar para o homem, no campo do pensamento. Este é o lado mais importante
do meu trabalho. O resto, objetos, desenhos, performances vêm em segundo lugar. No
fundo, não tenho muito a ver com a arte. A arte me interessa apenas enquanto me dá a
possibilidade de dialogar com o homem.

Aqui, então, vemos um pouco do sentido de seu postal, que dá titulo a essa fala, “Com isso
abandono a arte”. A arte, para ele, não estava reduzida aos espaços convencionais, da
galeria e do museu, mesmo que ele também ocupasse com regularidade esses locais.

2 – Os lugares de Beuys

2.1 A Academia

Para defender suas propostas, Beuys utilizou e problematizou vários campos: a Academia,
as instituições de arte como museus e galerias, as instituições políticas, chegando a ser um
dos fundadores do Partido Verde alemão, em 1980.
Sua presença na Academia de Arte de Düsseldorf, por exemplo, foi marcante. Lá ele
estudou, tornou-se professor de escultura, em 1961, e lá permaneceu por dez anos, até
1972. Para ele:

ser professor é a minha obra de arte mais importante [...] o resto é produto
descartável. Se você quer se expressar, você precisa apresentar algo tangível. Mas
depois de um tempo, isso tem apenas a função de um documento histórico. Objetos não
são mais importantes. Eu quero chegar à origem das coisas, ao pensamento por trás
delas. (Artforum, 1969).

Nesse sentido, Borer afirma que em Beuys, “a fala é escultura” (BORER 14), como se seu
pensamento se materializasse na relação dialógica com os alunos.

Suas aulas eram muito disputadas e essa faceta é mote para a mostra “Beuys e bem além –
Ensinar como arte”, organizada pelo Deutsche Bank, a partir de sua própria coleção,
atualmente em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, que apresenta também obras de alunos
como Blink Palermo, Katharina Sieverding e Lothar Baumgarten, numa aproximação um
tanto formalista, o que pretendo abordar mais para frente.
Em Düsseldorf, “as formas tradicionais e fortemente hierárquicas de aula eram substituídas
por debates coletivos, nos quais se discutia tanto arte como questões sociais. Em 1971,
Beuys chegou a ocupar a secretaria da Academia de Arte, para protestar contra as
restrições na admissão de alunos, fundando, então, a Organização pela Democracia Direta
por Referendo Nacional.
Um pouco antes, nesse mesmo ano, ele já havia chegado a admitir em sua classe os 142
candidatos que foram recusados pela Academia, mas esse conjunto de protestos acabou lhe
custando o emprego e um processo, que ele venceu em 1978.
Fundamental aqui é reforçar o caráter libertário de sua atividade como professor, o que
representa possibilitar a cada aluno o desenvolvimento de sua própria obra, independente
do seu trabalho, como ele afirmou numa entrevista de 1972:

Diz-se com freqüência que nas minhas aulas tudo seria conceitual ou político. Mas
para mim é muito importante que resulte em algo sensualmente palpável, com amplos
fundamentos epistemológicos. Meu interesse principal aí é começar pela língua e
deixar as materializações seguirem como uma correlação de pensamento e ação. O
mais importante para mim é que o ser humano, através de seus produtos, experimente
modelos de como poder coatuar na relação com o todo; e não só produza artigos, mas
que se torne artista plástico ou arquiteto no organismo social inteiro. A futura ordem
social se formará de acordo com os princípios da arte. (CHRISTENSEN, 12)

Sua crença no poder da educação institucional não termina com sua saída da Academia de
Arte de Düsseldorf, em 1971. Três anos depois, ele fundou a Universidade Livre
Internacional (FIU – Freie Internationale Universität), que serviu para o desenvolvimento
de muitos de seus projetos, como “Sete mil carvalhos”, na Documenta de Kassel, em 1982.
Na própria Documenta, mas em 1977, na sua 6a. Edição, a F.I.U. foi a responsável por
organizar “Bomba de Mel no local de trabalho”, uma sala na qual Beuys e seus
colaboradores passaram cem dias – o tempo usual de duração da mostra, debatendo a
“escultura social”, ou seja, o novo modelo de sociedade. No entanto, a F.I.U. não foi criada
como simplesmente uma alternativa ao sistema universitário alemão. Como declarou
Beuys, em 1985:

A Universidade Livre Internacional é uma comunidade internacional de pesquisa. Seu
círculo de colaboradores é relativamente pequeno. Não é possível freqüentar a F.I.U.
Trata-se, simplesmente, do projeto de uma nova sociedade, para além do capitalismo e
do comunismo. Para realizar essa tarefa, cada um tem de encontrar apoio em si
mesmo. (FARKAS, 45)

Como em toda obra de Beuys, também a F.I.U. não se constituiu em uma estrutura
convencional, de padrões já estabelecidos, mas propôs uma nova possibilidade para
divulgar o pensamento do artista de uma forma pragmática. Pensar, em Beuys, é realizar.

2.2 O sistema político

Em 1979, a F.I.U. foi uma das cinco organizações que criaram o Partido Verde, na Alemanha,
o que torna Beuys um de seus fundadores. Antes, em1967, ele já havia criado o Partido dos
Estudantes Alemães (Deutsche Studentenpartei), às vésperas das revoluções do Maio de
1968.
Depois, em 1970, ele criou a Organização dos Não-Votantes – Plebiscito Livre (Organisation
der Nicht Wahler, Freie Volksabstimmung), e em 1971, por conta da crise na Academia de
Arte de Dusseldorf, a Organização pela Democracia Direta por Plebiscito (Organisation fur
direkte Demokratie durch Volksbastimmung).
Todas essas organizações demonstram o quanto Beuys acreditava na transformação pelas
vias institucionais, numa época em que a Alemanha era sacudida por agremiações que
também buscavam mudanças, mas por vias ilegais, como o grupo guerrilheiro de extrema-
esquerda Baader Meinhoff, que existiu entre 1970 e 1988. O uso de instrumentos de
democracia direta apontam ainda a importância do pensamento de cada indivíduo, contra
os princípios da democracia representativa.
Mesmo assim, Beuys chegou a candidatar-se ao Parlamento Europeu, em 1979, pelo
agrupamento Outra Associação Política (Sonstige politische Vereinigung), que no ano
seguinte se transformaria em Os Verdes.
Naquela ocasião, ele lançou o manifesto Conclamação à Alternativa, publicado no jornal
“Frankfurter Rundschau”, em 23/12/1978, e reimpresso em 1979, para primeira eleição
para o Parlamento Europeu. O texto defendia a não-violência, a transformação do uso do
dinheiro e da organização do Estado, questionando a fuga da realidade e até o uso de
drogas. Esse manifesto transformou-se no cartaz que integrou sua participação na 15ª
Bienal de São Paulo, com o título “Conclamação para uma alternativa global”, em 1979.
De 1980 a 1986, os Verdes mantiveram, sob a direção de Johann Stüttgen, um escritório de
coordenação na sala 3 da Academia de Dusseldorf, a antiga sala de Beuys.

2.3 O sistema da arte

Em 11 de dezembro de 1964, Beuys apresentou a performance “O silêncio de Marcel
Duchamp é superestimado” (Das Schweigen von Marcel Duchamp wird uberbewertet),
ação transmitida ao vivo pela TV alemã ZDF, como membro do grupo Fluxus, usando além
da fala, seus materiais típicos como gordura e feltro.

Duchamp foi um indolente que criou belas e interessantes provocações para a
burguesia e fez as afrontas brilhantemente na tipologia estética deo seu tempo.
(CHRISTENSEN, 32)

Esse espírito antiburguês na fala de Beuys, é exatamente uma das principais características
do grupo Fluxus, criado em 1961, na galeria AG, em Nova York, pelo artista lituano George
Maciunas. Com caráter internacional, o Fluxus não se caracterizou por um estilo formal
entre seus componentes, mas por um princípio em comum: abolir a questão objetual da
arte como primado de sua existência e valorizar o processo em sua constituição.
Beuys entrou para o grupo através do colega Nan June Paik, artista coreano que também
era professor em Düsseldorf. Além deles, também participavam dos eventos organizados
pelo Fluxus artistas como o músico norteamericano John Cage, cujas experimentações
foram decisivas para o grupo, e a japonesa Yoko Ono.
Nos festivais do Fluxus, Beuys realizava especialmente ações, antecipando a ideia de
performance, que na tinha se caracterizado como uma linguagem.
O Fluxus é vinculado, em geral, ao caráter de antiarte do movimento Dada, que também se
utilazava de elementos do cotidiano e ações efêmeras, questionando o valor comercial da
arte. Maciunas, por exemplo criou vários múltiplos, como as “Fluxus Boxes”, idéia que
depois seria utilizada por Beuys. O uso do vídeo, especialmente por influencia de Nan June
Paik, também foi recorrente no Fluxus, não só por conta do surgimento do novo meio, mas
pelas características que ele propiciava, ou seja, a possibilidade de sua retransmissão, o que
também seria muito utilizado por Beuys. No entanto, enquanto o Dada possuia um caráter
negativo, como define Giulio Carlo Argan, por “demonstrar a impossibilidade de qualquer
relação entre arte e sociedade”, o Fluxus tinha uma visão mais positiva, que buscava
vincular vida e arte.
Não deixa de ser notável que a performance “O silêncio de Marcel Duchamp é
superestimado” tenha ocorrido justamente dentro de um evento do Fluxus, porque seus
membros tinha grande apreço pelo artista francês idealizador do ready-made. A vinculação
de Beuys ao Fluxus foi intensa, mas não durou muito tempo, e a performance mostra como
o caráter crítico do artista alemão realizava-se no confronto, dentro do próprio espaço das
instituições onde ela atuava.
Essa capacidade de crítica também se verifica na performace “Eu gosto da América e a
América gosta de mim”(I like America and America likes Me), em maio de 1974, por três
dias consecutivos, oito horas cada dia, por ocasião da inauguração da galeria do alemão
René Block, em Nova York.
Beuys chegou nos EUA de avião e, do aeroporto JFK, partiu em uma ambulância, indo direto
para uma jaula construída na galeria, onde conviveu com um coiote, animal considerado
sagrado pelos povos nativos dos EUA. Segundo o mito da performance, após três dias, o
artista teria sido levado de volta para o aeroporto, sem ter pisado em solo norteamericano.
Beuys travalhava com Block há muito tempo. Foi em sua galeria que, certa vez, ele cobriu os
cantos com gordura, arrendondando o formato rígido de sua arquitetura, trazendo a ela um
caráter orgânico, que se transformou ao longo dos dias que a gordura ficou exposta. Aqui
percebe-se como Beuys preocupa-se com a questão plástica, mas ela é um veículo para suas
ideias.
Em “Eu gosto da América...” sua ação é mais radical. Ele convive com um animal, enrolado
em feltro e, apoiando-se em uma bengala, aborda a interatividade com a natureza, tão
importante para a ideia de “escultura social”. A performance, de fato, aponta como o artista
vivia sua própria utopia em sua obra, mostrando que a concretização de suas propostas é
viável, além de apontar um caráter da arte não-objetual, não-comercial, anti-
representacional. Isso porque Beuys, que se dizia “um homem das cavernas reencarnado”
[BORER, 30], estava vivendo suas propostas, não estava criando meras ilustrações para
elas. A experiência é parte essencial de suas ações.
Essa ação também é um bom exemplo de como, na concepção de Borer, Beuys pode ser
visto como um pastor:

O pastor conduz os seus discípulos a um lugar que só ele conhece – promessa de um estado
superior; ele é o homem à procura de um caminho, um caminho mais extenso e vasto do que
ele: ele abre passagem. (BORER, 23)

Isso ocorre de maneira grandiosa em seu projeto “Sete mil carvalhos”, que o artista iniciou
em 1982, por ocasião da Documenta 7, criado a partir da F.I.U.. Seu objetivo era que sete
mil árvores desse tipo fossem plantadas em toda a cidade, sempre ao lado de uma coluna
de basalto. Novamente, vê-se aqui a perspicaz capacidade de Beuys em trabalhar com
imagens: até hoje, quem visita Kassel defronta-se com os carvalhos plantados por Beuys e
seus colaboradores.

O início simbólico da rearborização vital da Terra deve acontecer em Kassel. […] Trata-
se de uma ação de caráter racional; neste caso, do plantio de árvores. […] Deve-se criar
primeiramente um entendimento global para – onde quer que isso seja possível –
tornar sustentáveis tais processos. (FARKAS, 41)

Em “Sete mil carvalhos”, Beuys concretiza sua ideia de “escultura social” , transformando o
meio ambiente. E o faz com a colaboração de quem está disposto, para que cada um, cada
pessoa que vive na Terra possa se tornar um criador de formas, um escultor, um desenhista
do organismo social.

No entanto, toda a radicalidade que marcou o período de consolidação da obra de Beuys,
nos anos 1960 e 1970, e que exercício amplo diálogo com outros artistas e grupos, como o
Fluxus, a Arte Povera, na Itália, e a forte presença de artistas da performance, como Marina
Abramovic e Ulay, vai se transformar na década seguinte.
Os anos 1980 são marcados pela ideia do “retorno à pintura”, especialmente na Alemanha,
com o surgimento dos chamados neoexpressionistas, como Georg Baselitz e Anselm Kiefer.
Esse novo contexto, certamente, foi muito desestimulante para Beuys, o que,
provavelmente, o levou a criar o postal-múltiplo “Com isso abandono a arte”, no dia 1 de
Novembro de 1985, praticamente três meses antes de morrer, em 23 de janeiro de 1986, de
ataque do coração.
Esse postal faz parte de uma série de nove frases, todas escritas à mão, em giz, sobre fundo
escuro, tal qual um quadro negro, material que ele tantas vezes usou em suas obras,
relacionadas a sua faceta de professor. É de se notar que, sabendo-se doente, Beuys há
muito estava fragilizado em decorrência de seu acidente aéreo, deixa esse último conjunto
de obras onde não há imagem, não há cor, apenas texto. Outro dos textos escritos nessa
série de postais é

O erro já começa quando alguém se prepara para comprar uma tela.
(der Fehler fängt schon an, wenn einer sich anschickt, Keilrahmen und Leinwand zu
kaufen)


Por isso, a mensagem dos postais é claro, Beuys não via mais possibilidade em veicular suas
ideias no campo da arte, nem tomar parte dele. Assim como foi demitido da Academia, e
nunca eleito por sua agremiações políticas, o artista constatou que tampouco na arte sua
mensagem alcançava a repercussão necessária. Artista emblemático de um período
experimental na história da arte, que tem início no pós-Guerra, Beuys chega pessimista na
década de 1980, quando o mercado de arte ganha força e poder novamente e as
experimentações passam para o segundo plano. É a década do fim da história e, segundo
Artur C. Danto, do fim da arte.
Beuys participou de todas as mostras importantes do circuito da arte: quatro vezes na
Documenta; uma vez na Skulptur Münster, em 1977; representou a Alemanha em Veneza,
em 1976, com a obra Tram Stop (Parada de Bonde) – Monumento ao Futuro; e em 1980,
com Das Kapital Raum 1970 – 1977; representou ainda a Alemanha em três Bienais de São
Paulo (1979, 1985, 1989) e foi consagrado com uma retrospectiva no Guggenheim de Nova
York, em 1979, que lhe rendeu grande prestígio nos Estados Unidos.
Seu epitáfio, contudo, aponta que, de fato, essas grandes exposições pouco representaram
para Beuys, e que ele já vislumbrava um futuro pouco promissor para a arte. Constatação
triste para quem defendia que:
Somente a arte, isto é, a arte concebida ao mesmo tempo como autodeterminação
criativa e como processo que gera a criação é capaz de nos libertar e de nos conduzir
rumo a uma sociedade alternativa” (BORER, 28)

3 – Beuys e o Brasil

Por ter participado de várias bienais no país, por sua importância na história da arte, Beuys
é uma referencia em muitos artistas brasileiros contemporâneos. Ao menos dois deles,
citam o artista diretamente: Marcelo Cidade, na obra “Somos todos office-Beuys”, de 2003,
composta de um boné de feltro, e Guilherme Peters, na performance “Tentativa de evocar o
espírito de Joseph Beuys em torno desse espaço”, de 2009, na qual, vestido como Beuys, ele
faz círculos em um skate. Duas obras reverenciais e irônicas, simultaneamente.
Recentemente, duas exposições ainda homenagearam o artista: “Beuys e bem além –
ensinar como arte”, de setembro a novembro de 2011, no Instituto Tomie Ohtake e “Joseph
Beuys – A revolução somos nós”, no Sesc Pompéia, entre setembro e novembro de 2010,
organizada pela Associação Cultural VideoBrasil.
A primeira abordou a importância do ensino em Beuys, apresentando ainda a obras de seis
de seus alunos: Lothar Baumgarten; Imi Knoebel; Jörg Immendorff; Blinky Palermo;
Katharina Sieverding e Norbert Tadeuz. A mostra ainda traçou um paralelo brasileiro, com
Nelson Leirner e sete de seus alunos: Caetano de Almeida; Leda Catunda; Dora Longo
Bahia; Iran do Espírito Santo, Sérgio Romagnolo, Edgard de Souza e Laura Vinci. Formalista,
a exposição tratou Beuys de maneira objetual, contrastando com as propostas radicais do
artista.
Já “A revolução somos nós”, com curadoria do italiano Antonio d’Avossa, trouxe todos os
pôsteres e múltiplos do artista, além de vários de seus vídeos, numa mostra dinâmica, que
ressaltou o caráter experimental do artista ao utilizar vários meios, especialmente aqueles
com amplo acesso, como cartazes e múltiplos.
Contudo, creio que, em se falando de Beuys e o Brasil, a artista que mais se aproxima de
suas propostas, mesmo sem citá-lo, é Monica Nador. Desde 1996, a artista realiza um
trabalho que deu à sua pintura uma nova dimensão: abandonou a produção no ateliê
protegido e distante do mundo para colorir as paredes de casas modestas da periferia de
São Paulo e vários outros locais do planeta.
Não se trata de uma atitude paternalista. Nador ensina os moradores das casas que visita
como utilizar técnicas como o estêncil (máscaras de papel que permitem pintura seriada),
tendo como motivos temas simples, de objetos de cozinha a animais ou plantas.
Essa proposta ganhou maior consistência quando a artista implantou o Jamac (Jardim
Miriam Arte Clube), em 2004, uma associação na periferia da zona sul da cidade, onde, além
da pintura, passou a promover debates sobre arte e cidadania, e que tomou parte da 27a
Bienal de São Paulo, “Como Viver Junto”, com curadoria de Lisette Lagnado.
No entanto, além de seu trabalho de “escultura social”, afinal, mais do que qualquer outro
artista no país ela está transformando a paisagem de bairros inteiros, Nador continua
expondo em galerias. A diferença é que não se trata mais de sua obra, mas de “autoria
compartilhada”, como se denominava a mostra “Cubo Cor”, na galeria Luciana Brito, de
novembro de 2011 a fevereiro de 2012. Na sala principal da galeria, a artista e os membros
do Jamac usaram as paredes como suporte, da mesma maneira como pintam as casas.
Em outros espaços, havia trabalhos sobre papel e sobre tela. Em todos eles, a repetição de
motivos e o uso elegante de cores foi a tônica.
Tal qual a famosa capela do expressionista abstrato Mark Rothko (1903-1970), em
Houston, o espaço da galeria ganhou contornos metafísicos, sustentados no uso de cores.
Com isso, Nador alia a tradição da pintura a um exercício colaborativo e conceitual, que
coloca em prática a máxima pregada por Beuys: "Todo mundo é um artista". Se para ele, os
anos 1980 necessitavam “o abandono à arte”, Nador aponta como é possível abandonar,
mas ao mesmo tempo continuar ocupando o circuito. Acho que ele aprovaria.

Bibliografia

CHRISTENSEN, Liz (org.) (2011). Beuys e bem além. Ensinar como arte. Frankfurt: Deutsche
Bank.

BORER, Alain. (2001). Joseph Beuys. São Paulo: Cosac Naify

FARIAS, Agnaldo. (2001). Bienal 50 anos. São Paulo: Fundação Bienal de SP.

FARKAS, Solange (2010). A revolução somos nós. São Paulo: Associação Cultural
Videobrasil/Sesc.

HARLAN, Volker (2004) What Is Art?: Conversation with Joseph Beuys. East Sussex:
Clairview Books.

SCHUSTER, Peter-Klaus (1999). Das XX. Jahrhundert: ein jahr hundert kunst in Deutschland.
Berlin: Nicolai.

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