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Matgioi - A Via Racional - Parte II

VI
O KAN-ING

Eis as palavras de Thai-Chang.


A sorte feliz ou infeliz do homem sobre aterra não é determinada inevitavelmente; o homem
atrai, por sua vontade de agir, o fasto e o nefasto. A ação e a reação à ação seguem-no como
uma sombra, proporcionalmente ao seu valor.
Existem, sobre a terra e acima dela, forças inteligentes que avaliam o movimento das ações
dos homens; segundo a maior ou menor influência nascida destas ações, elas diminuem de um
número periódico o total da existência; sobre a terra, estes obstáculos eqüivalem à pobreza
progressiva, depois a uma quantidade de privações e dores, depois ao ódio dos outros, depois
aos suplícios e infelicidades, depois às calamidades gerais enviadas pelas influências
planetárias inimigas, e enfim, quando todos os períodos estão esgotados, à morte.
Existem também três espíritos conselheiros, o lugar destes espíritos, seu chefe, que envolvem
a cabeça do homem; estes conhecem as boas e as más ações humanas, que correspondem
aos períodos dos números ki.[1]
Existem também três espíritos San-Chi, que agem nos movimentos interiores do homem.
Assim que o dia keng-ching chega, eles sobem ao palácio do céu para testemunhar as ações
dos homens[2].
Existe também a alma do lar, que, no último dia da lua, testemunha também.
As ações dos homens, segundo sua influência fraca ou forte, correspondem a diminuição dos
números periódicos ki.
Existe uma quantidade de ações, importantes ou levianas, que é preciso evitar
cuidadosamente, a fim de entrar na imortalidade. Na via direita, avançar resolutamente; na via
tortuosa, recuar resolutamente.
Não marchar sobre o caminho oblíquo. Não enganar seu coração no fundo de  sua vontade.
Acumular a virtude, é acumular o mérito. Amar simpaticamente a vida. Ser direito; esvaziar seu
coração; amar aqueles que vieram antes e os que virão depois. Retificar a si mesmo é começar
a converter o universo. Sustentar os que são fracos e acompanhar os que estão sós. Respeitar
o que é antigo; fortificar o que é recente. Proteger a vida em tudo o que parece inerte e que se
transforma.
Convém assumir como suas as faltas de outrem, e regozijar-se com as virtudes de outrem,
convém salvar os homens da miséria, preservar os homens do perigo, regozijar-se com aquilo
que eles adquirem, afligir-se com o que perdem, como se se tratasse de si mesmo; esconder
os defeitos dos homens, não se vangloriar de suas vantagens, opor-se ao mal, unir-se ao bem,
abandonar muito e guardar pouco, não se indignar com uma reprovação, não receber senão
com temor os bens e os favores, fazer o bem sem pensar em recompensa por isto, dividir com
os homens sem nada lamentar.
Este é um homem cujas ações são justas; todos os homens o honram, a via do Céu se
reconhece nele. Ele é seguido naturalmente pela alegria e a consideração dos grandes. As
reações negativas afastam-se dele, as benéficas o envolvem e o protegem. O que ele faz é
bom e dá bons resultados. Ele tem a justa esperança da imortalidade.
Para ser imortal perante o Céu, convém fazer mil e trezentas ações corretas; para ser imortal
perante a terra convém fazer trezentas ações corretas[3].
Criar pensamentos sem retidão; agir sem razão; não ter valor e considerar-se hábil; possuir um
coração cruel, destruir a vida; detestar secretamente os sábios; desprezar secretamente os
cultos e os anciãos; injuriar seus mestres; marchar contra seus chefes naturais; enganar os
simples, caluniar os amigos; abusar, mentir, falsificar, roubar; maldizer sua família; ser duro,
violento e sem solidariedade; contentar exclusivamente seus desejos; confundir
voluntariamente a razão e seu contrário; ignorar o que deve ser retido ou abandonado;
depauperar os fracos para aumentar a si mesmo; bajular os grandes e obedecê-los sem
reflexão; esquecer os benefícios recebidos; alimentar e perpetuar o ódio; desprezar a vida dos
filhos do Céu; não se conformar com a tradição do Estado; reconhecer dignidade nos indignos;
punir os inocentes; tomar os bens de outro;  tramar a queda de outrem; ferir inimigos sem
defesas; massacrar os prisioneiros; exilar os homens direitos; perder os sábios; insultar os
abandonados; oprimir os fracos; receber presentes para violar as leis; condenar o justo e dar
razão ao injusto; confundir as faltas leves com as graves; condenar à morte com paixão e
cólera; reconhecer a própria falta e perseverar nela; conhecer a justiça, e não se conformar
com ela; acusar outro de seu próprio crime; impedir as profissões das artes mecânicas; criticar
e caluniar os sábios; atacar e ultrajar a Via e a Virtude; lançar flechas aos pássaros, sair à caça
dos animais; perseguir os insetos; espantar os passarinhos adormecidos; entupir as covas,
destruir os ninhos; matar as fêmeas prenhes; destruir os ovos; desejar a infelicidade dos outros
homens; diminuir os méritos dos outros; expor os demais e proteger a si mesmo; diminuir os
outros e aumentar a si mesmo; empregar o mal ao invés do bom; cuidar de seu interesse
particular e negligenciar o geral; declarar como seus os talentos de outrem; esconder os
talentos dos outros; publicar suas imperfeições; revelar seus segredos; estimulá-los a dilapidar
seus bens; desunir os parentes próximos; usurpar o patrimônio de outrem; ajudar os outros a
agir mal; abandonar-se à violência e abusar da autoridade; humilhar os outros com sua própria
grandeza; destruir o que germina e o que está maduro; romper os laços de outrem; enriquecer
por malversação e vangloriar-se disto; não arrepender-se da injustiça se não for punido,
atribuir-se todo o bem; rejeitar todo o mal; conquistar uma glória usurpada; manter um coração
traidor; caluniar os homens de virtude; disfarçar as próprias imperfeições; abusar da força para
constranger e oprimir; ser cruel, atormentar, ferir, tirar a vida; diminuir sem proveito a matéria
existente; matar uma quantidade de animais úteis, fora dos ritos; desperdiçar os destruir os
cinco grãos comestíveis; acumular os seres vivos de trabalhos e penas; arruinar os homens e
apoderar-se de seus bens; desviar as águas e provocar incêndios em regiões habitadas;
atrapalhar os projetos e destruir o trabalho de outros; destruir os instrumentos profissionais
para impedir os homens de os utilizar; desejar a infelicidade e o exílio dos que são felizes e
gloriosos; desejar a miséria dos que são ricos; conhecer a beleza, e desejar apropriar-se
secretamente dela apenas para si; desejar a morte daqueles com os quais se têm obrigações;
maldizer os grandes visitados sem sucesso; ver as imperfeições e incompletudes dos outros e
rir-se disto; conhecer a inteligência e a virtude, e, longe de louvá-las e anunciá-las, escondê-las
e opor-se a elas; fazer uma figura semelhante ao um homem para atormentá-lo; envenenar as
fontes das florestas; ter inveja dos que estão acima; resistir e faltar com o respeito pelos pais e
pelos idosos da família; tomar pela força o que pertence a outro; tomar os bens de outrem pela
força ou por artifícios; aumentar sua fortuna com roubo; avançar por fraudes e artimanhas;
recompensar ou punir aqueles que não merecem; tomar repouso ou prazeres excessivos;
criticar e espezinhar os inferiores; causar terror e repulsa; acusar outro das próprias faltas,
perante o Céu; injuriar a cólera dos dois princípios; suscitar querelas; unir-se para um mau
objetivo; seguir os conselhos das mulheres; resistir às tradições ancestrais; abandonar o antigo
pelo recente; pensar de um modo e falar de outro; exigir vantagens excessivas e enganar
conscientemente seus mestres; atribuir más palavras e más ações aos sábios; denegrir os
outros e gabar a si mesmo; negar as influências e crer apenas na própria virtude; renunciar à
conformidade (à Via) e preferir a revolta; abandonar os seus e juntar-se aos estranhos; afirmar
sua virtude ante o céu e a terra, embora sem virtude alguma; pedir ao céu pelo sucesso de más
ações; dar e se arrepender; emprestar e não restituir; buscar elevar-se acima de sua posição;
fazer uso egoísta de sua força e de sua inteligência; não ter continência nas épocas
consagradas; ter o olhar doce e o coração feroz; desencaminhar as pessoas da Via; ter um
comprimento curto, largura apertada, balança muito leve, vaso pequeno demais; misturar a
verdade e o erro; receber vantagens imerecidas; precipitar os homens honestos na abjeção;
enganar os que confiam; devorar e não saciar-se; invocar os deuses para parecer justo; agir
imoderadamente e contra a razão; ter ressentimentos para com os seus; ser positivo sem
sinceridade e retidão, negativo sem doçura e conformidade; não haver harmonia entre
mulheres; gostar de vangloriar-se todo o tempo; ser constantemente ciumento e invejoso;
conduzir-se mal para com seus descendentes; conduzir-se mal para com os ascendentes do
esposo(a); negligenciar os espíritos ancestrais; resistir às ordens superiores; estudar e fazer
coisas inúteis; esconder um coração duplo; desejar o mal para si mesmo e os seus; ter amores
e ódios injustos; desprezar os espíritos da água e do fogo; matar os recém-nascidos ou fazê-
los abortar; fazer coisas escondidas ou extraordinárias; dissipar os dias hoei e la; gritar e irritar-
se no nascer do sol e no dia so; colocar voluntariamente o negativo em presença do positivo;
desonrar o lar; queimar perfumes com um fogo não consagrado; negligenciar os alimentos da
terra; fazer o mal em favor das trevas e infligir suplícios nos tempos sagrados patsié; injuriar as
estrelas; afrontar o arco-íris, o sol, a lua e os três grandes luminares; queimar ervas na
primavera; injuriar o norte e seus símbolos.
O espírito que vigia a vida humana anota suas faltas, pesadas ou leves, e as faz corresponder
aos obstáculos dos períodos ki; quando a série de reações se esgota, o homem morre; e. se
neste momento a reação não se cumpriu inteiramente, ela se propaga em bem ou mal sobre
seus descendentes. Se um homem toma os bens dos outros, seus filhos e seus bens
desaparecerão pouco a pouco; ele experimentará a água, o fogo, o roubo, a perda, as
doenças, as calúnias, que levarão o equivalente de seu furto. Um homem que mata outro é
semelhante àquele que mata a si mesmo. O ladrão come carne envenenada e bebe vinho
tchin; ele parece saciar-se, mas na realidade ele morre. Querer agir bem sem entretanto agir,
este é o espírito do bem; querer agir mal sem entretanto agir, este é o espírito do mal.
Se o homem inferior muda seu caminho, abstém-se de agir e pensa com a razão, ele obterá a
felicidade e a paz; trata-se de mudar o mal em bem. Também o sábio segue a virtude em
pensamento, palavras e ações; ele cumpre as três coisas boas, e em três anos recebe a
felicidade do Céu. O homem inferior dá as costas à virtude em pensamentos, palavras e obras;
ele cumpre as três coisas repreensíveis, e em três anos recebe a infelicidade do céu.
É preciso sempre esforçar-se para o bem.

VII
AS HIERARQUIAS TAOÍSTAS                   E AS
SOCIEDADES SECRETAS

Atualmente, os textos e os livros taoístas estão traduzidos corretamente e explicados de um


modo possivelmente adequado à intelecção ocidental.
Resta-nos conhecer de que modo estes textos fora aplicados aos lugares e às raças que os
inspiraram, como estabeleceu-se o tradicionalismo graças ao qual estes ensinamentos
longínquos chegaram a nós, e em que escolas ou instituições está ciosamente conservada a
chama de uma luz tão pura.
Esta é, assim, a história das hierarquias taoístas, e da envoltória na qual estas hierarquias se
conservaram, cristalizaram-se e se fecharam, para terem ao mesmo tempo o anonimato e o
poder; é a história das sociedades secretas chinesas. Não se trata de um história cronológica,
pois movimentos revolucionários criaram organizações secretas em certas épocas em função
das necessidades de então, e estas organizações desapareceram depois de terem atingido
seus objetivos[4]. Trata-se aqui apenas de uma história lógica e filosófica, com o estudo do
inevitável desenvolvimento de sociedades secretas políticas no seio dos centros iniciáticos que
o Taoísmo havia criado para a conservação da Doutrina, e para o ocultamento das ciências
delicadas e perigosas, que, tanto do ponto de vista político quanto psicológico, derivavam desta
doutrina.
Sendo os centros iniciáticos taoístas, por outro lado,  os únicos órgãos hierárquicos de uma
tradição que ignora todo culto, todo ritual, toda liturgia e, falando propriamente, todo
sacerdócio, deveriam servir de nó e ligação para todas as sociedades secretas que se
formaram na raça amarela, e por duas razões principais: porque o Taoísmo ensina, em política,
os mesmos princípios professados por aqueles que são obrigados a recorrer às sociedades
secretas para conservar a independência de seu pensamento; depois, porque o Taoísmo
apresenta a hierarquia implacável, mas muito simples e bem oculta, que é indispensável a
qualquer organização secreta digna deste nome e de existência.
Não precisamos voltar aos princípios políticos incluídos nos textos de Lao Tsé, especialmente
no Tao. Sem nem precisar apressá-los, vemos que eles conduzem o indivíduo ao libertismo, e
a coletividade ao comunismo. Assim, eles satisfazem desde o princípio o objetivo longínquo ao
qual se propõem todas as sociedades secretas da humanidade.
Mas o que importa frisar aqui, é a instituição da hierarquia taoísta oculta, tal como ela existe
ainda hoje, e de especificar que o papel místico, mágico e conservador de cada um desses
graus hierárquicos se desdobra em um papel político, social e evolucionista.
Falando propriamente, a hierarquia taoísta não conta com sacerdotes e assistentes, pois não
existe culto exterior, nem membros assalariados, e, por conseguinte, funcionários, pois não
existem neófitos, nem membros eleitos pelo povo ou escolhidos pelo Estado, porque o povo os
ignora e o Estado não os paga. O termo “sacerdote” é bastante impróprio aqui, porque ele não
celebra, mas ensina. A ciência adquirida é o direito do padre taoísta; o reconhecimento dos
mestres é a sua investidura; seu sucesso é sua consagração. Não é preciso mais nada para
ser venerado pela massa de letrados, e para seguir no mundo sua via oculta.
O ensino da ciência – no sentido total do termo – é a única função e a única cerimônia do
Taoísmo. É evidente que as fórmulas propositadamente abstratas, gerais e impessoais, em que
se delicia o ensinamento de Lao Tsé necessitam de uma perpétua paráfrase. Ela é feita através
de uma glosa, uma tradição oral, que é a mesma em todos os lugares aonde se ensina o
Taoísmo. Doutores conhecidos pelo nome de tongsang (homens que vêem claro), e que se
ocupam da metafísica e dos problemas levantados pela doutrina de LaoTsé, fornecem o
ensinamento clássico do Taoísmo.
Ao lado deles estão os phutuy, que se distinguem pos um caráter hierático tradicional. Toda
filosofia sempre se sentiu atraída pelo problema da origem dos deuses e da origem da idéia de
Deus. Ademais, ela aumenta sua influência se, pelo seu misticismo aparente e pela hierarquia
dos sacerdotes, ela move a religiosidade popular. É por isso que os adeptos de Lao Tsé deram
ao Mestre um lugar em seus templos, e criaram, para honrá-lo, se não ritos e uma liturgia, ao
menos uma hierarquia hierática. Esta hierarquia foi tão mais fácil de se instalar na medida
mesma em que a solidão e o estudo, que eram um dever que Lao Tsé legou a seus discípulos,
deram origem a comunidades, algumas enclausuradas, outras errantes, cujos chefes tornaram-
se rapidamente os superiores espirituais. É desta instituição que os phutuy atuais são os
últimos testemunhos.
Enfim, no último degrau da hierarquia  ficam os phap, que, além das mais altas ciências
aludidas acima,  conhecem as toxicologias sagradas e profanas, as ciências divinatórias desde
a metaposcopia até o sidersismo.   Os ritos evocatórios ocupam aqui um lugar de destaque,
neste colégio que segue o ensinamento do Dragão, emblema fantástico que personifica o
Império do Meio, mestre supremo e onisciente do caminho da direita e do caminho da
esquerda.

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Como a ciência original e completa, livre de todos os acréscimos dos comentadores, foi
transmitida até os phap atuais? Como eles a comunicam aos adeptos, que são seus
sucessores designados em vida? Através de que prática eles obtém o poder correspondente a
esta ciência? Sobre quem e sobre quê exercem eles este poder misterioso? Dentre as
questões que temos o direito de fazer, estas são as que não temos o direito de responder:
aqueles que refletirem poderão encontrar mais eloquência neste silêncio, que não escondemos
ser devido a obrigações morais, e também a um certo instinto de conservação. É preciso
entender que, segundo o preceito oriental, nem tudo é feito para ser divulgado, e que não se é
digno de obter um conhecimento a menos que se seja capaz de descobri-lo por si mesmo. De
resto, existem muitas outras questões que, sem reticências nem perigos, podem interessar o
ocidental. Uma delas é: quais são, dentro dos três misteriosos colégios que enumeramos, as
ciências ensinadas e postas em prática? Podemos afirmar que o que se seguirá nunca foi
antes expresso nem escrito.
No colégio dos tongsang[5], só são recebidos doutores, ou seja sábios admitidos nos mais
altos graus da hierarquia não oficial dos letrados, uma vez que os outros títulos ficam à
disposição dos soberanos. Eles não são admitidos ao Taoísmo e ao ensinamento senão após
uma jornada mais ou menos longa, seja num retiro obscuro, seja num destes monastérios
afastados que são chamados de “templos sem portas”, aonde eles se dedicam a trabalhos
místicos e extáticos, e aonde uma longa contemplação do universo os faz penetrar nas
profundidades das leis da natureza. Eles são os mestres e dispensadores absolutos de seu
ensinamento, ao qual acorrem pessoas de longe; e os cursos que dão, se é que podemos
chamar assim suas conversações ao estilo platônico, são publicados conforme a composição
do seu auditório; eles os modificam, aumentam ou diminuem; por causa de um único
espectador suspeito, às vezes eles cerram os lábios. Eles são completamente independentes e
inteiramente responsáveis, não apenas do ponto de vista dogmático, mas ainda sob o aspecto
político; e é a eles que está incumbida a tarefa de não deixar cair nos ouvidos inimigos as
porpostas que poderiam perturbar o sossego destas escolas toleradas mas não oficiais.
Os tongsang geralmente escolhem para moradia aldeias de porte médio (8 a 10 mil habitantes),
próximas às cidades, em estados aonde a vida é mais tranquila, suficientemente retirados para
não serem importunados, mas perto o bastante das redes de comunicações, para não impor
viagens cansativas aos que os vão consultar. O ensinamento público dos tongsang reside na
leitura, na paráfrase e nas aplicações do Tao, do Te e do Kan-ing.
Não cabe aqui indicarmos os desenvolvimentos deste ensinamento: podemos ver no entanto
que ele encerra o estudo sintético de todo o esoterismo, desde a gênese especificamente
humana até as consequências que a ação humana refletida terá, no porvir, para as gêneses
futuras, às quais os livros sagrados, com exceção do segundo, se aplicam. Todas as ciências
metafísicas são abordadas e esclarecidas neste ensinamento. Esta não é, bem entendido, toda
a ciência dos tongsang; mas, dada a publicidade, é a única que eles ensinam.
Do ponto de vista político, os tongsang recebem, por intermédio de enviados especiais, os
avisos ocultos dos chefes das sociedades secretas. Eles conhecem os objetivos para os quais
estes chefes desejam orientar a raça. E, com gosto e dedicação infinitos, eles produzem e
modificam, no sentido conveniente, o ensinamento público dos textos. Eles mantém conversas
reservadas com alguns poucos iniciados, em que indicam a conduta e a linguagem que deverá
ser mantida quando cada qual voltar ao seu lugar.
Os tongsang, cuja personalidade pode ser facilmente conhecida, são sempre consultados pelos
funcionários chineses dos serviços políticos e administrativos, a respeito de como governar, e
também cada vez que existe uma medida importante a ser tomada. A administração provincial
está ssim sob o controle e a direção secreta dos tongsang, e os funcionários não têm nem o
desejo nem os meios de se subtrair a isto.
O colégio dos phutuy, que vem acima dos tongsang no rito taoísta, é um colégio fechado e sem
alunos, aonde não se ensina, mas apenas se estuda. Cada phutuy vive isolado, senão de
corpo, ao menos em pensamento. Pois este é o grau de ciência que se deve adquirir por si
mesmo, e que jamais se pode adquirir através de outro, sem infringir a lei. Os livros sagrados
estudados pelos tongsang são a leitura de cabeceira dos phutuy. Mas eles os lêem de outra
maneira; e este outro modo de leitura deve ser encontrado por eles mesmos, a partir de
deduções daquilo que já lhes foi ensinado. Na reflexão, na solidão, e às vezes no êxtase, o
phutuy chega ao completo esquecimento de seu corpo, e à concentração de todas as suas
forças exclusivamente em sua inteligência. Por não falar, por não ensinar, ele não é diluído
nem distraído, e a tensão de sua vontade leva-o aos mais altos cumes, envolvido no manto do
isolamento e da indiferença. Note-se que ele estuda as leis e os segredos da natureza, para
tornar-se mestre, e que ele comanda as coisas exteriores como a seu próprio corpo.
Menos da metade dos tongsang dedica-se às duras práticas dos phutuy, depois do que a maior
parte volta a ensinar os livros, função bem menos penosa e mais brilhante do que a misteriosa
e ingrata obscuridade dos phutuy, que pode ser usada, mas não comandada. Nenhuma
vantagem pública aplica-se a este colégio intermediário, que, segundo Lao Tsé, não passa de
um escalão intermediário entre a Ciência e a Sabedoria.
Do ponto de vista político, os phutuy são os controladores da e xecução das ordens ocultas que
os tongsang difundem. As ciências – naturais e sobrenaturais – que eles possuem, lhes
permitem, ao mesmo tempo em que conservam o silêncio e o isolamento intelectuais, viajar
sem levantar suspeitas. Com efeito, eles exercem, quando enviados em missão, o ofício de
artista ou cantor nômade, análogo aos taosse e ao faquirismo errante da Índia. São eles quem,
como aqueles que só possuem este ofício, carregam os fenômenos psico-físicos que
maravilhama s massas e os viajantes estrangeiros (multiplicação de vinténs, detenção das
águas correntes, germinação, floração e frutificação pseudo-espontâneas ou instantâneas,
morte aparente, inumação voluntária, etc.). Com a ajuda destas manifestações, eles podem se
deslocar, observar, perscrutar; se eles não comandam nada, eles vêem, asseguram-se, e
prestam contas aos que os enviaram.
Mas quando, na sequência de estudos ininterruptos, da ascese mística coroada de sucesso, o
phutuy perseverante no bem se vê na posse dos segredos e forças da natureza, quando, com
a força de sua vontade, ele rompe os últimos laços que ainda o ligam de modo absoluto a este
mundo, ele sobre espontaneamente ao topo da hierarquia e se torna phap; e este voluntário,
ignorado pelos homens, pode então reaparecer no meio deles, brilhando de sabedoria e poder.
O phap não é um dogmático como o tongsang, nem um contemplativo como o phutuy, nem um
sedentário como os membros de outros graus: ele é essencialmente um ativo e um errante; sua
dignidade obriga-o à atividade, e sua atividade obriga-o à instabilidade. Compreenderemos aos
poucos a correlação entre estas obrigações. O phap é um ser poderoso e venerado, cuja
influência efetiva é aumentada pela admiração do povo. Ele não possui domicílio fixo nem
terras ancestrais, pois seu voto o obriga ao desligamento terrestre mais completo.
Além dos livros sagrados, o phap possui os segredos da toxicologia hierática dos antigos
Chineses, que forma um temível arsenal nas mãos de quem sabe utilizá-la.
O phap possui os antigos tratados de frenologia e quiromancia, condensados em algumas
páginas essenciais, e ilustrados por artistas antigos e religiosos, cuja ciência a um tempo
ingênua e profunda, causaria a admiração pública.
Ele possui o sentido divinatório do Yi King; ele possui os temíveis segredos medicinais que
fazem da flora e dos minerais da China tanto uma panacéia maravilhosa quanto um terrível
abismo de embustes. Mas o verdadeiro apanágio do phap é o conhecimento e a prática dos
preceitos do Phankoatu[6].
Do ponto de vista político, o phap é sempre um membro influente, não apenas das sociedades
secretas, mas frequentemente dos conselhos interiores destas sociedades. Ele influencia nas
deliberações em que são concebidos os planos e as ordens políticas. É o phap que é
encarregado de transmitir estas ordens aos tongsang; ele é, na realidade, o delegado  dos
conselhos interiores, a expressão tangível da vontade das sociedades secretas. Sob pretexto
do apostolado, ele percorre o país como monge errante; ele comanda sozinho e executa. Nada
acontece sem ele, pois a sociedade secreta permanece sempre secreta, e apenas o phap é
visível, e mesmo assim bem pouco.

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O Phankhoatu, literalmente “livro das coisas que retornam”, é melhor designado como “livro do
Reverso”. Podemos procurá-lo em vão nas bibliografias dos sinólogos. Praticamente todo o
Ocidente ignora sua existência; nenhum olhar estrangeiro jamais decifrou seus caracteres.
Apenas os phap possuem cada qual uma reprodução, e o dever do mestre moribundo é de
reduzi-la a cinzas. O phap mais antigo conserva um exemplar, escrito a pincel com tinta
vermelha, sobre brilhantes folhas do Gio imperial, o único exemplar que não pode ser
destruído, e a partir do qual são tiradas cópias conforme a necessidade.
É compreensível que não é fácil, para um europeu, não apenas ver este livro, mas
simplesmente ter uma vaga idéia de sua existência e de seu conteúdo. Não é conveniente para
ninguém, que por acaso ou pelas circunstâncias, possam ter estado ao corrente, por pouco que
seja, demonstrar conhecer o texto. Mas podemos saber que é lá que estão reunidos os mais
temíveis segredos da ciência extremo-oriental, e que lá estão indicados sumariamente, como
num pró-memória, os meios dos homens utilizarem todas as suas potencialidades.
O Phankhoatu está dividido em duas partes, no modelo de dezesseis partes curtas, que os
sinólogos conhecem bem. A primeira parte é como que um resumo das metafísicas e dos
ensinamentos anteriores; ela serve de introdução, e não ensina nada de novo. É apenas deste
prefácio, nártex de um templo fechado, que podemos, pelo interesse geral, extrair algumas
frases. A seguir está a tradução exata – feita segundo os caracteres do livro, e sob a orientação
de um sábio habilitado – do sexto parágrafo deste prefácio, onde encontraremos sem
dificuldade, e com admiração, a teoria do Andrógino, expressa com uma energia e uma
concisão impressionantes, e com oposições de mundos e de palavras que não é preciso frisar:
“Tu adorarás a esquerda, aonde está teu coração.
Tu detestarás a direita, onde está teu fígado e tua coragem.
Mas tu adorarás tua direita, onde está a esquerda do teu irmão.
Tu adorarás a esquerda do teu irmão, onde está sua alma.
Tu abandonarás a alma do teu irmão pelo espírito da sua esquerda.
É assim que o Dragão te morderá o lado esquerdo.
E pela sua mordida entrará Deus.
A voz, sem a palavra; a escuta, sem o som; a vista, sem objeto; a posse, sem contato: estas
são as gotas de sangue da mordida.
Orar com os lábios mudos, crer com os ouvidos tapados, comandar com os olhos fechados,
tomar com as mãos imóveis: esta é a mordida do dragão.
O sono é o mestre dos sentidos e das almas.
Assim dorme tua cabeça sobre o coração de teu irmão.
A esquerda do seu corpo corresponde à esquerda do teu espírito.
A direita do teu espírito corresponde à esquerda do seu corpo.
Que tua esquerda penetre sua esquerda; que tua direita seja penetrada pela sua direita.
Assim teu pensamento será seu pensamento, e teu sangue será seu sangue.
A mordida do Dragão irá cicatrizar; ele retomará seu vôo, vós sereis invisíveis em suas asas.
Vós sereis unidos ao céu.
Assim, vós sereis dois – e um – e o Deus Antigo”.
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A toxicologia ocupa uma das partes do livro; mas aqui já não se trata de venenos, nem mesmo
das poções com que se ocupam os entendidos, mas apenas de certas essências que não são
mais consideradas como tóxicas, mas como meios: os cânhamos, a figueira brava (Antiaris
toxicaria), os cipós de coca, os sucos de louro e da maçãzinha-da-morte (Hyppomane
mancinella), as daturas, e, de modo geral, todas as euforbiáceas. Uma divisão é consagrada ao
emprego prático do haxixe e de ópios especiais, e à descrição e análise das circunstâncias em
que se deve fazer tal ou tal uso destes agentes. Podemos ter certeza de que fatores desta
importância não podem ser colocados em jogo por motivos fúteis; acreditamos, aliás, que o
mero enunciado das plantas assim estudadas, fará compreender para que elas servem.
As demais partes do Phankhoatu estudam, de um ponto de vista que podemos facilmente
entrever:
-       os perfumes, dentre os quais o almíscar, o benjoim, o anis-estrela, o ginseng, o lódão bastardo
(Celtis australis), o sândalo e os fumos de essências, cipós, samambaias, arborescências e
canas tóxicas;
-       os fenômenos de ordem inferior ou intermediária, temporários e superficiais, classificados no
Ocidente sob o nome de “Espiritismo”;
-       o estabelecimento racional da existência de forças errantes, potências descoordenadas da alma
das coisas, sua determinação, sua constituição fugaz e suas aptidões singulares;
-       o modo de reconhecer sua proximidade, o momento favorável à sua captação, e os meios desta
captura;
-       o modo de emprego dessas forças, a determinação dos objetivos para os quais é lícito utilizá-
las; seu retorno ao estado errante e vago (descoagulação);
-       a demonstração da possibilidade efetiva da completa exteriorização humana; o treinamento
prévio, a preparação material, os auxílios físicos, os ritos, as precauções indispensáveis antes,
durante e depois da operação, os locais propícios;
-       os perigos destas práticas, o perigo voluntário que corre o operador, o império das potências
estrangeiras ou das potências adequadas mal dispersadas após o emprego, os desequilíbrios
psíquicos resultantes destes casos especiais e sua cura por um terceiro, em detrimento do
terceiro; os fenômenos do choque de retorno;
-       os ritos, a determinação astronômica das épocas favoráveis;
-       o poder sobre a natureza (mundo inferior), sobre os semelhantes (mundo intermediário), as
influências sobre os indeterminados (mundo superior);
-       a adivinhação;
-       a evocação;
-       o nascimento e as leis que presidem ao ato da concepção;
-       a morte e as leis da boa morte.
É inútil – a mesmo inoportuno – fornecer detalhes sobre estes capítulos.

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Esta é a hierarquia, a ciência, os deveres do esoterismo Taoísta. Já repetimos o bastante que
esses ritos complicados e essas práticas secretas são cumpridos em profundo mistério, e que
as fórmulas são estudadas com as maiores precauções, dentre as quais a primeira é a solidão.
Estas dinâmicas, às quais os Europeus deram diversos nomes (eletricidade, magnetismo,
polarização, hipnose e envoltória de Rochas, forças vitais de Baraduc, sugestão,
exteriorização, etc.), são experimentadas longe de olhares indiscretos; e apenas os Mestres
possuem a chave que abre o acesso a estes tesouros perigosos. Os discípulos são mantidos
em segredo; esta é, assim, uma ssociação completamente fechada. Estes grupos fechados,
ligados por um juramento ritual, comandados por homens de uma inteligência extraordinária, a
quem a doutrina de Lao Tsé ordena o desprezo pelos reis e pelos grandes, foram o miolo
procurado pelos descontentes de todos os tipos que buscavam se reunir e coordenar seus
sentimentos. Para ganhar o Taoísmo para sua causa, eles se tornaram taoístas, e a mistura de
místicos desdenhosos com políticos dissidentes é total hoje em dia. Os antigos mestres do
ensinamento tornaram-se chefes de partidos.
O rito através do qual os phap passaram a acumular essas duas funções temíveis já foi
publicado na Europa, e por isso não o reproduziremos aqui. Eles tomam, em um templo, uma
estátua consagrada à deusa Quang-Am, penteiam-na com laca branca e a enterram de
atravessado sob a soleira de sua casa[7].
Frisemos ainda de que modo os deveres políticos impostos aos tongsang, aos phutuy e aos
phap correspondem precisamente aos deveres de sua ascese mística taoísta. Esta obriga-os a
um tipo de existência tal, que eles podem, sem nada alterar, cumprir com suas obrigações
políticas e sociais; e é nisto que reside a perfeição e a flexibilidade de todo este mecanismo
oculto.

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As causas da fundação das sociedades secretas são tanto étnicas como filosóficas, antes de
serem econômicas, sociais ou evolutivas.
Sabemos que na China e na Indochina – as duas regiões de raça amarela aonde floresce o
melhor das sociedades secretas – as dinastias nacionais foram há muito derrubadas e vegetam
no exílio, cercadas de lembranças lendárias e de vagas ambições. Depois de quase seiscentos
anos, o Celeste Império, invadido pelos Manchus, descendentes de Gengis Khan, continua
governado pelos herdeiros dos conquistadores. Nenhuma função importante da Corte, do trono
supremo ao último intérprete, foi deixada aos nacionais. E embora, após tanto tempo, a raça
vencida, mais inteligente, numerosa e maleável, tenha absorvido a raça vencedora, o ódio que
revolucionou a raça chinesa com a queda dos seus imperadores, subsiste ainda nos seus
efeitos.
Foi no século XIV, seiscentos anos depois da perseguição de Shi Hoang Ti, da qual o Taoísmo
saiu triunfante, e mil e oitocentos anos depois da desaparição de Lao Tsé (637 a.C.), que
aconteceu a conquista manchu. Exatamente na mesma época, na península ao sul da Ásia,
sob os golpes dos Birmaneses e dos Siameses, ruiu o império Khmer, no Camboja, e
desapareceram os Reis Vermelhos, que reinavam em Angkor, a cidade de mil palácios, cujas
ruínas, espalhadas num raio de 72 km, enchem ainda hoje os visitantes de um respeitoso
deslumbramento. Oprimidos pelos vencedores, as raças lançaram-se nas sociedades secretas
– que até então existiam apenas segundo o modo místico, mágico e politicamente teórico de
Lao Tsé – de quem esperavam o consolo de suas dores e a renovação de suas esperanças; e
é desta época, fértil em conspirações, que as misteriosas associações estenderam por toda a
Ásia amarela uma “garra”, hoje em dia poderosa, que jamais voltará a se abrir.
Por volta de meados do século XVIII, a região de Annam, até então tranquila graças aos Le,
reis gloriosos da dinastia nacional libertadora, caiu em revoluções intestinas, que a partir de
1870 a França atiçou: daí saiu uma nova dinastia, a dos Nguyen, oriunda da Conchinchina,
contra a qual levantou-se toda a península, e que só permaneceu no trono graças à
cumplicidade estrangeira. Os movimentos de pirataria que o protetorado francês sofre hoje em
dia no Tonkin nasceram deste cataclisma político, e é a partir daí que se deu a entrada de
tonkineses e annamitas nas sociedades secretas específicas que reuniram, contra os governos
que o acaso lhes impôs, os povos de raça amarela. Esta é a primeira causa da formidável
extensão das sociedeades secretas na China e na Indochina; sem dúvida, muitos dos que
fazem parte delas hoje em dia não justificam sua adesão com este pretexto passado. Não
obstante, esta foi uma das razões primordiais do surgimento dessas associações, e é aí que
devemos buscar e saudar seu poderoso vôo.
Uma outra causa, que está presente todo o tempo, reside no próprio caráter da raça. Sabemos
que o sentimento comum aos chineses é a solidariedade (gen). Esta solidariedade se exerce,
entre compatriotas, do modo mais engenhoso (estabelecimento de razões sociais múltiplas,
extinção da pobreza extrema pela repartição de dterminadas terras, empréstimos sem juros,
etc.). Mas, devido às qualidades prolíficas da raça, um grande número de chineses emigra
todos os anos. Fora das fronteiras, o que acontece com a solidariedade? O império chinês não
tem nem vontade nem  meios de proteger os emigrados. E no entanto, o chinês exilado,
isolado, conserva sempre o desejo ardente de manter-se ligado ao seu país e de se reintegrar
finalmente à terra natal, na qual as mais antigas tradições pedem que ele seja enterrado. O
laço que ele não encontra mais em nenhuma parte lhe é fornecido pelas sociedaes secretas:
não existe, fora do Mipério, um único chinês que não faça parte de uma ou de outra, e mais
especialmente daquela que representa e sustenta em todo o universo os interesses da raça.
Enfim, o sistema governamental, preconizado pelos Sábios e posto em prática pelos
soberanos, deixa o máximo de independência aos funcionários e o mínimo de recursos ao
administrado; para gozar das benesses desta autoridade e desta liberdade, bastariam apenas
funcionários honestos; infelizmente, estes são poucos, e o Império formiga dos piores abusos.
Aqui também as sociedades secretas são a proteção natural das pessoas lesadas, que não
podem pedir reparação por causa de certos regulamentos; e o temor que elas inspiram detém
muitos magistrados em suas prevaricações.
Dadas essas três causas, ninguém se espantará com a enorme influência das sociedades
secretas, nem que estas associações contem na Ásia com mais aderentes do que a população
toda da Europa.

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Duas associações respondem às necessidades de solidariedade e proteção da raça, uma que


reune os chineses da China aos emigrados, e outra cujas tendências satisfazem à causa
primeira de sua criação.
Não falaremos aqui das duas grandes associações das quais não-chineses podem
normalmente fazer parte, das quais uma, a que estende ao norte é bastante conhecida na
América e Europa, enquanto que a outra, ao sul, compreende Málaga, a Malásia, as colônias
holandesas e espanholas, tomou parte no levante das Filipinas, e leva o nome geral de Garra.
É a esta última que pertenceu o francês Marie de Mayréna, que chegou a rei dos Sedangs, que
pereceu misteriosamente num ponto deserto da costa de Bornéo, por haver traído seu
juramento.
Existem duas outras sociedades mais ocultas, mais chinesas e com meios e objetivos que
atraiu sobre elas a fúria das leis, que prescreveram tanto suas finalidades políticas quanto seu
fim místico.
Eis o texto do decreto promulgado em 1811 pelo rei Gia Long:
“Qualquer pessoa que se permita adorar océu ou as estrêlas, e que queime perfumes durante a
noite, ou que acenda as sete lâmpadas celestes, será punida com 80 golpes de bambu.
“Se um bonzo ou um sacerdote do Tao, após o jejum, escrever uma invocação ao céu, ou se
enviar, como invocação, um sacrifício ao espírito do fogo, serão condenados a 80 golpes e
destituídos de sua dignidade.
“Todo indivíduo que exerça artes mágicas, que diga que comanda os bons e os maus gênios,
que trace signos mágicos, que prepare poções por meio da água, que prediga o futuro, que
adore os falsos santos ou que pertença à sociedade do Nenúfar Branco ou à do Verdadeiro
Ancestral, ou que professar qualquer doutrina estrangeira ou errônea, ou que, queimando
bastões perfumados diante de imagens dos maus gênios, reunir pessoas para saudar estas
imagens durante a noite, será condenado ao estrangulamento; seus cúmplices, a 100 golpes
de rotim e ao exílio distante”[8].
É preciso frisar que, logo depois deste artigo, são ordenados sacrifícios aos espíritos das
montanhas, das águas, do vento, das nuvens, do trovão, da chuva, de todas as coisas que, na
gênese cosmogônica, são considerados produtos resultantes da atividade do céu, ao qual se
está proibido honrar publicamente.
“Toda pessoa que tiver em sua posse um livro de astrologia será punido com 100 golpes de
bambu.
“É proibido aos adivinhos e aos mestres da ciência dos elementos frequentar a casa dos
mandarins para aí tratar do bom ou mau destino do Estado. Eles só poderão servir-se destes
livros para prognosticar a sorte de particulares. Toda contravenção será punida com 100 golpes
de bambu”[9].
As sociedades condenadas por este texto são:
1.      A Tien Ti Jen (literalmente: céu, terra, homem), sociedade de nosso “verdadeiro Ancestral”,
que foi o Céu, e cujo nome, participando dos três mundos, indica seu objetivo generalizador,
coordenador, e, portanto, sua busca prática da solidariedade;  e
2.      A Bachlienhue (ou Hoasenchang), “Nenúfar Branco”, cujo nome indica suas tendências
políticas e sociais, para aqueles que conhecem o significado do nenúfar na emblemática.
Todo chinês que sentir a necessidade moral pode entrar para a primeira destas sociedades.
Mas ele só participa das suas vantagens, sem ter idéia dos deveres e das responsabilidades
que incumbem aos chefes.
O simples desejo não basta para entra na Bachlienhue; é preciso saber e poder: saber a
interpretação dos caracateres, o sentido exterior e interior dos Livros sagrados, as
profundidades do ensinamento taoísta e a prática de alguns ritos e fórmulas; poder agir com
toda independência, preservar sua liberdade de ação, chegar aos lugares e às pessoas que
podem determinar as circunstâncias e os acontecimentos, e romper, no momento necessário,
com todos os laçoes sociais e mesmo humanos. Não é preciso ser chinês para entrar no
Nenúfar Branco, mas ela não tem nenhuma finalidade particular, ao menos fora da China. Esta
sociedade pode ter membros fora da Ásia, mas ela não institui representantes oficiais.
Os sinais de reconhecimento são duplos: eles compreendem sinais de outras associações,
como o aperto de mão e o cumprimento, além de um signo engenhosamente emprestado de
uma religião estrangeira.
Apesar das interdições e perseguições que sofreu, esta sociedade forma na China a mais
temível unidade, e ela deixou sua marca em todos os grandes eventos deste século que
associaram o Oriente e o Ocidente. Aqui queremos fazer compreender, por comparação, que
uma sociedade secreta, bem associada e bem secreta, pode e deve chegar a determinar as
ações dos cidadãos e mesmo dos poderes públicos, mesmo que seja atacada, perseguida e
que tenha seus adeptos proscritos: tudo isto sem barulho e sem dinheiro. Sem nos
debruçarmos sobre outras razões de ordem particular, podemos afirmar que uma associação
não atingirá este objetivo a menos que só aceite seus membros após um sério exame prévio,
que versará, em primeiro lugar, sobre a ciência adquirida pelo postulante ao final de estudos
dirigidos por mestres adequados; em segundo, sobre o caráter pessoal do postulante e o valor
que se possa atribuir à sua energia, sua vontade, sua atividade, sua individualidade total, e
sobre as paixões que seu passado possa revelar; em terceiro, sobre a faculdade que ele tem
para compreender e receber o ensinamento que o espera, e sobre o modo didático e prático
mais ou menos perfeito de seu aproveitamento. Todos os que não puderem satisfazer a este
triplo exame devem ser excluídos.
Enfim, o objetivo não será atingido a menos que os membros estejam ligados entre si e à
associação pelos laços mais estreitos e mais desconhecidos, se o silêncio e o segredo forem
rigorosamente exigidos e observados, e se a obscuridade mais completa não envolver os atos
da associação e a existência dos seus diretores. Uma sociedade secreta cujo chefe é
conhecido abdica de toda e qualquer pretensãopolítica e exterior, e nãopassa – deste ponto de
vista – de uma companhia de ginástica intelectual ou de uma assembléia de conferencistas.
Aplique-se isto à antiga Rosa Cruz e aos Franc-Juges[10], de um lado, e à Franco-Maçonaria
atual, de outro: veremos ao que conduz a observação ou o esquecimento dessas regras, e não
nos espantaremos da necessidade dessas exigências e da aparente severidade de suas
aplicações.

***********
A Bachlienhue, na qual se reunem todos os inimigos dos estrangeiros – mesmo dos
estrangeiros que estão no interior do impe´rio – persegue o sonho da hegemonia chinesa, ou
melhor, da liberdade da raça chinesa (pois a filosofia chinesa exclui toda preponderância de
uma raça sobre outra). Desta sociedade partem os movimentos políticos interiores que tem por
objetivo devolver a China a ela mesma; ela foi, nos primeiros anos do século XX, o ninho desta
formidável insurreição dos Taiping, que conquistou o nankin e o sul da China, mas falhou em
transformar o continente asiático. A insurreição dos Taiping foi debelada com sangue e
carnificina; as populações que a sustentaram desapareceram massacradas; e, àqueles que
tiveram a graça de sobreviver, os carrascos imperiais arrancaram os dentes caninos, a fim de
que pudessem ser reconhecidos publicamente. Basta ver as proclamações daquele que foi
eleito imperador em Nanki, a exposição de suas reclamações a Pequim, os hinos que lhe eram
cantados (e dos quais possuimos um exemplar com seu selo), para reconhecer aí as doutrinas
políticas a que vimos aludindo várias vezes, e para que não hajam dúvidas que, caso os
Taiping tivessem vencido, a China não seria hoje o grande e solene gigante adormecido que
conhecemos.
Após a guerra, os descontnentamentos continuaram, e os descontentes se renovaram. Foi
preciso empregá-los fora para que não se tornassem perigosos dentro. As revoltas de Yunnan
mas haviam terminado, e começou a invasão francesa em Annan e Tonkin. As regiões Taiping
eram vizinhas destes reinos; os pavilhões amarelos e pretos, os Quantgthôs do vice-reino de
Canton, o que restava dos man e os partidários de Lihung-choi uniram-se para expulsar, em
nome dos princípios da solidariedade, o novo invasor. A dinastia de Pequim ficou do lado das
associações no seu esforço, e talvez tenha sido isto que a embaraçou e constrangeu. Mas a
guerra que a França sustentou no Tonkin, desde a tomada de Hanoi por Rivière, até o
desbloqueio de Tuyenquang por Giovaninelli, foi uma luta de influências secretas. A história o
prova, mesmo sem querer.
Não houve um único general chinês nesta guerra: o vice-rei de Canton não se moveu; e o vice-
rei de Yunnan levou tanto tempo para reunir suas tropas, que a paz foi assinada em Tientsin
antes que elas houvessem aparecido no cenário da guerra. As tropas chinesas, que nunca
eram reunidas em exércitos permanentes, foram inscritas subrepticiamente e colocadas sob as
ordens de chefes que não eram seus chefes normais. O mestre desta guerra foi Luuvinhphuoc,
chefe dos Pavilhões negros, a quem Pequim enviou formalmente o título de general, e que era,
já há muitos anos, um hongiap (título honorífico mais elevado, reservado aos homens ilustres
por seu poder). As lendas populares haviam-lhe dedicado o horóscopo da estrela de
Tranguyen, estrela de sete raios que aparece no nascimento dos libertadores e dos sábios que
atingiram o extremo grau da sabedoria. Podemos concluir por isto o papel que ele
desempenhou e o grau que ele ocupava nas associações. Assinada a paz com a China,
Luuvinphuoc foi instituído vice-rei de Canton, e a guerra com a França continuou sob o
comando de muitos membros do tronco Hoang, uma ilustre família taoísta, tendo perdurado por
anos ainda com o antigo ímpeto. Mesmo hoje em dia, não sabemos se ela terminou
completamente ou se está apenas adormecida em função das circunstâncias exteriores.
Com efeito, a guerra sino-japonesa veio dar às sociedades um novo ânimo de ação: esta ação
não foi nunca o que se acreditou ter sido. Enquanto que as guerras do Tonkin eram uma luta
de povo contra povo, as associações sabiam bem que era sobre Pequim que os japoneses
dirigiam seua ataques: e eles sabiam sobretudo que a Europa jamais admitiria o
desmembramento da China em proveito de uma potência amarela nova. O que havia era,
assim, uma guerra dinástica, e talvez surgisse a ocasião de se desembaraçar da dinastia. E
podemos crer que os japoneses – belicosos e bem preparados, mas vaidosos e mal ensinados
– não teriam achado o caminho tão fácil, se as associações não houvessem lhes preparado, a
cada passo, guias, víveres e vitórias. Os generais de Petchili foram vencidos; o exército chinês
não apareceu, e existe uma notável parte do império – aonde a missão lyonesa de Madrolle
passou um verão – que ignorava que estivesse havendo uma guerra, e que o norte da China
tivesse sido invadido. Para o mundo chinês, tudo o que houve foi um incidente local, de
miportância bem inferior à revolta dos Taiping. Graças à Europa, a dinastia manchu
permaneceu no trono, e nem um centímetro do território imperial passou aos vencedores.
Mas aconteceu um fato bizarro, ao qual ninguém ainda deu explicação. Por um esquecimento
imperdoável da diplomacia francesa, a ilha de Formosa foi abandonada ao Japão. Alguém se
perguntou porque os japoneses, vencedores imediatos de um imenso império, não
conseguiram, depois de dois anos de lutas contínuas e enormes sacrifícios, tornarem-se
mestres de uma ilha que não possui meio milhão de habitantes? É que o auxílio misterioso que
eles encontraram em sua marcha sobre Pequim, aqui lhes foi negado. Separar Formosa da
China é ir contra a solidariedade, Acrescentemos a isto que Formosa é o refúgio dos antigos
Pavilhões, e depende da ajuda militar de Luuvinphuoc, e saberemos porque Formosa primeiro
erigiu-se em República para depois revoltar-se por inteiro. Eis porque, como já aconteceu com
o almirante Courbet, isolado no único porto de Kelung, os japoneses foram obrigados a
permanecer às portas da nova possessão, não consegundo introduzir aí nem um soldado, nem
um funcionário, e porque, malgrado o tempo e os tratados, Formosa continuará pertencendo,
não à China, mas aos chineses.
Quanto aos recentes movimentos (1900), à atitude dos chineses diante da guerra russo-
japonesa, e aos sintomas de nova revolução xenófoba que hoje em dia estão tomando uma
nova e singular intensidade, eles emanam, diz-se com grande gravidade, de uma sociedade
secreta desconhecida, à qual os ingleses deram o nome de Boxers. Como sabemos queos
educadores da juventude conbservam uma longa influência sobre seus antigos alunos, os
correspondentes britânicos declararam que estes Boxers eram conduzidos por seus antigos
mestres, mestres de esgrima, de luta, de bastão, de ginástica, de boxe, e que, por conseguinte,
eles eram muito fortes, muito ágeis, e poderiam se tornar perigosos; isto foi escrito com toda a
seriedade, e buscou-se até mesmo uma etimologia, de resto falsa.
Esta seita chama-se na verdade Kiaôtze: duplo ideograma chinês cujo significado exato é o de
“Sociedade da harmonia universal”[11]. A palavra Kiaô é geral para todas as associações
secretas ou particulares. Desde o primeiro dia houve um erro linguístico, que nos admiramos
não tenha o sábio professor da Escola de línguas orientais, Leon de Rosny, protestado
imediatamente. Os rapazes maus que se batem a golpes de punho e enchem as ruas com
suas rixas são chamados de Kiào. Os ingleses não observaram que o primeiro Kiaô tem um
acento longo sobre o o, enquanto que o segundo tem um acento breve sobre o a. Os
associados tornaram pugilistas, ou seja Boxers. Todo o resto é pura invenção: não existem em
toda a China mais do que cinquenta mestres de esgrima, luta ou ginástica; e estes estão
classificados junto com os saltimbancos, encarregados de divertir as pessoas nos dias de
festas e nos mercados, e não têm nenhuma influência sobre seus alunos, quando estes
existem além de seus próprios filhos. A revolta atual não é uma revolta especial: é mais um
incidente na perpétua luta entre Amarelos e Brancos, que desta vez teve como pretexto o
negócio da concessão das vias férreas; esta luta só terminará com a retirada dos brancos ou
com a extinção dos amarelos.
Estes Boxers, estes Kiaôtze, desconhecidos ontem, serão desconhecidos amanhã. Eles só têm
uma existência momentânea e relativa. Conforme o objetivo imediato que lhes foi proposto, e
para o qual eles foram criados.
De fato, não existem em toda a China mais do que duas sociedades secretas, uma para o
Norte, outra para o Sul; mas é costume que os membros de uma sociedade secreta,
designados voluntariamente ou não, para cumprir uma ação política qualquer, tomam uma
denominação específica, que começa e termina com esta ação particular, de modo que, em
caso de insucesso, a associação-mãe não fique comprometida. É assim que os Boxers
nasceram com o começo da revolta das estradas de ferro e desaparecerão com o seu
desfecho.
Mantenhamos, para maior clareza, aos revoltosos da seita dos Kiaôtze, este nome errado e
ridículo de Boxers. Eles saíram, para cumprir com suas finalidades atuais, da Tien Ti Jen.
Esta sociedade, que encerra os cortesãos, os altos mandarins, os ministros e mesmo os
membros da família imperial, dedica-se a conservar, com a dinastia reinante, a ordem das
coisas tal como se acha hoje em dia. Vale dizer que os Tien Ti Jen e os Boxers, sua guarda
avançada, só agem de acordo com os desígnios secretos da imperatriz viúva, protetora das
idéias “conservadoras” e desejosa de manter o status quo atual. Da mesma forma, deve ficar
claro que, se os Boxers, sob pretexto das estradas de ferro, puseram o norte do império e a
capital em chamas, é proque eles foram secretamente chamados pela inércia complacente da
imperatriz e do príncipe Tuan, protetor honnorário dos Kiaôtze.
A Tien Ti Jen viu todo o norte da China pavimentado de vias férreas; ela temeu pela
solidariedade e hegemonia chinesas; ela viu os estrangeiros, em quatro anos, cairem sobre
toda a China em atitudes de aves de rapina; ela temeu pelo trono e a dinastia. E toda a China
entrou em efervescência.
Mas é o “Nenúfar Branco”, Bachlienhue, que tenta renovar a China, lançá-la na via do
progresso, na qual ela está imóvel há séculos. É o “Nenúfar Branco” que quer exércitos bem
recrutados, bem instruídos e dotados de instrumentos de guerra aperfeiçoados; o “Nenúfar
Branco” não se revoltaria a propósito das vias férreas, mas as utilizaria com um objetivo
nacional. Tudo lhe é útil para acordar a China, para converter o gen, ou instinto da raça
chinesa, neste patriotirmo moderno que horroriza os estrangeiros e que se lança às fronteiras
para “fazer o progresso”. É assim que o “Nenúfar Branco”, composto por chineses irredentistas,
de almas ardentes, de espíritos abertos e inteligentes, é o mais terrível inimigo dos europeus.
Durante as três primeiras semanas da revolta dos Boxers, o “Nenúfar Branco” não se mexeu:
ele via uma rebelião fictícia feita para consolidar o poder da imperatriz e engajá-la numa
resistência ultra-conservadora. Mas, quando o “Nenúfar Branco” viu que o povo chinês
começava a se voltar contra o estrangeiro, que o movimento político se tornava revolucionário,
e que esta revolução poderia, assim como a intervenção estrangeira, derrubar o trono manchu,
o “Nenúfar Branco”, por seu turno, voltou-se contra os estrangeiros e contra a dinastia, e tentou
retomar na prática o sonho do imperador taiping de Nanking.
A história dos últimos anos esclarece-se assim do modo mais simples e definitivo. Todo o
império chinês, por motivos diversos, é hostil à avidez e à preponderância dos estrangeiros; ele
não seria hostil à sua presença – fato que deve ser lembrado sempre – se esses estrangeiros
viessem cada qual individualmente, para morar ou comerciar, e se os brancos não
procedessem sempre por meio da determinação de zonas de penetração e de influências
administrativas. Devemos confessar que a conduta dessas pot~encias, sobretudo a partir de
1895, autoriza todas as desconfianças dos chineses a respeito. Mas, fora desta antipatia geral,
uma parte do império poderá aproveitar-se das incursões dos estrangeiros no norte para tentar
se desembaraçar da dinastia manchu, e tentará imitar os estrangeiros em todos os seus
progressos industriais e militares. Este é o “Partido das reformas”, do qual o “Nenúfar Branco” é
o centro e o sustento.
Respondendo aos desejos de progresso do imperador Quandgzu, o “Nenúfar Branco” enviou-
lhe um dos seus principais propagandistas, o famoso Kang-yu-Wei. Se ele tivesse cumprido
suas reformas, se ele tivesse dado ao exército e à nação chinesas a evolução progressista com
a qual ele sonhava, a China teria convalecido por alguns anos mais; porém, uma vez atingidos
os aperfeiçoamentos, Kang-yu-Wei a teria levantado com um gesto: a dinastia manchu seria
derrubada, e uma dinastia nacional  apresentaria ao Ocidente espantado um China reformada,
armada, poderosa, e, provavelmente, numericamente invencível.
A revolução palaciana que afastou Kang-yu-Wei e deu o poder à imperatriz (que viu que o
coroamento de suas reformas seria a queda da dinastia) deu ao governo um partido dito
conservador, com antipatia pelos estrangeiros, mas ignorante de suas forças. E o príncipe
Tuan, que jamais pos os pés na Europa nem o nariz num livro de propaganda científica, dez
estourar imediatamente esta revolução popular, cuja efervescência Kang-yu-Wei guardava para
o dia em que a China inteira pudesse estar apoiada por um exército, por armas e por uma
instrução modernas.
Assim, hoje em dia, pela homogeneidade chinesa, o “Grande Ancestral”, o “Nenúfar Branco” e
suas filiais estão em luta contra a Europa, a América e o próprio Japão. Ninguém duvida que
esta luta prossiga até a vitória destas associações. Que objetivo mais nobre podem estes
homens se colocar? É inútil procurar em outra parte o modo sonoro de uma conclusão: nós
achamos esta suficientemente eloquente, e a porpomos como exemplo para todos os que,
tendo trabalhado e aprendido, querem, com este trabalho e com esta ciência, fazer progredir
seus irmãos esparsos pelo mundo. Pois para o homem superior não existem raças, nem
latitudes. Os mesmos princípios piedosamente cultivados podem fazer nascer os mesmos
votos, e proporcionar, aos homens resolutos e aos seus constantes esforços, o mesmo poder
temível e oculto, tanto mais temível quanto mais oculto.
O Poder é a Via lógica e natural dos homens enérgicos, sábios e silenciosos.
VIII
AS CIÊNCIAS SAGRADAS

Os centros iniciáticos do Taoísmo e os dioversos escalões dos graus secretos não se


contentaram em conservar escrupulosamente os arcanos da Tradição. Eles conservaram
também, sob a denominação de “Ciências sagradas”, os resultados da experiência dos
Ancestrais relativos aos objetos perigosos e aos objetos esotéricos, decorrentes imediatamente
dos dogmas esotéricos. Estas ciências são objeto do texto do Phankhoatu, e demos a sua lista
mais acima.
Das ciências perigosas originam-se: a toxicologia, a ciência dos perfumes, as forças exteriores,
a evocação. Das ciências secretas originam-se: os fenômenos intermediários, a exteriorização
humana, as leis das épocas, as potências, as influências e os poderes, a adivinhação, a boa
morte.
A esta lista, convém acrescentar uma série de ciências experimentais, que, apesar de não
serem absolutamente sagradas, provém entretanto do domínio dos ensinamentos taoístas, e
não são conhecidas e praticadas, no seu conjunto e nos seus detalhes, senão pelos adeptos
do Tao que atingiram um certo grau. Elas são, em suma, a decorrência natural dos
ensinamentos secretos: elas são estimadas abaixo destes ensinamentos dos quais saem,
embora sejam de uma espécie mais extraordinária, mais imprevista e, para o vulgo, mais
admirável.
Elas se enquadram nos planos do experimentalismo, da filosofia, da hierática e do ocultismo.
Essas ciências, que os sábios protegem de suas potências inertes, são esclarecidas em glosas
e acroamáticos. Filhas do gênio específico do Extremo-Oriente, apenas seus nomes são
conhecidos no Ocidente, que faz apenas uma parca idéia dos princípios aí expostos e das
teorias decorrentes. Elas são tão conhecidas na Europa quanto são connhecidas na China as
combinações de bromatos amorfos, as leis do divórcio europeu ou as teorias de Joule sobre os
potenciais elétricos[12]. Elas englobam o ciclo completo dos conhecimentos humanos.
Em termos de experimentalismo, é a patogenia[13] que, recusando-se em ver no mal exterior a
causa eficiente das doenças, decompõe o ser humano em seus elementos normais, segundo
as regras patológicas, e, descobrindo o veículo mórbido, identifica-o e isola-o antes mesmo que
ele aja, atirando-o sem mais delongas aos golpes de uma medicação enérgica. É a
etiologia[14], imensa escada da nosologia terrestre, reconstituída em seus verdadeiros graus
por construtores pacientes que classificaram as doenças segundo o valor absoluto das suas
causas, e não a partir da gravidade variável das suas manifestações. É a terapêutica dedutiva
e a farmacêutica, aplicadas segundo as consequências lógicas dos teoremas patogênicos, daí
para frente inquestionáveis: é a manigrafia[15] e a kinesiterapia[16], ciência dupla das loucuras
aberrantes da alma e do corpo, fundamentada sobre bases diferentes das nossas, nada
deixando ao azar das experiências, e que permitem agir infalivelmente seguindo um raciocínio
silogístico; é a noogenia[17] admitida em todos os casos, a aplicação dos contra-estímulos e a
metatese[18], praticados com a perfeita segurança do diagnóstico.
Em filosofia, é a psicologia dos sete elementos normais do homem, a elucidação dos
fenômenos sensitivos e sentimentais, e o problema humano levado até a determinação de sua
porção divina desconhecida; é a lógica tradicional, e a demonstração da inutilidade das
teodisséias. É a moral reduzida à piedade universal.
Em metafísica, é a ideogenia[19], a ontologia[20], o acrotismo[21].
Em hierática[22], é a iconologia[23], ciências dos diagramas sagrados, onde, fora e acima dos
livros, repousa a inteligência dos arcanos; é a matesiologia[24] contemplativa, em que o
discípulo autodidata escala sozinho os últimos degraus do saber; é o ritualismo estrito e
profundo; é o siderismo[25], ciência dos astros, cujo movimento nos arrasta, e cuja atração
misteriosa comanda nossos destinos.
Em ocultismo, enfim, são as ciências metaposcópicas[26], levadas acima do empirismo aonde
normalmente elas ficam, até a determinação do valor dos traços visíveis de uma influência
oculta, traços dedutivos e não indutivos, consequentes e não hipotéticos: é a
megalantropogênese[27], arte perdida de nossos contemporâneos, que procriam como comem,
bebem ou jogam cartas, arte que transmuta uma excitação passageira num ato refletido, que
mesmo os imbecis respeitam. É a obstétrica sugestiva; a genetlíaca[28] divinatória; é a
hermenêutica dos ideogramas e a ideografia sigilar. É toda a pneumatologia, esta estranha
ciência das relações entre os mundos e os seres, dimorfismo psíquico, a cujas portas hesita a
miopia de Bernheim e a negação de Charcot. Enfim, é a taumatologia, a arte de fazer milagres
naturalmente e de poder, por força de comandar a si mesmo, comandar a natureza e os outros,
segundo as leis mais secretas, e por meios de forças errantes, cujo dinamismo ignorado
submete-se às vezes à vontade dos clarividentes; é este poder sombrio que cala seus
depositários, e cujo último herdeiro é, sem dúvida, este Império que coloca na face das suas
moedas, no alto dos seus estandartes e no frontão dos seus templos, o Dragão alado, mestre
onisciente dos caminhos da direita e da esquerda.

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A PATOGENIA CHINESA

Toda a terapêutica do Extremo-Oriente sai diretamente dos dogmas dos mais arcaicos estudos.
Na crença budista, no Taoísmo místico, no longínquo e metafísico Yi King, não há mais do que
uma única e irredutível afirmação sobre o setenário de elementos básicos que formam o
composto humano. Sob nomes diferentes, sua natureza permanece idêntica, e a universalidade
desta crença generalizada influiu sobre todas as ciências secundárias nascidas nas épocas
ulteriores, em cérebros moldados por este princípio primeiro e inquebrável.
Em uma estreita união, que é uma garantia da verdade, corroboram-se, em diferentes planos,
apoiam-se e auxiliam-se mutuamente a ciência hierática, a fé popular e as determinações
fisiológicas.
Os extremo-orientais entenderam perfeitamente que a ciência da conservação do corpo não
poderia encontrar seu caminho senão iluminadas pelas ciências intelectuais, e que o primeiro
dever de uma ciência experimental era de tomar, como princípio axiomático, a dedução lógica
das ciências racionais.
Apenas os presunçosos acham que se pode determinar as verdades do plano espiritual a partir
das sensibilidades do plano anímico, e estas a partir do empirismo do plano corporal. Uma
opinião tão bizarra provém evidentemente de uma aquisição descoordenada de conceitos, de
um amontoamento incoerente de princípios num espírito que não pode contê-los todos, de uma
colocação falsa em um cérebro repleto de dados experimentais prováveis, aos quais a vaidade,
comum aos imperfeitos, empresta gratuitamente o poder das evidências ou das demonstrações
racionais.
A ciência pura e primeira deve ter como consequência os diferentes saberes que o homem
descobre ao aplicar, aos diferentes graus e às diversas situações dos corpos, os princípios
eternos.
Mas, assim como um corolário não pode pretender reger o teorema, também as ciências
secundárias não podem ir de encontro as ciências primárias; e, se a fisiologia ou a terapêutica
parecem de repente insurgir-se contra a metafísica ou a psicologia, não se deve duvidar que o
experimento foi mal feito e que o empirismo deve recomeçar.
Esta é a base das ciências de observação do Extremo-Oriente; não se deve buscar em outra
parte a causa do poder físico extraordinário dos sábios e da maravilhosa perspicácia de seus
experimentos.
Em patologia, eles fizeram a mais delicada aplicação e a mais sábia interpretação das
doutrinas. Conscientes de que as doenças, tais como nos aparecem, são meros efeitos, e que
as causas destas doenças nos órgãos respectivos não passam de decorrências imediatas da
causa verdadeira, eles buscaram a origem de todo mal no plano superior, em algum dos
princípios essenciais do homem, a fim de poder, uma vez descoberta a fonte, cortá-la de um só
golpe com o remédio apropriado, não à consequência tangível, mas à causa primordial, às
vezes obscura e sempre escondida.
Eles estabeleceram, a este respeito, os princípios de uma ciência verdadeiramente original, a
patogenia, que é, no sentido estrito do termo, o acrotismo nosológico.

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Em experimentalismo, dizem os chineses, as simplificações são muitas vezes misturas e não


reduções, e assim só conduzem à confusão Eis aqui, portanto, sua teoria.
O corpo (Xuong, substâncias orgânicas) e o sangue (Maû, veículo da vida animal) constituem
os elementos inferiores do homem. A vontade celeste (Wun) que mantém o composto humano
em sua integridade, parcela divina presente em nós, e o entendimento (Tinh), que não é a
faculdade da razão, mas a faculdade da associaçâo de idéias, constituem seus elementos
superiores. Estes são o corpo e o espírito, cuja união faz o homem. Ora, o sangue, por puro
que seja, não serve para manter a existência física, se não for a um tempo ágil, quente e
vibrante; a associação de idéias não pode manifestar-se em nossa dicção se não houver uma
comunicação íntima com o corpo: existe assim forçosamente em nós uma faculdade de calor,
de movimento, de luz, que está fora de toda e qualquer fisiologia e abaixo de todo e qualquer
entendimento. Esta faculdade possui três modalidades de revelação e de obras bem distintas;
convém deixarmos a ela sua tríplice determinação, se não quisermos errar – neste invisível e
difícil domínio – no momento da especialização.
Ora, os elementos superiores, provindos da vontade Una e de suas consequências, nãopodem
ser afetados essencialmente por nenhum mal.
Ora, os elementos inferiores nãopodem ser diretamente atacados senão por eflúvios exteriores,
destrutivos ou deletérios, ou seja que suas afecções só podem traduzir-se numa perda de
quantidade ou numa mudança de qualidade. As duas únicas doenças essenciais dos
elementos inferiores são a corrupção e a anemia, duas doenças visíveis, e cujos prognósticos,
tratamento e cura não são extraídos do emprirismo habitual.
Portanto, todas as doenças, qualquer dos elementos humanos que seja atacado[29], têm sua
causa primordial em um dos três intermediários que unem as moléculas corporais às
faculdades do entendimento, as quais não poderiam tocar-se em sua coexistência sem o
concurso de meios advindos de outro plano. O movimento, o sopro e a luz são assim, devido à
sua sutileza essencial, os primeiros elementos expostos às influências mórbidas, as portas
pelas quais o mal se introduz neste composto que somos nós.
A patogenia oriental consiste assim, após um diagnóstico psicológico, em determinar, dentre
estas portas, a que foi aberta ou rompida, a fim de que a terapêutica possa diretamente fechá-
la ou reconstrui-la.
Uma vez admitidas estas considerações como consequências estritas das psicologias e da
metafísica, qual raciocínio impõe-se a seguir?
Trata-se, no caso da doença detectada em tempo ainda não atingido pela miséria fisiológica,
de negligenciar o efeito visível, por terrível que pareça, para remontar à sua causa essencial,
obscura, oculta – mas a única eficiente para o mal – e atacá-la exclusivamente. É a rejeição
absoluta de todo e qualquer empirismo experimental, de toda medicação externa, de todos os
tópicos; no domínio prático, é a exclusão de todos os sucedâneos, e a redução da farmacopéia
a alguns princípios regeneradores e revulsivos, de aplicação adequada à descoberta das
causas determinantes do mal. É a classificação da nosologia em uns poucos cabeçalhos de
capítulos especializados.
Trata-se sobretudo da luta psíquica e intelectual contra o mal, coincidindo e aliando-se
intimamente à luta material contra a doença consequente; trata-se de, após a determinação
exata do ingresso mórbido no elemento humano específico, tonificar, exasperar, acordar, ou,
conforme o caso, reduzir, refrigerar, enfraquecer o dito elemento e devolver-lhe sua influência
normal dentro do composto humano. É o tratamento rígido, tanto no plano anímico como no
corporal, da causa verdadeira; é a redução do mal produzida no elemento-princípio, a
repressão da desordem focada na localização física deste princípio, independentemente do
processo acontecido nos diferentes órgãos pelo desenvolvimento da doença.
Vale dizer que, baseada nos indícios de uma patogenia cuidadosa, a terapêutica não é mais do
que um corolário material de uma ciência de observação psíquica; que este corolário, perdendo
toda sua envergadura experimental, perde também suas chances casuais e a facilidade de
erro; e que, desligada de todas as falsidades que encerram em si as observações mal feitas e
as constatações de sintomas estranhos devidos a circunstâncias exteriores desconhecidas pelo
observador,  a medicina não é mais que uma aplicação lógica de uma psicologia fisiológica de
grande valor, e ganha em precisão aquilo que ela perde em iniciativa.
Entretanto convém acrescentar que o tratamento por remédio direto, com exceção dos
sucedâneos, supõe o emprego de revulsivos e tóxicos muito poderosos, capazes de
revolucionar o organismo humano; que este tratamento implica o uso, sem nenhum lenitivo, de
quantidades determinadas durante períodos determinados; é preciso ainda acrescentar que a
potência desta medicação requer, entre os outros elementos do com posto humano, uma força
vital, uma energia suficiente para resistir a esta ação, e produzir efeitos reflexos que irão
beneficiar o elemento atingido e tratado. É preciso assim que o paciente tenha força e
juventude, e ademais uma saúde geral, que pressupõe que o mal seja tratado assim que tenha
sido reconhecido, e que a diátese[30], em caso de hereditariedade, tenha sido percebida desde
a mais tenra idade. Concluímos daí que, se os acidentes súbitos, as afecções graves, mesmo
os casos desesperados encontram, na aplicação da patogenia à terapêutica, chances de cura
verdadeiramente extraordinárias e desconnhecidas dos Ocidentais, ao contrário, os doentes
inveterados, os velhos, as anemias e as diáteses de ascendência não tratada, são pouco
susceptíveis de cura, porque a terapêutica não admite ou ignora os sucedâneos capazes  de
suavizar e abrandar, e assim os doentes não suportariam os remédios violentos, únicos
capazes de refrear o mal.
Que uma localização dos elementos vitais pareça desde o início necessária, não há dúvida;
mas esta localização – absolutamente teórica – não serve, como ponto de partida na
patogenia, mais do que serve a suposição de um valor de x na discussão de uma equação
algébrica; tomada isoladamente, a suposição é gratuita e contestável; mas é uma base
hipotética necessária, da qual parte o raciocício para seguir a lista de posições possíveis,
assinalar-lhe os valores concordantes, para então voltar ao x inicial, indeterminado, mas ao
qual a definição de todos os demais valores vizinhos deixa um único lugar possível, que é seu
verdadeiro lugar. Assim foi pensado na disposição dos elementos vitais através dos órgãos, e é
preciso mesmo admitir uma inversão normal da hipótese primitiva em certos casos
psicológicos, fisiológicos, ou mesmo patológicos, prevista no início, exatamente do mesmo
modo como, na passagem insensível de um valor por uma linha de demarcação designada na
curva dos valores, o valor correspondente da incógnita salta de repente de mais infinito para
menos infinito.

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O Khi ou sopro, veículo da vida geral, é o fator que parece ser o mais importante nessa
organização, ou, em todo caso, aquele cujo valor quantitativo parece ser o mais considerável.
Como os três elementos solúveis estão potencialmente em estado de animação vital e os três
elementos imortais estão em estado potencial de localização temporária, o Khi vem, por sua
complexidade, encadear e reunir elementos de essências diferentes e propriedades díspares.
Com efeito, o Khi possui em comum com os elementos solúveis o fato de que ele morre, e tem
em comum com os elementos imortais o fato de não se dissolver, e que ele se reune, por uma
imediata ressurreição, a estes imortais, para constituir um novo modo de existência. Este é o
mecanismo do nascimento e, por inversão, o mecanismo da morte.
O Khi (sopro de vida), cuja entrada em cena causa diretamente a vida no organismo humano,
encon tra dois movimentos a determinar, um nos elementos superiores, outro nos inferiores;
estes dois movimentos aplicam-se a duas especialidades, uma física e material, outra hiper-
física e intelectual; estas esências, estes elementos, estes movimentos, constituem o jogo do
organismo, que se denomina existência humana normal.
Do lado físico, o Khi, indo diretamente aos pulmões, órgãos da combustão e da regeneração
dos combustíveis, atinge o sangue, que se move e forma, sob seu impulso, o nódulo sanguíneo
(inferior) esquematizado sob a forma de um turbilhão ou de um plexo.
Do lado psíquico, o Khi encontra o elemento imortal Than (luz, e, por conseguinte, calor). Ele
se une imediatamente a este do modo mais indissolúvel (o que é natural, pois, estando sujeito
à ressurreição, o Khi é mais atraído para o lado dos imortais do que para os solúveis) e forma
com ele o nódulo psíquico, que se espalha por todo o ser, mas que tem sua localização
particularmente no coração. O Than, isoladamente, não pode ser localizado, mas este
isolamento é apenas uma potencialidade, nunca um estado.
Reunidos um ao outro, o Than e o Khi tornam-se o Thankhi único (fluído ou “corpo astral”[31]):
ele se espalha ao redor dos elementos imortais; ele afeta o Tinh (a associação de idéias) e
produz aí o nódulo intelectual, cuja localização provisória é no cérebro; dizemos “provisória”
porque no Oriente admite-se que não é necessário possuir um cérebro para ter associações de
idéias.
Como é inútil – e até perigoso, segundo o Phankhoatu – pretender afetar o Wun (que não
passa de uma manifestação) e ligá-lo aos elementos humanos, resta a explicar a ação do
movimento sobre os órgãos tangíveis que formam o “corpo” humano.
Ora, existe aqui uma aplicação específica do princípio de Am-duong[32] (princípio duplo,
fisiológicamente quente e frio, seco e úmido). Um experimento superficial mostra que o corpo
humano, por seu calor e seus humores, participa do duplo princípio.
Toda secreção, toda exudação, supõe um movimento interior; daí ser o rim considerado como
uma sede do movimento, pois é ele o secretor das umidades corporais; por conseguinte, ele
serve, na marcha dos elementos inferiores, como uma espécie de intermediário. Seu próprio
nome o atesta: thantuy, rim úmido. É o correspondente ao Am do princípio duplo.
Por outro lado, o calor deve ter também seu próprio movimento; e este movimento deve ter
uma sede. O Than (calor) move-se com o Khi e não pode começar seu movimento sem ele;
entretanto, ele tem seu próprio movimento: assim, por uma analogia cara aos Orientais, e para
satisfazer ao Duong do princípio duplo, existe, localizado diante do Thantuy, um Thanhoa
(movimento do calor), que liga o Than ao Khi.
Assim temos: a entrada normal do Khi; sua divisão imediata, uma quantidade proporcional ao
Than ligando-se a este para formar o nódulo psíquico; este psíquico acionando o intelectual
(localização: o coração, o cérebro); o resto do Khi acionando o sangue e formando o nódulo
corporal (localização: os pulmões), o princípio Am-Duong ligando através do Am os elementos
inferiores por meio de um movimento reativo (localização: os rins) e empurrando, por meio do
Duong, o Than em sua via normal (localização indefinida: por analogia coloca-se o Am no rim
esquerdo e o Duong no rim direito; mas não há razão para isto fora o amor à simetria): tal é o
modo da ação vital sobre o composto humano em estado normal e de boa saúde. Lembremos
ainda que a localização fisiológica tem um ponto de partida hipotético, e apenas verossímil, nas
particularizações dos diferentes casos mórbidos, cujo processo pode mudar o caminho normal,
e reduzi-lo ao simples valor de uma petição de princípio.
Vemos por aí quanta experiência fisiológica uma tal ciência exige do terapeuta, ao longo da
prática, e como um verdadeiro entendido das ciências experimentais, para diagnosticar com
segurança, deve ser mais um filósofo do que propriamente apenas um médico.
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Estabeceremos aqui o esquema da vida normal, como anunciado no exposto acima;


reconheceremos, à disposição dos sete elementos, suas respectivas relações no composto
humano, suas tendências paralelas e contrárias; veremos a estreita união do Than e do Khi, a
indicação das influências e o valor dos três nódulos para o estado de saúde. Veremos enfim (e
teremos aqui uma prova de que as doutrinas chinesas não são panteístas) o isolamento do
elemento superior, cuja presença liga entre si os outros seis elementos, mas que não está
ligado a nenhum deles por vontade própria; e, na outra extremidade do composto, veremos
também a situação concordante do último elemento, que é afetadopelo composto, mas não
ligado a ele, fato singular, do qual se extrai, na psicologia oriental, as teorias mais audaciosas,
sendo uma delas a de que o homem não tem necessidade, para viver, da aparência humana a
que chamamos corpo.
Este esquema é a origem gráfica de todas as representações da patogenia. Pois, ao
inspecionar os prognósticos da doença,  o terapeuta irá reportar-se a este esquema, e,
aplicando a observação experimental de tal ou tal disfunção (falta ou excesso da econonia
orgânica), deduzirá em primeiro lugar o nódulo afetado, depois o motor, calórico ou luminoso
entravado, diminuido ou aumentado, depois o ingresso mórbido original, e enfim o elemento do
composto humano que se acha especificamente atacado. E, desta longa inspeção psicológica,
decorrerá apenas seu diagnóstico, que muitas vezes será diferente daquele que seria fornecido
apenas pelo exame superficial dos prognoses.
Todos os estados normais da vida humana são assim reduzidos a esquemas, quase sempre
concordantes com os dados empíricos. A regra para estabelece-los é análoga à que se usa
para estabelecer os esquemas mórbidos. Partindo do esquema da vida, observa-se, por meio
dos sintomas, a característica do novo estado normal pelo qual passa o composto humano.
Observa-se o elemento particularmente interessado pela mudança de estado, aquele cujas
funções se tornaram diferentes, por desaceleração, diminuição ou aumento. A lógica conduz,
por analogia, à impressão experimentada pelo elemento e pelos motores correspondentes, e
uma dedução estrita leva à imediata consequência no organismo como um todo. E, se a
consequência é bem deduzida, o esquema deve traduzir, sem nenhuma restrição, em um
gráfico, não simbólico, mas diretamente expresso.
 
Estabeleçamos desde já, sobre os mesmos raciocínios, os dois estados normais do homem
são, fora do estado de vida habitual, ou seja os estados de sono e de morte.
No estado de sono natural (lembremo-nos aqui da influência da vontade sobre os diversos tipos
de sono), a desaceleração da circulação sangüínea, a independência experimentada pela
associação de idéias, e mesmo pela simples idéia, são os dois sintomas característicos, físico e
intelectual. O esquema traduz estas duas diferenças.
As consequências saltam aos olhos, e graficamente. Como o Khi localizado nos pulmões (esta
parte toma o nome de Khiphoi) é menos considerável – e a prova disto é que o sangue, ao qual
ele corresponde, sofre um movimento desacelerado – segue-se que a quantidade de Khi
aplicada ao Than (localizado no coração) é proporcionalmente aumentada; e a união, chamada
Thankhi, é, não apenas mais estreita, mas mais ativa e mais sutil.
Por outro lado, a função normal intelectual do Thankhi (acionamento do elemento Tinh, no
interior do composto humano) lhe escapa, pois a independência do Tinh é um dos dois
sintomas do sono. Portanto, o Thanki, não tendo mais função, sai de sua localização. O
esquema assim o indica, pois um elemento não pode ser localizado senão por um objetivo
imediato; se o objetivo for suprimido, a causa da localização cessa, e o elemento sutil,
retomando seu caráter de ubiquidade, perde sua localização.
O Thankhi deixa o homem adormecido; e, como ele não está ligado ao Tinh, ele não é mais
dotado de vontade, não vai para onde quer, e fica independente do adormecido: ele está
submetido às influências do tempo, lugar e espaço.
Este esquema fornece a explicação de todos os sonhos, e mesmo destas espécies de
alucinações que se atribui à lembrança de uma coisa vista, a uma memória obscura do
passado, a uma preocupação do possível, ou a uma previsão (na etimologia literal do termo) do
futuro.
Este distanciamento do Thankhi dá razão ao perigo que se corre em acordar bruscamente,
chamando o Tankhi longínquo, às vezes interessado em outras coisas, de volta à pessoa que
dormia, a tal ponto que sua reentrada violenta pode causar uma catástrofe interior. Este fato
psicológico é de resto conhecido há bastante tempo, desde Montaigne, que recomendava que
os adolescentes fossem despertos com música suave. A explicação da desordem possível é
física: o brusco despertar causa nos elementos inferiores e no Khiphoi, a surpresa do despertar
físico precedendo o despertar intelectual[33]. Ora, o despertar físico, caso o Thankhi não tenha
retornado, chama-o; e, por conseguinte, o momento, quase imperceptível, que separa o
despertar físico do despertar total, é um momento de desequilíbrio geral, proveniente da falta
do elemento intelectual.
Ora, toda surpresa violenta (como a de um despertar brutal) causa uma diástole e uma sístole
igualmente violentas, correpondente a um estreitamento e um alargamento passageiro das
artérias na vizinhança imediata do coração. Este fenômeno ocorre justamente no momento em
que o Thankhi, bruscamente chamado, tenta reintegrar sua localização fisiológica, e se vê
detido em seu caminho normal por um obstáculo físico.
Ora, o não retorno do Thankhi ao composto humano seria sua morte; como ela não estava
prevista, e como Wun assiste sempre esta existência, obrigada pela sua presença, o Thankhi é
levado a forçar sua localização normal ou encontrar outra; no segundo caso, como Thankhi é
formado por um elemento imortal, ele busca a localização imediatamente superior à sua, o
cérebro, localização de Tinh. O cérebro se vê então diante de um calor e de um movimento
inusitados (prelúdio da meningite e das febres perniciosas). Daí surgem os delírios, as
enxaquecas, os ataques de nervos, desesperos e lágrimas incoercíveis, etc., das pessoas
despertadas em sobressalto.
A doutrina dos Tinhdzuoc vai mais longe ainda: ela afirma que o Thankhi é dotado de
faculdades de percepção específicas; sem o que, diz ela, temos que imaginar uma vontade ou
um acaso constantes, poderosos o bastante para forçar os Thankhi de dois homens
adormecidos, a mudar, reintegrando em corpos opostos, as personalidades humanas dos
adormecidos; ela admite que, no apelo a Thankhi pelo despertar, este não pode se enganar, e
reconhece psiquicamente o composto do qual faz parte.
Levando ao extremo esta consequência, os Tinhdzuoc admitem como perniciosa a mudança
feita em um corpo, durante o sono, por uma causa estranha a ele, como, por exemplo, a
mudança de roupas ou a pintura do rosto: em particular, eles declaram que pintar de negro o
rosto de um amarelo ou de um branco adormecido, caso este seja acordado de repente,
conduz inevitavelmente ao delírio ou à loucura passageira. Nós conhecemos alguns doutores
(thay-thuoc) que afirmam ter presenciado coisa semelhante. Em todo caso, a transformação
artificial da cor de um homem durante o sono é um crime previsto na glosa das Leis
Tradicionais (mas não nas Leis Rituais) e condena ao exílio de primeira categoria.

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O esquema das letargias[34] indica bem que a letargia é um sono agravado. De fato, o sintoma
da desaceleração da circulação chega até a parada completa entre os letárgicos. O sintoma de
independência do intelecto vai até a tomada deste intelecto por uma vontade terceira, amiga ou
inimiga (o que a hipnose demonstra na prática todos os dias).  O esquema traduz estes
sintomas e tira suas conclusões lógicas.
Como a influência do Thanthuy sobre o sangue é detida, a localização de uma parte do Khi nos
pulmões (Khiphoi) não tem utilidade prática nem razão de ser; assim ela desaparece. Todo o
Khi reporta-se então simpaticamente ao Than (com efeito, o letárgico é insensível, e chega a
apresentar todas as aparências da morte). Por outro lado, o Than é excitado além da conta
pelo Khi inteiro, que o afeta com um valore uma intensidade acima do normal. Existe assim um
aumento do movimento e do calor; e o Thankhi forma, ao invés de um, dois plexus; o efeito
reflexo analógico faz com que a desaparição do nódulo sangüíneo vá repercutir na aparição de
um novo nódulo, nos elementos superiores graficamente opostos.
O primeiro nódulo A, semelhante àquele do esquema do sono, turbilhona sobre si mesmo, e,
não tendo mais razão para se localizar, exterioriza-se nas mesmas condições do sono. O
nódulo B, de valor equivalente ao valor normal de Khiphoi, enquanto quantidade de movimento,
dirige-se ao Tinh, conforme sua normalidade, afeta-o e excita-o à sua função. Mas Tinh não
pode se manifestar corporalmente, pois ele não pode agir sobre os elementos inferiores senão
por intermédio do nódulo A, que está exteriorizado. A localização do nódulo B em Tinh é
portanto inútil; assim este nódulo também se exterioriza, levando consigo a capacidade de que
se reveste, de conceber e associar idéias. A partir daí, apenas a presença de Wun mantém a
razão de existência, a qual não possui manifestação; não importa quanto tempo dure este
estado, a vida humana não é ameaçada.
Mas é preciso frisar que, no momento em que o nódulo B carrega consigo Tinh em sua viagem
exterior, o desdobramento psíquico e intelectual se cumpre, e nas piores condições para o
composto humano. Com efeito, Tinh não pode mais se servir dos elementos inferiores; mas sua
presença acima destes elementos impediria qualquer vontade ou força exterior de servir-se
deles; no presente momento o corpo (Xuong e Mau) abandonado está à mercê de uma vontade
clarividente, ou mesmo de uma força natural fortuita. Esta afirmação totalmente oriental poderá
ser comprovada no dia em que forem feitas experiências com eletricidade ou qualquer outro
dinamismo sobre pessoas em letargia profunda.
Esta é a explicação de um fato comprovado hoje em dia, e para o qual as fogueiras queimaram
bastante gente no passado: que a vontade do hipnotizador introduz-se nos elementos do
hipnotizado, os mantém sob seu domínio e a seu serviço. Mas é aí que jaz a responsabilidade
dos experimentadores, que, mais frequentemente dotados de curiosidade do que de vontade,
não prevêem nem pressentem a aproximação de forças exteriores iguais ou superiores à sua
própria vontade, atraídas pelo fenômeno anormal produzido, e que se apoderam, graças ao
seu valor, de um ou mais elementos humanos abandonados.
Quanto ao Thankhi e ao Tinh, eles não estão sujeitos senão a uma vontade forte o bastante
para regrar seu vôo caprichoso. Eles podem assim ser facilmente captados pelo operador, que
provoca sua saída e que está daí para frente prevenido de sua passagem; assim ele pode
impor-lhes sua vontade. Graças à pouca densidade e à sutilieza dos elementos imortais, ele
pode tanto enviá-los para longe quanto atraí-los; ele pode servir-se de suas qualidades
especiais para conhecer através deles aquilo que ele não poderia conhecer por si mesmo,
como, por exemplo, para conhecer aquilo que já existe, mas que, devido à rudeza de nossos
órgãos e da imperfeição das nossas noções de tempo e de espaço, nós dizemos existir apenas
no futuro. O operador torna-se assim mestre do corpo e do espírito da pessoa[35]. E nisto sua
responsabilidade é muito maior do que na posse do corpo. De fato, o operador deveria, antes
de enviar os elementos superiores da pessoa a um lugar e tempo quaisquer, conhecer
antecipadamente todas as forças vivas errantes que se oporão à viagem que estes elementos
efetuam sob seu comando. Pois uma força superior àquela de quem os pôs em movimento
pode deter os elementos em seu curso; e, como estes não são mestres de sua conduta, eles
se destroem contra esta barreira imprevista. Num outro plano, estes elementos podem –
sobretudo dado o domínio que eles são levados a explorar habitualmente – encontrar uma
vontade inteligente e desembaraçada de nossas formas imperfeitas, que, embora superior à
vontade do operador, capta para si estes elementos viajantes, aplica-os aos seus próprios
desígnios e, ignorando ou desdenhando sua origem, remete-os, após servir-se deles, ao acaso,
desorientados, cegos, tão incapazes de reencontrar o composto do qual saíram quanto é
incapaz o primeiro operador de recuperá-los ao seu poder. É inútil enumerar as catástrofes que
podem resultar de semelhante eventualidade.
Nestas condições letárgicas, o despertar imprevisto ou sem precauções é fatal. É um fato
conhecido, e não há necessidade de lembrar os acidentes que acontecem quando pessoas mal
intencionadas ou ignorantes acordam de sobressalto simples sonâmbulos.
Esse esquema oferece ainda um caso ao exame, que ergue um pouco o véu que cobre um dos
mais graves e obscuros problemas referentes ao tema: é o caso so sábio que adquiriu
suficiente vontade, saber e poder sobre si mesmo, para poder, depois de colocar a si mesmo
em estado letárgico, desenvolver conscientemente fora de si, uma quantidade de
personalidade suficiente para entrar em possessão de seus próprios elementos superiores
independentemente dos inferiores, e poder assim, por si mesmo e com sua própria ajuda,
ultrapassar os limites da natureza imperfeita e achar-se em um estado psíquico superior.
Malgrado as pesquisas realizadas até hoje, esta proposição seria classificada no Ocidente no
rol das coisas irrealizáveis; entretanto, esta hipótese é do domínio das verdades e das
realidades: o fato ocorre no Oriente, não com frequência, mas o bastante para não ser
classificado como maravilha.
De resto, e sem tentarmos estabelecer nada aqui, tudo o que fazemos é uma digressão
didática, tentando demonstrar a lógica de certos fatos que parecem extraordinários, e que, ao
contrário, o extraordinário seria vê-los produzir-se de outro modo ou mesmo que não se
produzissem de modo algum. Um caso como o que mencionei é uma coisa possível; não há
nenhuma barreira que o impeça. Nestas condições, evidentemente difíceis de realizar, o
esquema mostra que o perigo para o operador que age sobre si mesmo é muito raro, mas que,
quando ele se apresenta, é inevitável e mortal.
De fato, a força exteriorizada dos elementos humanos é suficiente para o objetivo proposto,
pois a vontade do homem conhece desde o princípio o instrumento psíquico do qual irá se
servir, e ele evita pedir-lhe coisas inúteis ou perigosas (porque relativamente inatingíveis). Mas,
se acaso os elementos são encontrados por uma vontade superior, ou bem eles são captados
(e com eles a vontade da pessoa adormecida), ou bem a vontade do homem emboscado vê o
perigo e, para escapar-lhe, precipita-se rapidamente, com os elementos viajantes, para sua
localização corporal. E o reingresso violento dos elementos, o contato brutal dos superiores
com os inferiores por um Khi emocionado e não reequilibrado, pode causar mais catástrofes
ainda do que o retorno à vida normal dos naturalmente adormecidos, dos sonâmbulos e dos
catalépticos.
Não acrescentaremos aqui nenhuma consideração. Apenas quisemos mostrar que os
esquemas patogênicos do setenário humano, que existem há mais de cinco mil anos, contêm,
no que diz respeito aos fatos intermediários, os germes e as inelutáveis consequências das
descobertas modernas, e quem, buscando neles, um escritor que tivesse suficiente ciência e
tempo faria surgir prposições e corolários insuspeitos.
O último esquema normal que oferece algum interesse é o da morte. Entendemos aqui por
morte, como o fazem os mestres chineses, a morte normal por desgaste, sem doença mental
nem degenerativa; vale dizer que, um instante antes das dissociações finais do composto
humano, todos os elementos deste corpo composto têm seu valor relativo, seu movimento e
sua ação racionais. Nestas condições, o esquema da morte vai nos conduzir a singulares
constatações, que alegrarão os modernos psiquistas. A entrada na agonia retira do corpo uma
parte de sua sensibilidade e da inteligência uma parte de sua lucidez. A estes sintomas juntam-
se uma desaceleração de todas as funções e um esfriamento geral dos órgãos. Movimento,
calor, luz, diminuem proporcionalmente até a desaparição, que é a morte, ou a dissolução dos
elementos pela desaparição do Khi.
Os diversos períodos desta dissociação aparecem no esquema com total clareza; podemos ver
ao mesmo tempo quais elementos são atingidos primeiro, e também quanto tempo pode durar
a morte aparente sem chegar à morte verdadeira, e enfim como, na medida em que o elemento
essencial da coordenação ainda não tenha desaparecido, é possível trazer à vida um composto
que, atingido de todos os lados, não sofreu ainda a dissociação final.
O elemento Xuong está prestes a se disolver, por causa da tendência a zero do movimento
Am, saído do Thanthuy, enquanto o elemento Mau está próximo da parada e do esfriamento,
por causa da tendência de retorno, ao Khi central, do Khiphoi particularizado que anima Mau. O
elemento Than (Thanthuy ou Thanhoa) é atingido diretamente pelo desgaste, e aproxima-se
sem cessar da imobilidade (que é sua morte individual, porque sua razão de ser é o
movimento). O Khi, enquanto Khiphoi, tende a perder sua localização, pois o Khi do Than,
diminuindo pouco a pouco, faz com que o Khi do Phoi tente substituí-lo, para evitar a solução
de continuidade emtre elementos inferiores e superiores. O Thankhi, cada vez mais fraco em
valor e quantidade (sempre no caso normal da morte por desgaste), retira-se gradualmente, por
não encontrar mais no composto humano nem os motores nem os móveis sobre os quais
aplicar sua atividade. O elemento Than, que não é mais excitado pelo movimento Hoa e que
não possui mais suficiente Khi para juntar-se a ele doravante, tende à dissociação e ao retorno
para os imortais. O elemento Thin não é mais excitado por Than, que emprega as poucas
forças que lhe restam para sua própria vitalidade, sem nenhuma demonstração, e tende à sua
dissociação em consequência de sua inutilidade. O elemento Wun, ainda que permanecendo
presente, afsta-se pouco a pouco; e podemos prever o momento em que, a custa de afastar-se,
ele não será mais visível, momento no qual o composto humano, perdendo sua manifestação
divina, desaparecerá.
Este é o momento da vida reduzida, mas ainda normal, o momento mais vizinho da morte. Os
fenômenos sucesivos que a provocam podem ser decompostos e resumidos da maneira que
descreveremos a seguir.
Com o Thankhi diminuindo pouco a pouco, a atração material e a repulsão institiva de cada
elemento à dissociação forçam o Khiphoi a buscar em sua localização fisiológica o Thankhi que
se tornou impotente; este é o primeiro sintoma da morte. O Khi desaparece de todos os
elementos visíveis do composto; o pulso cai, a circulação detém-se, o sangue retira-se e esfria;
a imobilidade, a insensibilidade e a palidez aparecem nos elementos inferiores: esta é a morte
animal. Ela não é essencialmente distinta da letargia profunda, mas apenas diferrente na sua
modalidade; isto é reconhecido hoje em dia, mesmo no Ocidente, aonde se confunde muitas
vezes a morte com a letargia total, e enterram-se pessoas que não estão mortas, e que só
morrem por terem sido enterradas. Prescreve-se uma espera de quarenta e oito horas entre as
manifestações da morte e a inumação; mas existem letargias – mortes animais – que duram
muitas semanas e até meses sem chegar à morte verdadeira; recomenda-se também a
incineração das extremidades, mas não é certo que a queimadura desperte da letargia; ou, se
ela desperta, não será talvez de modo tão brusco que o paciente volte à vida apenas para
morrer instantaneamente? É absolutamente certo que pessoas são enterradas sem estarem
mortas; e é certo que, com a incineração total, muitos doentes serão queimados – embora com
menos frequência do que os que são enterrados. Mas é certo também que os médicos
abandonarão alguns pacientes, que poderiam ser impedidos de morrer se recebessem
cuidados apropriados no momento certo; e é certo também que – convencidos da morte em
suas consciências – eles não fazem nada para chegar a um diagnóstico segutro da morte total,
e para esclarecer, sobre este ponto capital, sua ciência ainda tão obscura.
A morte animal é seguida imediatamente da desparição de todo e qualquer movimento (de fato,
o elemento Than é o primeiro dos inferiores a ser afetado, por achar-se no alto deles). A morte
de Than afeta diretamente o Thin, que por sua vez acha-se privado da força que lhe permitiria
unir-se ao movimento do Khi e assim vivificar o entendimento. Than – e por conseguinte
Thankhi, pois Than e Khi estão indissoluvelmente ligados até o último instante – permanece
então isolado, e sua irradiação não chega mais a afetar os elementos vizinhos; o elemento Thin
desaparece então da economia, e, mesmo subsistindo (pois Wun ainda não se retirou), não
toma mais parte no composto humano, embora permanecendo virtualmente capaz de ser
recuperado; ele não sofreu nada: apenas sua ligação com o composto humano desapareceu.
Este é o segundo momento.
O terceiro momento é o mais fugidio; é aquele me que o Khi, malgrado a oposição de Khiphoi,
está demasiado desgastado, demasiado fraco para conservar, no composto revirado, o Than
imortal, que não está sujeito a nenhuma diminuição essencial, mas que rpecisa, para se
conservar no homem, de uma força apropriada à sua e que o mantenha aí. Desorientado, Than
escapa lentamente e sobe aos superiores. Esta é a morte anímica.
A desaparição de Than faz morrer o composto humano, mas apenas indiretamente, visto que,
mesmo agora, Wun, apesar de estar quase a se perder de vista, ainda não desapareceu por
completo. Como Than não está mais presente no composto, a localização de Khi torna-se inútil;
assim, Khi abandona os elementos inferiores. Mas ele se mantém por um instante ainda
pairando sobre o corpo que ele deixou, como se se arrependesse. De fato, ele diminui pouco a
pouco, e não há razão para que ele cesse bruscamente; ele se vai docemente, como a chama
de uma lamparina sem azeite. É por isso que os ritos ordenam simbolicamente ao filho do pai
morto que suba ao telhado da casa para chamar o espírito do morto que ainda não partiu. É por
isso que os Tinhdzuoc, e sobretudo os Phanac, declaram que o sábio que acompanhou todos
os fenômenos da doença e da morte, e que se encontra, no momento desta, próximo do corpo,
que observou as sucessões mortais, pode, com um tratamento adequado, e no curto espaço de
tempo de que dispõe, provocar uma anagênese ainda possível, e recuperar a totalidade da vida
no corpo humano, sobre o qual apenas o Khi, agente da existência total, ainda vela.
Mas este instante é extremamente fugidio. Rapidamente o Khi, que foi abandonado, diminui até
perder seu próprio ser; ele tende à sua natureza, para o Than que se foi; insensivelmente, ele
se desvanece, escapa, morre,  no momento exato em que Wun desaparece. A morte está
consumada.
Porém, mal ele morreu, para satisfazer a lei dos elementos inferiores, ele ressuscita e lança-se
aos elementos superiores, de cuja natureza ele participa, e une-se ao Than, a fim de retomar
uma nova existência, e reconstituir, com outros elementos – mas com a mesma personalidade
– a onda de vida imortal.
Este é o esquema oriental da morte. É difícil não ficarmos admirados diante de tais
concepções; é difícil sobretudo não nos lembrarmos, diante desta doutrina com mais de cinco
mil anos de existência, do dogma do corpo humano glorioso e indissociável, que o apóstolo
Paulo pregou, e com o qual e pelo qual ele declara que todos os homens, alegrando-se ou
sofrendo, vivem e viverão eternamente[36]. Com palavras diferentes, a crença é a mesma, e dá
aos discípulos de Fo Hi e de Lao Tsé, como aos verdadeiros discípulos do Cristo, a confiança
na recompensa, em outras existências ou numa só, dos labores da presente existência, e a
certeza consoladora de jamais perder esta personalidade misteriosa que amamos tanto mais
quanto seu mistério nos faz doravante hesitar, trabalhar e sofrer.

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É este método de esquemas que se deve aplicar na busca do diagnóstico das doenças
acidentais e das protopatias, e sobretudo na determinação dedutiva dos remédios diretos que
se deve aplicar, para  o tratamento imediato do elemento cuja anormalidade passageira é a
causa do mal. Vale dizer que, após fornecer exatamente – pelo sintomatismo – o valor e a
dimensão do “ingresso” mórbido, o raciocínio psicológico deve conduzir ao local do mal. A partir
daí, todo o resto, que é a terapêutica propriamente dita, será feito por uma operação análoga à
que faz o especialista que, tendo encontrado uma fórmula trigonométrica exata, aplica-a a uma
solução particular, com a ajuda de uma tábua logarítmica.
Para evitar repetições cansativas, exporemos aqui os raciocínios patogênicos estabelecidos
sobre duas doenças, ambas específicas do Extremo-Oriente, e cujas prognoses são tão
análogas que fazem hesitar durante os primeiros dias da invasão: trata-se do cólera e das
febres perniciosas.
O primeiro sintoma do cólera (não falamos dos sintomas externos, como as contrações,
vômitos e outros, que não passam de corolários) é uma diminuição geral do calor orgânico.
Esta diminuição persiste e acentua-se com a doença, até tornar-se o fenômeno principal.
É o elemento Than que é diminuído, o ingresso mórbido não pode ser outro que Thanhoa,
localização física do movimento do Than, e esta entrada mórbida deve ser detida com a
medicação. Examinemos suas consequências. Than, embora sem receber o esforço motor,
não é atacado em sua essência (pois, sendo imortal, ele só pode  ser atacado por uma
manifestação a retro do elemento Wun). Ora, a partir do momento em que ele possui todo seu
vigor, mas não recebe os meios de empregá-lo, ele sai de sua localização e de sua utilidade
naturais; ele permanece sempre intimamente ligado ao Khi, pois a vida subsiste; mas, devido à
perda do movimento, ele não atinge mais o elemento Tinh. Assim (e é aí que o cólera se
distingue das febres perniciosas), não tendo que substituir nenhum dos elementos inferiores
(que até o momento estão todos sãos e normais), o Thankhi exterioriza-se e tende a escapar
do composto. É a primeira oportunidade de morte pelo cólera: é ela que age nos casos
chamados de “inflamação específica fulminante”.
Ora, pela atração natural (poderíamos dizer, semi-intuitiva) que faz com que o Khi tente
substituir o intermediário que falta (já vimos esta tendência natural do quarto elemento no
esquema da morte), o Khiphoi, inquieto como todo o organismo, tenta suprir o melhor que pode
a ausência do Thankhi; abandonando o elemento Mau, ele rompe o nódulo sanguíneo e o
equilíbrio do organismo interior. Aí começa o esfriamento do sangue; e, na medida em que este
esfriamento aumenta de valor, ou perdura por muito tempo, surge a segunda chance de morte,
à qual os doentes sucumbem com mais frequência.
 É fácil reconhecer na doença as fases do esquema, do esfriamento do corpo à insensibilidade,
os vômitos de sangue (pois também o sangue exterioriza-se como pode), até a ausência ou a
inconsciência passageira, que se mostram no decurso da doença, mas que cessam
normalmente quando se aproxima a morte (devido ao retorno do Khiphoi à localização
abandonada pelo Thankhi). Neste instante ocorre uma melhora passageira, ilusória na maior
parte das vezes; entretanto, se o Khiphoi for extremamente forte (se o doente é bastante sólido
em seus elementos inferiores), ele pode atrair o Thankhi, pela imantação especial deste
elemento, e assim ele pode salvar o paciente.
É para exacerbar o Khi, por meio do Khiphoi, que, desde a primeira tentativa, sção
administrados excitantes ao paciente, como o absinto e a champanha. Mas, no caso do cólera
endêmico, o remédio é indicado pela terapêutica patogênica, decorrente do esquema, e deve
ser administrada mesmo antes de qualquer sintoma precursor da doença.

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O esquema das febres perniciosas não é exatamente igual ao do cólera, e no entanto as duas
doenças começam de modo similar. É aqui (e foi por isso que tomamos expressamente este
exemplo) que a utilidade e a necessidade do exame patogênico aparece.
O primeiro sintoma das  febres perniciosas é também um esfriamento geral, seguido dos
mesmos corolários físicos (vômitos, contrações, fezes sanguinolentas). Mas a continuação da
doença permite declarar que, para um efeito análogo, a causa é completamente diferente. De
fato (e não seria possível explicar de outra forma os fenômenos mórbidos subsequentes), o
ingresso da doença atinge o Thanthuy, ou seja, o movimento dos elementos inferiores
(enquanto que o cólera afeta o movimento dos elementos superiores). A desaparição deste
movimento causa, no turbilhão sanguíneo, uma desordem que se traduz por uma
desaceleração e por um esfriamento, causa direta e secundária do primeiro sintoma da doença.
Quando o ingresso mórbido é súbito e violento, a sequela produzida é tal, que pode levar à
morte: o paciente parece antão sucumbir ao esfriamento repentino: é o que se chama de
acesso pernicioso de forma glacial, que de fato é muitas vezes fulminante. Se não, os
fenômenos se seguem com uma lógica implacável. O movimento do Thanthuy, invertido mas
não destruído, encaminha-se para o lado do movimento do Thanhoa, para exacerbar o Than. O
Than torna-se então excitado a tal ponto que ele apodera-se de todo o Khi (assim como a
eletricidade, violentamente movimentada, toma como condutor tudo o que está ao seu
alcance). Em certos casos, o Khiphoi, de que ele se apoderou, arrasta-o a seguir para o
turbilhão sangüíneo (no caso das naturezas musculares e sanguíneas). E então, como por
outro lado o sangue não está acionado por seu movimento costumeiro, o Thankhi toma, no
turbilhão inferior, o lugar do movimento que falta, e causa, no organismo não preparado à sua
vinda, o mesmo estrago que causaria uma força de cem cavalos aplicada subitamente a um
mecanismo feito para suportar uma força de dez cavalos. Neste caso, acontece uma
estagnação nos elementos inferiores, ao mesmo tempo que uma combustão violenta  do
sangue, favorável à fermentação, e uma elevação da temperatura capazes das maiores
desordens.
Mas isto não basta para caracterizar o esquema nem o desenvolvimento da doença. Com
efeito, resta (devido à exacerbação do Than por um motor mais potente do que o normal) um
excedente de Than não ocupado; ademais, o Khi, retirado de seu papel de intermediário, tende
naturalmente a completá-lo, e, para tanto, a abandonar o papel anormal de destruição, por
superaquecimento, que ele impõe aos elementos inferiores. Por esta dupla razão, chega um
momento em que uma parte do Than exacerbado está livre, e fora do abraço do Khi (enquanto
que o estado normal é sempre do Khi superabundante em relação ao Than). Abandonado a si
mesmo, tanto por efeito reflexo como por sua atração elementar, o Than precipita-se para o
Tinh, que normalmente não é afetado pelo nódulo intelectual, e leva a ele o duplo estrago de
sua exacerbação e de seu isolamento: é a última fase do acesso pernicioso. Ele corresponde
ao delírio, à loucura febril, juntamente, como consequência corporal imediata, com a
hemorragia das meninges, a hemiplegia, o coma e a morte insensível. O esquema reproduz
este processo e prevê, pela dedução lógica de suas linhas, todos os fenômenos do acesso.
Todas as doenças diretas podem assim ser conduzidas: a) pela constatação do primeiro
sintoma, e b) pela sua aplicação ao esquema da vida normal, a uma construção gráfica e a um
raciocínio dedutivo, por assim dizer algébrico, na medida em que suas consequências
decorrem forçosa e claramente uma da outra. Este raciocínio e esta construção indicarão
infalivelmente o elemento atacado especificamente em cada fase do mal; ele deverá, se
corretamente concebido, reproduzir essencialmente todos os fenômenos exteriores verificados
no paciente, e reproduzi-los no esquema no mesmo momento em que produzem na natureza,
coordenados com tais ou quais sintomas, tal ou qual transformação patológica.
Seria supérfluo ir mais longe: o estudo de cem esquemas não seria mais convincente do que o
estudo de apenas dois. Pode-se ver, tomando a experiência para reflexão, a que resultados
este método pode levar. Entretanto, para fazermos um teste através de exemplo inéditos,
deter-nos-emos ainda sobre dois casos especiais: um, no qual, sem que haja uma doença, o
organismo humano fica à mercê de influências exteriores, benéficas ou deletérias, e que
mudam temporariamente suas modalidades[37], e outro, em que o ingresso mórbido, por não
atacar nenhum dos elementos inferiores, escapa à patologia – são as doenças mentais e
nervosas, que a ciência ainda não interpretou, porque ela desconhece ou se engana sobre a
sua localização. Estas doenças não podem ser circunscritas com precisão senão por um
método de patogenia psicológica como o que expusemos, no qual os meios de diagnóstico e
de tratamento estão no mesmo plano intelectual, moral ou psíquico que as afecções que eles
devem descobrir e curar.

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A embriaguez física pode ser resumida na embriaguez do vinho e de todos os álcoois. A
embriaguez intelectual pode se resumir à do ópio[38].Os esquemas da embriaguez são
superponíveis, ou seja, o efeito da vida normal não é detido por eles, mas é preciso, para
obtermos um quadro da verdadeira vida do composto humano sob estas influências, superpor
os esquemas da embriaguez sobre o esquema da vida, sem que o gráfico de uma influencie
sobre o da outra. É assim que, na existência, a influência da embriaguez ve4m superpor-se
momentaneamente às influências vitais dos órgãos.
No caso da embriaguez física, o sintoma é um aumento do calor do sangue e da velocidade da
circulação. De fato, é no elemento Mau que a embriaguez alcoólica ingressa com sua
influência. O calor e o movimento, introduzidos pelo álcool no organismo,  colocam-se
imediatamente sobre o nódulo físico, que eles aceleram, aumentando a amplitude. Nestas
condições, o Khiphoi não é suficiente, com seu valor normal, para regular o nódulo; e, para
evitar um distúrbio direto, ele apela para uma quantidade de Khi correspondente à quantidade
de influência exterior introduzida; esta quantidade de Khi vem em seu socorro, e determina
uma marcha um ritmo superficial normal dos inferiores, mas com um aumento da temperatura,
devido ao crescimento quantitativo do turbilhão. Este aumento e esta aceleração determinam a
cirrose. Ora, o Thankhi vê sua composição alterar-se, e o Than tornar-se, ao contrário da
norma, o elemento dominante; a quantidade de Than, correspondente à quantidade de Khi que
deixou o Thankhi encontra-se livre e desvia-se para o Thin, aonde ela causa os danos
costumeiros, o delírio e a agriotimia dos bêbados. Se a influência exterior aumenta ainda mais,
a temperatura do turbilhão sanguíneo aumenta também, assim como a quantidade de Than
liberada; além de um limite que a terapêutica define facilmente, o estado de bebedeira
completa surge, com o ataque nervoso e a degenerescência do coração no nódulo sanguíneo
exacerbado além da conta, e, no nódulo intelectual, privado de um elemento, a acatalepsia[39],
o delirium tremens, o coma. Analogamente ao que acontece em termos materiais, uma brusca
mudança de temperatura exterior, como a súbita passagem ao ar livre, é prejudicial ao
organismo em estado de embriaguez física, e pode levar à congestão.
A embriaguez intelectual tem seu sintoma numa singular leveza aparente dos elementos
inferiores, com formigamento e leve acrodinia passageira. Ela ataca o Than, exacerba as
faculdades do Thankhi e excita sua atividade; o primeiro efeito é de cessar a pesandez de
espírito e o sono, aclarar a inteligência, elucidar as idéias, lembrar o passado, aumentar a
memória. Mas, para ser mantido em seus limites costumeiros, o Than neste estado exige uma
quantidade maior de Khi; e o Khi, como uma intuição instintiva da necessidade de sua
presença, é atraído simpaticamente para o Than; ocorre assim a diminuição do Khiphoi e, por
conseguinte, a desaceleração e o esfriamento do nódulo sangüíneo, que se manifesta
imediatamente (principalmente nos países quentes)  pela adiaforese[40]. Se a influência
continuar aumentando, a claeridade excessiva do Tinh pode provocar alucinações (êxtase,
desdobramento, bilocação e outros fenômenos psíquicos). Por analogia reflexa, sobrevém a
acromatose[41], a anemia toma conta do corpo, que começa a dar sinais de fadiga e fraqueza,
podendo chegar até a miséria fisiológica e pelo marasmo mais irremediável.
Esta observação rigorosa leva a uma consequência prática, a saber que ninguém mentiu
declarando que o ópio é o nepenthes[42] universal, e que todas as curas, todos os alívios e
também todos os esclarecimentos intelectuais podem ser alcançados por um uso desta droga
adequado ao resultado almejado, com uma dosagem escrupulosa e uso pouco frequente. E é
verdade igualmente que o abuso, ou mesmo o excesso passageiro, pode acarretar desordens
graves. É preciso usá-lo sempre com sabedoria e discernimento, no momento oportuno. Mas
deve-se frisar que a embriaguez (ou melhor, a exacerbação) do ópio não pode ser comparada
com a do álcool, assim como não se pode comparar um intelectual com um animal, pois a
primeira satisfaz às curiosidades do espírito, enquanto que a outra atiça os apetites
desordenados da coisa bruta.
Lembramos ademais que o uso do álcool em doses estimulantes étãopernicioso quantno o
abuso, ao qual ele conduz fatalmente; enquanto que o uso da excitação pelo ópio é muitas
vezes salutar e sempre inofensiva, com a condição (que não exige grande esforço de vontade)
que esta excitação se mantenha sempre dentro de certos limites.
O efeito do buso do álcool é a congestão sangüínea, o delírio nervoso e a anemia cerebral; o
efeito do abuso do ópio é a anorexia corporal, o alotropismo nervoso e a alucinação mental. É o
que se vê facilmente comparando seus esquemas ao duplo esquema das loucuras.

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A patogenia oriental entra resolutamente no domínio das doenças mentais (intelectuais) e


nervosas (psíquicas). A estas duas classes de afecções,ela aplica rigorosamente seu método
dedutivo de diagnóstico diacrítico e de tratamento. Não pretendemos que ela seja sempre bem
sucedida em tudo; entretanto, veremos, nas aplicações patológicas que, sob certas condições,
os Tongsang orientais curam completamente a epilepsia. O mesmo acontece nas Índias
setentrionais, na Birmânia e no Tibet. Não queremos aventuramo-nos em declarar verídica a
hipótese que pode conduzir a um resultado prático tão extraordinário.
Nas diversas formas de alienação mental, o mal[43] aplica-se diretamente sobre o Than, para
diminuir seu valor e para deter, em seu meio, sua marcha normal. Devemos notar aqui como é
importante a questão do ingresso mórbido, e a diferença que se constata, segundo sua
natureza, nos resulotados imediatos[44].
A primeira consequência desta diminuição da eficácia do Than e uma anemia cerebral, que se
manifesta primemiro por distúrbios da visão, e mais tarde da medula espinhal. A segunda
consequência  é que, tendo o Than perdido a força necessária para mover-se para o Tinh, mas
sem perder nada de si mesmo, o Thankhi subsiste psiquicamente intacto. É preciso então que
ele se mova, mas ele não pode mover-se segundo sua direção normal; então ele se distancia
do Tinh, e pode chegar até a deixar o composto humano.
O que acontece a seguir é primeiramente o obscurecimento da inteligência, depois as
hesitações de linguagem, depois a perda da associação de idéias, enfim o próprio
esquecimento da idéia (mais do que a perda intrínseca da idéia), ou seja a idiotia, e a palavra,
inútil porque não tem o que expressar, é substituída por gritos animais. Lembremo-nos de que
o nódulo sangüíneo conserva seu vigor e seu mecanismo intactos; e, de fato, a saúde do corpo
raramente é afetada nos idiotas, e apenas como efeito reflexo. É isto o que está indicado no
esquema da loucura calma e inerte, e que concorda com as observações dos alienistas e dos
diretores de instituições médicas.
Na loucira furiosa, a entrada mórbida se faz também pelo Than, psiquicamente. Mas, ao invés
de ir contra o movimento impulsionado pelo Thanhoa, o mal se coloca no mesmo sentido, e
acelera o dito movimento além de toda proporção, exasperando o Than além de seus limites.
A primeira consequência é que o Khi, aumentado por uma força anormal, forma um nódulo de
Thankhi, além daquele de sua localização; ele se desloca do coração para o cérebro, e a
loucura aparece. Se a causa mórbida continua, o Than excede-se também em valor, e, liberado
do Khi, já todo ocupado, causa os maiores estragos: são os acessos de loucura furiosa, em
que todo o organismo é sacudido, nos quais se deve defender o paciente de si mesmo por
meios coercitivos. Enfim, quando este temível estado estado dura muito tempo, o Khiphoi,
chacoalhado por estas comoções, abandona o nódulo sangüíneo para tentar – inutilmente na
maioria das vezes – restabelecer o equilíbrio psíquico rompido. É neste período que se observa
o langor mórbido e a anemia geral dos loucos.
Pelo esquema pode-se ver que a loucura furiosa é corporalmente mais perigosa que a idiotia, e
que, sem contar a hemorragia cerebral, sempre possível durante os acessos, ela oferece
muitas possibilidades de morte. Mas ela oferece uma possibilidade de cura que a loucura
calma não oferece de modo algum.
De fato, como toda diminuição psíquica age antes sobre o intelecto, os meios, não de prever o
mal possível, mas de remediar o mal cumprido, não está em poder do homem: não existe, nem
pode existir remédio material que aja sobre o intelecto a partir do momento em que o mediador
Thankhi deixa sua localização e, por conseguinte, escapa a qualquer tentativa. Existe aí uma
diferença de natureza entre o fim e os meios, que faz com que o objetivo não possa ser
atingido, e que, se alguém afetado de idiotia se cura, é – para usarmos a terminologia
costumeira – por obra do puro acaso, ou por uma manifestação especial do Altíssimo.
Na loucura furiosa, ao contrário, se não é possível, nas circunstâncias da vida ordinária, agir
sobre o Than expletivo, é ao menos possível, usando quase a mesma violência material, agir
sobre o Khi, de modo a torná-lo tão demonstrativo, tão rápido quanto o Than exacerbado, a
cuja rapidez ele não corresponde mais. Este tratamento, que se aplica inteiramente sobre o
Thankhi, só pode ser feito transportando todo o Khi ao plano do Than, ou seja com grande
detrimento do organismo inferior. Mas é possível, e deve ser tentado; e se chega a ter sucesso,
recuperar o vigor dos elementos inferiores extenuados é um problema bem menos grave e
delicado do que aquele que foi resolvido com este método.

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Terminaremos este curto estudo patogênico pela determinação do ingresso mórbido de uma
doença considerada incurável, a epilepsia.
O esquema representa uma das sequelas vibrantes do acesso, sequelas essencialmente
passageiras; pois o prolongamento da duração – por fraca que seja – do estado indicado no
esquema levaria certamente à morte, pela violenta disjunção do elemento Thankhi. Vemos,
observando as linhas, que em estado normal o epilético possui uma saúde também normal; as
ações do Thanthuy sobre o sangue, do Thanhoa sobbre o Than acontecem regularmente, e o
Khi vivificador manifesta-se de modo ordenado. O ingresso mórbido não ataca um destes
elementos, mas insinua-se entre ois elementos, precisamente entre o Than e o Khi, cuja união
estreita e constante é a condição inelutável da existência. A epilepsia assim não passa da luta
intermitente entre a causa mórbida, que procura separar o Thankhi, e seus dois elementos,
que, não podendo viver separados, reunem-se sem cessar. O ataque epiléptico é a sequência
direta dos sobressaltos levados ao nódulo psíquico em perigo. Este movimento de vaivém
recebe na China o nome de Bat-Giao.
Neste momento crítico quase imperceptível, o Than e o Khi não agem mais um sobre o outro;
eles não deixam de estar essencialmente ligados, porque a vida subsiste; mas a causa
repulsiva que joga um contra o outro dirige em sentido contrário suas modalidades e suas
manifestações. O Than, privado de regulador, invade sozinho o Tinh, cujo ordenamento ele
destrói, e produz aí uma série de revoluções tão rápidas, que elas não chegam a atingir os
elementos superiores da vítima; o nódulopsíquico é essencialmente destruído; toda
sensibilidade é abolida, assim como a persistência de todo sentimento; a amnésia é total, sem
posibilidade de reconhecimento; a união dos dois grupos de elementos, sem ser rompida, não
porduz mais nenhum efeito recíproco nem reflexo. Arrancado violentamente de sua vida
normal, o Khi precipita-se com exuberância para o nódulo sangüíneo, que ele exacerba e
desenvolve, e cuja harmonia ele destrói pela superabundância: daí seguem-se as desordens
nervosas, as paradas e as intercadências do pulso, as convulsões, as contrações eclâmpticas,
que acompanham as crises, às vezes com a fixidez da pupila e a rigidez tetânica. Todo o
organismo é então submetido a uma excitação violenta, cortada por paradas súbitas, e
retornando em um movimento desordenado que convulsiona a máquina humana. Mas convém
lembrar que este deslocamento, que não deixa nenhum dos elementos no lugar, não afeta a
essência de nenhum deles, e assim a vida do epiléptico não corre risco. A única causa do
enfraquecimento é o desgaste dos elementos inferiores, prematuramente esgotados pelo
esforço excessivo; a única hipótese de perigo é, numa crise mais violenta, uma tal explosão do
Than, que uma loucura passageira segue-se ao acesso. Mas a epilepsia não pode,
intrinsecamente, em caso algum, levar à morte, a menos que, por azar, a causa disjuntiva
tenha um efeito prolongado o bastante para, através das modalidades afetadas do Thankhi,
atingir profundamente a substância do elemento e provocar assim a morte súbita pela
desagregação imprevista do elemento veículo da existência total.
Eis o que, fora de qualquer observação, indica o esquema da epilepsia (Dongkinh),
pressionada até suas consequências. É preciso reconhecer que trata-se da exata descrição
dos sintomas, do desenvolvimento e das consequências da doença, assim como dos
fenômenos que acompanham as crises. Assim, é justo pensar que, como o princípio fornece
logicamente as consequências constatadas pela experiência, o princípio está correto.
Resta encontrar o remédio apropriado – no plano similar – para a supressão da causa primeira;
é disto que se ocupa a terapêutica.

***********

Finalizando esta rápida exposição de uma etiologia desconhecida, permitimo-nos insistir sobre
o caráter certo do diagnóstico tomado a partir desses princípios, e sobre a certeza quase
profética da duração de um mal ou do valor de uma força, calculados por assim dizer
matematicamente a partir dos dados. O grande hábito que os terapeutas orientais possuem
dessas fórmulas e de sua imediata adaptação a todos os casos possíveis, ollongo estudo,
pacientemente iniciado desde a infância, de princípios confirmados sob seus olhos (pois estas
ciências são quase sempre hereditárias), seu profundo conhecimento dos processos
terapêuticos, a maestria das mãos e dos olhos, a sutileza especial de um espírito tão sutil em
suas distinções quanto audacioso em suas concepções, e, acima de tudo, a confiança inata
destes Sábios na ciência ancestral que eles professam – e que é passada a todo o povo – dão
aos ensinamentos e às práticas dos terapeutas uma segurança, uma espécie de infalibilidade
de diagnóstico, de conclusões e de previsões, que chega aos limites da visão interna do oculto
e da percepção divinatória do futuro.
Não nos espantamos, assim, com os relatos de curas maravilhosas, de soluções dadas a
problemas cuja simples descrição amedronta, nem do sucesso extraordinário desses
ensinamentos, nem mesmo da aparente inverossimilhança de tal ou  qual coisa verdadeira.
Pois nós sonhamos que, com a habilidade que só o longo conhecimento dos homens fornece,
os terapeutas alcançarâo a admiração das raças, e que, para terem sucesso, acima de sua
experiência e da ciência dos Ancestrais, aumentada sem cessar em suas meditações, eles
ajuntam o fermento da fé popular em suas forças taumatúrgicas, fé que os vivifica e torna
invencíveis, esta fé que todos os grandes fundadores reivindicaram para suas obras, e que
torna o impossível fácil, e o incompreensível claro.

IX
O TAOÍSMO CONTEMPORÂNEO

Expusemos, nas páginas precedentes, tudo o que se pode dizer do Taoísmo, e dissemos mais
do que tudo o que foi dito até o momento. Salvo na ocorrência de uma revolução étnica,
imprevisível, mas que seria precedida de uma vitória violenta e conquistadora da raça amarela
sobre a branca, nada mais será dito daqui para frente.
Mas é preciso saber que o Taoísmo, tal como nos foi revelado, é bem diferente do que
dizemos: é preciso sobretudo saber que o Taoísmo, tal como ele é, é bem diferente daquilo que
nos disseram. Por mais preparado que esteja, por mais simpático que seja, um homem branco
jamais chegará ao conhecimento total, não dizemos nem da Tradição Primordial, mas sequer
das consequências que esta tradição carrega em si e gera todos os dias, para os tempos
modernos e para os dias futuros.
Como se pode deduzir dos capítulos anteriores, o estudo do Taoísmo hoje não está fechado
apenas aos espíritos analíticos e a todos os elementos que contrários à reconstituição rrefletida
da síntese inicial; o Taoísmo, alma do movimento étnico chinês e mesmo sino-japonês, sem
cessar de ser uma tradição abrupta para os Ocidentais, tornou-se uma ciência fechada aos
brancos. Depois de ser um meio de ascese soberano e imperioso, ele tornou-se também um
método de evolução étnica, e talvez um fermento da revolução política; e, como tal, ele se
tornou tão inviolável e sagrado quanto possam ser, na Europa, os mais íntimos segredos de
Estado.
Desde que se tornou o apanágio, o motor e o pivô das sociedades secretas chinesas, o
Taoísmo não se defende mais pela extrema altura de suas perspectivas e pela extrema rigidez
de sua lógica; ele é defendido, das indiscrições como dos conhecimentos possíveis, por todos
os que, fazendo parte de um movimento oculto, consideram o Taoísmo como uma herança
exclusiva e como o mais poderoso motor dos destinos futuros da Ásia.
E assim como antes – e menos ainda do que antes – não há fraternidade possível entre
coletividades amarelas e coletividades brancas. Não pode haver mais do que afiliações
individuais de brancos às coletividades amarelas, pois estas têm como objetivo, não apenas
atrair intelectualmente, mas sobretudo de aniquilar politicamente aqueles que elas arrastam
consigo. Por outro lado, não conhecemos, e cremos impossível, a afiliação de um indivíduo
amarelo a uma coletividade branca.
Mas, eu o repito claramente, não existe terreno para entendimento prático entre as sociedades
coletivas das duas raças; e se, por absurdo, em decorrência de uma organização cujos meios
nos escapam, este terreno viesse a existir, as coletividades amarelas recusariam colocar-se aí.
É por isso que é impossível dar fé a uma informação já velha – e da qual eu não falaria, se sua
repetição, no livro Invasion Jaune, do comandante Driant, não houvesse chamado a atenção –
informação segundo a qual uma sociedade secreta amarela e um grupo ocultista europeu
haviam unida fraternalmente seus objetivos e seus símbolos.
“Estamos felizes em anunciar, diz a revista Initiation de março de 1897 (e o comandante Driant
o repete em Invasion Jaune, pg. 486), no Conselho Supremo, a criação em São Francisco da
primeira loja martinista chinesa, na qual colocamos grandes esperanças, para o entendimento
entre nossa ordem e a Sociedade de Hung”.
E o comandante Driant acrescenta: “A Sociedade de Hung é a sociedade-mãe dos Boxers
chineses. Estas relações entre seitas parecerá inacreditáveis para muitos de nossos leitores,
que não vêem os progressos das sociedades ocultas que visam ao internacionalismo. Mas elas
são rigorosamente verdadeiras”.
Estas afirmações são rigorosamente falsas. Não sei se foram chineses, ou que gênero de
chineses foram introduzidos na loja martinista de São Francisco, nem mesmo se existe uma
loja martinista em São Francisco. O que eu sei e afirmo, é que jamais a Sociedade de Hung –
porque existe uma Sociedade de Hung, e parece que o que se visa é uma sociedade entre
outras, e o nome particular e temporário  de uma seita desta sociedade – afilou-se ao
Martinismo; e que jamais a Sociedade de Hung, nem nenhuma outra sociedade chinesa, jamais
manteve a menor relação, ainda que por carta, com o Martinismo, nem com qualquer outra
sociedade oculta ocidental, qualquer que seja.
Os chineses conhecem muito bem o temperamento dos brancos, e quão pouco secretas são
suas sociedades ocultas.

***********

De resto, tanto por sua constituição como por seus objetivos, as sociedades secretas do
Oriente e do  Ocidente apresentam uma perfeita antítese, assim como o Taoísmo e qualquer
religião ocidental (como os Cristianismos romano, luterano ou calvinista) apresentam
divergências absolutas (não estamos falando da doutrina, é claro) do ponto de vista do valor
representativo, da influência, da síntese, da intelectualidade étnica, etc. E esta afirmação
indicará perfeitamente como o Taoísmo é o receptáculo da tradição amarela, e como ele foi e
será o gerador de todos os movimentos que explicam e transformam esta tradição. Veremos
assim porque e de que modo a perenidade parece ter sido adquirida desta Tradição primordial,
e como ela é chamada a desempenhar todo dia o papel principal e condutor nas evoluções da
raça.
Tanto entre as sociedades quanto entre as religiões tradicionais das duas raças, a antítese que
se apresenta é idêntica. O grupo oculto ocidental compõe-se de uma minoria de indivíduos que
procuram impor seu ponto de vista à nação. A sociedade secreta oriental é composta de
indivíduos que, após terem buscado, conhecido e determinado as aspirações profundas, as
necessidades contínuas da raça, criaram, para ela, uma nova doutrina, ou adaptaram a
doutrina antiga.
O grupo ocidental, convencido de seu interesse particular, de sua vantagem como grupo,
pretende conformar a si o interesse geral, e dobrar a nação a  ideias e ações que lhe são
indiferentes, e mesmo nocivas, e que são, em todo caso, estranhas às suas necessidades
étnicas e coletivas. A sociedade oriental esclarece, quando preciso, a raça sobre seu interesse
geral, e lhe apresenta os meios, intelectuais e materiais, de obter estas vantagens.
O grupo ocidental,  para convencer a nação de uma ilusão, obriga-se à propaganda, às
demonstrações públicas, a uma ação política, em uma palavra, a todas as ações que objetivam
estabelecer, sobre um exterior brilhante, uma convicção sentimental e irrazoável. A sociedade
oriental mantém-se, numa absoluta reserva e num segredo que faz toda a sua força, na
exposição simples e lógica de uma situação cujos contornos cada cidadão conhece, e para a
qual ela traz, para cada cidadão, melhoras imediatas.
O grupo ocidental, depois de haver criado uma convicção, é obrigado, para que ela não se
consuma em sua própria negação, a dirigi-la: ele precisa, ocultamente ou não, do poder da
autoridade pública. Ele “liga” assim, conduz e comanda diretamente os atos da nação. A
sociedade oriental, após haver mostrado a via ao povo, lhe fornece os meios para trabalhar, o
“livra” daqueles que emperram o processo, e se deixa conduzir, no sentido, evidente para
todos, e normal, do melhor interesse.
O grupo ocidental gera assim inevitavelmente a autoridade, o gosto pela autoridade e a
ambição; a sociedade oriental gera inevitavelmente a liberdade, o gosto pela independência e a
indiferença às coisas dos homens.
O grupo ocidental, para compensar, perante a nação, a liberdade coletiva que ela deve roubar-
lhe para conduzi-la aos seus próprios desígnios, é forçada a oferecer satisfações fora desta
liberdade. Ela obriga a nação a criar para si novas necessidades; ela exacerba as
necessidades antigas; e buscando satisfaze-las, ainda que sejam contrárias à higiene e à lei
natural, ela oferece a esta nação uma soma de desfrutes materiais da qual ela deve se mostrar
reconhecida, em sua parte mais baixa do coletivo nacional, e graças aos quais ela esquece a
perda de sua liberdade, o desejo de sua vantagem geral, e sua própria cegueira. A sociedade
oriental, que nada busca por si mesma, e que levou a raça para a via normal e benéfica, sem
egoísmo, sem ferir a Tradição étnica nem a natureza, em lugar de assumir o dever de uma
compensação inferior, adquire o direito de aconselhar; e ela ensina, apenas com seu exemplo,
que a raça, na posse de sua situação justa e de seu destino normal, leva à felicidade, não
acumulando desfrutes, mas restringindo os desejos.
Ora, qual é o resultado desta conduta, tão rapidamente resumida? Vejamos. O homem, por
simples e confiante que seja em princípio, não é eternamente tolo. Os sofismas, que ele
credulamente aprovou, os erros dos quais ele se tornou a vítima fácil, o tornam experiente, e
lhe inspiram, com a reflexão, uma desconfiança salutar. Assim, aqueles mesmos que o
enganaram, ensinam-lhe para que não se engane mais. Então, o homem que compreendeu ter
sido abusado, para ser conduzido a um caminho que não é o da humanidade, mas apenas o de
alguns indivíduos ou de alguns grupos, retira de seus guias sua estima e confiança e toma o
firme propósito de guiar a si mesmo ou se fazer guiar por outros. Mas, como ele não chega a
esta clarividência senão no momento em que aqueles que o abusaram se tornam seus
mestres, ele não tem outro recurso do que a intriga, a revolta e a revolução; e, malgrado a
educação que lhge deu uma falsa natureza, sua primeira natureza reclama sus cessação de
modo tão imperioso, que ele resigna-se a usar a violência e a desordem para recuperar sua
normalidade. E assim, combatendo seu vencedor com suas próprias armas, ele forma novos
grupos ocultos, à imagem dos primeiros, mas que não são válidos para o objetivo que ele
deseja, e que não o atingirão jamais. Esta é a causa, o segredo e o mecanismo da doentia
instabilidade étnica, econômica e política do Ocidente.
O resultado obtido pelas sociedades secretas orientais é exatamente o contrário.
Constantemente esclarecido, sem ter sido constrangido a uma obrigação recíproca qualquer,
sobre a via e o interesse geral e contínuo com o qual deve conformar-se, o homem da raça
amarela, pela ação da sociedade secreta, que é a quintessência étnica desta raça, atinge a um
tempo o conhecimento de suas vantagens e o poder de buscá-las. Não por gratidão, mas pela
convicção que adquire, ele é levado a chamar para seu lado os grupos graças aos quais ele
ocupa tão sólida e benéfica situação; e com toda naturalidade, ele provoca e utiliza, na
tranquilidade da paz e do poder, os conselhos daqueles que o fizeram obter a paz e o poder.
Aquilo que as sociedades secretas não buscaram, elas encontram assim com tanto mais
certeza na medida mesma em que não procuraram; a “influência”, ou o exercício do poder sem
este título, ou seja sem os inconvenientes ligados ao poder, a inveja, a inquietude e a ambição.
E, neste estado social, não existem descontentes, porque cada qual está suficientemente feliz
segundo sua condição; e cada um está feliz porque todos estão nos seus lugares, tanto no
Estado como no Universo.

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Podemos fazer constatações análogas no que concerne ao estado religioso do Ocidente e ao


estado tradicional do Oriente. E tomaremos desde logo o modo pelo qual as “revelações”
ocidentais participam da insegurança e do vago sentimentalismo dos brancos, e de como a
tradição oriental participa da lógica e da imutável clareza dos amarelos.
A religião ou a tradição, porque as duas coisas são a mesma coisa, não pode estar em
contradição com a humanidade, e não pode constrangê-la, por definição. A Tradição não é
outra coisa, com efeito, que o resumo dos ensinamentos primordiais sobra os quais a
humanidade se estabeleceu, esclareceu-se e elevou-se; ela é uma síntese, que contém em
germe tudo o que o homem pode ser: é o magma intelectual dos ancestrais, a quintessência
cósmica da humanidade. Como ela é tudo aquilo de onde saíram as concepções humanas, as
concepções dos homens não podem ser-lhe opostas. E ela é na realidade a norma natural da
humanidade que ela fez, que ela contém potencialmente, que ela gera continuamente, e que
ela empurra para sua evolução benéfica. Se portanto a Tradição permanece igual a si mesma,
ou seja se ela não é estreitada e desfigurada por aqueles encarregados de transmiti-la, a
humanidade permanece sempre conforme a ela; pois ela contém as generalidades humanas
das quais a humanidade não pode livrar-se sem cessar de ser a humanidade; e ela não contém
especializações tão estreitas (e por conseguinte tão contrárias à sua natureza e ao seu objeto)
que os diversos progressos intelectuais e científicos, consequência natural do trabalho
evolutivo humano, não possam acomodar. E quase podemos afirmar que a melhor
demonstração de que a Tradição está intacta, é que todas as idades, todas as situações, todos
os movimentos da humanidade concordam com ela e a ela se referem.
Desse princípio decorre uma consequência bem interessante, sobre a qual voltaremos um dia
em nosso estudo sobre A Via Social, mas que convém indicar aqui. Esta consequência é que a
Tradição jamais é sentimental. O sentimento não é uma coisa geral; é uma contingência
adquirida pela humanidade, e esta contingência foi criada e cria-se diariamente, nos indivíduos,
sob a ação dos eventos a que os indivíduos assistem ou dos quais eles são contemporâneos.
Existem assim sentimentalidades diferentes para todas as épocas da história, para todas as
nações do globo, e mais, para todos os continentes e todos os climas. Uma Tradição que
tivesse um aspecto sentimental seria portanto uma tradição temporária e local, à qual faltaria a
condição necessária da universalidade; ela não seria mais uma Tradição.
Portanto, a priori, toda tradição sentimental é uma falsa tradição, ou no mínimo uma
deformação pejorativa da Tradição.
A Tradição, sempre igual a si mesma em sua essência, e tão geral que contenha e permita
todos os progressos feitos e por fazer, abarca e contém toda a humanidade, que ela inspira. Os
homens são verdadeiramente seus filhos, e ela forma com eles um só todo, ela na direção e no
poder, eles no seguimento e na aplicação. Assim prossegue e eterniza-se a harmonia primitiva.
E ao mesmo tempo, pela força toda-poderosa desta harmonia, e pela ação multiplicadora desta
continuidade, não existem resultados humanos que ela não possa atingir.
Não temos aqui, bem entendido, gosto em criticar qualquer religião ou qualquer ocidentalismo;
mas nos permitimos colocar, diante do desenvolvimento constante, prático e harmonioso da
raça amarela ao longo de sua Tradição, os cataclismas, os golpes, as violências e as
perseguições que sacudiram o Ocidente. Permitimo-nos relatar a tripla forma da revelação mais
moderna, a do Novo Testamento, este Novo Testamento Crístico, contrário e não consequente
do Antigo Testamento de jeová. Sob esta tripla forma, vemos a história inevitável dos dogmas,
passados, presentes e futuros, nos momentos em que foram necessários, para impor à
multidão uma autoridade, de onde quer que ela viesse. O admirável ensinamento oriental e
essênio do Cristo Jesus, que tomou do berço do espírito humano sua doutrina e seu próprio
nome, espalhou-se, como um fogo ardente, por toda a raça branca, que reconheceu nele
instintivamente a clreza e o frescor da fonte primitiva, e dela bebeu, apesar de Herodes, apesar
de Roma e das feras do circo. Mais tarde, as ambições rivais dos sucessores dos Apóstolos, as
criações sucessivas dos Papas, desviando a tradição crística da via humana natural, fizeram
com que, para que se admitissem suas novas perspectivas, os chefes da revelação deformada
tivessem que empregar a força para impôr tanto as crenças que editavam como sua influência
pessoal, a que eles se agarravam tanto quanto a elas. Enfim, um milênio mais tarde, depostos
de seu prestígio pela revolta de homens desenganados (quer se chamassem Huss, Lutero,
Calvino ou outros), e despossuídos de seu poder material por soberanos indiferentes, quando
aqueles que haviam se proclamado os mestres de uma religião, na qual o fundador via apenas
irmãos, sentiram-se desprovidos do poder sobre os corpos e substituiram-no pelo poder sobre
as almas, oferecendo aos infelizes a isca de compensações longínquas, e fazendo seus
dogmas cairem na falaciosa doçura do sentimentalismo.

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A Tradição – da qual o Taoísmo é a síntese intelectual adequada ao cérebro dos amarelos –


adicionada das formas que as gerações lhe foram dando sucessivamente, é na realidade o
modelo da ascese humana, apresentada ao conjunto dos homens que vivem, dos que vieram à
vida, e dos que partiram. Esta construção é recíproca; e se é verdade que cada geração traz à
Tradição um pouco de sua compreensão particular, é mais verdade ainda que a Tradição
impregna cada geração com sua seiva imutável e sempre idêntica a si mesma, e que assim,
através do prisma mutante dos costumes, das iniciações, das idades, a raça, apoiada na
Tradição, apresenta à História universal um tipo homogêneo, em que o amarelo de há cinco mil
anos se reconheceria, do mesmo modo como o amarelo de aqui a cinco mil anos.
Esse tipo homogêneo é na realidade um protótipo: é uma espécie de Adão (tomado no seu
sentido oculto) para uso da raça amarela: é o homem da raça; é o Grande Ancestral
terrestrizado. É a este coletivo étnico, substrato de todas as concepções metafísicas amarelas,
que todos os vivos se referem; é nele que, após a morte, cada geração retorna, aos olhos da
próxima geração; e cada uma dessas gerações, por esta reintegração fictícia – que realmente
não é mais que a passagem dos anos – traz à Raça seu coeficiente de evolução e seu motivo
específico de energia para o caminho ao longo dos ciclos dos dias e da espiral das asceses.
Não queremos aprofundar demasiado este arcano; cada qual poderá faze-lo a partir dos dados
fornecidos. É preciso apenas saber que está aí a origem deste “culto aos ancestrais”, que
gastou tanta tinta dos sinólogos, e tanta bílis da alma dos missionários.
Não pretendemos, embora a civilização tenha penetrado antes em todas as classes deste
povo, que já era mais civilizado do que os Gregos, mesmo no tempo das repúblicas da Hélade
e do Peloponeso, não pretendemos que um tal conceito metafísico seja familiar aos
trabalhadores e aos mercadores; acreditamos antes que estes, ao honrarem “os Ancestrais”
homenageiam os velhos que conheceram ou de que ouviram falar, e cuja “tabuleta” preside
ainda do melhor lugar a moradia familiar. Mas, entre todos os letrados – e sabemos como são
numerosos e como estão em todos os níveis sociais – é certo que o culto aos Ancestrais não é
outra coisa que a veneração ao Ancestral coletivo, que aumenta todos os dias, e que não
atingirá sua plenitude senão quando, terminado o ciclo humano, todos os homens se
encontrem reunidos na sua Unidade.
É portanto, se quisermos cavar fundo no simbolismo, a adoração do Absoluto, sobre o plano da
humanidade. Àqueles que, nesta veneração inteiramente metafísica, acreditaram encontrar um
“culto” prestado a seres humanos mortos, faltou um pouco de paciência, muitos estudos e mais
ainda, sem dúvida, inteligência verdadeira.

***********
Terminando esta longa exposição sobre a Tradição primordial e sobre o Taoísmo que dela
emana, será possível compreender melhor as indicações sobre as quais insistimos de
início[45]. A Tradição, permanecendo universal, e o Taoísmo, não se especializando como uma
religião, não se diminuiram restringindo seu plano de aplicação.
Uma religião – por mais santa que seja (admitindo-se que uma coisa santa possa ser praticada
por homens), por mais divina que seja (admitindo-se que uma coisa divina possa restringir-se à
compreensão e à regência de indivíduos) – diminui e se empobrece, a partir do momento em
que se afirma como religião. Ela satisfaz imediatamente ao homem, que, como disse um
filósofo irônico, é um animal religioso.Mas o homem é mais do que um animal religioso: ele é
ao mesmo tempo um animal passional, voluntarioso, instintivo, voraz, etc. Durante o tempo em
que ele satisfaz a estas inumeráveis qualidades, ele não se satisfaz como animal religioso; e
assim, durante este mesmo tempo, ele esquece sua religião, esquece que ele possui uma.
Assim considerada, a religião é a satisfação de uma necessidade; e, a partir do momento em
que esta necessidade deixa de existir, diminuida ou esquecida (como o cóccix ou o apêndice),
o homem a satisfaz, quando muito, por hábito, obediência ou medo. Este é o destino de todas
as religiões que se tornaram contingentes, acreditando interessar mais, captar mais e
comandar melhor o indivíduo contingente que é o homem.
A Tradição, que permanece tradição, vale dizer voluntariamente ignorante da própria existência
de todas as contingências (existência que, como sabemos, não passa de uma relação), a
Tradição não afeta o homem enquanto animal religioso; ela o afeta enquanto homem, com
todos os seus qualificativos, ou seja sem qualificativos nem determinações. O homem religioso
se satisfaz com uma certa compreensão da Tradição; o homem lógico, com outra; e do mesmo
modo ohomem afetivo, o passional, o ritual, o social, pobre, rico, mercador, letrado, solitário,
familiar, etc.
Sempre a Tradição o restringe, pense ele ou não. É a Tradição que faz suas leis, que conserva
seu estatuto, que criou sua política, que lhe indica o respeito aos mortos e a polidez para com
os vivos, as regras sociais, a ambição literária, o gosto pelo conhecimento e os estudos, as
hierarquias, os ritos e até o modo de morrer. Ela é tudo para ele, e ele é tudo nela. Ele não
pode subtrair-se a ela; de resto, ele não quer e nem sequer sonha com isto; pois ele está tão
fortemente apoiado nela que ele, por assim dizer, identifica-se com ela, a ponto de se
considerar como uma forma passageira e viva dela, assim como os Ancestrais são sua
expressão sintética e imortal.
É por isso que, ao contrário das tradições que se especializaram em religiões para melhor
capturar as paixões do homem, que tomaram estas paixões para melhor reuni-los e comandá-
los, e que, com suas paixões, ganharam sua fraqueza mortal, a Tradição amarela comunga,
mesmo em sua passagem pela terra, a imobilidade consciente e a perenidade dos princípios
que ela representa e que dela emanam, e ela conduz a esta perenidade os adeptos fiéis que a
seguem, e que, daí por diante, graças às precauções de seus Sábios e a um longo atavismo,
não podem deixar de segui-la.
Esta é a amplitude e a duração da Tradição amarela. Ninguém criou uma Tradição imortal; ela
criou a si mesma, e todos os dias ela cresce e se fortalece com as energias que lhe trazem,
após a morte, aqueles que a amaram.

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Apenas aos espíritos superficiais e aos políticos cuja visão curta detém-se nos movimentos do
presente, o famoso “despertar da raça amarela” pode parecer contrário aos ensinamentos
precedentes, e não uma consequência direta do tradicionalismo que estudamos.
Teremos ocasião de falar disto em detalhe em A Via Social. Mas devemos dizer aqui algumas
palavras a respeito. Teríamos preferido reservar esta questão, de ordem inteiramente social e
prática, para o livro no qual, tratando da doutrina de Confúcio, mostraremos a aplicação, na
vida cotidiana do homem terrestre, dos princípios metafísicos da Tradição primordial e do Tao.
Mas não sabemos quando este trabalho estará terminado e virá à luz. Menos ainda sabemos o
omento em que explodirá a formidável revolução étnica que, nos colégios rituais e nas
sociedades secretas, a China prepara. É por isso que, se esta evolução chegar antes,  não
devemos, em honra da ciência que escolhemos, parecer ignorá-la ou não compreendê-la.
Nada de novo – no sentido estrito do termo – está sendo preparado na China, nada que não
tenha sido preparado todo o tempo, e que, desde a queda dos Ming, não tenha sido ensaiado
várias vezes. O movimento atual não passa de uma repetição, pelos mesmos motivos
soberanos, dos movimentos anteriores. Apenas, como estes movimentos remontam já há
muitos séculos, e que os brancos, então confinados à Europa, não foram suas testemunhas
imediatas, eles não lhes atribuem a importância que, a priori, eles dão ao movimento atual,
antes mesmo que ele tenha sido declarado.
Desde a entronização violenta de Kang-Hi, a Tradição tornou-se desconhecida, e o Taoísmo
ignorado pelos Manchus, que conquistaram, com o Império, o trono do Filho do Céu. Os
Chineses do Norte, raça com grande força de absorção, englobaram em seu estatuto étnico,
assimilaram e finalmente aniquilaram esses Manchus vencedores, como fazem as plantas
carnívoras com as moscas que imprudentemente pousam em suas pétalas. Mas, ao absorver o
sangue manchu, eles não puderam lhe transmitir um cérebro chinês. E é por isso que a
“Grande Pátria” não se realizou.
Os Chineses do Sul, que não sofreram a invasão triunfal, que não participaram das honras da
corte e das dignidades dinásticas, e que conservaram seu sangue sem mistura, bem como
suas ciências e suas esperanças, trabalharam, por três séculos, como já vinham trabalhando,
há oitocentos anos, para restituiir a China aos filhos de Han, ou seja aos piedosos guardiães do
Taoísmo e da Tradição.
Em meados do século XIX, eles quase conseguiram: a revolta dos Taiping deu um imperador
chinês a Nanking; e, sem a ajuda inglesa, a dinastia manchu desta época desapareceu na
onda da revolução amarela. A hora foi postergada; ela se aproxima. Ela soará. Mas quem de
nós vai ouvi-la?
Não queremos dizer – fique bem claro – que os resultados da evolução que virá não afetarão
nada nem ninguém fora da China, e mesmo fora dos lugares geográficos aonde vive e se
desenvolve a raça amarela; é possível que potências, vizinhas da Ásia neste movimento,
sintam um desagradável contra-golpe; pode mesmo acontecer que, por todo o velho
continente, certas condições econômicas de existência sejam alteradas. Mas é certo que não é
com este objetivo que os agitadores de hoje preparam a revolução amarela.
Eles pretendem fazê-la entre si, para si mesmos e seus descendentes. Eles não pensam na
conquista do mundo, quando emprestam desdenhosamente das civilizações européias seus
métodos de violência, seus exércitos e seus canhões; se eles tiverem essa conquista a fazer,
farão com outros objetivos e por outros meios. Não; eles tendem a permanecer entre si e a dar,
à sua herança intelectual, o lugar preponderante, que lhe é natural e que se perdeu.
Não temos o direito nem tempo de nos estendermos aqui em considerações proféticas, que
são naturais para quem estudou e viu. Mas podemos assegurar que o triunfo do movimento
étnico que está sendo preparado (e que chamamos falsamente de nacionalista) terá como
consequência instituir, sobre a terra chinesa, o regime taoísta, e de reinstalar na alma chinesa
total a disciplina taoísta. Sem insistir demasiado, veremos os acontecimentos.
E é assim que, proximamente e, antes de se encaminhar para um papel mais universal, a
direção e a felicidade de um terço da humanidade serão outra vez, e, esperamos, para sempre,
confiadas à Tradição que reinou, reina e reinará, até o fim do mundo que conhecemos, sobre
as inteligências cuja vontade piedosa soube determinar a excelência do seu destino.

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X
APÊNDICES

DO OUTRO LADO DO MURO

Na noite absoluta, o céu coberto de espessas trevas da tempestade que se aproxima, a


sombra, a dez passos, é opaca e quase material. Numa sinuosidade do caminho, sob
gigantescas figueiras, próximo a um tanque meio seco, o pagode surge recortado ainda mais
sombrio do que o céu negro.
Tudo parece solitário e silencioso; Ong Luu subiu os degraus, amarelados e gastos pela
passagem de inumeráveis fiéis. Sua voz ergueu-se sonora sob os beirais e os telhados.
“Você está aí, Phap?”
Uma voz distante e baixa, quase um murmúrio, respondeu na escuridão perturbadora por onde
passam os sopros dos mistérios:
“Estou aqui, Luu, orando aos Deuses.”
Ong Luu avançou lentamente, tocando os pedestais de pedra, atravessando as passagens
estreitas e os longos corredores entre fileiras de estátuas, subindo cuidadosamente os degraus
escondidos na sombra, que se elevavam até o altar final. O imenso pagode dobrava de
tamanho na noite.
Na lúgubre penumbra, todo o povo dos deuses de Annam parecia vivo.
Sobre o primeiro altar, que, no meio do enorme peristilo, escondia os degraus que levavam aos
outros altares, estava o grande Khiu-Lang de Thap-Khiep, jovem Deus de ouro maciço, aonde
jaz o segredo dos sábios, última manifestação do Absoluto, saindo da flor geradora entreaberta
e carregada por quatro Thieu-Tien em oração, deuses acompanhantes, igualmente cobertos de
placas de ouro e simbolizando as homenagens dos quatro mundos: sensível, sentimental,
intelectual e místico. Ao redor dele, uma auréola de ouro com nuvens amontoadas, de onde
saíam as cabeças de dez gênios servidores; e, da nuvem superior, com as asas abertas, os
chifres retos, voava em triunfo o dragão sobre o qual cavalga, através dos tempos e da
imensidão, a idéia do Incomunicável Eterno.
Esta massa de ouro, obra genial de algum santo com dedos de artista e mente de pensador,
abria magnificamente, para a multidão, o santuário das maravilhas, e, para os sábios, o templo
do mistério.
Ao redor dele, Bo-That imortalizados na postura de deuses benfazejos, amigos do homem e
que velam por seus destinos, simbolizavam, com seus rostos e suas mãos douradas, a
iluminação interior que lhes deu o conhecimento universal, acima dos textos e além das
gnoses.
Atrás deles, em forma de corte, os An-Khadiep, Khoa-Tu, deuses da paternidade física e
intelectual, eretos, as mãos juntas, a figura prateada; Pho-Huc, sentado, tendo em suas mãos
cruzadas um botão de flor e uma flor aberta, imagens da ciência imperfeita e transmitida, e da
ciência completa, que apenas o estudo solitário pode adquirir; em torno dele, os Om-Thé-Thi,
feitos à sua semelhança, lembranças materializadas dos bonzos piedosos, dos Phap
audaciosos, dos Phu-Tuy solitários, dos Tong-Sang descobridores dos mistérios, que, com
seus trabalhos, atingiram sobre a terra os últimos graus da virtude, do poder e do saber.
À direita e à esquerda deste primeiro altar, ligeiramente abaixo, dez estátuas de guerreiros
santificados, em roupas amarelas, figuram os Thap-Dien, espíritos dos reis mortos,
monumentos funerários dedicados ao Than, elemento psíquico dos soberanos desaparecidos,
que plana sempre sobre o país que eles comandaram, tutelar dos bons servidores, mas
mutável, inquieto copm o bem que poderia ter feito mas negligenciou em cumprir; é assim que
os Thap-Dien permanecem à entrada do infinito, até que o espírito dos seus sucessores ou a
acumulação matemática dos seus méritos supra, graças ao tempo, a insuficiência das suas
obras terrestres.
Diante desta dupla procissão, Ma-Dien e Ngheu-Dau – que a opinião vulgar considera como
espíritos malfeitores – guardam as imagens de toda mancha; espantalhos das almas simples,
um com cabeça de cavalo, armado com uma lança sagrada, outro com cabeça de búfalo,
armado com uma clava com pontas de ferro, eles advertem os buscadores do perigo de suas
buscas e detém sobre o caminho o mal, este precipício moral, e a loucura, este precipício
intelectual, os corações e os espíritos prontos a se iludir com as aparências.
Na mesma altura do altar que sustenta o Khiu-Lang do Thap-Khien, estão os dois Ho-Phap,
colossais estátuas dos guardiães do umbral, gigantes que vigiam os tesouros, um de aspecto
doce e branco, segurando na mão uma bola de ouro, o outro, punidor do sacrilégio, sentado
sobre uma quimera pronta a saltar, a figura vermelha, o punho estendido, o olhar ameaçador;
em torno deles, os Bo-That benfazejos e doadores de conselhos mostram suas figuras
brancas, suas mãos com o dedo em riste.
Enfum, ao longo dos muros de sustentação do pagode, meio esculpidos em dura pedra,
encravados para sempre n o edifício cujos telhados eles parecem sustentar com suas robustas
espáduas, os oito Kim-Kuong, deuses da guerra, espíritos combatentes, de músculos salientes,
máscaras vermelhas sobre o rosto, o sabre reluzente, ameaçadores com seus gestos e sua
massa, detém o inquieto, espantam o pusilânime, estupefazem o indiferente e, levando ao
coração das multidões um temor salutar, tornam a ciência mais inacessível e os sábios mais
reverenciados.
Um grande sino de bronze, ao redor do qual enrola-se o dragão simbólico, atende ao apelo dos
fiéis e ecoa os ruídos do exterior em suas cavidades maravilhosamente sonoras.
Assim é o peristilo de Phu-Nhi. Formidável nos dias de festa, ele estaca os fiéis prosternados e
impressiona a multidão até as lágrimas.
Ong-Luu atravessou o cenáculo das divindades imóveis e, com a chama na mão, dirigiu-se
para os degraus tenebrosos do mistério.
Sobre grandes cubos de pedra, cada qual mais alto que o anterior, e que parecem mesas de
sacrifício, erguem-se, de modo a que o olhar abarque a todos de uma só vez, as figuras mais
augustas do culto primordial.
Ali, Qua-Hai, que atravessa os mares, recoberto por uma única folha de ouro e com as mãos
juntas indicando a terra, mantém-se ereto. Ali, Ta-Nam-Tao e Hiu-Bac-Dao, deuses
testemunhas do nascimento e da morte dos homens, sentados com suas vestes vermelhas
bordadas de ouro, a barba e a cabeleira brancas, hieraticamente penteados, seguram nas
mãos os livros celestes, nos quais toda a humanidade passa deixando um traço individual. Ali,
os quatro Co-Thien, ajoelhados em seus trajes quadricolores, personificam os quatro mundos
adoradores do Ser universal.
Ali, Ngoc-Quang, imperador celeste, ergue seu talhe com o triplo da altura de um homem acima
de todos os outros deuses, e de suas mãos, embranquecidas pela eternidade, enumera, pelas
placas negras suspensas ao seu pescoço, as humanidades que ele faz viver e as existências
que ele distribui; ali dezoito Khiu-Lang, símbolos das oferendas dos Bo-That que sucederam-se
em vida, nutridos pelas idades e pelas viagens, estão empilhados sobre mesas de mármore;
ali, as figuras negras de Tho-Dia e Thanh-Tong, espíritos da terra e das forças materiais,
sentam-se com o livro de estudos e o bastão de viajante à mão, representando a matéria que
adora a ação criadora.
E o grau eleva-se ainda: aqui está o Dai-Rida, colossal, encerrado em uma placa dourada de
quatro metros de altura, cabeludo, hirsuto, deus da justiça imanente e finalmente vitoriosa,
sentado, as mãos juntas, na atitude suprema de quem possui o tempo, acompanhado dos dois
The-Tu que, em pé, apresentam-lhe os livros em que estão inscritos os atos dos homens.
Aqui fica a deusa de doze braços, a deusa do fundo dos mares, que, com seus múltiplos
membros simbolizando os sinais arquetípicos, traz a homenagem das ações e dos
pensamentos. Aqui fica Ba-Thi-Kinh, a deusa da pureza, sentada sobre um trono branco, com
um fruto de prata na mão. Aqui fica o deus-deusa que não tem nome e que preside, uma vez
sobre a terra, às magias e adivinhações.
Enfim um pedestal com dois metros de altura detém o olhar, e, com os pés na altura das
imagens precedentes, ficam Tam-Thé e a Trindade Celeste, a triplicidade confundindo-se com
a unidade representativa da visão direta; estão os quatro tão altos, que as pessoas embaixo
não os vêem, e, acima das flores abertas de onde eles saem, escondem-se atrás das frisas
multicores do edifício; assim eles personificam os mistérios do invisível, e a multidão, vendo-os
como a mais alta manifestação do grande desconhecido, tenta vencer a sombra das abóbodas
e a opacidade do metal, enquanto que, melhor oculto do que em qualquer outro lugar, em plena
luz, o Impenetrável brilha ao dia antes seus olhos inconscientes.
Contra o muro final do pagode, Thanh-Da, deus dos combates, veste sua máscara vermelha
entre seus dois acólitos, os Tho-Song negros. Ali Thanh-Trang, vestido de ouro, estende seus
braços aos santos do futuro, e, ao seu lado, o deus das harmonias, com seu corpo azul, alegra
seu espírito com os acordes divinos; em torno os Thap-Ba-La-Han, segundo côro celeste,
almas protetoras dos sábios, formam um círculo respeitoso.
Ali enfim, Thap-Bat-Lang, deus da velocidade, mestre dos elementos inferiores e da morte,
vestido de vermelho e de ouro negro, assenta-se em uma ngai-diuh de metal, olhando com um
sorriso complacente a humanidade erguer altares à negação onipotente, ao grande obstáculo
que derruba no caminho da Verdade; e ao pé do monstruoso ídolo, o Phap, vestido e penteado
de branco, o rosto perdido em meio ao uma barba imensa, estava acocorado.
Atrás dele, disfarçando uma porta secreta que dá acesso ao pátio externo aonde crescem
todas as plantas tóxicas e todas as medicinais de Annam, erguia-se a grande pirâmide
simbólica, uma das maravilhas do império, amontoamento icônico que fez do pagode de Phu-
Nhi o rei dos pagodes do Norte.
Era uma pirâmide quadrangular, cuja base ocupava a metade das paredes, e cuja ponta
perdia-se no vigamento trabalhado do telhado superior. Sobre cada uma das faces estava
personificada, por seus atributos e pelo simbolismo de suas qualidades essenciais, cada um
dos quatro mundos sensíveis do universo exterior. Sobre este amontoado, trezentos e sessenta
estátuas achavam-se esculpidas na pedra enorme, espantoso testemunho do ardor da fé, do
gênio da arte, e do poder do conceito.
Sobre a face norte, um entrecruzamento de blocos figuram as montanhas e os picos agudos;
ali as noventa estátuas ciclópicas dos espíritos da natureza rude guardam as grutas,
atravessam os rios, apascentam os rebanhos de elefantes e de tigres, forjam o ferro e
descobrem o ouro; e numa caverna profunda, Nhac-Phu, o deus das montanhas, acocorado,
mordendo os joelhos, guarda o fogo central e, sobre suas espáduas, equilibra o universo.
Sobre a face oeste, as espumas apressadas correm umas sobre as outras em volutas azuis,
figurando o império mutante dos mares; ali, as noventa estátuas marinhas dos Espíritos das
águas guiam os navios, povoam os abismos, brincam nas águas que se encabritam, e retém,
no fundo dos mares, os restos naufragados presos em seus múltiplos braços; e numa grota
funda pavimentada de nácar, Thuy-Phu, o deus das águas, detém com um gesto as
tempestades furiosas e os transbordamentos fecundos.
Sobre a face sul, estende-se em cores verdes o império das florestas e da terra; ali as noventa
estátuas andróginas dos Espíritos da terra constróem cidades, semeiam o arroz, a levam a
toda parte a alegria da paz e da abundância. E Gi-Lac, deus da riqueza, deitado, gordo e feliz,
em meio ao arrozal fecundo, sorri com os esforços dos humildes e dos crentes.
Sobre a face leste, enfim, nuvens brancas e douradas representam o império dos ares; ali,
noventa estátuas aladas dos espíritos do espaço fazem brilhar o sol, irradiar as estrelas
amistosas, e orbitar infatigáveis os mundos em seus cursos sem fim; e sobre uma nuvem que
figura as profundezas da imensidão, Te-Tien-Dai-Thanh, deus do Éter, cercado da imaculada
brancura do vazio, mostra sua face soberba, aureolada por um raio de luz celeste.
Esta fogueira inacreditável, esta pirâmide que resume a materialidade das coisas e a
imaterialidade das idéias, dirige-se numa esplêndida estela, até aos pés do Eterno, a adoração
alada da universalidade dos seres criados.
Ong-Luu passou, familiar diante de todas essas coisas, e falou baixo ao ouvido do Phap
imóvel; após haver escutado e refletido um instante, este levantou a cabeça e mostrou os olhos
vazios de visão absorvidos na contemplação dos pensamentos interiores.
“Vá, disse ele, com a mesma voz surpreendente que sempre acolheu e fez tremer Ong-Luu; vá,
reze segundo os ritos; repita muitas vezes as fórmulas. Eu o acompanharei no seu ministério; à
sua ciência e poder eu acrescentarei minha ciência e minha virtude. Eu invocarei a Deus para
que os deuses o escutem”.
E ele recaiu no seu mutismo, tendo depositado sua chama. Ong-Luu, com incensos
perfumados na mão, e tendo escrito caracteres sobre um papel de seda âmbar que ele
guardou em sua gola, tirou as sandálias, retornou ao peristilo e, com os braços estendidos a
Oriente e a Ocidente, ajoelhou-se nos calcanhares, virando-se na medida que suas palavras
dirigiam-se às imagens imóveis dos deuses a quem orava.
“Ser infinito cujo nome jamais alguém ousou pronunciar, pelos teus dez mil atributos eu te
chamo; pelas tuas dez mil manifestações eu te invoco; fiel aos preceitos, aos ensinamentos
tradicionais, à sucessão dos ritos, eu conjuro a luz dos quatro mundos para que venham ao
meu apelo, revestir-se de uma aparência irradiante.
“Deus distribuidor da existência, diante de ti sou semelhante ao animal que não pensa, e cujos
atos são dirigidos apenas pela sensibilidade; no entanto, neste templo que é consagrado
especialmente ao teu poder misterioso, eu te imploro pelas sete sabedorias correspondentes
dos sete elementos, para que dês um pouco de tua luz, esparsa pelos mundos, às coisas sem
vida a fim de que durante um instante eu conceba o que foi, é e será. Deuses bem amados,
testemunhos da vida e da morte, eu vos chamo, vós que carregais em vossos espíritos nossas
existências passageiras, e que ireis levar um dia ao centro do universo a parcela eterna que faz
o mestre Luu.
“Pai dos sábios, ó Deus de Luu, desde o dia sagrado em que eu conheci a Lei, pela primeira
vez a falta de meu coração obscurece a luz de minha alma, ó Than-Trang, eu não vejo mais,
dai-me teus olhos.
“E tu, Thap-Khiep, Deus solitário e ignorado, que o povo toma por uma encarnação ridícula, tu
cujo nome jamais foi pronunciado por lábios profanos, ó Khien, tu que ninguém viu nem
compreendeu, e que com um gesto de tuas mãos mostra o ativo no alto e o passivo embaixo,
Força e Virtude, e que habitas no meio do Tao, síntese universal e initeligível, tu, adorável e
temível desconhecido, eu apelo a ti, centro intangível para onde convergem todas as perfeições
da unidade, que é a perfeição das perfeições; vê minha palavra, minha oferenda, minha prece.
Julgai, perdoai, promete”.
Ele deteve-se, abaixando a cabeça, o olhar perdido. Subitamente, surgiu diante dele o Phap,
envolto em suas roupagens brancas e com sua barba prateada.
Com um dedo longo e frio ele tocou-lhe a espádua:
“Venha, disse ele”.
Caminhando até o local secreto e tendo-se prosternado, eles se calaram, olhando para dentro
de si.
Depois Ong-Luu apoiou sua testa à do Phap imóvel.
Após alguns instantes, o Phap levantou-se e saiu silenciosamente.

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O ADEUS DO SÁBIO

“...Os homens das raças longínquas do Ocidente declararam que toda Ciência era invejável por
todos; desta forma, eles se atiraram no turbilhão das noções recolhidas por toda a humanidade;
neste ataque sem razão a todas as fortalezas da Idéia, nesta compilação sem ordem de todos
os escritos e de todas as palavras, eles perderam a guia certa da síntese. Permanecendo
penosamente a meia-encosta das montanhas que falharam em escalar, eles nunca assistiram
ao panorama que se descortina por inteiro apenas aos olhos do sábio verdaeiro. Desde então,
eles atribuíram a fraqueza de sua visão à imperfeição das coisas; aonde eles não distinguiam
mais nada, imaginaram que não havia mais nada que ver; e alí colocaram os limites
intransponíveis do saber humano.
“Graças à ciência insuficiente que eles possuíam, eles negaram os segredos da ciência total.
Agora, outros homens dos mesmos países declararam a difusão da ciência como um mal; eles
a compararam a uma droga que, dosada por mãos experientes, fortifica o organismo e excita a
inteligência, enquanto que, ministrada por mãos inábeis, atira uns contra os outros os
elementos humanos revirados, e destróui o ser numa dissociação furiosa.
“Entretanto, irmãozinho menor, nenhum grau da Ciência é nocivo, com a condição que seja
compreendido; vale dizer que não se deve subir ao segundo degrau do conhecimento sem que
se esteja firmemente seguro do primeiro. Quase tudo é incompreensível ao homem; mas nada
é ininteligível; quer dizer que sua ignorância não pode ser imputada à altura dos conceitos, mas
à sua inferioridade pessoal; jamais se deve temer trabalhar e adquirir. O que se deve temer, é
não estar preparado, pois a preparação não é apenas do espírito, mas também do coração e
do corpo.
“Se seu corpo o comanda em diferentes ocasiões, se seus desejos são necessidades para
você, você não está preparado para conhecer. Se seu coração não é reto e livre das paixões,
ou se você busca na ciência apenas uma aprovação para suas convicções ou uma justificativa
para os seus sentimentos, em uma palavra, se você procura outra coisa que a conquista da
Idéia, você não está pronto para conhecer, pois o pendão perverso do seu coração o conduzirá
a caminhos sem saída.
“Saiba, antes de mais nada, que a Ciência é uma série de afirmações ascendentes, e que no
dia em que você chegar com seu estudo à negação de um princípio ou de uma lei geral, você
estará enganado, e terá que recomeçar depois de pedir perdão ao Céu por sua insuficiência.
“Trabalhe com um espírito claro e ardente, mas também com um corpo mudo e dócil, e com um
coração humilde e sem rodeios. Assim, você não terá medo de se perder; e o pouco que você
perceber não o levará senão a uma curiosidade sadia, e não à estúpida negação apriorística.
“Se você escrever ou falar – e você será forçado a isto pela natureza invencível que recebeu
dos seus ancestrais ocidentais – tome cuidado com a ciência que irá divulgar. Aqui, ela é doce,
passando de minha voz suave aos seus ouvidos atentos e seu espírito discreto; ela o encantou,
nas longas noites dos nossos invernos, nas espirais de fumaça, ou nas brilhantes noites dos
nossos verões, quando olhávamos os astros sem interrogá-los, porque conhecíamos os seus
segredos. Mas cuidado, porque, divulgada, ela não se torne um dragão vingador ou um tigre
maléfico. Pois, conforme ela caia em boas ou más almas,  ela será como a lâmina de uma
espada cujo brilho ilumina ou ensanguenta. Você é um embaixador carregado de presentes
perigosos.
“Esteja certo, de resto, que, para dez que leiam, para um que compreenda, dez mil ignorarão e
desdenharão o bom fruto e, temerosos, não tocarão a polpa venenosa. Então porque levar
adiante uma obra que não é sua? E porque diminuir seu banquete intelectual com um prato que
você estará oferecendo em vão aos apetites mais grosseiros?
“Não ignore que toda produção é uma diminuição sua, e que você será menos forte se suas
idéias forem divulgadas do que se você as guardar para si. Eu cumpri para com você uma
tarefa que não cumpriria para a multidão, sem perigo para ela e para mim.
“Mas saiba que a ciência que eu lhe transmiti não é nada diante da minha, que a minha não é
nada diante dos Livros, que a dos Livros não é nada diante daquilo que É; apenas este último,
se pudesse ser compreendido, poderia livrar seus compatriotas do erro final. Se eu pudesse
prever, eu a daria sem hesitar, e sem pensar em mudar seus destinos.
“O Yiking, nosso Mestre, diz: “Ao caminhar sobre a geada dos maus hábitos, o gelo do mal e
da infelicidade se aproxima”; ora, há séculos os ocidentais patinam sobbre gelo fino, e com isto
fizeram uma muralha de gelo que o calor da verdade jamais derreterá.
“Vocês queimaram os templos, arruinaram seus filhos, dispersaram os ossos dos Ancestrais.
Assim também fizeram um dia os Mongóis ao norte do Império, mas esta não é a maior falta
que vocês cometeram. Vocês já recuaram diante da linha de frente de uma das vinte e duas
armadas do império[46]. Imaginem o que aconteceria se todo o exército se lançasse contra
vocês! Mas não é este perigo que os ameaça...
“Mas eis aqui seu crime maior: enquanto nós conservamos piedosamente, vocês esqueceram
suas origens e seu destino; vocês ignoram até o que são, e os seus sábios, diante dos seus
aplausos, dizem que são todos fuilhos de símios; quando, por acaso, vocês se lembram do
nome do Absoluto, é para arrastá-lo na poeira do seu desprezo ignorante. Vocês destruíram,
em proveito do corpo imbecil, todas as luzes do espírito; pela perfeição das engrenagens dos
seus relógios e de suas máquinas, vocês perderam o conhecimento dos movimentos do
Universo. E vocês caminham orgulhosamente nas trevas absolutas, a tal ponto que você – que
eu acredito ser um mandarim da sua raça – fica ofuscado como se a débil chama que depositei
em suas mãos fosse o próprio sol.
“Veja, homem do frio, quantos são vocês e quantos nós somos. Sem contar os Mongóis, os
Giaochi e os Nhebtan, somente os Chineses são duas vezes mais numerosos na China do que
os brancos na Europa; e existem irmãos nossos nas Índias, nas grandes ilhas e até na
América. O Império, que tem porções férteis, mas que contém também grandes desertos, altas
montanhas e terras improdutivas, logo não poderá mais rete-los nem alimentá-los. Nos lugares
aonde, há quinhentos anos, não havia mais do que um único homem, existem agora dez, e não
sobra mais um grão de arroz para alimentá-los. Durante muitos anos, eles se apertarão uns
contra os outros, e nãopoderão saciar sua fome; isto durará tanto tempo que nem você, nem
eu, nem nossos filhos verão passar-se outra coisa.
“Mas virá o dia em que eles não poderão mais viver assim. Então os menores, deixando os
arrozais aos mais velhos, levantar-se-ão e carregarão os pergaminhos ancestrais; e eles irão
sem arrependimentos, pois estarão levando consigo seus lares e o espírito de sua raça. Eles
não serão nem cem, nem mil, mas dez mil miríades. Eles chegarão; eles não precisarão nem
de armas, nem de violência: eles serão muitos.
“A imensa e crescente fecundidade da raça empurrará vocês para o mar, os expulsará dos
seus reinos e roubará o último grão de arroz das suas bocas famintas. E eles virão por longos
anos; às vezes, em meus sonhos, meu espírito lúcido voa até as coisas do futuro, e eu vejo
longas filas marchando interminavelmente para as brumas do seu país; eu escuto, pelos
caminhos que levam para o Oeste, o som das sandálias desses milhares de homens. Que
nossos corações agitados saúdem a noite dos tempos da qual eles vão sair.
“Eles chegarão; diante da quantidade assustadora, vocês não terão outro recurso do que o seu
Deus, pois toda a sua força será inútil; e é então que o esquecimento do Céu e a ignorância
dos seus espíritos lhes serão fatais, e as suas injúrias serão a sua ruína. Nem suas civilizações
afeminadas, nem os seus sistemas materialistas, nem suas plásticas pervertidas, nem seus
atos sensualistas lhes darão a coragem que é preciso para bem morrer. Com seus corpos
emagrecidos pelo enervamento voluntário, suas almas fatigadas pela vertigem das suas
filosofias, seus espíritos endurecidos por uma negação de vinte séculos, vocês serão
arrastados na torrente dos seus vícios; e vocês desaparecerão diante da Raça antiga que
soube manter intacto o princípio da Sabedoria eterna, que queima diante dos nossos avós em
comum.
“É nosso consolo, pobres estudantes que morremos sobre nossos Livros antes que eles nos
tenham revelado tudo, haver predito e preparado a vitória final dos sábios, e de tê-la
endereçado, para esperança de nossos filhos, como as primícias das recompensas dos fiéis
servidores do Tao.
“Vai, portanto, mas tome cuidado com o valor do seu esforço; jamais seja um vulgarizador; que
seu ensinamento só ilumine uns poucos e permaneça velado para as massas; se você puder,
faça discípulos. Embora o seu caminho não vá mudar em nada o Caminho final, orgulhe-se de
segui-lo. Siga, passo a passo, sem jamais se deter, o Mistério; se você hesitar um instante,
como um tigre acuado ele se voltará contra você e o devorará. E, seja qual for a luz que seu
pensamento adquirir refletindo sobre si mesmo ao longo dos anos, imagine que você nada é
diante dos homens, e que eles nada são diante da verdade. E que suas preces suplementem a
sua ciência.
“Um aviso ainda. O mundo que o rodeia não é nada além do que quer seu pensamento. Você
aprendeu que, na verdade, entre o Ideal e a Forma, não há outra coisa que um modo da
realidade. A geração do conceito ideal pode atingir a pefeição indefinida; mas o trabalho de
colocá-lo em prática inferioriza e chega a um resultado decepcionante. Ora, você será obrigado
a viver no mundo exterior, que não passa do detestável reflexo de inumeráveis aspirações
materiais. Você mesmo se sentirá rodeado das emanações desencorajadoras da Terra,
imobilizado por elas, diminuído, constrangido nos seus esforços.
“A emanação de uma coletividade está no nível da parte maisbaixa do coletivo; você será
puxado por sucções poderosas e imprevistas para um destino medíocre. Você resistirá a elas;
você as combaterá; com a ajuda dos nossos ensinamentos, você as vencerá. Mas a soma de
pensamento e energia que você representa será, em parte, empregada neste combate; e tudo
o que você dá hoje à Idéia – que às vezes os homens chamam de Sonho – será diminuído
proporcionalmente. Com mais fadiga, você progredirá mais devagar, e a lentidão será muitas
vezes a causa de grandes desânimos.
“Com efeito, qual será a consequência disto? Uma diminuição geral do seu espírito, e, se você
não tomar cuidado, uma queda de todas as idéias a um plano, talvez ainda elevado, mas
intelectualmente inferior; como se, depois de ter visto, adornadas com reflexos divinos, as
Idéias bailarem nobremente na sua alma (idéias às quais suas concepções deram, sem formas,
um ser), você as visse, embora ainda semelhantes a si mesmas em essência, obrigadas a
representar a mesma epopéia como farsa, num teatro de segunda, e cobertas de ornamentos
vulgares. Disto, você jamais irá se perdoar. Todos os dias, seu coração será crivado por tais
profanações, e todos os dias você sofrerá a desonra involuntária, infligida em você, apesar de
você, ao Espírito vivo pela contingência ilusória.
“Suponha mesmo – e eu vou aqui até a impossibilidade material – uma solidão na qual,
afastado dos homens, ou mestre dos poucos que restassem, você só tivesse que vencer a
inércia cúmplice da natureza: jamais você realizará seu Sonho. Jamais, com elementos
materiais, você traduzirá a tênue perfeição desses conceitos e, em meio às imaginações mais
ricas, conseguirá representar aos seus olhos chocados mais do que aparências vulgarizadas.
Você chegará ao medíocre, ao passável, talvez ao um pouco melhor, jamais ao bom; jamais
você chegará do Comparativo ao Afirmativo; e você se perderá nesta busca do impossível.
Jamais você conseguirá construir, ou mesmo simlar, a Verdade com o tangível e o visível; à
custa de bater-se contra o Inacessível, você ficará desolado por nada conseguir conforme
seupensamento; e, desgostoso das coisas que não passam de aparências, e das pretensas
marcas da realização que não passam de correntes estendidas de través no caminho da
Verdade, você aspirará ardentemente a outros destinos.
“Eu quero dizer a você: você desejará a morte; pois você sabe que a morte é a destruidora das
cadeias, das imperfeições originais, dessas necessidades inferiores de ver, de provar, de agir,
necessidades que nos ligam à matéria estrangeira, que entretanto é nossa.
“Assim você será tentado. Pelas suas longas viagens pelos caminhos alterados do erro, a
morte parecerá a fonte na qual você poderá estancar sua sede da verdade; você será tentado,
quando a sentir ao alcance, sob a forma de uma seiva concentrada de árvore ou de uma
fumaça densa, a solução de todos os problemas que martirizam seu cérrebro.
“Na ascensão indefinida que, sob a vontade contínua do Céu e, momentaneamente, a sua, seu
ser percorre – ascensão cuja progressão anterior você encontrou, ao nascer, concentrada nas
suas faculdades, suas paixões e seus desejos naturais – você sabe que a morte é a passagem
de um grau a outro, que você subirá quando os esforços, cumpridos ao longo do grau em que
você está, o tornarem digno de uma melhoria. Ora, para nós, e também para você, esta
passagem, cujos modos são desconhecidos, mas cujo valor é certo, não pode ser menos do
que o maior desejo da sua existência presente, pois somente ela lhe assegura a aproximação
ao Fim sempre buscado, às vezes entrevisto, mas jamais conquistado. Esta morte, que
aprosima do Espírito e afasta da matéria, é a um tempo a alegria dos homens de espírito e o
pavor dos homens da matéria. Sua vinda, na hora apropriada, é inevitável; inevitável também é
seu resultado. O mérito que você possui, sofrendo nas trevas, será então de permanecer
prosternado diante da luz, não enfrentando-a com os olhos ardentes. Saiba que apenas os
espíritos possuem olhos sem cílios nem pálpebras, cujo olhar não sofre diante do sol.
“Aspire portanto à morte, mas não a procure; ela não chegará antes que você a mereça; aceite
a vida presente como uma expiação das mediocridades passadas, filhas de uma
responsabilidade limitada e já extinta, e das quais você tem uma obscura, mas constante
lembrança; não abrevie esta penitência por si próprio. Pois, se você chamar a Morte sem que
ela venha a você, e, curioso e impaciente, for ao se encontro e a forçar a lhe entregar
antecipadamente os tesouros que ela só deve à soma dos seus esforços e dos seus méritos,
você não usufruirá do bem adquirido com desonestidade; e na outra vida que você quis cedo
demais, os dons que lhe seriam vantajosos voltar-se-ão contra você, e se tornarão o castigo
daquele que os raptou.
“Entretanto, preste atenção nisto: as circunstâncias da morte não são indiferentes, como não o
são as do nascimento. Deixar o acaso determinar a época e as condições em que nos
aproximamos do Céu é o maior dos sacrilégios, só comparável a deixar que o consentimento
fatigado de uma mulher ou a excitação nervosa do álcool determinar o nascimento das
crianças. Mestre e autor responsável, ainda que com limitada autoridade, de todos os atos da
sua vida terrestre, você deve ainda e sobretudo ser o mestre do último, ao menos no que ele
tem de terrestre, e dirigi-lo no sentido em que você guiou toda a sua vida terrestre. Vergonha
aos ignorantes e aos preguiçosos, que se deixam levar, para seu bem futuro, pela exclusiva
direção dos seres superiores, e que oferecem estupidamente a inércia dos seus corpos, seus
corações e cérebros, como se fossem uma oferenda agradável às afeições do Céu. Diante do
Universal, o Número Total, que você chama Deus, existe; mas, para você, homem, ele não
existe senão em você mesmo.
“O arcano profundo da razão dos Dez Mil Seres concilia a liberdade dos seus interesses
próximos com a obediência à Vontade suprema. Com a sua morte, você poderá forçar a
modificação do seu aperfeiçoamento; mas você não adquirirá este direito a menos que você
tenha preparado e arranjado as circunstâncias que deve acompanhar a desagregação dos
seus elementos. Numa vida desregrada um curto esforço seria risível; em circunstâncias
imprevistas, toda uma vida de ciência e virtude se tornaria inútil; você se consideraria
preparado, você, clarividente, se encontrasse a morte fortuitamente na embriaguez de
banquetes copiosos ou de mulheres generosas? Se todos os atos merecem uma preparação,
este último, a morte, exige uma, tanto mais longa e mais sutil quanto mais numerosas e altas
as consequências que ela produz. Você e tudo o que o cerca deve ser perfeito, se você quiser
morrer feliz. Ora, a perfeição humana é um ponto que se pode atingir, mas no qual não é
possível manter-ser. A partir do momento em que você for perfeito, você deverá morrer; e você
deverá calcular as etapas da sua perfeição, de tal modo que a Morte surja na última, e a coroe.
“Enfim, lembre-se que, como o corpo, o espírito é segmentado e dividido; você não obterá o
esplendor da Unidade senão reunindo os pedaços esparsos; a benévola influência do Céu joga
os pedaços uns contra os outros; procure reconhece-los e recebe-los; é assim que você viverá
realmente, depois de apenas parecer viver...
“Eu me calarei agora; falar mais seria precipitar irresponsavelmente o momento em que você
abrirá seus olhos; esta não é a minha função, mas a sua exclusiva; neste dia, você saberá
encontrar os intermediários sutis que impedem o espírito de vacilar e a inteligência de
obscurecer-se. O ensinamento dos Sábios não vai mais longe; no além, você será elevado pela
visão direta da Luz.
“Eis meus últimos conselhos para você. Teria sido melhor que você ficasse conosco; as
ardósias do jardim estão acostumadas com a sua presença; as crianças lhe sorriem, os
cachorros não latem mais à sua passagem; os corações mais fechados lhe abriram suas
profundezas; e você leu em minha raça como em um livro familiar. Na paz dos flamboyants
amigos e da fonte sempre coberta de espuma, no calor ameno dos crepúsculos e sob a sombra
benévola de um teto piedoso, ao pé do altar em que velam os Espíritos Ancestrais, você
sempre encontrou o alimento da ciência servido para aplacar sua fome. Corpos imóveis,
nossos espíritos leves e sutis nos conduziram através das noções humanas até a porta do Céu
transformados. Você sempre achou aqui o bolo de arroz que alivia a fome, a taça de chá que
alivia a sede, o perfume odorante que leva ao êxtase;  você encontrou na paz, esquecido até
do nome dos homens e das coisas do exterior, um repouso tal que somente o da Morte poderia
ser preferível. Não pode você? Não ousa você? Que se cumpra a vontade do Céu. Na
tempestade, lembre-se do meu conselho: quando você estiver entre as brumas e os combates,
lembre-se do jardim de ciência e luz que é também o jardim da calma e da felicidade. E se, no
sono pesado que lhe trouxerem suas fadigas, seu Espírito fiel o trouxer à minha porta, lembre-
se que ela estará sempre aberta ao passo do amigo.
“O sol se levanta; vai, meu irmãozinho. Que nada o assuste: armado com a Via, você está em
terreno sagrado. Não se abale com o abandono das multidões; aquele que posssui a chama
jamais caminha só. Vai tranquilo: você carrega consigo a verdade”.

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[1]              Cem dias ou doze anos.


[2]              Keng-ching é o dia das audiências dos magistrados.
[3]              Mil e trezentaos designa a inumerabilidade ou a continuidade da hábito, assim como as “mil e
uma” dos contos árabes ou as “mil e três” de Don Juan.
[4]              Temos uma prova contemporânea disto na eclosão da seita dos Boxers, ramo exotérico e
exterior da mais oculta organização do universo.
[5]              Empregamos o termo “colégio” no sentido amplo de instituição tradicional.
[6]              Os iletrados, por ignorância, e os cristãos, por preconceito, lhe deram o apelido de Phan-
ac (livro das coisas más, das feitiçarias e fantasmagorias).
[7]              Fórmula: An lau do thuong bach Phât xâ ghi. Não daremos aqui a tradução desta fórmula,
deixando aos espíritos inventivos o trabalho de extrair o sentido expresso pelo símbolo.
[8]              Leis do Reino,  Livro VI: Leis Rituais,  parte 1, seções IV e VI.
[9]              Leis do Reino,  Livro VI: Leis Rituais,  parte 2, seções III e XV.

[10]             Franc-juges: antigo tribunal secreto que surgiu na Alemanha nos séculos XIV e XV.
[11]             Harmonia no sentido de acordo comum ou comunhão de pontos de vista.
[12]             É notável como no início do século XX estas coisas ainda permaneciam apenas no círculo
restrito da Europa e América; por outro lado, até hoje o Ocidente é frequentemente surpreendido com a
“descoberta” das ciências Orientais e Extremo-Orientais, que aqui se ignorava totalmente.
[13]             Parte da patologia que estuda o modo como as doenças se desenvolvem.
[14]                    Parte da medicina que estuda as causas das doenças.
[15]             Tratado sobre a alienação mental.
[16]             Procedimento de ginástica que trabalha por tração, contração e oposição de grupos de
músculos.
[17]             Estudo da origem psíquica dos problemas físicos.
[18]             Operação que consiste em transportar a causa de uma doença do lugar aonde ela está para
um outro em que ela seja menos nociva, como a operação de catarata por rebaixamento.
[19]             Tratado sobre a origem das idéias.
[20]             Estudo do Ser.
[21]             Parte mais elevada da medicina.
[22]             Tratado das coisas sagradas.
[23]             Estudo das imagens.
[24]             Ciência do ensinamento.
[25]             Estudo dos astros e do espaço sideral.
[26]             Estudo dos traços do rosto e do corpo humanos.
[27]             Arte de procriar homens de gênio.
[28]             Astrologia dos recém-nascidos.
[29]             Salvo o sétimo elemento, que é inatacável  e que só pode provocar um estado, a morte súbita
– que não é uma doença – pela sua dissociação em relação aos outros elementos
[30]             Predisposição do organismo a ser atacado por certas doenças.
[31]             Matgioi utiliza aqui um termo emprestado ao ocultismo, aliás bastante mal definido dentro do
próprio ocultismo.
[32]             Am-duong,  princípio duplo e criador estabelecido na metafísica de Fo-Hi, é o fundamento da
filosofia metafísica chinesa. Encontramos suas aplicações em todos os ramos de todas as ciências, e esta
teoria é colocada como um princípio axiomático e quase divino.
[33]             Podemos nos dar conta deste fato observando que, ao despertar, experimentamos uma
sensação antes de sermos capazes de um sentimento, e, a fortiori, de um raciocínio: por exemplo,
sentimos a picada de uma agulha antes de percebermos que se trata de uma agulha e de que há uma
pessoa segurando a agulha.
[34]             Estado de catalepsia ou hipnose profunda, pois estes diferentes estados são obtidos por
influências exteriores cuja ação se superpõe em um esquema idêntico.
[35]             Ele não é mestre do composto nem de sua vida, pois ele não pode provocar diretamente a
morte da pessoa, ao menos no caso específico que estamos tratando.
[36]             Rom, VI, 5; VII, 37-39; I Cor, VI, 13-14; XV, 19-22, 42-44, 52-54; II Cor, V, 4.
[37]             Como as influências dos inebriantes e de todos os agentes organolépticos.
[38]             Mas não à da morfina e de outros estupefacientes, cujos efeitos não são exatamente
análogos, pois eles agem primeiramente sobre os inferiores, e somente depois sobre os superiores.
[39]             Incapacidade de compreensão das coisas.
[40]             Diminuição da transpiração.
[41]             Alterações da coloração da pele; palidez.
[42]             Espécie de planta carnívora asiática.
[43]             Não nos ocuparemos aqui dos sintomas, pois o mal é psíquico, e o sintoma só pode ser físico
ou intelectual.
[44]             Compare-se, com efeito, as doenças que atingem primeiro, seja o Than, para aumentá-lo ou
diminui-lo, seja o motor do Than , para aumentar ou diminuir suas funções e suas modalidades, ou sua
atração em direção ao Khi, de tal modo que as primeiras afetam sua própria natureza, enquanto que as
demais afetam suas manifestações.
[45]             A Via Metafísica, cap. I.
[46]             Alusão ao combate de Bang-Bô, ao longo da muralha da China, no vice-reinado de Quangsi,
durante a campanha do Tonkin, em 1885.

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