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FLORBELA ESPANCA:
O ITINERÁRIO DE UM MITO
1. INTRODUÇÃO
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trezentos títulos os móveis dessa questão, em pauta
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Namorados (1921), que obteve nada mais nada menos que doze edições, pelo menos até 1934, e um rol
-17).
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Com efeito, apesar de ser uma voz extremamente negativa, a impingir a pecha
imoralidade por causa da recensão de Nemo. Tal reputação só se viria a espalhar mais
tarde, após a sua morte e a publicação de Charneca em Flor
1997, p. 31-32). Dessa maneira, Florbela sai do quase anonimato para ser um dos
casos mais controversos e comentados da literatura portuguesa, tudo isso através da
ação inicial de Battelli, que às vésperas do lançamento do Charneca em Flor, livro sob
seus cuidados, é surpreendido com a morte da poetisa e, como um deus ex machina,
faz surgir dessa possível adversidade o centro irradiador do sucesso editorial de
Florbela.
Battelli, sem dúvida, é o primeiro mitificador da escritora e a Florbela que
conhecemos hoje, em maior ou menor grau, atende à dimensão imaginada pelo
professor, pois, ao fim e ao cabo, para o bem e para o mal, se Florbela é hoje um
nome indelével na literatura de Portugal, deve-se, em parte, aos primeiros passos
tomados por Battelli para promover, concretamente, a artista ao patamar que ela, um
dizia Horácio, e a obra da
desditosa Poetisa alentejana não morrerá, porque nela encontra-se a elevação de
pensamento, a sinceridade de pensamento e a perfeição de forma que tornam a obra
Livro de
Mágoas, tornou-se, pelo fiat de Battelli, real e, ao passo que ia traçando as linhas de
uma dimensão humana, a reboque usava tais dados para lhe adensar o caráter elevado
de escritora e, nessa equação, mitificava as duas instâncias, além de usar ao seu favor
a patente proximidade que tiveram no ano de 1930, 4
converte, sem o consentimento dela, no grande anexo de Florbela, no porta-voz oficial
1996, p. XV).
Mas, não pode olvidar que, na sanha de tornar Florbela lida, Battelli
empreendeu uma articulação crítica que, aparentemente, dava a impressão de fornecer
ao público uma compreensão mais especializada sobre a obra e a vida da poetisa,
mas, na verdade, era a curiosidade e o sentimento de comiseração que Battelli
aguçava, desde as homenagens que prestou à Florbela morta. No prefácio de Cartas de
Florbela Espanca a Dona Júlia Alves e a Guido Battelli (1931), o italiano, após
relembrar que Florbela matou-se às vésperas do lançamento de Charneca em flor,
não se deslinda ao longo do livro, pois, de forma deliberada, ele adulterou as cartas,
suprimindo trechos e deslocando outros, no afã de evitar qualquer especulação a
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Segundo Concepción Delgado Corral (1999, p. 403), Guido Battelli, à época com 62 anos, foi
convidado para ministrar um Curso de História da Literatura Italiana, junto a Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, em abril de 1930. Battelli tomou conhecimento da obra da poetisa através do
seu amigo Antonio Batoque e rapidamente estabelece contatos para conhecê-la. Em 18 de junho de
1930, Florbela inicia correspondência com o professor italiano e lhe agradece a tradução dos seus
versos para o italiano, mandando-lhe também um retrato. Entre 10 e 25 de setembro do mesmo ano, os
dois se conhecem pessoalmente em Matosinhos. A correspondência entre ambos só cessa quando da
morte da escritora, em dezembro de 1930.
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No referido prefácio à publicação das Cartas, como organizadas por ele e por
-se na véspera da publicação do seu livro, do qual
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Manuel da
Fonseca registra precisamente o flagrante da transformação da mulher em mito,
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Segundo Agustina Bessa-
David vinte e quatro cartas que recebera de Florbela e que destina à Biblioteca de Évora, com a
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clara entre uma comedida fortuna crítica e os amplos favores do público, incluindo aí
esse círculo restrito de admiradores incondicionais e devotad
63), não encontra guarida no plano fático. Há, para além dos escritos críticos do
primeiro momento, uma ampla fortuna crítica da poetisa no Brasil e em Portugal e um
considerável número de trabalhos ficcionais que transformaram a figura de Florbela
em personagem literária, evidenciando, portanto, um caráter dinâmico e não
museológico do mito florbeliano.
A partir da biografia de Agustina Bessa-Luís, Florbela Espanca, a vida e a obra
(1979), inicia-se uma nova possibilidade de estudar e representar Florbela: a imagem
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da artista passa a ser capturada pela dimensão das vivências pessoais, empreendendo-
se um processo de revisão da imagem da poetisa ainda muito marcada pelos
contornos impostos pela moral salazarista e pelo moroso processo de tentativas de
homenagens, com a colocação, depois de muitas idas e vindas, do busto no Jardim
Público de Évora, em 1949 e a transladação do seu corpo de Matosinhos para Vila
Viçosa, em 1964. O ineditismo encabeçado por Agustina em relação a Florbela é,
justamente, o processo inventivo que introduz a imagem da poetisa em um contexto
ficcional e será, adiante, a característica que marcará, sobremaneira, o segundo
momento da mitificação.
Assim, a novidade não consistiu em erigir uma biografia sobre a escritora (algo
bastante comum no primeiro momento do mito florbeliano) mas em inseri-la nas
malhas ficcionais, de onde sua trajetória biográfica é (re)feita por meio da criação
literária, expediente que também marcou outra característica deste momento: a
desmitificação da escritora. As imagens de Florbela estavam marcadas, em virtude do
primeiro momento deste mito, por uma ambivalência, ou seja, ou era vista como um
ser superior, digna de elevação e elogios, ou era vista como alguém que atentava
contra a moral vigente.
Agustina e depois Hélia Correia (na peça teatral de 1991, Florbela) iniciaram
-a como um ser humano que, à
semelhança de qualquer outro ser humano, possui defeitos e qualidades e é, além
disso, produto de um determinado contexto sócio-
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Abstenho-me de citar detalhadamente cada trabalho desses autores por fazê-lo ao longo deste estudo.
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convertera num tombo que não é o da Torre (...) [e] se acrescentara uma pecha à já
tão triste sina de Flor
disso,
De toda sorte, Maria Lúcia Dal Farra, debruçada sobre o manuscrito Trocando
Olhares conseguiu, através de estudo introdutório e estabelecimento do texto, reparar
as faltas cometidas por Guedes e, como um ato de repúdio à publicação das Obras
Completas, comentou tais acontecimentos e pormenores na apresentação do referido
Florbela e da sua poética com Madame Carvalho, com Júlia Alves, com Raul Proença,
com Américo Durão, enfim, com a literatura oral, com a escrita e com o mercado
mais uma mistificação imputada à obra da poetisa tônica que se imprimiu em mais
de 30 anos de estudos florbelianos.
A transmutação da figura mitificada de Florbela em personagem literária tem
sido um recurso bastante recorrente, espraiada por diversas formas literárias,
compreendidas nos três grandes Gêneros Literários da tradição aristotélica (Lírico,
Narrativo e Dramático).8 Em tais obras literárias, em maior ou menor grau, o percurso
biográfico da poetisa é (re)criado, na manutenção de um mínimo biográfico que se
implementa em todos esses exemplos. Assim, mais uma vez, é possível demonstrar a
continuidade de um mito que vai ganhando novas nuances, somadas ao conjunto
denominado de mito florbeliano.
REFERÊNCIAS
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