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Cláudia Pazos Alonso, Imagens do Eu na poesia de Florbela Espanca, Lisboa, Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1997, p. 200.
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Fabio Mario da Silva
atenta contra a moral cristã. Dedica, primeiramente, sua obra “Às mães e filhas
de todos aqueles para quem este livro não for um escândalo”. O dito crítico‑padre
tem intenção de tentar interferir na decisão tomada pela Câmara Municipal de
Évora de colocar um busto em homenagem a Florbela Espanca no jardim público
da cidade. Exemplifica, como uma das suas argumentações, o soneto “Amar!”,
exatamente estas estrofes:
2
José Augusto Alegria, A poetisa Florbela Espanca. O processo de uma causa, Évora, Centro
de Estudos Manuel Mendes da Conceição Santos, 1956, p. 145.
3
Idem, op. cit., p. 145.
4
Quando nos referirmos ao gênero neste artigo nos baseamos nas considerações de Nicole
‑Claude Athieu, que elucida o processo social submetido aos sexos masculino e feminino:
“um gênero (um tipo) ‘feminino’ é culturalmente imposto à fêmea para que se torne uma
mulher social, e um gênero ‘masculino’ ao macho, para que se torne um homem social.”
HIRATA, Helena (org.), Dicionário crítico do feminismo, São Paulo, UNESP, 2009, p. 222.
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Florbela, Apeles e a construção de um mito incestuoso
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Segundo Ana Luísa Vilela, no prefácio da obra Da metacrítica à psicanálise: a angústia do
“eu” lírico na poesia de Florbela Espanca (João Pessoa, Ideia, 2009), de Fabio Mario da
Silva, Florbela é entendida pelos seus leitores quase como uma personagem literária, num
campo muito turbulento, o da passionalidade: “Ela é, ainda hoje, capaz de desencadear leitu‑
ras e reacções simultaneamente equívocas, desviantes, excepcionais e excessivas. Biografias
ficcionais, obras dramáticas, letras de canções, polémicas académicas, atracções fatais, poe‑
sias mediúnicas, omissões contraditórias, avidez necrófila, psicanálise póstuma, inexplicadas
ausências, mitificação e sobre‑interpretação – foram, ao longo de décadas, inspiradas pela
personalidade literária de Florbela e contribuíram para lhe erigir um monumento colectivo
de paixão pessoal, constrangimento institucional e surdo desconforto crítico” (p. 10).
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Esta afirmação de Renata Junqueira encontra‑se, num dos poucos materiais na academia
referente aos contos e ao diário de Florbela Espanca, numa interessante e competente tese de
doutorado, que resultou na obra Florbela Espanca: uma estética da teatralidade, São Paulo,
UNESP, 2003.
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Em relação ao gênero literário conto e à intenção de Florbela em publicar O dominó preto,
destacamos que, apesar de já ter dito que só sabia “pensar em versos e sentir em versos”,
a partir de 1927, nos últimos anos de sua vida, Florbela Espanca dedicou‑se com afinco à
publicação de contos; todavia, escrevera seu primeiro conto, “Mamã”, antes dos 13 anos de
idade (1). Ou seja, até os seus 33 anos, Florbela, escreveu apenas quatro contos: “Mamã”,
e outros três contos contidos no caderno‑manuscrito Trocando Olhares: “A oferta do desti‑
no”, “Amor de sacrifício” e “Alma de Mulher”. Neste período, a escritora começara a fazer
traduções de contos franceses e decidira organizar um livro de sua autoria, provavelmente,
O dominó preto (2), como constatamos numa carta enviada a José Emídio Amaro, datada
de 15/05/1927: “Tenho ultimamente virado toda a minha atenção para traduções e para um
livro de prosa em que trabalho e que queria pronto para o ano em Outubro; não há tempo
pois para as musas.” Porém, um fato, a morte de seu irmão, veio impedi‑la de concluir aquilo
que viria a ser publicado, pela Editora Bertrand, só em 1982: O dominó preto, que foi o seu
primeiro projeto de contos, mas o último a ser lançado, por causa, provavelmente, da partilha
de direitos autorais, obrigando a editora a esperar que a obra estivesse no domínio público
para ser publicada. É importante notar que José Carlos Seabra Pereira, numa das primeiras
análises desta obra, comparando‑a com As máscaras do Destino, também nos apresenta uma
observação importante, no que diz respeito à dramaticidade de alguns contos: “Esta fatalida‑
de traduz‑se no abater de uma realidade adversa e pungente sobre os protagonistas dos con‑
tos. E como esse golpe concede, com cruel ironia, que a quimera da felicidade viceje algum
tempo, deparamos em alguns contos, sobretudo em O dominó preto, com um perverso jogo
de cabra‑cega entre o destino e os (anti‑)heróis.” (“Prefácio, A águia e o milhafre (derrota
passional e malogro do EU absoluto na prosa literária de Florbela Espanca: dos contos ao
diário)”, in ESPANCA, Florbela, Obras Completas de Florbela Espanca, Vol. III, Lisboa,
Dom Quixote, 1987, pp. iii‑xxxv).
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Florbela, Apeles e a construção de um mito incestuoso
da obra. Destacamos para a nossa análise o primeiro conto desta obra “fúnebre”,
“O aviador”, por ser – além dos contos “A morta”, “Os mortos não voltam” e “O
inventor” – o que melhor deixa plasmado o tom de homenagem, através de to‑
das as máscaras e recursos estilístico‑literários utilizados, bem como, simultane‑
amente, viabiliza a vontade de Florbela em produzir uma obra em prosa. O conto
inicia‑se através de uma cena crepuscular, ornado de detalhes a enriquecer as for‑
mas cromáticas, através de construções sinestésicas (“a carícia ardente do sol”8),
imprimindo no texto traços em que predominam cenas de cariz erótico (“tudo em
volta flameja”9), transformando o personagem‑protagonista, um aviador morto,
num semideus greco‑romano (“É um Rembrandt pintado por um titã”10).
É com o compromisso de divinizar o aviador que o conto se revela elegíaco,
desde as aspirações trágicas, como a descrição da queda do aviador‑deus‑anjo,
até à sua glória, quando figuras mitológicas gregas, através de um coro aclamado,
exacerbadamente, contemplam o corpo inanimado. Segundo Maria Lúcia Dal Far‑
ra, este conto assemelha‑se a uma parábola gloriosa, composta por um elogio da
desmesura, para além da compreensão do risco e do perigo, ultrapassando regras:
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Todas as citações dos contos se referem à edição de As máscaras do destino de Florbela Es‑
panca da Editora Martin Claret (São Paulo) de 2009, na qual consta prefácio (sobre a obra)
e posfácio (sobre a biografia) de minha lavra. Assim, serão citadas apenas as páginas dos
contos nas outras notas de rodapé (p. 25).
9
P. 25.
10
P. 26.
11
Maria Lúcia Dal Farra, “Estudo introdutório, apresentações, organização e notas”, in ES‑
PANCA, Florbela, Afinado Desconcerto, São Paulo, Iluminuras, 2002, p. 106.
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Tanto “O aviador” quanto os outros contos de Florbela se apresentam numa estrutura em
forma de prosa poética, tipo de texto que cria, segundo Norma Goldstein, no “leitor/ou‑
vinte/espectador, um efeito próximo ao do poema: convidam à releitura e permitem mais
de uma interpretação”. A prosa poética, para Goldstein, seria identificada através de vários
recursos poéticos, como repetição de palavras, aliterações, assonâncias, comparações, enu‑
merações, metáforas. Ou seja, a criação poética nos convida à releitura por constar em sua
essência um diálogo entre a obra poética e o leitor/espectador, que interpreta a partir de sua
visão de mundo a obra/peça/texto, estabelecendo elos entre o objeto de criação e quem o
aprecia (não apenas da poesia em verso, mas da poesia como manifestação artística). (Ver‑
sos, sons, ritmos, 14ª ed. rev., São Paulo, Ática, 2006, p.63.)
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Idem, op. cit., p. 22
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Essas temáticas da obra Charneca em Flor (1931) foram expostas pela Professora Doutora
Cláudia Pazos Alonso na obra Imagens do Eu na poesia de Florbela Espanca, Lisboa, Im‑
prensa Nacional‑Casa da Moeda, 1997.
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Florbela, Apeles e a construção de um mito incestuoso
Refletindo acerca das pregações de “Il Poverello” – figura que dialoga com
“o sol, a terra, a flor, o rocio branco”, associando a natureza profícua como uma
“irmã” –, o “eu” no soneto se recusa a ser mera irmã de outrem, a não ser de seu
“irmão morto”. Não há anuência em relação à lição fraternal franciscana, por isso
sente‑se “como uma vela num mar de mágoa”. Ou seja, o luto é constante, a dor
é experimentada intensamente, por isso atribui à figura de Francisco de Assis a
ideia de oxímoro: “Tudo quanto há de vil, quanto há de elo/ Tudo era nosso ir‑
mão.” A interpretação que o “eu” faz é que o pregador “pelas estradas da Umbria
foi forjando” o amor. Lembremos que “forjar” quer dizer trabalhar ou fazer na
forja, ou, no sentido figurado, “inventar”, “maquinar”, e por isso o “eu” concede
um caráter de belo e, ao mesmo tempo, de vil nessas pregações fraternais, porque
nem todos deveriam ser “obrigados” a comungar deste ideal. A perda do laço com
o irmão sanguíneo faz o “eu” isolar‑se de outro tipo de afeto fraternal (ou mater‑
nal), seja com a natureza, seja com quem o rodeia.
4. Apeles através das cartas: Florbela, ao longo de sua vida, trocou várias
epístolas com Apeles. A primeira é datada de 15 de janeiro de 1909 e tem por
objetivo saber como está seu irmão, já que no final de outubro de 1908 a família
Espanca muda‑se de Vila Viçosa para Évora, para que Florbela pudesse dar conti‑
nuidade aos seus estudos no liceu André de Gouveia (o mesmo edifício da antiga
e atual Universidade de Évora). Fica seu irmão, Apeles, na casa do professor
Romeu, em Vila Viçosa. Só anos mais tarde, logo após Apeles ir para o exército
português, é que as correspondências aumentarão, significativamente, entre os
irmãos. É precisamente nessas condições que noutra carta, de 7 de fevereiro de
1917, notamos o caráter maternal entre os irmãos: Florbela conta um pouco de
sua vida, fala de uma “pobre rapariga”, a Stael, que anda “raladíssima” à espera
de notícias desse “marujo”. São, acima de tudo, preocupações de uma irmã:
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O poema citado faz parte da seguinte edição: Poemas de Florbela Espanca, estudos introdu‑
tórios e notas de Maria Lúcia Dal Farra, São Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 245.
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Chega a exacerbar seu amor e orgulho pelo irmão – dito como um herói. Um
homem que deixou uma irmã saudosa e muitos amores em terras portuguesas:
“Mando‑te uma violeta portuguesa com antepassados italianos; ela leva‑te um
beijo grande que eu lhe dei para ti (…) Meu conquistador lusitano, os feitos he‑
róicos que tu tens praticado!”17 É, acima de tudo, um relato que mescla, por um
lado, angústia e saudade, e, por outro lado, veneração e cuidado; é o que notamos
na seguinte epístola enviada a Apeles, que se encontrava em terras brasileiras:
Estou tão contente que a tua alma vibrante e entusiástica de vinte anos se
eleve ao contacto de todas as belas coisas que vês (…) Sei que te lembrarás,
às vezes, duma irmã amiga que está ansiosa por te ouvir contar muitas coisas
inverossímeis à força de ser belas. O teu riso, a tua força de viver, dar‑me‑ia
uma grande felicidade, acredita. Que extraordinário ente tu és! Artista vibrante
e sensível, (…) Quantas coisas tu me contarás! Tu sabes que a irmã poetisa
compreende todas as emoções e todas as loucuras da tua alma.18
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ESPANCA, Florbela, Obras Completas de Florbela Espanca, Vol. V, Cartas (1906‑1922),
recolha, leituras de notas de Rui Guedes, Lisboa, Dom Quixote, 1986, p. 195.
17
Idem, op. cit., p. 142. Carta datada de 10 de março de 1922.
18
Idem, op. cit., p. 254.
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Florbela, Apeles e a construção de um mito incestuoso
Desta forma, depois de vista como antimodelo social, foi deveras fácil a acu‑
sação de incesto por parte das autoridades conservadoras. O que notamos é que
esse “mito” se encontra presente até hoje numa tradição oral quando se fala de
Florbela. A hipocrisia com que a sociedade salazarista viu a poetisa calipolense
fez com que ela fosse vista como uma personagem que suscita certo desconforto
crítico. Entretanto, equívocos à parte, o sentimento de amor verdadeiro que Flor‑
bela tinha por Apeles parece despertar também, conscientemente ou não, um cer‑
to pavor àqueles que não conseguem demonstrar aos seus familiares e ao próximo
algum sentimental fraternal.
Referências bibliográficas:
ALEGRIA, José Augusto, A poetisa Florbela Espanca. O processo de uma causa, Évora,
Centro de Estudos Manuel Mendes da Conceição Santos, 1956.
ALONSO, Cláudia Pazos, Imagens do Eu na poesia de Florbela Espanca, Lisboa, Impren‑
sa Nacional‑Casa da Moeda, 1997.
DAL FARRA, Maria Lúcia, “Estudo introdutório, apresentações, organização e notas”, in
ESPANCA, Florbela, Afinado Desconcerto, São Paulo, Iluminuras, 2002, pp. 5‑106.
ESPANCA, Florbela, As máscaras do destino, introdução Fabio Mario da Silva, São Pau‑
lo, Martin Claret, 2009.
ESPANCA, Florbela, Afinado Desconcerto, estudos introdutórios e organização de Maria
Lúcia Dal Farra, São Paulo, Iluminuras, 2002
ESPANCA, Florbela, Poemas de Florbela Espanca, estudos introdutórios e notas de Maria
Lúcia Dal Farra, São Paulo, Martins Fontes, 1996.
ESPANCA, Florbela, Obras Completas de Florbela Espanca, Vol. III, Contos, prefácio de
José Carlos Seabra Pereira, Lisboa, Dom Quixote, 1987.
ESPANCA, Florbela, Obras Completas de Florbela Espanca, Vol. V, Cartas (1906‑1922),
recolha, leituras de notas de Rui Guedes, Lisboa, Dom Quixote, 1986.
GODNSTEIN, Norma, Versos, sons, ritmos, 14.ª ed. rev., São Paulo, Ática, 2006.
HIRATA, Helena (org.), Dicionário crítico do feminismo, São Paulo, UNESP, 2009.
JUNQUEIRA, Renata, Florbela Espanca: Uma estética da teatralidade, São Paulo,
UNESP, 2003.
SILVA, Fabio Mario da, Da metacrítica à psicanálise: a angústia do “eu” lírico na poesia
de Florbela Espanca, prefácio de Ana Luísa Vilela, João Pessoa, Ideia, 2009.
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