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TRADUÇÃO DE TRABALHO DE THE WORLD VIEWED

Livro: The World Viewed [O mundo visto],1 pp. 3-25 da paginação original, com recortes.
Autor: Stanley Cavell
Tradutor: Igor Nascimento
Revisor: Mikael Abrão Bombassaro
Texto para usos didáticos, de circulação restrita aos ambientes virtuais da cadeira Filosofia e
Cinema (HUM01201), com o professor José Pertille como professor titular e responsável.

Nota introdutória do tradutor: Nesta obra de Cavell, talvez mais do que na maioria, são feitos
jogos de palavras difíceis de se traduzir para o português. Foram feitas tentativas de preservar
alguma sonoridade — por exemplo, traduzir “sights and sounds” como “cenários e sons”, ao
invés da tradução mais literal “vistas e sons” —, mas há uma riqueza maior no original em
inglês do que foi possível preparar para uma tradução provisória. Leitores terão algum ganho
ao se engajarem com a obra original, enviada junto no e-mail, mas o mesmo não é necessário
para acompanhar os argumentos centrais. Foi enviado, como material complementar, o
prefácio da obra, que inclui algumas das motivações do autor, bem como uma análise geral de
Paola Marrati, que desenvolve a leitura que Cavell faz da modernidade. Recomendo ambos
fortemente.

Epígrafe do livro: Por que precisamente esses objetos que olhamos fazem um mundo?
— Henry David Thoreau, Walden

Capítulo 1: Uma autobiografia de companheiros [An Autobiography of Companions]


Quando Tolstói perguntou “O que é arte?”, sua resposta foi tal que recusou muito da
grande arte do passado. Eis a firmeza do gênio. E porque alguém deveria se preocupar com
isso? Que razão há para se preocupar sobre alguma crítica radical da sua cultura — sobre,
digamos, o fato de Platão e Rousseau terem desejado recusar a poesia e o teatro nas suas
repúblicas; ou que Matthew Arnold pensava que a poesia havia perdido sua voz; ou que Hegel
e Marx pensavam que a filosofia tinha chegado a um fim, ou deveria fazê-lo; ou que Wagner e
Walt Whitman e Thoreau e Nietzsche pensavam que o homem e a sua sociedade deveriam ser
transformados antes que aquilo que estava no coração do que eles tinhas para dizer pudesse

1
CAVELL, Stanley. The World Viewed: reflections on the ontology of film. Enlarged Edition. Cambridge,
Massachusetts, London, England: The Belknap Press of Harvard University Press, 1979.
1
ser compreendido? O problema é que nós às vezes estamos incertos se nós sobrevivemos a
essas profecias ou se nossas vidas agora estão realizando seus piores medos. Minha pergunta,
portanto, não é se nós devemos nos preocupar com a resposta de Tolstói, mas se nós podemos
evitar de nos preocupar e, em particular, que explicação nós nos damos para sua resposta —
quando, isto é, nos encontramos nos preocupando com ela. Diremos que Tolstói estava errado
sobre a arte? Poderíamos mesmo acreditar nisso? Diremos que ele estava louco quando
escreveu seu livro sobre arte? O livro não soa nem é sentido como o trabalho de um homem
louco. Uma resposta que eu costumava me dar era: Tolstói está se perguntando não sobre a
natureza da arte, mas sobre a natureza da importância da arte. Foi então que eu percebi que
essas não são questões separadas — que a resposta para a pergunta “Qual é a importância da
arte?” é gramaticalmente relacionada a, ou é uma maneira de responder, a questão de “O que é
arte?” — que eu cheguei em um entendimento do que Tolstói estava falando sobre, e acabei
compreendendo demais campos na minha preocupação com a arte. [...].2 Então como se pode
não levantar a questão da importância da arte? Estamos nós tão sofisticados que a
inacessibilidade da arte não nos preocupa? Ou estamos nós numa possessão de uma teoria que
explica a nossa satisfação do porquê a arte não precisa de importância?
Por que filmes são importantes? Eu tomo como dado que, em vários sentidos óbvios,
eles são. Que isso possa ser tomado como dado é o primeiro fato que eu coloco à
consideração; isto é, ou era, um fato distintivo sobre filmes. Música, pintura, escultura, poesia
— como elas são agora almejadas pelos artistas de grande ambição, artistas devotos a fazer
objetos que significam a história viva da arte — não são, em geral, importantes, exceto
praticamente para os homens e mulheres devotos a criá-los. Para eles, as artes são de tal
importância, e essa importância levanta tais questões, que ninguém livre dessas questões está
livre de compartilhar suas artes com eles. Esses artistas não possuem, virtualmente, mais
nenhuma audiência, exceto em casos isolados ou intermitentes. As artes vão diferir na
extensão de seu isolamento da audiência e na extensão em que sofrerão desse isolamento. A
pintura parece estar na posição mais afortunada no momento, a música na menos afortunada.
Talvez isso indique que agora existem mais maneiras de responder à pinturas do que existem
para entrar na música. Mas ricos e pobres, aqueles que não se importam com nenhuma (outra)
arte e aqueles que vivem pela promessa da arte, aqueles cujo orgulho é a educação e aqueles
cujo orgulho é o poder ou a praticidade — todos se importam com filmes, esperam por eles,
respondem a eles, lembram deles, falam sobre eles, odeiam alguns deles, são gratos por
alguns deles.
2
N. T.: Recorte da p. 4 do livro para focarmos na linha argumentativa e menos nos argumentos de Tolstói.
2
Esse primeiro fato anda junto de um segundo. O filme parece existir de forma natural
num estado no qual suas instâncias mais altas e as mais ordinárias atraem a mesma audiência
(de todo modo, pelo menos até recentemente). Qualquer um deveria ser capaz de estar à altura
da percepção ao final de City Lights3, a eloquência dos ânimos de Garbo, a inteligência e
masculinidade do Ricardo III de Olivier, ao poder da justiça no jovem Lincoln de Henry
Fonda, a esperteza de Carole Lombard, ao desespero de Emil Janning, ao magnetismo
condenado de Marilyn Monroe, ao senso de falta de valor de Kim Stanley, ao prazer e
confiança mútuo que William Powell e Myrna Loy dão um ao outro, a aceitação completa e
calma que Groucho faz das necessidades furiosas de Harpo, as hesitações de quebrar o
coração no centro de uma rotina de Astaire. E a mais alta sensibilidade deve se instigar no
conhecimento com que Fonda interrompe com a questão mística — "Me diga, qual seu nome,
estranho?” — olhando ao redor e diretamente aos olhos de Walter Brennan, parando de
fazê-lo assim que ele vai embora, “Earp. Wyatt Earp”; e odiar e temer as vilanias de corte de
Basil Rathbone ou os assassinos psicóticos de Richard Widmark ou Liberty Valence de Lee
Marvin, ao mesmo tempo completamente satisfeito e perfeitamente livre da culpa por suas
derrotas lúcidas e barrocas; e participar da satisfação de uma das fúrias de Kirk Douglas ou de
Burt Lancaster. Só de pensar na maneira que Bette Davis faz sua entrada em Jezebel —
estourando em sua aparição em um cavalo de criação, seu elegante traje de montaria amplifica
a corrida com que ela desmonta, depois enfia a ponta do chicote nas dobras laterais da saia
para liberar a bota para entrar na casa onde ela sabe que é aguardada com deslumbrada
desaprovação — só de pensar na maneira em que, em Now, Voyager4, sua restauração de
sanidade é assinalada por uma cena de abertura em seus tornozelos e pernas com meia-calça,
livre das roupas de algodão escuras, densas e amorfas e dos sapatos de doente nos quais sua
mãe perversa a havia cativado a usar — esses momentos nos dão um belo semblante de êxtase
(Qualquer um que pensa que tais respostas são “exageradas” ou está exagerando ele mesmo
ou então cresceu num mundo diferente do meu.)
Mas as pessoas que participam de música séria não participam de música leve de
jantar, ou de música de cinema.5 Elas podem admirar Cole Porter, Rodgers e Hart, Jerome
Kern, The Beatles, jazz. Mas todos deveriam admirar inventividade inspirada, sentimento
verdadeiro, alegria que embala, honestidade apaixonada, e a transformação do cativeiro e

3
N.T.: Filme de Charles Chaplin, localizado no Brasil como “Luzes da Cidade”, de 1931.
4
N. T.: localizado no Brasil como A Estranha Passageira, dirigido por Irving Rapper, 1942
5
N.T.: Este é um argumento que eu acho que perde muita força nas últimas décadas, em particular na passagem
entre os anos 90 e o início dos 2000. Aproveito a nota para nos lembrar, todos, que o texto foi escrito ao longo
dos anos 60 e publicado pela primeira vez em 1971.
3
pesar em gritos radiantes e murmúrios virtuosos da comunidade. E as pessoas que lêem
romances sérios não lêem, em geral, potboilers6 (com a exceção ocasional da história de
detetive e ficção científica, curiosidades sociológicas próprias). Existem, é claro, na literatura
algumas ocorrências de artistas muito grandes que são ao mesmo tempo populares. Mas
minha reivindicação é que, no caso das películas, é em geral verdade que você não gosta dos
casos mais elevados a menos que você também goste dos mais típicos. Você nem sequer sabe
quais são as instâncias mais elevadas a menos que você também conheça as mais típicas.
[...]7
Eu não estou em posição de estabelecer um cânone, nem sequer a partir da coleção
modesta de talkies8 a minha disposição e dos quais parti. Mas como estou decidido a seguir
em frente de qualquer maneira, eu vou tomar as orientações que eu tenho, tentando a cada
ponto fundir as maneiras de pensar que convidaram minha convicção com a experiência das
películas com as quais eu me importei.
É da natureza dessas experiências estar alinhada com fragmentos de conversas e
respostas de amigos com os quais eu fui ao cinema. E com os tempos de partilha logo depois
— correndo por aí como indígenas, ou em formação como biplanos, gradualmente dando
espaço para sessões nas quais por horas nós reconstruímos a trilha sonora do filme, ou o
diálogo ou a história, ou o contentamento de simplesmente nomear momentos, com o puro
desejo de mais do que pequenas sílabas de alegria ou nojo ou arrepios. Eu fico só entretido, ou
envergonhado, ou tenro quando me lembro o que pensei pela primeira vez que eu li um livro
que depois eu segui para outra profundeza; mas eu sigo fiel a respostas que primeiro tive a
filmes, mesmo se não posso mais compartilhar delas. Os eventos associados com a
experiência de livros e música são só ocasionalmente tão importantes quanto a experiência
das obras elas mesmas. Os eventos associados com filmes são aqueles de companheirismo ou
a falta de companheirismo: a audiência de um livro é, de forma essencial, solitária, uma alma
de cada vez; a audiência da música e do teatro é, de forma essencial, maior do que seu contato
imediato — uma reunião da cidade; a multidão no cinema compreende vários grupos de
companheiros ou almas dispersas com alguém desaparecido. Eu não me importo se alguém
exatamente sabe a semana de deslumbramento que eu tive aos doze anos lendo Les
Miserables; sempre haverão crianças de doze anos e sempre haverá este livro para eles. Mas

6
N. T.: Literalmente “aquecedores de pote” ou “aquecedores de panela”, no sentido de serem livros cuja
integridade artística é duvidosa por serem escritos com a motivação principal de dar sustento ao autor.
7
N. T.: Recorte das pp. 6-9 do texto original para focarmos nos argumentos mais imediatos.
8
N. T.: Termo anglófono que significa, de forma literal, “falantes”. Designa filmes com som em oposição ao
chamado “cinema mudo”.
4
filmes, a menos que sejam obras primas, não estão aí como eles eram. As horas — através de
Mutiny on the Bounty com Laughton e Gable; The Crusades; Union Pacific; Dawn Patrol;
Captain Blood; Algiers; Charlie Chan; Wuthering Heights; Stella Dallas; King's Row; Ball of
Fire; the Ronald Colman Prisoner of Zenda; Random Harvest; Lost Horizon; Juarez; Dead
End; The Last of the Mohicans; Broken Arrow; The General Died at Dawn; Mildred Pierce;
The Phantom of the Opera; Strike Up the Band; Singing in the Rain; The Cat People;
Phantom Lady; Cry of the City; Murder, My Sweet; White Heat; e centenas de outros — foram
horas e dias de admiração; momentâneas, mas só pelo momento; totalmente irrecapturáveis
exceto pela memória e evocação; perdidas. Se você os ver agora pela primeira vez, você pode
estar interessado e movido, mas você não pode saber o que eu sei.
Eu mencionei minha crescente dificuldade, nos últimos vários anos, de conseguir ir
ver novos filmes. Isso tem relação, em parte, com a ansiedade da minha resposta aos novos
filmes que eu vi (eu não quero, de forma alguma, dizer que eles são ruins), mas também com
minha ansiedade no que eu sinto que sejam novas audiências para filmes (não
necessariamente novas pessoas, mas pessoas com novas razões para estarem lá), como se eu
não conseguisse localizar ou permanecer junto de meus companheiros quando entre eles. Eu
tomo isso como algo mais do que um interesse clínico.
Alguém poderia dizer que exibições de filmes começaram pela primeira vez a serem,
de forma habitual, frequentadas por uma audiência, digo, por pessoas que chegam e vão
embora ao mesmo tempo, como numa peça. Quando a ida ao cinema era casual e nós
entrávamos em qualquer ponto da exibição (durante as notícias ou os curtas ou em algum
momento na exibição principal — aproveitar a percepção, mais tarde, do retorno desse exato
momento que no qual alguém havia entrado, e dali em diante se sentindo livre para decidir
quando ir embora, ou se veria de novo a parte familiar), nós levávamos nossas fantasias e
companheiros e anonimato para dentro, e saíamos com eles intactos. Agora que há uma
audiência, uma reivindicação é feita sobre minha privacidade; e então importa para mim que
nossas respostas à película não sejam realmente compartilhadas. Ao mesmo tempo, o mero
fato de uma audiência fazer essa reivindicação sobre mim, parece como se a antiga
casualidade de ir ao cinema fosse substituída por uma casualidade de ver filmes, a qual eu
interpreto como uma inabilidade de tolerar nossas próprias fantasias, quem dirá aquelas dos
outros — uma atitude que eu, igualmente, não posso compartilhar. Eu sinto que eu estou
presente num culto cujos membros não possuem nada em comum senão sua presença no
mesmo local. A questão é diferente — não necessariamente mais agradável — se o filme já é
parte da história e é ele mesmo algo ao redor do qual um culto transitório se formou. Eu
5
suponho que a antiga casualidade abrigava o valor da ilicitude que desde o início fez parte da
ida ao cinema. Mas as restrições do novo público não dissipam a ilicitude nem a tornam
desnecessária; a audiência não é uma reunião de cidadãos para confissão honesta e aceitação
mútua. A nova necessidade de reunião é tão misteriosa quanto a antiga necessidade de
privacidade; portanto, a exigência de que eu renuncie à privacidade é tão ilícita quanto a
minha exigência de preservá-la.
A importância da memória vai além de sua habitação no conhecimento. Ela surge
também na maneira que filmes são lembrados ou mal lembrados9. Esse será um tema vivo no
que se segue, porque a minha maneira de estudar filmes tem sido principalmente através da
lembrança deles, como se fossem sonhos. Ao contrário dos sonhos, existem outras formas
igualmente essenciais de chegar ao cinema, como ler os seus roteiros e aprender a sua história
exterior e vê-los novamente e contar e cronometrar os seus planos. Vou insistir aqui, não
apenas porque não estou equipado ou não tenho qualquer outra alternativa, mas porque, neste
estágio, não saberia para que documentação adicional serviria além de documentação. Meu
trabalho é pensar nas causas da minha consciência do cinema tal como está.
A partir dessa falta de conhecimento técnico eu espero três tipos de vantagens:
primeira, que o que eu devo lembrar será retomado por outros; segunda, que uma vez que o
meu lembrar é ele próprio um dado que precisamos dar conta de, e já que um livro não pode
reproduzir, ou citar, as imagens e cenas lembradas, eu sempre estarei levado a contar, ainda
que de forma breve, o objeto como um todo do qual as lembranças se destacam. Isto é uma
vantagem especial porque é discutível que os únicos argumentos que poderiam ser dados para
uma teoria do cinema são procedimentos de crítica. Terceira, ao permitir que o pensamento
siga seu rumo, eu deveria pelo menos evitar aquelas explosões envergonhadas de teoria que a
escrita sobre o cinema tipicamente deixa escapar; e no máximo eu terei exemplos a partir dos
quais perguntar porque filmes parecem produzir de maneira natural seus clamores
metafísicos, muitas vezes apoiado pela mera conjunção de detalhes técnicos junto de um
esboço da história da consistência, grosso modo, de programas de ópera. Na escassez de
crítica humana que trate de filmes inteiros, e na falta de ajuste entre a sua descrição técnica e
uma explicação fenomenológica, os filmes alcançaram a condição de música. No momento,
lembro-me de três exemplos do que quero dizer com “crítica humana que trata de filmes
inteiros” pelos quais fui instruído: James Kerans sobre Grand Illusion; William Hedges sobre

9
N. T.: Tradução literal de “misremembered”, um verbo que pode ser traduzido para “esquecer”, mas que
geralmente envolve uma camada além do esquecimento: nós lembramos de algo com erros, com coisas faltando.
6
Children of Paradise; Annette Michelson sobre 2001: A Space Odyssey10. Mas, em geral, uam
verdade a respeito da escrita sobre cinema, que significou algo para mim, é que ela tem o
poder de um companheiro ausente. Agee e Robert Warshow11 e Andre Bazin conseguem fazer
esse tipo de conversação o tempo todo; e eu o encontrei, entre outros, em Manny Farber,
Pauline Kael, Parker Tyler, Andrew Sarris.
O requerimento para uma certa indiscriminação ao aceitar filmes (eu não digo que
você precisa gostar de Musicais de Cowboy ou Comédias de Terror) possui seus análogos no
passado das artes estabelecidas: qualquer um que seja seletivo demais sobre quais
compositores clássicos cuja música ele não gosta, não gosta realmente de música; enquanto
um desgosto por vários momentos ou figuras na literatura possa ser produtivo. Mas esse
requerimento não é só diferente no caso das outras artes agora, ele é uma negação de sua
própria condição: pois pode ser dito por qualquer um que cultiva, de forma ampla, as
ocorrências particulares de música ou pintura ou teatro e não gosta, ou não conhece, as
ocorrências sérias daquelas artes como elas agora ocorrem. Essa condição da arte moderna
foi descrita por Michael Fried12 como uma na qual uma arte deixa espaço, ou não faz
promessas, com o artista pequeno: é uma situação na qual a obra de um grande artista condena
a obra de outros para a inexistência artística, e na qual sua própria obra é condenada à
seriedade, ao maior sucesso radical ou ao completo fracasso. Esse estado de coisas é, sob uma
ótica, mais triste, e certamente mais cruel, que aquele que Tolstói descreveu. Pois Tolstói
poderia se permitir culpar a sociedade e os artistas por suas insuficiências, enquanto se nós
queremos situar a culpa, será sobre as necessidades das artes separadas elas mesmas: sobre a
música, ao recusar tonalidade; sobre a escultura, por não mais permitir um material ser
esculpido; sobre a pintura, por recusar não meramente a presença da humanidade em seu
conteúdo mas a evidência da mão humana em sua criação. Ou nós teremos de culpar a
realidade por se retirar de nossos poderes. De outra maneira, nosso estado é mais feliz que o
de Tolstói. Pois enquanto a comunidade da arte séria é pequena, ela não é exclusiva — não da
maneira que uma elite é exclusiva. Ela é esotérica, mas o segredo é aberto a qualquer um. Se
isto é frio, é esclarecedor; pois agora a culpa pode ser diretamente para a exclusividade de fato

10
William L. Hedges, "Classics Revisited: Reaching for the Moon," Film Quarterly, XII, No. 4 (Summer 1959),
27-34; James Kerans, "Classics Revisited: La Grande Illusion," Film Quarterly, XIV, No. 2 (Winter i960), 10-17;
Annette Michelson, "Bodies in Space: Film as 'Carnal Knowledge,'" Artforum, February 1969, pp. 54-63. [Nota
3 do texto original.]
11
Os ensaios sobre cinema de Warshow estão coletados em The Immediate Experience (New York: Doubleday,
1962 [paperback edition, 1964]). Eu espero que minha dívida para com eles seja óbvia. [Nota 4 do texto
original.]
12
Ver a contribuição de Michael Fried a um simpósio realizado na Universidade de Brandeis em 1966: William
C. Seitz, ed., Art Criticism in the Sixties (New York: October House, 1967). [Nota 5 do texto original.]
7
de uma arte. A boa cidade não requer que a arte seja feita para todos. Suas responsabilidades
são de sair do caminho do artista, para que ele possa determinar se nossos amores ou pesares
podem ainda ser situados da maneira que a arte sempre os situou. E suas responsabilidades
aos seus cidadãos são para libertá-los para que cada um possa determinar para si mesmo a
relevância que a arte séria poderá ter na sua vida, ou não ter. A demanda socialista por uma
arte futura não é, no fim das contas, diferente do louvor capitalista da arte dada: ambos
querem que a arte faça, ou prove, o que só pode ser feito socialmente. Isto não é um elogio da
arte; é só um tributo sarcástico a seu poder antigo, e um saudável medo dele.
Muitas vezes é dito, talvez em resposta a continuidade que eu tenho notado sobre o
cinema (enquanto alta e baixa audiências, e entre suas ocorrências altas e baixas), que o
cinema é a arte moderna, aquela a qual o homem moderno naturalmente responde. Além do
que eu já disse, temos duas razões imediatas para desconfiar dessa ideia: (1) ela assume que as
outras artes não são capazes de provocar os velhos valores da arte. Isso pode ser verdade; mas
também pode ser que alguém que diz que é verdade não está numa posição de perceber o
artigo vivo quando o vê. E demonstra uma visão pobre do que é “natural”, pois se há qualquer
coisa séria que possa ser chamada de “o homem moderno”, um fato sobre ele é que o que é
natural para ele não é natural, que a naturalidade para ele se tornou uma conquista estupenda.
(2) Se o cinema ́deve ser seriamente pensado como uma arte, então precisa ser explicado
como ele pode ter evitado o destino do modernismo, o que em prática significa como ele pode
ter mantido suas continuidades de audiências e gêneros, como ele pode ter sido levado a sério
sem ter assumido o fardo da seriedade. Pois o fato flagrante sobre o cinema é que, se ele for
arte, é a única arte tradicional viva, aquela que pode considerar a sua tradição garantida. É
isso que chamar de arte moderna deveria significar, mais ou menos? Nesse sentido, a ideia da
sua modernidade é vazia (sugerindo meramente que há alguma conexão entre a arte e seu
contexto histórico), ou falsa (sugerindo que as artes tradicionais não estão mais vivas), ou
incoerente (sugerindo que os filmes são uma versão nova e improvisada de arte, como um
detergente moderno ou a cozinha moderna). O modernista é incompreensível separado de seu
questionamento de tradições específicas, as tradições que o produziram. O modernizador é
meramente cego ao poder da tradição, zombando suas próprias correntes.
O conforto dos filmes com suas suposições e realizações — suas convenções
permanecendo convenientes durante grande parte de sua vida, permanecendo convincentes e
férteis sem autoquestionamento — são fundamentais para o seu prazer para nós. Às vezes
pensaremos nisso como ingenuidade do cinema, mas talvez seja uma forma ingênua de
encarar a questão. De qualquer forma, não explica a absorção do filme pelas suas convenções,
8
mas simplesmente redescreve-o. A questão permanece: como o cinema conseguiu
proporcionar esse prazer? Por outro lado, quanto mais aprendemos (a partir das memórias
hollywoodianas de Ben Hecht, digamos) sobre a corrupção e a estupidez da indústria que se
formou para produzir esses objetos, é mais provável que nos perguntaremos como os filmes
que importam para nós podem ter sido feitos. Isso não é um problema se os únicos filmes que
lhe interessam são obras-primas escolhidas com cuidado: poucos regimes são tão
perfeitamente terríveis e eficientes que impedem que cada gota de originalidade vaze por suas
garras. Mas se a gama de cuidados é mais ampla, então como explicar o efeito desses
exemplos comuns, que parecem ter sido feitos apenas para a indústria produzir? Qual é o
poder do cinema para que ele pudesse sobreviver (até mesmo lucrar artisticamente) com tanta
negligência e desprezo ignorante por parte daqueles que estão no poder sobre ele? O que é
“filme”?

Capítulo 2: Cenários e sons [Sights and sounds]


O começo de uma resposta é dado por dois teóricos continuamente inteligentes,
interessantes e, para mim, os mais úteis dos que eu li no assunto. Erwin Panofsky diz desta
maneira: “O meio dos filmes é a realidade física como tal”.13 Andre Bazin enfatiza
essencialmente essa ideia muitas e muitas vezes: em certo ponto, ele diz “O cinema está
comprometido a comunicar somente através do real”; e então “O cinema é na sua essência a
dramaturgia da Natureza”.14 “A realidade física como tal”, tomada de maneira literal, não é
correto: aquela frase cabe melhor ao prazeres especializados dos tableaux vivants,15 ou jardins
formais, ou arte Minimalista. O que Panofsky e Bazin têm em mente é que a base do meio dos
filmes é fotográfica, e que a fotografia é da realidade ou natureza. Se para isto nós
adicionarmos que o meio é um no qual a imagem fotográfica é projetada e reunida numa tela,
nossa pergunta se torna: o que acontece com a realidade quando é projetada e colocada em
tela?
Que é com a realidade que temos de lidar, ou alguma maneira de retratá-la, encontra
uma confirmação surpreendente na maneira que filmes são lembrados, e mal lembrados. É
tentador supor que filmes são difíceis de lembrar da maneira que os sonhos são, e esta não é
uma má analogia. Como com sonhos, você às vezes se encontra lembrando o momento numa

13
Erwin Panofsky, "Style and Medium in the Moving Pictures," in Daniel Talbot, ed., Film (New York: Simon
and Schuster, 1959), p. 31. [Nota 6 do texto original.]
14
Andre Bazin, What Is Cinema?, trans. Hugh Gray (Berkeley: University of California Press, 1967), p. 110.
[Nota 7 do texto original]
15
N.T.: Termo francês que significa “pintura viva” — designa artes onde um grupo de atores e uma câmera
recriam uma pintura pré-existente.
9
película, e um procedimento de tentar lembrar é encontrar seu caminho de volta a um humor
característico que a coisa te deixou em. Mas, diferente dos sonhos, outras pessoas podem lhe
ajudar a lembrar, e de fato são muitas vezes indispensáveis no empreendimento de lembrar.
Filmes são difíceis de lembrar, da maneira que eventos reais de ontem são. E ainda, de novo
como sonhos, certos momentos de películas vistas décadas atrás vão incomodar de maneira
tão vívida quanto momentos da infância. É como se você tivesse de lembrar o que aconteceu
antes de você ter dormido. O que sugere que o cinema desperta tanto quanto o recobre16.
Pode parecer que este ponto de partida — a projeção da realidade — levanta a
pergunta sobre o meio do cinema, porque os filmes, e a escrita sobre filmes, possuem desde
seus princípios também a percepção que o cinema pode retratar o fantástico tão prontamente
quanto o natural.17 O que é verdadeiro sobre aquela ideia não é negado ao falar de filmes
como “comunicando por meio do que é real”: o deslocamento de objetos e pessoas de suas
sequências e locais naturais é em si um reconhecimento da fisicalidade de sua existência. É
como se, apesar de toda a sua insistência na novidade do meio, os teóricos antirrealistas não
conseguissem afastar a ideia de que se tratava essencialmente de uma forma de pintura, pois
foi a pintura que repudiou visualmente – de qualquer forma, renunciou – à representação da
realidade. Isto os teria ajudado a negligenciar as diferenças entre representação e projeção.
Mas um fato imediato sobre o suporte da fotografia (parada ou em movimento) é que não se
trata de pintura. (Um fato imediato da história da fotografia e que de início isto não era
óbvio.)
O que isto significa — não ser pintura? Uma fotografia não nos apresenta a
“verossimilhança” das coisas; ela nos apresenta, queremos dizer, as coisas elas mesmas. Mas
querer dizer isso pode nos deixar ontologicamente inquietos. “Fotografias nos apresentam
com as coisas elas mesmas” soa, e deve soar, falso ou paradoxal. É óbvio que uma fotografia
de um terremoto, ou de Garbo, não é um terremoto acontecendo (felizmente) ou a Garbo em
carne e osso (infelizmente). Mas isso não é muito informativo. E, além do mais, não é menos
paradoxal ou falso segurar uma fotografia de Garbo e dizer “Essa não é a Garbo”, se tudo que
você quis dizer é que o objeto que você está segurando não é uma criatura humana. Tais
problemas em notar fatos tão óbvios sugerem que não sabemos o que uma fotografia é; nós
não sabemos como situá-la ontologicamente. Nós podemos dizer que nós não sabemos como

16
N. T.: Traduzi aqui o verbo “unfold”, que possui o sentido central de “cobrir”, “tapar”, “envolver”. O
paralelismo (com algo heideggeriano nele) é que o cinema tanto descobre como cobre algo, desperta e adormece.
17
É evidente que eu não estou preocupado em negar que possam haver, através do cinema, o que Paul Rotha em
seu The Film Till Now (primeiro publicado em 1930) se refe como “possibilidades… abertas para o grande
cinema de som e visual [por exemplo, som sem diálogo, e talvez visual não-fotográfico] do futuro”. Mas
enquanto isso, os filmes têm sido o que eles têm sido. [Nota 8 do texto original.]
10
pensar a conexão entre uma fotografia e aquilo de que ela é uma fotografia. A imagem não é
uma verossimilhança; ela não é exatamente uma réplica, ou uma relíquia, ou uma sombra, ou
uma aparição tampouco, apesar de todos esses candidatos naturais partilharam uma
semelhança marcante com fotografias — uma aura18 ou história da magia que as cerca.
Alguém pode imaginar que questões similares não surgem sobre gravações de som.
Digo, no geral nós acharíamos difícil achar falso ou paradoxal dizer, ao ouvir a uma gravação,
“Isso é um corne inglês”; não há traço da tentação de adicionar (como que de alguém para si
mesmo) “Mas eu sei que na verdade é só uma gravação”. Por que? Uma criança poderia ficar
muito intrigada pela observação, dita da presença de um fonógrafo “Isso é um corne inglês”,
se alguma outra coisa já tivesse sido apontada para ela como um corne inglês. Similarmente,
ela poderia ficar muito intrigada pela observação, dita de uma fotografia, “Essa é a sua avó”.
Desde muito cedo, as crianças não ficam mais intrigadas por tais observações, felizmente.
Mas isso não significa que nós sabemos o porquê de ficarem intrigadas, ou porque não ficam
mais. E eu estou sugerindo que nós não sabemos nenhuma dessas coisas sobre nós mesmos.
É a diferença entre transcrição auditiva e visual uma função do fato de que nós
estamos totalmente acostumados a ouvir coisas que são invisíveis, não presentes para nós, não
presentes conosco? Nós estaríamos em apuros se nós não fossemos tão acostumados, porque é
da natureza da audição que o que é ouvido vem de algum lugar, enquanto o que você pode ver
você pode olhar para. Será porque sons são avisos, ou chamados; será porque nosso acesso a
outro mundo é normalmente através de vozes dele; e porque um homem pode ouvir a fala de
Deus e sobreviver, mas não se ele ver Deus, caso no qual ele não está mais neste mundo.
Talvez nós não estejamos acostumados a ver coisas que são invisíveis, ou não presentes para
nós, ou não presentes conosco; ou nós não estamos acostumados a reconhecer (exceto em
sonhos) que nós o fazemos. Ainda assim, isso parece, ontologicamente, ser o que está
acontecendo quando olhamos uma fotografia: nós vemos coisas que não estão presentes.
Alguém irá objetar: “Isso é brincar com palavras. Nós não estamos vendo algo não
presente; nós estamos olhando para algo perfeitamente presente, a saber, uma fotografia”.
Mas isso é afirmar algo que eu não neguei. Ao contrário, eu estou precisamente descrevendo,
ou querendo descrever, o que significa dizer que há essa fotografia aqui. Alguém pode sentir
que eu faço um mistério grande demais desses objetos. Meu sentimento, antes, é que nós nos
esquecemos quão misteriosas essas coisas são, e em geral quão diferentes diferentes coisas

18
N. T.: Este é o termo chave utilizado por Walter Benjamin em seus escritos de fotografia, apesar do autor
aparecer pouco de maneira direta ao longo do texto.
11
são uma da outra, como se nós tivéssemos nos esquecido como valorizá-las. Isso é um fato
que os filmes nos ensinam.
Suponha que alguém tentou dar conta da sua familiaridade com gravações dizendo
“Quando eu digo, ouvindo uma gravação, ‘Isso é um corne inglês’, o que eu realmente quero
dizer é ‘Isso é o som de um corne inglês’; além do mais, quando eu estou na presença de um
corne inglês sendo tocado, eu ainda não escuto literalmente o corne, eu escuto seu som. Então
eu não me preocupo sobre ouvir o corne quando ele não está presente, porque o que eu escuto
é exatamente o mesmo (em sentido ontológico o mesmo, e se meu equipamento for bom o
bastante, em sentido empírico o mesmo) esteja a coisa presente ou não”. O que este
palavreado chama atenção é que sons podem ser perfeitamente copiados, e que nós temos
vários interesses em copiá-los. (Por exemplo, se eles não pudessem ser copiados, as pessoas
nunca aprenderiam a falar.) É interessante que não há palavreado comparável sobre
transcrições visuais. O problema não é que fotografias não são cópias visuais de objetos, ou
que objetos não possam ser visualmente copiados. O problema é que mesmo se uma
fotografia fosse uma cópia de um objeto, por assim dizer, não teria relação com seu objeto que
uma gravação tem com o som que copia. Nós falamos que a gravação reproduz seu som, mas
não podemos dizer que uma fotografia reproduz um cenário (ou um olhar, ou uma aparência).
Pode parecer que a linguagem está carecendo de uma palavra neste local. Bem, você sempre
pode inventar uma palavra. Mas não se sabe onde fixar a palavra aqui. Não é que não existam
cenários para se ver, nem mesmo que um cenário tenha por definição ser merecedor de ser
visto (portanto não poderia ser o tipo de coisas que sempre estamos vendo), enquanto sons
estão sendo pensados aqui, não sem plausibilidade, como o que sempre ouvimos. Um cenário
é um objeto (em geral, um objeto muito grande, como o Grand Canyon ou Versailles, embora
crianças pequenas sulistas são frequentemente tidas, pela pessoa que cuida delas, como
cenários19) ou um evento extraordinário, como a aurora boreal; e o que você vê, quando você
avista algo, é um objeto — de qualquer modo, não é a vista de um objeto. Nem os
“sense-data”20 ou “superfícies” do epistemólogo fornecerão descrições corretas aqui. Pois não
vamos dizer que as fotografias nos fornecem os sense-data dos objetos que elas contêm,
porque se os sense-data das fotografias fossem iguais aos dados dos sentidos dos objetos que
19
N. T.: Referência de Cavell a tendência no sul dos EUA de chamar crianças pequenas de uma “sight”,
possivelmente conectado com a ideia de que devemos ficar de olho nelas na atividade de cuidar.
20
N. T.: Termo anglófono que designa dados que os sentidos capturam (ou que esperamos que eles capturem) de
maneira imediata e, muitas vezes, sem possibilidade de dúvida. Eles ocorrem anteriormente a processos
cognitivos superiores trabalharem com ele — reconhecer uma maçã como tal seria posterior a receber, como um
dado de nosso sentido, a sensação de vermelho e uma certa forma. A entrada da Stanford (em inglês) é
esclarecedora: Hatfield, Gary, "Sense Data", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2021 Edition),
Edward N. Zalta (ed.), disponível em: < https://plato.stanford.edu/archives/fall2021/entries/sense-data/ >.
12
elas contêm, não poderíamos diferenciar uma fotografia de um objeto a partir do próprio
objeto. Dizer que uma fotografia é da superfície de objetos sugere que ela enfatiza a textura.
O que está faltando não é uma palavra, mas, por assim dizer, algo na natureza — o fato que
objetos não fazem cenários, ou têm cenários. Eu tenho vontade de dizer: objetos estão
próximos demais de seus cenários para lhes ceder para reprodução; para reproduzir os
cenários que eles (como que) fazem, você precisa reproduzir eles — fazer um molde, ou
tomar uma impressão. É isso que uma fotografia faz? Nós podemos, como Bazin faz
ocasionalmente, tentar pensar em uma fotografia como um molde visual ou uma impressão
visual. Minha insatisfação com essa ideia é, penso eu, que moldes físicos e impressões
possuem claros procedimentos para nos livrarmos de seus originais, enquanto numa
fotografia, o original pode estar tão presente quanto antes. Não presente como ele uma vez
esteve para a câmera; mas ela é só a máquina do molde, não o molde ele mesmo.
Fotografias não são feitas a mão; elas são manufaturadas. E o que é manufaturado é
uma imagem do mundo. O inescapável fato do mecanismo ou do automatismo na produção
dessas imagens é uma característica que Bazin aponta como “[satisfazendo], de uma vez por
todas e em sua própria essência, nossa obsessão com o realismo”.21
É essencial chegar na profundidade correta desse fato do automatismo. É, por
exemplo, enganoso falar, como Bazin faz, que “a fotografia libertou as artes plásticas da sua
obsessão com a semelhança”22 porque isso faz parecer que (e de fato seguidamente parece) a
fotografia e a pintura estavam em competição, ou que a pintura tinha desejado algo que a
fotografia invadiu e satisfez. Até agora, a fotografia satisfez um desejo não confinado ao
pintores, mas o desejo humano, intensificado no Ocidente desde a Reforma, de escapar da
subjetividade e do isolamento metafísico — um desejo pelo poder de alcançar este mundo,
tendo tentado por tanto tempo, ao fim sem esperança, de manifestar fidelidade a outro. E a
pintura não foi “liberta” — e não pela fotografia — de sua obsessão com a semelhança. A
pintura, em Manet, foi forçada a esquecer a semelhança exatamente por causa de sua própria
obsessão com a realidade, porque as ilusões que ela havia aprendido a criar não davam a
convicção na realidade, a conexão com a realidade, que ela desejava. 23 Alguém poderia dizer
que mesmo ao se afastar da semelhança, a pintura livrou a fotografia de ser inventada.
E se o que se quer dizer é que a fotografia libertou a pintura da ideia de que a pintura
deveria ser um retrato (isto é, de ou sobre alguma outra coisa), isso também não é verdade. A

21
Bazin, op. cit. p. 12. [Nota 9 do texto original.]
22
Loc. cit. [Nota 10 do texto original. ]
23
Ver Michael Fried, Three American Painters (Cambridge, Mass.: Fogg Art Museum, Harvard University,
1965), n. 3; e "Manet's Sources," Artforum, March 1969, pp. 28-79. [Nota 11 do texto original.]
13
pintura não se libertou, não se forçou a se manter apartada, de toda referência objetiva até
muito depois do estabelecimento da fotografia; e então não porque finalmente ocorreu aos
pintores que pinturas não eram retratos, mas porque aquela era a maneira de manter a conexão
com (a história d)a arte da pintura, manter a convicção em seus poderes de criar pinturas,
objetos significativos em tinta.
E estamos certos que a negação final da referência objetiva amontoa para uma
rendição completa da conexão com a realidade — uma vez que, isto é, nós tenhamos desistido
da ideia que “conexão com a realidade” deva ser entendido como “provisão de semelhança”?
Podemos ter certeza que ver uma pintura como morta sem realidade, e a visão da pintura
como morta com ela, estão ambas precisando de desenvolvimento nas perspectivas que cada
uma toma sobre realidade e sobre pintura. Podemos dizer, pintura e realidade não mais
garantem uma à outra.
Poderia ser dito, além do mais, que o que a pintura queria, ao querer uma conexão com
a realidade, era um senso de presentidade24 — não exatamente a convicção da presença do
mundo para nós, mas a nossa presença para ele. Em alguma altura, o descompasso da nossa
consciência em relação ao mundo interpôs a nossa subjetividade entre nós e a nossa presença
no mundo. Então a nossa subjetividade se tornou o que está presente para nós, a
individualidade tornou-se isolamento. O caminho para a convicção na realidade foi através
do reconhecimento desta presença infinita do eu. O que se chama de expressionismo é uma
possibilidade de representar esse reconhecimento. Mas seria, eu acho, mais verdadeiro pensar
no expressionismo como uma representação de nossa resposta a este novo fato da nossa
condição — nosso horror em nós mesmos em isolamento — antes de uma representação do
mundo de dentro da condição de isolamento ela mesma. Seria, nessa extensão, não uma nova
maestria do destino ao criar a individualidade pessoal [selfhood] contra todas as
probabilidades; seria o selamento do destino do eu através de sua teatralização. Além do
desejo e sua realização, a arte é exibição.
Falar da nossa subjetividade como o caminho de volta para nossa convicção na
realidade é falar de romantismo. Talvez o romantismo possa ser entendido como o confronto
natural entre a representação e o reconhecimento de nossa subjetividade (entre o encenar e o
enfrentar de nós mesmos, como psicanalistas mais ou menos diriam). Daí Kant e Hegel; e daí
Blake ocultando o mundo no qual ele acredita; daí Wordsworth competindo com a história da
poesia ao se excluir na escrita, escrevendo-se de volta no mundo. Um século mais tarde,

24
Ver Michael Fried, "Art and Objecthood," Artforum, June 1967; relançado em Gregory Battcock, ed., Minimal
Art (New York: E. P. Dutton, 1968), pp. 116-47. [Nota 12 do texto original.]
14
Heidegger está investigando o Ser ao investigar o Dasein (porque é no Dasein que o Ser se
revela melhor, a saber, como questionável), e Wittgenstein investiga o mundo (“as
possibilidades de fenômenos”25) ao investigar o que nós dizemos, o que estamos inclinados a
dizer, o que nossas imagens de fenômenos são, para arrancar o mundo de nossas posses para
que possamos possuí-lo novamente. Então, a grande pintura recente que Fried descreve como
objetos de presentidade seria o mais recente esforço da pintura para manter sua convicção em
seu próprio poder de estabelecer uma conexão com a realidade – permitindo-nos a presença
de nós mesmos, fora da qual não há esperança para um mundo.
A fotografia superou a subjetividade de uma maneira que a pintura não sonhava, uma
maneira que não tanto derrota o ato de pintura como o escapa por completo: pelo
automatismo, removendo o agente humano da tarefa de reprodução.
Alguém poderia dizer “Poderíamos, portanto, dizer que a fotografia nunca competiu
com a pintura”. O que aconteceu foi que, em algum momento, a busca pela realidade visual,
ou pela “memória do presente” (como disse Baudelaire), se dividiu. Para manter a convicção
na nossa ligação com a realidade, para manter a nossa presença, a pintura aceita a recessão do
mundo. A fotografia mantém a presentidade do mundo ao aceitar nossa ausência dele. A
realidade numa fotografia está presente para mim enquanto eu não estou presente para ela; e
um mundo que eu conheço, e vejo, mas ao qual eu ainda assim não estou presente (através de
nenhuma falha da minha subjetividade), é um mundo passado.

Capítulo 3: Fotografia e tela [Photograph and Screen]


Vamos notar o sentido específico no qual fotografias são do mundo, da realidade como
um todo. Você sempre pode perguntar, apontando para um objeto numa fotografia —
digamos, um prédio — o que está atrás dele, totalmente obscurecido por ele. Isso só faz
sentido por acidente quando perguntado sobre uma pintura. Você sempre pode perguntar, de
uma área fotografada, o que está adjacente àquela área, além do quadro. Isso em geral não faz
sentido quando perguntado sobre uma pintura. Você pode perguntar essas questões de objetos
em fotografias porque elas tem respostas na realidade. O mundo da pintura não é contínuo
com o mundo de seu quadro; em seu quadro, o mundo encontra seus limites. Nós podemos
dizer: uma pintura é um mundo; uma fotografia é do mundo. O que acontece numa fotografia
é que ela chega ao fim. A foto é cortada, não necessariamente por um cortador de papel ou
por tapar algo, mas pela própria câmera. A câmera a corta pela quantidade de vista que ela

25
N. T.: Cavell não coloca a referência, mas é §90 da primeira parte das Investigações filosóficas.
15
aceitará; cortar, tapar, ampliar, predeterminar a quantidade depois do fato. [...]26 A câmera,
sendo finita, recorta uma porção de um campo indefinidamente maior; porções contínuas
desse campo poderiam ser incluídas na fotografia batida; em princípio, tudo poderia ser
batido. E assim, objetos em fotografias que vão além das borda não parecem cortados; eles
foram mirados, fotografados, parados ainda vivos. Quando uma fotografia é recortada, o resto
do mundo é cortado para fora. A presença implícita do resto do mundo, e sua explícita
rejeição, são tão essenciais para a fotografia como o que ela explicitamente apresenta. A
câmera é uma abertura numa caixa: esse é o melhor emblema para o fato de uma câmera focar
num objeto é manter o resto do mundo distante. A câmera foi elogiada por ampliar os
sentidos; pode, à medida que o mundo avança, merecer mais elogios por confiná-los,
deixando espaço para o pensamento.
O mundo de uma imagem em movimento é colocado em tela. A tela [de películas] não
é um suporte, não como uma tela branca; não há algo no que se apoiar, nesse sentido. A tela é
uma barreira. O que a tela de prata projeta? Ela me projeta do mundo que contém – isto é, me
torna invisível. E protege esse mundo de mim – isto é, protege de mim a sua existência. O
fato de o mundo projetado não existir (agora) é a sua única diferença em relação à realidade.
(Não há nenhuma característica, ou conjunto de características, em que seja diferente. A
existência não é um predicado.) Por ser o campo de uma fotografia, a tela não tem moldura;
isto é, sem fronteira. Seus limites não são tanto as bordas de uma determinada forma, mas as
limitações, ou capacidade, de um recipiente. A tela é uma moldura; o quadro é todo o campo
da tela — assim como um quadro de filme é todo o campo de uma fotografia, como o quadro
de um tear ou de uma casa. Nesse sentido, a moldura da tela é um molde ou forma.27

26
N. T.: Recorte da p. 24 do livro original por questões de escopo.
27
Quando a pintura descobriu como reconhecer o fato de que as pinturas tinham contornos, os contornos
tornaram-se formas, não no sentido de padrões, mas no sentido de recipientes. Uma forma poderia então dar
contorno ao que continha. E o conteúdo poderia transferir o seu significado como pintura para aquilo que o
contém. Então o contorno permeia, como a gravidade, ou a energia, ou o ar. (Ver Michael Fried, "Shape as
Form," Artforum, November 1966; republicado em Henry Geldzahler's catalogue, New York Painting and
Sculpture: 1940-1970 [New York: E. P. Dutton, 1969].)
Até onde sabemos, esta não é uma possibilidade do filme ou do quadro da tela – o que apenas repete o
fato de que um filme não é uma pintura. A característica mais importante do formato da tela continua sendo o
que era desde o início dos filmes: sua escala, sua grandeza absoluta. A variação de formato – por exemplo,
CinemaScope – é uma questão determinada, até onde posso dizer, por questões de conveniência e
inconveniência, e pela moda. Embora talvez, como na pintura, a declaração da cor como tal exigisse ou se
beneficiasse das extensões ainda maiores de telas mais largas.
Pode parecer obviamente falsa ou tola a ideia de que a diferença ontológica essencial entre o mundo tal
como é e como é projetado é que o mundo projetado não existe; porque isso ignora — ou talvez afirma de
maneira obscura — uma diferença totalmente óbvia entre eles, a saber, que o mundo exibido é bidimensional.
Não nego a obscuridade, mas é melhor uma obscuridade real do que uma falsa clareza. Pois o que é
bidimensional? O mundo que é exibido não o é; seus objetos e movimentos são tão tridimensionais quanto os
nossos. A tela em si, então? Ou as imagens nele? Parecemos compreender o que significa dizer que uma pintura
é bidimensional. Mas isso depende da nossa compreensão de que o suporte sobre o qual a tinta é colocada é um
16
O fato que numa imagem em movimento sucessivos quadros de filme são feitos caber
perfeitamente na moldura fixa da tela resulta em uma moldura fenomenológica que é
extensível e contraível de forma indefinida, limitado na pequenez do objeto que pode
apreender apenas pelo estado de sua tecnologia, e na grandeza apenas pela extensão do
mundo. Retrair a câmera e movê-la são duas maneiras de estender o quadro; um close-up é de
uma parte do corpo, ou de um objeto ou de um pequeno conjunto de objetos, apoiado e
reverberando toda a estrutura da natureza. O quadro alterador é a imagem da atenção perfeita.
No início da sua história, o cinema descobriu a possibilidade de chamar a atenção para
pessoas e partes de pessoas e objetos; mas é igualmente uma possibilidade do meio não
chamar a atenção para eles, mas sim deixar o mundo acontecer, deixar que as suas partes
chamem a atenção para si de acordo com o seu peso natural. Esta possibilidade é menos
explorada que o seu oposto. Dreyer, Flaherty, Vigo, Renoir e Antonioni são mestres nisso.

objeto tridimensional e que a descrição desse objeto não será (excepto num sentido excepcional ou vazio) a
descrição de uma pintura. Mais significativamente, depende da nossa compreensão do suporte como limitador da
extensão da pintura em duas dimensões. Esta não é a relação entre a tela e as imagens projetadas nela. Parece
correto dizer que a tela é bidimensional, mas isso não significaria que o que você vê ali tenha a mesma
dimensionalidade – assim como no caso da tinta, de seu suporte e da pintura. As sombras são bidimensionais,
mas são projetadas por objetos tridimensionais – traços de opacidade, não gradações dela. Isto sugere que
fenomenologicamente a ideia de bidimensionalidade é uma ideia de transparência ou de contorno. Imagens
projetadas não são sombras [shadows]; antes, alguém poderia dizer, elas são tons escuros [shades]. [Nota 13 do
texto original.]
17

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