Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
formigaeletrica.com.br /quadrinhos/artigos-hq/druuna-ou-uma-reflexao-sobre-a-natureza-da-arte/
Rafael Ranieri
Vamos assumir, para efeitos de argumentação, que a HQ de Serpier é sim, uma forma de
arte avançada – apenas um aceno aos seus detratores, pois nossa posição oficial é
absolutamente ativa. Mas por que ainda temos resistência em lidar com essa ideia?
Chegaremos lá. Para entender melhor o impacto que Druuna provoca, é preciso primeiro
entender o que a HQ é. E o que ela é trata-se da herança de algumas das melhores
linhasgens dos quadrinhos. Mas antes, alguns avisos:
Paolo Eleuteri Serpieri foi alguém com medo de se arriscar ou se expor. Desde cedo, sua
veia artística se sobrepunha à outras qualidades – a parcimônia inclusa. Veneziano um
ano antes do termo da Segunda Guerra, Serpieri passou a maior parte de sua vida em
Roma, onde, sendo um apreciador das artes, foi profundamente influenciado pelos
movimentos artísticos italianos – incluindo o Renascimento e Barroco. Imerso na beleza
da Cidade Eterna, o artista estudou arquitetura e pintura na Accademia di Belle Arti di
Roma , onde chegou a ser tutelado por Renato Gattuso , grande expoente do
neorrealismo italiano.
Donne italiano
Mais importante e diretamente relevante para o caso de Serpieri, esse período que o
precede também representa o dos quadrinhos adultos na Itália, onde se proliferaram
diversos títulos qasi -eróticos, eróticos ou mesmo pornográficos. A lista é imensa, e velha
é conhecida dos italianos como Zora la Vampira, Maghella, Biancaneve, Vartan, Jacula,
Jolanda de Almaviva, Yra, Sukia e, mais notavelmente, Lucifera , que monopolizou a
imaginação masculina italiana da mesma forma que sua editora , a Ediperiodici ,
monopolizou o mercado. Todas as mulheres, independentes, sexualmente desinibidas e
essencialmente malignas. Isso não é mera coincidência.
Como diz Simone Castaldi no livro Drawn
and Dangerous , essas anti-heroínas dos
neri e vietati representam, para o público
masculino italiano, uma maneira de
exorcizar o medo da emancipação
feminina durante o boom econômico
vivido no país após a década de 60. A
sociedade patriarcal italiana estava
lentamente redefinindo suas hierarquias
– uma transformação o homem italiano
não estava. Entenda esta relação do
homem italiano com o símbolo dessa
mulher nas HQ´s é extremamente
importante para entender a
apresentação da visão de Serpieri
relação em Druuna.
Não obstante, o trabalho de Crepax foi influenciado por outro personagem importante da
ficção científica de HQ, que também exerceu influência – em alguma medida – sobre a
Druuna de Serpieri, e que é a ponte para outra grande linhagem dos quadrinhos que serve
de fundamento para o trabalho do artista veneziano. Barbarella , Jean-Claude Forest ,
apresentado em 1962, foi uma das primeiras grandes protagonistas femininas de uma
HQ de ficção científica de teor – senão a primeira. E sua posição como ícone do
feminismo e da posição contracultura um contraponto interessante com Druuna , a qual
influenciou. Mas retornaremos a isso depois.
O que é mais importante nesse momento entender que, na França, Barbarella e Forest,
outros autores e artistas – destaca -se Moebius e Dr. a atenção do grande público para
esse gênero. A menção aos dois e à revista que fundaram, a lendária Métal Hurlant , é
particularmente relevante por dois motivos: primeiro, como aqui acima, Serpieri é
publicado pela primeira vez nos quadrinhos em 1975, mesmo no lançamento da primeira
edição da revista francesa. A transição do interesse de Serpieri pelos westernspara o sci-
fi não foi totalmente aleatório, e tem muito a ver sim com a influência da retomada
francesa do sci-fi sobre o artista italiano.
Embora nunca explicitado pelo autor, pois o contexto é mais importante do que a
informação aqui, o período em questão na narrativa é conhecido como “Era dos
Homens”, e acredita-se que seja consequência, claro, de uma grande guerra de escala
apocalíptica . De toda forma, isso é história, e a população local tem preocupações mais
imediatas. Uma doença altamente desconhecida, que é tão conhecida como todos os
seres humanos difíceis de identificar – uma dose tão básica de Lovecraft para piorar o
que já é tão misteriosas para todos quantos tentaculares – dose básica de Love já é
misteriosamente complicada. Como medida preventiva, os habitantes são obrigados a
tomar um soro, que é distribuído em lugares que parecem ter saído da mente doentia de
um frequentador do SUS.
Essa visão lúgubre foi destilada através dos primeiros volumes, afogado em um
pessimismo soturno, muito distante do ímpeto vanguardista de Forest ou do esoterismo
de Moebius, e mais próximo do zeitgeist de um mundo cansado da Guerra Fria e agora
assolado por uma incompreensível e imparável . As páginas de Druuna são e são
infectados por Druuna são e correçados pela população saudável, e uma imagem de uma
espécie condenada – aparentemente – por suas próprias ações, é uma metáfora tão
poderosa que se sobressai até mesmo sobre uma pornografia explícita que desfila por
suas pornografias. Ou, talvez, exatamente por causa dela.
Adiante, a saga de Druuna entra em loops , que, no geral, representa uma visão de
Serpieri sobre a natureza humana, onde a beleza perfeita e passiva de Druuna se opõe
aos avanços tecno-orgânicos ouiundos de ações eminentemente masculinas – todos os
coadjuvantes a sua volta. Se descobrir que os restos da busca da humanidade foram
identificados de novo em uma nave enorme, vivendo para perpetuar a dessa nave
espacial do “estrela” – um homem chamado Lewis , que também foi o primeiro
comandante nave. Entretanto, Lewis enfrenta muito um problema: o computador da nave,
Delta , tomou o controle de tudo e não permite que Lewis morra.
Fantasias de poder
Como diz o filósofo ético Peter Singer em seu livro Ética Prática , o ato sexual em si não
significa absolutamente nada – muito menos para quem não está participando dele.
Tudo o que nós entendemos, promulgamos e julgamos em relação ao sexo são
construções sociais, culturais e históricas. O uso da pornografia pelo mundo
contemporâneo se encaixa nesse contexto. Pense em qualquer ato pornográfico que
você já tenha visto (somos todos adultos aqui). São os elementos da representação
pornográfica que realmente estimulam ou desestimulam o espectador – a diferença
entre um filme estrelado por Sasha Gray e aquela vez em que você pegou seus pais na
cama (sinto muito por te lembrar disso).
No geral, fazer alguma coisa parecer estimulante não é tão fácil. O fato é que o tipo de
desenho é prático e porque ele gosta, ele é realmente muito bom nisso. As
representações eróticas são extremamente estimulantes, pois residem num limiar
delicado entre o realismo das e o absurdo do contexto fazendo com que, suas mesmas
formas que a saga Druuna não seja um primor narrativo, o leitor seja arrastado por outros
estímulos dentro daquele universo. O sexo apresentado por Serpieri é envolvente – até a
página dois. Pois, em algum momento, o fiapo de trama vem à tona. E o que importa.
A maior parte do sexo em Druuna não é consensual. E não, não há como dourar a
medicina. São 10 volumes de páginas e mais páginas de violação. Dada uma habilidade
de Serpieri em desenhar e criar ambientes envolventes – principalmente para o fã de
ficção científica, normalmente deixamos isso passar. Mas em algum momento, a
pornografia perde seu impacto inicial, e algumas características começam a se
sobressaltar – e não é por falta de esforço do autor de tentar impedir isso. Uma das
razões que dizemos que a narrativa de Druuna é, no mínimo, um tanto abstrata pela, é
porque existe pouquíssimo texto adornando os belos quadros, mesmo da protagonista;
ou seja, uma maneira de apreciar o corpo feminino para interagir com a mulher em si.
Entende para onde isso vai?
Percebam que, nesse caso, o problema não é exatamente a representação da cena em si;
é o contexto que torna todo o ato absolutamente desprezível e, quando percebe o prazer
evocado por ela em relação ao contexto dado pela fala no final dele, vem a náusea. Pois
existem poucas coisas tão perigosas quanto relativizar um tipo de ideia baseada na
vítima; um delírio claramente masculino, e que pode ter consequências severas se sua
audiência para uma mente já não é muito estável. Não basta dizer “ eu, como leitor,
jamais faria algo assim ”. Nesses momentos, é necessário abandonar essa mentalidade
pequena-burguesa e entender que a arte, pode sim, ter resultados muito graves.
Neste ponto, o leitor deve estar questionando se continuar publicando Druuna é viável, ou
mesmo moralmente viável hoje. Sobre isso, há que se relembrar coisas que já foram
ditas: a obra possui sim, um contexto narrativo. E esse contexto apresenta aspectos da
nossa organização e existência como espécies que não são de forma diferente. E se
consideramos que um papel da arte não é apenas apresentar o que é belo nos provoca
deleite, mas provocar e explicitar o que também rejeitamos muito e que nos incomoda,
Druunaresidir num limiar, no mínimo, digno de atenção. Para além dos peitos, além do
sexo e naturalmente estimulantes –
principalmente dentro de padrões de
beleza disseminados – existem
proposições estupidamente
contundentes, oriundas de um mundo
que enlouqueceu e deca.
Se o amigo leitor estiver disposto, podemos apresentar uma proposta ainda da crítica ao
trabalho do italiano Vamos falar sobre ecofeminismo .
Gaia ciência
“Dizemos que a ciência «explica», mas, na realidade, apenas «descreve». Descrevemos hoje
melhor, mas explicamos tão pouco quanto todos os nossos predecessores. Descobrimos
uma percepção de ocorrência múltipla e o homem ing investigador das civilizações mais
antigasbia apenas de duas coisas'causa' e 'e 'e dizer', como se costumava dizer. E
deduzimos: isto e isto tem de se dar primeiro para que se siga aquilo – mas, com isso, não
compreendemos absolutamente nada.” – Nietzche
O Ocidente é herdeiro das tradições platônica e aristotélica. O que, para todos os efeitos,
significa que, ao menos em tese, buscamos um objetivismo absoluto; um distanciamento
que nos permite compreender o todo sem sermos “contaminados”, num sentido
metodológico, pelo meio ambiente. Assim, nossa compreensão do mundo é sempre
dualista, binária, opondo qualidades objetivas e intuitivas, e onde existe uma relação
poder de um sobre o outro. Dos dualismos mais comuns, podemos perceber valores que
se disseminaram desde o aristotelismo, até mais recentemente com os positivistas –
entre eles, mente vs. corpo, civilização vs. natureza, o “eu” vs. o “outro” e, claro, homem
vs mulher.
Após o conjunto não apenas físico, mas também moral e sociológico que foi a Segunda
Guerra, e com a ascensão da Era Atômica que, não apenas não aprendeu nada com a
Guerra já pensou no preparo para uma escalada possivelmente terminal de Violência,
movimentos políticos, sociais e culturais foram questionados com maior precisão e
veemências como estruturas de poder que perpetuam esse ciclo de violência.
Entre os anos 60 e 70, surge uma nova perspectiva que analisa essas estruturas, dessa
vez não através de objetos de estudos isolados, como gêneros, etnias ou o meio-
ambiente, mas sim lança uma luz sobre o todo. O ecofeminismo busca fazer uma
associação importante entre a pressão realizada pelo homem branco contra as mulheres
e outras etnias e seu comportamento em relação ao meio-ambiente e à natureza.
Visto que, submissos , mulheres são A aproximação de Druuna com a esfera naturalista
degradantes mesmo, submissos ou é uma demonstração latente da visão de Serpieri
complexos – como são apresentados do feminino como representação da vida e da
em geral, não são de ser uma estratégia nutrição.
interessante. Pensar que os elementos
de horror e pornografia em Drunna servem para questionar como temas ecofeministas
funcionam dentro de uma HQ, que presumivelmente serão lidas por homens brancos que
se deleitam em imagens sexualmente violentas, é um ponto central para redimir a
pornografia exegética de Serpieri.
O fato de autor reafirmar várias vezes seu como um símbolo de pureza parece um toque
de sadismo sobre sua pornografia reveladora, mas diante desse subtexto ecofeminista
oferecido pela ambientação da narrativa nos faz perceber que, na verdade, os abusos
contínuos um homem muito profundo, e que mais profundo significado uma realidade,
com muitos homens, lidar como, um pouco mais importante a lidar. Mais do que uma
fantasia de poder, é uma crítica ecofeminista severa à maneira como esse poder
perverte, corrompe e extrapola ainda mais amoralidade inerente a essa epistemologia
masculina. O fato de Druuna permanecerá essencialmente boa – embora nunca nunca –
em um mundo doente é uma celebração da figura feminina como fundamento de uma
existência humana mais ética, mais isonômica e, em última instância,
Então, voltamos à grande cruzilhada deste texto, apresentado logo no início deste: 1 –
pornografia pode ser arte?; 2 – e, Druuna pode ser qualificado como tal?; 3 – e, neste
caso, a escolha de pornografia apresentada pelo tipo autorredimida pelo ensejo na qual é
apresentada? As respostas objetivas que este colunista pode oferecer são: 1 – Não sei; 2
– Não faço a menor ideia; 3 – Talvez sim, talvez não, mas o mais provável é “quem
sabe?”
Podemos entender seu desapontamento, amigo leitor, mas você deve ser indulgente
conosco. Resgato novamente a minhas próprias palavras: “ É difícil para maior parte das
pessoas, em qualquer parte do mundo, admitir que pornografia pode ser arte e – pior – arte
que pode interessá-las de alguma forma. ” O problema, aparentemente, não é aqui o que
fazer com a definição de de- finição, como aqui no início do artigo elusivo e, para todos
os mecanismos protegidos – instalados. Porque o cerne do questionamento que ronda
Druuna e Serpieri não é o que é feito com a arte, mas o que é feito com o sexo.
Como mostramos a introdução do tópico, Singer nos aponta para o fato de que nada
relacionado ao poder sexual é humano, de fato, relacionado ao ato, mas sim, a um
universo criado em si mesmo em torno dele. Então, por uma série histórica e social, o
sexo se tornou culturalmente repreensível de significado publicamente, assim como uma
ferramenta poder e dominação na esfera. Dessa forma, toda e toda ficção de ficção que
se utiliza como motor da narrativa – Druuna – necessariamente qualquer processo de
fabricação de sexo antes de experiência arte.
Para pensadores, como Alva Noe em seu Strange Tools: Art and Human Nature ,
pornografia porque ela não cumpre uma função específica, a masturbatória, que tira do
pode ser a possibilidade de um livro imer e fruto da obra per se . E que, por ser incapaz de
permitir ao seu espectador transcender e questionar, ela não pode ser arte. É um
argumento muito parecido com aquele estabelecido por hermeneutas como Ga
funcionar em sua função e que dizem, se o visualizador não é de alguma forma
refigurado e/ou ressignificado que imergir numa obra, então ou a obra em cumprir sua
como arte, ou ela simplesmente não é arte.
Que tipo de reflexão um filme como Transformers oferece? Existe uma distinção
qualitativa tão grande desta relação à, por exemplo, um clássico do soft porn como
Emmanuelle no Espaço ? São obras de consumo, que cumprem uma função específica:
entretenimento. E ninguém duvida nem por um instante que o cinema seja uma forma de
arte, pois na mesma medida em que o cinema oferece Transformers , ele oferece
Bergman . E a mesma lógica se aplica aos quadrinhos – na mesma medida em que
oferece super heróis descartáveis, oferece Eisner e Tezuka. A pornografia pode
certamente ser uma forma de arte, se a arte é compreendida no sentido de ofício; como
muitas outras, pode ser tanto uma arte aplicada (tem sua utilidade de alienação e
consumo) ou uma bela arte (criada pela sua beleza estética e ajuizada pela sua beleza
inata).
E mesmo violência é algo tão publicamente condenável quanto o sexo mas que não
recebe nem campo moral ou mesmo tipo de repreensão. Doses excessivas de violência
não causam impacto nem são nem mesmo sexo explícito – motivo pelo qual o terror é
considerado uma forma de arte natural, mas pornografia não. A arte, sob medidas o
crítico de uma lógica e filosófica, não permite dois pesos duas.
O que leva justamente para uma extensão do que não apresenta razão não ser aplicado
sobre a pornografia: sim, existem principalmente problemas sobre essa maneira de
entretenimento que ela produz, o tipo de argumento de coisa que ela produz e seus
efeitos sobre as mentes não muito estáveis de seus consumidores. Entretanto, se
argumenta dentro de uma lógica ética, como uma proposta por Singer, o problema não
está na pornografia em si, mas enquanto ela é aplicada como conceito. O que significa
que ela é hoje não necessariamente sendo o que ela significa.
E se o efeito for provocado pelo grotesco e pelos abusos refigura sua própria visão do
sexo, então talvez Druuna possa funcionar sua obra enquanto existirem perguntas
enquanto escolhas, assim como pode não ser com o julgamento de gosto do leitor
compatível. Mas não questiona sua validade como um objeto de arte e entretenimento e,
em alguma medida, de reflexão.
Ou talvez todo esse argumento seja vazio, e falte sensibilidade e alteridade para este
colunista. Não cabe dizer. Cabe apenas entender que, após contemplar a obra de Paolo
Serpieri, o leitor – para bem ou para mal – nunca mais será mesmo.