Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A
N R
A
“Non creda donna Berta e ser Martino...”1
— Divina comédia, Paraíso,
Dizia o evangelista: Nolite eri sicut equus et mulus quibus nos est
intellectus. Não sejais como o cavalo e a mula, que carecem de
entendimento. A massa escoiceia e não entende. Pretendemos fazer o
contrário. Extraiamos da jovem arte seu princípio essencial, e então
veremos em que sentido profundo ela é impopular.
A arte artística
Se a nova arte não é inteligível para todo o mundo, quer dizer que seus
meios não são genericamente humanos. Não é uma arte para os
homens em geral, mas para uma classe muito particular de homens
que poderá não valer mais do que as outras, embora seja
evidentemente distinta.
Isto quer dizer que para a maioria da gente o gozo estético não é uma
atitude espiritual diversa em essência da que habitualmente adota pelo
resto da vida. Só se distingue desta em qualidades adjetivas: é, talvez,
menos utilitária, mais densa e sem conseqüências penosas. Mas, em
de nitivo, o objeto de que se ocupa na arte, o que serve de m para
sua atenção, e com ela às demais potências, é o mesmo que na
existência cotidiana: guras e paixões humanas. E chamará arte ao
conjunto de meios pelos quais lhe é proporcionado esse contato com
coisas humanas interessantes. De tal sorte que só tolerará as formas
propriamente artísticas, as irrealidades, a fantasia, na medida em que
não interceptem sua percepção das formas e peripécias humanas. Tão
rápido quanto estes elementos puramente estéticos dominam, não
podendo alcançar bem a história de João e Maria, o público ca
perdido sem saber o que fazer diante do cenário, do livro ou do
quadro. É natural; não conhece outra atitude diante dos objetos senão
a prática, a que nos leva à paixão, intervindo sentimentalmente em si.
Uma obra que não lhe convide a esta intervenção deixa-lhe sem papel.
Não discutamos agora se é possível uma arte pura. Talvez não seja,
mas as razões que nos conduzem a esta negação são um pouco longas
e difíceis. Mais vale, pois, deixar o tema intacto. Ademais, não é muito
importante para o que vamos falar agora. Ainda que uma arte pura
seja impossível, não há dúvida alguma de que existe uma tendência à
puri cação da arte. Esta tendência a uma eliminação progressiva dos
elementos humanos, demasiado humanos, que predominavam nas
produções romântica e naturalista. E neste processo, poderá se chegar
a um ponto em que o conteúdo humano da obra seja tão escasso
quanto o que não é visto. Então teremos um objeto que só pode ser
percebido por quem possua esse dom peculiar da sensibilidade
artística. Será uma arte para artista, e não para a massa dos homens;
será uma arte de casta, e não demótica.
Eis aqui por que a nova arte divide o público em duas classes de
indivíduos: os que a entendem e os que a não entendem; isto é, os
artistas e os que não o são. A nova arte é uma arte artística.
E não pretendo agora endossar este novo modo de arte, menos ainda
denegrir a usada no último século. Limito-me a sua liação, como faz
o zoólogo com duas faunas antagônicas. A nova arte é um fato
universal. Faz vinte anos, os jovens mais alertas de duas gerações
sucessivas — em Paris, em Berlim, em Londres, Nova York, Madri —
estão espantados pelo fato inelutável de que a arte tradicional não lhes
interessava; mais ainda, lhes repugnava. Com esses jovens, convém
fazer das duas uma: ou fuzilá-los ou esforçar-se para os compreender.
Eu optei por esta segunda. E logo notei que neles germina um novo
sentido da arte, perfeitamente claro, coerente e racional. Longe de ser
um capricho; seu sentimento signi ca o resultado inevitável e fecundo
de toda a evolução artística anterior. O caprichoso, o arbitrário e, por
conseqüência, estéril, é resistir a este novo estilo, obstinando-se na
reclusão dentro de formas já arcaicas, exaustas e periclitantes. Em arte,
como na moral, o dever não depende de nosso arbítrio; há que aceitar
o imperativo de trabalho que a época nos impõe. Esta docilidade à
ordem do tempo é a única probabilidade de acertar que o indivíduo
tem. Ainda assim, talvez nada consiga; mas seu fracasso é muito mais
seguro, se se obstina em compor uma ópera wagneriana mais, ou uma
novela naturalista.
Por último, o pintor, indiferente, não faz mais que tar em coulisse.6
Despreocupado, olha o acontecimento; está, como se costuma dizer, a
cem mil léguas do fato. Sua atitude é puramente contemplativa e,
convém ainda dizer que não o contempla em sua totalidade; o
doloroso sentido interior do fato está fora de sua percepção. Só está
atento ao exterior, às luzes e sombras, aos valores cromáticos. No
pintor, chegamos ao máximo distanciamento e à mínima intervenção
sentimental.
O pesar inevitável desta análise estaria compensado se nos permitisse
falar com clareza de uma escala de distâncias espirituais entre nós e a
realidade. Nessa escala, os graus de proximidade equivalem aos graus
de participação sentimental no fato; os graus de distanciamento, pelo
contrário, signi cam graus de liberação em que objetivamos o
acontecimento real, convertendo-o em puro tema de contemplação.
Situados em um dos extremos, encontramo-nos com um aspecto do
mundo — pessoas, coisas, situações —, que é a realidade “vivida”; do
outro extremo, ao contrário, vemos tudo em seu aspecto de realidade
“contemplada”.
Quer dizer que, na escala das realidades, a realidade vivida tem uma
peculiar primazia que nos obriga a considerá-la como “a” realidade
por excelência. Em vez de realidade vivida, poderíamos dizer realidade
humana. O pintor que presencia impassível a cena agônica parece
“inumano”. Digamos que, pois, o ponto de vista humano é aquele em
que “vivemos” as situações, as pessoas, as coisas. E, vice-versa, todas as
realidades são humanas — mulher, paisagem, peripécia — quando
oferecem o aspecto sob o qual costumam ser vividas.
Convite à compreensão
Existe sempre um núcleo de realidade vivida na obra de arte
prestigiada pelo último século, vindo a ser como a substância do corpo
estético. Sobre ela, a arte opera, e sua operação reduz-se a polir esse
núcleo humano, dando-lhe verniz, brilho, compostura ou
reverberação. Para a maior parte das gentes, tal estrutura da obra de
arte é a mais natural, é a única possível. A arte é re exo da vida; é a
natureza vista através de um temperamento; é a representação do
humano, etc., etc., porém, com não menor convicção, os jovens
sustentam o contrário. Por que os velhos, em relação aos jovens,
teriam atualmente a razão, sendo que, posteriormente, estes estariam
com a razão contra os velhos? Sobretudo, não convém indignar-se
nem gritar. Dove si grida no è vera sciena,17 dizia Leonardo da Vinci;
neque lugere neque indignari, sed intelligere,18 recomendava Spinoza.
Nossas convicções mais arraigadas, mais indubitáveis, são as mais
suspeitas. Elas constituem nossos limites, nossos con ns, nossa prisão.
Pouca coisa é a vida se não for levada com um afã formidável de
ampliar suas fronteiras. Vive-se à proporção que se anela viver mais.
Toda a obstinação em nos manter dentro de nosso horizonte habitual
signi ca debilidade, decadência das energias vitais. O horizonte é uma
linha biológica, um órgão vivente de nosso ser; enquanto gozamos de
plenitude, o horizonte esvai-se, dilata-se, ondula, elástico quase ao
compasso de nossa respiração. Em troca, quando se xa o horizonte, é
que se ancilosa, ingressados na velhice.
Ver é uma ação à distância. E cada uma das artes maneja um aparato
projetor que alheia as coisas e as trans gura. Nós as contemplamos em
sua tela mágica, desterradas, inquilinas de um astro inabordável e
absolutamente longínquas. Quando falta essa desrealização, produz-se
um titubeio fatal: não sabemos se vivemos as coisas ou as
contemplamos.
O tabu e a metáfora
A metáfora é provavelmente a potência mais fértil que o homem
possui. Sua e ciência chega a tocar os con ns da taumaturgia,
parecendo um brinquedo de criação que Deus esqueceu dentro de
uma de suas criaturas, no tempo de ser formada, como um cirurgião
distraído que deixa um instrumento no ventre do operado.
Supra e infra-realismo
Embora a metáfora seja o mais radical instrumento de desumanização,
não se pode dizer que seja o único. Há inúmeros de alcance diverso.
Isto explica por que os dois últimos são tão entusiastas da obra de
Proust, como, em geral, esclarece o prazer que este escritor, tão de
outro tempo, proporciona à gente nova. Talvez, o essencial que o
latifúndio de seu livro tenha em comum com a nova sensibilidade seja
a mudança de perspectiva: desdém pelas formas antigas monumentais
da alma, descrito no romance, e a inumada atenção à na estrutura
dos sentimentos, de relações sociais, dos caracteres.
O movimento contrário
Ao substantivar-se, a metáfora faz, mais ou menos, os destinos
poéticos tornarem-se protagonistas. Isto implica simplesmente que a
intenção estética troca de signo, que ca invertido. Anteriormente, a
metáfora era vertida numa realidade, como adorno, encaixe ou capa
pluvial. Agora, ao contrário, procura-se eliminar o sustento extra
poético ou real, realizando a metáfora como uma res27 poética. Mas
esta inversão do processo estético não é exclusividade do mister
metafórico; é veri cado também em todas as ordens e em todos os
meios para converter-se em um aspecto geral — como tendência28 —
de toda a arte comum.
Iconoclastia
Não parece ser excessivo a rmar que as artes plásticas do novo estilo
revelam uma verdadeira aversão pelas formas vivas ou pelos seres
viventes. O fenômeno adquire completa evidência quando se compara
a arte destes anos àquela que emergia da pintura e escultura da
disciplina gótica, como de um pesadelo, dando na grande colheita
mundana do Renascimento. Pincel e cinzel deleitam-se
voluptuosamente em seguir a pauta onde o modelo animal ou vegetal
apresenta as carnes mórbidas em que a vitalidade palpita. Não
importam os seres, desde que, através daquelas, a vida exponha sua
pulsação dinâmica. E a forma orgânica do quadro ou da escultura
derrama-se sobre o ornamento. É a época dos cornos da abundância,
mananciais de vida torrencial que ameaça inundar o espaço com seus
frutos redondos e maduros.
Por que o artista atual sente horror a seguir a linha mórbida do corpo
vivo, suplantando-a pelo esquema geométrico? Todos os erros e ainda
fraudes do cubismo não obscureceram o fato de que, durante algum
tempo, comprazemo-nos numa linguagem de puras formas
euclidianas.
Irônico destino
Mais acima falou-se do novo estilo que, tomado em sua mais ampla
generalidade, consiste em eliminar os ingredientes, retendo só a
matéria puramente artística. Isto parece implicar um grande
entusiasmo pela arte. Mas ao circundar o mesmo fato e contemplá-lo a
partir de outra vertente, surpreendemo-nos com o cariz oposto da
fadiga ou o desdém. A contradição é patente e importa muito
sublinhá-la. Em de nitivo, signi caria que a arte nova é um fenômeno
de índole equívoca, coisa que na verdade não é nada surpreendente,
pois equívocos são quase todos os grandes feitos destes anos em curso.
Bastaria analisar um pouco os acontecimentos políticos europeus para
encontrar neles a mesma estranheza equívoca.
Conclusão
Ísis miriónima, Ísis, a de dez mil nomes: assim os egípcios evocavam
sua deusa. De certo modo, toda a realidade é assim. Seus componentes
e suas faces são inúmeros. Não seria audacioso, com umas quantas
denominações, querer de nir algo, a mais humilde? Quem sabe
pudesse ser uma ilustre causalidade que estas notas sublinhadas por
nós entre in nitas, fossem, com efeito, as decisivas. A incerteza
aumenta quando se trata de uma realidade nascente que inicia sua
trajetória nos espaços.
É, pois, muito provável que este ensaio sobre a liação da nova arte
não contenha senão erros. Ao terminá-lo, no volume ocupado, brotam
agora, de minha curiosidade e esperança, que outros estejam certos.
Entre muitos, poderemos partilhar os dez mil nomes.
Decadência do gênero
Os editores queixam-se de que o mercado do romance está à míngua.
Acontece, com efeito, que se vendem menos romances do que
anteriormente, e que a demanda por livros de conteúdo ideológico
aumenta relativamente. Se não houvesse outras razões mais ulteriores
para a rmar a decadência deste gênero literário, bastaria esse dado
estatístico para a deixar em suspeição. Quando ouço algum amigo
meu, sobretudo algum jovem escritor, que está escrevendo um
romance, espanta-me muito o tom tranqüilo com que fala, e penso que
em seu caso eu temeria. Talvez injustamente, embora sem que o possa
remediar, ocorre-me que, sob essa tranqüilidade, jaz uma grande dose
de inconsciência.
Não de nir
É mister, pois, que vejamos a vida das guras romanescas, evitando
descrevê-las. Toda a referência, relação, narração, não é senão
sublinhar a ausência ao que se refere, relata ou narra. Onde as coisas
estão, força é contá-las.
A arte tem uma missão oposta, indo do signo habitual à coisa mesma.
Move-a um magní co anelo de ver. Em boa parte Fiedler37 tem razão,
quando diz que o propósito da pintura não é mais do que nos dar uma
visão mais ampla, mais completa dos objetos de que tratamos
cotidianamente.
Função e substância
Nosso interesse é transferido, pois, do enredo às guras, dos atos às
personagens. Pois bem — e esteja dito como idéia intermediária —,
este deslocamento coincide com o que em ciência física, e sobretudo
na loso a, inicia-se há vinte anos. De Kant a 1900, predomina uma
exacerbada tendência a eliminar as substâncias da teoria, substituindo-
as por funções. Na Grécia, na Idade Média, dizia-se operari sequitur
esse, os atos são conseqüência e derivados da essência. No século ,
considera-se como um ideal o contrário: esse sequitur operari, o ser
não é mais do que o conjunto de seus atos ou funções.
Dois teatros
Poucas coisas podem orientar tão delicadamente a diferença dos
destinos da Espanha e França como a distinção estrutural entre o
teatro clássico francês e o nosso, castiço. Não o chamo também de
clássico porque, sem marcação alguma de valor, é forçoso negar-lhe
todo o classicismo. Trata-se, antes de tudo, de arte popular, e não creio
que haja na história nada que, sendo popular, seja também clássico. A
tragédia francesa é, ao contrário, uma arte para aristocracias. Começa,
pois, a divergir de nosso teatro no tipo de público a que se dirige. Sua
intenção estética é, por si mesma, proximamente inversa à que move
nossos dramaturgos populares, e, é claro, re ro-me à totalidade de
ambos os estilos, sem negar que nuns e noutros apareçam exceções,
encarregadas, como sempre, de con rmar a regra.
Creio que este ponto de vista é o que nos permite ver atualmente
nosso teatro sob o ângulo mais favorável. Os entendidos em literatura
espanhola — eu sei muito pouco sobre ela — deveriam ensaiar sua
aplicação. Talvez seja fecundo e direcione a análise até os valores
efetivos daquela gigantesca colheita poética.
Por ora não pretendia outra coisa senão contrapor uma arte de
guras a uma arte de ações. Pois suspeito que o romance de alto estilo
tem que atualmente buscar, ainda que de outra forma, desta e daquela
a melhor, inventar enredos por si mesmos interessantes — coisa
praticamente impossível —, ao idear pessoas atrativas.
Dostoiévski e Proust
Enquanto outros grandes declinam, arrastados ao acaso pela
misteriosa ressaca dos tempos, Dostoiévski está instalado no mais alto.
Talvez haja um pouco de excesso no fervor atual pela sua obra; eu
gostaria de conservar meu juízo sobre ela para uma hora de maior
profundidade. Mas em todo caso, não se pode duvidar de que
Dostoiévski salvou-se, nessa correnteza, do naufrágio geral onde o
romance do século passado padecera. As razões expostas para explicar
este triunfo são, quase sempre, devido à sua capacidade de
sobrevivência, que me parecem errôneas. Atribui-se sua matéria ao
interesse suscitado por suas novelas: o dramatismo misterioso da ação,
o caráter extremamente patológico dos personagens, o exotismo destas
almas eslavas, tão diferentes em sua caótica compleição das nossas,
polidas, delineadas e claras. Não nego que tudo isso colabore no prazer
que nos causa Dostoiévski, mas não me parece uma explicação
su ciente. Além do mais, convém considerar tais ingredientes como
fatores negativos, mais próprios para entediar do que para nos atrair.
Recorde-se de que o que se lê nestes romances, envolto em
complacência, deixava em suas leituras certa impressão penosa,
desagradável e conturbada.
A matéria não salva nunca uma obra de arte, e o ouro de que é feita
não consagra a estátua. A obra de arte vive mais de sua forma do que
de sua matéria e deve, à graça essencial que dela emana, a sua
estrutura, o seu organismo. Ao que é mais propriamente artístico na
obra, a isso deve atender a crítica artística e literária. Tudo o que
possui delicada sensibilidade estética apresentará um sinal de
listeísmo em que, diante de um quadro ou de uma produção poética,
alguém assinale como o “assunto” decisivo. É claro que, sem este, não
existe obra de arte, como não há vida sem processos químicos. Mas da
mesma forma que a vida não se reduz a esses, mas começa a ser vida
quando a lei química acrescenta sua ordenadora e original
complexidade, assim a obra de arte está à mercê da estrutura formal
que impõe à matéria ou ao assunto.
Convém, entretanto, fazer notar que desde então esse hábito de não
de nir, melhor ainda, de despistar, essa contínua mutação dos
caracteres, essa condensação no tempo e espaço, en m, essa
morosidade ou tempo lento não são usos exclusivos de Dostoiévski.
Todos os romances que ainda podem ser lidos atualmente mais ou
menos o apresentam. Sirva-se de exemplo ocidental Stendhal, em
todos os seus livros maiores. O vermelho e o negro, que, por ser um
romance biográ co, evoca alguns anos da vida de um homem, é
composto em forma de três ou quatro quadros, cada um dos quais está
contido em seu interior como um romance inteiro do mestre russo.
Ação e contemplação
Faz mais de dez anos que nas Meditações do Quixote atribuí ao
romance moderno, como sua missão essencial, descrever uma
atmosfera diferenciada de outras formas épicas — a epopéia, o conto, o
romance de aventuras, o melodrama e o folhetim — que evocam uma
ação concreta, de linha e curso muito de nidos. Diante da ação
concreta, que é um movimento dos mais rápidos possíveis a um m, o
atmosférico signi ca algo difuso e quieto. A ação arrebata-nos em sua
dramática seqüência; o atmosférico, entretanto, convida-nos
simplesmente a sua contemplação. Na pintura, a paisagem representa
um tema atmosférico, enquanto a representação histórica narra uma
façanha acabada, um episódio de forma concisa. Não é por acaso que a
técnica do plein air, ou seja, da atmosfera, tenha sido inventada por
causa da paisagem.
O fato de que uma coisa seja necessária para a outra não implica que
seja por si mesma estimável. Para descobrir o crime, falta o delator, e
nem por isso estimamos a delação.
Sem tocar então em assunto de traço tão altivo, basta que cada qual
descubra em seu próprio passado quais foram as circunstâncias em
que aprendeu mais do mundo, e perceberá que não foram aquelas em
que se propôs deliberadamente a ver por ver. Não é a paisagem que
visitamos, como turistas, o que melhor enxergamos. É notável que, em
última análise, o turista de nada se inteira bem. Resvala sobre a urbe
ou a comarca sem se oprimir com essas, forçando-as a render copioso
conteúdo. E, no entanto, parece que, a princípio, o turista, preocupado
exclusivamente em contemplar, deveria ser quem alcança maior
espólio de notícias. No outro extremo, encontra-se o lavrador que tem
uma relação puramente interessada com o campo. Tudo o que ele tem
notado, em seu caminhar consolidado pela terra adentro, espanta pela
ignorância aparente que o campesino demonstra pelo campo. Não
sabe a dimensão do que o circunda, mas conhece o estrito palpável ao
seu interesse utilitário de agricultor.
Hermetismo
Observemo-nos no momento de terminar a leitura de um grande
romance. Parece-nos que emergimos de uma outra existência,
escapando de um mundo incomunicável ao nosso. Esse insulamento é
evidente, pois não podemos perceber o tráfego. Um momento atrás
estávamos em Parma com o Conde Mosca e Sanseverina e Clélia e
Fabricio;46 vivíamos com eles, preocupados com suas vicissitudes,
imersos no mesmo ar, espaço e tempo que seu povo. Agora de repente
sem intervalo, estamos no nosso quarto, na nossa cidade e em nosso
lugar; as preocupações que nos eram habituais já começam a despertar
em torno de nossos nervos. Há um intervalo de indecisão, de
hesitação. Talvez a batida abrupta de uma lembrança de repente nos
mergulhe de volta ao universo do romance, e com algum esforço,
como se acariciasse um elemento líquido, temos que nadar até a
margem de nossa própria existência. Se alguém olhar para nós,
descobrirá em nós a dilatação das pálpebras, que caracteriza os
náufragos.
Decadência e perfeição
As condições que até então foram mencionadas só determinam a linha
em que começa o romance, xando, por assim dizer, o nível do mar
em seu continente. Sobre este, elevam-se outras condições que
produzem a maior ou menor altitude da obra.
Psicologia imaginária
Estas notas sobre o romance demonstram um ar tão resolvido de
jamais acabar, que se faz mister terminá-las de uma maneira violenta.
Um passo a mais e seria fatal. Porque até aqui se está mantendo em
ordem de ampla generalidade, elidindo toda a casuística. E acontece
que em estética, como em moral, os princípios genéricos são
unicamente a quadrícula que se traça em vista da casuística, da análise
mais concreta. Onde esta se inicia, começa o mais sedutor da questão,
mas por vezes projeta-se uma edi cação em uma área sem limites.
Convém, pois, aproveitar o último movimento de cordura e deter-se.
Oferta
Estes são os pensamentos sobre o romance, que uma alusão de Baroja
incitou-me a formular. Repito que não pretendo ensinar os que sabem
disso mais do que eu. É possível que tudo o que disse seja puro erro.
Nada importa se servir de incitação para que alguns jovens escritores,
seriamente preocupados com sua arte, animem-se a explorar as
possibilidades difíceis e subterrâneas que ainda restam ao velho
destino do romance.
Compreendo muito bem que a obra dos jovens pintores não interessa
ao grande público, e esta Exposição não deve dirigir-se a ele, senão
exclusivamente às pessoas às quais a arte é um problema vivo, e não
uma solução; um desporto essencial, e não um passivo regozijo. Só elas
podem interessar-se pelo que é, antes de arte, um movimento para ela,
um rude treino, um exercício de laboratório, um ensaio de o cina.
Não acho que os artistas atuais acreditem que sua obra seja outra coisa.
Se alguém pensa que o cubismo é para nossa época o que fora para a
sua o impressionismo, Velásquez, Rembrandt, o Renascimento, etc.,
etc., comete, a meu ver, um grave erro. O cubismo é só um ensaio de
possibilidades pictóricas de uma época desprovida de uma arte plena.
Por isso, é tão característico do tempo que se produzam mais teorias e
programas do que obras.
II
Fala-se amiúde da eternidade da obra de arte. Se com isso se quer
dizer que criar e fruir inclui a aspiração a que seu valor seja eterno,
não há como negar. Mas o fato é que a obra de arte envelhece e
apodrece antes como valor estético do que como realidade material.
Acontece o mesmo com os amores. Todo o amor jura num certo
momento sua própria eternidade. Mas esse momento, com sua
eternidade aspirada, transcorre; vemo-lo cair na torrente do tempo,
agitar suas mãos de náufrago, afogar-se no passado. Porque este é o
passado: um naufrágio, uma submersão nas profundezas. Os chineses
chamam a morte de “correr ao rio”. O presente é um feixe sem
espessura alguma. A essência é o passado feito com inumeráveis
presentes, uns sobre os outros, comprimidos. Delicadamente, os
gregos chamavam a morte de “ir com os demais”.
Não é, pois, uma questão de gosto a que nos leva a separar toda a arte
do passado da arte em sentido do presente. São duas coisas e duas
emoções que à primeira vista parecem idênticas, e que, no entanto, à
luz de uma sumária análise, são completamente distintas para todo
aquele que não ache que todos os gatos são pardos. Na arte antiga a
complacência é indireta, senão irônica; quer dizer que intercalamos,
entre nós e o velho quadro, a vida da época em que fora produzido e o
seu homem contemporâneo. Transladamos nossos pressupostos aos
alheios, ngindo para nós uma personalidade estranha, através da qual
desfrutamos da antiga beleza. Esta dupla personalidade é característica
de todo o estado irônico do espírito. E se apurarmos um pouco mais a
análise dessa complacência arqueológica, encontraremos que não é a
obra mesma que desfrutamos, mas a vida em que fora criada, da qual é
sintoma exemplar, ou, para ser mais exato, a obra envolta em sua
atmosfera vital. Isso é mais claro quando se trata de um quadro
primitivo. O nome mesmo de “primitivo” indica a ternura irônica que
sentimos diante da altura do autor, menos complexa que a nossa.
Causa-nos deleite saborear aquele modo de existir mais simples, mais
fácil de abarcar com um olhar que nossa vida, tão vasta, tão indômita,
que nos inunda e arrasta, que nos domina em vez de a dominarmos. A
situação psíquica é parecida com a que surge quando contemplamos
uma criança. Tampouco a criança é um ser atual: a criança é o futuro.
E, por isso, não temos um contato direto com ela, senão,
automaticamente, fazemo-nos um pouco crianças, até o ponto —
alguma vez teremos percebido isso — de que tendemos, ridícula, mas
indeliberadamente, a imitar sua linguagem e seu balbucio, chegando a
a autar a voz em virtude de inconsciente mimetismo.
Seria insu ciente opor ao que foi dito a observação de que na antiga
pintura existem valores plásticos, alheios à temporalidade, suscetíveis
de serem desfrutados como qualidades atuais. É curioso o empenho de
alguns artistas e a cionados em reservar alguma porção da obra
pictórica para a visão pura, libertando-a de sua complicação com o
espírito, com o que chamam de literatura ou loso a! E, com efeito,
literatura ou loso a são coisas muito diferentes das artes plásticas,
embora as três sejam irremissivelmente espírito e se encontrem
submersas nas complicações deste. É, pois, vã essa intenção de fazer-se
mais singulares e manejáveis as coisas, na medida da própria
simplicidade. Não há visão pura; não há valores plásticos absolutos.
Todos eles pertencem a algum estilo; são relativos a ele, e um estilo é o
fruto de um sistema de convenções vivas. Porém, em todo o caso, esses
valores de pressuposta vigência atual são parcelas mínimas da obra
antiga que violentamente desencalhamos do resto, para destacar
somente estas, relegando o demais. Seria interessante que com alguma
sinceridade, se subtraísse o que de um desses quadros famosos parece
beleza intacta e sobrevivente. A escassez do recolhido contrastaria tão
cruelmente com a fama da obra, que seria o melhor modo de me dar
razão.
Não há, portanto, que se enfadar com tudo o que digo, senão para
melhor dilatar um pouco as cabeças, conformando-as com a
amplitude das questões. É ilusório crer que a situação artística atual —
ou de qualquer época — dependa só de fatores estéticos. Nos amores e
ódios da arte, intervém todo o resto das condições espirituais do
tempo. Assim, esse nosso novo distanciamento do passado colabora
para o advento pleno do sentido histórico, germinado em zonas da
alma alheias à arte.
O prazer que nos origina a arte antiga é mais uma fruição vital do
que estética, ao passo que ante a obra contemporânea sentimos mais o
estético do que o vital.
A
Uma abreviatura
S enhoras, senhores: O século, a cujo diretor, Sr. Pereira da Rosa, e ao
Sr. Eduardo Schwalbach, nosso presidente, agradeço a generosa
amabilidade de sua saudação — O século quer que se inaugure esta
série de conferências dedicadas à história do teatro com uma em que
pretendo aclarar o que é o teatro. Mas ao me encontrar falando pela
primeira vez na casa de O século, brota-me na alma um veemente
apetite de falar sobre outro tema muito diferente e também mais
suculento. Qual? Se eu pudesse falar hoje sobre ele, começaria a minha
conferência assim: sabem os senhores de O século o que signi ca o
século, o ciclo? Não é que pedantemente me converta num magister
examinador, pondo em avaliação os senhores de O século sobre o
título de seu periódico. O tom da pergunta que dou em minhas
palavras não pretende mais que excitar sua curiosidade porque, com
efeito, trata-se de uma das idéias mais estupendas, de uma das idéias
mais profundas sobre sua própria condição que o homem já teve, mas
que hoje é insu cientemente conhecida. Porém, repito, não posso hoje
falar deste tema, porque hoje não sou livre, porque hoje sou um
escravo da galera fretada por este querido e terrível Sr. Acúrio Pereira
e não tenho mais remédio que empalmar o remo e vogar a proa à rota
por ele marcada. Dócil, pois, a meu compromisso começo, sem mais, a
cumpri-lo.
Que coisa é o teatro? A coisa teatro como a coisa homem são muitas,
inumeráveis coisas diferentes entre si, que nascem e morrem, que
variam, que se transformam a ponto de não se parecer, à primeira
vista, em nada, uma forma com a outra. Homens eram aquelas
criaturas reais que serviram de modelo aos anãos de Velásquez54 e
homem o homem que era Alexandre Magno, o tal marmelo55 de toda a
história. Por isso mesmo, porque uma coisa são sempre muitas e
diversas coisas, nos interessa averiguar se através e em toda essa
variedade de formas não subsiste, mais ou menos latente, uma
estrutura que nos permita identi car como “homem”, inumeráveis e
diversos indivíduos, e por “teatro”, muitas e diversas manifestações.
Essa estrutura que, embaixo de suas modi cações concretas e visíveis,
permanece idêntica, é o ser da coisa. Portanto, o ser de uma coisa está
sempre dentro da coisa concreta e singular; está coberta por esta,
oculto, latente. Daí que necessitemos des-ocultá-lo, des-cobri-lo,
fazendo patente o latente. Em grego estar coberto, oculto, diz-se
latheîn, com a mesma raiz de nossas palavras latente e latejar. Dizemos
que o coração lateja, não por pulsar e se mover, mas por ser uma
víscera, porque é o oculto ou latente dentro do corpo. Quando
conseguimos retirar claramente à luz o ser oculto da coisa, dizemos
que averiguamos a verdade. Pelo visto, averiguar signi ca certi car,
tornar manifesto algo oculto, e o vocábulo com que os gregos diziam
“verdade” — alétheia — signi ca o mesmo: a equivale a des, portanto,
alétheia é des-ocultar, des-cobrir, des-latentizar. Perguntarmos pelo ser
do teatro equivale, por conseguinte, a perguntar por sua verdade. A
noção que o ser nos oferece, a verdade de uma coisa, é sua Idéia.
Pretendemos fazer uma Idéia do teatro, a idéia do teatro. Como a
brevidade do tempo com que conto é extrema, obrigo-me a reduzir ao
extremo a exposição da Idéia, a oferecer a vocês só uma abreviatura da
idéia do teatro. E aqui se esclarece o título desta conferência: idéia do
teatro — uma abreviatura. Estamos de acordo? Parece-lhes bom que
tratemos deste tema um tanto, nada mais que um tanto? Nada mais
que um tanto, mas... a sério, completamente a sério. Vamos, pois, a ele.
Assim diz Hegel, que, como podem ver, além de romântico, não era
nada mal escritor.
Teatro! Não há talvez uma só palavra na língua falada que não tenha
várias signi cados: quase sempre tem muitos. Entre essas signi cações
múltiplas, os lingüistas costumam distinguir uma que chamam de
signi cação ou sentido forte da palavra. Este sentido forte é sempre o
mais preciso, o mais concreto, diríamos o mais tangível. Vamos falar
do teatro. Pois bem, partamos do sentido forte desta palavra, segundo
o qual o teatro é, antes de tudo e nada mais nada menos, que um
edifício — um edifício de estrutura determinada, por exemplo, seu
belíssimo teatro de São Carlos, que o bairro Alto de Lisboa parece
levar debaixo do braço. No entanto, a função atual desse teatro, onde
se dão concertos e são cantadas óperas, confunde a idéia pura do
teatro. O grego tinha para essa nalidade, um edifício com outro
nome: ele o chamava odeion, odeon, auditório.
Mas o que vemos nesse cenário? Pois, por exemplo, vemos a sala de
um castelo — palácio medieval no norte da Europa —, que se abre
largamente sobre um parque, precisamente o parque de Elsenour;
vemos a beira de um rio que desliza com correnteza lenta e triste,
árvores que sobre suas águas se inclinam com vagas pesadoras —
bétulas, álamos e um salgueiro chorão que deixa cair seus ramos. Não
é verdade, senhores, que o salgueiro é uma arvore que parece estar
cansado de ser árvore? Vemos uma menina trêmula que leva ores e
relva nos cabelos, no traje, nas mãos e avança vacilante, pálida, o olhar
to em um ponto de grande lonjura, como olhando sobre o horizonte,
onde não há estrela alguma, embora uma estrela, a mais linda estrela, a
estrela nenhuma. É Ofélia — Ofélia louca,67 coitada!, que vai descer no
rio. Descer no rio68 é um eufemismo com que a linguagem chinesa diz
que alguém morre. Isso é, senhores, o que vemos.
Mas não, não vemos isso! Será que por um instante sofremos uma
ilusão de ótica? Porque o que com efeito vemos são apenas telas ou
cartões pintados; o rio não é rio, é pintura; as árvores não são árvores,
são manchas coloridas. Ofélia não é Ofélia; é... Marianinha Rey
Colaço.69
Acabo agora de crer no que outras vezes não cri: que esses
nigromantes que me perseguem, não fazem nada senão me pôr
diante dos olhos as guras como elas são, e logo mas trocam e
mudam nas que eles querem. Real e verdadeiramente vos digo,
senhores que me ouvis, que me parece, a mim, tudo o que aqui
acontece, que acontece ao pé da letra: que Melisandra fosse
Melisandra; Don Gaiferos, Don Gaiferos; Marsilio, Marsilio e Carlos
Magno, Carlos Magno. Mas isso se me alterou a cólera e para cumprir
com minha pro ssão de cavaleiro andante, quis prestar ajuda e favor,
e com este bom propósito, z o que haveis visto; se me saiu de revés,
não é culpa minha, mas dos malvados que me perseguem; e contudo,
por este meu erro, ainda que não procedesse da malícia, quero eu
mesmo condenar-me nas custas; veja mestre Pedro o que quer pelas
guras desfeitas que me ofereço a pagar-lhe imediatamente em boa e
corrente moeda castelhana.
Aqui vemos, senhores, funcionando a primeira dualidade de que
partimos — sala e palco cênico, separados pela beirada do cenário, que
é a fronteira dos dois mundos, o da sala, onde estamos, do início ao
m, a realidade que somos, e o mundo imaginário, fantasmagórico da
cena. Este ambiente imaginário, mágico, do cenário, onde se cria a
irrealidade, é na realidade um outro espaço e, com uma atmosfera
mais tênue que a da sala. Há diferentes densidades e pressão de
realidade em um e outro espaço e, como acontece na atmosfera efetiva
que respiramos, essa diferença de pressão produz uma corrente de ar
que vai do lugar de maior pressão ao de menor. A beirada do cenário
aspira a realidade do público, sorvendo-a para sua irrealidade. Às
vezes, esta corrente de ar é um vendaval.
Pois bem, é um fato que a farsa exista, desde que existe o homem. Ao
que propriamente chamamos de teatro, precede um longo e profundo
milênio da primeira Humanidade, outras formas da farsa que
podemos considerar como o pré-teatro ou a pré-história do teatro.
Não podemos agora tentar descrevê-las.75 Se aludo a elas, é
simplesmente para poder dar este prosseguimento: a farsa é uma
dimensão constitutiva, essencial da vida humana; nada mais, nada
menos, que um lado imprescindível de nossa existência. Portanto, que
a vida humana não seja, nem possa ser, “exclusivamente”, seriedade;
que a vida humana seja, tenha que ser, por vezes, “brincadeira”, farsa;
que por isso o teatro existe e que o fato de haver teatro não é pura
casualidade e eventual acidente. A farsa, vísceras do teatro, é, como
vamos descobrir, uma das vísceras de que vive nossa vida e nisso, que é
como a dimensão radical da nossa vida, consiste a última realidade e
substância do teatro, seu ser e sua verdade.
Somos vida, nossa vida, cada qual a sua.77 Mas isso que somos — a
vida — não nos indica senão que estamos já submersos nela,
justamente quando nos encontramos com nós mesmos. Viver é achar-
se rapidamente tendo de ser, que existir em um orbe imprevisto que é
o mundo, onde mundo signi ca sempre “este mundo de agora”. E,
“neste mundo de agora”, podemos, com certa dose de liberdade, ir e
vir, mas não nos é dado escolher previamente o mundo em que vamos
viver. Este nos é imposto com sua imagem e componentes
determinados e inexoráveis, e encarando como ele é, temos que
arranjá-lo para ser, existir e viver. Por isso, já o chamamos, em meu
primeiro livro, em 1914, de a circunstância. Vida é ter que ser,
queiramos ou não, em vista de algumas circunstâncias determinadas.
Esta vida, como disse, nos é dada, já que não podemos dá-la a nós
mesmos, mas nos encontramos dentro dela e com ela — assim,
subitamente, sem saber como, nem por que, nem para quê. Ela nos foi
dada, mas não nos foi dada pronta; temos que fazê-la, cada qual a sua,
fazendo-nos com ela. Momento a momento, nos vemos obrigados a
fazer algo para subsistir. A vida é algo que não está aí sem mais, como
uma coisa, senão que é sempre algo que se deve fazer, uma tarefa, um
gerúndio, um faciendum. E, todavia, se já nos fosse dado o resultado
do que temos que fazer em cada instante, a tarefa que é viver seria
menos penosa. Mas isso não existe; em cada instante, abrem-se diante
de nós diversas possibilidades de ação, e não temos mais remédio
senão escolher uma; que decidir neste instante o que vamos fazer em
seguida, sobre nossa exclusiva e intrasferível responsabilidade. Ao sair
daqui, dentro de alguns minutos, pela porta de O século, cada um de
vocês, queira ou não, terá que decidir por si e ante si, a direção que vai
dar na rua seu primeiro passo. Mas como disse o vetustíssimo livro
indiano: “Aonde quer que o homem ponha seu pé, sempre pisa em
cem caminhos”. Todo o ponto do espaço e todo o instante de tempo é
para o homem encruzilhada diante da qual vacila, titubeia. A vida,
senhores, é perplexidade, é não saber bem o que fazer. Do mesmo
modo, é preciso se decidir e, para isso, escolher. Mas por ser a vida
perplexidade, e necessidade de escolher o que fazer, isso nos obriga a
compreender, isto é, a fazer bom proveito das circunstâncias. Daí
nascem os saberes todos — a ciência, a loso a, a “experiência de
vida”, o saber vital que costumamos chamar de prudência e sagesse.
Estamos consignados a esta circunstância; somos prisioneiros dela. A
vida é prisão na realidade ou circunstância. O homem pode furtar-se à
vida, mas se vive — repito — não pode escolher o mundo em que vive.
Este é sempre o daqui e agora. Para nos suster nele, temos que fazer
sempre algo. Daí provêm os inumeráveis fazeres do homem. Porque a
vida, senhores, dá muito o que fazer. E assim o homem faz sua comida,
faz ciência, faz paciência, quer dizer, espera, que é “fazer hora”, faz
política, faz obras de caridade, faz... que faz e se faz... ilusões. A vida é
um onímodo fazer. E isso tudo em luta com as circunstâncias e por
estar prisioneiro no mundo que não pode escolher. Chamamos de
“realidade” ao caráter imposto, queiramos ou não, daquilo que nos
rodeia. Estamos condenados à prisão perpétua na realidade ou
mundo. Por isso, a vida é tão séria, tão grave, ou seja: tem peso, a
responsabilidade inalienável, que constantemente do nosso ser e fazer,
emana.
Pois bem, o que constitui o cimo desses métodos de evasão que são as
belas artes, aquilo que mais completamente permite ao homem
escapar do pesar de seu destino, é o teatro em suas épocas de “ser em
forma” — quando, por coincidir com sua sensibilidade, ator, cena e
poeta, conseguem ser plenamente arrebatados pela grande
fantasmagoria do cenário. Em nosso tempo isso não acontece; nem a
cena, nem o ator, nem o autor se acham à altura de nossos nervos e a
mágica metamorfose, a prodigiosa trans guração, não costuma
acontecer. Nosso teatro atual não está à la page [em dia] com nossa
sensibilidade, e é a ruína do teatro. Mas nessas épocas a que me referi
ao início, gerações e gerações de homens conseguiram, durante muitas
horas de sua vida, à mercê do divino escapismo que é a farsa, a
suprema aspiração do ser humano: serem felizes.
ANEXO I
Máscaras
P retendemos travar contato com essa pré-história do teatro. Ela nos
manifestará em que medida extrema, está radicada no homem a
necessidade de sua maravilhosa fantasmagoria. Mas temos que buscar
esse contato partindo da própria origem do teatro. Situados nessa
linha, poderemos olhar primeiramente para trás, até o pré-teatro e,
retrocedendo sobre todo esse passado profundíssimo, nosso olhar se
ampliará ao futuro, dirigindo um olhar instantâneo sobre o porvir do
teatro (No Anexo ).
Este teatro grego e, note-se bem, todos os teatros que a história nos
deu a conhecer, se originaram de uma cerimônia ou ritos religiosos.
Mas a religião grega, semelhante nisso a todas as demais religiões
antigas e mais ou menos primitivas, tem um caráter radicalmente
distinto, mais ainda, oposto, à linha de inspiração diante do divino,
que parte de Zoroastro, atravessa o mosaísmo e culmina no islamismo
e no cristianismo.82 A religião grega é, em sentido formal, religião
“popular”. Primeiro, porque se origina na impessoalidade coletiva dos
diferentes “povos” ou “nações” helênicas; segundo, porque seu
conteúdo tem um caráter difuso, atmosférico, diríamos, respiratório.
Não é, como as outras religiões mazdeu-mosaico-cristãs,83 uma forma
de vida devotada e de nida, separada do resto da vida, nem tolera as
precisões e rigorosas cristalizações de uma dogmática teológica
estabelecida por grupos particulares de sacerdotes. Não é, pois,
teologia, nem mera e espontânea religião que os homens exercitam
como o contrair e dilatar de caixas torácicas na operação respiratória.
Penetra toda a sua vida, sem deixar de ser o que é, não sendo
especialmente “vida religiosa”, para o ser, não obstante. Em terceiro
lugar, porque é declarada e constitutivamente religião de um “povo”
como tal povo e, portanto, do Estado. Os deuses são primariamente
deuses do Estado e da coletividade, e só através desses deuses são
deuses para o indivíduo. Daí que, na Grécia, um movimento místico
só adquire caráter propriamente religioso quando o Estado o converte
em instituição. Assim aconteceu com o misticismo dionisíaco, com o
or smo e demais “mistérios”. Em quarto lugar, ao constituir a religião
substancialmente em “culto público”, lhe era conatural ser “festa”,
“festividade”. Esse traço não lhe é peculiar: é comum em todas as
religiões antigas e mais ou menos primitivas. Nelas, o ato religioso
fundamental não é a prece individual, privada e íntima — a “oração”
—, mas a grande cerimônia coletiva de tom festivo em que participam
todos os membros da coletividade, uns como executores do rito —
dança, canto e procissão —, outros como assistentes e “espectadores”.
Os gregos chamaram de theoria à comunicação do homem com deus
mediante a assistência de um cerimonial coletivo e religioso. A theoria
é, pois, o símile grego da oração cristã.
Um exemplo de inautenticidade:
Havia, por certo, os deuses e cultos dos povos vencidos pelos helenos
vindos do Nordeste, separando-se do tronco comum indo-europeu,
descendo para Grécia e suas ilhas. Esta religião, a mais antiga,
grosseira, rude, era a religião que se estendeu por toda a área da
cultura egéia. Suas divindades, predominantemente femininas, são o
simbolismo cthônico. São deuses subterrâneos, das “regiões inferiores”
ou inferno. Deuses sombrios, que originariamente deveriam ser os
próprios parentes mortos. Quando os gregos venceram essas nações,
elas permaneceram como plebe, como o que Toynbee chama de
“proletariado interior de uma civilização”. E é curioso que, neste caso,
como sempre na história, essa religião proletária é a que, com um e
outro acréscimo, estava por renascer e impor-se sobre a religião dos
grupos aristocráticos que foram seus vencedores.
Dioniso é, sem dúvida, o deus mais deus que os gregos tiveram. A seu
lado, os olímpios parecem “a cionados” por serem deuses. Zeus
(Júpiter), Hera (Juno), Ares (Marte), Poseidon (Netuno) dir-se-ia que
estão “fazendo-se de deuses”.96 Em Dioniso, manifesta-se mais
claramente o que em nenhuma era para os gregos — e não só para os
gregos — é atributo mais característico dos deuses: são embaraçantes,
não se sabe como vão comportar-se, não se sabe bem o que fazer com
eles. Por isso, Hesíodo lhes chama “θεῶν γένος αὶδοῖον” a casta
embaraçante dos deuses.97
Dioniso, e a religião dionisíaca, representam a libertação do homem
da vida como preocupação, que é sua forma primária e substantiva. O
dionisíaco é a vida como descuido, sem cuidados, o abandono ao puro
existir e a fé em algo mais além da pessoa — a personalidade é
consciência, deliberação, cautelosa e suspicaz previsão, regimentada
conduta, razão — e mais poderoso, constante e fecundo, que leva o
homem generosamente em seus braços, enriquece sua existência e lhe
salva. Esse algo, trans — sobre — e infra-humano são os poderes
cósmicos elementais, os mais certamente divinos. Os deuses do
olimpo são demasiado pessoas, demasiado re exivos, preocupados,
corretos; em suma, demasiado humanos para ser radicalmente
divinos. Por isso, a religião dionisíaca invadiu a Grécia com incrível
rapidez: nela se viu a possibilidade de contato com uma realidade mais
autenticamente transcendente, mais genuinamente divina. Muito
superior a qualquer ser humano, onipotente, diante dela, o homem
não é por si nada. A anulação radical do homem é o sintoma de toda
grande e profunda — isto é, genuína, religião. Diante desses poderes
supremos, não há nada o que fazer se não se abandonar a eles. Mas
como tudo no homem tem inexoravelmente o caráter de tarefa — até
não fazer nada é a suspensão de qualquer ação — e, como digo na
conferência, até a paciência que retém toda a ação é uma espera, e, esta
é “fazer hora” — abandonar-se —, supondo toda uma série de
atividades, inclusive uma técnica e um método. Não é coisa tão fácil
que o homem instalado num permanente, fastidioso, angustiante
“estar sobre si” — como o abutre está sobre a sua presa —, se solte,
perca essa arregimentação de si mesmo, essa atividade policiada, que o
faz vigiar sua própria conduta. Para abandonar-se é necessário deixar
de “estar sobre si”, e isso signi ca que é preciso “pôr-se fora de si”,
deixar de “ser a si mesmo”, fazer-se outro, alheio a si — alienar-se. A
entrega a Dioniso e a realidade transcendente que ele simboliza é a
alienação, a loucura extática — “a mania”.98
Homero devia andar pelo mar Egeu cantando seus deliciosos cantos
lá por 750 a.C. Era apolíneo e expoente do que até então havia sido o
homem grego, em sua forma mais excelsa, mais elevada, mais “ m de
época”. Cem anos mais tarde, a Grécia seria uma forma de vida muito
distinta. Na Ilíada e na Odisséia, Dioniso é citado algumas vezes,
embora sem se precisar nada sobre ele, sem que intervenha em nada.
Dioniso era um deus demasiado formidável para poder estar com os
olímpicos, que eram gente um pouco a ita, demasiado “distinta” e de
bonne compagnie [boa companhia]. Mas cem anos mais tarde,
Dioniso impôs-se e dominou a vida grega. Dioniso opõe-se à
concepção de ser comedido e razoável que Apolo representa, ensaia e
ordena, com gesto belo, embora austero, conseguindo fazer triunfar
sua divina loucura. Desde então, os gregos não deixaram de render
culto à exaltação visionária, ao pensamento maníaco. Todos,
terminando em Platão e Aristóteles, os pais da lógica. Quem não tenha
isso sempre em vista, quem não o entenda, não sabe o mínimo sobre o
que foi a Grécia.99
Para eles, a dança era todo um lado da vida. Era ação coletiva por
excelência, em que a tribo, como tal, diríamos, a nação, se fazia
presente, se reconhecia a si mesma como realidade coletiva, acentuava
constantemente sua solidariedade, atuava e existia. O objeto mais
sacro, sensu stricto, é o tambor. Na África negra, para expressar que
um indivíduo era estrangeiro, que pertencia a outra tribo, dizia-se:
“Esse dança com outro tambor”, e em muitos lugares, quem punha a
mão indevidamente ou se atrevia a tocar, sem cacife su ciente, o santo
tambor tribal, era condenado à morte. Para o europeu, que viveu nas
profundas e secretas selvas da Nigéria e Congo, remanescia sempre no
ouvido o tã-tã pertinaz de inumeráveis tambores invisíveis que
tocavam tenazmente por dias, semanas, meses, sem parar. E isso
signi ca que milhões de homens praticavam com tenacidade de
obsessivos, de maníacos, a dança, como se fosse o lado da vida mais
importante. E assim, é dançando, sem beber e sem tóxicos, que o
homem esquece-se, esquece do peso da vida, conseguindo ver o
mundo diferentemente do que é, como mundo trans gurado, um
mundo transcendentemente feliz, é feliz — vivendo para além de si
mesmo.
Por isso, não é de estranhar, que Dioniso seja um deus que dança —
dança freneticamente — e com ele suas sacerdotisas e éis, as
mênades, isto é, as loucas. Dioniso era tal dançarino que, segundo o
mito, já dançava no ventre de sua mãe.
Então não temos mais que dar às coisas seus nomes para que tudo
isso se combine, se uni que, se esclareça e se condense.
Por outro lado, como em tantos povos muito primitivos, ainda hoje
em dia, outros éis do deus, disfarçados de bois, iam mugindo, isto é,
fazendo o ruído — foné — da boiada. São os bu-fones, os que bufam.
Não podemos dar um passo nessa religião dionísica sem tropeçar em
coisas e gente do teatro, de modo tal que são mutuamente dionisismo
e teatralidade, medula e substância.110
ANEXO II
O século
Começo rechaçado da conferência em
Lisboa
O século quis que eu inaugurasse esta série de conferências
dedicadas à história do teatro, com uma em que eu pretendesse
esclarecer o que é o teatro. Mas antes de adentrar no tema, pretendo
começar com um parêntese que nada tem a ver com ele. Permitam-no.
Surge-me como uma anedota. É esta:
Mas como vocês podem ver, não podemos falar do tempo, sem nos
referir ao que se faz com as coisas: ele as cria, as aniquila, as transporta
do futuro ao presente e do presente ao passado; isto é, as faz passar.
Com efeito, o tempo não seria tempo sem as coisas. Tentem imaginar
que não houvesse mais tempo, que não houvesse coisas. Então estaria
aí o tempo todo e inteiro – com todo o futuro e todo o passado —,
digo que estaria aí já ele todo, quero dizer, que não passaria, que não
seria tempo. Neste instante existiria todo o pretérito e todo o futuro —
não haveria, com rigor, diferença entre pretérito e futuro, senão que
todo o in nito tempo seria um presente. Imaginem que este instante
de nossa vida se dilatasse como um elástico, se distendesse e abarcasse
tudo o que foi e o que será, todo o in nito passado e todo o in nito
futuro de modo que o tempo inteiro estivesse aqui, presente, agora.
Então o tempo estaria quieto, o rio se haveria congelado — não
passaria. Por isso mesmo, esse tempo sem coisa, esse tempo solitário
não seria tempo, senão ao contrário —, porque existir de modo que se
esteja vivendo no presente, e ao mesmo tempo, viva-se todo o passado
e todo o futuro, é precisamente o que se chama de eternidade.
Recordem-se da maravilhosa de nição de Boécio: a eternidade, disse,
é interminabilis vitae tota simul et perfecta possessio — “a posse
perfeita de uma vida interminável e simultânea”. Deus é assim, eterno,
e por isso, eterno no Tempo, no sentido de que não tem nada a ver
com o tempo.
Vimos, pois, que o tempo, para ser o que passa, necessita de coisas, de
coisas que por ele passem, de coisas que primeiro são futuras, que logo
sejam presentes e que, ao m, se tornam pretéritas. Mas isto equivale a
dizer que para poder passar, é mister que o tempo passe para alguém
— para coisas e entre elas, sobretudo, para nós, os homens. Este passar
para algo e para alguém um certo tempo, é durar.
O que sim interessa é que o homem sabe que sua vida dura só um
tempo determinado — o qual, para tanto, compõe-se de partes
insubstituíveis, irreparáveis. Ao contrário daquele ser imortal, para o
homem, cada dia é único — é um dia de certos determinados dias, que
estão à sua disposição; se o perde, se não o aproveita bem, é uma perda
absoluta. Tem que o aproveitar, isto é, tem que acertar o que fazer a
cada dia, e para acertar tem que se esforçar a m de estar na certeza —
o que dá no mesmo, tem que estar na verdade. E aí vocês têm de se
preocupar em descobrir que a verdade não é uma curiosidade de
alguns senhores a quem chamam de “homens de ciência”, nem de
outros, mais importantes ainda, a quem chamam de “intelectuais”, mas
que a verdade é algo de que o homem necessita, inexoravelmente,
porque necessita acertar para não perder o pouco de tempo que lhe
resta. Daí que, antes de tudo, para não o perder, é-lhe forçoso ter
claramente em vista esse tempo que lhe é concedido e jogar uma dupla
partida do que já gastou e o que ainda permanece, e para isso tem que
o contabilizar. Como temos as horas contadas, temos que as contar, e
para contar o tempo, temos que o medir e para medi-lo, temos que
buscar a unidade de medida.
Mas eu não vim aqui hoje para dissertar sobre tão graves temas, mas
simplesmente para satisfazer o desejo que este Ateneu tem de
inauguração do retorno da sua normalidade. Haveria, para tal, uma
di culdade. Estou empenhado em longos e fortes trabalhos que
reclamam toda a minha atenção. Vim, precisamente, para descansar
alguns dias da dura faina em que ando enredado. Nesta situação, a
única coisa que posso fazer é insistir, dando-lhe outra forma, sobre o
tema de que, por acaso, tratei recentemente em uma conferência dada
em Lisboa — onde me propuseram responder à pergunta: “O que é o
teatro?”. É o que lhes ofereço. É um tema demasiado enviesado na
melhor tradição desta casa que sempre procurou ocupar-se com
assuntos aparentemente supér uos, até o ponto de que, inclusive ao se
falar aqui de política — que era com extrema freqüência — o espírito
da casa, o genius loci, conseguia fazer dela o que a política devia ser,
mas desgraçadamente não pode ser, a saber: a grande super uidade.
Mas sobre isso, sobre o que é a política, não só o que é a boa política,
diante da má, ou a má em relação à boa, senão em absoluto, o que, boa
ou má, a política é e, porque existe no Universo tão estranha coisa
como ela — questão que, ainda que parece mentira, nenhum pensador
enfrentou a fundo, a sério e por direito —, temos que falar jovens, e
muito! Não agora — mais adiante —, não sei bem quando — um dia
desses. Mas, vamos falar, jovens, longa e energicamente, porque temos
que ver nossas caras — nem é preciso falar disso —, a minha velha, e a
de vocês jovens.
Mas agora vamos falar do teatro, tema que nos permite da maneira
mais natural e como disse no começo, despojados de temores, recobrar
a continuidade. Continuemos.
3 Disputa entre escritores franceses, entre os quais Gérard de Nerval e éophile Gautier,
Charles Nodier e Sainte-Beuve, durante a encenação da peça Hernani, de Victor Hugo, em
1830. — nt
5 “Se queres que eu chore, demonstra primeiramente a própria dor”. Horácio, Arte poética,
vv. 102, 103. — nt
6 Dos bastidores. — nt
8 As maçãs do rosto. — nt
9 Leopoldo Alas “Clarín” (Zamora, 25 de abril de 1852 — Oviedo, 13 de junho de 1901) foi
um escritor e jurista espanhol, ligado ao movimento realista e naturalista. Foi professor na
Universidade de Zaragoza e na Universidade de Oviedo, além de crítico literário. — nt
10 Esta nova sensibilidade não se dá só nos criadores de arte, mas também em gente que é
apenas público. Quando eu disse que a nova arte é uma arte para artistas, entendia por tais, não
só os que produzem esta arte, mas ainda os que têm capacidade de perceber valores puramente
artísticos.
11 Cf. Miguel de Cervantes, Dom Quixote, partes ii e iii. Orbaneja, pintor de Ubeda,
precisava escrever “em letras góticas” os nomes dos objetos representados. — nt
13 O “ultraísmo” é um dos nomes mais certos que se tem forjado para denominar a nova
sensibilidade. [“A primeira vanguarda literária espanhola em língua castelhana surgiu entre
1918 e 1925, em redor do conceito de ultraísmo, rótulo em volta do qual se albergaria um
movimento literário cujo fundador principal seria Rafael Cansinos-Assens (Sevilha, 1883 —
Madrid, 1964) e que teria como principal animador Guillermo de Torre (Madrid, 1900 —
Buenos Aires, 1971)”. In E-Dicionário de termos literários de Carlos Ceia. Disponível em
https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/ultraismo/. Acesso em 10/12/2020. — nt]
14 Fez-se um ensaio neste sentido extremo (certas obras de Picasso), mas com exemplar
fracasso.
15 É o que faz a burla dadaísta. Pode-se notar (cf. a nota anterior) como as mesmas
extravagâncias e pretensões falidas da nova arte derivam com certa lógica de seu princípio
orgânico, o qual demonstra ex abundantia que se trata, com efeito, de um movimento unitário e
pleno de sentido.
18 Paráfrase: Sedulo curavi, humanas actiones non ridere, non lugere, neque detestari, sed
intelligere. [Trabalho com cuidado, não para ridicularizar, lamentar ou detestar, mas para
compreender as ações humanas]. Spinoza. Ética, iii. — nt
20 Causa e motivo são, pois, dois nexos completamente distintos. As causas de nossos
estados de consciência não existem para estes: é preciso que a ciência as veri que. Em troca, o
motivo de um sentimento, de uma volição, de uma crença, faz parte disso, é um nexo
consciente.
22 Uma análise mais detida do que Debussy representa na música romântica pode ser vista
em meu ensaio Musicalia, coligido em O Espectador [...].
25 Algo mais sobre a metáfora pode ser visto no ensaio As duas grandes metáforas,
publicado em O Espectador, tomo iv, 1925 [...], e no Ensaio de estética à guisa de prólogo [...].
28 Seria entediante repetir, em cada uma destas páginas, que cada um dos traços
sublinhados por mim como essenciais à nova arte deva ser entendido no sentido de propensões
predominantes, e não de atribuições absolutas.
31 “É a época [aos vinte anos] do primeiro encontro com a mulata Jeanne Duval, a Vênus
negra, gurante malograda de uma medíocre féerie levada à cena no éâtre du Panthéon. A
ela Baudelaire se unirá por quase toda a sua vida: Comme le forçat à la chaîne, (“Como uma
galé a seu grilhão”, trad. Mário Laranjeira) numa turbulenta e voluptuosa paixão; para ela serão
escritos alguns dos mais belos e comovidos poemas de que já teve notícia a literatura de língua
francesa”. Ivan Junqueira: “A arte de Baudelaire, 1”, in. C. Baudelaire, As ores do mal. Trad.
Ivan Junqueira. Rio de Janeiro, rj: Nova Fronteira, 2012. — nt
32 Seria interessante analisar os mecanismos psicológicos através dos quais a arte de outrora
in ui negativamente na posterior. Por ora, algo está claro: a fadiga. A mera repetição de um
estilo embota e cansa a sensibilidade. Wölffin mostrou em seus Conceitos fundamentais na
história da arte o poder que a fadiga tem, vez ou outra, para movimentar a arte, obrigando-a a
transformar-se. Mais ainda na literatura. Todavia, Cícero, por falar latim, dizia latine loqui; mas
no século v, Sidônio Apolinar vai dizer latialiter insusurrare. Eram demasiados séculos para
dizer o mesmo da mesma forma.
33 No periódico O sol. Logo, tem-se contestado minhas notas com um prólogo teórico
anteposto ao romance A nau dos loucos. [No Prólogo casi doctrinal sobre la novela, que el
lector sencillo puede saltar impunemente, de La nave de los locos (1925), Pío Baroja defende
sua teoria romanesca das críticas de Ortega y Gasset. A barca dos imbecis é uma sátira moral,
publicada em alto-alemão, como Das Narrenschiff, traduzida para o latim como Stultifera
Navis, de 1494, escrita por Sebastião Brand. Além de Baroja, a obra in uenciou, entre outros, O
elogio da loucura, de Erasmo de Roterdam, Rabelais, Cipolla e Foucault. — nt]
34 Benedetto Croce (1866–1952) foi um dos intelectuais mais in uentes de seu tempo. É
autor de Breviário de estética (1912), A poesia (1936), entre outros. — nt
37 Crítico de arte, Konrad Fiedler (1841–1895) foi um dos criadores da “Teoria da pura
visualidade” (Sichtbarkeit). — nt
38 Cf. o ensaio de Américo Castro à frente de um tomo de Tirso nos admiráveis Clássicos
castelhanos de A leitura.
39 Lope de Vega (1562–1635) e Calderón de La Barca (1600–1681). — nt
41 “Não se deseja o que não se conhece”, Ovídio, Arte de amar, 3, 397. Dicionário infopédia
de locuções latinas e expressões estrangeiras. Porto: Porto Editora, 2003/2020. Disponível em:
https://www.infopedia.pt/ dicionarios/locucoes-expressoes/ignoti nulla cupido. Acesso em 14
dez 2020. — nt
47 Refere-se ao Batistério de São João, em Florença, Itália, cuja arte foi composta
prodigiosamente por Lorenzo Ghiberti (1378–1455). — nt
49 Sobre esta questão na história, veja-se meu recente livro As atlântidas [...].
51 Poeta e romancista francês, Pierre Loÿss (1870– 1925) publicou, entre outros, Canções de
Bilitis (1894), uma das mais famosas fraudes literárias da história. — nt
54 Op. cit. — nt
56 Paisagem com ruínas (1642) de Nicolas Poussin (1594–1665), e Capriccio com ruínas do
Fórum Romano (1634) de Claude Lorrain (1600–1682). — nt
57 Refere-se aos vinhos portugueses. — nt
62 Feira da Ladra.
66 Corredores sem saída do bairro mais popular de Lisboa onde, por certo, valeria a pena
ouvir um fado da genial e belíssima fadista Amália Rodrigues.
67 Hamlet, de Shakespeare. — nt
68 Há uma canção folclórica e teológica americana que trata da mesma expressão: “Down in
the River to Pray”. A água pode representar tanto o nascimento (pelo batismo) como a morte.
Aí Jesus Cristo caminhando sobre as águas simboliza também a superação da morte.
Mantivemos, por isso, a preposição “em”, indicando a imersão simbólica. Cf. o lme O Brother,
Where Art ou? (E aí, meu irmão, cadê você? na versão brasileira), de 2000, dirigido por Joel e
Ethen Coen. — nt
69 Filha da ilustre e pioneira atriz do teatro Dona Maria, Sra. Amélia Rey Colaço de Robles
Monteiro. Marianinha estava para ensaiar essa cena poucos dias antes do fechamento em que
esta conferência foi pronunciada. — nt
74 No original, “¡Zeñó Míquez o zeñó Máiquez, que aquí no ze muere de mentirijilla como
en er teatro!” que parece combinar trocadilho e sotaque para produzir o efeito humorístico
referido pelo autor. — nt
76 Corrida campestre. — nt
77 Repito aqui com umas e outras variantes, as fórmulas que tantas vezes usei para de nir —
isto é, para fazer ver — o fenômeno radical em que a vida humana consiste. Estas expressões
não são ocorrências verbais; são termos técnicos, com aparência de vulgares, habituais na
linguagem coloquial. Que isso seja assim, ter que recorrer aos termos cotidianos, e não existir
na história inteira da loso a uma terminologia adequada para falar formalmente do fenômeno
vital, não é tampouco casualidade, ainda que seja uma vergonha para o passado losó co. Mas
o que seria frívolo é querer variar, em cada exposição desta doutrina fundamental, as
expressões, como se se tratasse meramente de expressar guras retóricas.
78 Charles Baudelaire, Pequenos poemas em prosa. Anywhere out of the World: “Em
qualquer lugar do mundo”. — nt
79 O outro mundo da religião não seria o caso, porque para ir até ele seria preciso antes de
tudo morrer e aqui se trata de transmigrar em vida.
82 Outra terceira linha de inspiração religiosa, que melhor pode denominar-se para-
religiosa, é a que encontra a sua forma mais perfeita no budismo.
85 Há vinte anos que nos falava o Dilthey: Das Leben ist eben mehrseitig. — A vida é
precisamente multilateral.
86 Lévy-Bruhl.
89 Ibid., p. 120.
90 Sobre o que são os estupefacientes, aliás, o “invento” mais antigo da humanidade, veja-se
meu Comentário ao banquete de Platão.
92 Poderá causar um pouco, e talvez, muita surpresa que Homero seja quali cado como
amaneirado. Mas não há nada o que fazer: O como e o porquê se verá em meu livro A origem
da loso a, na iminência de ser publicado.
93 Isso já está perfeito como “possessão eterna” em a Psique de Erwin Rhode, um livro
portentoso, que grandes asnos lológicos, como Wilamowitz-Moellendorf, conseguiram
desterrar e desquali car durante anos, embora a cada dia assume nova e maior refulgência.
94 Amputação dos membros, amarrando-os embaixo das axilas, para que o fantasma do
morto não retornasse para se vingar. — nt
95 Apolo em Delfos não outorgava oráculos mediante visões senão mediante a interpretação
racional de certos signos. Os intérpretes, adscritos a seu templo, chamavam-se profetas no seu
sentido estrito dessa palavra, para os gregos como para os hebreus. Na tradução Septuaginta, da
Bíblia, traduz-se — e mal — o vocábulo hebreu nabi, que signi ca algo muito diferente.
Quando a religião dionisíaca entrou triunfante em Delfos e Apolo teve que compactuar com
ela, introduziu-se ali a adivinhação — μαντεία — através de visões que a Sibila obtinha
intoxicando-se com vapores mefíticos. Uma das datas marcantes da história grega foi aquela da
entronização da Sibila, em torno de 660 a.C. Todavia, em Heráclito (475 a.C.) repercute o efeito
desta tremenda inovação. Cf. meu livro A origem da loso a.
97 Hesíodo, Teogonia, v. 44. [Na tradução de Bruno Palavro: “Raça louvável de deuses...”, in.:
A eogonia de Hesíodo. tcc: ufrgs. Porto Alegre, 2019. p. 56. — nt]
98 Conferir sobre tudo isso em Comentário ao banquete de Platão — capítulo intitulado: “In
vino Veritas ou o pensar visionário e o pensar lógico”.
102 Dança espanhola da corte dos séculos xvi e xvii, de caráter calmo e solene. — nt
103 Dia em que se libava com hidromel — água, vinho e mel — sobre o túmulo dos mortos.
Um exemplo de liberação (χοαί) aos deuses subterrâneos pode ser encontrada em Deus nasceu
no Exílio, do romeno Vintila Horia, editado pela Flamboyant, 1961. — nt
104 É notório que o verso primigênio não tinha intenção nem sentido prático, senão mágico
ou jurídico: é conjuro ou lei. Para citar só um caso espanhol, recorde-se que no périplo de
Avieno, dize-se que tartesios, quer dizer, os proto-andaluzes, já tinham um som de
“seguidilhas”.
105 O vocábulo só era usado nesta forma que é a plural, para “as atuações rituais”.
106 Cf. R. Otto, O santo. Tradução da Revista do Ocidente, 1925. [Em edição brasileira: R.
Otto. O sagrado. Tradução Walter O. Schlupp. Ed. Vozes, 2007. — nt]
108 Cf. o melhor estudo que existe hoje em dia sobre este problema das origens: Pickard
Cambridge: Dithyramb, Tragedy and Comedy, 1927, p. 104.
109 Não há o que dizer sobre esta etimologia popular de “tragédia”, sendo sumamente
problemática.
110 Os “bufões” seriam, pois, idênticos ao bull-roarers de que falam os atuais etnógrafos
ingleses.
112 Este egrégio livro, cuja tradução foi publicada em minha pequena aventura editorial, o
Editorial Azar-Lisboa, é, em parte, inspirado pelas minhas idéias, enunciadas em ensaios muito
antigos, sobre “o sentido desportivo e festivo da vida”. Em conversas privadas, Huizinga disse-
me, muitas vezes, em que medida as breves insinuações feitas lhe haviam movido a empreender
sua grande obra sobre esse tema.
113 Na Grécia, há muitos séculos, dava-se a mesma resistência aos ingressos da religião
dionisíaca nos costumes da polis e também ali o místico, jucundo e intoxicante frenesi do deus
triunfou.
114 “Coeterum quae res sit ignorare: alios deorum aliquot cultum, alios concessum ludum et
lasciviam credere”. Tito Lívio, livro 39, xv. Pelo visto, adorava-se uma deusa Simula ou Stimula
(Juvenal, ii, 5). Santo Agostinho diz que se chamava assim porque estimulava, quer dizer,
intoxicava. De Civitade Dei [A cidade de Deus], iv, 11 e 16. Sem dúvida, trata-se de Sêmele,
mãe de Dioniso-Baco; conferir Macróbio: Saturnalia, I, 12, e Ovídio: Fastos, vi, 65.
115 Já faz bastantes anos que Cartailhac e o abade Brewil presumiram isto: “Le masque
devait être connu par nos artistes paléolithiques et aussi la danse masquée”. La Caverne de
Santillane près Santander, pp. 142–143. [A máscara devia ser conhecida pelos nossos artistas no
paleolítico e também o baile de máscaras]. Posteriormente esta antecipação veio a se con rmar
plenamente.
116 Nem o “existencialismo” teria feito nada de errado, assumindo desta forma a nitude
constitutiva do homem, com a qual também teria conseguido evitar o presente melodrama.
117 É a tese de Lévy-Bruhl que, inconcebivelmente, arrasta quase todo o mundo, a não ser,
claro, Bergson, que a tritura galantemente, como sem querer.
118 Cf. meu Apontamentos sobre o pensamento, sua teurgia e sua demiurgia, no fascículo
primeiro da revista Logos, 1941, da Faculdade de Filoso a e Letras de Buenos Aires.
120 “Em suma, a forma de seus julgamentos não nos espanta apenas por não estar em
acordo com seu conteúdo”. Meyerson, E. Du cheminement de la pensée, 1931. — nt
121 Só como sintoma da puerilidade e inconsciência com que atua, por tudo, esta revoada da
moda “existencialista”, basta notar que o autor a quem se atribuem suas teses principais —
Heidegger — protestou que sua loso a se chamasse “existencialismo”. Assim, nada mais, nada
menos. Daí em diante, em toda esta tendência, topamos com uma série de irresponsabilidades,
de tolices e, em suma, de um típico “sensitismo intelectual”.
122 A análise formal de sua doutrina, especialmente neste ponto da morte como “a mais
própria possibilidade da vida” está em meu livro Epílogo...
123 José Mármol, El Reloj [O Relógio], in. José Mármol, Cantos del Peregrino. Poesías
diversas. Buenos Aires: Felix Lajoune, 1889, p. 508. — nt