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A desumanização da arte & outros escritos

José Ortega y Gasset


1ª edição — abril de 2021 — CEDET
Título original: La deshumanización del arte; Ideas sobre la novela; El arte en presente y en
pretérito; Idea del teatro
Copyright © by Herederos de José Ortega y Gasset.
Publicado originalmente em 1925 pela Revista de Occidente como La deshumanización del arte
e ideas sobre la novela.
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Editor:
omaz Perroni
Tradução:
Wagner Schadeck
Revisão:
Luciano Vieira
Preparação de texto:
Letícia de Paula
Capa:
Guilherme Conejo Lopes
Diagramação:
Virgínia Morais
Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo
F C
Ortega y Gasset, José.
A desumanização da arte & outros escritos / José Ortega y Gasset; tradução de Wagner
Schadeck — Campinas, sp: Vide Editorial, 2021.
ISBN: 978-65-87138-26-8
1. Filoso a. 2. Teoria e loso a da arte.
I. Título II. Autor
CDD — 100 / 700.01
Í P C S
1. Filoso a — 100
2. Teoria e loso a da arte — 700.01
VIDE Editorial — www.videeditorial.com.br
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qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro
meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.
Sumário
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“Non creda donna Berta e ser Martino...”1
— Divina comédia, Paraíso, 

Impopularidade da nova arte


E ntre as muitas idéias geniais, ainda que mal desenvolvidas, do
genial francês Guyau, há que contar sua intenção de estudar a arte
do ponto de vista sociológico. No começo lhe ocorreu o pensamento
de que esse tema parecia estéril. Tomar a arte por seus efeitos sociais
parece-se muito mais com considerar o rabanete pelas folhas ou
estudar o homem por sua sombra. Os efeitos sociais da arte são, à
primeira vista, coisa tão extrínseca, tão remota da essência estética,
que não se vê bem como, partindo deles, se poderia penetrar na
intimidade dos estilos. Guyau, certamente, não extraiu o melhor juízo
de sua intenção. A brevidade de sua vida e aquele seu trágico anelo de
morte impediram que amainasse suas inspirações e, deixando de lado
tudo o que é óbvio e primitivo, pudesse persistir no mais substancial e
recôndito. Pode-se dizer que de seu livro A arte do ponto de vista
sociológico só existe o título; o resto está ainda por escrever.

A fecundidade de uma sociologia da arte foi-me revelada


inesperadamente, quando há anos ocorreu-me um dia escrever algo
sobre a nova época musical, começando com Debussy.2 Eu me
propunha a de nir com a maior clareza possível a diferença de estilo
entre a nova música e a tradicional. O problema era rigorosamente
estético e, no entanto, notei que o caminho mais curto para ele partiria
de um fenômeno sociológico: a impopularidade da nova música.
Eu gostaria de fazer mais no geral, referindo-me a todas as artes que
ainda vigoram na Europa; portanto, junto com a nova música, a nova
pintura, a nova poesia, o novo teatro. É, em verdade, surpreendente e
misteriosa, a compacta solidariedade consigo mesma que cada época
histórica mantém em todas as suas manifestações. Uma inspiração
idêntica, um mesmo estilo biológico, pulsa nas diversas artes. Sem se
dar conta disso, o jovem músico aspira realizar com sons exatamente
os mesmos valores estéticos que o pintor, o poeta e o dramaturgo,
contemporâneos seus. E esta identidade de sentido artístico deve
render, forçosamente, idêntica conseqüência sociológica. Com efeito, à
impopularidade da nova música corresponde uma impopularidade de
igual cariz nas demais musas. Toda a arte jovem é impopular, e não
por acaso e acidente, mas por virtude de um destino essencial.

Pode-se dizer que todo o estilo recém-chegado numa etapa de


enfermidade, a recordar a batalha de Hernani3 e os demais combates,
surge com o advento do romantismo. No entanto, a impopularidade da
nova arte é de sionomia bastante distinta. Convém distinguir entre o
que não é popular e o que é impopular. O estilo que inova demora
algum tempo para conquistar popularidade; não é popular, e
tampouco impopular. O exemplo da erupção romântica que se
costuma aduzir foi, como fenômeno sociológico, perfeitamente oposto
ao que a arte agora apresenta. O romantismo conquistou muito
rapidamente o “povo”, para o qual a velha arte clássica não era nunca
coisa estranha. O inimigo com quem o romantismo teve que pelejar
foi precisamente uma minoria seleta que cou ancilosada nas formas
arcaicas do “antigo regime” poético. As obras românticas são as
primeiras — desde a invenção da imprensa — que desfrutam de
grandes tiragens. O romantismo foi por excelência o estilo popular.
Primigênio da democracia, foi tratado com mais mimo pela massa.

Ao contrário, a nova arte tem a massa contra si, e a terá sempre. É


impopular por essência; mais ainda: é antipopular. Uma obra qualquer
por ela engendrada produz no público automaticamente um curioso
efeito sociológico, dividindo-o em duas frações: uma, a mínima,
formada por um reduzido número de pessoas, que lhe são favoráveis; e
outra, majoritária, imutável, que lhe é hostil. (Deixemos de lado a
fauna equívoca dos snobs.) A obra de arte atua, pois, como um poder
social que encerra dois grupos antagônicos, separando e selecionando,
no montante informe da multidão, castas diferentes de homens.

Qual é o princípio diferenciador destas duas castas? Toda a obra de


arte suscita divergências: gosto, para alguns; para outros, não; para
alguns, menos; para outros, mais. Esta dissociação não tem caráter
orgânico; não obedece a algum princípio. Pelo acaso de nossa índole
individual, estaremos entre uns ou entre outros. Mas no caso da nova
arte, a disjunção é produzida num plano mais profundo do que aquele
em que se movem as variedades do gosto individual. Não se trata de
que a maioria do público não goste de obras jovens, e a maioria, sim.
O que acontece é que a maioria, a massa, não a entende. As velhas
platéias que assistiam à representação de Hernani entendiam muito
bem o drama de Victor Hugo, e, precisamente porque o entendiam,
não gostavam dele. Fiéis a determinada sensibilidade estética, sentiam
repugnância pelos novos valores artísticos que o romantismo lhes
propunha. A meu juízo, o que caracteriza a nova arte, “do ponto de
vista sociológico”, é a divisão do público em duas classes de homens: os
que a entendem e os que a não entendem. Isto implica que alguns
possuem órgão de compreensão negado, ao contrário dos outros;
sendo duas variantes distintas da espécie humana. A nova arte, pelo
visto, não é para todo o mundo, como o romântico, mas se dirige
então a uma minoria especialmente dotada. Daí a irritação que
desperta na massa. Quando alguém não gosta de uma obra de arte,
embora a compreenda, sente-se superior a ela, sem irritação. Contudo,
quando o desgosto que a obra de arte causa nasce de seu
desentendimento, o homem ca como humilhado, com uma obscura
consciência de sua inferioridade que necessita compensar através da
indignada a rmação de si mesmo frente à obra. A jovem arte, como
assim se apresenta, obriga o bom burguês a sentir-se tal e como é: bom
burguês, ente incapaz de sacramentos artísticos, cego e surdo a toda a
pura beleza. Pois bem, isto não pode acontecer impunemente depois
de cem anos de lisonja onímoda da massa e apoteose do “povo”.
Habituada a predominar totalmente, a massa sente-se ofendida em
seus “direitos humanos” pela nova arte, que é uma arte de privilégio,
de nobreza de nervos, de aristocracia instintiva. Onde quer que se
apresentem as jovens musas, a massa as escoiceia.

Durante um século e meio, o “povo”, a “massa”, pretendeu ser toda a


sociedade. A música de Stravinsky ou o drama de Pirandello têm a
e cácia sociológica de obrigar-lhe a reconhecer-se como é, como “só
povo”, mero ingrediente, entre outros, da estrutura social, matéria
inerte do processo histórico, fator secundário do cosmos espiritual.
Por outro lado, a jovem arte contribui também para que os “melhores”
se conheçam e se reconheçam, entre o opaco da multidão, aprendendo
sua missão, que consiste em ser poucos, tendo que combater muitos.

Aproxima-se o tempo em que a sociedade, da política à arte, voltará a


organizar-se, como deve ser, em duas ordens ou ramos: a dos homens
egrégios e a dos homens vulgares. Todo o mal-estar da Europa virá a
deslocar-se e curar-se nessa nova e salví ca excursão. A unidade
indiferente, caótica, informe, sem arquitetura anatômica, sem
disciplina regente em que se vê no espaço de cento e cinqüenta anos,
não pode continuar. Sob toda a vida contemporânea, lateja uma
injustiça profunda e irritante; o falso pressuposto da igualdade real
entre os homens. E cada passo que damos entre esses, mostra-nos tão
evidentemente o contrário, pois cada passo é um tropeço doloroso.

Se a questão se iniciar pela política, as paixões suscitadas são tais que


talvez não seja ainda boa hora para ela ser compreendida.
Afortunadamente, a solidariedade do espírito histórico, aludida
anteriormente, permite subtrair com toda a clareza, com
tranqüilidade, na arte germinal de nossa época, os mesmos sintomas e
anúncios da reforma moral que se apresentam na política
obscurecidos pelas baixas paixões.

Dizia o evangelista: Nolite eri sicut equus et mulus quibus nos est
intellectus. Não sejais como o cavalo e a mula, que carecem de
entendimento. A massa escoiceia e não entende. Pretendemos fazer o
contrário. Extraiamos da jovem arte seu princípio essencial, e então
veremos em que sentido profundo ela é impopular.

A arte artística
Se a nova arte não é inteligível para todo o mundo, quer dizer que seus
meios não são genericamente humanos. Não é uma arte para os
homens em geral, mas para uma classe muito particular de homens
que poderá não valer mais do que as outras, embora seja
evidentemente distinta.

Convém, antes de tudo, precisar uma coisa: o que a maioria da gente


chama de gozo estético? O que acontece em seu ânimo quando “gosta”
de uma obra de arte, por exemplo, uma produção teatral? A resposta é
indubitável: a gente gosta de um drama quando consegue interessar-se
pelos destinos humanos propostos. Os amores, ódios, penas, alegrias
das personagens comovem seu coração: toma parte neles como se
fossem casos reais da vida. E diz que é “boa” a obra quando esta
consegue produzir a quantidade de ilusões necessárias para que os
personagens imaginários surjam como pessoas vivas. Na lírica, ela
buscará amores e dores do homem que lateja sob o poeta. Na pintura,
só lhe serão atrativos os quadros onde encontre guras de varões e
fêmeas, com os quais, em algum sentido, fora interessante conviver.
Um quadro de paisagem lhe parecerá “bonito”, quando a paisagem real
que representa mereça, por sua amenidade ou patetismo, ser visitada
em uma excursão.

Isto quer dizer que para a maioria da gente o gozo estético não é uma
atitude espiritual diversa em essência da que habitualmente adota pelo
resto da vida. Só se distingue desta em qualidades adjetivas: é, talvez,
menos utilitária, mais densa e sem conseqüências penosas. Mas, em
de nitivo, o objeto de que se ocupa na arte, o que serve de m para
sua atenção, e com ela às demais potências, é o mesmo que na
existência cotidiana: guras e paixões humanas. E chamará arte ao
conjunto de meios pelos quais lhe é proporcionado esse contato com
coisas humanas interessantes. De tal sorte que só tolerará as formas
propriamente artísticas, as irrealidades, a fantasia, na medida em que
não interceptem sua percepção das formas e peripécias humanas. Tão
rápido quanto estes elementos puramente estéticos dominam, não
podendo alcançar bem a história de João e Maria, o público ca
perdido sem saber o que fazer diante do cenário, do livro ou do
quadro. É natural; não conhece outra atitude diante dos objetos senão
a prática, a que nos leva à paixão, intervindo sentimentalmente em si.
Uma obra que não lhe convide a esta intervenção deixa-lhe sem papel.

Pois bem, neste ponto, convém que cheguemos a um perfeito


esclarecimento: alegrar-se ou sofrer com os destinos humanos que
talvez a obra de arte nos mostre ou nos apresente é algo muito
diferente do verdadeiro gozo artístico. Mais ainda: essa ocupação com
o humano da obra é, em princípio, incompatível com a estrita fruição
estética.

Trata-se de uma questão de ótica sumamente simples. Para ver um


objeto, temos que acomodar de uma certa maneira nosso aparelho
ocular. Se nossa acomodação visual é inadequada, não veremos o
objeto ou o veremos mal. Imagine, leitor, que estamos olhando um
jardim através do vidro de uma janela. Nossos olhos acomodaram-se
de sorte que o raio da visão penetra o vidro, sem se deter nele,
prendendo-se nas ores e frondes. Como a meta da visão é o jardim e
até ele vai avançando o raio visual, não veremos o vidro; o nosso olhar
passará através dele, sem o perceber. Quanto mais puro é o cristal,
menos o veremos. Mas logo, fazendo um esforço, podemos esquecer
do jardim e, encurtando o raio visual, detê-lo no vidro. Então o jardim
desaparece de nossos olhos e dele só vemos umas massas de cores
confusas que parecem esboços no cristal. Portanto, ver o jardim e ver o
vidro da janela são duas operações incompatíveis: uma exclui a outra,
e ambas requerem acomodações oculares diferentes.

Assim, aqueles que procuram na obra de arte comover-se com os


destinos de João e Maria ou de Tristão e Isolda, e a eles “acomoda” sua
percepção espiritual, não verá a obra de arte. A desgraça de Tristão
torna-se apenas a sua própria desgraça e, portanto, se comoverá na
medida em que seja admitida como real. Também é o caso dos objetos
artísticos, que somente são artísticos enquanto não sejam reais. Para
poder apreciar o retrato eqüestre de Carlos , feito por Ticiano, a
condição inelutável é que não vejamos ali Carlos  em pessoa,
autêntico e vivente, mas, em seu lugar, vejamos só um retrato, uma
imagem irreal, uma cção. O retratado e seu retrato são dois objetos
completamente distintos: ou nos interessamos por um ou por outro.
No primeiro caso, “convivemos” com Carlos  ; no segundo,
“contemplamos” um objeto artístico como tal.

Pois bem, a maioria das gentes é incapaz de acomodar sua atenção no


vidro e transparência que é a obra de arte: em vez disso, passa através
dela sem se xar, recaindo apaixonadamente na realidade humana da
obra referida. Se lhe convidamos a largar esta presa, detendo a atenção
na própria obra de arte, dirá que não vê nela nada, porque, com efeito,
não vê nela coisas humanas, mas só transparências artísticas, puras
virtualidades.

Durante o século , os artistas procederam demasiado


impuramente. Reduziam a um mínimo os elementos estritamente
estéticos, fazendo a obra consistir, quase totalmente, na cção de
realidades humanas. Neste sentido, é preciso dizer que, com um ou
outro cariz, toda a arte normal do século passado foi realista. Realistas
foram Beethoven e Wagner. Foram realistas tanto Chateaubriand
como Zola. Romantismo e naturalismo, vistos à altura hodierna,
aproximam-se, descobrindo sua raiz comum realista.

Produtos desta natureza só são parcialmente obras de arte, ou objetos


artísticos. Para gozar disso, não precisam desse poder de acomodação
ao virtual e transparente, que constitui a sensibilidade artística. Basta
possuir sensibilidade humana, e deixar que repercutam em alguém as
angústias e alegrias do próximo. Compreende-se, pois, que a arte do
século  tenha sido tão popular: foi feita para a massa indistinta, na
medida em que não é arte, mas extrato de vida. Recorde-se que em
todas as épocas nas quais houve dois tipos diferentes de arte, um para
minorias e outro para a maioria,4 esta última foi sempre realista.

Não discutamos agora se é possível uma arte pura. Talvez não seja,
mas as razões que nos conduzem a esta negação são um pouco longas
e difíceis. Mais vale, pois, deixar o tema intacto. Ademais, não é muito
importante para o que vamos falar agora. Ainda que uma arte pura
seja impossível, não há dúvida alguma de que existe uma tendência à
puri cação da arte. Esta tendência a uma eliminação progressiva dos
elementos humanos, demasiado humanos, que predominavam nas
produções romântica e naturalista. E neste processo, poderá se chegar
a um ponto em que o conteúdo humano da obra seja tão escasso
quanto o que não é visto. Então teremos um objeto que só pode ser
percebido por quem possua esse dom peculiar da sensibilidade
artística. Será uma arte para artista, e não para a massa dos homens;
será uma arte de casta, e não demótica.

Eis aqui por que a nova arte divide o público em duas classes de
indivíduos: os que a entendem e os que a não entendem; isto é, os
artistas e os que não o são. A nova arte é uma arte artística.

E não pretendo agora endossar este novo modo de arte, menos ainda
denegrir a usada no último século. Limito-me a sua liação, como faz
o zoólogo com duas faunas antagônicas. A nova arte é um fato
universal. Faz vinte anos, os jovens mais alertas de duas gerações
sucessivas — em Paris, em Berlim, em Londres, Nova York, Madri —
estão espantados pelo fato inelutável de que a arte tradicional não lhes
interessava; mais ainda, lhes repugnava. Com esses jovens, convém
fazer das duas uma: ou fuzilá-los ou esforçar-se para os compreender.
Eu optei por esta segunda. E logo notei que neles germina um novo
sentido da arte, perfeitamente claro, coerente e racional. Longe de ser
um capricho; seu sentimento signi ca o resultado inevitável e fecundo
de toda a evolução artística anterior. O caprichoso, o arbitrário e, por
conseqüência, estéril, é resistir a este novo estilo, obstinando-se na
reclusão dentro de formas já arcaicas, exaustas e periclitantes. Em arte,
como na moral, o dever não depende de nosso arbítrio; há que aceitar
o imperativo de trabalho que a época nos impõe. Esta docilidade à
ordem do tempo é a única probabilidade de acertar que o indivíduo
tem. Ainda assim, talvez nada consiga; mas seu fracasso é muito mais
seguro, se se obstina em compor uma ópera wagneriana mais, ou uma
novela naturalista.

Em arte, toda a repetição é nula. Cada estilo que aparece na história


pode engendrar certo número de formas diferentes dentro de um tipo
genérico. Mas chega um dia em que se esgota o talento magní co. Isto
se dá, por exemplo, com o romance e o teatro romântico-naturalista. É
um erro ingênuo crer que a esterilidade atual de ambos os gêneros se
deva à ausência de talentos pessoais. O que acontece é que se esgotam
as combinações possíveis dentro deles. Por esta razão, deve-se julgar
venturoso que a emergência de nossa sensibilidade, capaz de achar
novos talentos intactos, coincida com este esgotamento.

Se se analisa o novo estilo, acham-se nele certas tendências


sumamente conexas entre si. Tende: 1º, à desumanização da arte; 2º, a
evitar as formas vivas; 3º, faz com que a obra de arte não seja senão
obra de arte; 4º, considera a arte como jogo, e nada mais; 5º, há uma
ironia essencial; 6º, a ocultar toda a falsidade e, portanto, sua
escrupulosa realização. E por m, 7º, a arte, segundo os artistas jovens,
é uma coisa sem transcendência alguma.

Esbocemos brevemente cada uma destas faces da nova arte.

Algumas gotas de fenomenologia


Um homem ilustre agoniza. Sua mulher está ao lado do leito. Um
médico mede as pulsações do moribundo. No fundo da casa, há outras
duas pessoas: um jornalista, que assiste à cena de óbito por razão de
seu ofício, e um pintor que por acaso foi conduzido para lá. Esposa,
médico, jornalista e pintor presenciam um mesmo fato. No entanto,
este único e mesmo fato — a agonia de um homem — oferece-se a
cada um deles com aspecto distinto. Tão distintos são estes aspectos
que apenas têm um núcleo comum. A diferença entre o que é para a
mulher transida de dor e para o pintor que, impassível, olha a cena, é
tanta, que quase seria mais exato dizer que a esposa e o pintor
presenciam dois fatos diferentes.

É, pois, a quebra de uma mesma realidade em muitas realidades, tão


divergentes quanto for o olhar, de pontos de vista distintos. E nos
ocorre a pergunta: qual dessas múltiplas realidades é a verdadeira, a
autêntica? Qualquer decisão que tomemos será arbitrária. Nossa
preferência por uma ou outra só pode se fundar no capricho. Todas
essas realidades são equivalentes, cada uma é autêntica para a
congruência de seu ponto de vista. A única coisa que podemos fazer é
classi car estes pontos de vista e eleger entre eles o que praticamente
pareça mais comum ou mais espontâneo. Assim chegaremos a uma
noção nada absoluta, mas sim, ao menos, prática e normativa da
realidade.

O meio mais claro de diferenciar os pontos de vista dessas quatro


pessoas que assistem à cena fatal consiste em medir uma de suas
dimensões: a distância espiritual a que cada uma encontra-se do fato
comum, da agonia. Na mulher do moribundo, esta distância é mínima,
tanto que quase não existe. A seqüência lamentável atormenta de tal
modo seu coração que ocupa muita porção de sua alma, confundindo-
se com seu ser, ou dito ao contrário: a mulher intervém na cena, é um
ramo dela. Para que possamos ver algo, para que um fato se converta
em objeto que contemplamos, é mister nos separar dele, deixando-o
como parte viva de nosso ser. A mulher, pois, não assiste à cena; a cena
está dentro dela; não a contempla; vive-a.

O médico encontra-se já um pouco mais distante. Para ele, trata-se de


um caso pro ssional. Não intervém no fato com a apaixonada e cega
angústia que inunda a alma da pobre mulher. No entanto, seu ofício
obriga-lhe a interessar-se seriamente pelo que ocorre: tem alguma
responsabilidade nele, se não seu prestígio ca ameaçado. Portanto,
ainda que menos íntegra e intimamente do que a esposa, ele toma
também parte no fato, a cena apodera-se dele, arrastando-o a seu
dramático interior, prendendo-o, já que não por seu coração, pelo
fragmento pro ssional de seu ser. Também ele vive o triste
acontecimento, embora com emoções que não partem de seu centro
cordial, mas de sua periferia pro ssional.

Quando nos situamos então no ponto de vista do repórter, notamos


que nos distanciamos enormemente daquela dolorosa realidade. Tanto
nos distanciamos que perdemos o contato sentimental com o fato. O
jornalista está ali como o médico, obrigado por seu ofício; não por
espontâneo e humano impulso. Mas enquanto a pro ssão do médico
obriga-o a intervir no acontecimento, a do jornalista obriga-o
precisamente a não intervir: deve limitar-se a ver. Para ele,
propriamente, o fato é pura cena, mero espetáculo que logo deverá
relatar nas colunas do jornal. Não participa sentimentalmente do que
ocorre ali; acha-se espiritualmente isento e fora do acontecimento; não
o vive; contempla-o. No entanto, contempla-o com a preocupação de
logo o ter que reportar a seus leitores. Gostaria de interessá-los,
comovê-los e, sendo possível, conseguir que todos os assinantes
derramem lágrimas, como se fossem transitórios parentes do
moribundo. Na escola, lera a receita de Horácio: Si vis me ere,
dolendum est primum ipsi tibi.5

Dócil a Horácio, o jornalista procura ngir emoção para logo


alimentar sua literatura com ela. E acaba por, ainda que não “viva” a
cena, “ ngir” tê-la vivido.

Por último, o pintor, indiferente, não faz mais que tar em coulisse.6
Despreocupado, olha o acontecimento; está, como se costuma dizer, a
cem mil léguas do fato. Sua atitude é puramente contemplativa e,
convém ainda dizer que não o contempla em sua totalidade; o
doloroso sentido interior do fato está fora de sua percepção. Só está
atento ao exterior, às luzes e sombras, aos valores cromáticos. No
pintor, chegamos ao máximo distanciamento e à mínima intervenção
sentimental.
O pesar inevitável desta análise estaria compensado se nos permitisse
falar com clareza de uma escala de distâncias espirituais entre nós e a
realidade. Nessa escala, os graus de proximidade equivalem aos graus
de participação sentimental no fato; os graus de distanciamento, pelo
contrário, signi cam graus de liberação em que objetivamos o
acontecimento real, convertendo-o em puro tema de contemplação.
Situados em um dos extremos, encontramo-nos com um aspecto do
mundo — pessoas, coisas, situações —, que é a realidade “vivida”; do
outro extremo, ao contrário, vemos tudo em seu aspecto de realidade
“contemplada”.

Até aqui zemos um comentário essencial para a estética, sem o qual


não nos seria possível penetrar na siologia da arte, tanto da velha
quanto da nova. Entre esses diversos aspectos da realidade, que
correspondem aos vários pontos de vista, existe um de que derivam
todos os demais, pressuposto em todos eles. É o da realidade vivida. Se
não houvesse alguém que vivesse em pura entrega e frenesi a agonia de
um homem, o médico não se preocuparia com ela, os leitores não
entenderiam os gestos patéticos do jornalista que descreve o
acontecimento e o quadro em que o pintor represente um homem
num leito, rodeado de guras dolentes, seria-nos ininteligível. O
mesmo se poderia dizer de qualquer outro objeto, seja pessoa ou coisa.
A forma primogênita de uma maçã é a que ela possui quando nós a
comemos. Em todas as demais formas possíveis que adote — por
exemplo, a que um artista de 1600 lhe dera, combinando com um
ornamento barroco, ou a que se apresenta em um bodegón7 ou na
metáfora elemental que faz dela uma bochecha de moça8 —
conservam mais ou menos aquele aspecto originário. Um quadro, uma
poesia onde não que resto algum das formas vividas, seria
ininteligível, quer dizer, não seria nada, como nada seria um discurso
onde a cada palavra se houvesse extirpado sua signi cação habitual.

Quer dizer que, na escala das realidades, a realidade vivida tem uma
peculiar primazia que nos obriga a considerá-la como “a” realidade
por excelência. Em vez de realidade vivida, poderíamos dizer realidade
humana. O pintor que presencia impassível a cena agônica parece
“inumano”. Digamos que, pois, o ponto de vista humano é aquele em
que “vivemos” as situações, as pessoas, as coisas. E, vice-versa, todas as
realidades são humanas — mulher, paisagem, peripécia — quando
oferecem o aspecto sob o qual costumam ser vividas.

Um exemplo, cuja importância o leitor notará mais adiante: entre as


realidades que integram o mundo estão as nossas idéias. Nós as
usamos “humanamente”, quando com elas pensamos as coisas, quer
dizer, que, ao pensar em Napoleão, o normal é que atentemos
exclusivamente ao grande homem assim chamado. Ao contrário, o
psicólogo, adotando um ponto de vista anormal, “inumano”, não se
atenta a Napoleão e, olhando ao seu próprio interior, procura analisar
sua idéia de Napoleão como idéia. Trata-se, pois, de uma perspectiva
oposta à que usamos na vida espontânea. Em vez de ser a idéia o
instrumento com que pensamos um objeto, fazemos dela objeto e m
de nosso pensamento. Logo veremos o uso inesperado que a nova arte
faz desta inversão inumana.

Começa a desumanização da arte


Com rapidez vertiginosa, a jovem arte dissociou-se a uma multidão de
direções e intenções divergentes. Nada é mais fácil do que subtrair as
diferenças entre algumas produções e outras. Mas esta acentuação do
diferencial e especí co estará vazia se primeiramente não se determina
o fundo comum que diversamente, às vezes contraditoriamente,
con rma-se em todas. O nosso bom e velho Aristóteles já assinalava
que se diferenciam as coisas diferentes no que se assemelham, quer
dizer, em certo caráter comum. Porque todos os corpos têm cor,
notamos que alguns têm cor diferente da dos outros. As espécies são
precisamente especi cações de um gênero, e só as entendemos quando
as vemos modular em formas diversas seu patrimônio comum.

As direções particulares da jovem arte interessam-me mediocremente


e, salvas algumas exceções, interessa-me ainda menos cada obra em
particular. Mas então esta minha valoração dos novos produtos
artísticos não deve ser interessante a ninguém. Os escritores que
reduzem sua inspiração a expressar sua estima ou desprezo pelas obras
de arte não deveriam escrever. Não servem para este árduo mister.
Como dizia Clarin9 sobre alguns torpes dramaturgos, seria melhor que
dedicassem seu esforço a outras tarefas; por exemplo, a constituir uma
família. Tem-na? Pois constituam outra.

O importante é que existe no mundo o fato indubitável de uma nova


sensibilidade estética.10 Diante da pluralidade de direções especiais e
de obras individuais, essa sensibilidade representa o genérico e como o
manancial daquelas. Parece de algum interesse de nir isso.

E buscando a nota mais genérica e característica da nova produção,


encontro a tendência a desumanizar a arte. O parágrafo anterior
proporcionou certa precisão a esta fórmula.

Se ao comparar um quadro à nova maneira com outro de 1860,


seguimos a ordem mais simples, começaremos por confrontar os
objetos que, em um e outro caso, estão representados, talvez um
homem, uma casa, uma montanha. Subitamente, nota-se que o artista
de 1860 propôs, antes de tudo, que os objetos em seu quadro tenham o
mesmo ar e aspecto que têm fora dele, quando fazem parte da
realidade vivida ou humana. É possível que, além disso, o artista de
1860 propusesse muitas outras complicações estéticas, mas o
importante é notar que começa a rmando essa semelhança. Homem,
casa e montanha são reconhecidos imediatamente: são nossos velhos
amigos habituais. Ao contrário, no quadro recente, custa-nos trabalho
reconhecê-los. O espectador pensa que talvez o pintor não saiba
encontrar a semelhança. Mas também o quadro de 1860 pode estar
“mal pintado”, quer dizer, entre os objetos do quadro e estes mesmos
objetos fora dele, existe uma grande distância, uma importante
divergência. No entanto, qualquer que seja a distância, os erros do
artista tradicional indicam o objeto “humano”; são declives até ele,
equivalendo ao “isto é um galo” com que o Orbaneja cervantino11
orientava seu público. No quadro recente acontece tudo ao contrário:
não é que o pintor erre, e que seus desvios do “natural” (natural =
humano) não alcancem isso; é que assinalam um caminho oposto ao
que nos pode conduzir ao objeto humano.

Em vez de seguir mais ou menos torpemente a realidade, o pintor


está contra ela. Propôs-se denodadamente a deformá-la, romper seu
aspecto humano, desumanizá-la. Com as coisas representadas no
quadro tradicional, poderíamos conviver ilusoriamente. A Gioconda12
apaixona muitos ingleses. Com as coisas representadas nos novos
quadros, é impossível a convivência: ao extrair-lhes o aspecto de
realidade vivida, o pintor corta a ponte e queima os barcos que nos
podiam transportar ao mundo habitual. Deixa-nos fechados num
universo abstruso, forçando-nos a ter contato com objetos, com os
quais não somos capazes de relacionar-nos humanamente. Temos,
pois, que improvisar outra forma de contato, por causa da completa
distinção do modo usual de ser das coisas; temos de criar e inventar
atos inéditos que sejam adequados àquelas guras insólitas. Esta nova
vida, esta vida inventada, prévia anulação da espontânea, é
precisamente a compreensão e o gozo artísticos. Não lhe faltam
sentimentos e paixões, mas evidentemente estas paixões e sentimentos
pertencem a uma ora psíquica muito distinta da que cobre as
paisagens de nossa vida primária e humana. São emoções secundárias
que esses ultra-objetos13 provocam em nosso artista interior. São
sentimentos especi camente estéticos.

Dir-se-ia que, para tal resultado, seria mais simples prescindir


totalmente dessas formas humanas — homem, casa, montanha —,
construindo guras totalmente originais. Mas isto é, em primeiro
lugar, impraticável.14 Talvez, na mais abstrata linha ornamental vibre,
lavrada, uma tenaz reminiscência de certas formas “naturais”. Em
segundo lugar — e esta é a razão mais importante —, a arte de que
falamos não é só inumana, por não conter coisas humanas, mas por
consistir ativamente nessa operação de desumanizar. Em sua fuga do
humano, não lhe importa tanto o m ad quem, a fauna heteróclita a
que chega, como o m a quo, o aspecto humano que destrói. Não se
trata de pintar algo que seja por completo distinto de um homem, ou
casa, ou montanha, mas de pintar um homem que se pareça o menos
possível com um homem, uma casa, que conserve disso o estritamente
necessário para que assistamos à sua metamorfose, um halo que sai
milagrosamente do que era anteriormente uma montanha, como a
serpente sai de sua camisa. O prazer estético para o novo artista emana
desse triunfo sobre o humano; por isso, é preciso consumar a vitória,
apresentando em cada caso a vítima estrangulada.

O vulgo acredita que é fácil destruir a realidade, quando é a coisa


mais difícil do mundo. É fácil pintar algo que careça por completo de
sentido, que seja ininteligível ou nula: bastará en leirar palavras sem
nexo,15 ou traçar riscos ao acaso. Mas construir algo que não seja cópia
do “natural”, e que, no entanto, possua alguma substância, implica o
dom mais sublime.

A “realidade” cerca constantemente o artista para impedir sua evasão.


Quanta astúcia supõe a fuga genial! Há de ser um Ulisses ao contrário,
que se liberta de sua Penélope cotidiana e entre escolhos navega ao
feitiço de Circe.16 Quando escaparmos por um momento da perpétua
tocaia, não levemos a mal um gesto de soberba no artista, um breve
gesto a São Jorge, com o dragão estrangulado aos pés.

Convite à compreensão
Existe sempre um núcleo de realidade vivida na obra de arte
prestigiada pelo último século, vindo a ser como a substância do corpo
estético. Sobre ela, a arte opera, e sua operação reduz-se a polir esse
núcleo humano, dando-lhe verniz, brilho, compostura ou
reverberação. Para a maior parte das gentes, tal estrutura da obra de
arte é a mais natural, é a única possível. A arte é re exo da vida; é a
natureza vista através de um temperamento; é a representação do
humano, etc., etc., porém, com não menor convicção, os jovens
sustentam o contrário. Por que os velhos, em relação aos jovens,
teriam atualmente a razão, sendo que, posteriormente, estes estariam
com a razão contra os velhos? Sobretudo, não convém indignar-se
nem gritar. Dove si grida no è vera sciena,17 dizia Leonardo da Vinci;
neque lugere neque indignari, sed intelligere,18 recomendava Spinoza.
Nossas convicções mais arraigadas, mais indubitáveis, são as mais
suspeitas. Elas constituem nossos limites, nossos con ns, nossa prisão.
Pouca coisa é a vida se não for levada com um afã formidável de
ampliar suas fronteiras. Vive-se à proporção que se anela viver mais.
Toda a obstinação em nos manter dentro de nosso horizonte habitual
signi ca debilidade, decadência das energias vitais. O horizonte é uma
linha biológica, um órgão vivente de nosso ser; enquanto gozamos de
plenitude, o horizonte esvai-se, dilata-se, ondula, elástico quase ao
compasso de nossa respiração. Em troca, quando se xa o horizonte, é
que se ancilosa, ingressados na velhice.

Não é tão evidente, como supõem os acadêmicos, que a obra de arte


consista, por força, em um núcleo humano, que as musas aplainam e
pulem. Isto é, tão-só, reduzir a arte à cosmética. Já se indicou
anteriormente que a percepção da realidade vivida e a percepção da
forma artística são, em princípio, incompatíveis, por requererem uma
acomodação diferente de nosso aparato perceptor. Uma arte que nos
proponha esse duplo olhar será uma arte vesga. O século  está
demasiado vesgo; por isso suas produções artísticas, longe de
representar um tipo normal de arte, são talvez a máxima anomalia na
história do gosto. Todas as grandes épocas da arte evitavam que a obra
tivesse no ser humano seu centro de gravidade. E esse imperativo de
exclusivo realismo, a guiar a sensibilidade do século passado, signi ca
precisamente uma monstruosidade sem par na evolução estética. A
nova inspiração, aparentemente tão extravagante, volta a tocar, ao
menos em um ponto, no caminho real da arte. Porque este caminho
chama-se “vontade de estilo”. Pois bem, estilizar é deformar o real, des-
realizar. Estilização implica desumanização. E vice-versa; não existe
outra maneira de desumanizar senão estilizando. O realismo, em
troca, convidando o artista a seguir docilmente a forma das coisas,
convida-o a não ter estilo. Por isso, o entusiasta de Zurbarán, não
sabendo o que dizer, disse que seus quadros têm “caráter”, como Lucas
ou Sorilla, Dickens ou Galdós têm caráter, mas não estilo. Em troca, o
século , que teve bem pouco caráter, possui a saturação do estilo.

Seguindo a desumanização da arte


A gente nova declara “tabu” toda a ingerência do humano na arte. Pois
bem, o humano, o repertório de elementos que integram nosso mundo
habitual, possui uma hierarquia de três estâncias. A primeira é a
ordem das pessoas, em seguida, a dos seres vivos, e, por m, a das
coisas inorgânicas. Pois bem, o veto da nova arte exerce-se com uma
energia proporcional à altura hierárquica do objeto. O pessoal, por ser
o mais humano do humano, é o que a jovem arte mais evita.

É o que se nota muito claramente na música e na poesia.

De Beethoven a Wagner, o tema da música foi a expressão de


sentimentos pessoais. O artista mélico compunha grande edifícios
sonoros para neles alojar sua autobiogra a. Era mais ou menos como a
arte confessional. Não havia outra maneira de gozo estético senão a
contaminação. Wagner injeta em Tristão seu adultério com
Wesendonk, não nos deixando outro remédio, se queremos nos
comprazer com sua obra, senão nos fazer, durante um par de horas,
errantemente adúlteros. Aquela música nos compunge, e para gozar
dela, temos que chorar, angustiar-nos ou derreter-nos numa volúpia
espasmódica. De Beethoven a Wagner toda a música é melodrama.

Isto é deslealdade — diria um artista atual. Isso é prevalecer-se de


uma nobre debilidade humana, que é contagiar-se pela dor ou alegria
do próximo. Este contágio não é de ordem espiritual; é uma
repercussão mecânica, como os dentes de uma lâmina produzem ao
riscar o vidro. Trata-se de um efeito automático, mais nada. Não se
deve confundir a cócega com o regozijo. O romântico caça com
reivindicações; aproveita-se desonestamente do zelo do pássaro para
lhe incrustar balas premeditadas. A arte não pode consistir no
contágio psíquico, porque este é um fenômeno inconsciente, e a arte
deve ser toda repleta de claridade, meio-dia de intelecção. O pranto e o
riso são esteticamente fraudes. O gesto da beleza não passa nunca da
melancolia ou do sorriso. E, melhor ainda, se não vier. Toute maîtrise
jette le froid (Mallarmé).19

Eu creio que o juízo do jovem artista é bastante discreto. O prazer


estético tem que ser um prazer inteligente. Porque, entre os prazeres,
existem os cegos e perspicazes. A alegria do bêbado é cega; tem, como
tudo no mundo, sua causa: o álcool, faltando-lhe um motivo. O
favorecido por um prêmio da loteria também se alegra, mas com uma
alegria muito diferente; alegra-se “por” algo determinado. A
jocosidade do bêbado é hermética; está fechada em si mesma; não sabe
de onde vem, e, como se costuma dizer, “falta-lhe fundamento”. O
regozijo do vencedor, em troca, consiste precisamente em dar-se conta
de um feito que o motiva e justi ca. Regozija-se por ver um objeto em
si mesmo regozijante. É uma alegria com os olhos, que vive de sua
motivação e parece uir do objeto ao sujeito.20

Qualquer um que queira ser espiritual e não mecânico deve possuir


este caráter perspicaz, inteligente e motivado. Pois bem, a obra
romântica provoca um prazer que apenas mantém conexão com seu
conteúdo. O que teria a ver a beleza musical — que deve ser algo
situado além, fora de mim, no lugar onde o som nasce — com os
estímulos íntimos produzidos em mim, agraciando o público
romântico? Não está aí um perfeito quid pro quo? Em vez de gozar do
objeto artístico, o sujeito goza de si mesmo; a obra é só a causa e o
álcool de seu prazer. E isto acontecerá sempre que se faça consistir
radicalmente a arte numa exposição de realidades vividas. Estas, sem
remédio, sobrelevam-nos, suscitando-nos uma participação
sentimental que nos impede de contemplá-las em sua pureza objetiva.

Ver é uma ação à distância. E cada uma das artes maneja um aparato
projetor que alheia as coisas e as trans gura. Nós as contemplamos em
sua tela mágica, desterradas, inquilinas de um astro inabordável e
absolutamente longínquas. Quando falta essa desrealização, produz-se
um titubeio fatal: não sabemos se vivemos as coisas ou as
contemplamos.

Diante de guras de cera, todos sentimos uma singular inquietação.


Provém do equívoco urgente que as habita, impedindo-nos de adotar
em sua presença uma atitude clara e estável. Quando as sentimos
como seres vivos, enganamo-nos ao descobrir seu cadavérico segredo
de fantoches, e se as vemos como cções, parecem palpitar, irritadas.
Não existe uma maneira de reduzi-las a meros objetos. Ao tá-las,
ocorre-nos de suspeitar que são elas quem nos estão olhando. E
terminamos sentindo aversão por aquela espécie de cadáveres
emprestados. A gura de cera é puro melodrama.

Parece-me que a nova sensibilidade está dominada por uma aversão


ao que é humano na arte, muito semelhante ao que sempre
experimentou o homem sensível, diante das guras de cera. Em troca,
a macabra burla cerácea sempre entusiasma a plebe. E atalham-nos
com algumas perguntas impertinentes, que agora não me animo a
responder: o que signi ca essa aversão pelo humano na arte? Seria,
porventura, uma aversão pelo humano, à realidade, à vida, ou, ao
contrário, diz respeito à vida e a uma repugnância ao vê-la confundida
com a arte, com algo tão subalterno como é a arte? Mas deve-se tratar
a arte como função subalterna, a divina arte, glória da civilização,
corolário da cultura, etc., etc.? Já disse, leitor, que se trata de perguntas
impertinentes. Por ora, que sejam anuladas.

O melodrama chega em Wagner como a mais desmesurada exaltação.


E como sempre acontece, quando uma forma chega ao seu grau
máximo, inicia-se sua conversão contrária. Já em Wagner, a voz
humana deixa de ser protagonista e submerge na gritaria cósmica dos
demais instrumentos. Mas era inevitável uma conversão mais radical.
Seria necessário extirpar da música os sentimentos privados, puri cá-
la numa exemplar objetivação. Esta foi a tarefa de Debussy. A partir
dele, é possível ouvir música serenamente, sem embriaguez e pranto.
Todas as variações, que propositalmente nos últimos decênios
ocorrem na arte musical, pisam sobre um novo terreno ultraterreno,21
genialmente conquistado por Debussy. Aquela conversão do subjetivo
ao objetivo é de tal importância que desaparecem as diferenciações
ulteriores diante dela.22 Debussy desumanizou a música, e por isso data
dele a nova era da arte sonora.

A mesma peripécia acontece no lirismo. Convém libertar a poesia,


então carregada de matéria humana, convertida em peso, arrastando-
se sobre a terra, ferindo-se contra as árvores e as arestas dos telhados
como um globo sem gás. Mallarmé foi aqui o libertador que devolveu
ao poema seu poder aerostático e sua virtude ascendente. Ele mesmo,
talvez, não realizou sua ambição, embora tenha sido o capitão de
novas explorações etéreas, ordenando a manobra decisiva: soltar o
leme. Recorde-se qual era o tema da poesia no século romântico. O
poeta compartilhava belamente suas emoções privadas de bom
burguês; suas grandes penas e mulheres, suas nostalgias, suas
preocupações religiosas ou políticas e, se fosse inglês, seu devaneio
através do cachimbo.23 Através de quaisquer meios, aspirava envolver
sua existência cotidiana em patetismo. O gênio individual permitia
que, ocasionalmente, brotasse uma fotosfera radiante em torno do
núcleo humano do poema, de mais sutil matéria — por exemplo, em
Baudelaire. Mas este resplendor não era premeditado. O poeta sempre
queria ser um homem.

— E isto parece mal aos jovens? — pergunta com reprimida


indignação alguém que não o é. Pois o que querem? Que o poeta seja
um pássaro, um ictiossauro, um dodecaedro? Não sei, mas acredito
que o jovem poeta, quando poetiza, pretende ser simplesmente poeta.
Já veremos como toda a nova arte, coincidindo nisso com a nova
ciência, com a nova política, com a nova vida, en m, rechaça toda a
confusão de fronteiras, querendo que as fronteiras entre as coisas
sejam um sintoma de pulcritude mental. Vida é uma coisa, poesia é
outra — pensam ou, pelo menos, sentem. Mas as misturamos. O poeta
começa onde o homem termina. O destino deste é viver seu itinerário
humano; a missão daquele é inventar o que não existe. Desta maneira,
justi ca-se o ofício poético. O poeta aumenta o mundo, acrescendo ao
real, que já está dado por si mesmo, um continente irreal. Autor vem
de auctor, o que aumenta. Os latinos chamavam assim o general que
conquista um novo território para a pátria.

Mallarmé foi o primeiro homem do século passado que quis ser um


poeta. Como ele mesmo disse: “Reutilizo os materiais naturais”,24
compondo pequenos objetos líricos, diferentes da fauna e ora
humanas. Esta poesia não necessita ser “sentida”, porque, como não
existe nela nada de humano, não há nela nada de patético. Se se fala de
uma mulher, fala-se de “mulher nenhuma”, e se sonha por uma hora é
“a hora ausente do quadrante”. À força de negociações, o verso de
Mallarmé anula toda a ressonância vital, apresentando-nos guras tão
extraterrestres que, somente as contemplando, já é sumo prazer. O que
poderia o pobre rosto do homem que serve ao poeta fazer entre essas
sionomias? Uma coisa apenas: desaparecer, volatizar-se e converter-
se em uma pura voz anônima, que sustenta no ar as palavras,
verdadeiras protagonistas do empreendimento lírico. É pura voz
anônima, embora substrato acústico do verso; é a voz do poeta que se
sabe insular do homem circundante.

De parte a parte, encontramos o mesmo: a fuga do ser humano. Os


procedimentos da desumanização são muitos. Talvez, hoje, outros
dominem, diferentes dos que Mallarmé iniciou, cujas páginas não me
ocultam vibrações e estremecimentos românticos. Mas assim como a
musica atual pertence a um bloqueio histórico que começa com
Debussy, toda a nova poesia avança para a direção assinalada por
Mallarmé. O enlace de um e outro nome parece-me essencial se,
elevando o olhar sobre as marcas deixadas em cada inspiração
particular, pretende-se buscar a linha matriz de um novo estilo.

É muito difícil que um contemporâneo menor de trinta anos se


interesse por um livro onde, sob pretexto de arte, trate das idas e
vindas de homens e mulheres. Tudo isso sabe a sociologia, a
psicologia, e ele o aceitaria com gosto se, sem compreender as coisas,
se lhe falassem sociológica e psicologicamente. Mas a arte é outra coisa
para ele.

Atualmente, a poesia é a álgebra excelsa das metáforas.

O tabu e a metáfora
A metáfora é provavelmente a potência mais fértil que o homem
possui. Sua e ciência chega a tocar os con ns da taumaturgia,
parecendo um brinquedo de criação que Deus esqueceu dentro de
uma de suas criaturas, no tempo de ser formada, como um cirurgião
distraído que deixa um instrumento no ventre do operado.

Todas as demais potências mantêm-nos circunscritos ao real, ao que


já é. O que podemos fazer, além disso, é somar ou subtrair algumas das
outras. Só a metáfora facilita-nos a evasão, criando, entre as coisas
reais, arrecifes imaginários, orescimentos de ilhas suspensas.

É verdadeiramente estranha a existência desta atividade mental no


homem, que consiste em suplantar uma coisa por outra, não tanto por
afã de chegar a esta, como por empenho de reunir aquela.

A metáfora escamoteia um objeto, mascarando-o com outro; e não


teria sentido se não víssemos sob ela um instinto que induz o homem
a evitar realidades.25

Quando recentemente um psicólogo se perguntou qual poderia ser a


origem da metáfora, ele se surpreendeu que uma de suas raízes estava
no espírito do “tabu”.26 Houve uma época em que o medo foi a máxima
inspiração humana, uma idade dominada pelo terror cósmico.
Durante ela, sente-se a necessidade de evitar certas realidades que, por
outro lado, são iniludíveis. O animal mais abundante no país, e do qual
depende a sustentação deste, adquire um prestígio sagrado. Esta
consagração traz consigo a idéia de que não se pode tocar-lhe com as
mãos. Como então o indígena Lillooet faz para comer? Põe-se de
joelhos e cruza as mãos sob as nádegas. Deste modo pode comer,
porque as mãos sob as nádegas são metaforicamente os pés. Eis aí um
tropo de ação, uma metáfora elemental prévia à imagem verbal e que
se origina no afã de evitar a realidade.

E como a palavra é para o homem primitivo um pouco a coisa


mesma nomeada, sobrevém o mister de não nomear o objeto,
temendo que lhe recaia o “tabu”. Daí que se designe, com nome de
outra coisa, mentalizando-o em forma larvada e sub-reptícia. Assim o
polinésio, que não deve nomear nada do que pertence ao rei, quando
vê arderem os archotes em seu palacete, tem que dizer: “O raio arde
nas nuvens do céu”. Eis aqui uma alusão metafórica.

Obtido, nesta forma “tabuísta”, o instrumento metafórico pode logo


ser empregado para os ns mais diversos. Um deles, o que predomina
na poesia, é enobrecer o objeto real. Usava-se a imagem similar com
intenção decorativa, para ornar e recamar a realidade amada. Seria
curioso perguntar se, na nova inspiração poética, fazendo da metáfora
a substância, mas não o ornamento, há predomínio de imagem
degradante que, em vez de enobrecer e realçar, rebaixa e vela a pobre
realidade. Há pouco li num jovem poeta que o raio é um metro de
carpinteiro e as árvores desfolhadas pelo inverno, escovas para varrer o
céu. A arma lírica volta-se contra as coisas naturais e as vulnerabiliza
ou assassina.

Supra e infra-realismo
Embora a metáfora seja o mais radical instrumento de desumanização,
não se pode dizer que seja o único. Há inúmeros de alcance diverso.

Um deles, o mais simples, consiste numa simples troca da perspectiva


habitual. Do ponto de vista humano, as coisas têm uma ordem, uma
hierarquia determinada. Algumas nos parecem muito importantes,
outras menos, outras totalmente insigni cantes. Para satisfazer o
anseio de desumanizar não seria, pois, necessário alterar as formas
primárias das coisas. Bastaria inverter a hierarquia, fazendo uma arte
onde apareçam, em primeiro plano, destacados com ar monumental,
os mínimos acontecimentos da vida.

Este é o nexo latente que une as maneiras da nova arte,


aparentemente mais distantes. Um mesmo instinto de fuga e evasão do
real satisfaz-se no supra-realismo da metáfora e no que se pode
chamar de infra-realismo. À ascensão poética, se pode substituir uma
imersão abaixo do nível da perspectiva natural. Os melhores exemplos
de como o realismo extremo o pode superar — não mais do que com
atenta lupa na mão ou ao microscópio da vida — são Proust, Ramón
Gómez de la Serna, Joyce.

Ramón pode compor todo um livro sobre os seios — alguém lhe


chamou de “o novo Colombo que navega os hemisférios” — ou sobre o
circo, ou sobre a alba, ou sobre o rastro ou a Porta do Sol. O
procedimento consiste simplesmente em fazer as favelas serem
protagonistas do drama vital, mostrando o que comumente não
notamos. Giraudoux, Morand, etc., são, em muitas modalidades, gente
da mesma equipe lírica.

Isto explica por que os dois últimos são tão entusiastas da obra de
Proust, como, em geral, esclarece o prazer que este escritor, tão de
outro tempo, proporciona à gente nova. Talvez, o essencial que o
latifúndio de seu livro tenha em comum com a nova sensibilidade seja
a mudança de perspectiva: desdém pelas formas antigas monumentais
da alma, descrito no romance, e a inumada atenção à na estrutura
dos sentimentos, de relações sociais, dos caracteres.

O movimento contrário
Ao substantivar-se, a metáfora faz, mais ou menos, os destinos
poéticos tornarem-se protagonistas. Isto implica simplesmente que a
intenção estética troca de signo, que ca invertido. Anteriormente, a
metáfora era vertida numa realidade, como adorno, encaixe ou capa
pluvial. Agora, ao contrário, procura-se eliminar o sustento extra
poético ou real, realizando a metáfora como uma res27 poética. Mas
esta inversão do processo estético não é exclusividade do mister
metafórico; é veri cado também em todas as ordens e em todos os
meios para converter-se em um aspecto geral — como tendência28 —
de toda a arte comum.

A relação de nossa mente com as coisas consiste em pensá-las, em


formar idéias com elas. A rigor, não possuímos do real a não ser as
idéias que fazemos e conseguimos formar dele. São como o belvedere a
partir do qual vemos o mundo. Goethe dizia muito bem que cada
novo conceito é como um novo órgão que surgisse em nós. Com as
idéias, pois, vemos as coisas, e na atitude natural da mente, não nos
damos conta daquelas; o mesmo acontece com os olhos: ao olhar, não
enxergam a si mesmos. Dito de outro modo, pensar é o afã de captar a
realidade através de idéias; o movimento espontâneo da mente vai dos
conceitos ao mundo.

Mas há sempre uma absoluta distância entre a idéia e a coisa. O real


sempre transborda do conceito que o pretende conter.

O objeto é sempre mais ou menos de outra maneira que o pensado


em sua idéia. Esta ca sempre como um mísero esquema, como um
andaime com que pretendemos chegar à realidade. No entanto, a
tendência natural leva-nos a crer que a realidade é o que pensamos
dela, portanto, a confundi-la com a idéia, tomando-a de boa-fé, pela
coisa mesma. Em suma, nosso anelo vital de realismo faz-nos cair
numa ingênua idealização do real. Esta é a propensão nativa,
“humana”.

Agora, se em vez de deixarmos de ir a esta direção propositadamente


a invertêssemos, voltando as costas à presumida realidade, tomaríamos
as idéias segundo são — meros esquemas subjetivos —, fazendo-as
vivas, com seu per l anguloso, débil, embora transparente e puro —
em suma, se nos propuséssemos deliberadamente a realizar as idéias
—, acabaríamos desumanizados para as realizar. Porque elas são, com
efeito, irrealidade. Tomá-las como realidade é idealizar — falsi car
ingenuamente. Fazê-las viver em sua irrealidade mesma é, por assim
dizer, realizar o irreal enquanto irreal. Aqui, nossa mente não encontra
o mundo, mas, ao contrário, damos plasticidade, objeti camos,
mundi camos os esquemas, o interno e subjetivo.

O pintor tradicional, que faz um retrato, pretende se apoderar da


realidade da pessoa, quando na verdade, e em resumo, deixa na tela
uma seleção esquemática, caprichosamente decidida por sua mente, da
in nitude que integra a pessoa real. E se, em vez de querer pintar esta
pessoa, o pintor resolvesse pintar sua idéia, seu esquema da pessoa?
Então o quadro seria a verdade mesma, sem sobrevir o inevitável
fracasso. O quadro, renunciando a emular a realidade, converte-se no
que autenticamente é: um quadro — uma irrealidade.

O expressionismo, o cubismo, etc., foram, de vários modos,


pretensões de veri car esta resolução na direção radical da arte. Ao
deixar de pintar as coisas e ao passar a pintar as idéias, o artista cegou-
se para o mundo exterior, voltando o olhar às paisagens internas e
subjetivas.

Não obstante as tosquices e rudezas contínuas de sua matéria, a obra


de Pirandello, Seis personagens à procura de um autor, é talvez a única
nestes últimos tempos a fazer o a cionado em estética do drama
meditar. Ela é um claro exemplo dessa inversão do tema artístico que
procuro descrever. O teatro tradicional propõe-nos que vejamos
pessoas em suas personagens, e a expressão de um drama “humano”
em suas afetações.

Aqui, ao contrário, algumas personagens em si conseguem ser


interessantes; quer dizer, como idéias ou puros esquemas.
É possível a rmar que este é o primeiro “drama de idéias”,
rigorosamente falando, que se compôs. Os que anteriormente assim se
chamavam não eram dramas de idéias, mas dramas entre
pseudopessoas que simbolizavam idéias. Em Seis personagens..., o
destino doloroso que representam é mero pretexto, cando
desvirtuado; em troca, assistimos ao drama real de idéias como tais, de
fantasmas subjetivos que gesticulam na mente do autor. A intensão de
desumanizar é evidente, e a possibilidade de consegui-lo se comprova
neste caso. Ao mesmo tempo, nota-se exemplarmente a di culdade do
grande público em acompanhar o enfoque desta perspectiva inversa.
Busca o drama humano, que a obra constantemente desvirtua, retira e
ironiza, pondo em seu lugar — isto é, em primeiro plano — a cção
teatral mesma, como tal cção. O grande público irrita-se, enganado,
sem saber comprazer-se com a deleitosa fraude da arte, tanto mais
estranha quanto melhor manifesta a sua textura fraudulenta.

Iconoclastia
Não parece ser excessivo a rmar que as artes plásticas do novo estilo
revelam uma verdadeira aversão pelas formas vivas ou pelos seres
viventes. O fenômeno adquire completa evidência quando se compara
a arte destes anos àquela que emergia da pintura e escultura da
disciplina gótica, como de um pesadelo, dando na grande colheita
mundana do Renascimento. Pincel e cinzel deleitam-se
voluptuosamente em seguir a pauta onde o modelo animal ou vegetal
apresenta as carnes mórbidas em que a vitalidade palpita. Não
importam os seres, desde que, através daquelas, a vida exponha sua
pulsação dinâmica. E a forma orgânica do quadro ou da escultura
derrama-se sobre o ornamento. É a época dos cornos da abundância,
mananciais de vida torrencial que ameaça inundar o espaço com seus
frutos redondos e maduros.

Por que o artista atual sente horror a seguir a linha mórbida do corpo
vivo, suplantando-a pelo esquema geométrico? Todos os erros e ainda
fraudes do cubismo não obscureceram o fato de que, durante algum
tempo, comprazemo-nos numa linguagem de puras formas
euclidianas.

O fenômeno complica-se quando recordamos que esta fúria de


geometrismo plástico atravessa periodicamente a história. Já na
evolução da arte pré-histórica, vemos que a sensibilidade começava a
buscar a forma viva, acabando por elidi-la, como aterrorizada ou
avessa, recolhida em signos abstratos, último resíduo de guras
animadas ou cósmicas. A serpente estiliza-se em meandro; o sol, em
suástica. Às vezes, esta aversão pela forma acende-se no ódio,
produzindo con itos públicos. A revolução contra as imagens do
cristianismo oriental, a proibição semítica de reproduzir animais —
um instinto contraposto ao dos homens que decoraram a caverna de
Altamira — tem, sem dúvida, ao lado de seu sentido religioso, uma
raiz na sensibilidade estética, cujo in uxo posterior na arte bizantina é
evidente.

Seria mais do que interessante investigar com toda a atenção as


erupções de iconoclastia que, vez por outra, surgem na religião e na
arte. Na arte nova, este estranho sentimento iconoclasta atua
evidentemente, sendo que seu lema bem poderia ser aquele
mandamento de Porfírio, adaptado pelos maniqueus, que Santo
Agostinho tanto combateu: Omne corpus fugiendum est.29 E é claro
que se refere ao corpo vivo. Curiosa inversão da cultura grega, que
culminou sendo amicíssima das formas viventes!

In uência negativa do passado


A intenção deste ensaio reduz-se, como dito, na a liação da nova arte
mediante alguns de seus traços diferenciais. Porém, por vezes, esta
intenção acha-se na obrigação de uma curiosidade mais ampla que
estas páginas não se atreveriam a satisfazer, deixando que o leitor a
sinta, abandonado em sua meditação privativa. Re ro-me ao seguinte.
Em outro lugar,30 indiquei que a arte e a ciência puras, precisamente
por serem atividades mais livres, menos estreitamente submetidas às
condições sociais de cada época, são os primeiros feitos onde é
possível vislumbrar qualquer mudança da sensibilidade coletiva. Se o
homem modi car sua atitude radicalmente diante da vida, começará a
manifestar o novo temperamento na criação artística e em suas
emanações ideológicas. A sutileza de ambas as matérias as faz
in nitamente dóceis ao mais ligeiro sopro dos alísios espirituais.
Como no campo, ao abrir matinal da varanda, quando olhamos os
vapores locais para prever o vento que vai guiar o dia, podemos
perscrutar a arte e a ciência das novas gerações com um tipo de
curiosidade meteorológica.

Mas para isso é iniludível começar de nindo o novo fenômeno. Só


depois podemos nos perguntar pelo anúncio e sintoma deste novo
estilo geral de vida. A resposta exigiria averiguar as causas desta
viração estranha feita pela arte, e isto seria um empreendimento
demasiado grave para se fazer aqui. Por que esse anelo para
“desumanizar”, por que essa aversão pelas formas vivas?
Provavelmente, como todo o fenômeno histórico, tenha enraizamentos
inumeráveis, cuja investigação requer o mais no olfato.

No entanto, quaisquer que sejam as restantes, existe uma causa


sumamente clara, ainda que não pretenda ser decisiva.

Não é fácil exagerar a in uência que sempre costuma ter o passado


sobre o futuro da arte. Dentro do artista, sempre se produz um choque
ou reação química entre sua sensibilidade original e a arte que já está
feita. Não se encontra sozinho diante do mundo; em suas relações com
este, sempre interfere como um intérprete da tradição artística. Qual
seria o modo dessa reação entre o sentir original e as formas belas do
passado? Pode ser positivo ou negativo. O artista se sentirá a m com o
pretérito e se perceberá a si mesmo como nascendo dele, herdando-lhe
e aprimorando-o — ou ainda, numa ou noutra medida, achará em si
uma espontânea, inde nível repugnância pelos artistas tradicionais,
vigentes, governantes. E assim como no primeiro caso, sentirá não
pouca voluptuosidade instalando-se no molde das convenções de uso e
repetindo alguns gestos consagrados, ou, no segundo caso, não só
produzirá uma obra distinta das que recebera, como encontrará a
mesma voluptuosidade, dando a esta obra um caráter agressivo contra
as normas prestigiadas.

Costuma-se esquecer isso quando se fala da in uência do ontem no


hoje. Enxerga-se sempre, sem di culdade, na obra de uma época, a
vontade de parecer-se mais ou menos com épocas anteriores. Em
troca, parece ser um trabalho custoso para quase todo mundo notar a
in uência negativa do passado e notar um novo estilo se formar
muitas vezes pela consciente e agradável negação dos tradicionais.

Não se pode entender a trajetória da arte, do romantismo até então,


sem se levar em conta, como fator de prazer estético, de têmpera
negativa, essa agressividade e burla à arte antiga. Baudelaire
comprazia-se com a Vênus negra31 precisamente por ser branca a
clássica. Desde então, os estilos sucedem-se aumentando a dose de
ingredientes negativos e blasfemos no que era voluptuosamente a
tradição, até o ponto em que agora quase é feito o per l da nova arte
com puras negações da velha arte. É compreensível que assim seja.
Quando uma arte leva muitos séculos de evolução contínua, sem
graves hiatos nem catástrofes históricas que a interrompam, o produto
acumula-se e a densa tradição gravita progressivamente sobre a
inspiração do dia. Ou dito de outro modo: entre o artista que nasce e o
mundo, interpõe-se cada vez maior volume de estilos tradicionais,
interceptando a comunicação direta e original entre eles. De sorte que
das duas, uma: ou a tradição acaba por desalojar toda a potência
original — foi o caso do Egito, de Bizâncio, em geral, do Oriente —, ou
a gravitação do passado sobre o presente tem que mudar de signo,
sobrevindo uma longa época em que a arte nova recobre-se aos
poucos da velha que a sufoca. Este é o caso da alma européia, em
quem predomina um instinto futurista sobre o irremediável
tradicionalismo e passadismo orientais.
Boa parte da chamada “desumanização” e aversão pelas formas vivas
provém desta antipatia pela interpretação tradicional das realidades. O
vigor do ataque está relacionado diretamente com o distanciamento.
Por isso, o que mais repugna os artistas atuais são os modos
predominantes no século passado, embora neles já estejam uma boa
dose de oposição a estilos mais antigos. Em troca, a nova sensibilidade
nge uma suspeita simpatia pela arte mais distante no tempo e no
espaço, o pré-histórico e o exotismo selvagem. A bem-dizer, o que lhe
compraz destas obras primitivas é — mais que elas mesmas — sua
ingenuidade, isto é, a ausência de uma tradição que ainda não estava
formada.

Se agora voltamos o olhar para a questão do tipo de vida que se


sintoniza com este ataque ao passado artístico, ocorre-nos uma visão
estranha de dramatismo colossal. Porque, ao m e ao cabo, agredir a
arte passada, tão genericamente, é se revoltar contra a arte mesma,
pois o que é a arte, concretamente, senão a feita até agora? Mas então
não estaria, sob a máscara de amor pela arte pura, escondido sob a
folia artística, o ódio à arte? Como seria possível? O ódio à arte não
pode surgir senão onde germina também o ódio pela ciência, o ódio
pelo Estado, o ódio, em suma, por toda a cultura. Fermenta também,
nos peitos europeus, um inconcebível rancor pela sua própria essência
histórica, algo como o odium professionis, que acomete o monge,
depois de longos anos de claustro, avesso à sua disciplina, à regra
mesma que informara sua vida?32

Eis aqui o instante prudente para levantar a plumagem, em seu


esvoaçar de gralhas, um debandar de interrogações.

Irônico destino
Mais acima falou-se do novo estilo que, tomado em sua mais ampla
generalidade, consiste em eliminar os ingredientes, retendo só a
matéria puramente artística. Isto parece implicar um grande
entusiasmo pela arte. Mas ao circundar o mesmo fato e contemplá-lo a
partir de outra vertente, surpreendemo-nos com o cariz oposto da
fadiga ou o desdém. A contradição é patente e importa muito
sublinhá-la. Em de nitivo, signi caria que a arte nova é um fenômeno
de índole equívoca, coisa que na verdade não é nada surpreendente,
pois equívocos são quase todos os grandes feitos destes anos em curso.
Bastaria analisar um pouco os acontecimentos políticos europeus para
encontrar neles a mesma estranheza equívoca.

No entanto, essa contradição entre amor e ódio a uma mesma coisa


se ameniza um pouco ao olharmos mais de perto a produção artística
hodierna.

A primeira conseqüência, com esse retraimento da arte consigo


mesma, é a eliminação de todo o patetismo. Na arte carregada de
“humanidade”, repercutia o caráter grave anexo à vida. A arte era uma
coisa muito séria, quase hierática. Às vezes, ela pretendia nada menos
que salvar a espécie humana — em Schopenhauer e em Wagner.
Contudo, não pode deixar de surpreender aqueles que para isso
mentem que a nova inspiração é sempre, inexoravelmente, cômica. Ela
soa inteiramente em uma só nota e tom. A comicidade será mais ou
menos violenta, indo da palhaçada até à leve piscadela irônica, mas
não falta nunca. E não acontece que o conteúdo da obra seja cômico
— isto seria recair no modelo ou estilo “humano” —, mas que, seja
qual for o conteúdo, a própria arte torne-se piada. Só uma alma num
estado jovial pode ter como propósito buscar, como indiquei, a cção
como cção. Procura-se a arte exatamente por a reconhecer como
farsa. Isso é o que mais di culta a compreensão das novas obras de
arte por parte das pessoas sérias, de sensibilidade menos atual. Pensam
que a pintura e a música dos novos são pura “farsa” — no mau sentido
da palavra — e não admitem a possibilidade de que alguém veja
justamente a missão radical da arte e seu bené co mister como farsa.
Seria “farsa” — no mau sentido da palavra — se o artista atual
pretendesse competir com a arte “séria” do passado, e um quadro
cubista solicitasse o mesmo tipo de admiração patética, quase
religiosa, do que uma estátua de Miguel Ângelo. Mas o artista de
agora, convida-nos a contemplar uma arte que é uma piada, que é,
essencialmente, a burla de si mesma. Porque nisso radica a comicidade
desta inspiração. Em vez de caçoar de alguém ou algo determinado —
sem vítima não há comédia —, a nova arte ridiculariza a arte.

E ao ouvir isso, não façam muito barulho se quiserem ser discretos. A


arte nunca demonstra melhor seu mágico dom como nesta burla de si
mesma. Porque, ao fazê-lo, além de aniquilar-se a si própria, prossegue
sendo arte, e, por uma maravilhosa dialética, sua negação é sua
conservação e triunfo.

Duvido muito que um jovem de agora possa se interessar por um


verso, uma pincelada, um som que não leve dentro de si um re exo
irônico.

Não é isso completamente novo como idéia e teoria. No princípio do


século , um grupo de românticos alemães, dirigido por Schlegel,
proclamou a ironia como a máxima categoria estética e por razões que
coincidem com a nova intenção da arte. Esta não se justi ca nem se
limita a reproduzir a realidade, duplicando-a em vão. Sua missão é
suscitar um horizonte irreal. Para conseguir isso, não há outro meio
senão negar nossa realidade, nos colocando através deste ato, acima
dela. Ser artista é não levar a sério o homem tão sério que somos
quando não somos artistas.

É claro que este destino de inevitável ironia dá à arte nova um toque


monótono muito adequado para o desespero do mais paciencioso.
Porém, ao mesmo tempo, nivela a contradição entre amor e ódio
anteriormente assinalada. O rancor passa para a arte como seriedade;
o amor, vitorioso, como farsa, que triunfa sobre tudo, inclusive sobre si
mesmo, como num sistema de espelhos parelhos em que nenhuma
imagem é a última, mas todas são ludibriadas e transformadas em
fantasmas.
A intranscendência da arte
Isso tudo se condensa no sintoma mais agudo, mais grave, mais fundo
que a jovem arte mostra, uma facção estranhíssima da nova
sensibilidade estética que reclama uma meditação desperta. É algo
muito delicado de dizer, entre outros motivos, porque é muito difícil
de formular com justeza.

Para o homem da novíssima geração, a arte é uma coisa sem


transcendência. Uma vez escrita esta frase, eu me espanto com ela, ao
notar sua inumerável irradiação de signi cações diferentes. Porque
não se trata de que a arte pareça a qualquer homem de agora coisa sem
importância ou menos importante do que ao homem de outrora, mas
de que o artista mesmo enxergue a sua arte como um labor
intranscendente. Mas, ainda isso, não expressa com rigor a verdadeira
situação. Porque o fato não é que o artista não se interesse por sua obra
ou ofício, mas que eles o interessam precisamente porque não têm
importância grave, e justamente à medida que não a têm. Não se pode
entender bem o caso sem confrontar a arte há trinta anos, e, em geral,
durante todo o século passado. Poesia ou música eram então
atividades de enorme calibre: delas se esperava nada menos que a
salvação da espécie humana sobre as ruínas das religiões e o
relativismo inevitável da ciência. A arte era transcendente em um
duplo sentido: pelo seu tema, que costumava consistir nos mais graves
problemas da humanidade, e por si mesma, como potência humana
que proporcionava justi cação e dignidade à espécie. Era de se
admirar o gesto solene, gesto de profeta ou fundador de religião, que,
diante da massa, o grande poeta e o músico genial adotavam; a
majestosa postura de estadista responsável pelos destinos universais.

Suspeito que um artista de agora caria estarrecido vendo-se ungido


com a enorme missão e dever de tratar em sua obra de matérias
capazes de tamanhas repercussões. Ele precisamente começa a
saborear a arte quando nota que o ar perde seriedade, começando a
brincar levianamente, livre de toda a formalidade. Para o artista, esta
pirueta universal é o signo autêntico de que as musas existem. Se
convém dizer que a arte salva o homem, é somente porque lhe salva da
seriedade da vida e suscita nele uma puerícia inesperada. A auta
mágica de Pã volta a ser símbolo da arte, fazendo dançar os bodes na
linde do bosque.

Toda a nova arte parece compreensível e adquire certa dose de


grandeza quando se lhe interpreta como um ensaio de criação pueril
num mundo velho. Outros estilos obrigavam que se lhes pusessem em
conexão com os dramáticos movimentos sociais e políticos ou ainda
com as profundas correntes losó cas ou religiosas. O novo estilo, ao
contrário, solicita, logo, a proximidade do triunfo dos esportes e jogos.
São dois fatos gêmeos de mesma origem.

Em poucos anos, vimos subir a maré esportiva nas páginas dos


jornais, fazendo naufragar quase todas as caravelas da seriedade. Os
artigos de fundo ameaçam descer a seu abismo titular, e sobre a
superfície singram vitoriosos os barquinhos de regata. O culto ao
corpo é eternamente sintoma de inspiração pueril, porque só é belo e
ágil na mocidade, enquanto o culto ao espírito indica vontade de
envelhecimento, porque só chega à plenitude quando o corpo entra em
decadência. O triunfo do esporte signi ca a vitória dos valores da
juventude sobre os valores da senilidade. O mesmo acontece com o
cinema que é, por excelência, arte corporal.

Todavia, as maneiras da velhice gozavam de grande prestígio em


minha geração. O menino anelava deixar de ser menino o mais rápido
possível, preferindo imitar o porte fatigado do homem maduro.
Atualmente, os meninos e as meninas esforçam-se para prolongar sua
infância, e os moços em reter e sublinhar sua juventude. Não há
dúvida: a Europa entra numa etapa de puerilidade.

Não é algo que cause espanto. A história move-se segundo grandes


ritmos biológicos. Suas mutações máximas não podem originar-se de
causas secundárias e de detalhe, mas de fatores muito elementares, de
forças primárias de caráter cósmico. Bom seria que as maiores
diferenças existentes no ser vivo, antagônicas — os sexos e as idades
—, não exercessem também um in uxo soberano sobre o per l dos
tempos. E, com efeito, é fácil notar que a história era embalada
cadenciadamente de um a outro polo, deixando nalgumas épocas o
predomínio de qualidades masculinas e em outras, de femininas, ou
ainda, exaltando algumas vezes a índole juvenil e em outras, a
maturidade ou ancianidade.

O cariz de todas as ordens, tomado pela existência européia, anuncia


um tempo varonil e jovem. A mulher e o velho cedem, durante um
período, o governo da vida às crianças, não sendo de se estranhar que
o mundo pareça perder a formalidade.

Todas as características da nova arte podem ser resumidas na


intranscendência, que por sua vez não consiste noutra coisa senão em
fazer a arte alterando sua colocação na hierarquia das preocupações ou
interesses humanos. Podem ser representados por uma série de
círculos concêntricos, cujo raio mede a distância dinâmica ao eixo de
nossa vida, onde atuam nossos afãs supremos. Coisas de todo tipo —
vitais ou culturais — giram naquelas diversas órbitas atraídas mais ou
menos pelo centro cordial do sistema. Pois bem, eu diria que a arte,
antes situada — como a ciência ou a política — muito perto do eixo
entusiasta, sustento de nosso ser, moveu-se para a periferia. Não
perdeu nenhum de seus atributos externos, mas está distante,
secundária, tendo menor gravidade.

A aspiração da arte pura não é, como se costuma acreditar, uma


soberba, mas, ao contrário, uma grande modéstia. Quando esvaziada
do patetismo humano, a arte ca sem transcendência alguma — como
só arte, sem pretensão maior.

Conclusão
Ísis miriónima, Ísis, a de dez mil nomes: assim os egípcios evocavam
sua deusa. De certo modo, toda a realidade é assim. Seus componentes
e suas faces são inúmeros. Não seria audacioso, com umas quantas
denominações, querer de nir algo, a mais humilde? Quem sabe
pudesse ser uma ilustre causalidade que estas notas sublinhadas por
nós entre in nitas, fossem, com efeito, as decisivas. A incerteza
aumenta quando se trata de uma realidade nascente que inicia sua
trajetória nos espaços.

É, pois, muito provável que este ensaio sobre a liação da nova arte
não contenha senão erros. Ao terminá-lo, no volume ocupado, brotam
agora, de minha curiosidade e esperança, que outros estejam certos.
Entre muitos, poderemos partilhar os dez mil nomes.

Mas seria duplicar meu erro se o pretendesse corrigir destacando só


algum traço parcial, não incluso nesta anatomia. Os artistas costumam
cair nele quando falam de sua arte, sem se distanciar devidamente
tendo uma visão ampla dos fatos. No entanto, não resta dúvida de que
a fórmula mais próxima da verdade será a de que o giro mais unitário
e harmônico vale para o maior número de particularidades — e, como
na costura, um só golpe aduna mil os.

Move-me exclusivamente a delícia de tentar compreender — nem a


ira nem o entusiasmo. Tenho procurado buscar o sentido dos novos
propósitos artísticos, para isto, supondo, é claro, um estado de espírito
previamente pleno de benevolência. Mas seria possível aproximar-se
de um tema de outro modo, sem o condenar à esterilidade? Pode-se
dizer que a nova arte não produziu até então nada que valha a pena, e
eu ando muito próximo de pensar o mesmo. Tenho procurado extrair
a intenção das jovens obras, que é o mais saboroso, e me
despreocupado da sua realização. Quem sabe no que dará este
nascente estilo! O empreendimento que pretende é fabuloso — querer
criar do nada. Eu espero que mais adiante contente-se com menos e
acerte mais.

Contudo, quaisquer que sejam seus erros, existe um ponto, a meu


juízo, imperturbável na nova posição: a impossibilidade de voltar atrás.
Todas as objeções sobre a inspiração desses artistas podem estar certas
e, no entanto, não aportaram razão su ciente para a condenar.
Deveriam ser acrescidas às objeções uma outra: a insinuação de outro
caminho para a arte que não seja o desumanizador e que não reitere as
vias usadas e abusadas.

É muito fácil gritar que a arte é sempre possível dentro da tradição.


Mas esta frase confortável não serve de nada para o artista que espera,
com o pincel ou a pena em punho, uma inspiração concreta.

I   


H ápropósito
pouco eu publiquei algumas notas
de seu recente romance As
sobre Pio Baroja,33 a
guras de cera. Nelas
mostrei que a técnica romanesca começava a ser preocupante, e que
agora se propunha a fazer um livro de tempo lento, como digo. Baroja
refere-se aí a algumas conversações que temos tido sobre as condições
atuais deste gênero literário. Ainda que eu seja bastante indouto em
matéria romanesca, ocorreu-me mais de uma vez meditar sobre a
anatomia e siologia destes corpos imaginários que constituem a
fauna poética mais característica dos últimos cem anos. Vendo que
pessoas mais gabaritadas para isso — romancistas e críticos literários
— dignavam-se a nos comunicar suas veri cações sobre este tema, não
me atreveria a editar os pensamentos que ocasionalmente me visitam.
Mas a ausência de mais sólidas re exões proporciona porventura
algum valor às seguintes idéias, que enuncio por divina caridade, sem
nenhuma pretensão de doutrinar ninguém.

Decadência do gênero
Os editores queixam-se de que o mercado do romance está à míngua.
Acontece, com efeito, que se vendem menos romances do que
anteriormente, e que a demanda por livros de conteúdo ideológico
aumenta relativamente. Se não houvesse outras razões mais ulteriores
para a rmar a decadência deste gênero literário, bastaria esse dado
estatístico para a deixar em suspeição. Quando ouço algum amigo
meu, sobretudo algum jovem escritor, que está escrevendo um
romance, espanta-me muito o tom tranqüilo com que fala, e penso que
em seu caso eu temeria. Talvez injustamente, embora sem que o possa
remediar, ocorre-me que, sob essa tranqüilidade, jaz uma grande dose
de inconsciência.

Porque produzir um bom romance sempre foi difícil. Mas, para o


conseguir, anteriormente bastava ter talento. Agora, contudo, a
di culdade cresce em proporção incalculável, porque hoje basta o
romancista não ter talento para criar um bom romance.

Ignorar isso já é um ingrediente dessa inconsciência a que me referi.


Quem não admite a possibilidade do esgotamento de um gênero
literário pouco tem re etido sobre as condições da obra artística.
Supor que a criação artística depende só dessa capacidade subjetiva e
individual, chamada de inspiração ou talento, é ambição de criar vãs
ilusões, eliminando comodamente a questão. Segundo isto, a
decadência de um gênero consistiria exclusivamente na fortuita
ausência de homens geniais. Em qualquer momento, a súbita aparição
de um gênio traz consigo automaticamente o re orescimento do
gênero decaído.

Mas o gênio e a inspiração são próprios de um experiente mágico,


cujo emprego procura salvar todos que desejam ver com clareza.
Imagine um lenhador genial no deserto do Saara. De nada lhe servem
a musculatura elástica e seu machado a ado.

O lenhador, sem bosque onde trabalhar, é uma abstração. O mesmo


acontece na arte. O talento só é uma disposição subjetiva exercida
sobre uma matéria. Esta independe dos dotes individuais; quando
ausente, de nada servem gênio e destreza.

Toda obra literária pertence a um gênero, como todo animal, a uma


espécie. (A idéia de Croce,34 que nega a existência de gêneros
artísticos, não consegue deixar a mínima impressão na ciência
estética). E mesmo em relação à espécie zoológica, o gênero artístico
signi ca um repertório limitado de possibilidades. Mas como
artisticamente só contam aquelas possibilidades tão diferentes entre si,
que não podem ser consideradas como repetição umas das outras, o
gênero artístico torna-se um arsenal de possibilidades muito limitado.

É um erro representar-se um romance — e re ro-me sobretudo ao


moderno — como um orbe in nito, do qual sempre se podem extrair
novas formas. Antes se deve imaginá-lo como uma cultura de enorme
espaço, embora nito. No romance existe um número de nido de
temas possíveis. Os lavradores de primeira hora encontraram com
facilidade novas peças, novas guras, novos temas. Os lavradores
hodiernos encontram-se, em troca, como que se contentando só com
pequenas ou profundas lascas de pedras.

O talento trabalha sobre esse repertório de possibilidades objetivas


chamado gênero. E quando a cultura termina, o talento, por maior que
seja, nada pode fazer. Por certo, nunca se poderá dizer, com rigor
matemático, que um gênero está consumido completamente, mas se
pode dizer, em ocasiões de su ciente proximidade prática, ao menos,
podendo a rmar, às vezes com toda a evidência, que a matéria
escasseia.

A meu juízo, é o que acontece atualmente com o romance. É


praticamente impossível achar novos temas. Eis aqui o primeiro fator
da enorme di culdade objetiva e impessoal de que se supõe compor
um romance aceitável nesta altura dos tempos.

Houve época em que os romances puderam viver só da novidade de


seus temas. Toda novidade é produzida mecanicamente, como ao
abrir-se um circuito elétrico, introduzir uma certa corrente induzida,
acrescendo de modo gratuito valor à matéria. Por isso, muitos
romances pareciam legíveis, parecendo hoje insuportáveis. Por isso é
que [em espanhol] se dá a esse gênero o nome de “novela”, isto é,
“novidade”. A esta di culdade de se achar novos temas soma-se outra,
por acaso mais grave. Conforme o tesouro dos temas possíveis vinha à
luz, a sensibilidade do público fazia-se mais rigorosa e exata. O que
estava certo anteontem, ontem, não mais o saberia. Seriam necessários
temas de melhor qualidade, mais insólitos, mais “novos”. De sorte que
à medida que crescem temas “mais novos”, embotando a faculdade de
impressão do leitor, esgotavam-se os temas novos. Este é o segundo
fator que atualmente pesa sobre todo o gênero.

A prova de que a decadência atual não provém da torpeza dos


romances, mas de razões mais profundas, está na proporção da
di culdade de escrita, quando nos romances famosos antigos ou
“clássicos” parecem piores ou menos bons. Poucas se salvam do
naufrágio com o aborrecimento do leitor.

O fenômeno é inevitável e não deve desanimar os autores. Ao


contrário, em de nitivo, ele decorre do fato de os escritores ensinarem
paulatinamente o público, a nando sua percepção e re nando seu
gosto. Cada obra, mais perfeita do que a antecessora, anula esta e todas
as de seu nível. Como na batalha, o vencedor vence às custas de matar
seus inimigos; na arte, o triunfo é cruel e, uma obra que o consegue
aniquila automaticamente legiões de obras que anteriormente gozam
de prestígio.

Em suma, creio que o gênero romance, não estando


irremediavelmente esgotado, acha-se, por certo, em seu período
último, padecendo de tal penúria de possíveis temas, que o escritor a
necessita compensar com extravagantes qualidades dos demais
ingredientes necessários para integrar um corpo de romance.
Autópsia
A verdade é que, salvo um ou dois de seus livros, o grande Balzac
parece-nos agora irresistível. Nosso aparato ocular, afeito aos
espetáculos mais exatos e autênticos, descobre ao ponto o caráter
convencional e falso de à peu près, que domina o mundo da Comédia
humana. Se me perguntassem por que a obra de Balzac me parece
inaceitável (Balzac mesmo, como indivíduo, é um exemplar magní co
de humanidade), responderei: porque o quadro que ele me oferece é só
uma chanchada. Qual diferença existe entre a chanchada e uma boa
pintura? Na boa pintura, o objeto representado acha-se, por assim
dizer, na pessoa, com toda a plenitude do ser e com absoluta presença.
Na chanchada, ao contrário, o objeto não está presente; aparece em
tela ou peça não mais do que pobres e não-essenciais alusões suas.
Quanto mais o olhamos, mais clara parece-nos a ausência do objeto.

Esta distinção, entre a mera alusão e a autêntica presença, é, a meu


entender, decisiva em toda a arte, embora mais especialmente no
romance.

Com uma dezena de palavras, poderíamos tratar do tema de O


vermelho e negro. Qual diferença existe entre esse tema e o romance
mesmo? Não se pode dizer que a diferença esteja no estilo; seria uma
tolice. O importante é dizer: “Madame Rênal enamora-se de Julián
Sorel”; nada sabemos senão este fato, ao passo que Stendhal não trata
dele, não se refere a ele, mas o apresenta em sua realidade imediata e
patente.

Pois bem, se olhamos a evolução do romance desde seus primórdios


até os nossos dias, veremos que o gênero tem-se deslocado da pura
narração, que era só alusiva, para a rigorosa apresentação. A princípio,
a novidade do tema pode consentir que o leitor desfrutasse da mera
narração. A ação era interessante para ele, como nos interessa o que
acontece com uma pessoa amada. Mas rapidamente os temas deixam
de ser atrativos, e então o que agrada não é tanto o destino ou a ação
das personagens, mas sua presença. Deleita-nos vê-los diretamente;
penetrar em seu interior, entendê-los, sentir-nos imersos em seu
mundo ou atmosfera. De narrativo ou indireto faz-se o gênero descrito
ou direto. Melhor seria dizer apresentativo. Num longo romance de
Emilia Pardo Bazán,35 fala-se cem vezes de um dos personagens: é
muito gracioso, embora não nos parece ter graça alguma; o romance é
irritante. O imperativo do romance é a autópsia. Nada de falar o que
uma personagem é: o que falta é que o vejamos com nossos próprios
olhos.

Analisem-se os romances antigos, salvos pela estima de leitores


responsáveis, e se verá como todos empregam o mesmo método
autóptico. Mais do que nenhuma o Quixote. Cervantes satura suas
personagens de pura presença. Assistimos a suas autênticas conversas,
vendo seus efetivos movimentos. A virtude de Stendhal bebe na
mesma fonte.

Não de nir
É mister, pois, que vejamos a vida das guras romanescas, evitando
descrevê-las. Toda a referência, relação, narração, não é senão
sublinhar a ausência ao que se refere, relata ou narra. Onde as coisas
estão, força é contá-las.

Daí que o maior erro do romancista na escrita é de nir suas


personagens.

A missão da ciência é elaborar de nições. Ela toda consiste num


metódico esforço para de nir o objeto e chegar a sua noção. Pois bem,
a noção ou de nição não é mais do que uma série de conceitos, e o
conceito, por sua vez, não é mais do que a alusão mental ao objeto. O
conceito de vermelho não contém avermelhado algum; é meramente o
movimento da mente à cor assim chamada, um signo ou indicativo
que fazemos em direção a ele.
Diz-se, por Wundt,36 se não me lembro mal, que a forma mais
primitiva do conceito é o gesto indicativo que executamos com o dedo
indicador. A criança começa querendo agarrar todas as coisas que
acredita estarem sempre próximas dele por insu ciente
desenvolvimento de sua perspectiva visual. Depois de inúmeros
fracassos, ela renuncia a recolher as mesmas coisas, contentando-se
com esse gérmen de captar, ao estender a mão ao objeto indicado. O
conceito é, em realidade, um mero assinalar ou designar. Para a
ciência, não importam coisas, mas o sistema de signos que as possa
substituir.

A arte tem uma missão oposta, indo do signo habitual à coisa mesma.
Move-a um magní co anelo de ver. Em boa parte Fiedler37 tem razão,
quando diz que o propósito da pintura não é mais do que nos dar uma
visão mais ampla, mais completa dos objetos de que tratamos
cotidianamente.

Creio que no romance acontece o mesmo. A princípio, posso


acreditar que o importante para o romance é seu enredo. Desde já
segue a advertência de que o que importa não é o que se enxerga, mas
que se veja também algo humano, seja o que for. Visto assim, o
romance primitivo parece-nos mais puramente narrativo do que o
atual. Mas isso precisa ser depurado. Talvez se trate de um erro. Talvez
o leitor primitivo de romances fosse como o menino que em poucas
linhas, num simples esquema, acredita ver, com vigorosa presença, o
objeto inteiro. (A arte plástica primitiva e certos novos descobrimentos
psicológicos de extraordinária importância o provam). Em tal caso, o
romance não teria, a rigor, variado: seria sua atual forma descritiva,
ou, melhor, apresentativa, tão-só o novo meio necessário para obter o
mesmo efeito, que nas almas mais elásticas a narração produzia, numa
sensibilidade gasta.

Quando lemos num romance: “Pedro era melancólico”, é como se o


autor me convidasse a realizar a melancolia de Pedro através de minha
fantasia, partindo de sua de nição. Quer dizer, encarregando-me a ser
o romancista. Penso que o mais e caz é, precisamente, o contrário; que
ele me dê os fatos visíveis para que eu me esforce, com prazer, em
descobrir e de nir Pedro como um ser melancólico. Em suma, deve
fazer como o pintor impressionista, situando na tela os ingredientes
necessários para que eu enxergue uma maçã, deixando-me dar a esse
material a sua perfeição nal. Daí o fresco sabor que sempre tem a
pintura impressionista. Parece-nos ver os objetos do quadro em
perpétuo status nascens. E toda a coisa tem em seu destino dois
instantes de dramatismo supremo e exemplar dinamicidade: sua hora
de nascer, e sua hora de fenecer, ou status evanescens. A pintura não-
impressionista, qualquer que sejam suas virtudes, talvez em outra
ordem superior às daquela, tem o inconveniente de nos oferecer
objetos conclusos, mortos, puramente acabados, hieráticos,
mumi cados e como passados. A atualidade, a presença recente das
coisas da obra impressionista, sempre lhe falta.

O romance, gênero moroso


Segundo isso, o romance deve ser atualmente o contrário do conto. O
conto é a simples narração de peripécias. Na siologia do conto, a
ênfase as sobrecarrega. Para a ação como tal, é interessante a frescura
pueril, não por acaso, pois, como sugerido, a criança vê como presença
evidente o que não podemos atualizar. A ação não nos interessa agora,
ou ainda, interessa só à criança interior que, em forma de resíduo um
pouco bárbaro, todos nós guardamos. O resto de nosso ser não
participa no apaixonamento mecânico da ação por acaso produzida
pelo folhetim. Por isso, ao ler o romance, nos sentimos com um travo à
boca, como se houvéssemos nos entregado a um prazer baixo e vil. É
muito difícil que atualmente se invente uma ação capaz de interessar
nossa sensibilidade superior.

A ação (o enredo) passa, pois, a ser só pretexto, como somente um o


que ata as pérolas do colar. Já veremos por que este o é, por outro
lado, imprescindível. Por ora, importa-me chamar a atenção sobre um
defeito de análise, que nos faz atribuir o nosso aborrecimento na
leitura de um romance ao argumento: “É pouco interessante”. Se fosse
assim, esse gênero literário podia ser dado como morto. Porque
qualquer um que medite um pouco sobre isso reconhecerá a
impossibilidade prática de inventar atualmente novos argumentos
interessantes.

Não, não é o argumento o que nos agrada; não é a curiosidade em


saber o que vai acontecer com fulano o que nos deleita. A prova disso é
que o argumento de toda novela é revelado em poucas palavras, e
então, já não nos interessa. Uma narração sumária não tem gosto:
precisamos que o autor se detenha, fazendo-nos dar voltas em torno
das personagens. Então, temos o prazer de sentir-nos saturados disso e
de seu ambiente, percebendo a revelação de toda a riqueza de suas
vidas. Por isso, o romance é o gênero essencialmente retardatário —
como disse, não sei se Goethe ou Novalis. Eu diria mais: atualmente,
ele é e deve ser um gênero moroso — totalmente ao contrário,
portanto, do conto, do folhetim e do melodrama.

Algumas vezes, é preciso esclarecer de onde vem o prazer —


certamente modesto — que dá origem a alguns desses lmes
americanos, com uma longa série de capítulos, ou, como diz o novo e
absurdo burguês espanhol, de “episódios”. (Uma obra composta de
episódios seria uma cena toda de entremeses e um espetáculo feito de
entreatos). E com não pouco espanto, acha-se que essa satisfação não
procede nunca do estúpido enredo, mas das próprias personagens.
Entretenho-me com aqueles lmes cujas guras são agradáveis,
curiosas, tanto pelo papel representado como pela adequação entre o
físico do ator e idéia do personagem. Um lme em que o detetive e a
jovem americana sejam simpáticos pode durar inde nidamente sem
nos cansar. Pouco importa o que façam: apreciamos vê-los entrar e sair
e mover-se em cena. Não nos interessa em que agem, mas ao
contrário, qualquer coisa feita nos interessa, por eles a terem feito.

Recorde-se então dos maiores romances do passado que conseguiram


triunfar sobre as enormes exigências planejadas pelo leitor, notando
que a nossa atenção se atém mais às personagens por si mesmas do
que a seus enredos. São Dom Quixote e Sancho quem nos divertem;
não o que lhes ocorre. A princípio, pode-se imaginar um Quixote do
mesmo valor que o autêntico, onde aconteçam ações muito diferentes
das que acontecem ao cavaleiro e a seu servo. O mesmo ocorre com
Julián Sorel ou com David Copper eld.

Função e substância
Nosso interesse é transferido, pois, do enredo às guras, dos atos às
personagens. Pois bem — e esteja dito como idéia intermediária —,
este deslocamento coincide com o que em ciência física, e sobretudo
na loso a, inicia-se há vinte anos. De Kant a 1900, predomina uma
exacerbada tendência a eliminar as substâncias da teoria, substituindo-
as por funções. Na Grécia, na Idade Média, dizia-se operari sequitur
esse, os atos são conseqüência e derivados da essência. No século ,
considera-se como um ideal o contrário: esse sequitur operari, o ser
não é mais do que o conjunto de seus atos ou funções.

Porventura, atualmente, retiramos das ações a pessoa e das funções a


substância? Isso equivaleria a um sintoma de classicismo emergente.

Mas isso merece um comentário um pouco maior, convidando-nos a


buscar uma orientação no confronto entre teatro clássico francês e
teatro espanhol castiço.

Dois teatros
Poucas coisas podem orientar tão delicadamente a diferença dos
destinos da Espanha e França como a distinção estrutural entre o
teatro clássico francês e o nosso, castiço. Não o chamo também de
clássico porque, sem marcação alguma de valor, é forçoso negar-lhe
todo o classicismo. Trata-se, antes de tudo, de arte popular, e não creio
que haja na história nada que, sendo popular, seja também clássico. A
tragédia francesa é, ao contrário, uma arte para aristocracias. Começa,
pois, a divergir de nosso teatro no tipo de público a que se dirige. Sua
intenção estética é, por si mesma, proximamente inversa à que move
nossos dramaturgos populares, e, é claro, re ro-me à totalidade de
ambos os estilos, sem negar que nuns e noutros apareçam exceções,
encarregadas, como sempre, de con rmar a regra.

A tragédia francesa reduz a ação ao mínimo. Não só no sentido das


três unidades (já veremos a tal unidade referente ao romance “que se
deve fazer”), mas ainda porque a história referida reduz-se às menores
proporções. Nosso teatro acumula todas as ações e peripécias que
possa. Nota-se que o autor necessita entreter um público apaixonado
por andanças materialmente difíceis, insólitas e perigosas. O trágico
francês procura, sobre o cânhamo de uma “história” muito conhecida,
desinteressante por si mesma, destacar só três ou quatro momentos
signi cativos. Elide a ação ou peripécia externa: os acontecimentos
servem-lhe só para traçar certos problemas íntimos. Autor e público
agradam-se não tanto nas paixões dos personagens e suas dramáticas
conseqüências, como na análise destas paixões. Em nosso teatro, pelo
contrário, não é tão freqüente ou pelo menos não é menos importante
a anatomia dos sentimentos e caracteres. A partir disso, tomando-os
em bloco e de fora, usa-os como trampolim para que o drama ou
enredo sejam seu grande brinquedo elástico. O público de “currais”
espanhóis, composto de almas simples, mais ardentes do que
contemplativas, aborreceu-se por outro motivo.

Não é, no entanto, a análise psicológica a última pretensão da


tragédia francesa. Serve, bem mais, como mero aparato para outra
coisa que evidentemente enlaça aquela com o teatro grego e romano.
(É incalculável a in uência das tragédias de Sêneca na dramaturgia
francesa clássica.) O público nobre agradava-se com o caráter
exemplar e normativo da ação trágica. Mais do que se angustiar com o
destino atormentado de Fedra ou Atalia; assistia à obra cênica para
estar em sintonia com a exemplaridade destas guras magnânimas. No
fundo, o teatro francês é uma contemplação ética e não um
apaixonamento vital como o nosso. Não é uma ação qualquer; é uma
série de peripécias eticamente neutras, apresentando, senão um tipo
exemplar de reações, ao menos um repertório de gestos normativos
diante dos grandes casos da existência. Os personagens são, com
efeito, heróis, naturezas seletas, normas de magnitude, humanos
standards. Por isso, este teatro não concebia mais personagens que reis
e magnatas, criaturas isentas das urgências primárias da vida, cuja
energia exuberante podia vazar em con itos puramente morais. Ainda
que desconhecêssemos a sociedade francesa de outrora, a leitura
destas tragédias nos convidaria a supor um público diante delas,
preocupado em aprender altas formas de decoro, ansioso pelo seu
próprio aperfeiçoamento. O estilo é sempre comedido e de técnica
nobre: não se concebe nele a grosseria que zesse talvez um gracioso
colorido, nem o frenesi posterior. A paixão nunca está abandonada
por si só, procedendo com rigorosa correção de modalidades, contida
dentro das cláusulas de leis poéticas, civilizadas e gramaticais. A arte
trágica francesa é a arte de não se abandonar, antes melhor, de buscar
sempre, para o gesto e para o verbo, a melhor norma que os deve
regular. Em suma, transparece nela esse afã de seleção, de
aprimoramento re exivo que permitiu à França, geração a geração,
polir sua vida e sua raça.

O orgiástico, o abandono, é característico do popular em toda a


ordem. Assim as religiões populares sempre se entregaram a ritos de
orgia contra os quais a religião dos espíritos seletos combate
perpetuamente. O bramânico combate a magia; o mandarim
confuciano, a superstição taoísta; o concílio católico, os orgasmos
místicos. Convém resumir as duas atitudes vitais mais antagônicas que
existem, dizendo que para uma — a nobre, exigente — o ideal da
existência é não se abandonar, elidir a orgia, enquanto para a outra —
a popular — viver é entregar-se à emoção invasora, buscando na
paixão, rito ou álcool, o frenesi e a inconsciência.

O público espanhol buscava algo deste último nos dramas ardentes


que nossos poetas fabricaram. O que con rma, por rota bem
inesperada, a condição popular de “povo” que certa vez se acreditou
descobrir na história inteira de nossa Espanha. Não foi seleção e
modo, mas paixão e abandono. Sem dúvida, esta sede alcóolica do
apaixonamento possui escassa grandeza. Não vou comparar agora os
valores de raças nem de estilos, mas unicamente descrevo ligeiramente
dois temperamentos contrários.

Em geral, a personalidade de homens e mulheres é borrada em nosso


teatro. Nele não mais interessam suas pessoas; mas elas vagam pelo
mundo, correm aos quatro cantos, arrastadas por um vendaval de
aventuras. Damas descompostas, perdidas nas serras, que outrora,
belas, apareciam no fundo semi-escuro do tálamo e no dia seguinte,
disfarçadas de amoras, passaram pelo porto de Constantinopla.
Amores súbitos e como mágicos que arrebatam os corações
incandescentes e sem peso! Isso era o que atraía nossos antepassados.
Num delicioso artigo de Azorín, descreve-se uma representação de
curral a um povo castiço, havendo um momento no qual o galã em
perigo aproveitava a hora di cílima para declarar seu amor à dama em
versos coruscantes, chamejantes como fogos, de uma deliciosa retórica
repleta de volutas barrocas, carregada de imagens, cruzando toda a
fauna e toda a ora — a retórica que na plástica das cartilhas pós-
renascentistas com seus troféus, frutos, bandeirolas e seus crâneos de
bode ou carneiro — em que a um licenciado cinqüentão, que
presencia a cena, ardem os negros olhos no palor da tez, acariciando,
com a mão nervosa, sua barbicha grisalha. Esta nota de Azorín me tem
ensinado mais sobre o teatro espanhol do que quantos livros lidos.38 O
gênero foi matéria para ardência — quer dizer, o mais oposto da
norma de perfeição que pretendeu ser o gênero francês. O bom
castelhano ia ver a famosa comédia, não para contemplar um per l
exemplar, mas para deixar-se arrebatar, para embriagar-se na torrente
de ações e transes dos personagens. O poeta bordava sobre a
intrincada e diversa trama do argumento com sua rebuscada uência
verbal, arqui orida de metáforas relampejantes, num vocabulário
pleno de sombras profundas e re exos brilhantes, muito parecidos
com os retábulos do mesmo século. Junto ao fogo dos destinos
apaixonantes, o público encontrava o incêndio imaginativo, o
formidável fogo arti cial dos quartetos lopescos ou calderonianos.39

A substância de prazer que encerra nosso teatro é da mesma


linhagem dionisíaca do arroubo místico de frades e monjas do tempo
de grandes bebedores de exaltação. Nada contemplativo, repito. Para
contemplar, são precisas frialdade e distância entre nós e o objeto.
Quem quer contemplar uma correnteza, primeiramente, deve procurar
não ser arrastado por ela.

Vemos, pois, em ambos os teatros dois propósitos artísticos


contrapostos: no drama castelhano o essencial é a peripécia, o destino
acidentado e junto dele a lírica ornamentação do verso estofado. Na
tragédia francesa, o mais importante é o personagem mesmo, sua
qualidade exemplar e paradigmática. Por esta razão, Racine parece-nos
frio e opaco. Diríamos que regressamos a um jardim onde algumas
estátuas falam, enfastiando a nossa admiração ao nos apresentar o
mesmo modelo de gesto. Em Lope de Vega, ao contrário, encontramos
antes a pintura do que a escultura. É uma vasta tela, plena de claro-
escuro, onde tudo alenta colorido e gesticulação, o nobre e o plebeu, o
arcebispo e o capitão, a rainha e a serrana, gente inquieta, decidida,
abundante, exaltada, indo e vindo de lado a lado, sem leis e sem
normas, como uma pululação de infusórios numa gota de água. Para
ver a messe esplêndida de nosso teatro, não convém abrir muito os
olhos, como quem persegue a linha de um per l, mas sim estreitá-los,
com gesto de pintor, como o gesto de Velázquez, olhando as meninas,
os anões e o casal real.40

Creio que este ponto de vista é o que nos permite ver atualmente
nosso teatro sob o ângulo mais favorável. Os entendidos em literatura
espanhola — eu sei muito pouco sobre ela — deveriam ensaiar sua
aplicação. Talvez seja fecundo e direcione a análise até os valores
efetivos daquela gigantesca colheita poética.

Por ora não pretendia outra coisa senão contrapor uma arte de
guras a uma arte de ações. Pois suspeito que o romance de alto estilo
tem que atualmente buscar, ainda que de outra forma, desta e daquela
a melhor, inventar enredos por si mesmos interessantes — coisa
praticamente impossível —, ao idear pessoas atrativas.

Dostoiévski e Proust
Enquanto outros grandes declinam, arrastados ao acaso pela
misteriosa ressaca dos tempos, Dostoiévski está instalado no mais alto.
Talvez haja um pouco de excesso no fervor atual pela sua obra; eu
gostaria de conservar meu juízo sobre ela para uma hora de maior
profundidade. Mas em todo caso, não se pode duvidar de que
Dostoiévski salvou-se, nessa correnteza, do naufrágio geral onde o
romance do século passado padecera. As razões expostas para explicar
este triunfo são, quase sempre, devido à sua capacidade de
sobrevivência, que me parecem errôneas. Atribui-se sua matéria ao
interesse suscitado por suas novelas: o dramatismo misterioso da ação,
o caráter extremamente patológico dos personagens, o exotismo destas
almas eslavas, tão diferentes em sua caótica compleição das nossas,
polidas, delineadas e claras. Não nego que tudo isso colabore no prazer
que nos causa Dostoiévski, mas não me parece uma explicação
su ciente. Além do mais, convém considerar tais ingredientes como
fatores negativos, mais próprios para entediar do que para nos atrair.
Recorde-se de que o que se lê nestes romances, envolto em
complacência, deixava em suas leituras certa impressão penosa,
desagradável e conturbada.

A matéria não salva nunca uma obra de arte, e o ouro de que é feita
não consagra a estátua. A obra de arte vive mais de sua forma do que
de sua matéria e deve, à graça essencial que dela emana, a sua
estrutura, o seu organismo. Ao que é mais propriamente artístico na
obra, a isso deve atender a crítica artística e literária. Tudo o que
possui delicada sensibilidade estética apresentará um sinal de
listeísmo em que, diante de um quadro ou de uma produção poética,
alguém assinale como o “assunto” decisivo. É claro que, sem este, não
existe obra de arte, como não há vida sem processos químicos. Mas da
mesma forma que a vida não se reduz a esses, mas começa a ser vida
quando a lei química acrescenta sua ordenadora e original
complexidade, assim a obra de arte está à mercê da estrutura formal
que impõe à matéria ou ao assunto.

Sempre achei estranho que, mesmo para as pessoas do ramo artístico,


fosse difícil reconhecer como coisa mais verdadeiramente substancial
na arte o que é formal, aquilo que para as pessoas comuns parece algo
abstrato e inativo.

O ponto de vista do autor ou do crítico não pode ser o mesmo que o


do leitor leigo. A este importa só o efeito último e total produzido pela
obra, não se preocupando em analisar a gênese de seu prazer.

Assim acontece que muito se fala do que ocorre nos romances de


Dostoiévski, mas quase nada de sua forma. O insólito da ação e dos
sentimentos que este formidável escritor descreve paralisa o olhar do
crítico, não lhe deixando penetrar nas profundezas do livro que, como
em toda a criação artística, é sempre o que parece mais adjetivo e
super cial: a estrutura do romance como tal. Daí uma curiosa ilusão
de ótica. Atribui-se a Dostoiévski o caráter inconsciente, turbulento de
suas personagens, fazendo do próprio romancista uma gura além de
seus romances. Estes parecem engendrados numa hora de êxtase
demoníaco por algum poder elemental e anônimo, parente do raio e
irmão da tormenta.

Mas tudo isso é magia e fantasmagoria. A mente alerta agrada-se com


todas essas imagens cosmogônicas, mas não as leva a sério, preferindo,
por m, idéias claras. Pode até ser certo que o homem Dostoiévski
fosse um pobre energúmeno, ou, se agradar mais, um profeta; mas o
romancista Dostoiévski foi um homme de lettres, um solícito o cial de
um ofício admirável, mais nada. Não me esquecendo disso tudo, tenho
tentado muitas vezes convencer Baronja de que Dostoiévski era, antes
de mais nada, um prodigioso técnico do romance, um dos maiores
inovadores da forma romanesca.
Não há maior exemplo do que a chamada morosidade própria deste
gênero. Seus livros são quase sempre de inúmeras páginas, e, no
entanto, a ação apresentada costuma ser brevíssima. Às vezes,
necessita de dois tomos para descrever um acontecimento de três dias,
quando não de umas horas. E, no entanto, haverá um caso de maior
intensidade? É um erro crer que esta se obtém contando muitos
acontecimentos. Totalmente ao contrário: são poucos e sumamente
detalhados, quer dizer, realizados. Como em tantas outras coisas, rege
aqui também o non multa, sed multum. Obtém-se a densidade, não
por justaposição de aventura em aventura, mas pela dilatação de cada
uma mediante prolixa presença de amiudados componentes.

A concentração do enredo no tempo e lugar, característica da técnica


de Dostoiévski, faz-nos pensar num sentido insuspeitado aludido pelas
veneráveis “unidades” da tragédia clássica. Esta norma, que visava,
sem que se suspeite por quê, a uma continência e limitação, aparece
então como um fértil recurso de obtenção dessa densidade interna,
dessa pressão atmosférica dentro do volume romanesco.

Nunca pesa a Dostoiévski encher páginas e páginas com diálogos sem


m de suas personagens. Por causa desse abundante uxo verbal,
saturamo-nos de suas almas, fazendo com que personagens
imaginárias adquiram uma evidente corporeidade que nenhuma
de nição pode proporcionar.

É bastante sugestivo surpreender Dostoiévski em seu astuto


comportamento com o leitor. Quem o olhar atentamente acreditará
que o autor de ne cada um de seus personagens. Com efeito, quase
sempre que nos apresenta algum, começa a elencar brevemente sua
biogra a de tal forma que, desde logo, parecem possuir uma de nição
su ciente de sua índole e faculdades. Mas no início, com efeito, da
atuação — quer dizer, falas e ações —, sentimo-nos despistados. O
personagem não se comporta segundo a imagem que aquela de nição
apressada nos prometia. Depois do primeiro conceito que nos deu do
personagem, sucede-se um segundo onde o vemos viver diretamente,
e que já não é de nido pelo autor, discrepando totalmente do
primeiro. Então se inicia no leitor, por um inevitável automatismo, a
preocupação de que o personagem se lhe escape na encruzilhada
desses dados contraditórios e, sem o querer, movimente-se na
persecução, esforçando-se em interpretar os sintomas contraditórios,
para conseguir uma sionomia unitária; quer dizer, ocupa-se o leitor
em o de nir. Pois bem, é o que nos acontece no contato vital com as
pessoas. O acaso as conduz até nós, as ltra no orbe de nossa vida
particular, sem que ninguém se encarregue o cialmente de as de nir.
A todo o momento encontramos, diante de sua realidade difícil, não
seu simples conceito. E por não possuir nunca su cientemente seu
segredo, esta relativa indocilidade do próximo de ajustar-se por
completo em nossas idéias sobre ele é o que lhe dá independência em
relação a nós, fazendo-nos senti-lo como algo real, efetivo e
transcendente às nossas imaginações. Através disso, chegamos a uma
nota inesperada: o “realismo” — chamo-lhe assim para não complicar
— de Dostoiévski não está nas coisas e fatos referidos, mas no modo
de tratar deles a que o leitor se vê obrigado. Não é a matéria da vida o
que constitui seu “realismo”, mas a forma da vida.

Neste estratagema para despistar o leitor, Dostoiévski chega a ser


cruel. Porque não só evita nos esclarecer suas guras, através de
antecipações de nidoras de como são, como através da conduta das
personagens, variando de etapa a etapa, apresenta-nos faces diferentes
de cada pessoa, parecendo-nos assim se irem formando e integrando
pouco a pouco diante de nossos olhos. Dostoiévski elide a estilização
dos caracteres, comprazendo-se em que transpareçam seus equívocos,
como acontece na existência real. O leitor se vê forçado a reconstruir o
personagem, entre oscilações e correções, sempre temeroso de estar
errado o per l destas criaturas mutáveis.

Dostoiévski deve, a este e a outros artifícios, que a inigualável


qualidade de seus livros — melhores ou piores — não pareça nunca
falsa, convencional. O leitor nunca tropeça com os bastidores do
teatro, porém, logo, sente-se submerso numa semi-realidade perfeita,
sempre autêntica e e caz. Porque o romance exige — aí a diferença dos
outros gêneros poéticos — que não seja percebido como romance, que
não seja visto o cortinado da ribalta nem as tábuas do cenário. Balzac,
lido atualmente, nos desperta de nosso sonho romanesco a cada
página, porque nos debatemos contra seu andaime de romancista. No
entanto, a condição mais importante da estrutura que Dostoiévski
proporciona ao romance é mais difícil de explicar, e pre ro referir-me
a ela posteriormente.

Convém, entretanto, fazer notar que desde então esse hábito de não
de nir, melhor ainda, de despistar, essa contínua mutação dos
caracteres, essa condensação no tempo e espaço, en m, essa
morosidade ou tempo lento não são usos exclusivos de Dostoiévski.
Todos os romances que ainda podem ser lidos atualmente mais ou
menos o apresentam. Sirva-se de exemplo ocidental Stendhal, em
todos os seus livros maiores. O vermelho e o negro, que, por ser um
romance biográ co, evoca alguns anos da vida de um homem, é
composto em forma de três ou quatro quadros, cada um dos quais está
contido em seu interior como um romance inteiro do mestre russo.

O último grande livro romanesco — a ingente obra de Proust —


declara, todavia, mais essa secreta estrutura, levando-a de certo modo
ao seu exagero.

Em Proust, a morosidade, a lentidão, chegam a seu extremo e quase


se convertem em uma série de planos estáticos, sem movimento
algum, sem progresso nem tensão. Sua leitura convence-nos de que a
medida da lentidão conveniente foi ultrapassada. O enredo é quase
reduzido à pura descrição imóvel, com exagerado e exclusivo caráter
difuso, atmosférico, sem ação concreta, que seria, com efeito, essencial
ao gênero. Notamos que lhe falta o esqueleto, o sustento rígido e tenso,
que são o esteio das mãos. Desusado, o corpo romanesco converte-se
em nuvem informe, em plasma sem gura, em polpa sem contorno.
Por essa razão, eu disse anteriormente que, ainda que o enredo ou ação
possuam um papel mínimo no romance atual, no romance possível
isso não pode ser eliminado por completo, conservando a função,
certamente não mais do que mecânica, do o no colar de pérolas, do
esteio para as mãos, das estacas na tenda de campanha.
Minha idéia — que antes de ser rechaçada pelo leitor merece de sua
parte, creia-me, alguma meditação — é, pois, que o chamado interesse
dramático perde valor estético no romance, sendo, porém, uma
necessidade mecânica dele. A razão desta necessidade origina-se na lei
geral da alma humana, que merece ao menos uma breve exposição.

Ação e contemplação
Faz mais de dez anos que nas Meditações do Quixote atribuí ao
romance moderno, como sua missão essencial, descrever uma
atmosfera diferenciada de outras formas épicas — a epopéia, o conto, o
romance de aventuras, o melodrama e o folhetim — que evocam uma
ação concreta, de linha e curso muito de nidos. Diante da ação
concreta, que é um movimento dos mais rápidos possíveis a um m, o
atmosférico signi ca algo difuso e quieto. A ação arrebata-nos em sua
dramática seqüência; o atmosférico, entretanto, convida-nos
simplesmente a sua contemplação. Na pintura, a paisagem representa
um tema atmosférico, enquanto a representação histórica narra uma
façanha acabada, um episódio de forma concisa. Não é por acaso que a
técnica do plein air, ou seja, da atmosfera, tenha sido inventada por
causa da paisagem.

Posteriormente, só tive oportunidade de con rmar aquele primeiro


pensamento, porque o gosto do público mais seleto, e as tentativas
mais gloriosas de autores recentes, acusavam cada vez mais esse
destino do romance como um gênero difuso. A última criação de alto
estilo, que é a obra de Proust, leva o problema à sua máxima evidência:
nela é extremo até o mais superlativo exagero, o caráter não-dramático
do romance. Proust renuncia de todo a arrebatar o leitor por meio do
dinamismo de uma ação, deixando-lhe numa atitude puramente
contemplativa. Pois bem, este radicalismo é causa da di culdade e da
insatisfação que o leitor encontra lendo Proust. Ao m de cada página,
pediríamos ao autor um pouco de interesse dramático, embora
reconhecendo, sim, que o autor nos oferece, com excessiva
abundância, a iguaria mais deliciosa. O que nos oferece o autor é uma
análise microscópica das almas humanas. Com um ápice de
dramatismo — porque, com rigor, nos contentaríamos com muito
pouco — a obra caria perfeita.

Como se compatibiliza isso? Por que, para ler um romance que


estimamos, necessitamos de certo mínimo de ação embora não a
apreciemos? Creio que qualquer um que re ita com um pouco de
rigor sobre os componentes de prazer da leitura dos grandes romances
tropeçará em idêntica antinomia.

O fato de que uma coisa seja necessária para a outra não implica que
seja por si mesma estimável. Para descobrir o crime, falta o delator, e
nem por isso estimamos a delação.

A arte é um fato que acontece em nossa alma ao enxergar um quadro


ou ler um livro. Quando este fato ocorre, é mister que nosso
mecanismo psicológico funcione bem, e toda a série de suas mecânicas
exigentes será ingrediente necessário da obra artística, embora não
possua valor estético ou seja só re exivo e derivado. Pois bem, eu diria
que o interesse dramático é uma necessidade psicológica do romance,
nada mais, porém, é claro, nada menos. Comumente, não se pensa
assim. Costuma-se crer que um dos grandes fatores estéticos seja o
enredo sugestivo e, conseqüentemente, será requerido o máximo
possível. Eu creio, inversamente, que sendo a ação um elemento não
mais que mecânico, é esteticamente peso morto, e, portanto, deve ser
reduzido ao mínimo. No entanto, por sua vez, diante de Proust,
considero que este mínimo é imprescindível.

A questão transcende o círculo do romance, e ainda de toda a arte,


para adquirir as mais variadas proporções em loso a. Recordo ter
tratado várias vezes deste tema com alguma delonga em meus cursos
universitários.

Trata-se nada menos do que o antagonismo ou mutabilidade entre


ação e contemplação. Dois tipos de homem opõem-se: um aspira à
pura contemplação; o outro prefere atuar, intervir, apaixonar-se. Um
só se interessa pelas coisas à medida que as possa contemplar. O
interesse ofusca a contemplação, fazendo-nos tomar partido, cega-nos
para o outro, enquanto derrama um excesso de luz sobre ele. A ciência
adota, desde logo, esta atitude “contemplativa”, sem fazer nada mais do
que espelhar castamente a sionomia multiforme do cosmos. A arte é,
em si mesma, um deleitar-se na contemplação.

Aparecem, desta sorte, o contemplar e o interessar-se como duas


formas polares da consciência que, a princípio, excluem-se
mutuamente. Por isso, o homem de ação costuma ser um péssimo ou
nulo pensador, e o ideal do sábio, por exemplo, no estoicismo, faz
deste um ser desarraigado de todas as coisas, inativo, com alma de
laguna imóvel, que re ete impassível os céus circundantes.

Mas esta contraposição radical é, com todo o radicalismo, uma utopia


do espírito geométrico. A pura contemplação não existe, não pode
existir. Se nos colocássemos diante do universo, isentos de todo o
interesse concreto, não conseguiríamos ver bem nada. Porque o
número de coisas que com igual direito solicitam nossa visão é
in nito. Não haveria mais razão para que nos xássemos num ponto
mais do que noutro; indiferentes, vagaríamos de lá para cá, resvalando,
sem ordem nem perspectiva, sobre a paisagem universal, incapazes de
xar-nos em algo. É costumeiramente esquecido o humilde ditado de
que para ver é preciso olhar, e para olhar é preciso xar-se, quer dizer,
é preciso prestar atenção. A atenção é uma preferência que
subjetivamente outorgamos a algumas coisas em detrimento de outras.
Não se pode atender aquelas, sem desatender estas. A atenção vem a
ser, pois, um foco de iluminação favorável que condensamos sobre
uma zona de objetos, deixando em torno dela uma zona de penumbra
e desatenção.

A pura contemplação pretende ser uma rigorosa imparcialidade de


nossa vista, que se limita a re etir o espetáculo da realidade, sem que
se permita o sujeito a menor intervenção nem deformação. Mas então
notamos que atrás disso, como pressuposto iniludível, o mecanismo da
atenção funciona, dirigindo o olhar de dentro do sujeito, vertendo
sobre as coisas uma perspectiva, um modelo e uma hierarquia,
oriundos de seu fundo íntimo. Não se atende ao que se vê, mas sim se
vê só aquilo a que se atende. A atenção é um a priori psicológico que
atua em virtude de preferências afetivas, quer dizer, de interesse. A
nova psicologia vê-se obrigada a transtornar paradoxalmente a ordem
tradicional das faculdades mentais. O escolástico, como o grego, dizia:
ignoti nulla cupido41 — não há desejo pelo desconhecido, não
interessa. A verdade é, mais certo, o contrário: só conhecemos bem
aquilo que temos desejado de algum modo, ou, para falar mais
exatamente, aquilo que previamente nos interessa. Como é possível se
interessar pelo que ainda não se conhece é um abrupto paradoxo que
tentei esclarecer em meu livro Iniciação na estimativa.42

Sem tocar então em assunto de traço tão altivo, basta que cada qual
descubra em seu próprio passado quais foram as circunstâncias em
que aprendeu mais do mundo, e perceberá que não foram aquelas em
que se propôs deliberadamente a ver por ver. Não é a paisagem que
visitamos, como turistas, o que melhor enxergamos. É notável que, em
última análise, o turista de nada se inteira bem. Resvala sobre a urbe
ou a comarca sem se oprimir com essas, forçando-as a render copioso
conteúdo. E, no entanto, parece que, a princípio, o turista, preocupado
exclusivamente em contemplar, deveria ser quem alcança maior
espólio de notícias. No outro extremo, encontra-se o lavrador que tem
uma relação puramente interessada com o campo. Tudo o que ele tem
notado, em seu caminhar consolidado pela terra adentro, espanta pela
ignorância aparente que o campesino demonstra pelo campo. Não
sabe a dimensão do que o circunda, mas conhece o estrito palpável ao
seu interesse utilitário de agricultor.

Isso indica que a situação praticamente ótima para conhecer — quer


dizer, para absorver o maior número e a melhor qualidade de
elementos objetivos — é algo intermediário entre o puro contemplar e
o interesse urgente. É necessário que algum interesse vital, não
demasiado premente ou angustioso, organize nossa contemplação, a
con ne, limite e articule, pondo nela uma perspectiva de atenção.
Com respeito ao campo, pode estar seguro de que ceteris paribus,43 é o
caçador, o caçador a cionado, quem costuma conhecer melhor a
comarca, quem consegue o contato mais fértil com as demais facetas
do multiforme terreno. Paralelamente, não teremos visto bem outra
cidade, senão aquela onde tenhamos vivido enamorados. O amor
concentra nosso espírito sobre seu deleitável objeto, dotando-nos de
uma hipersensibilidade de absorção que se derrama no contorno, sem
necessidade de fazê-lo centro deliberado da visão.

Os quadros que mais nos deixam compenetrados não estão só no


museu, onde vamos “ver quadros”, mas talvez pendurados na humilde
tábua na entreluz de um aposento, onde a existência nos levou com
muitas outras preocupações. No concerto, a música fracassa, quando,
pela rua, imersos em re exões, ouvimos um cego tocar, compungindo
o nosso coração.

É evidente que o destino do homem não é primariamente


contemplativo. Por isso é um erro fazer da contemplação um ato
primário, sendo que se pôr a contemplar é a menor condição. Em
troca, ao fazer da contemplação um ofício secundário, construindo na
alma o dinamismo de um interesse, parece que adquirimos o máximo
poder absorvente e receptivo.

Se assim não fosse, o primeiro homem, colocado diante do cosmos,


teria visto por inteiro o que se passasse integralmente em sua frente.
Mas o que aconteceu foi que a humanidade só tem visto o universo
traço a traço, círculo a círculo, como se cada uma de suas situações
vitais, de atividades, misteres e interesses, houvesse servido como
órgão perceptivo com que ouve uma breve zona circundante.

E o que parece estorvo à pura contemplação — certos interesses,


sentimentos, necessidades, preferências afetivas — são justamente o
instrumento inelutável daquela. De todo o destino humano, que não
seja monstruosamente torturado, pode-se fazer um magní co aparato
contemplativo — um observatório —, de forma que nenhum outro,
nem sequer os que são mais aparentemente favoráveis, pode substituí-
lo Assim, a vida mais humilde e dolente é capaz de receber uma
consagração teórica, uma missão de sabedoria intransferível, se bem
que só certos tipos de existência possuam as melhores condições para
o melhor conhecimento.

Mas deixemos estas distâncias, retendo unicamente a nota de que, só


através de um mínimo de ação, a contemplação é possível. Como no
romance, a paisagem e a fauna oferecidas são imaginárias, sendo
necessário que o autor nos disponha algum interesse imaginário, um
mínimo apaixonamento que sirva de suporte dinâmico e de
perspectiva à nossa faculdade de ver. Conforme a perspicácia
psicológica desenvolve-se no leitor, diminui a sua sede pelo
dramatismo. É um feito afortunado, porque atualmente o romancista
encontra-se com a impossibilidade de inventar grandes enredos
insólitos para a sua obra. A meu juízo, não deveria se preocupar com
isso. Bastaria um pouco de movimento e tensão. Agora que essa parte
é imperdoável. Proust demonstra a necessidade do movimento
escrevendo um romance paralítico.

O romance como “vida provinciana”


Portanto, deve-se inventar dois termos: a ação ou enredo não é a
substância do romance, mas, pelo contrário, sua armação exterior, seu
mero suporte mecânico. A essência do romanesco — note-se que me
re ro tão-só ao romance moderno — não está no que acontece; mas
precisamente no que não é “algo acontecendo” no puro viver, no ser e
estar dos personagens, sobretudo em seu conjunto ou ambiente. Uma
prova indireta disso pode ser encontrada no fato de que não
costumamos recordar os acontecimentos dos melhores romances, as
peripécias, por terem ocorrido às guras, mas só a estas, e citar o título
de certos livros equivale a nomearmos uma cidade onde vivemos
algum tempo; a ponto de rememorarmos um clima, um odor peculiar
da urbe, um tom geral das gentes e um ritmo típico da existência. Só
depois, se for o caso, volta à nossa memória alguma cena particular.
É, pois, um erro majoritário do romancista seu anseio por achar uma
“ação”. Qualquer uma nos serve. Para mim, sempre foi o exemplo
clássico da independência do prazer romanesco que encontramos no
enredo uma obra que Stendhal deixou apenas esboçada, vindo à luz
com diversos títulos: Luciano Leuwen, O caçador verde, etc. A porção
existente alcança uma abundante quantidade de páginas. No entanto,
ali nada acontece. Um jovem o cial chega a uma capital de
departamento, enamorando-se de uma dama que pertence ao senhorio
provinciano. Assistimos unicamente à minuciosa germinação do
deleitável sentimento num e noutro ser; nada mais. Quando a ação
está se enredando, o escrito termina, mas camos com a impressão de
que poderíamos seguir inde nidamente, lendo páginas e páginas em
que se nos falasse daquele recanto francês, daquela dama legítima,
daquele jovem militar com uniforme da cor do amaranto.

E o que faz mais falta do que isso? Sobretudo, tenha-se a caridade de


re etir um pouco mais sobre o que poderia ser o “outro” que não isso,
essas “coisas interessantes”, essas peripécias maravilhosas... Na ordem
do romance, isso não existe (não falamos agora do folhetim ou do
conto de cção cientí ca ao modo de Poe, Wells, etc.). A vida é
precisamente cotidiana. Não é mais do que isso, na maravilha da hora
simples e sem legenda.44 Não nos podemos interessar no sentido
romanesco por meio de uma ampliação de nosso horizonte cotidiano,
apresentando-nos ações insólitas. É preciso operar ao contrário,
estreitando, todavia, mais o horizonte do leitor. Explico-me.

Se por horizonte entendemos o círculo de seres e acontecimentos que


integram o mundo de cada um, podemos cometer o erro de imaginar
que existem certos horizontes tão amplos, tão variados, tão
heterodoxos, que são verdadeiramente interessantes, ao passo que
outros são tão reduzidos e monótonos, que não vale a pena interessar-
se por eles. Trata-se de uma ilusão. A senhorita de comptoir supõe que
o mundo da duquesa é mais dramático do que o seu, mas acontece que
a duquesa se entedia em seu orbe luminoso do mesmo modo que a
suposta romântica em seu pobre e obscuro âmbito. Ser duquesa é uma
forma como outra qualquer do cotidiano.
A verdade é, pois, o contrário dessa imaginação. Não há nenhum
horizonte que por si mesmo, por seu conteúdo peculiar, seja
especialmente interessante, mas todo o horizonte, seja qual for, amplo
ou estreito, iluminado ou tenebroso, vário ou uniforme, pode suscitar
interesse. Basta para isso que nos adaptemos vitalmente a ele. A
vitalidade é tão generosa, que acaba por encontrar no mais sórdido
deserto pretextos para exaltar e vibrar. Vivendo na cidade grande, não
compreendemos como é possível ser contentes nos vilarejos. Mas se
por acaso mergulhássemos num, em pouco tempo, nos
surpreenderíamos apaixonados pelas pequenas intrigas locais.
Acontece isso com a beleza feminina e aos que visitam Fernando
Poo:45 ao chegarem, sentem aversão pelas mulheres indígenas, mas não
passa muito tempo sem que a antipatia seja domesticada, acabando
por parecer que as fêmeas bubis são princesas de Westfalia.

Isto é, a meu juízo, de máxima importância para o romance. A tática


do autor deve consistir em isolar o leitor de seu horizonte real,
aprisionando-o num pequeno horizonte hermético e imaginário, que é
o âmbito interior do romance. Numa palavra, tem que o pôr à prova,
fazendo com que se interesse por aquela gente que apresenta, a qual,
embora sendo das mais admiráveis, não possa colidir com os seres de
carne e osso que circundam o leitor, solicitando constantemente seu
interesse. Fazer de cada leitor um “provinciano” transitório é, a meu
entender, o grande segredo do romancista. Por isso, eu disse
anteriormente que, em vez de querer ampliar seu horizonte — qual
horizonte ou mundo romanesco pode ser mais vasto e rico do que o
mais modesto dos efetivos? —, deve tentar atraí-lo, con ná-lo. Assim,
e só assim, ele se interessará pelo que ocorre dentro do romance.

Nenhum horizonte, repito, é interessante por sua matéria. Qualquer


um é por sua forma, por sua forma de horizonte, isto é, de cosmos ou
mundo completo. O microcosmos e o macrocosmos são igualmente
cosmos; só se diferenciam no tamanho do raio; mas ele, vivendo
dentro de cada um, sempre tem o mesmo tamanho absoluto. Recorde-
se a hipótese de Poncaré, que serviu para estimular Einstein: “Se nosso
mundo se constrangesse e minguasse, tudo nele nos pareceria manter
as mesmas dimensões”.

A relatividade entre horizonte e interesse — que todo o horizonte


tenha seu interesse — é a lei vital, que na ordem estética possibilita o
romance.

Dela se desprendem algumas normas para o gênero.

Hermetismo
Observemo-nos no momento de terminar a leitura de um grande
romance. Parece-nos que emergimos de uma outra existência,
escapando de um mundo incomunicável ao nosso. Esse insulamento é
evidente, pois não podemos perceber o tráfego. Um momento atrás
estávamos em Parma com o Conde Mosca e Sanseverina e Clélia e
Fabricio;46 vivíamos com eles, preocupados com suas vicissitudes,
imersos no mesmo ar, espaço e tempo que seu povo. Agora de repente
sem intervalo, estamos no nosso quarto, na nossa cidade e em nosso
lugar; as preocupações que nos eram habituais já começam a despertar
em torno de nossos nervos. Há um intervalo de indecisão, de
hesitação. Talvez a batida abrupta de uma lembrança de repente nos
mergulhe de volta ao universo do romance, e com algum esforço,
como se acariciasse um elemento líquido, temos que nadar até a
margem de nossa própria existência. Se alguém olhar para nós,
descobrirá em nós a dilatação das pálpebras, que caracteriza os
náufragos.

Eu chamo de romance a criação literária que produz esse efeito. Ele


tem um poder mágico gigantesco, único e glorioso desta arte moderna
soberana. E o romance que não consegue alcançar isso será um
romance ruim, quaisquer que sejam suas outras virtudes. É potência
sublime e benigna que multiplica a nossa existência, que nos liberta e
nos pluraliza, que nos enriquece com generosas transmigrações! Mas
para conseguir esse efeito é necessário que o autor saiba
primeiramente como nos atrair para o ambiente fechado, que é seu
romance e, em seguida, cortar qualquer recuo, manter-nos em perfeito
isolamento do espaço real que nos resta. O primeiro é fácil; qualquer
sugestão nos fará avançar para a entrada que o romancista abre diante
de nós. O segundo é mais difícil. É necessário que o autor construa um
recinto hermético, sem furo ou grade, por onde, de dentro do
romance, vislumbrássemos o horizonte da realidade. O motivo disso
não parece complicado. Se pudermos comparar o mundo interior do
livro com o externo e real, convidados a “viver” os tamanhos,
dimensões, problemas e paixões, que nele se propõem, estes
diminuirão tanto em proporção e intensidade, que todo o prestígio do
romance desvanecerá. Seria como olhar num jardim uma pintura que
representa um jardim. O jardim pintado só oresce e verdeja no
recinto de uma sala, sobre uma parede inde nida, onde se abre a
lacuna de um meio-dia imaginário.

Nesse sentido, eu me atreveria a dizer que só é romancista quem


possui o dom de esquecer-se e não desistir de fazer-nos esquecer, da
realidade deixada de fora de seu romance. Que ele seja tão “realista”
quanto quiser, isto é, que seu microcosmo romântico seja feito dos
materiais mais reais; mas que, quando estejamos dentro dele, não
sintamos falta de nada que foi deixado extramuros.

É por isso que todo romance carregado de intenções transcendentais,


sejam elas políticas, ideológicas, simbólicas ou satíricas, nasce morto.
Porque essas atividades são de tal natureza que não podem ser
exercidas cticiamente; funcionam apenas com referência ao horizonte
de vigência de cada indivíduo. Ao excitá-las, é como se fôssemos
empurrados para fora do mundo virtual do romance e forçados a
manter nossa comunicação com o orbe absoluto do qual nossa
existência real depende, viva e alerta. Como posso me interessar pelos
destinos imaginários dos personagens se o autor me força a
confrontar-me com o grave problema de meu próprio destino, político
ou metafísico? O romancista deve tentar, ao contrário, anestesiar-nos
para a realidade, deixando o leitor preso na hipnose de uma existência
virtual.

Encontro aqui a causa, nunca bastante enunciada, da enorme


di culdade — talvez impossibilidade — associada ao chamado
“romance histórico”. A a rmação de que o cosmos imaginado possui
autenticidade histórica ao mesmo tempo mantém nele uma colisão
permanente entre dois horizontes. E como cada horizonte exige uma
acomodação diferente de nosso aparato visual, temos que mudar
constantemente nossa atitude; o leitor não pode sonhar o romance
com calma, nem pensar com rigor sobre a história. A cada página ele
hesita, sem saber se projeta o fato e a gura no horizonte imaginário
ou no histórico, com o qual adquire ares de falsidade e convenção. A
tentativa de interpenetrar os dois mundos produz apenas a negação
mútua de um e de outro; o autor parece-nos falsi car a história,
aproximando-a demais, distorcendo o romance, distanciando-o
excessivamente de nós em direção ao plano abstrato da verdade
histórica.

O hermetismo é apenas a forma especial que o imperativo genérico


da arte adota no romance: a intranscendência. Isso irrita todas as
cabeças confusas e todas as almas conturbadas. Mas o que podemos
fazer se é uma lei inexorável que cada coisa tenha que ser o que é,
renunciando a ser outra? Existe gente que quer ser tudo. Não contentes
em se ngir de artistas, querem ser políticos, comandar e dirigir
multidões, ou querem ser profetas, administrar a divindade e governar
as consciências! Que eles tenham tal ubérrima pretensão para suas
pessoas não seria ilícito; mas tal ambição os leva a querer que as coisas
também contenham esse destino múltiplo. E isso é o que parece
impossível. As artes vingam-se de todos que querem estar com elas
além do que um artista, fazendo com que a sua obra não chegue
sequer a ser artística. Da mesma forma, a política do poeta sempre
permanece em um gesto ingênuo e estéril.

Uma necessidade puramente estética impõe segredo ao romance,


obrigando-o a ser um orbe obstruído de toda realidade e ciente. E esta
condição engendra, entre muitas outras, a conseqüência de que não
pode aspirar diretamente a ser loso a, pan eto político, estudo
sociológico ou prédica moral. Não pode ser mais do que romance, seu
interior não pode transcender por si mesmo a nada exterior, como o
sonho deixaria de sê-lo no momento que quiséssemos deslizar nosso
braço à dimensão da vigília, apresar um objeto real e introduzi-lo na
esfera mágica do que estamos sonhando. Nosso braço de sonhadores é
um espectro sem vigor su ciente para sustentar uma pétala de rosa.
São ambos os universos de tal modo impenetráveis, que o menor
contato de um com o outro aniquila um ou outro. Quando crianças,
sempre fracassamos ao querer arriscar nosso dedo no submundo
iridescente da bolha de sabão. O terno cosmos utuante anulava-se em
repentina explosão, deixando sobre o pavimento uma lágrima de
espuma.

Nada tem a ver o que um romance, depois de vivido em delicioso


sonambulismo, suscita secundariamente em nós com toda a sorte de
ressonâncias vitais. O simbolismo do Quixote não está em seu interior,
mas por ser construído por nós externamente, re etindo sobre nossa
leitura do livro. As idéias religiosas e políticas de Dostoiévski não têm
qualidade executora dentro do corpo romanesco; valem só como
cções da mesma ordem que os rostos dos personagens e seus
frenéticos apaixonamentos.

Romancista, olha a porta do Batistério orentino que Lorenzo


Ghiberti47 lavrou! Ali, numa série de pequenos debuxos, está quase
toda a Criação: homens, mulheres, animais, frutos, edifícios. O
escultor não pretendeu mais do que se comprazer em modelar, umas
atrás das outras, todas essas formas; ainda parece sentir a estremecida
fruição com que a mão insinuava a curva frontal do carneiro
apercebido por Abraão, durante o sacrifício, e o peso redondo da maçã
e a desacorçoada perspectiva do edifício. Do mesmo modo, sinta o
delicioso frenesi de contar, de imaginar homens e mulheres e discursos
e paixões, que se verte totalmente na forja do corpo côncavo que é o
romance, sem nostalgia alguma da vida efetiva abandonada fora,
encerrada em sua cavidade, larva do casulo mágico, deleitando-se em
polir o interior da abóboda para não deixar poro algum exposto ao ar
e à luz do real.

Ou dito com outras palavras mais simples: romancista é o homem


que, enquanto escreve, interessa-se pelo mundo imaginário mais do
que nenhum outro possível. Se assim não fosse, sem interesse, como
iria conseguir nos interessar também? Divino sonâmbulo, o
romancista tem que nos contaminar com seu fértil sonambulismo.

Romance, gênero estuporante


O que é chamado de caráter hermético do romance faz-se patente,
quando o comparamos com o gênero lírico. Gostamos do milagre
lírico, vendo-o emergir no fundo da realidade como uma fonte
arti cial na paisagem em torno. O lirismo nasce para ser visto de fora
como a estátua, como o templo grego. Não entra em colisão com nossa
realidade, ou, melhor dizendo, adquire sua graça peculiar ao aparecer
contraposto a ela, instalando em seu meio, com olímpica inocência, a
nudez de sua irrealidade. Em troca, o romance está destinado a ser
visto a partir de seu próprio interior, que é o que acontece também
com o mundo verdadeiro, do qual, por inexorável prescrição
metafísica, é o centro de cada indivíduo em cada momento de sua
vida. Para gozar romanescamente, temos que nos sentir rodeados de
romance por todas as partes, e não cabe situar este como um objeto
destacado, mais ou menos, entre os demais. Precisamente ao ser um
gênero “realista”, por excelência, é incompatível com a realidade
exterior. Para evocar a sua realidade interior, necessita desalojar e
abolir a circundante.

Desta exigência derivam-se todas as condições do gênero assinalado:


todas se resumem no hermetismo. Assim, o imperativo da autópsia
surge inevitavelmente da necessidade em que se encontra o
romancista, ao tapar o mundo real com seu mundo imaginário. Para
que deixemos de ver uma coisa, para tapá-la, temos que ver outra, a
que tapa. O espectro caracteriza-se por não arrastar sombra nem
ocultar atrás de si um traço de universo. Ambos os sintomas revelam
aos entes de além-túmulo a realidade em que Dante48 transitava. Em
vez de de nir o personagem ou o sentimento, o autor deve, pois,
evocá-los, para que sua presença intercepte a visão de nosso contorno.

Pois bem, eu não vislumbro que se possa conseguir isso de outra


maneira senão através de uma generosa plenitude de detalhes. Para
insular o leitor, não há outro meio senão o submeter a um denso cerco
de minudências claramente intuídas. Qual outra coisa é a nossa vida
senão uma gigantesca síntese de ninharias? Quem duvida de que está
sonhando não recorre à rati cação de sua vigília com nenhum sistema
heróico, mas à humilde beliscada. No romance, trata-se justamente de
sonhar a beliscada.

Como sempre acontece de o exagero faz-nos cair na conta da mesura


desconhecida, a obra de Proust, excedendo a prolixidade e a
pequeneza, fez-nos notar que todos os grandes romances foram
essencialmente minuciosos, embora comedidos. Os livros de
Cervantes, Stendhal, Dickens, Dostoiévski são, com efeito, do gênero
estuporante. Todos eles parecem luxuosamente espumados de uma
plenitude intuitiva. Sempre encontramos mais dados do que os que
podemos guardar, e ainda nos ca a impressão de que mais além dos
comunicados jazem muitos outros, como em potência. Os romances
máximos são ilhas de coral formadas por miríades de minúsculos
animais, cuja aparente debilidade detém os embates marinhos.

Isto obriga o romancista a não atacar mais temas do que aqueles de


que possuir copiosa intuição. É mister que produza ex abundantia.
Dando pé, ao mover-se em líquido escasso, não acertará nunca.

Há que aceitar as coisas como são. O romance não é um gênero


ligeiro, ágil, alado. Deveria ser entendido como um guia orientador o
fato de que todo os grandes romances preferidos atualmente são, de
outro ponto de vista, livros um pouco pesados. O poeta pode começar
a andar com sua lira embaixo do braço, mas o romancista necessita
movimentar-se com enorme impedimento, como os circos de
peregrinos e os povos emigrantes. Carrega todas as tralhas de um
mundo.

Decadência e perfeição
As condições que até então foram mencionadas só determinam a linha
em que começa o romance, xando, por assim dizer, o nível do mar
em seu continente. Sobre este, elevam-se outras condições que
produzem a maior ou menor altitude da obra.

Os detalhes que formam a textura do corpo romanesco podem ser de


mais variada qualidade. Podem ser observações tópicas, triviais, como
as que costumam ser usadas na existência pelo bom burguês. Ou ainda
são notas de plano mais recôndito que só se encontram, quando
buscadas no abismo da vida, em camadas mais profundas. A qualidade
do detalhe decide a que ramo o livro corresponde. O grande
romancista desdenhará sempre o primeiro plano de suas personagens,
mergulhando em cada um deles, retornará premendo no punho
pérolas abissais. Mas por isso mesmo o leitor medíocre não lhe
entenderá.

Nos princípios da evolução do gênero, diferenciavam-se menos os


bons dos maus romances. Como nada estava dito, ambos tinham que
iniciar dizendo o óbvio e primevo. Atualmente, na grande hora de sua
decadência, os bons e os maus romances diferenciam-se muito mais.
É, pois, a ocasião excelente, embora di cilíssima, para conseguir a
obra perfeita. Porque seria um erro, que só a mente leviana pode
cometer, imaginar a maturidade da decadência como desfavorável em
todos os sentidos. Antes ocorre que as obras de máxima qualidade são
criação das decadências, quando a experiência acumulada
progressivamente re nou extremamente os nervos criadores. As
decadências de um gênero, como de uma raça, afetam só o tipo médio
das obras e dos homens.
Esta é uma das razões pelas quais eu, sentindo bastante pessimismo
diante do porvir imediato das artes, como da política universal — não
das ciências, nem da loso a —, creio que o romance seja uma das
poucas lavras que ainda podem render egrégios frutos, talvez mais
estranhos do que todos os de anteriores colheitas. Como produção
genérica correta, como mina explorável, deve-se suspeitar que o
romance esteja terminado. As grandes veias sumárias, abertas com
todo o esforço laborioso, estão esgotadas. Mas cam os lões secretos,
as arriscadas explorações na profundeza, onde, por acaso, jazem os
cristais melhores. Mas isso é tarefa para espíritos de rara seleção.

Ainda falta ao romance a última perfeição, que é quase sempre uma


perfeição da última hora. Nem sua forma ou estrutura, nem seu
material têm gozado de nitivos movimentos. Mas em relação ao
material, encontro o seguinte motivo otimista, de algum vigor.

A matéria do romance é propriamente psicologia imaginária.

Esta se desenvolve paralelamente com suas duas obras irmãs, a


psicologia cientí ca e a intuição psicológica, que usamos na vida. Pois
bem, nos últimos cinqüenta anos, talvez nada progrediu tanto na
Europa quando o saber de almas. Pela primeira vez, existe uma ciência
psicológica, certamente que só iniciada, mas ainda assim desconhecida
das idades anteriores. E junto com ela, uma re nada sensibilidade para
prever o próximo e para anatomizar nossa própria intimidade. É tanta
sabedoria psicológica fascinando o espírito contemporâneo, se bem
que em forma cientí ca, se bem que em forma espontânea, que a ela,
em boa parte, deve-se atribuir o fracasso atual do romance. Autores
que anteriormente pareciam excelentes, na atualidade, parecem pueris,
por seu leitor ser um psicólogo superior ao autor. (Quem sabe se a
desordem política da Europa, a meu juízo, muito mais profunda e
grave do que se manifesta ainda, não tem a mesma causa? Quem sabe
se os Estados de tipo moderno só são possíveis em etapas de grande
torpeza psicológica por parte dos cidadãos?) Outro fenômeno
aparentado é a insatisfação que sentimos ao ler os clássicos da história.
A psicologia empregada por eles nos parece insu ciente, borrada, em
desequilíbrio com nosso apetite, pelo visto mais re nado.49

Como é possível que este progresso psicológico não seja aproveitado


romanesca e historicamente? A humanidade está satisfazendo sempre
seus desejos, quando são estes claros e concretos. Pode-se vaticinar,
sem excessivo risco, que, loso a à parte, as emoções intelectuais mais
poderosas, que nos reserva o futuro próximo, virão da história e do
romance.

Psicologia imaginária
Estas notas sobre o romance demonstram um ar tão resolvido de
jamais acabar, que se faz mister terminá-las de uma maneira violenta.
Um passo a mais e seria fatal. Porque até aqui se está mantendo em
ordem de ampla generalidade, elidindo toda a casuística. E acontece
que em estética, como em moral, os princípios genéricos são
unicamente a quadrícula que se traça em vista da casuística, da análise
mais concreta. Onde esta se inicia, começa o mais sedutor da questão,
mas por vezes projeta-se uma edi cação em uma área sem limites.
Convém, pois, aproveitar o último movimento de cordura e deter-se.

Eu gostaria, no entanto, de acrescentar uma indicação nal ao


sugerido.

Dizia que a matéria é, antes de tudo, psicologia imaginária. Não é


fácil em poucas palavras esclarecer completamente o que isto signi ca.
Costuma-se acreditar que o psicológico obedece exclusivamente a leis
de fato, como as da física experimental, e que, portanto, só se pode
observar e copiar as almas existentes em seus processos reais. Não se
poderia, pois, imaginar um mundo psíquico, inventar espíritos como
se imaginam e inventam corpos geométricos. E, no entanto, o prazer
de ler romances é totalmente contrário a isso.
Quando o romancista desenvolve um processo psicológico, não
pretende que o aceitemos como um fato — quem nos garantiria sua
realidade? —, mas recorre a um poder de evidência que há em nós,
muito parecido ao que possibilita a matemática. E não digamos que
aprovamos o processo descrito, quando coincide com os casos em que
tivemos experiência na vida. Bom seria que o romancista estivesse
atento ao acaso das experiências que este ou aquele leitor recolhe.
Anteriormente, recordávamos que uma das atrações peculiares de
Dostoiévski é o exotismo de suas personagens. Não parece fácil que
um leitor de Sevilha jamais tenha conhecido pessoas com a alma tão
caótica e turbulenta como a dos Karamazov. E, no entanto, por pouco
sensível que seja, o mecanismo psíquico destas almas lhe parece tão
forte, tão evidente como o funcionamento de uma demonstração
geométrica em que se fala de miríades jamais divisadas.

Existe, com efeito, uma evidência a priori em psicologia como em


matemática, e ela permite a construção imaginária em ambas as
ordens. Onde só os fatos conhecem a lei, e não existe uma lei da
imaginação que seja impossível de construir. Seria um puro e ilimitado
capricho onde nada teria razão de ser.

Por desconhecer isso, supõe-se torpemente que a psicologia no


romance é a mesma da realidade e que, portanto, o autor não pode
fazer mais do que copiá-la. A esse tosco pensamento, costuma-se
chamar “realismo”. Longe de minha intenção discutir agora este
enrevesado termo, que se procura usar entre aspas para o tornar
suspeito. Mas ninguém duvidará de sua inaptidão, se notar que não
pode ser aplicado às obras mesmas de onde foi extraído. Seus
personagens são tão distintos, quase sempre, dos que costumamos
encontrar que, ainda que fossem com efeito seres existentes, não
poderiam valer como tais para o leitor. As almas do romance não têm
por que serem como as reais; basta que sejam possíveis. E esta
psicologia de espíritos possíveis, chamada de imaginária, é a única que
importa a este gênero literário. Que à parte disso o romance procure
dar uma interpretação psicológica de tipos e círculos sociais efetivos,
será um elemento a mais da obra, embora nada essencial. (Um dos
pontos que deixo intacto foi mostrar como o romance é o gênero
literário que pode conter maior quantidade de elementos alheios à
arte. Dentro do romance cabe quase tudo: ciência, religião, oratória,
sociologia, juízos estéticos — de modo que todo ele que,
posteriormente, desvirtuado, retido no interior do volume romanesco,
sem vigência executiva e última. Dito de outra forma: no romance
pode existir toda a sociologia que se queira; mas o romance mesmo
não pode ser sociologia. A dose de elementos estranhos que o livro
pode suportar depende em de nitivo do gênio que o autor possua para
dissolvê-los na atmosfera do romance como tal. A questão, como se
pode ver, já pertence à casuística, então a afasto de mim, aterrorizado).

Esta possibilidade da construção de uma fauna espiritual é, por acaso,


o maior meio pelo qual o romance futuro pode ser manejado. Tudo
conduz para isso. O interesse próprio ao mecanismo externo do
enredo está atualmente, por força, reduzido ao mínimo. Tanto melhor
para centrar o romance no interesse superior, que pode emanar da
mecânica interna dos personagens. E na invenção de “ações”, ou ainda
na invenção de almas interessantes, vejo o melhor porvir do gênero
romanesco.

Oferta
Estes são os pensamentos sobre o romance, que uma alusão de Baroja
incitou-me a formular. Repito que não pretendo ensinar os que sabem
disso mais do que eu. É possível que tudo o que disse seja puro erro.
Nada importa se servir de incitação para que alguns jovens escritores,
seriamente preocupados com sua arte, animem-se a explorar as
possibilidades difíceis e subterrâneas que ainda restam ao velho
destino do romance.

Mas duvido que encontrem o rastro de tão secretas e profundas veias,


se antes de se pôr a escrever seu romance não sintam, durante um
longo instante, pavor. Não se pode esperar nada de quem não se
apercebeu da gravidade da hora que atualmente atravessa este gênero.

A      


A Exposição de Artistas Ibéricos, ao se rea rmar heroicamente e
superando qualquer desânimo, retorna, ano após ano, com certa
insistência astronômica, e pode ser de grande importância para a arte
peninsular. A atual me parece bastante pobre de talentos e estilos,
prescindindo dos artistas já maduros que, ao núcleo mais
característico de novos pintores, têm agregado sua obra, conhecida de
antemão. Mas a insu ciência desta primeira colheita não prova senão a
necessidade de repetir, com virtuosa constância, a apresentação de
novas produções. Até agora, a pintura heterodoxa tem existido de
maneira privada e escolar. Os artistas estão sem público e insulados
diante da massa enorme de estilos tradicionais. Agora, agrupados,
podem recobrar maior fé em sua intenção e, logo, confrontar-se uns
com os outros, espantar-se com os tópicos comuns,e a nar a pontaria
do propósito individual. Ao passo que o público poderá ajustar seu
olhar para o “caso” da arte atual e, pouco a pouco, ir-se inteirando da
dramática situação em que se acham as musas.

Pouco a pouco — de imediato é impossível. A situação é tão delicada,


tão paradoxal, que seria injusto exigir das pessoas uma súbita
compreensão. A rigor, é preciso de ni-la de uma fórmula carregada,
sobretudo, de paroxismos. Haveria de dizer, mais ou menos: a arte
atual não existe, e é iniludível partir desta convicção para crer e fruir,
atualmente, da arte autêntica. Esta fórmula, desenvolvida, como dizem
os matemáticos, aclara-se progressivamente, perdendo seu aspecto
insuportável. Quase todas as épocas obtiveram um estilo artístico
adequado a sua sensibilidade, e, portanto, atual, prolongando num e
noutro sentido a arte do passado. Tal situação era duplamente
favorável. Em primeiro lugar, a arte tradicional propunha
inequivocamente o que a geração nova deveria fazer. Tal faceta, que
nos estilos pretéritos não foi enfatizada e nem realizada, oferecia-se à
exploração dos recém-chegados. Trabalhar nela supunha conservar o
fundo íntegro da arte tradicional. Tratava-se de uma evolução, de uma
modi cação a que se submetia o núcleo inalterado da tradição. O novo
e atual era, ao menos como aspiração, perfeitamente claro e ainda
mantinha vivo o contato com as formas do passado. Eram épocas
felizes em que não havia somente um princípio evidente para arte
atual, em que toda a arte do passado, ou grandes proporções dela,
desfrutavam de su ciente atualidade. Assim, faz trinta anos, havia em
Manet uma plenitude de presente, mas às vezes, reprisava Velásquez
proporcionando-lhe certo ar contemporâneo.

Agora a situação é oposta. Se alguém, depois de percorrer as salas da


Exposição de Artistas Ibéricos, dissesse: “Isto não é nada. Aqui não
existe arte”, eu não temeria em responder: “Você tem razão. Isto não é
nada. Isto ainda não é uma arte. Mas você quer me dizer, então, que é
capaz de algo melhor? Se você tivesse vinte e cinco anos e uma dezena
de pincéis na mão, o que faria?”. Se o interlocutor fosse discreto, não
poderia contestar mais do que de dois modos: ou propor a imitação de
algum estilo antigo — o que implica reconhecer a inexistência de um
possível estilo atual —, ou apresentar concretamente um quadro, um
só quadro, que, sendo herdeiro da tradição, insinue um novo tema
pictórico, assinalando algum lugar ainda intacto na topogra a da arte
usada. Enquanto este último não acontecer, será invulnerável à posição
de quem pensa que a tradição artística esgotou todas as possibilidades,
sendo preciso buscar outra forma de arte. Esta exploração é a tarefa
dos jovens artistas. Não têm uma arte; têm só uma inclinação para ela.
Por isso, dizia anteriormente que a melhor arte presente não existe,
pois o que atualmente pretende ser obra de arte, plena e arrematada,
costuma ser, em verdade, a mais antiartística possível: a repetição do
passado.

Haverá gente disposta a reconhecer que não existe uma arte


propriamente contemporânea, mas que argumentará que temos então
a arte do passado, onde podemos satisfazer nossos apetites estéticos.
Eu não poderia, sem inquietação, aceitar esta opinião. Não acho que
possa existir uma arte do passado, quando falta outra do presente,
ligada àquela por um nexo positivo. O que em outras épocas manteve
vivo o gosto pela pintura antiga foi precisamente o novo, que, derivado
dela, dava-lhe um novo sentido, como no caso Manet-Velásquez. Quer
dizer, a arte do passado é arte, em pleno sentido do vocábulo, na
medida em que ainda é presente, que ainda fecunda e inova. Quando
se converte efetivamente em mero passado, perde sua e cácia
estritamente estética, sugerindo-nos emoções de substância
arqueológica. Sem dúvida, estas substãncias são motivos de grandes
fruições, mas não se podem confundir nem substituir o próprio prazer
estético. A arte do passado não é arte; foi arte.

Logo, a ausência de entusiasmo pela pintura tradicional,


característica dos jovens de nosso tempo, não provém de caprichoso
desprezo. Como não há, atualmente, uma arte herdeira da tradição,
não verte das veias do presente sangue que vivi que o passado,
trazendo-o até nós. Remanesce este, pois, reduzido a si mesmo,
exangue, morto, ndo. Velásquez é uma maravilha arqueológica.
Duvido muito que quem se ponha a analisar seus próprios estados
espirituais, sem confundir uma coisa com outra, deixe de se admirar
com a diferença entre seu entusiasmo — tão justi cado — por
Velásquez e o entusiasmo rigorosamente estético. Cleópatra é uma
gura atraente, sedutora, que emerge da mais vaga distância, mas
quem confundirá seu amor por Cleópatra com o que por acaso sinta
por qualquer mulher atual? Nossa relação é espectral; portanto, nada
nela é efetivo: nem o amor nem o ódio, nem o prazer nem a dor.

Compreendo muito bem que a obra dos jovens pintores não interessa
ao grande público, e esta Exposição não deve dirigir-se a ele, senão
exclusivamente às pessoas às quais a arte é um problema vivo, e não
uma solução; um desporto essencial, e não um passivo regozijo. Só elas
podem interessar-se pelo que é, antes de arte, um movimento para ela,
um rude treino, um exercício de laboratório, um ensaio de o cina.
Não acho que os artistas atuais acreditem que sua obra seja outra coisa.
Se alguém pensa que o cubismo é para nossa época o que fora para a
sua o impressionismo, Velásquez, Rembrandt, o Renascimento, etc.,
etc., comete, a meu ver, um grave erro. O cubismo é só um ensaio de
possibilidades pictóricas de uma época desprovida de uma arte plena.
Por isso, é tão característico do tempo que se produzam mais teorias e
programas do que obras.

Só que fazer isso — teorias, programas e experimentos cubistas ou de


outra índole — é fazer mais do que atualmente se faz. E de todas as
atitudes que se toma, a mais profunda não recomenda docilidade à
ordem do tempo. E outra: crer que o homem pode fazer o que quer em
qualquer idade é o que me parece frívolo e grande sintoma de
puerilidade. As crianças acreditam que podem escolher entre
possibilidades in nitas; presumem, sobretudo, que podem eleger o
melhor e sonham que são sultões, bispos, imperadores. Assim,
atualmente não faltam seres pueris que “querem ser clássicos”, nada
menos. Com isso, não sei se desejam imitar algum estilo antigo, o que
me pareceria demasiado pouco, ou, o que é mais provável, ser clássicos
à posteridade, e isto me pareceria demasiado excessivo. “Querer” ser
clássico é algo assim como partir para a guerra dos trinta anos.

Ambas são poses que fazem os a cionados e só trazem incômodo,


porque os fatos não se sujeitam a elas. Descon o de que carão numa
posição incômoda aqueles que não começarem a reconhecer o
dramatismo da situação atual, que consiste em não existir uma arte
contemporânea e em ter-se tornado histórica a grande arte do passado.

Acontece o mesmo na política. As instituições tradicionais perderam


vigência e não suscitam respeito e entusiasmo, sem que, por outro
lado, se esbocem outras que visem a suplantar as sobreviventes.

Isto é, sim, lamentável, penoso, entristecedor — tudo o que se queira;


mas traz uma conveniência: que é a realidade. E isto — de nir o que é
— constitui a única missão que se pode exigir do escritor. As demais
são só serão louváveis e importarão se se cumprir a primeira.
Ainda assim, se dirá que o passado artístico não passa, que a arte é
eterna... Sim, isso se dirá, mas...

II
Fala-se amiúde da eternidade da obra de arte. Se com isso se quer
dizer que criar e fruir inclui a aspiração a que seu valor seja eterno,
não há como negar. Mas o fato é que a obra de arte envelhece e
apodrece antes como valor estético do que como realidade material.
Acontece o mesmo com os amores. Todo o amor jura num certo
momento sua própria eternidade. Mas esse momento, com sua
eternidade aspirada, transcorre; vemo-lo cair na torrente do tempo,
agitar suas mãos de náufrago, afogar-se no passado. Porque este é o
passado: um naufrágio, uma submersão nas profundezas. Os chineses
chamam a morte de “correr ao rio”. O presente é um feixe sem
espessura alguma. A essência é o passado feito com inumeráveis
presentes, uns sobre os outros, comprimidos. Delicadamente, os
gregos chamavam a morte de “ir com os demais”.

Se uma obra de arte, um quadro, por exemplo, consistisse só no que a


tela apresenta, é possível que chegasse a ser eterna, ainda que não
assegurasse perpetuação material. Mas aí está: o quadro não termina
em seu marco. E mais ainda: o organismo completo de um quadro só
tem na tela uma mínima parte. E poderíamos dizer coisa análoga da
poesia.

De resto, não se compreende bem como podem existir porções


essenciais de um quadro fora dele. E, no entanto, é assim. Todo quadro
é pintado partindo de uma série de convenções e pressupostos que já
são conhecidos. O pintor não transmite à tela tudo o que, em seu
interior, contribuiu para sua produção. Pelo contrário, elimina dele os
dados mais fundamentais, que são as idéias, preferências, convenções
estéticas e cósmicas em que o individual daquele quadro se
fundamenta genericamente. Com o pincel, faz constar precisamente o
que não é “conhecido” para seus contemporâneos. O restante é
suprimido ou, pelo menos, apontado sem insistência.

Do mesmo modo, quando falamos com alguém, não enunciamos


todos os pressupostos elementares, sem o que careceria de sentido o
que dizemos. Expressamos só o relativamente novo, o diferencial,
presumindo que o interlocutor preencherá o resto automaticamente.

Pois bem, essa convenção, esse sistema de pressupostos vigentes em


cada época, muda com o tempo. Mesmo nas três gerações que
convivem em um dado contexto histórico, diverge bastante. O velho
começa a não entender o jovem, e vice-versa. O que é mais curioso é
que o que é inteligível para alguns é casualmente o mais evidente para
outros. Um velho liberal não concebe que a gente jovem possa viver
sem o liberalismo, e o espanta, sobretudo, que não se sinta forçada a
racionalizar seu não-liberalismo. Mas, às vezes, o jovem não
compreende o entusiasmo extravagante do velho pelo princípio liberal,
que é o que lhe parece algo simpático e também desejável, mas incapaz
de levantar fervor algum, como acontece com a tábua de Pitágoras ou
a vacina. A rigor, não há razões para ser liberal ou não liberal. Nada de
profundo e evidente nasce ou vive de razões. Raciocina-se sobre o
duvidoso, sobre o provável, sobre o que não cremos totalmente.

Quanto mais profundo e elemental é um ingrediente de nossa


convicção, menor a nossa preocupação com ele, e, a rigor, nem sequer
o percebemos. Vamos vivendo com ele; é a base de todas as nossas
ações e idéias. Do mesmo modo, permanece fora de nós, como de nós
está fora, o palmo de terra que pisamos, o único que não podemos ver
e que o pintor de paisagem não pode transpor para a tela.

A existência deste solo e subsolo espirituais sob a obra de arte se nos


revela precisamente quando camos perplexos diante de um quadro
por não o entendermos. Faz trinta anos que isso acontece com as telas
de El Greco. Erguiam-se como uma costa de penhascos verticais, onde
não é possível desembarcar, entre os quais o espectador parecia mediar
um abismo e, no entanto, o quadro se abria ante os olhos de lado a
lado como outro qualquer. Então, se percebia que, mais além dele,
tácitos, sem expressão, subterrâneos, existiam os pressupostos a partir
dos quais El Greco pintava.

Mas isso, que em El Greco adquiria um caráter extremo — a obra de


El Greco tem, com efeito, uma dimensão teratológica50 —, acontece
com toda a obra do passado. E só quem não tem sensibilidade
re nada, só aquele que não se apercebe das coisas, acredita que se
apercebe, sem esforço especial, de uma criação antiga. A árdua tarefa
do historiador, do lólogo, consiste justamente em reconstituir o
sistema latente de pressupostos e convicções de que emanaram as
obras de outros tempos.

Não é, pois, uma questão de gosto a que nos leva a separar toda a arte
do passado da arte em sentido do presente. São duas coisas e duas
emoções que à primeira vista parecem idênticas, e que, no entanto, à
luz de uma sumária análise, são completamente distintas para todo
aquele que não ache que todos os gatos são pardos. Na arte antiga a
complacência é indireta, senão irônica; quer dizer que intercalamos,
entre nós e o velho quadro, a vida da época em que fora produzido e o
seu homem contemporâneo. Transladamos nossos pressupostos aos
alheios, ngindo para nós uma personalidade estranha, através da qual
desfrutamos da antiga beleza. Esta dupla personalidade é característica
de todo o estado irônico do espírito. E se apurarmos um pouco mais a
análise dessa complacência arqueológica, encontraremos que não é a
obra mesma que desfrutamos, mas a vida em que fora criada, da qual é
sintoma exemplar, ou, para ser mais exato, a obra envolta em sua
atmosfera vital. Isso é mais claro quando se trata de um quadro
primitivo. O nome mesmo de “primitivo” indica a ternura irônica que
sentimos diante da altura do autor, menos complexa que a nossa.
Causa-nos deleite saborear aquele modo de existir mais simples, mais
fácil de abarcar com um olhar que nossa vida, tão vasta, tão indômita,
que nos inunda e arrasta, que nos domina em vez de a dominarmos. A
situação psíquica é parecida com a que surge quando contemplamos
uma criança. Tampouco a criança é um ser atual: a criança é o futuro.
E, por isso, não temos um contato direto com ela, senão,
automaticamente, fazemo-nos um pouco crianças, até o ponto —
alguma vez teremos percebido isso — de que tendemos, ridícula, mas
indeliberadamente, a imitar sua linguagem e seu balbucio, chegando a
a autar a voz em virtude de inconsciente mimetismo.

Seria insu ciente opor ao que foi dito a observação de que na antiga
pintura existem valores plásticos, alheios à temporalidade, suscetíveis
de serem desfrutados como qualidades atuais. É curioso o empenho de
alguns artistas e a cionados em reservar alguma porção da obra
pictórica para a visão pura, libertando-a de sua complicação com o
espírito, com o que chamam de literatura ou loso a! E, com efeito,
literatura ou loso a são coisas muito diferentes das artes plásticas,
embora as três sejam irremissivelmente espírito e se encontrem
submersas nas complicações deste. É, pois, vã essa intenção de fazer-se
mais singulares e manejáveis as coisas, na medida da própria
simplicidade. Não há visão pura; não há valores plásticos absolutos.
Todos eles pertencem a algum estilo; são relativos a ele, e um estilo é o
fruto de um sistema de convenções vivas. Porém, em todo o caso, esses
valores de pressuposta vigência atual são parcelas mínimas da obra
antiga que violentamente desencalhamos do resto, para destacar
somente estas, relegando o demais. Seria interessante que com alguma
sinceridade, se subtraísse o que de um desses quadros famosos parece
beleza intacta e sobrevivente. A escassez do recolhido contrastaria tão
cruelmente com a fama da obra, que seria o melhor modo de me dar
razão.

Se vale a pena nascer em nossa época, tão áspera e insegura, é


precisamente porque se inicia na Europa a aspiração de viver sem
frases, melhor dizendo, de não viver de frases. A eternidade da arte ou
a lista dos cem melhores livros, as cem melhores pinturas, etc., são
coisas para o bom velho tempo, quando os burgueses achavam que era
seu dever se ocupar de arte e de letras. Agora que se vê até que ponto a
arte não é coisa “séria”, senão, melhor, um no jogo livre de patetismo
e solenidade, a que só devem dedicar-se os verdadeiramente
a cionados, os que se comprazem em suas peripécias e di culdades
supér uas, submetendo-se ao pulcro cumprimento de suas regras, a
lengalenga de que a arte é eterna não pode satisfazer nem esclarecer
nada. A eternidade da arte não é uma sentença rme que se deve
acolher; é, simplesmente, um sutilíssimo problema. Deixemos que os
sacerdotes, não muito seguros da existência de seus deuses, os
envolvam na cáliga pavorosa dos grandes epítetos patéticos. A arte não
necessita disso, senão do meio-dia, tempo claro, conversação
transparente, precisão e um pouco de bom humor.

Deve-se conjugar o vocábulo “arte”. No presente signi ca uma coisa, e


no pretérito, outra muito diferente. Não se trata de negar nenhuma das
graças à arte. Elas estão integralmente conservadas, embora se
localizem, como esta, em uma dimensão espectral, sem contato
imediato com nossa vida, entre parênteses e virtualizada. E se isso
então parece uma perda que sofremos, é porque não percebemos o
ganho gigantesco que, ao mesmo tempo, obtemos. O mesmo gesto
com que alijamos de nós o passado fá-lo renascer justamente como
passado. Ao contrário de uma só dimensão que faz resvalar a vida — o
presente —, temos agora duas, pulcramente diferenciadas, não só na
idéia, mas no sentir. O prazer humano amplia-se gigantescamente
quando a sensibilidade histórica alcança a maturidade. Enquanto se
acreditava que todos éramos os antigos e os atuais, a paisagem era de
grande monotonia. Agora a existência ganha uma imensa variedade de
planos; faz-se profunda, de fundas perspectivas, e cada tempo é uma
ação nova. A condição para isso será que saibamos olhar o distante, à
distância, sem miopia, sem contaminar o presente com o pretérito. A
voluptuosidade puramente estética, que só pode funcionar em termos
de atualidade, agrega-se hoje à formidável voluptuosidade histórica
que faz sua câmara nupcial, em todas as curvas da cronologia. Esta é a
verdadeira volupté nouvelle, que o pobre Pierre Louÿs51 buscava em
sua mocidade.

Não há, portanto, que se enfadar com tudo o que digo, senão para
melhor dilatar um pouco as cabeças, conformando-as com a
amplitude das questões. É ilusório crer que a situação artística atual —
ou de qualquer época — dependa só de fatores estéticos. Nos amores e
ódios da arte, intervém todo o resto das condições espirituais do
tempo. Assim, esse nosso novo distanciamento do passado colabora
para o advento pleno do sentido histórico, germinado em zonas da
alma alheias à arte.

Olhamos só a parte da montanha que se eleva sobre o nível do mar, e


esquecemos que há muito mais terra acumulada embaixo dela. Assim,
o quadro apresenta só uma porção de si mesmo, que emerge sobre o
nível das convenções de sua época. Apresenta só uma feição: o torso
ca submergido na correnteza temporal,52 que o arrasta
vertiginosamente ao não-ser.

Não é, pois, questão de gostos. Quem não sente, desde logo,


Velásquez como um anacronismo; quem não se compraz nele
precisamente por ser um anacronismo é incapaz de sacramentos
estéticos. Com isso não pretendo dizer que a distância espiritual entre
nós e os velhos artistas seja sempre a mesma. Velásquez é, acaso, um
dos pintores menos arqueológicos. Mas se fôssemos inquirir as razões
disso, talvez concluíssemos que procedem de seus defeitos e não de
suas virtudes.

O prazer que nos origina a arte antiga é mais uma fruição vital do
que estética, ao passo que ante a obra contemporânea sentimos mais o
estético do que o vital.

Esta grave dissociação de pretérito e presente é a realidade geral da


nossa época e a suspeita, mais ou menos confusa, que engendra o
açolamento peculiar da vida nesses anos. Sentimos que, muito em
breve, caremos sós sobre a terra dos homens atuais, que os mortos
não morrem de brincadeira, mas completamente, já não podendo mais
nos ajudar. O resto do espírito tradicional evapora. Os modelos, as
normas, as pautas não nos servem. Temos que resolver nossos
problemas sem colaboração ativa do passado, em pleno atualismo —
sejam de arte, de ciência ou de política.

O europeu está sozinho, sem mortos viventes a seu bel-prazer; como


Pedro Schlemihl53 a perder sua sombra. É o que acontece sempre que
chega o meio-dia.

A   

Uma abreviatura
S enhoras, senhores: O século, a cujo diretor, Sr. Pereira da Rosa, e ao
Sr. Eduardo Schwalbach, nosso presidente, agradeço a generosa
amabilidade de sua saudação — O século quer que se inaugure esta
série de conferências dedicadas à história do teatro com uma em que
pretendo aclarar o que é o teatro. Mas ao me encontrar falando pela
primeira vez na casa de O século, brota-me na alma um veemente
apetite de falar sobre outro tema muito diferente e também mais
suculento. Qual? Se eu pudesse falar hoje sobre ele, começaria a minha
conferência assim: sabem os senhores de O século o que signi ca o
século, o ciclo? Não é que pedantemente me converta num magister
examinador, pondo em avaliação os senhores de O século sobre o
título de seu periódico. O tom da pergunta que dou em minhas
palavras não pretende mais que excitar sua curiosidade porque, com
efeito, trata-se de uma das idéias mais estupendas, de uma das idéias
mais profundas sobre sua própria condição que o homem já teve, mas
que hoje é insu cientemente conhecida. Porém, repito, não posso hoje
falar deste tema, porque hoje não sou livre, porque hoje sou um
escravo da galera fretada por este querido e terrível Sr. Acúrio Pereira
e não tenho mais remédio que empalmar o remo e vogar a proa à rota
por ele marcada. Dócil, pois, a meu compromisso começo, sem mais, a
cumpri-lo.

Que coisa é o teatro? A coisa teatro como a coisa homem são muitas,
inumeráveis coisas diferentes entre si, que nascem e morrem, que
variam, que se transformam a ponto de não se parecer, à primeira
vista, em nada, uma forma com a outra. Homens eram aquelas
criaturas reais que serviram de modelo aos anãos de Velásquez54 e
homem o homem que era Alexandre Magno, o tal marmelo55 de toda a
história. Por isso mesmo, porque uma coisa são sempre muitas e
diversas coisas, nos interessa averiguar se através e em toda essa
variedade de formas não subsiste, mais ou menos latente, uma
estrutura que nos permita identi car como “homem”, inumeráveis e
diversos indivíduos, e por “teatro”, muitas e diversas manifestações.
Essa estrutura que, embaixo de suas modi cações concretas e visíveis,
permanece idêntica, é o ser da coisa. Portanto, o ser de uma coisa está
sempre dentro da coisa concreta e singular; está coberta por esta,
oculto, latente. Daí que necessitemos des-ocultá-lo, des-cobri-lo,
fazendo patente o latente. Em grego estar coberto, oculto, diz-se
latheîn, com a mesma raiz de nossas palavras latente e latejar. Dizemos
que o coração lateja, não por pulsar e se mover, mas por ser uma
víscera, porque é o oculto ou latente dentro do corpo. Quando
conseguimos retirar claramente à luz o ser oculto da coisa, dizemos
que averiguamos a verdade. Pelo visto, averiguar signi ca certi car,
tornar manifesto algo oculto, e o vocábulo com que os gregos diziam
“verdade” — alétheia — signi ca o mesmo: a equivale a des, portanto,
alétheia é des-ocultar, des-cobrir, des-latentizar. Perguntarmos pelo ser
do teatro equivale, por conseguinte, a perguntar por sua verdade. A
noção que o ser nos oferece, a verdade de uma coisa, é sua Idéia.
Pretendemos fazer uma Idéia do teatro, a idéia do teatro. Como a
brevidade do tempo com que conto é extrema, obrigo-me a reduzir ao
extremo a exposição da Idéia, a oferecer a vocês só uma abreviatura da
idéia do teatro. E aqui se esclarece o título desta conferência: idéia do
teatro — uma abreviatura. Estamos de acordo? Parece-lhes bom que
tratemos deste tema um tanto, nada mais que um tanto? Nada mais
que um tanto, mas... a sério, completamente a sério. Vamos, pois, a ele.

Suponham que a única vez que viram e falaram com um homem


coincidiu com uma hora em que este homem sofria uma dor
estomacal ou teve um ataque de nervos ou quarenta graus de febre. Se
alguém depois lhes perguntasse, qual opinião teriam sobre aquele
homem, considerariam que têm o direito de de nir seu caráter e
dotes? Evidentemente, não. Vocês conheciam aquele homem, quando
não era propriamente aquele homem, mas só a ruína daquele homem.
É condição de toda a realidade passar por esses dois aspectos de si
mesmo: o que é quando está em plenitude e perfeição e o que é
quando é ruína. Para usar um esplêndido termo do esporte atual, que
entusiasmaria Platão — claro, como se dito por ele! —, para usar, digo,
um termo esportivo, para o ser em plenitude e perfeição chamaremos
de “ser ou estar em forma”, opondo assim o “ser em forma” ao “ser em
ruína”.

Pois, assim como se poderia de nir um homem segundo sua


aparência quando foi visto enfermo, o teatro e toda a realidade devem
ser de nidos segundo seu “ser em forma” e não em seus modos
de cientes e arruinados. Aquele explica e esclarece estes, mas não o
contrário. Quem não viu mais do que más corridas de touros — e
quase todas o são — não sabe o que é uma corrida de touros; quem
não teve a sorte de encontrar em sua vida uma mulher genialmente
feminina, não sabe o que é uma mulher.

Ruína! — de ruere —, o que veio abaixo, o caído, cadente ou de-


cadente. É lamentável, senhores, que tudo quanto existe no Universo
não exista em plenitude e em perfeição, senão que, ao contrário, até
para a graça e a virtude mais perfeitas chega inexoravelmente a hora
de sua ruína. Não há nada mais melancólico, e por isso os românticos,
já desde Poussin e Claude Lourain,56 que foram os proto-românticos,
procuravam as ruínas, estabelecendo-se entre elas com delícia a
entregar seus olhos à voluptuosidade do pranto. Porque os românticos
inebriam-se de melancolia e bebem com deleite o Porto ou o Madeira57
de suas lágrimas. Gostam de ter à vista essas paisagens, onde se ergue,
como no último esforço, o arco roto que assinala ao céu a lasca de suas
aduelas; onde os relvados abraçam e afogam pobres silhares decaídos,
onde se enxergam torres moribundas, colunas decapitadas, aquedutos
desvertebrados. Isso é o que já no século  pintaram Poussin e
Claude Lourain. Os românticos descobriram a graça das ruínas.
Emerson58 dizia que como cada planta tem seu parasita, toda a coisa
no mundo tem seu amante e seu poeta. Há, com efeito, o enamorado
das ruínas e ainda bem que existam. E também com razão. Porque o
arruinado, como se diz, é um dos dois modos de ser da realidade.
Aquele homem, há dez anos tão poderoso, com seus milhões de
contos, hoje o vemos arruinado. Quando jovens, fomos para aquela
cidade e descobrimos uma mulher maravilhosa que parecia feita de
pura luz e pura vibração, com suas bochechas de pele tenra e polida,
plenas de re exos como uma jóia de cerâmica. Ao cabo de muitos
anos, voltamos a passar por aquela cidade e perguntamos por aquela
mulher e o amigo nos responde: “Cacau? Se você a visse! Está só a
casca!”. O que não quer dizer que essa arruinada Cacau59 não tenha
ainda, talvez, sabor, só que um outro sabor. A mulher que já não é
mais jovem é a que possui a alma mais saborosa. Recordo ter escrito
em minha primeira juventude — re ro-me, portanto, a remotas
cronologias —, o parágrafo deve estar num de meus primeiros livros,
que preferia na mulher essa hora de vindima outonal, quando a uva,
precisamente por terem passado por ela todos os sóis do estio, tem sua
sublime doçura. E recordo também a impressão que me acometeu,
sendo eu adolescente, ao ver a famosa atriz Eleonora Duse,60 uma
mulher alta, delgada, que já não era jovem e nunca foi bela, mas em
cujo rosto achava-se sempre presente uma alma estremecida —
estremecida e dolorida —, de modo que em seus olhos e em seus
lábios tremulava sempre um gesto de ave ferida com uma bala na asa,
um gesto que só se descreveria, dizendo que era como uma cicatriz de
cem feridas causadas por tempo e pesares. E aquela mulher era
encantadora! Rapazes do tempo, saíamos do teatro com o coração
contraído, e sobre ele um como breve ardor e uma como fátua chama,
que é o fogo de santelmo do amor adolescente.

Todo um lado da realidade, senhores, e muito especialmente todo um


lado de coisas humanas, consiste em ser ruína. No início de suas
geniais Lições sobre loso a da história, Hegel nos diz:
Quando voltamos o olhar para trás e contemplamos a história do
passado humano, primeiramente vemos só ruínas. A história muda e
essa mudança tem, de súbito, um aspecto negativo que nos produz
pena. O que nele nos deprime é ver como a mais rica criação, a vida
mais bela, encontra na história sempre seu ocaso. A história é uma
viagem entre as ruínas da igreja. Ela nos arrebata àquelas coisas e
seres os mais nobres, os mais belos pelos quais nos interessamos: as
paixões e os sofrimentos os destroem: eram transitórios. Tudo parece
ser transitório, nada permanece. Que viajante não sentiu esta
melancolia? Quem ante as ruínas de Cartago, de Palmira, de
Persépolis, de Roma não medita sobre a caducidade dos impérios e
dos homens, quem não se acabrunha sobre destino tal de o que foi
um dia a mais intensa e plena vida?

Assim diz Hegel, que, como podem ver, além de romântico, não era
nada mal escritor.

Mas a mudança tem outro aspecto, olhado ao contrário. As ruínas são


condição para que algo acabe e algo nasça. Se os edifícios não caíssem
em ruínas, se se conservassem imperecíveis, não caria sobre a face do
planeta, a essa hora, espaço para vivermos, para construirmos. Não
podemos, pois, nos contentar em chorar sobre as ruínas; estas são
necessárias. O homem, que é o grande construtor, é também o grande
destruidor, e seu destino seria impossível se não fosse também um
funesto fabricante de ruínas.

É certo que, de quando em quando, sejamos românticos e nos


dediquemos ao esporte sentimental de chorar sobre as ruínas das
coisas. Mas se as ruínas das coisas podem nos servir como gás
lacrimogênio, para o que não podem nos servir — e isso é o que dizia
— é para de nir o ser dessas coisas. Para isso necessitamos, repito,
contemplar seu “ser em forma”.

A advertência, senhores, importa muito, porque atualmente, no


Ocidente ao menos, quase nada existe que não seja ruína e o que
temos à vista em nossa hora negativa, nesta hora de dor de estômago,
pode nos desorientar sobre o que as coisas são. Quase tudo é ruína no
Ocidente atualmente, embora, bem entendido, não pela guerra. A
ruína preexistia; já estava aí. As últimas guerras ocorreram,
precisamente, porque o Ocidente já estava arruinado, como pudemos
diagnosticar detalhadamente há um quarto de século.61 Está em ruínas
quase tudo, desde as instituições políticas até o teatro, passando por
todos os demais gêneros literários e todas as demais artes. Está em
ruína a pintura — seus escombros são o cubismo —; pois os quadros
de Picasso têm um aspecto de casa em declínio ou de rincão de
Rastro.62 Está em ruína a música — o Stravinsky dos últimos anos é
um exemplo de detritus musical. Está em ruína a economia — a das
nações e a teórica. En m, está em ruína, em grave ruína, a
feminilidade. Ah, claro que está! E em grau superlativo! O que
acontece é que o tema de que me comprometi a tratar hoje é outro
muito diverso, do contrário, conversaríamos por horas.

Portanto, tratando então do teatro, procuremos tar o fundo e a


superfície das grandes épocas: o século v de Atenas, com suas mil
tragédias e mil comédias, com Ésquilo, Sófocles e Aristófanes; o m do
século  e começo do , com o teatro inglês e o espanhol, com
Ben Jonson e Shakespeare, com Lope de Vega e Calderón, e logo, em
seguida, com a tragédia francesa, com Corneille, com Racine e a
comédia de Marivaux; com o teatro alemão de Goethe e Schiller, com
o teatro veneziano de Goldoni e a Commedia dell’Arte napolitana; por
m, tenhamos em vista todo o século , que foi um dos grandes
séculos teatrais.

Dissemos que necessitamos manter à vista, como um fundo, tudo


isto, porque isso é o teatro em forma; mas, além disso, por ser
precisamente sobre o que não vamos falar. Tudo isso são as formas
particulares concretas e diversas do melhor teatro; melhor não porque
eu, por exemplo, me sinta comprometido a estimar muito tudo isso,
porém, qualquer que seja a nossa estima pessoal, tudo isso é, na
história humana, a realidade mais e caz do teatro. Agora, desse fundo
ilustre e objetivamente exempli cado, não nos esqueçamos das outras
formas menos ilustres do teatro, menos consagradas, das quais, talvez,
o teatro renasça amanhã, sobre suas presentes ruínas. Mas, repito, falar
disso tudo é o tema dos conferencistas que virão depois, para contar a
vocês a história do teatro.

Uma última advertência preliminar: quando dizemos que devemos


ter em vista o teatro de Ésquilo, de Shakespeare, de Calderón etc., não
pensem, nem por um momento, que me re ro apenas, exclusivamente,
à obra poética de Ésquilo, de Shakespeare, de Calderón, ou às obras
dramáticas que esses poetas compuseram. Só faltaria isso! Seria uma
injustiça que, como ordinariamente acontece com a injustiça, serviria
para que nela se escondesse uma estultícia. A tolice, para se fazer
respeitar, inventou a injustiça. Porque ser injusto não é sequer ser algo.
Não foram aqueles gênios poéticos, que sozinhos e por si — ao menos
enquanto foram exclusivamente poetas — estabeleceram ou
mantiveram em forma o teatro. Isso seria uma torpe abstração. Pelo
teatro de Ésquilo, de Shakespeare, de Calderón entenda-se, ademais e
inseparavelmente, junto com suas obras poéticas, os atores que as
representam, o cenário em que foram encenados e o público que as
presenciou. Não estou disposto a renunciar a nada disso por que
venho aqui requisitado pelo Sr. Acúrcio Pereira, para esclarecer a vocês
o que é o teatro e, se materialmente nada me impede, não saio daqui
sem o ter conseguido. Pois bem, para tal nalidade necessito de todos
esses ingredientes.

Teatro! Não há talvez uma só palavra na língua falada que não tenha
várias signi cados: quase sempre tem muitos. Entre essas signi cações
múltiplas, os lingüistas costumam distinguir uma que chamam de
signi cação ou sentido forte da palavra. Este sentido forte é sempre o
mais preciso, o mais concreto, diríamos o mais tangível. Vamos falar
do teatro. Pois bem, partamos do sentido forte desta palavra, segundo
o qual o teatro é, antes de tudo e nada mais nada menos, que um
edifício — um edifício de estrutura determinada, por exemplo, seu
belíssimo teatro de São Carlos, que o bairro Alto de Lisboa parece
levar debaixo do braço. No entanto, a função atual desse teatro, onde
se dão concertos e são cantadas óperas, confunde a idéia pura do
teatro. O grego tinha para essa nalidade, um edifício com outro
nome: ele o chamava odeion, odeon, auditório.

Entretanto, se eu estivesse falando agora aos senhores a partir do


cenário do teatro de Dona Maria, poderia, sem reservas, apenas
levantando o braço, e apontando com o meu indicador, começar uma
resposta à pergunta: O que é o teatro? O que equivaleria a dizer:
“Senhores, isto que estão vendo, é o teatro”. Mas como não estamos ali,
pedi ao Sr. Segurado, que zesse esse esquema do interior desse teatro,
para que eu pudesse dizer a vocês, sem qualquer reserva além do fato
de se tratar de um esquema: “Aí está o que é o teatro”. Por uma feliz e
involuntária coincidência, hoje celebra-se o centenário desse teatro,
que é o mais tradicional e ilustre de Lisboa.

Não ignoremos desdenhosamente este sentido, o mais humilde da


palavra, o mais usado no falar das gentes e o mais efetivo na vida de
cada um de nós. Se ignorássemos esta primeira signi cação de teatro
— repito, a mais simples, a mais trivial, a que está mais a mão, a saber:
que o teatro é um edifício —, correríamos o risco de saltar toda a
realidade teatral remanescente, a mais sublime, a mais profunda, a
mais substantiva.

Partindo, pois, desse esquema arquitetônico do teatro de Dona Maria,


vamos vendo marchar nosso pensamento no rigoroso itinerário
dialético. “Pensar dialeticamente”, quer dizer que cada passo mental
que damos, nos obriga a dar outro novo passo; não um qualquer, não
por capricho, senão outro passo determinando, porque o que vimos
em primeiro lugar na realidade que nos ocupa, — e agora é a realidade
“teatro” — nos revela, queiramos ou não, outro novo lado ou
componente dessa realidade que antes não havíamos percebido. É,
pois, a própria “coisa” teatro que vai guiando nossos passos mentais,
que vai sendo nosso Lazarilho.63 Aproveitando este tema, que não
parece losó co, quero dar um exemplo do mais rigoroso método
dialético — e às vezes fenomenológico — aos jovens intelectuais de
Lisboa, se é que por acaso estejam alguns aqui e não todos na
Brasileira.64
O teatro é um edifício. Um edifício é um espaço apartado, isto é,
separado do resto do espaço que está fora. A missão da arquitetura é
construir, no grande espaço disponível, uma “internalização”. Ao
delimitar um espaço, se dá a este uma forma interior, e esta forma
espacial interior, que informa, que organiza os materiais do edifício, é
uma nalidade. Portanto, na forma interior do edifício, descobrimos
qual é, em cada caso, sua nalidade. Por isso, a forma interior de uma
catedral é diferente da forma interior de uma estação ferroviária e
ambas, da forma interior de uma residência. Em cada caso, os
componentes da forma são assim e não de outro modo, porque servem
a essa determinada nalidade. São meios para isto ou aquilo. Os
elementos da forma espacial signi cam, pois, instrumentos, órgãos
feitos para funcionar em vista daquele m, e na forma do edifício está
a sua função. Como diziam os antigos biólogos, a função cria o órgão.
Quereriam dizer que também o explica. E vice-versa, a idéia do
edifício, que, portanto, os construtores, o Estado ou particulares,
juntos com o arquiteto, tiveram, atua como uma alma, sobre os
materiais inertes e amorfos — pedra, cimento, ferro — e faz que estes
sejam organizados em determinada gura arquitetônica. Na idéia do
teatro — edifício — você tem um bom exemplo do que Aristóteles
chamava de uma alma ou entelequia.

Pois bem, basta contemplar um instante este esquema do teatro de


Dona Maria para que salte à vista, como o mais característico de sua
forma interior, que o espaço separado, a “internalização” que é um
teatro, está, por sua vez, dividida em dois espaços: a sala, onde ca o
público, e o cenário, onde cam os atores. O espaço teatral é, pois, uma
dualidade — é um corpo orgânico composto de dois órgãos que
funcionam um em relação com o outro: a sala e o cenário.

A sala está repleta de assentos — as poltronas e os balcões. Isso indica


que o espaço “sala” está disposto para que alguns seres humanos — os
que integram o público — estejam sentados e, portanto, sem fazer
nada mais do que ver. Ao contrário, o cenário é um espaço vazio,
elevado a um nível mais alto do que a sala, para que nele se
movimentem outros seres humanos que não estão quietos como o
público, mas ativos, tão ativos que por isso se chamam atores. Mas o
curioso é que tudo o que os atores fazem em cena, o fazem diante do
público e, quando o público sai, eles saem também — quer dizer que
tudo o que é feito, é feito para que seja visto pelo público. Com o qual
temos um novo componente do teatro. À primeira dualidade, que a
simples forma espacial do edifício revela — sala e cenário —, agrega-se
agora outra dualidade que não é espacial, senão humana: na sala está o
público; em cena, os atores.

A coisa começa a se complicar um pouco e saborosamente, quando,


como acabo de dizer, notamos que esses homens e mulheres que se
movimentam e falam no cenário, não são quaisquer, mas são homens e
mulheres a que chamamos atores e atrizes, isto é, que se caracterizam
por uma atividade especialmente intensa. Ao passo que os homens e
mulheres de que o público se compõe, enquanto são o público, se
caracterizam por uma especialíssima passividade. Com efeito, em
comparação com o que fazemos o resto do dia, quando estamos no
teatro e nos convertemos em público, não fazemos nada ou quase —
deixamos que os atores nos façam — por exemplo, que nos façam
chorar, que nos façam rir. Ao que parece, o teatro consiste em uma
combinação de hiperativos e hiperpassivos. Como público, somos,
hiperpassivos porque a única coisa que fazemos é uma das menores
tarefas que se pode imaginar: ver e, no momento, mais nada. Claro que
também ouvimos, mas, como advertiremos em seguida, o que
ouvimos é ouvido através do que vemos. Ver, é, pois, nossa menor e
mais primária atividade no teatro. Assim, às duas dualidades
anteriores — a espacial da sala e o cenário, a humana, de público e
atores — temos que acrescentar uma terceira: o público está na sala
para ver e os atores em cena para serem vistos. Com esta terceira
dualidade chegamos a algo puramente funcional: o ver e o ser visto.
Agora podemos dar uma segunda de nição do teatro, uma migalha
mais completa do que a primeira, e dizer: o teatro é um edifício que
tem uma forma interior orgânica composta de dois órgãos — sala e
cenário — dispostos para servir a duas funções opostas embora
conexas: ver e ser visto.
Sempre se ouve dizer, desde a escola, que o teatro é um gênero
literário, um dos três grandes gêneros literários que a Preceptiva65
costuma distinguir: épica, lírica e drama ou dramaturgia, a obra
teatral. Se repararem um pouco, libertando-se um instante do hábito
mental que essa fórmula tão repetida produz em nós, atendendo à
realidade contemplada ao pensarem — “teatro” —, essa inveterada
noção de teatro, como gênero literário, sem mais, não lhes provoca
estupefação? Porque o gênero literário é composto só de palavras — é
prosa ou verso e nada mais. Mas o teatro não é apenas prosa ou verso.
Prosa e verso estão fora do teatro — no livro, no discurso, na
conversação, no recital de poesias —, e nada disso é o teatro. O teatro
não é uma realidade que nos chega como pura palavra pela audição.
No teatro, não apenas ouvimos, como também mais ainda e antes de
ouvir, vemos. Vemos os atores moverem-se, gesticularem, vemos seus
disfarces, vemos as decorações que constituem a cena. Desse fundo de
visões, emergindo dele, nos chega a palavra dita com um determinado
gesto, com um disfarce preciso e de um lugar pintado que pretende ser
um salão do século  ou o Foro de Roma ou um Beco da
Mouraria.66

A palavra tem no teatro uma função constitutiva, embora muito


determinada, quero dizer, que é secundária para a “representação” ou
espetáculo. Teatro é, por essência, presença e potência, visão —
espetáculo —, e enquanto público, somos antes de tudo, espectadores,
e a palavra grega téatron, teatro, não signi ca senão isto: miradouro,
admirador.

Temos, portanto, razão quando re etimos um instante sobre o


inveterado dito segundo o qual o teatro é um gênero literário,
deixando-nos estupefatos. A estup-efação é o efeito que produz o
estup-efaciente e o estup-efaciente mais grave e, por desgraça, mais
habitual é a estup-idez.

A dramaturgia é apenas secundária e parcialmente um gênero


literário e, portanto, ainda que por certo tenha algo de literatura, não
se pode contemplar isolada do que a obra teatral tem de espetáculo.
Podemos ler o teatro — literatura — em casa, à noite, de sandálias, ao
lado da lareira. Mas que não nos aconteça, ao considerar a realidade
do teatro, não tomarmos como algo que lhe é essencial o fato de que é
preciso sair de casa e ir a ele. Se o primeiro sentido forte e vulgar,
fecundissimamente ingênuo da palavra teatro, signi ca um edifício, o
segundo sentido, também forte e vulgar, seria este: teatro é um lugar
aonde se vai. E nos perguntamos com freqüência uns aos outros: “Vai
esta noite vossa excelência ao teatro?”. O teatro é, com efeito, o
contrário de nossa casa: é um lugar aonde se tem que ir. E este ir a que
implica um sair de nossa casa é, como vamos em seguida averiguar, a
raiz dinâmica mesma dessa magní ca realidade humana a que
chamamos teatro.

O teatro, por conseguinte, antes de ser um gênero literário, é um


gênero visionário ou espetacular. Logo descobriremos em que sentido
enérgico e superlativo ele o é. O teatro não acontece dentro de nós,
como ocorre com outros gêneros literários — poema, romance, ensaio
—, mas ocorre fora de nós; temos de sair de nós e de nossa casa e ir
para o ver. Também o circo, também a corrida de touros, são
espetáculos, são coisa as quais se deve ir e ver. No entanto, vamos
aprender muito em breve em que se diferenciam esses dois espetáculos
do espetáculo teatral. Certamente, o Circo e a tourada, ao modo do
espetáculo, pertencem à mesma e divertida família do teatro. O circo
seria seu primo vesgo, a tourada seriam seu atroz, primo torto.

Mas o que vemos nesse cenário? Pois, por exemplo, vemos a sala de
um castelo — palácio medieval no norte da Europa —, que se abre
largamente sobre um parque, precisamente o parque de Elsenour;
vemos a beira de um rio que desliza com correnteza lenta e triste,
árvores que sobre suas águas se inclinam com vagas pesadoras —
bétulas, álamos e um salgueiro chorão que deixa cair seus ramos. Não
é verdade, senhores, que o salgueiro é uma arvore que parece estar
cansado de ser árvore? Vemos uma menina trêmula que leva ores e
relva nos cabelos, no traje, nas mãos e avança vacilante, pálida, o olhar
to em um ponto de grande lonjura, como olhando sobre o horizonte,
onde não há estrela alguma, embora uma estrela, a mais linda estrela, a
estrela nenhuma. É Ofélia — Ofélia louca,67 coitada!, que vai descer no
rio. Descer no rio68 é um eufemismo com que a linguagem chinesa diz
que alguém morre. Isso é, senhores, o que vemos.

Mas não, não vemos isso! Será que por um instante sofremos uma
ilusão de ótica? Porque o que com efeito vemos são apenas telas ou
cartões pintados; o rio não é rio, é pintura; as árvores não são árvores,
são manchas coloridas. Ofélia não é Ofélia; é... Marianinha Rey
Colaço.69

Em que camos? Vemos um ou o outro? De que propriamente


estamos falando aqui, com o cenário diante de nós? Não há dúvidas:
aqui, diante de nós, achamos as duas coisas: Marianinha e Ofélia. Mas
não as encontramos — isso é que é curioso! —, não as encontramos
como se fossem duas coisas diversas, mas como sendo uma só. Se nos
“apresenta” Marianinha, que “re-presenta” Ofélia. Quer dizer, nos
cenários, as coisas e as pessoas se nos apresentam sob o aspecto ou
com a virtude de representar outras que não são elas.

Isso é formidável, senhores. Este fato trivialíssimo que acontece


cotidianamente em todos os teatros do mundo é, talvez, a mais
estranha, a mais extraordinária ação que acontece ao homem. Não é
estranho, não é extraordinário, não é literalmente mágico, que o
homem e a mulher lisboetas possam estar agora, em 1946, sentados
em suas poltronas e palcos do teatro Dona Maria e, ao mesmo tempo,
estejam seis ou sete séculos atrás, na nebulosa Dinamarca, junto ao rio
do parque que rodeia o palácio do rei e vendo caminhar com seu passo
sem peso esta ammetta70 lívida que é Ofélia? Se isso não é
extraordinário e mágico, eu não sei que outra coisa neste mundo seria!
Precisemos um pouco mais: aqui está Marianinha, cruzando com pé
cego a cena; mas o surpreendente é que está sem estar — está para
desaparecer em cada instante, como se escamoteasse a si mesma para
que no oco de sua primorosa corporeidade abrigasse Ofélia. A
realidade de uma atriz, enquanto é atriz, consiste em negar sua própria
realidade, substituindo-a pelo personagem que representa. Isso é re-
presentar: que a presença do ator não sirva para apresentar a si
mesmo, mas para apresentar outro ser diferente de si. Marianinha
desaparece como Marianinha porque ca coberta, tapada por Ofélia.
Ocorre o mesmo com as decorações que estão tapadas, cobertas pelo
parque ou rio. De sorte que, o que não é real, o irreal — Ofélia, parque
do palácio —, tem a força, a virtude mágica de fazer desaparecer o que
é real.

Se numa ocasião assim vocês re etirem sobre o que lhes acontece e


pretenderem esboçar uma resposta à pergunta anterior sobre o que é
que encontramos no cenário, teriam que dizer assim: encontramos
primeiro diante de nós Ofélia e um parque; atrás e como em segundo
plano, Marianinha e umas telas pintadas. Dir-se-ia que a realidade, foi
posta ao fundo para se deixar atravessar, como a transluzir-se, o irreal.
No cenário, encontramos, pois, coisas — as decorações — e pessoas —
os atores — que têm o dom da transparência. Através deles, como
através do cristal, transparecem outras coisas.

Agora podemos generalizar o exposto dizendo: existem no mundo


realidades que têm a condição de parecer outras diferentes, no lugar de
si mesmas. Realidades dessa condição são as que chamamos imagens.
Um quadro, por exemplo, é uma “realidade em imagem”. Não chega a
um metro de largura nem de altura. No entanto, nele vemos uma
paisagem de vários quilômetros. Não é mágico? Aquela porção de
terra com suas montanhas e seus rios e sua cidade, está ali como
embrulhada — num só metro achamos vários quilômetros e, em vez
de uma tela com manchas de cor, encontramos o Tejo e Lisboa e
Monsanto. A coisa “quadro” colocada na parede de nossa casa está
constantemente transformando-se em Rio Tejo, em Lisboa e suas
alturas. O quadro é imagem porque é permanente metamorfose — e
metamorfose é o teatro, prodigiosa trans guração.

Eu espero que vocês tenham conseguido maravilhar-se, isto é,


surpreender-se com esse feito tão trivial que nos ocorre todos os dias
no teatro. Platão indicava que o conhecimento nasce dessa capacidade
de nos surpreender, nos maravilhar, estranhar que as coisas sejam
como são, precisamente como são.

O que vemos aqui, no palco cênico, são imagens no sentido estrito


que equivale a de nir — um mundo imaginário — e todo o teatro, por
humilde que seja, é sempre um Monte Tabor onde ocorrem
trans gurações.

O cenário do teatro Dona Maria é sempre o mesmo. Não tem muitos


metros de largura, de altura, de profundidade. Consiste em umas
tábuas, em uma murada qualquer, matéria trivialíssima. No entanto,
recordem-se de todas as inumeráveis coisas que esse breve espaço e
esse pobre material lhes deram. Foi monastérios e choça de pastor,
palácio, jardim, rua de urbe antiga e de cidade moderna, salão. O
mesmo acontece com o ator. Esse mesmo e único ator foi para nós
incontáveis seres humanos: foi rei e mendigo, foi Hamlet e Don Juan.

O cenário e o ator são a universal metáfora corporizada, e isso é o


teatro: a metáfora visível.

Mas repararam o que é o metafórico? Tomemos como exemplo, para


que que mais claro, a metáfora mais simples, mais antiga e menos
seleta, a que consiste em dizer que as bochechas de uma menina são
como a rosa. Geralmente a palavra “ser” signi ca a realidade. Se digo
que a neve é branca, custa a entender que a realidade neve possui
realmente essa cor real a que chamamos brancura. Mas o que signi ca
ser quando digo que as bochechas de uma menina são uma rosa?
Talvez recordem o delicioso conto de Wells que se intitula “O homem
que podia fazer milagres”.71 De noite, numa taberna de Londres, dois
homens comuns, já inebriados pelos pesados vapores da cerveja,
discutem ruidosamente sobre se existem ou não milagres. Um crê
neles; o outro, não. E em certo instante, o incrédulo exclama: “É como
se eu dissesse agora para esta luz apagar e a luz se apagasse!”, e eis que
uma vez pronunciadas essas palavras, a luz, efetivamente, se apaga. E
desde aquele momento, tudo o que aquele homem dizia ou
simplesmente pensava, embora sem querer a rmar formalmente,
acontece, se realiza. A série de aventuras e con itos que este poder, tão
mágico como involuntário, lhe proporciona, constitui a matéria do
conto. Por m, um agente de polícia o persegue tão de perto que o
pobre pensa: “Por que esse policial não vai para o inferno?”. E, com
efeito, o policial vai para o inferno.

Pois suponham que algo parecido acontecesse ao humilde


enamorado, cuja imaginação não chega a mais que dizer que a
bochecha da donzela amada é uma rosa — portanto, logo aquelas
bochechas se converteriam em uma rosa. Que espanto! Não é verdade?
O desventurado se angustiaria, por não querer ter dito isso: era pura
brincadeira — o ser rosa das bochechas era apenas metafórico; não era
um ser em sentido real, senão um ser em sentido irreal.72 Por isso, a
expressão mais usada na metáfora começa como e diz: as bochechas
são como uma rosa. O ser como não é o ser real, mas um como-ser,
um quase-ser; é a irrealidade como tal.

Perfeitamente, mas então o que é que se dá quando construímos uma


metáfora? Pois acontece isto: existem as bochechas reais e existe a rosa
real. Para metaforizar ou metamorfosear ou transformar as bochechas
em rosa, é necessário que as bochechas deixem de ser realmente
bochechas e que a rosa deixe de ser realmente rosa. As duas realidades,
ao serem identi cadas na metáfora, chocham-se uma com a outra,
anulam-se reciprocamente, neutralizam-se, desmaterializam-se. A
metáfora vem a ser a bomba atômica mental. Os resultados da
aniquilação dessas duas realidades são precisamente essa nova e
maravilhosa coisa que é a irrealidade. Ao fazer chocarem-se e
anularem-se realidades, obtemos prodigiosas guras que não existem
em nenhum mundo. Por exemplo, para compensar a miséria da velha
metáfora de que me servi de exemplo, recordo desta outra, belíssima,
de um recente poeta catalão. Tratando de um cipreste, ele diz que “o
cipreste é como o espectro de uma chama morta”.

O ser como é a expressão da irrealidade. Mas a linguagem tardou


muito a encontrar essa fórmula. Max Müller chamou a atenção para os
poemas religiosos da índia, os Vedas, que são, em parte, os textos
literários mais antigos da humanidade. Neles, a metáfora ainda não é
expressa dizendo que uma coisa é como outra; mas, precisamente, por
meio da negação, o que demonstra que tenho razão, quando digo ser
preciso que duas realidades mutuamente se neguem, se destruam, para
que nasça e se produza a irrealidade. Com efeito, Max Müller nota que
quando o poeta védico quer dizer que um homem é forte como um
leão, diz: fortis non leo, é forte, mas não é um leão; ou bem para
expressar que um caráter é duro como uma pedra, dirá: durus non
rupes, é duro, mas não é uma pedra; é bom como um pai, se diz: bonus
non pater, é bom, embora, bem entendido, não como um pai.

Pois bem, senhores, o mesmo ocorre no teatro, que é “como se” e a


metáfora corporizada — portanto, uma realidade ambivalente que
consiste em duas realidades, a do ator e a do personagem do drama
que mutuamente se negam. É preciso que o ator deixe durante um
pouco de tempo de ser o homem real que conhecemos e é preciso
também que Hamlet não seja efetivamente o homem real que fora. É
mister que nem um nem outro sejam reais e que incessantemente
estejam des-realizando, neutralizando, para que reste só o irreal como
tal, o imaginário, a pura fantasmagoria.

Mas esta duplicidade — o ser, simultaneamente, realidade e


irrealidade — é um elemento instável e sempre corremos o risco de
car com uma só das duas coisas. O mau ator nos faz sofrer, porque
não consegue convencer-nos de que é Hamlet, mas que seguimos
vendo a costumeira desventura de Perez ou Martínez. E vice-versa, a
gente ingênua, popular, não consegue entrar nesse mundo “informal”,
metafórico e irreal. Todos recordamos quando nossa velha e ingênua
criada, vinda do campo, foi uma vez ao teatro e, ao nos contar suas
impressões, constatamos que ela tinha tomado os acontecimentos da
cena como se fossem reais e que ela tinha querido prevenir o ator de
que se casse ali os inimigos o matariam.

A fantasmagoria se solidi ca, precipita em alucinação um tanto


instável quanto seja a alma do expectador.
Da mesma forma que para ver um objeto a certa distância, a
musculatura ocular tem que dar ao olho o que se chama
“acomodação”, nossa mente tem também que saber acomodar-se para
que consigamos ver esse mundo imaginário do teatro, que é um
mundo virtual — que é irrealidade e fantasmagoria. Existem os que,
por excessiva deseducação, como nossa velha criada, são incapazes
disso, embora haja muitas outras causas que produzem uma peculiar
cegueira ao fantasmagórico.

Recordemos um caso ilustre. Era 1600. Espanha e Portugal conviviam


reunidos sob o cetro de nosso Sr. Felipe . Esta reunião não
signi cava que Portugal estivesse sob o domínio da Espanha, nem que
a Espanha sob o domínio de Portugal, senão que ambos os povos
estiveram em união mística e simbolicamente juntos na pessoa de
Felipe  e na varinha mágica que era seu cetro. A união transitória e
fugacíssima de Espanha e Portugal teve não pouca metáfora, como não
falta tampouco metáfora no atual bloco.

Estamos em uma aldeia castelhana, além da terra da Mancha, e


estamos na ampla cozinha da venda. Ali congrega-se quase todo o
povo, porque acaba de chegar o mestre Pedro que fará uma
representação com seu retábulo de fantoches. Em um tenebroso rincão
da vasta estância se entrevê, inverossímil, a gura de Don Quixote,
macilenta, esquálida, sem garbo, e em seus olhos uma perpétua febre
de heroísmo inoportuno.

As guras do retábulo representam como o cavaleiro francês Don


Gaiferos, primo de Roldão, vassalo de Carlos Magno, liberta sua
esposa Melisandra, prisioneira dos mouros em Saragoça, há anos. E
conseguindo sua evasão, já leva-a montada no lombo de seu bom
cavalo; galopam felizes até a doce França. Mas os mouros o avistam e
em grande tropel saem em sua perseguição. Já estão tão perto que
parece impossível que se salvem! Então Cervantes nos diz:

Vendo e ouvindo pois tanta algaravia e estrondo, pareceu para Don


Quixote ser bom ajudar aos que caíam, e ao erguer-se, em voz alta
disse: “Não consentirei eu que em meus dias e em minha presença se
faça violência a tão famoso cavaleiro e tão atrevido enamorado como
Don Gaiferos: detende-vos, mal nascida canalha, não o sigais nem o
persigais; se não, comigo vos havereis”, e assim dizendo,
desembainhou a espada e em um salto, pôs-se junto do retábulo, e
com acelerada e nunca antes fúria vista, começou a chover cutiladas
sobre os títeres mouros, derrubando uns, decapitando outros,
estropiando este, destroçando aquele, e entre outros muitos atirou um
de cima a baixo de modo que, se o mestre Pedro não se agachasse,
encolhesse e esquivasse, lhe partiria a cabeça com mais facilidade que
se fosse feito de massa de marzipã.

Passado o momento de frenesi, mestre Pedro fez o bom Don Quixote


ver o dano que sua intempestiva heroicidade lhe causara, mostrando-
lhe, caídos por terra, os pedaços e partes que caram de seus bonecos,
vítimas da alucinação de sua espada. E então Don Quixote disse, com
esse nobre acento e habitual solenidade utilizados por homens
impelidos pelo destino:

Acabo agora de crer no que outras vezes não cri: que esses
nigromantes que me perseguem, não fazem nada senão me pôr
diante dos olhos as guras como elas são, e logo mas trocam e
mudam nas que eles querem. Real e verdadeiramente vos digo,
senhores que me ouvis, que me parece, a mim, tudo o que aqui
acontece, que acontece ao pé da letra: que Melisandra fosse
Melisandra; Don Gaiferos, Don Gaiferos; Marsilio, Marsilio e Carlos
Magno, Carlos Magno. Mas isso se me alterou a cólera e para cumprir
com minha pro ssão de cavaleiro andante, quis prestar ajuda e favor,
e com este bom propósito, z o que haveis visto; se me saiu de revés,
não é culpa minha, mas dos malvados que me perseguem; e contudo,
por este meu erro, ainda que não procedesse da malícia, quero eu
mesmo condenar-me nas custas; veja mestre Pedro o que quer pelas
guras desfeitas que me ofereço a pagar-lhe imediatamente em boa e
corrente moeda castelhana.
Aqui vemos, senhores, funcionando a primeira dualidade de que
partimos — sala e palco cênico, separados pela beirada do cenário, que
é a fronteira dos dois mundos, o da sala, onde estamos, do início ao
m, a realidade que somos, e o mundo imaginário, fantasmagórico da
cena. Este ambiente imaginário, mágico, do cenário, onde se cria a
irrealidade, é na realidade um outro espaço e, com uma atmosfera
mais tênue que a da sala. Há diferentes densidades e pressão de
realidade em um e outro espaço e, como acontece na atmosfera efetiva
que respiramos, essa diferença de pressão produz uma corrente de ar
que vai do lugar de maior pressão ao de menor. A beirada do cenário
aspira a realidade do público, sorvendo-a para sua irrealidade. Às
vezes, esta corrente de ar é um vendaval.

Na pobre cozinha da venda castelhana soprou aquela noite o


vendaval da fantasmagoria e o mundo imaginário do retábulo de
mestre Pedro, com seu poder de sucção, absorveu a alma sem
gravidade, instável, de Dom Quixote, fazendo-a passar da sala ao
cenário. Isto signi ca que Dom Quixote deixou de ser espectador,
público, para se transformar, ele mesmo, em personagem da obra
teatral, com o que, por assim dizer, tomando-a como realidade,
destruiu sua fantasmagoria. Notem bem que, a seu ver, a realidade, no
cenário, era que os mouros perseguiam, de fato, o autêntico Dom
Gaiferos e a autêntica Melisandra, e foram os nigromantes quem
converteram esses seres reais em ridículos fantoches. E aí surge a
cauda mágica branca do cavalinho de cartão onde Melisandra galopa
— Melisandra é o sonho —, aí vai a alma incandescente de Dom
Quixote, e atrás de sua alma vai o corpo, e com seu corpo, seu braço, e
com seu braço, o heroísmo absurdo, embora autêntico e talhante de
sua espada.73

Janet e outros psiquiatras franceses, pouco perspicazes, salvas raras


exceções, Bergson, por exemplo, foram pensadores franceses da
segunda metade do século , cuja in uência gravitou penosamente
sobre o infortúnio intelectual dos nossos dois países, falavam que essas
loucuras consistiam na perda do sentido do real. O que me parece
uma perfeita tolice. É claro que a verdade é o oposto: esses distúrbios
ou anomalias mentais revelam uma perda do sentido do irreal. É como
se a brincadeira não fosse brincadeira, mas coisa séria, e todos
conhecemos pessoas incapazes dessa agilidade mínima, que não
conseguem nunca perceber a brincadeira como o faz-de-conta.

Então surge a diferença substantiva entre circo e corrida de touros, de


um lado, e teatro do outro. O circo e a tourada não são fantasmagorias,
mas realidades. No circo só existe um elemento teatral, só um ator, que
é muitas vezes um acrobata: o divino clown, o prodigioso palhaço. E é
interessante recordar de passagem, ainda que eu não queira nem tocar
na história do teatro, que a palhaçada, combinada com um rito
religioso (por essa e por outras razões, eu o chamei “palhaço divino”) é
em todos os povos a origem do teatro. Enquanto é certo que a corrida
de touros é o único espetáculo que é propriamente espetáculo, embora
o que nele se vê seja a realidade, o propriamente real. Nada simboliza
melhor esse caráter da tauromaquia como a anedota tão conhecida
que aconteceu em 1850, entre o mais famoso toureiro do tempo, Curro
Cúchares, e o mais famoso ator que havia na Espanha, o romântico e
trágico ator, Isidoro Máiquez. Cúchares estava passando um mau
bocado atrás de um touro difícil, e o ator, na beirada do alambrado,
insultava debochadamente do toureiro. Até que, em certo momento,
Cúchares estando diante do touro, e próximo donde o ator lhe
debochava, bradou-lhe: “Sr. Maíquez, ó Sr. Maíquez! Aqui, não se
morre de mentirinha como no teatro!”.74

Notem de que maneira, usando como ponto de partida uma simples


inspeção da estrutura espacial interna do teatro de Dona Maira,
contemplamos, a existência de dois espaços, de dois lóbulos ou
âmbitos, um em função de outro — a sala e a cena —, podendo
manifestar o caráter essencial da fantasmagoria, da criação da
irrealidade que é o teatro. À dualidade de espaços correspondia a
dualidade de pessoas — atores e público —, e esta, por sua vez,
adquiria seu pleno sentido na terceira dualidade funcional: os
espectadores enxergam e os atores se fazem enxergar; estes são
hiperativos e aqueles hiperpassivos.
Então vejamos claramente em que consiste a hiperatividade do ator e
a hiperpassividade do público.

Os atores podem se mover e expressar de diversas formas — trágicas,


cômicas, intermediárias — mas sempre com a condição
imprescindível, permanecente e essencial de que nada do que fazem e
dizem seja dito ou expresso “a sério”; portanto, seu fazer e dizer são
irreais e, por conseguinte, são cção, “brincadeira”, farsa. Kierkegaard
conta que em um circo, um incêndio se propagou. O palhaço foi
encarregado de avisar o público, mas este, achando que se tratava de
mais uma palhaçada, morreu queimado.

A atividade do ator ca, pois, muito determinada: é fazer farsa, por


isso o idioma lhe chama de farsante. Mas correlativamente, nossa
passividade de público consiste em receber dentro de nós essa farsa
como tal, ou talvez para dizer mais adequadamente, em sair de nossa
vida real e habitual, para esse mundo que é farsa. Mas isso seria dizer
pouco do que é essencial ao teatro: sair de casa e ir a ele — quer dizer,
ir ao irreal. Não existe na língua um vocábulo para expressar essa
realidade peculiar: quando somos público, somos espectadores do
teatro. Não importa, inventemo-la e digamos: no teatro os atores são
farsantes e nós, o público, somos “farseados”, nos deixamos “farsear”.

Com isso condensamos a imensa realidade humana, riquíssima,


multiforme, que é a história inteira do teatro, num só ponto, como se
este fosse suas vísceras e raiz: a farsa. Antes de nomeá-la, aprendemos
o que signi cava: é aquilo que faz bastante tempo quali quei como,
talvez, a mais estranha, a mais extraordinária ação, a mais
autenticamente mágica que acontece ao homem. Com efeito, na farsa,
o homem participa de um mundo irreal, fantasmagórico, enxerga-o,
ouve-o, vive por ele, mas, bem entendido, como tal irrealidade, como
tal fantasmagoria.

Pois bem, é um fato que a farsa exista, desde que existe o homem. Ao
que propriamente chamamos de teatro, precede um longo e profundo
milênio da primeira Humanidade, outras formas da farsa que
podemos considerar como o pré-teatro ou a pré-história do teatro.
Não podemos agora tentar descrevê-las.75 Se aludo a elas, é
simplesmente para poder dar este prosseguimento: a farsa é uma
dimensão constitutiva, essencial da vida humana; nada mais, nada
menos, que um lado imprescindível de nossa existência. Portanto, que
a vida humana não seja, nem possa ser, “exclusivamente”, seriedade;
que a vida humana seja, tenha que ser, por vezes, “brincadeira”, farsa;
que por isso o teatro existe e que o fato de haver teatro não é pura
casualidade e eventual acidente. A farsa, vísceras do teatro, é, como
vamos descobrir, uma das vísceras de que vive nossa vida e nisso, que é
como a dimensão radical da nossa vida, consiste a última realidade e
substância do teatro, seu ser e sua verdade.

O tempo, que acaba sempre por ser campeão em todas as disputas a


pé, vence-me neste cross-country76 e, desgraçadamente, não me deixa
desenvolver com o devido decoro, esta parte da idéia do teatro que é
precisamente a decisiva.

Não é misterioso, não é por si mesmo atraente, apaixonante, este


estranhíssimo fato de que a farsa seja consubstancial à vida humana,
de modo que além disso, em suas outras necessidades ineludíveis, o
homem necessite ser “farseado” e para isso ser farsante? Porque, sem
dúvida, esta é a causa para que o teatro exista.

Todo o resto de nossa vida é o oposto à farsa que se possa imaginar


— é constante, entediante “seriedade”.

Somos vida, nossa vida, cada qual a sua.77 Mas isso que somos — a
vida — não nos indica senão que estamos já submersos nela,
justamente quando nos encontramos com nós mesmos. Viver é achar-
se rapidamente tendo de ser, que existir em um orbe imprevisto que é
o mundo, onde mundo signi ca sempre “este mundo de agora”. E,
“neste mundo de agora”, podemos, com certa dose de liberdade, ir e
vir, mas não nos é dado escolher previamente o mundo em que vamos
viver. Este nos é imposto com sua imagem e componentes
determinados e inexoráveis, e encarando como ele é, temos que
arranjá-lo para ser, existir e viver. Por isso, já o chamamos, em meu
primeiro livro, em 1914, de a circunstância. Vida é ter que ser,
queiramos ou não, em vista de algumas circunstâncias determinadas.
Esta vida, como disse, nos é dada, já que não podemos dá-la a nós
mesmos, mas nos encontramos dentro dela e com ela — assim,
subitamente, sem saber como, nem por que, nem para quê. Ela nos foi
dada, mas não nos foi dada pronta; temos que fazê-la, cada qual a sua,
fazendo-nos com ela. Momento a momento, nos vemos obrigados a
fazer algo para subsistir. A vida é algo que não está aí sem mais, como
uma coisa, senão que é sempre algo que se deve fazer, uma tarefa, um
gerúndio, um faciendum. E, todavia, se já nos fosse dado o resultado
do que temos que fazer em cada instante, a tarefa que é viver seria
menos penosa. Mas isso não existe; em cada instante, abrem-se diante
de nós diversas possibilidades de ação, e não temos mais remédio
senão escolher uma; que decidir neste instante o que vamos fazer em
seguida, sobre nossa exclusiva e intrasferível responsabilidade. Ao sair
daqui, dentro de alguns minutos, pela porta de O século, cada um de
vocês, queira ou não, terá que decidir por si e ante si, a direção que vai
dar na rua seu primeiro passo. Mas como disse o vetustíssimo livro
indiano: “Aonde quer que o homem ponha seu pé, sempre pisa em
cem caminhos”. Todo o ponto do espaço e todo o instante de tempo é
para o homem encruzilhada diante da qual vacila, titubeia. A vida,
senhores, é perplexidade, é não saber bem o que fazer. Do mesmo
modo, é preciso se decidir e, para isso, escolher. Mas por ser a vida
perplexidade, e necessidade de escolher o que fazer, isso nos obriga a
compreender, isto é, a fazer bom proveito das circunstâncias. Daí
nascem os saberes todos — a ciência, a loso a, a “experiência de
vida”, o saber vital que costumamos chamar de prudência e sagesse.
Estamos consignados a esta circunstância; somos prisioneiros dela. A
vida é prisão na realidade ou circunstância. O homem pode furtar-se à
vida, mas se vive — repito — não pode escolher o mundo em que vive.
Este é sempre o daqui e agora. Para nos suster nele, temos que fazer
sempre algo. Daí provêm os inumeráveis fazeres do homem. Porque a
vida, senhores, dá muito o que fazer. E assim o homem faz sua comida,
faz ciência, faz paciência, quer dizer, espera, que é “fazer hora”, faz
política, faz obras de caridade, faz... que faz e se faz... ilusões. A vida é
um onímodo fazer. E isso tudo em luta com as circunstâncias e por
estar prisioneiro no mundo que não pode escolher. Chamamos de
“realidade” ao caráter imposto, queiramos ou não, daquilo que nos
rodeia. Estamos condenados à prisão perpétua na realidade ou
mundo. Por isso, a vida é tão séria, tão grave, ou seja: tem peso, a
responsabilidade inalienável, que constantemente do nosso ser e fazer,
emana.

Por isso, quando alguém perguntava a Baudelaire onde preferia viver,


com um gesto de dandismo displicente que era, segundo se sabe, sua
religião, respondia: “Em qualquer parte, ah, em qualquer parte,
contanto que seja fora do mundo!”.78

Com isso, Baudelaire dava a entender o impossível. O destino tem o


homem irremediavelmente encadeado à realidade e em luta sem
trégua com ela. A evasão é impossível. Ter que realizar sua vida e
decidir a cada instante, com sua exclusiva responsabilidade, o que vai
fazer, é como se tivesse que a segurar pelo pulso. Por isso, a vida é
plena de pesares. Como criatura, então, ao homem, cuja condição é a
tarefa, esforço, seriedade, responsabilidade, fadiga e pesar, é-lhe
imprescindivelmente necessário algum descanso. Descanso de quê?
Ah, é claro! — O que seria? De viver ou, o que dá no mesmo, de “estar
na realidade”, náufrago nela.

É isso o que ironicamente Baudelaire queria dizer: que o homem


necessita, de quando em quando, se evadir do mundo da realidade,
que necessita escapar. Dissemos que isso é impossível num sentido
absoluto. Mas não seria possível, em algum sentido menos absoluto?
Mas para ir embora da vida deste mundo, seria mister que houvesse
outro.79 E se esse outro mundo é outra realidade, por muito outra que
seja, será realidade, contorno imposto, circunstância agravada. Para
que exista outro mundo a que valeria a pena ir embora, seria preciso,
antes de tudo, que esse outro mundo não fosse real; que fosse um
mundo irreal. Então, estar nele, ser nele seria equivalente a converter-
se a si mesmo em irrealidade. Isto seria efetivamente suspender a vida,
deixar um pouco de viver, descansar do pesar da existência, sentir-se
aéreo, etéreo, sem gravidade, invulnerável, irresponsável, in-existente.

Por isso, senhores, a vida, o homem sempre se esforçou por incluir,


em todas as suas tarefas impostas pela realidade, a mais estranha e
surpreendente; uma tarefa, uma ocupação, que consiste precisamente
em deixar de fazer tudo o mais que fazemos seriamente. Esta tarefa,
esta ocupação que nos liberta das demais é... brincar. Enquanto
brincamos, não fazemos nada — entenda-se, não fazemos nada
seriamente; o jogo é a mais pura invenção do homem: todas as demais
lhe são, mais ou menos, impostas e pré-formadas pela realidade. Mas
as regras de um jogo — e não existe jogo sem regras — criam um
mundo que não existe. E as regras são pura invenção humana. Deus
fez o mundo, este mundo; certo, mas o homem fez o xadrez — o
xadrez e todos os demais jogos. O homem fez, faz... o outro mundo, o
verdadeiramente outro, o que não existe, o mundo que é brincadeira e
farsa.

O jogo é, pois, a arte ou técnica que o homem possui para suspender


virtualmente sua escravidão dentro da realidade, para evadir-se,
escapar, trazer-se a si mesmo deste mundo em que vive para outro
irreal. Este trazer-se de sua vida real para uma vida irreal, imaginária,
fantasmagórica é dis-trazer-se. O jogo é distração. O homem necessita
descansar de seu viver e, para isso, põe-se em contato, volta-se ou
verte-se em uma vida transcendida. Esta volta ou versão de nosso ser
ao vital transcendido ou irreal é a diversão. A distração, a diversão é
algo consubstancial à vida humana, não um acidente, algo de que se
possa prescindir. E não é frívolo, senhores, aquele que se diverte, mas o
que crê que não deve divertir-se. O que, com efeito, não tem sentido é
querer fazer da vida toda puro divertimento e distração, porque então
não temos o que nos divirta, nem de que nos distrair. Notem que a
idéia de diversão supõe dois termos: um terminus a quo e um
terminus ad quem — aquele de que nos divertimos e aquele com que
nos divertimos.80
Eis aqui, senhores, por que a diversão é uma das grandes dimensões
da cultura. E não nos pode surpreender que o maior criador e
disciplinador de cultura que jamais existiu, Platão, o ateniense, até seus
últimos dias, entregava-se a jogos de palavras com o vocábulo grego
que signi ca cultura — παιδεία, paideia — e que signi ca jogo,
brincadeira, farsa — παιδία, paidia — e nos diz, em irônico exagero,
nada mais, nada menos, que a vida humana é jogo e, literalmente
acrescenta, “que isso que tem de jogo é o melhor que tem”.81 Não é de
se estranhar que os romanos vissem no jogo um deus a quem
chamaram, sem cerimônias, “Jogo”. Lusus, a quem zeram lho de
Baco e que consideravam — vejam que casualidade! — fundador da
raça lusitana.

O jogo, arte ou técnica de diversão, sendo parte da cultura humana,


cria inúmeras formas de distrair-se, e essas formas estão
hierarquizadas das menos perfeitas às mais perfeitas. A forma menos
perfeita é o jogo de cartas; o bridge, por exemplo, onde durante horas e
horas, as mulheres da nossa época anulam sua feminilidade — seja
dito para a vergonha dos varões. A forma mais perfeita de evasão ao
outro mundo são as belas artes, e se digo que são a forma mais perfeita
de jogo evasivo não é por nenhuma homenagem convencional, não é
porque eu sinta o que faz muitos anos chamei de “beatice cultural”,
nem estou disposto a me ajoelhar diante das belas artes, por muito
artes que sejam, e por muito belas que pareçam, mas porque
conseguem, com efeito, libertar-nos desta vida mais e cazmente do
que nenhuma outra. Enquanto estamos lendo um excelso romance, os
mecanismos de nosso corpo seguem funcionando, mas o que estamos
chamando de “nossa vida”, ca literal e radicalmente suspensa. Nos
sentimos dis-traídos de nosso mundo e transplantados ao mundo
imaginário do romance.

Pois bem, o que constitui o cimo desses métodos de evasão que são as
belas artes, aquilo que mais completamente permite ao homem
escapar do pesar de seu destino, é o teatro em suas épocas de “ser em
forma” — quando, por coincidir com sua sensibilidade, ator, cena e
poeta, conseguem ser plenamente arrebatados pela grande
fantasmagoria do cenário. Em nosso tempo isso não acontece; nem a
cena, nem o ator, nem o autor se acham à altura de nossos nervos e a
mágica metamorfose, a prodigiosa trans guração, não costuma
acontecer. Nosso teatro atual não está à la page [em dia] com nossa
sensibilidade, e é a ruína do teatro. Mas nessas épocas a que me referi
ao início, gerações e gerações de homens conseguiram, durante muitas
horas de sua vida, à mercê do divino escapismo que é a farsa, a
suprema aspiração do ser humano: serem felizes.

Eis aqui, senhores, como este simples esquema que representa o


espaço interior do teatro Dona Maria, nos carrega pelas mãos a
descobrir em atroz abreviatura, mas com pleno radicalismo, a idéia do
teatro; nos permite de nir essa estranhíssima realidade que existe no
Universo e que é a farsa, ou seja, a realização da irrealidade; nos põe a
caminho de averiguar por que o homem necessita ser farseado e, por
isso, necessita ser farsante. O homem ator se trans gura em Hamlet, o
homem espectador se metamorfoseia em contemporâneo de Hamlet,
assiste à vida deste — e também, pois, o público, é um farsante, sai de
seu ser habitual para outro, excepcional e imaginário, participando
num mundo que não existe —, num mundo transcendido, e neste
sentido não só a cena, mas também a sala e o teatro inteiro são
fantasmagoria, vida transcendida.

Senhores: ao m do século passado, havia um professor de química


na Universidade de Madri, com quem os estudantes costumavam
brincar. Na sua mesa, com a autoridade da sua cátedra, ele preparava
experimentos e com ingênua solenidade anunciava, por exemplo, que
ao verter isso sobre certo líquido reativo, produzir-se-ia um
precipitado azul. Isso acontecia e então os alunos, com a crueldade
inseparável da adolescência, prorrompiam em estrondosos aplausos,
como se o professor fosse um toureiro que acaba de matar o touro.
Mas o professor, humildemente, inclinando-se aos aplausos, dizia aos
estudantes: “Para mim, não; para mim, não: para o reativo, para o
reativo!”.
Similarmente, se a benevolência habitual dos senhores lhes convida
agora a aplaudir, eu lhes rogo que aplaudam ao esquema, ao esquema!
Que é quem propriamente projetou sobre vocês esta demasiadamente
longa conferência.

ANEXO I

Máscaras
P retendemos travar contato com essa pré-história do teatro. Ela nos
manifestará em que medida extrema, está radicada no homem a
necessidade de sua maravilhosa fantasmagoria. Mas temos que buscar
esse contato partindo da própria origem do teatro. Situados nessa
linha, poderemos olhar primeiramente para trás, até o pré-teatro e,
retrocedendo sobre todo esse passado profundíssimo, nosso olhar se
ampliará ao futuro, dirigindo um olhar instantâneo sobre o porvir do
teatro (No Anexo ).

Como acontece com tantas outras coisas, o teatro mais antigo,


propriamente dito, é o teatro grego.

Este teatro grego e, note-se bem, todos os teatros que a história nos
deu a conhecer, se originaram de uma cerimônia ou ritos religiosos.
Mas a religião grega, semelhante nisso a todas as demais religiões
antigas e mais ou menos primitivas, tem um caráter radicalmente
distinto, mais ainda, oposto, à linha de inspiração diante do divino,
que parte de Zoroastro, atravessa o mosaísmo e culmina no islamismo
e no cristianismo.82 A religião grega é, em sentido formal, religião
“popular”. Primeiro, porque se origina na impessoalidade coletiva dos
diferentes “povos” ou “nações” helênicas; segundo, porque seu
conteúdo tem um caráter difuso, atmosférico, diríamos, respiratório.
Não é, como as outras religiões mazdeu-mosaico-cristãs,83 uma forma
de vida devotada e de nida, separada do resto da vida, nem tolera as
precisões e rigorosas cristalizações de uma dogmática teológica
estabelecida por grupos particulares de sacerdotes. Não é, pois,
teologia, nem mera e espontânea religião que os homens exercitam
como o contrair e dilatar de caixas torácicas na operação respiratória.
Penetra toda a sua vida, sem deixar de ser o que é, não sendo
especialmente “vida religiosa”, para o ser, não obstante. Em terceiro
lugar, porque é declarada e constitutivamente religião de um “povo”
como tal povo e, portanto, do Estado. Os deuses são primariamente
deuses do Estado e da coletividade, e só através desses deuses são
deuses para o indivíduo. Daí que, na Grécia, um movimento místico
só adquire caráter propriamente religioso quando o Estado o converte
em instituição. Assim aconteceu com o misticismo dionisíaco, com o
or smo e demais “mistérios”. Em quarto lugar, ao constituir a religião
substancialmente em “culto público”, lhe era conatural ser “festa”,
“festividade”. Esse traço não lhe é peculiar: é comum em todas as
religiões antigas e mais ou menos primitivas. Nelas, o ato religioso
fundamental não é a prece individual, privada e íntima — a “oração”
—, mas a grande cerimônia coletiva de tom festivo em que participam
todos os membros da coletividade, uns como executores do rito —
dança, canto e procissão —, outros como assistentes e “espectadores”.
Os gregos chamaram de theoria à comunicação do homem com deus
mediante a assistência de um cerimonial coletivo e religioso. A theoria
é, pois, o símile grego da oração cristã.

A religião grega, portanto, é a religião do “povo”, e para o povo e pelo


povo. Daí que faça em culto público mais substantivamente que as
religiões de outra linhagem.

O teatro grego nasce das danças e cantos corais que se executavam no


culto a Dioniso, o deus da natureza elemental ou como queiram, do
elemental na natureza e especialmente do vinho. “Conforme o tempo
passou, assumindo uma forma regular e dramática, o campo de seus
temas foi estendendo-se além dos limites da mitologia báquica ou
dionisíaca. Com isso, seu sentido religioso foi minguando
gradualmente e, pouco a pouco, foi sendo composto desde um ponto
de vista cada vez mais puramente humano. Mas, apesar de todas estas
mudanças, sua conexão exterior com o culto de Baco, Dioniso se
conservou intacta durante toda a sua história. Desde o começo, até sua
desaparição, as representações dramáticas permaneceram adscritas às
grandes festas dionisíacas. Não foram, pois, nunca um divertimento
ordinário da vida cotidiana. Durante a maior parte do ano, os
atenienses tinham que se contentar com outras formas de
entretenimento. Somente quando as festas anuais de Dioniso voltavam
é que podiam satisfazer sua paixão pela cena. Em tal ocasião, sua
veemência e entusiasmo cresciam proporcionalmente. A cidade inteira
tirava férias e se entregava ao prazer e ao culto do deus vinho.
Abandonavam-se os negócios, encerravam os tribunais; a prisão por
dívidas estava proibida durante os festivais; até os presos eram libertos
das cadeias, para lhes permitir participar em comum festividade....
Vários dias a o dedicavam-se ao drama. Tragédias e comédias
seguiam-se umas às outras, sem interrupção da manhã à noite. Em
meio desses deleites, o aspecto religioso da execução, como cerimônia
em honra a Dioniso, estabelecida em obediência à ordem direta do
oráculo, não era esquecido nunca. Os assistentes chegavam com
guirlandas em torno da cabeça como uma assembléia religiosa. A
estátua de Dioniso era levada ao teatro e colocada em frente ao
cenário, de sorte que o deus pudesse gozar do espetáculo juntamente
com seus devotos. Os lugares principais do teatro eram ocupados,
quase sempre, por sacerdotes, e o assento central estava reservado aos
sacerdotes de Dioniso. A execução das peças era precedida pelo
sacrifício de uma vítima ao deus do festival. Os poetas que escreviam
as obras, os coregos que pagavam por elas, e os atores e os cantores,
eram considerados como ministros da religião, e suas pessoas sagradas
e invioláveis. O teatro mesmo possuía a santidade inerente a um
templo divino. Toda a forma de ultraje ali cometido era tratada, não
meramente como um delito contra as leis ordinárias, mas como um
ato sacrílego, a ser condenado com a correspondente repressão. O
processo jurídico ordinário não parecia su ciente, e esses delinqüentes
eram submetidos a um procedimento excepcional diante de uma
reunião muito especial da Assembléia. Refere-se que, certa vez, um tal
Ctesicles, foi condenado à morte, só por ter agredido um inimigo
pessoal durante a procissão. “O simples fato de empurrar um homem
do assento, que havia tomado por erro, era matéria de sacrilégio,
punível com a morte”.84

Percebamos bem a estranhíssima mistura de elementos díspares que


este enorme fato nos mostra conjuntamente, como nos desa ando a
tentar descobrir sua raiz secreta, o princípio que os liga e faz de sua
antagônica pluralidade, uma unidade orgânica. Porque aí encontramos
um estado de profunda e patética exaltação religiosa, destacando,
como do fundo de que emana, sobre o festival coletivo e tumultuoso,
como júbilo e orgia e inseparavelmente unidos a esses dois lados desse
fato gigantesco, esses outros dois: uma diversão pública e uma das
criações da mais pura e elevada arte, da mais transcendente poesia,
que a humanidade alcançou. Quem por quarenta anos analisa
tenazmente a realidade radical que é a vida humana, acostumou-se a
ver que toda sua concreção, todo o fato vital ou vivente tem lados
diversos.85 Isso nos impõe um modo de pensar com peculiar tom
dialético, que nos obriga sempre a dizer: “por um lado...”, “por outro
lado...”.

A atitude religiosa, que para o homem tornava presente o divino, a


orgia, que aparentaria seu inverso, se não existisse a diversão,
normalmente considerada como aquilo que é essencialmente frívolo, e
as belas artes — poesia, música, dança e pantomima, que valem como
meras graças de equívoca substância dentre a vida humana —, essas
quatro coisas diversíssimas, têm que se transformar para nós em uma e
mesma coisa se queremos, de verdade, entender o fato unitário em que
as vemos surgir. Diante de uma situação assim, o pensador — não
encontramos outro nome menos indecoroso para designar seu ofício e
labor — parece como um prestidigitador e ilusionista, que arregaça as
mangas e diz ao público: “Senhores, vêem essas quatro coisas distintas
e ainda opostas: culto, orgia, diversão e arte? Pois num piscar de olhos
vou convertê-las em uma só e única!”. E o caso é que não há outro
remédio, senão buscar fazer isso, porque nisso consiste seu artesanato.

Parece, pois, ineludível e constitutivo da condição humana duplicar o


mundo, opondo-lhe o outro que desfruta de atributos contrários. Mas,
desde já, não encontra em si mais que a simples postulação desse
mundo transcendente. Então é preciso descobri-lo, tomar contato com
ele, enxergá-lo. Mas, como? Por que procedimentos, meios, métodos,
técnicas? O caráter geral com que este mundo se apresenta ao homem
é o habitual. O mundo em que vivemos, e onde estamos submersos, é
o “mundo habitual”, o “ordinário”. Paralelamente, o outro mundo ca,
por simples repercussão, caracterizado por ser o “excepcional”, o
“extraordinário”. E tudo o que se oferece com esta sionomia, adquire
ipso facto, a categoria de mundo transcendente, sendo divino.

Daí que, desde os tempos mais primitivos, o homem considera que os


sonhos e estados visionários, eram, por sua relativa excepcionalidade,
e, seu viés extraordinário, o que lhe revelava esse mundo que é outro, e
porque é outro, é superior.

O homem, que nunca foi muito inteligente, ainda não o é. Há


milênios, era muito menos. Não sabia pensar. Entretanto, supunha
sempre sonhar quando dormia. Os sonhos eram a “ciência”
primogênita do ser humano e sua pedagogia inicial. Nós, logicamente,
não possuímos ainda nenhuma idéia clara sobre o que é o sonho, e isso
nos convida a não menosprezar a humanidade primitiva, por julgar-se
que, ao sonhar, a realidade de um mundo superior, se revelava,
exatamente do mesmo modo que as percepções normais da vigília lhe
apresentavam a realidade como “mundo habitual”. No sonho vemos,
tocamos e ouvimos. É como se todas as nossas faculdades de
percepção se duplicassem, formando duas equipes: uma, que funciona
na vigília, e outra, que trabalha no sonho. E como nós fazemos “teorias
do conhecimento”, os primitivos zeram e continuam fazendo “teorias
do sonho”. Por exemplo, ao sonhar, o primitivo, cuja vida é menos rica
de componentes, lhe sobrevindo os mais familiares, vê seus mortos, e
estes adquirem por isso mesmo um caráter divino. Não é de estranhar
que, vice-versa, os Bankongo pensem que os mortos são quem “nos
dão os sonhos”.86 Se rebuscarmos na América do Norte indígena,
encontraremos que, segundo os Pawnee, os nossos sonhos são trazidos
do mundo dos deuses no alto, por certos pássaros. Eles os trazem no
bico, depositando-os onde dormimos e voltando sem carga às regiões
etéreas.87

Os sonhos não são, pois, escamoteados pelo homem primitivo, quero


dizer, não se lhes converte em meros estados subjetivos. Os sonhos são
coisas, realidade, mundo, são algo que “está aí’. Da mesma forma
pensam as crianças.

Eis aqui um diálogo que transcreve o melhor psicólogo da infância


que existe atualmente, o suíço Jean Piaget:

Fav (8;0) é um aluno de uma sala de aula, cuja professora tem o


excelente hábito de dar a cada criança um “caderno de observações”,
no qual a criança anota diariamente, com ou sem esboços
explicativos, um acontecimento observado pessoalmente da sua
escola. Certa manhã, Fav anotou espontaneamente, como sempre:
“Sonhei que o diabo queria me cozinhar”. Pois bem, Fav uniu um
esboço a essa observação, cuja cópia anexamos: vê-se, à esquerda, Fav
em sua cama; no centro, o diabo, e à direita, Fav, de pé, de pijama, em
frente ao diabo que o vai cozinhar. Gentilmente, nos foi permitido
observar esse desenho e fomos visitar Fav. Seu esboço ilustra, com
efeito, e até com certo poder, o realismo infantil: o sonho está junto
da cama, diante do ser adormecido que o contempla. Além disso, Fav
está de pijama, em seu sonho, como se o diabo o tivesse retirado da
cama.

Mas o que Fav não compreende é a interioridade do sonho.


“Enquanto sonhamos, onde está o sonho? — Diante de nossos olhos.
— Onde? Quando estamos em nossa cama, diante dos olhos. —
Onde, muito perto? — Não, no quarto”... Indicamos para Fav sua
imagem em . “— O que é isso? — Sou eu. — Qual é mais precisa, ()
ou ()? — No sonho (aponta ). — Isso é alguma coisa? — Sim, sou
eu. Eram os meus olhos, que haviam permanecido lá dentro (aponta
) para ver (!). — Como seus olhos estavam lá? — Eu estava todo lá,
principalmente os meus olhos.. — E o resto? — Estava dentro
também (na cama). — Como é isso? — Estava de duas formas. Estava
em minha cama e olhava tudo ao mesmo tempo. — Com os olhos
abertos ou fechados? — Fechados, já que estava dormindo”. Um
instante depois, Fav parece ter compreendido a interioridade do
sonho. “— Quando sonhamos, o sonho está em nós ou estamos
dentro do sonho? — O sonho está em nós, porque somos nós que
vemos o sonho. — Está na cabeça ou fora dela? — Na cabeça. — Você
me disse há pouco que estava fora dela; o que isso quer dizer? Eu não
via o sonho sobre os olhos. — Onde está o sonho? — Diante de
nossos olhos. — Há algo de verdade diante de nossos olhos? — Sim.
— Que coisa? — O sonho”. Fav sabe, pois, que existe algo de interior
no sonho; sabe que a aparência de exterioridade do sonho se deve a
uma ilusão (“não tinha o sonho diante dos olhos”) e, no entanto,
admite que, para que exista ilusão, é necessário que haja “de verdade”
alguma coisa diante de nós. “— Você está ali () “de verdade”? —
Sim, estava duas vezes de verdade ( e ). — Se eu tivesse estado lá,
poderia ter visto você? (). —Não. — O que quer dizer com: “eu
estava duas vezes de verdade?”. — Porque quando estava em minha
cama, estava de verdade, e logo quando estava em meu sonho,
quando estava com o diabo, estava também de verdade”. [Piaget]

É um erro diagnosticar — como faz o próprio Piaget — esta atividade


da criança como uma contradição. Nela, a criança faz constar, com
uma precisão digna de um fenomenológico, os vários caracteres do
sonho. O sonho, com efeito, tem o caráter de uma cena real. Desperta
uma presença, da mesma forma que a vida corporal desperta, a partir
da vida externa. Mas ao mesmo tempo tem o caráter de estar mais
adscrito ao sujeito individual que às cenas em vigília. Portanto, é algo
subjetivo e interior. Ambas as notas são verdade. Portanto, é verdade
que a criança está na cama e é verdade que esteja dentro do sonho, o
que acontece no quarto. Isso é se contradizer? Tanto não é que a
análise cientí ca do que é um sonho tem que começar fazendo essas
duas a rmações. Precisamente porque ambas são verdade, o sonho é
um problema. É a “coisa” sonho que é contraditória e, por isso, não é
questionável.
O que ocorre é que a criança não continua o desenvolvimento
dialético iniciado ao chegar a um resultado estável. Detém-se. Detém-
se, primeiro, por falta de interesse; segundo, porque o volume de
pensamentos que precisa executar e percorrer para chegar a esse
resultado é tal, que a humanidade, em seu imenso trabalho coletivo,
demorou milênios para chegar a uma solução aproximada. Mas o
processo dialético não foi concluído até então. O sonho segue sendo
problema, quer dizer, seguimos nos contradizendo ao falar dele. Só
neste sentido, se pode dizer que a criança se contradisse — quer dizer,
da mesma forma que nós.

Na página 119, há uma criança de sete anos que já veri cou, ou


aprendeu dos mais velhos, que os sonhos são irreais, que “não são de
verdade”.

Pasq. (7;6): — “Onde está o sonho enquanto se sonha, no quarto ou


em você? — Em mim. — Você o fez ou veio de fora? — Eu o z. —
Com que coisa se sonha? — Com os olhos. — Quando você sonha,
onde está o sonho? — Nos olhos. — Ele está no olho ou atrás do
olho? — No olho”. Entretanto, ainda não sabe que são fantasias. É,
pois, para ele algo não subjetivo e nesse sentido objetivo, embora
irreal. Por isso, dirá que não é pensamento mas coisa, e com
admirável lógica o reúne aos “contos”.

É uma admirável ontologia — o sonho tem um modo de ser a m


com o dos contos. Mas o dramático é a intervenção dos adultos. Fazem
isso com palavras que ou são distintas, inabituais para a criança, já que
ela tem que as pesquisar, achar seu signi cado, ou têm signi cações
mais ou menos coincidentes com as da criança. Até aqui isso é feito só
por seu mundo, com base em suas evidências: é um mundo autêntico
em que cada componente é o que é. Mas as intervenções adultas o
desconjuntam e desprestigiam. A criança segue depositando sua
crença nisso, não por acaso: são produtos de evidência. Mas se vê
obrigada a duvidar de si e logo, duvida do que crê, sem poder deixar
de crer.88
Deste modo, é preciso dissociar-se em uma dupla tarefa: de um lado,
segue organizando seu mundo com base em evidências, embora, por
outro, tenha que o adaptar ao que lhe dizem e que não lhe parece
evidente. Isso retira do mundo sua conseqüente autenticidade,
fazendo-o híbrido, composto do que é visto e ouvido (inautêntico, in-
evidente, coecus [cego]).

Não se estuda esta socialização da criança que é, portanto, uma


deformação de sua individualidade.

Um exemplo de inautenticidade:

Tann (8;0) — “De onde vêm os sonhos? — Quando anoitece e


fechamos os olhos, vemos coisas — Onde estão essas coisas? — Em
parte alguma. Não existem; estão nos olhos. — Os sonhos vêm de
dentro ou de fora? — De fora. Quando estamos indo e vindo, e vemos
alguma coisa, esta se mostra à nossa frente

sobre pequenos glóbulos de sangue. — O que ocorre quando


dormimos? — Vemos as coisas. — Este sonho está na cabeça ou fora
dela? — Vem de fora e, quando sonhamos, vem da cabeça. — Onde
estão as imagens quando sonhamos? — De dentro do cérebro vêm até
dentro dos olhos. — Existe algo diante dos olhos? — Não”.89

Esses glóbulos vermelhos e sua função de receber o “engrama” das


coisas são já inevidentes, como na ciência é a impressão recebida nos
centros cerebrais. É já hipótese e ademais sem clareza para a criança...
como para nós.

Mas no sonho, o homem está dormindo. Seria preferível ter sonhos


desperto. Isto se consegue com estupefacientes.90 O sonho desperto é a
embriaguez.

Seria muito importante seu estudo fenomenológico, porque por acaso


é o estado mental decisivo para a “descoberta do mundo
transcendente”.
O bêbado se sente arrebatado do que lhe era a vida — pesar. Vive
então uma vida isenta de negatividade, plena de luz, em que tudo lhe
sorri, nem sequer sente resistência da matéria (por perda de tato
periférico). Por isso, tomba, sem sentir a dureza e solidez da terra. Não
percebe limitação alguma na vida. Tudo é como deve ser. É a
felicidade, a beatitude; da vida anterior conserva só a impressão, como
de algo do qual foi arrancado, liberto, arrebatado ou assunto. Esta
sensação de “assunção” é a característica do êxtase, do “estar fora de si”.

Tem, pois, a clara percepção de ter sido transposto para outro


mundo, com a peculiaridade de que a transição é instantânea, sem
intromissão e, neste sentido, sem caminho. É um salto, um embalo —
não um trânsito com continuidade de um mundo a outro: daí a
impressão de rapto e daí também essa realidade que se lhe oferece, sem
comunicação com o que deixa, sendo formalmente outro mundo.

No entanto, a embriaguez por si não inclui momento algum que leve


para, ou tenha a ver com o religioso, e que faça desse “outro mundo”,
um mundo divinal.

Seria necessário postular uma embriaguez, em algum sentido,


religiosamente pré-dirigida — de sorte que todo o fenômeno, com
cada um de seus momentos, casse tingido de cor ou aspecto religioso.

O homem necessita periodicamente de evasão da continuidade em


que se sente escravo, prisioneiro de obrigações, regras de conduta,
trabalhos forçados, necessidades. A orgia é o oposto disso. A simples
idéia de que a tribo, ou várias tribos próximas, reúnam-se um dia, não
para trabalhar, mas precisamente para viver algumas horas de outra
vida que não seja trabalho — em suma, a festa —, já começa com a
alcoolização. Logo, a presença dos outros, acompanhados em
multidão, produz o conhecido contágio e despersonalização — ao que
se acrescem a dança, a bebida e a representação de ritos religiosos (a
dança já era um desses), que faz ressurgir do fundo das almas todas as
emoções profundas, extraordinárias, transcendentais do panteísmo
místico, de um resultado de ilimitada exaltação, e faz dessas horas ou
dias uma forma de vida, que é como vida transcendente, como
participação em outra existência superior e sublime. A festa é isso. É a
theoria a que me referi anteriormente.

As cerimônias e ritos das religiões antigas, são um aperfeiçoamento


desses métodos e técnicas através das quais o homem descobre o
mundo transcendente. Porque, diferentemente do islamismo e
cristianismo, essas religiões não são fé, mas culto. Não ocorre ali o
recolhimento de si na solidão, a “solidão sonora” da alma (São João da
Cruz), o encontro com Deus, que re ui em nós como uma fonte
despercebida, mas, inversamente, busca-se “pôr-se fora de si”, deixar-se
absorver por uma extra-realidade, por outro mundo melhor que, de
súbito, no estado excepcional e visionário, faz-se presente,
conseguindo sua epifania.

O caso da religião dionisíaca é excepcionalmente exemplar por sua


clareza. Nela o deus — Dioniso — é, pois, o método para chegar a ele.
Como existe uma Imitação de Cristo, houve uma Imitação de Dioniso,
a que se chamou literalmente de “imitação” ὀμοίωσις πρὸς τόν θεόν e
que consiste em “perder a cabeça”, frenesiar-se, enlouquecer:
μαίνεσθαι-βαγχεύειν.91

Convém notar que na época clássica, a religião grega consistia em


três camadas de deuses, muito diversas entre si como fauna divinal,
que o homem grego levava em sua alma sobrepostas como estratos
geológicos.

Havia, por certo, os deuses e cultos dos povos vencidos pelos helenos
vindos do Nordeste, separando-se do tronco comum indo-europeu,
descendo para Grécia e suas ilhas. Esta religião, a mais antiga,
grosseira, rude, era a religião que se estendeu por toda a área da
cultura egéia. Suas divindades, predominantemente femininas, são o
simbolismo cthônico. São deuses subterrâneos, das “regiões inferiores”
ou inferno. Deuses sombrios, que originariamente deveriam ser os
próprios parentes mortos. Quando os gregos venceram essas nações,
elas permaneceram como plebe, como o que Toynbee chama de
“proletariado interior de uma civilização”. E é curioso que, neste caso,
como sempre na história, essa religião proletária é a que, com um e
outro acréscimo, estava por renascer e impor-se sobre a religião dos
grupos aristocráticos que foram seus vencedores.

Essa é outra camada, o outro Panteão, que culmina com re namentos


francamente amaneirados nos poemas homéricos.92 Suas divindades
são totalmente o contrário das subterrâneas, infernais e necró las. São
deuses celestes, siderais e fulgurantes, o sol e o raio. Desprezam os
mortos. Em Homero os mortos são quase, quase guras cômicas. O
maravilhoso poeta cego acompanha com entusiasmo o homem
enquanto vive, mas tão logo morto, dá-lhe um chute no traseiro e não
volta a se preocupar com ele.93

Dioniso é um deus universal — deus da Vida, de todo o renascer


primaveral de vegetal, animal e humano, mas também deus dos
mortos. Deus amável, delicioso, prazenteiro e festivo: deus terrível,
destruidor, que ca ele mesmo desmembrado em cruel mascalismo.94
Deus bom e deus mal. A rigor, todo deus antigo tem em gérmen
ambas as caras. É, com efeito, uma condição do deus ser favorável ao
homem, como também ser cruel — ser propenso e ser adverso.
Dioniso é ambas as coisas em superlativo: é delícia e é espanto. É o
deus que presenteia o homem com visões em que este prevê seu
futuro.95 É o deus do frenesi e da demência: o deus maníaco, o deus
bêbado.

Dioniso é, sem dúvida, o deus mais deus que os gregos tiveram. A seu
lado, os olímpios parecem “a cionados” por serem deuses. Zeus
(Júpiter), Hera (Juno), Ares (Marte), Poseidon (Netuno) dir-se-ia que
estão “fazendo-se de deuses”.96 Em Dioniso, manifesta-se mais
claramente o que em nenhuma era para os gregos — e não só para os
gregos — é atributo mais característico dos deuses: são embaraçantes,
não se sabe como vão comportar-se, não se sabe bem o que fazer com
eles. Por isso, Hesíodo lhes chama “θεῶν γένος αὶδοῖον” a casta
embaraçante dos deuses.97
Dioniso, e a religião dionisíaca, representam a libertação do homem
da vida como preocupação, que é sua forma primária e substantiva. O
dionisíaco é a vida como descuido, sem cuidados, o abandono ao puro
existir e a fé em algo mais além da pessoa — a personalidade é
consciência, deliberação, cautelosa e suspicaz previsão, regimentada
conduta, razão — e mais poderoso, constante e fecundo, que leva o
homem generosamente em seus braços, enriquece sua existência e lhe
salva. Esse algo, trans — sobre — e infra-humano são os poderes
cósmicos elementais, os mais certamente divinos. Os deuses do
olimpo são demasiado pessoas, demasiado re exivos, preocupados,
corretos; em suma, demasiado humanos para ser radicalmente
divinos. Por isso, a religião dionisíaca invadiu a Grécia com incrível
rapidez: nela se viu a possibilidade de contato com uma realidade mais
autenticamente transcendente, mais genuinamente divina. Muito
superior a qualquer ser humano, onipotente, diante dela, o homem
não é por si nada. A anulação radical do homem é o sintoma de toda
grande e profunda — isto é, genuína, religião. Diante desses poderes
supremos, não há nada o que fazer se não se abandonar a eles. Mas
como tudo no homem tem inexoravelmente o caráter de tarefa — até
não fazer nada é a suspensão de qualquer ação — e, como digo na
conferência, até a paciência que retém toda a ação é uma espera, e, esta
é “fazer hora” — abandonar-se —, supondo toda uma série de
atividades, inclusive uma técnica e um método. Não é coisa tão fácil
que o homem instalado num permanente, fastidioso, angustiante
“estar sobre si” — como o abutre está sobre a sua presa —, se solte,
perca essa arregimentação de si mesmo, essa atividade policiada, que o
faz vigiar sua própria conduta. Para abandonar-se é necessário deixar
de “estar sobre si”, e isso signi ca que é preciso “pôr-se fora de si”,
deixar de “ser a si mesmo”, fazer-se outro, alheio a si — alienar-se. A
entrega a Dioniso e a realidade transcendente que ele simboliza é a
alienação, a loucura extática — “a mania”.98

Homero devia andar pelo mar Egeu cantando seus deliciosos cantos
lá por 750 a.C. Era apolíneo e expoente do que até então havia sido o
homem grego, em sua forma mais excelsa, mais elevada, mais “ m de
época”. Cem anos mais tarde, a Grécia seria uma forma de vida muito
distinta. Na Ilíada e na Odisséia, Dioniso é citado algumas vezes,
embora sem se precisar nada sobre ele, sem que intervenha em nada.
Dioniso era um deus demasiado formidável para poder estar com os
olímpicos, que eram gente um pouco a ita, demasiado “distinta” e de
bonne compagnie [boa companhia]. Mas cem anos mais tarde,
Dioniso impôs-se e dominou a vida grega. Dioniso opõe-se à
concepção de ser comedido e razoável que Apolo representa, ensaia e
ordena, com gesto belo, embora austero, conseguindo fazer triunfar
sua divina loucura. Desde então, os gregos não deixaram de render
culto à exaltação visionária, ao pensamento maníaco. Todos,
terminando em Platão e Aristóteles, os pais da lógica. Quem não tenha
isso sempre em vista, quem não o entenda, não sabe o mínimo sobre o
que foi a Grécia.99

Dioniso é a visão extática de um mundo transcendente que é a


verdade deste nosso mundo. É a religião visionária.

Por que Dioniso é ao mesmo tempo o deus e o método para chegar a


ela falei há pouco. Com efeito, Dioniso é o deus-vinho — o vinho
como deus e o divino como embriaguez. O vinho é o mais ilustre
estupefaciente. Ele predispõe ao culto frenético que consiste em
danças apaixonadas. Há um texto muito curioso, em que Ateneu,
citando Filocoro, diz: “Os antigos nem sempre praticavam o
ditirambo,100 mas quando celebravam o culto, se fosse dedicado a
Dioniso, cantavam e dançavam bebendo até embriagar-se, mas se se
tratava de Apolo, era com comedimento e com ordem”.

Os gregos não renunciavam a nada. Eis aqui as duas faces da vida —


ordem e desordem, seriedade e di-versão, razão e alheamento.

Para eles, a dança era todo um lado da vida. Era ação coletiva por
excelência, em que a tribo, como tal, diríamos, a nação, se fazia
presente, se reconhecia a si mesma como realidade coletiva, acentuava
constantemente sua solidariedade, atuava e existia. O objeto mais
sacro, sensu stricto, é o tambor. Na África negra, para expressar que
um indivíduo era estrangeiro, que pertencia a outra tribo, dizia-se:
“Esse dança com outro tambor”, e em muitos lugares, quem punha a
mão indevidamente ou se atrevia a tocar, sem cacife su ciente, o santo
tambor tribal, era condenado à morte. Para o europeu, que viveu nas
profundas e secretas selvas da Nigéria e Congo, remanescia sempre no
ouvido o tã-tã pertinaz de inumeráveis tambores invisíveis que
tocavam tenazmente por dias, semanas, meses, sem parar. E isso
signi ca que milhões de homens praticavam com tenacidade de
obsessivos, de maníacos, a dança, como se fosse o lado da vida mais
importante. E assim, é dançando, sem beber e sem tóxicos, que o
homem esquece-se, esquece do peso da vida, conseguindo ver o
mundo diferentemente do que é, como mundo trans gurado, um
mundo transcendentemente feliz, é feliz — vivendo para além de si
mesmo.

Por isso, não é de estranhar, que Dioniso seja um deus que dança —
dança freneticamente — e com ele suas sacerdotisas e éis, as
mênades, isto é, as loucas. Dioniso era tal dançarino que, segundo o
mito, já dançava no ventre de sua mãe.

Apolo é a medida, a rigorosa norma da vida, o “estar sobre si”, a


austera conduta — a conduta conforme o ritmo, o “ser em forma”.
Mas, bem entendido, também dança. No Panteão grego — salvos
Júpiter e Hera — que são como os amos da casa, que são dois deuses
ingleses, antipáticos, a pura respeitabilidade — todo mundo dança.
Pertence à vocação de deus ter o pé ágil. Mas Apolo é, por excelência,
o deus dançarino — só que sua dança é austera e rígida cadência e, por
isso, o culto que se lhe dedica consiste em danças moderadas. Est
modus in rebus101 e Apolo é o modus, o lógos da vida e das coisas.

Portanto, a diferença mais precisa e mais clara destas duas religiões


contrapostas — a apolínea e a dionísica — seria distinguir duas
danças, como no século  disputavam na Espanha os “ilustrados”,
in uídos pelo enciclopedismo francês, e os castiços, submersos na
estupenda plebe espanhola, sobre a preferência entre estes dois bailes:
o minuet ou a “chacona”.102
O culto primigênio, como disse, é uma dança. Mas esta dança é uma
pantomima em que se representa a vida de deus. Desse modo, a
prática religiosa, que é o culto, tem o efetivo caráter de uma imitatio
dei, de um ὸμοίωσις πρὸς τὸν θεὀν. Na dança dionisíaca se
representava a vida, paixão, morte e ressurreição de Dioniso. A festa
era o dia dos defuntos Choaí,103 que abria o longo festival das
Anthesterias, dedicado à veneração dos mortos. Um cidadão que
gurasse como Dioniso, coroado de pâmpanos e folhas de videira,
chegava a Atenas, dentro de um navio colocado sobre rodas, o “carro
alegórico” de nosso Carnaval.

E vice-versa, o que nas cerimônias do culto fazem os homens —


desde os tempos mais primitivos — é projetado sobre a lenda ou mito
do deus. Porque ao adorá-lo, os homens dançam e nesta dança ritual
se identi cam com o deus cuja vida representam, produzindo entre o
el e o deus uma troca de atributos. Esta é a razão pela qual os deuses
dançam.

Vemos, pois, que a representação da vida divina é estilizada na dança,


ao introduzir nos movimentos miméticos a magia formal do ritmo,
que transpõe ou transubstancia o ato habitual e mundano em algo
superior e transcendente — como na palavra — o vulgar e profano
dizer, ao converter-se o ritmo em verso, tornando-se fórmula mágica,
carmen.104

Então não temos mais que dar às coisas seus nomes para que tudo
isso se combine, se uni que, se esclareça e se condense.

A série de movimentos, de atos que integram a “representação”


mimética, os gregos chamavam-na de um drómenon, de drao — atuar,
executar. A forma nominal deste verbo é drama. Ela nos faz ver, por
assim dizer, o cialmente, no rito religioso, o pré-teatro, a pré-história
do teatro, que esta nota, acrescida ao texto da conferência, quis
mostrar ao leitor.
Por outro lado, a cerimônia religiosa consiste na dança mimética, o
drómenon, a ação sagrada, dito em grego orgia,105 de ergon, obra ou
operação, atuação. Orgia é, pois, o mesmo que drama; mais
exatamente, é o drama visto por seu lado religioso. Porém, como
observamos, o ato religioso é formalmente festivo. É culto e festa e
vice-versa. Para a humanidade toda, inclusos Grécia e Roma, toda a
festa é religiosa e a religião culmina a posteriori em festa. Nossas
festas, a bem-dizer, quase não o são, ou o são em um grau muito
menor. São festas “desendeusadas”, laicas, “des-afetadas”, desossadas do
apoio emotivo e simbólico religioso. São festas profanas, isto é,
profanadas.

Na Grécia, ao se fazer o culto báquico destacado e dominador de


todos os demais, sua festa e rito cerimoniais, sua orgia, adquiria um
valor antonomástico e, como tinha um caráter de frenesi, a orgia e o
orgiástico carregaram de sentido o que temos hoje. Daí que o único
comportamento coletivo que cava no Ocidente com certo valor
residual de autêntica “festa” era o “Carnaval”, que era a única festa
orgiástica sobrevivente na Europa. Como se lhe havia extirpado a
alma, que era o deus — Dioniso, Baco —, a bacanal carnavalesca
atro ou, desnutrindo-se, até morrer em nossos dias. Os espanhóis
ainda conservam, se bem que em estado de agonia, o único resíduo de
uma festa autêntica: a corrida de touros, também em certo sentido —
que não vou desenvolver aqui — de origem dionísica, báquica,
orgiástica. Nietzsche dizia, com verdade transbordante, que “toda a
festa é paganismo”. A religião cristã, ao desquali car a vida humana
como conseqüência de se descobrir um Deus mais autêntico do que o
dos pagãos, isto é, mais radicalmente transcendente, matou para
sempre o sentido festivo da vida.

A “mania” báquica, o frenesi orgiástico, nos fazem ver o outro mundo


— um mundo em que tudo é positivo, saboroso, sorridente e, ao
mesmo tempo, terrível. A visão da outra realidade que é o mitológico,
o divino, é in nitamente atrativa, é, literalmente, a máxima
voluptuosidade, porque se o divino é o mysterium tremendum é
também o mysterium fascinans.106 Nesse outro mundo — isso é o
essencial — também o terrível tem aspecto positivo, a rmativo.
Também nele existe o mais terrível: a morte. Mas — e aí está! — Na
visão dionísica do mundo, morte e vida são indiferenciadas, porque
viver é morrer, e morrer é, por m, ressuscitar. Dioniso é o deus que
vive freneticamente, que morre despedaçado e que ressuscita
gloriosamente. E mais ainda, na corrente do misticismo dionisíaco, os
gregos chegaram a duas idéias que eles não tinham em seu próprio
patrimônio étnico: a idéia da imortalidade e a idéia — nada menos —
de que o homem é de origem divina. As duas idéias menos homéricas
que se possam imaginar.

O culto dionisíaco — o primeiro culto sensu stricto “místico” que


aparece na Grécia, vindo da Trácia — é constitutivamente visionário,
presença de outro mundo que é a verdade deste, revelação e, portanto,
fantasmagoria.

A Dioniso eram consagrados a videira e seu sumo — o vinho.


Entendamos o que signi ca clara e precisamente a expressão: “Dioniso
é o deus do vinho”. Não é que a simples e habitual realidade
intramundana “vinho” lhe seja agregada, desde fora e como algo novo
e distinto da idéia de deus, senão que o vinho gerador da embriaguez,
e com ela a exaltação, visão do futuro e sentimento de felicidade, é, por
tudo isso, desde logo e por si, quid divinum.107 Porque isso tudo, a
emoção do bêbado, suas visões e quase alucinações, sua antecipação
do porvir e sua ventura sem par são, justamente, o transmundo
superior e a vida transcendente.

Apesar que a visão dionísica do mundo tem, por um lado, o caráter


de terribilidade, o fundo da alma, predominante nas bacanais, no
festival báquico, é alegria, júbilo. Alegria é o que o pobre homem,
cansado de sentir os pesares da vida, vai buscar na próxima taberna.
Ali encontra o “método” para o conseguir. Este “método” é a
intoxicação — μἐθη — que o vinho acre propicia. Ali, prestes a
começar a beber, sente que sua onerosa vida perde peso, torna-se
ligeira, ágil, rápida, em suma, álacre. “Álacre” é a palavra latina que
origina a nossa “alegria”, que signi ca precisamente esse atributo. Por
outro lado, álacre corresponde ao mesmo vocábulo grego ἔλαφος —
élafos —, que designa as mesmas virtudes: o sem peso, ágil e rápido.
Daí que élafos signi ca o cervo. O pobre homem, que se arrastava
acabrunhado pelo grande pesar que era seu viver, sai do bar
convertido no mais ágil cervo — alegre.

A tradição mais extensa entre os antigos — Ateneu, Plutarco,


Etymologicum magnum sobre a origem da tragédia e comédia era que
ambas se originaram, em última instância comum, da μἐθη, da
intoxicação, da bebedeira da vindima inseparável do culto a Dioniso.108

A videira é, pois, a planta dionísica. Por isso, em sua caminhada


rápida pelos bosques, junto com as mênades, as loucas, que lhe
seguiam desgrenhadas, iam também os seres elementais, isso é, semi-
divinos, “demoníacos” — dáimones —, que o mito imagina metade
homens, metade bodes: os sátiros. E, por isso também, os celebrantes
de seu culto iam disfarçados de semi-bodes, formando o tropel
turbulento e insolente do coro satírico, conservado na tragédia ou —
segundo as mais velhas tradições etimológicas — canto dos bodes.109

Por outro lado, como em tantos povos muito primitivos, ainda hoje
em dia, outros éis do deus, disfarçados de bois, iam mugindo, isto é,
fazendo o ruído — foné — da boiada. São os bu-fones, os que bufam.
Não podemos dar um passo nessa religião dionísica sem tropeçar em
coisas e gente do teatro, de modo tal que são mutuamente dionisismo
e teatralidade, medula e substância.110

Agora veremos, como a coisa mais natural do mundo, brotar, desse


profundo humus dionisíaco religioso, místico, visionário,
fantasmagórico, como sua or mais a m, o teatro.

Culto, festival e orgia já estão para nós aí consubstanciados,


identi cados. Falta o momento artístico.

A arte é jogo, diversão, “como se”, farsa.


Os etnógrafos perseguem cada vez mais de perto o problema que se
lhes apresenta quando em seus “estudos sobre o terreno”111 presenciam
os cerimoniais religiosos dos povos selvagens. Porque o aspecto da
execução e a atitude dos executores e espectadores têm um estranho
caráter equívoco, muito difícil de de nir adequadamente. Com efeito,
não se sabe se o que fazem, e em que medida a sua ação implica em
crença, se é verdadeira e sincera ou é farsa. Em seu livro Homo ludens,
meu grande e admirável amigo holandês Huizinga — recentemente
falecido112 — diz o seguinte:

Apesar dessa consciência, parcialmente efetiva, da “não


autenticidade” dos acontecimentos mágicos e sobrenaturais, os
próprios pesquisadores ressaltam que não se deve concluir que todo o
sistema religioso de práticas rituais seja um engodo idealizado por
um grupo descrente para dominar os crentes. Não só muito viajantes
divulgam essa idéia como também, aqui e ali, a tradição dos próprios
aborígenes.

É importante notar que esta impressão de equívoco, experimentada


pelo etnógrafo atual, diante de quase todas as atividades rituais dos
selvagens, é idêntica à que os antigos sentiram quando, pela primeira
vez, presenciaram ou tiveram notícia da agitação típica da religião
dionísica. Prestes a introduzir-se em Roma com o nome de “bacanais”,
tornou-se um escândalo. Parecia tão estranho todo aquele
comportamento ao tranqüilo e comedido cidadão da velha tradição
romana, que chegaram a temer que se convertesse em perigo para o
Estado. E como, na época — em 186 a.C. —, o Estado ainda não era
brincadeira, o Senado interveio, abrindo-se um processo que se tornou
famosíssimo, mantendo atenta a população durante algum tempo, e
que terminou em um decreto consular proibindo o culto bacanal. Não
há o que dizer: as bacanais, apesar disso, subsistiram e acabaram por
instalar-se em Roma tão rme e dominadoramente como se
celebravam na Grécia.113

Mas como disse, diante das primeiras manifestações daquelas


theorias, daquele culto frenético, os romanos não sabiam a que se ater,
duvidando se tratava-se de uma devoção ou de uma diversão. Na
Grécia, este equívoco era o próprio valor da coisa: era devoção porque
era di-versão (saída a outro mundo, êxtase) e era di-versão porque este
outro mundo, sendo outro, era divino; portanto, sua presença era
devoção — theoria. Nesse ano de 186 a.C., ao explanar sobre a questão
no Senado, o consul Posthumus disse, entre outras coisas: “Além disso,
ignora-se de que se trata propriamente toda a atuação. Uns pensam
que se trata de uma forma de culto aos deuses, outros acreditam ser
um jogo ou farsa e ocasião de lascívia”.114

Damos agora o último e decisivo passo: Dioniso se apresentava com


uma máscara, posta ou à mão. É o deus mascarado. Era o que nos
faltava para completar a realidade teatral: a máscara, o disfarce. A
razão primeira pela qual Dioniso leva a máscara não deixa dúvida
alguma. É um caso particular de lei histórica anteriormente
formulada: o que os homens, adoradores de um deus, fazem ao adorar
recai sobre o deus, projeta-se em sua gura mística e plástica. Os que
executavam o culto de Dioniso se mascaravam.

Mas isso nos obriga a averiguar o que é a máscara, qual é a origem e


em que consiste sua realidade humana, em suma, por que no Universo
existe uma coisa que é uma máscara.

E então chegamos a este outro dado surpreendente sobre aqueles não


menos surpreendentes dos quais já falamos nesta pré-história do
teatro, a saber: que a máscara é uma das invenções mais antigas da
humanidade, como também vimos ser o caso do estupefaciente, da
dança e da pantomima.

A primeira aparição do homem, um pouco per lada, que nos chegou


— a cultura paleolítica — já nos aparece vestindo a máscara.115

Esta é, pois, irmã e coetânea do primeiro machado de sílex, de pedra


sem polimento. Recordemos o dito quase ao início deste Anexo. O
homem fez, desde logo, a experiência mais radical que na realidade de
sua vida poderia se fazer: descobrir que é uma realidade limitada pelas
circunstâncias, em todas as direções e, portanto, impotente. O homem
pode fazer algumas coisas que deseja, mas isso só enfatiza muito mais
que não pode fazer as melhores coisas desejadas. Tal experiência
produz automaticamente a imaginação de outra realidade, na qual
pode, sem limitação, alcançar tudo o que quer. No homem, a
consciência de sua própria relatividade é inseparável da consciência
postuladora do absoluto. E então se engendra nele o veemente e
equívoco afã de querer ser precisamente o que não é: o absoluto,
participar dessa outra realidade superior, conseguir trazê-la à sua
necessidade e limitação, buscar a colaboração onipotente para sua
nativa impotência.

Esta dualidade e contraste — impotência/ onipotência — acompanha


o homem ao longo da história, surgindo, em cada etapa, como gura
diversa. O per l de uma e outra varia segundo os tempos, porque
sendo a impotência uma experiência humana, deve se entender que,
como todas as experiências, o homem a esteja fazendo, portanto ela
nunca ca terminada, conclusa, mas ela se modi ca, se aprimora, se
integra. E não só porque atualmente é descoberta uma nova limitação
que passou despercebida, nem, vice-versa, porque se reti que uma
visão errônea que tivera, mas, porque o homem consegue ampliar suas
potencialidades, de sorte que atualmente lhe são possíveis coisas que
estavam na esfera do impossível. A limitação ou nitude constituída
do homem, não é qualquer coisa que traz consigo, não se parece em
nada com as demais nitudes que existem no Universo, mas tem o
paradoxal e inquieto caráter de ser uma nitude inde nida, uma
limitação ilimitável ou elástica, para a qual não é possível determinar
os ns absolutos. Ninguém pode dizer de que o homem é incapaz, em
absoluto, nem correlativamente de que será capaz. Mas cabe em cada
instante per lar a fronteira momentânea entre sua impotência real e a
onipotência imaginada. Ao dizer isto, me vem à cabeça,
inevitavelmente, o que Augusto Comte caracterizava como a condição
humana constituída por uma fatalité modi able [fatalidade
modi cável], conceito graciosamente contraditório e que,
pronunciado com uma solenidade um tanto burocrática, como ele
mesmo o devia ter pronunciado, parece cômico. Cômico, mas
verídico!116

A gura concreta da impotência, e sua contrapartida que é


onipotência, dependente em cada etapa de como funcione em seu
momento o pensamento humano, ou dito em outros termos, de qual
seja seu estado “lógico”.117 Supõe-se que o homem primitivo fosse
ilógico. Isso tem cheiro de ser uma tremenda tolice, revelada
justamente quando, como hoje em dia, a intenção de construir
verdadeiramente a lógica, e não só de esboçar um esquema dela, uma
vez que ela estava colapsando, revelou ser impossível o puro logicismo,
e revelou também o caráter utópico e desiderativo do pensamento
chamado lógico. Ao se levar em conta que somos muito menos lógicos
do que acreditamos ser, perde-se o fundamento de se fechar os
homens primitivos em uma espécie de manicômio, que era a sua
pressuposta falta de lógica. A diferença entre uns e outros está na
ordem meramente quantitativa, estabelecendo uma perfeita
continuação e homogeneidade no desenvolvimento do pensar
humano, que nunca foi, e nem será genuinamente lógico, embora
jamais lhe tenha faltado “alguma lógica”.118 É falso, pois, supor, que na
mente do primitivo, não funcionava nem atualmente funcionam — já
que o primitivo continua diante de nós — o princípio de identidade e
demais formalidades do pensamento. Mas Lévy-Bruhl não tem em
conta a advertência elemental de que o formalismo lógico não pode
funcionar in concreto, não pode engendrar pensamento efetivo, se não
se combinar com princípios ontológicos, quer dizer, com hipóteses
“materiais” que ocupem a vacuidade de seu formalismo. Não
confundamos o pensar lógico, com a lógica. Esta nos fala de conceitos
como tais e suas relações. É uma re exão antinatural sobre nossas
idéias que estabelece sua função radical, a saber: referir-se às coisas.
Nossas idéias são um falar das coisas, mas a lógica é uma falar de
nossas idéias como tais. Com isso se suspende a transitividade da idéia
e a condenamos a um narcisismo intelectual, estéril como os demais.
Deste modo, pode-se identi car o conceito, sem intervenção de
hipótese ontológica alguma. Se o conceito A e o conceito B podem ser
idênticos, é caráter que se lhes conhece na face e nada mais. Mas se a
coisa A é ou não idêntica à coisa B é questão que depende, não do
conceito de A e do conceito de B, mas do que se entende por ser. E o
que se entende por ser ou realidade efetiva é sempre uma hipótese
alheia à lógica. A história do pensamento é a narrativa de uma série de
experiências ou ensaios que o homem faz para interpretar a realidade.

Pois bem, o pensamento primitivo é o pensar primigênio ou o


primeiro pensar. Teve, pois, que fazer o primeiro ensaio e este consistia
na hipótese mais ampla e mais simples, a qual consiste em supor que
todas as coisas têm a ver, em qualquer sentido, umas com as outras,
são o mesmo. Não se trata, portanto, que o primitivo não proceda por
identi cação, exatamente como nós, mas que identi que ou considere
como idêntico, tudo o que tem a ver entre si. Por ex.: o nome de uma
coisa tem a ver, com ela. Portanto, a coisa será idêntica a seu nome ou,
dito de outro modo, o nome da coisa, será como a coisa, como esta
mesma. Uma coisa que se pareça vagamente com outra, o su ciente
para que, ao ver uma, tenhamos que representar a outra, será idêntica
a esta. Daí que a verdadeira realidade, para o primitivo, não consista
nos entes singulares e independentes que costumamos chamar de
coisas, mas em enormes conjuntos de fenômenos, onde estão
confundidas, isto é, uni cadas e identi cadas, inumeráveis “coisas”
que a nosso juízo são distintas e mutuamente estranhas. Por isso, nos
parece que o primitivo confunde as coisas. Deveríamos ter sutileza
bastante para o agradecer. Porque sem um pensar primeiro, que
tomasse sobre si a tarefa de con-fundir as coisas, reunindo-as em
primárias e amplíssimas identi cações, os homens pósteros não
poderiam, entre os quais nós, apontar diferenças mais perspicazes e
vigorosas. Não se nota que a confusão tem um sentido positivo; é uma
ação mental. As coisas por si nem estão confundidas nem deixam de
estar. Confundir uma com outra é uma maneira de as captar
intelectualmente, quer dizer, de pensá-las. O pensar primigênio é
positivo, constitutivo e afortunadamente um “pensar confuso”. Seu
resultado — a idéia que produz — não é abstrato nem concreto
propriamente, senão algo que deveríamos chamar de “sincrético” ou
“con-fundente”. Essas grandes convoluções de identi cação em que,
pari passu e como se nada acontecesse, passando de uma coisa a uma
espécie de enormes galáxias mentais, para nós, mais distantes,
constituem o mundo mágico em que o primitivo vive, age e existe. São
os “sincréticos” ou as confusões veneráveis sobre as quais se praticam
todas as distinções posteriores. Entre tudo o que tem a ver entre si,
escolhemos e separamos aqueles fenômenos que nos parecem mais
decisivamente conexos, e criamos novas identi cações mais densas,
que julgamos “mais reais”, desdenhando como vagas e inoperantes, as
tênues concomitâncias que bastavam à “ontologia” primigênia. Mas,
contristemos a nossa vaidade: a constatação de identidades,
aparentemente rigorosa, em que consiste a nossa ciência, não é, em
última análise, nada mais que sínteses progressivas do princípio
primigênio que é a identi cação do que isso tem a ver com aquilo.

Nada obsta citar, como Bergson contra Lévy-Bruhl, o exemplo de que


l’homme est un roseau pensant.119 É muito mais forte este: eu sou João,
o que Lévy pode dizer sobre si — quer dizer, eu sou um nome. Não é a
“participação”, mas o “ter a ver”. Tudo o que tem a ver é um. No m
das contas a lógica aristotélica não impede o “Sócrates é ateniense” e
“Sócrates é lósofo”. De tal modo é assim que — frente ao eleatismo —
motivou, para não “cair em contradição”, a distinção entre o ser
substancial e o acidental, como se esta “reserva ontológica” anulasse a
contradição “lógica”. Bem, mas, Meyerson — Cheminement, 83, 84 —,
como também Bergson, comete o erro de que somos lógicos,
formulando, na p. 84: “En somme, la forme de ses jugements ne nous a
frappés que parce que nous n’étions pas d’accord avec leur contenu”.120

Não é senão expressar o mesmo de outra maneira, dizer que o


homem passa a vida querendo ser outro. Mas o texto da conferência,
me fez ver que a única maneira possível de que uma coisa seja outra é
a metáfora — o “ser como” ou quase-ser. O que nos revela,
inesperadamente, que o homem tem um Destino metafórico, que o
homem é a metáfora existencial.

Eu disse que a experiência radical do homem é a descoberta de sua


própria limitação, da incongruência entre o que quer, e o que pode.
Sobre essa experiência radical, como sobre uma área ou solo, estão
inúmeras outras. Viver é estar constantemente fazendo novas
experiências. No entanto, todas as inúmeras experiências, diante da
mais radical, podemos chamar de “segundas”, e são meras
modi cações e variantes de algumas, que podemos reduzir, podendo
ser denominadas “experiências categoriais”. Entre estas, uma das mais
importantes é a experiência da morte, entenda-se, da alheia, porque a
própria não é experiência. A doutrina que alguns chamam de
“existencialismo”, atualmente na moda, com um atraso de vinte anos,121
ao fazer da idéia da própria morte o fundamento de toda a loso a,
deveria ter contado mais substantivamente com a condição de que só
existem duas coisas que a vida, que sempre diz respeito a cada um,
absolutamente não pode ser, que não são, pois, possibilidades de
minha vida, que em nenhum caso me podem acontecer. Essas duas
coisas alheias à minha vida são: o nascimento e a morte. Meu
nascimento é um conto, um mito que outro me conta, mas a que não
me é dado assistir e que é prévio à realidade a que chamo vida.
Enquanto a minha morte é um conto que nem sequer podem me
contar. Daí resulta que essa estranhíssima realidade, que é a minha
vida, seja caracterizada por ser limitada, nita e, no entanto, por não
ter nem princípio nem m. Assim é, a meu juízo, como se deve propor
o problema de minha própria morte e não como propõe o
melodramático Sr. Heidegger.122

Por ora, tratemos de uma efetiva e categorial experiência feita pelo


homem: a morte do próximo.

ANEXO II

O século
Começo rechaçado da conferência em
Lisboa
O século quis que eu inaugurasse esta série de conferências
dedicadas à história do teatro, com uma em que eu pretendesse
esclarecer o que é o teatro. Mas antes de adentrar no tema, pretendo
começar com um parêntese que nada tem a ver com ele. Permitam-no.
Surge-me como uma anedota. É esta:

Os senhores de O século sabem o que signi ca O século? Não é que,


pedantemente, eu me converta em um magister [mestre] examinador
que trate de examinar os senhores de O século sobre o título de seu
periódico! O tom de pergunta que fez minhas palavras, não pretende
ser mais que um estimulante de sua curiosidade, porque, com efeito, O
século é uma das idéias mais estupendas, mais profundas que os
homens têm acerca de sua própria condição, embora seja uma idéia
menos conhecida do que deveria.

O século, o século, quem não sabe? É uma unidade de medida


temporal: são cem anos. Signi ca, pois, uma quantidade de tempo e a
medida dessa quantidade. Para nós, agora, esta quantidade está muito
precisamente determinada, medida: medem-na com rigor os relógios,
sobretudo os relógios dos observatórios astronômicos — que por isso,
por medirem o tempo, chamam-se cronô-metros.

O tempo tem três dimensões, diríamos, três lados: é o tempo presente


— o agora, o hoje —, que tem às costas o passado, o ontem, e tem à sua
frente, o futuro, o amanhã. À mercê disso, o tempo é um poder,
portanto, generoso e criminoso. Instalados no presente, no agora,
sabemos que o tempo deve suscitar amanhã coisas que agora não são
ainda, deve lhes dar vida, existência, realidade. Já está aí, nessa
misteriosa câmara do futuro, preparando, germinando, fermentando,
como despertando, espreguiçando-se do in nito sono que é o nada,
coisas para nossa nação, para nossa família e nossos amigos, para nós
mesmos — coisas que ainda agora não são, senão que serão amanhã. O
tempo é criador, e por isso é generoso. Generoso, em sua etimologia
signi ca, o que engendra.

Dessa câmara mágica, que é o futuro das coisas, atravessa para o


presente, para o agora, a este instante em que estamos. O presente não
é uma câmara, não é um âmbito — é, digo, um instante, é, pois, um
ponto imperceptível que é a existência, a realidade das coisas e de
nossa vida. Mas enquanto falo disso, esse presente, essa hora
instantânea em que estávamos, já é passado — e se fez de nitivamente
passado, pretérito. As coisas futuras que conseguiram existir a uns
instantes, já deixaram de ser. Nós mesmos já somos em grande parte
outros, distintos do que éramos, há alguns minutos, e tinha grande
razão o imenso Descartes, quando sustinha que Deus não só cria o
homem quando este nasce, mas também tem que o recriar de novo em
cada instante para que continue sendo; de outro modo, o tempo nos
arrastaria ao passado de nitivo, ao que já não é. O tempo é terrível,
senhores: cria as coisas, lhe dá ser e, por isso, é generoso, embora em
seguida as mate, as assassine, e por isso é criminoso.

Mas como vocês podem ver, não podemos falar do tempo, sem nos
referir ao que se faz com as coisas: ele as cria, as aniquila, as transporta
do futuro ao presente e do presente ao passado; isto é, as faz passar.
Com efeito, o tempo não seria tempo sem as coisas. Tentem imaginar
que não houvesse mais tempo, que não houvesse coisas. Então estaria
aí o tempo todo e inteiro – com todo o futuro e todo o passado —,
digo que estaria aí já ele todo, quero dizer, que não passaria, que não
seria tempo. Neste instante existiria todo o pretérito e todo o futuro —
não haveria, com rigor, diferença entre pretérito e futuro, senão que
todo o in nito tempo seria um presente. Imaginem que este instante
de nossa vida se dilatasse como um elástico, se distendesse e abarcasse
tudo o que foi e o que será, todo o in nito passado e todo o in nito
futuro de modo que o tempo inteiro estivesse aqui, presente, agora.
Então o tempo estaria quieto, o rio se haveria congelado — não
passaria. Por isso mesmo, esse tempo sem coisa, esse tempo solitário
não seria tempo, senão ao contrário —, porque existir de modo que se
esteja vivendo no presente, e ao mesmo tempo, viva-se todo o passado
e todo o futuro, é precisamente o que se chama de eternidade.
Recordem-se da maravilhosa de nição de Boécio: a eternidade, disse,
é interminabilis vitae tota simul et perfecta possessio — “a posse
perfeita de uma vida interminável e simultânea”. Deus é assim, eterno,
e por isso, eterno no Tempo, no sentido de que não tem nada a ver
com o tempo.

Mas agora façam um terceiro e último esforço de imaginação, não


vou exigir-lhes nada mais. Imaginem um ser que tem a ver com o
tempo, que é temporal, como nós o somos, que dura, mas é imortal.
Certamente para esse ser o tempo passa, como para nós, mas como
supomos que ele é imortal, nunca lhe acabará de passar. Este ser tem
tempo, tem um tempo in nito. Não é eterno como Deus, que não tem
nada a ver com o tempo — mas é sempiterno, porque tem à sua
disposição a in nitude do tempo. Tem, como nós, um hoje, um ontem
e um amanhã — mas como tem além disso in nitos hojes, in nitos
ontens e in nitos amanhãs, para ele tanto faz um como outro. O que
lhe importa? Se hoje não pode fazer uma coisa, dá na mesma, porque
um dia ele a fará, entre os in nitos dias que tem à sua disposição. A
um ser assim, tudo lhe parecerá indiferente. O que lhe importará não
acertar hoje em uma coisa, se sabe que tem in nitos dias para reti car
seu erro? Tanto faz, pois, acertar como errar. E além disso, por que ele
vai se interessar hoje, precisamente hoje, por algo? De mesma forma,
ele poderá se interessar por isso dentro de dez séculos, não é verdade?
A este ser imortal, portanto, ainda que seja temporal, ainda que dure, o
tempo lhe é indiferente — não o afeta —, tudo lhe é indiferente e o
poeta romântico123 dirá:

Yo nada espero, ni dolor ni risa.


Eu nada espero, nem sorrir nem dor.

Eis um surpreendente, embora ineludível paradoxo: que um ser


imortal tenha tanto tempo que pode impunemente perdê-lo e, por isso
mesmo, é como se não o tivesse e é como se não fosse temporal. Pelo
visto, o mais essencial do Tempo consiste em ser algo que se pode
perder, que se pode gastar em vão, ou vice-versa; Tempo é algo que é
preciso aproveitar. Para isso, é necessário um ser que tenha Tempo,
mas que tenha pouco e ao ter pouco, não possa perdê-lo e tenha que
aproveitá-lo. Este ser, senhores, é o homem e o tempo que tem é a
duração normal de sua existência que é o que chamamos de “nossa
vida”.

Vimos, pois, que o tempo, para ser o que passa, necessita de coisas, de
coisas que por ele passem, de coisas que primeiro são futuras, que logo
sejam presentes e que, ao m, se tornam pretéritas. Mas isto equivale a
dizer que para poder passar, é mister que o tempo passe para alguém
— para coisas e entre elas, sobretudo, para nós, os homens. Este passar
para algo e para alguém um certo tempo, é durar.

“Vida humana” é, pois, uma certa duração normal da pessoa — um


certo tempo que lhe é concedido e que é sempre escasso. Falta à nossa
vida sempre tempo — por isso, essencialmente, a vida é... pressa,
pressa. Deixamos de lado — porque afortunadamente não interessa
para a viagem que fazemos agora, ainda que seja fundamentalíssima —
a terrível questão de que esse tempo normal de existir nos é concedido,
mas não é garantido como um automóvel que compramos. Estamos
certos de que, no melhor dos casos, não podemos viver mais do que
entre noventa e cento e poucos anos. Ao contrário, não estamos certos
de que não vamos deixar de viver, de que não podemos morrer a
qualquer instante, por exemplo, neste momento que virá. Morrer? O
que é morrer? O que é deixar de ser? Não o entendemos bem e não o
iremos averiguar. O certo é que se trata de algo terrível, que aconselha
que não se toque nisso, mas se aludido, que seja mediante eufemismos.
Já sabem como as notícias dos falecimentos são dadas nos periódicos
da Colômbia. Diz-se: Ontem, o Sr. Coriolano Pérez “se tornou
indiferente”. Diríamos, pois, que em qualquer instante o homem pode
car indiferente. Mas repito que, por fortuna, esta abissal questão não
interessa ao meu tema.

O que sim interessa é que o homem sabe que sua vida dura só um
tempo determinado — o qual, para tanto, compõe-se de partes
insubstituíveis, irreparáveis. Ao contrário daquele ser imortal, para o
homem, cada dia é único — é um dia de certos determinados dias, que
estão à sua disposição; se o perde, se não o aproveita bem, é uma perda
absoluta. Tem que o aproveitar, isto é, tem que acertar o que fazer a
cada dia, e para acertar tem que se esforçar a m de estar na certeza —
o que dá no mesmo, tem que estar na verdade. E aí vocês têm de se
preocupar em descobrir que a verdade não é uma curiosidade de
alguns senhores a quem chamam de “homens de ciência”, nem de
outros, mais importantes ainda, a quem chamam de “intelectuais”, mas
que a verdade é algo de que o homem necessita, inexoravelmente,
porque necessita acertar para não perder o pouco de tempo que lhe
resta. Daí que, antes de tudo, para não o perder, é-lhe forçoso ter
claramente em vista esse tempo que lhe é concedido e jogar uma dupla
partida do que já gastou e o que ainda permanece, e para isso tem que
o contabilizar. Como temos as horas contadas, temos que as contar, e
para contar o tempo, temos que o medir e para medi-lo, temos que
buscar a unidade de medida.

Suponho que façam um bom emprego do que seja uma unidade de


medida. É uma coisa real — por exemplo, uma vara de metal, que se
aplica às demais e se vê quantas vezes contém a longitude dessa vara.
Essa vara de metal é o metro. Para que os metros existentes em todo o
mundo não variem de tamanho, conserva-se cuidadosamente no
Bureau de Poids et Mesures de Paris um metro modelo ou arquetípico
que é uma espécie de Deus moderno, o Deus do sistema métrico
decimal, mas antes de escolher o metro metálico como unidade de
medida para as magnitudes corpóreas, o homem, durante milênios,
buscou, como unidade de medida dos demais corpos, o que tem mais
a mão, que é seu próprio corpo; daí todas as unidades de medida
tradicionais: o côvado, a polegada, tanto ou quantos dedos, palmo,
braçada, o pé, o passo.

Introdução da conferência em Madrid


Não há razão para excepcionais alaridos. O Ateneu de Madrid, que
volta a seu antigo nome, como o falcão retorna ao punho, quis
inaugurar esta nova etapa, falando a vocês de algo. Há muitos e muitos
anos, talvez um quarto de século, que eu não falava nesta casa onde
falei, ou melhor dizendo, balbuciei pela primeira vez e faz também
sobejados anos que ando errante fora da Espanha, tantos anos que
quando parti, poderia com certos laivos de certeza crer que ainda
conservava algo remanescente de minha juventude e, agora, quando
retorno, já volto velho. Toda uma geração de meninos nem me viram,
nem me ouviram e este encontro é para mim tão problemático, como
só pode aspirar aquele que, depois de me ver e ouvir, sinta o desejo de
repetir, guardadas as distâncias, os versos do velho romance que as
gentes cantavam ao Cid — por isso eu pedia uma ampla ressalva de
distâncias — quando este, depois de longos anos de expatriação em
Valência, terra de mouros à altura, tornou a entrar em Castilha, e que
começam assim:

Viejo que venis, el Cid,


viejo venis y orido...

Velho é que vens, Cid,


velho vens e orido...

Este paralelismo único, semi-discreto, entre a belicosa pessoa do Cid


e a minha, tão pací ca — notem que isso signi ca fazedor de paz —,
paralelismo que consiste em uma inquestionável velhice e em uma
eventual re orescência, é uma audácia deliberada, que me permite
desde logo — e como dizemos em tauromaquia, a “porta gaiola”, que é
uma manobra portuguesa arriscada — a m de que sua força de
caricatura simbolize veementemente o imperativo de continuidade, de
continuação, que a todos deve reunir. Continuar não é permanecer no
passado, nem sequer estancar no presente, senão mobilizar-se, ir mais
além, inovar, ainda que renunciando a erguer-se e saltar, e a partir do
nada, ainda melhor, ncar os talões no passado, desapegar-se do
presente e, pari passu, um pé atrás do outro, pôr-se em marcha,
caminhar, avançar. A continuidade é o fecundo contubérnio ou, se
quiserem, a coabitação do passado com o futuro e é a única maneira
e caz de não ser reacionário. O homem é continuidade e quando
descontínuo, na medida em que é descontínuo, deixa de ser
transitoriamente homem, renuncia a ser a si mesmo e se torna outro
— alter —, é que está alterado, que no país houve alterações. Convém,
pois, pôr um termo radical nisso, e que se torne homem por si mesmo
ou, como costumam dizer, com um estupendo vocabulário, que só
nosso idioma possui, que deixe de alterar-se e consiga ensimesmar-se.

Pelo menos desta vez, depois de enormes angústias e desgostos, a


Espanha tem sorte. Apesar de certas miúdas aparências, e breves
nuvens escuras, que não passam de anedotas meteorológicas, o
horizonte histórico espanhol está desanuviado. Bem entendido: esse
histórico horizonte, que é agora, mais do que nunca, o horizonte
universal, é superlativamente problemático — mas isso só signi ca que
está repleto de tarefas, de coisas a fazer e que não sabe o que fazer.
Enquanto os demais povos, que de nem a época em vista destas
tarefas universais, estão doentes — poderiam muito bem diagnosticar
a enfermidade de cada um —, o nosso, pleno sem dúvida de defeitos e
péssimos hábitos, sai desta etapa turva e turbulenta época, com uma
surpreendente, e quase indecente, saúde. As causas disso, se se quer
evitar os néscios lugares-comuns e enunciar a verdade nua, poderia
precisar com todo o rigor, embora não devam ser ditas agora. Pois
bem, essa inesperada saúde histórica — digo histórica, não política —,
essa inesperada saúde com que nos encontramos, a perderemos
novamente se não a cuidarmos — e para isso é mister que estejamos
alertas e que todos, notem a generalidade do vocábulo, notem o termo
generalíssimo, todos, tenhamos a alegria e a vontade e a justiça, tanto
legal como social, de criar uma nova gura da Espanha, apta para
internar-se salutarmente nas contingências do mais imprevisto porvir.
Para isso, é mister que todos apoiemos um pouco as cabeças,124
agucemos os sentidos, para inventar novas formas de vida, onde o
passado desemboque no futuro, que afrontemos os enormes,
novíssimos, inauditos problemas que o homem tem agora diante de si,
com agilidade, com perspicácia, com originalidade, com graça — em
suma, com aquilo sem o qual nem se pode lutar, nem se pode fazer de
verdade a história, a saber, com garbo.

Mas eu não vim aqui hoje para dissertar sobre tão graves temas, mas
simplesmente para satisfazer o desejo que este Ateneu tem de
inauguração do retorno da sua normalidade. Haveria, para tal, uma
di culdade. Estou empenhado em longos e fortes trabalhos que
reclamam toda a minha atenção. Vim, precisamente, para descansar
alguns dias da dura faina em que ando enredado. Nesta situação, a
única coisa que posso fazer é insistir, dando-lhe outra forma, sobre o
tema de que, por acaso, tratei recentemente em uma conferência dada
em Lisboa — onde me propuseram responder à pergunta: “O que é o
teatro?”. É o que lhes ofereço. É um tema demasiado enviesado na
melhor tradição desta casa que sempre procurou ocupar-se com
assuntos aparentemente supér uos, até o ponto de que, inclusive ao se
falar aqui de política — que era com extrema freqüência — o espírito
da casa, o genius loci, conseguia fazer dela o que a política devia ser,
mas desgraçadamente não pode ser, a saber: a grande super uidade.
Mas sobre isso, sobre o que é a política, não só o que é a boa política,
diante da má, ou a má em relação à boa, senão em absoluto, o que, boa
ou má, a política é e, porque existe no Universo tão estranha coisa
como ela — questão que, ainda que parece mentira, nenhum pensador
enfrentou a fundo, a sério e por direito —, temos que falar jovens, e
muito! Não agora — mais adiante —, não sei bem quando — um dia
desses. Mas, vamos falar, jovens, longa e energicamente, porque temos
que ver nossas caras — nem é preciso falar disso —, a minha velha, e a
de vocês jovens.

Mas agora vamos falar do teatro, tema que nos permite da maneira
mais natural e como disse no começo, despojados de temores, recobrar
a continuidade. Continuemos.

Que é a coisa teatro?


N  R
1 “Não creia dona Berta e sor Marino...”, na tradução de Vasco Graça Moura. In Dante
Alighieri, A divina comédia. São Paulo, sp: Landmark, 2011, p. 711. — nt

2 Cf. Musicalia em O Espectador, tomo iii.

3 Disputa entre escritores franceses, entre os quais Gérard de Nerval e éophile Gautier,
Charles Nodier e Sainte-Beuve, durante a encenação da peça Hernani, de Victor Hugo, em
1830. — nt

4 Por exemplo, na Idade Média. Correspondendo à estrutura binária da sociedade, dividida


em duas castas: os nobres e os plebeus, existiu uma arte nobre que era “convencional”,
“idealista”, isto é, artística, e uma arte popular, que era realista e satírica.

5 “Se queres que eu chore, demonstra primeiramente a própria dor”. Horácio, Arte poética,
vv. 102, 103. — nt

6 Dos bastidores. — nt

7 Os bodegones são do mesmo gênero pictórico da natureza-morta, vanitas etc., retratando


restos de banquete da Espanha do século xvii. — nt

8 As maçãs do rosto. — nt

9 Leopoldo Alas “Clarín” (Zamora, 25 de abril de 1852 — Oviedo, 13 de junho de 1901) foi
um escritor e jurista espanhol, ligado ao movimento realista e naturalista. Foi professor na
Universidade de Zaragoza e na Universidade de Oviedo, além de crítico literário. — nt

10 Esta nova sensibilidade não se dá só nos criadores de arte, mas também em gente que é
apenas público. Quando eu disse que a nova arte é uma arte para artistas, entendia por tais, não
só os que produzem esta arte, mas ainda os que têm capacidade de perceber valores puramente
artísticos.

11 Cf. Miguel de Cervantes, Dom Quixote, partes ii e iii. Orbaneja, pintor de Ubeda,
precisava escrever “em letras góticas” os nomes dos objetos representados. — nt

12 Mona Lisa del Giocondo (1503), famosa pintura de Leonardo da Vinci. — nt

13 O “ultraísmo” é um dos nomes mais certos que se tem forjado para denominar a nova
sensibilidade. [“A primeira vanguarda literária espanhola em língua castelhana surgiu entre
1918 e 1925, em redor do conceito de ultraísmo, rótulo em volta do qual se albergaria um
movimento literário cujo fundador principal seria Rafael Cansinos-Assens (Sevilha, 1883 —
Madrid, 1964) e que teria como principal animador Guillermo de Torre (Madrid, 1900 —
Buenos Aires, 1971)”. In E-Dicionário de termos literários de Carlos Ceia. Disponível em
https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/ultraismo/. Acesso em 10/12/2020. — nt]

14 Fez-se um ensaio neste sentido extremo (certas obras de Picasso), mas com exemplar
fracasso.

15 É o que faz a burla dadaísta. Pode-se notar (cf. a nota anterior) como as mesmas
extravagâncias e pretensões falidas da nova arte derivam com certa lógica de seu princípio
orgânico, o qual demonstra ex abundantia que se trata, com efeito, de um movimento unitário e
pleno de sentido.

16 Este é, propriamente, um dos tópicos da modernidade. Cf. os poemas Ullysses de


Tennyson, Segunda Odisséia de Cavá s, Odisséia: um seguimento moderno de Kazantzákis e
Finismundo de Haroldo de Campos. — nt

17 Onde se grita não há verdadeira ciência. — nt

18 Paráfrase: Sedulo curavi, humanas actiones non ridere, non lugere, neque detestari, sed
intelligere. [Trabalho com cuidado, não para ridicularizar, lamentar ou detestar, mas para
compreender as ações humanas]. Spinoza. Ética, iii. — nt

19 Cf. S. Mallarmé, Divagações. Florianópolis, sc: Editora ufsc, 2010. — nt

20 Causa e motivo são, pois, dois nexos completamente distintos. As causas de nossos
estados de consciência não existem para estes: é preciso que a ciência as veri que. Em troca, o
motivo de um sentimento, de uma volição, de uma crença, faz parte disso, é um nexo
consciente.

21 Cf. nota 12. — nt

22 Uma análise mais detida do que Debussy representa na música romântica pode ser vista
em meu ensaio Musicalia, coligido em O Espectador [...].

23 Refere-se, possivelmente, ao poeta inglês Samuel Taylor Coleridge (1772–1834), que


compôs o famoso poema Kubla Khan sob o efeito do ópio. “Coleridge nunca parou de escrever
grandes e belos poemas pela vida afora; o que aconteceu foi que, viciado em ópio desde os
trinta anos, seus períodos de criatividade foram cando cada vez mais curtos e intermitentes à
medida que envelhecia — o que o obrigou, digamos, a mudar de foco e de método e de
elocução, produzindo uma poesia altamente pessoal (e, acrescente--se, moderníssima), que
explora o âmago da existência, os impasses da vida e da criação e, last but not least, a
dependência química”. In Érico Nogueira. Limbo, de Coleridge. Disponível em:
https://escamandro.wordpress.com/2019/03/20/limbo-de-coleridge-por-erico-nogueira/.
Acesso em 11 de dezembro de 2020. — nt

24 Op. cit., 2010. — nt

25 Algo mais sobre a metáfora pode ser visto no ensaio As duas grandes metáforas,
publicado em O Espectador, tomo iv, 1925 [...], e no Ensaio de estética à guisa de prólogo [...].

26 Cf. Heinz Wener: Die Ursprünge der Metapher, 1919.


27 Latim: coisa. — nt

28 Seria entediante repetir, em cada uma destas páginas, que cada um dos traços
sublinhados por mim como essenciais à nova arte deva ser entendido no sentido de propensões
predominantes, e não de atribuições absolutas.

29 Há que fugir de todos os corpos. — nt

30 Cf. meu livro O tema de nosso tempo [...].

31 “É a época [aos vinte anos] do primeiro encontro com a mulata Jeanne Duval, a Vênus
negra, gurante malograda de uma medíocre féerie levada à cena no éâtre du Panthéon. A
ela Baudelaire se unirá por quase toda a sua vida: Comme le forçat à la chaîne, (“Como uma
galé a seu grilhão”, trad. Mário Laranjeira) numa turbulenta e voluptuosa paixão; para ela serão
escritos alguns dos mais belos e comovidos poemas de que já teve notícia a literatura de língua
francesa”. Ivan Junqueira: “A arte de Baudelaire, 1”, in. C. Baudelaire, As ores do mal. Trad.
Ivan Junqueira. Rio de Janeiro, rj: Nova Fronteira, 2012. — nt

32 Seria interessante analisar os mecanismos psicológicos através dos quais a arte de outrora
in ui negativamente na posterior. Por ora, algo está claro: a fadiga. A mera repetição de um
estilo embota e cansa a sensibilidade. Wölffin mostrou em seus Conceitos fundamentais na
história da arte o poder que a fadiga tem, vez ou outra, para movimentar a arte, obrigando-a a
transformar-se. Mais ainda na literatura. Todavia, Cícero, por falar latim, dizia latine loqui; mas
no século v, Sidônio Apolinar vai dizer latialiter insusurrare. Eram demasiados séculos para
dizer o mesmo da mesma forma.

33 No periódico O sol. Logo, tem-se contestado minhas notas com um prólogo teórico
anteposto ao romance A nau dos loucos. [No Prólogo casi doctrinal sobre la novela, que el
lector sencillo puede saltar impunemente, de La nave de los locos (1925), Pío Baroja defende
sua teoria romanesca das críticas de Ortega y Gasset. A barca dos imbecis é uma sátira moral,
publicada em alto-alemão, como Das Narrenschiff, traduzida para o latim como Stultifera
Navis, de 1494, escrita por Sebastião Brand. Além de Baroja, a obra in uenciou, entre outros, O
elogio da loucura, de Erasmo de Roterdam, Rabelais, Cipolla e Foucault. — nt]

34 Benedetto Croce (1866–1952) foi um dos intelectuais mais in uentes de seu tempo. É
autor de Breviário de estética (1912), A poesia (1936), entre outros. — nt

35 Emilia Pardo Bazán (1851–1921), aristocrata, introdutora do realismo literário espanhol.


— nt

36 Médico, lósofo e psicólogo, Wilhelm Maximilian Wundt (1832–1920), fundador da


psicologia experimental, publicou, entre outros, A fundamentação da psicologia cientí ca, com
tradução em português. — nt

37 Crítico de arte, Konrad Fiedler (1841–1895) foi um dos criadores da “Teoria da pura
visualidade” (Sichtbarkeit). — nt

38 Cf. o ensaio de Américo Castro à frente de um tomo de Tirso nos admiráveis Clássicos
castelhanos de A leitura.
39 Lope de Vega (1562–1635) e Calderón de La Barca (1600–1681). — nt

40 Cf. a obra-prima As meninas (1656) de Diego Velázquez (1599–1660). — nt

41 “Não se deseja o que não se conhece”, Ovídio, Arte de amar, 3, 397. Dicionário infopédia
de locuções latinas e expressões estrangeiras. Porto: Porto Editora, 2003/2020. Disponível em:
https://www.infopedia.pt/ dicionarios/locucoes-expressoes/ignoti nulla cupido. Acesso em 14
dez 2020. — nt

42 Cf. no tomo das Obras completas.

43 “Em iguais circunstâncias”, op. cit. — nt

44 Esta a rmação estética do cotidiano e a exclusão rigorosa de todo o maravilhoso são as


notas mais essenciais que de nem o gênero “romance” no sentido desta palavra tão importante
ao presente ensaio. É de se esperar que o leitor não se renda ao equívoco acidental da
linguagem, que usa o mesmo nome para denominar o livro de cavalaria e seu oposto o Quixote.
Com rigor, para falar das condições do romance, no sentido mais atual do tempo, bastaria
re etir sobre como pode estar constituída uma produção épica que elimine formalmente todo o
extraordinário e maravilhoso.

45 Atualmente, Bioko ou Bioco, é a ilha principal da Guiné Equatorial. — nt

46 Refere-se ao romance A cartuxa de Parma, de Stendhal, publicado em 1839. — nt

47 Refere-se ao Batistério de São João, em Florença, Itália, cuja arte foi composta
prodigiosamente por Lorenzo Ghiberti (1378–1455). — nt

48 Refere-se à Divina comédia de Dante Alighieri, publicada em 1472. — nt

49 Sobre esta questão na história, veja-se meu recente livro As atlântidas [...].

50 Cf. Una fábula (1580) de El Greco (1541–1614). — nt

51 Poeta e romancista francês, Pierre Loÿss (1870– 1925) publicou, entre outros, Canções de
Bilitis (1894), uma das mais famosas fraudes literárias da história. — nt

52 O colosso (1808–1812), atribuída a Goya (1746– 1828). — nt

53 Chamisso, Adelbert, A história maravilhosa de Peter Schlemihl. São Paulo: Estação


liberdade, 2003. — nt

54 Op. cit. — nt

55 Melocotão é a expressão coloquial com que as mulheres portuguesas designam o homem


que é bom moço. Ortega y Gasset cria uma paronomásia com o termo coloquial português e o
nome do célebre homem, gura de linguagem que procuramos reproduzir. — nt

56 Paisagem com ruínas (1642) de Nicolas Poussin (1594–1665), e Capriccio com ruínas do
Fórum Romano (1634) de Claude Lorrain (1600–1682). — nt
57 Refere-se aos vinhos portugueses. — nt

58 Ralph Waldo Emerson (1803–1882), poeta e pensador norte-americano. — nt

59 Ortega y Gasset parece reforçar o conceito de latência e verdade, através de uma


paronomásia entre conchinha e o nome próprio: Conchita, gura que procuramos reproduzir.
— nt

60 Eleonora Duse (1858–1924), atriz italiana. — nt

61 A rebelião das massas, publicada em forma de artigos desde 1927, e Espanha


invertebrada, 1921.

62 Feira da Ladra.

63 A famosa dialética de Hegel é, em verdade, miserável. Nela o “movimento do conceito”


procede mecanicamente de contradição em contradição, quer dizer, o pensamento move-se por
um cego formalismo lógico. O “pensar dialético” que emprego como método intelectual e ao
qual o texto se refere, é movimentado por uma dialética real, em que a própria coisa é quem
empurra o pensamento, obrigando-o a coincidir com ela. Em que consiste, como é possível e
por que é necessário este novo “método”, são matérias que o leitor achará expostas brevemente
em meu próximo livro a publicar-se: A origem da loso a e plenamente desenvolvidas em
outra obra, Epílogo..., que espero venha à luz ao m deste ano”. [Ortega y Gasset refere-se ao
romance picaresco anônimo A vida de Lazarilho de Tormes, do século xvi. — nt]

64 Café de tertúlias literárias em Lisboa.

65 Refere-se ao tratado de normas retóricas e poéticas. — nt

66 Corredores sem saída do bairro mais popular de Lisboa onde, por certo, valeria a pena
ouvir um fado da genial e belíssima fadista Amália Rodrigues.

67 Hamlet, de Shakespeare. — nt

68 Há uma canção folclórica e teológica americana que trata da mesma expressão: “Down in
the River to Pray”. A água pode representar tanto o nascimento (pelo batismo) como a morte.
Aí Jesus Cristo caminhando sobre as águas simboliza também a superação da morte.
Mantivemos, por isso, a preposição “em”, indicando a imersão simbólica. Cf. o lme O Brother,
Where Art ou? (E aí, meu irmão, cadê você? na versão brasileira), de 2000, dirigido por Joel e
Ethen Coen. — nt

69 Filha da ilustre e pioneira atriz do teatro Dona Maria, Sra. Amélia Rey Colaço de Robles
Monteiro. Marianinha estava para ensaiar essa cena poucos dias antes do fechamento em que
esta conferência foi pronunciada. — nt

70 Ortega y Gasset parece brincar com o pseudônimo da musa de Boccaccio, autor de


Decamerão, cujo nome verdadeiro talvez tenha sido “Maria de Aquino”. — nt

71 H. G. Wells, O homem que fazia milagres. Editora: Ediouro, 1968. — nt


72 Cf. o mito do Rei Midas, que convertia tudo o que tocava em ouro. — nt

73 O retábulo do mestre Pedro, in. Meditações do Quixote, 1914.

74 No original, “¡Zeñó Míquez o zeñó Máiquez, que aquí no ze muere de mentirijilla como
en er teatro!” que parece combinar trocadilho e sotaque para produzir o efeito humorístico
referido pelo autor. — nt

75 Cf. o Anexo i, Máscaras.

76 Corrida campestre. — nt

77 Repito aqui com umas e outras variantes, as fórmulas que tantas vezes usei para de nir —
isto é, para fazer ver — o fenômeno radical em que a vida humana consiste. Estas expressões
não são ocorrências verbais; são termos técnicos, com aparência de vulgares, habituais na
linguagem coloquial. Que isso seja assim, ter que recorrer aos termos cotidianos, e não existir
na história inteira da loso a uma terminologia adequada para falar formalmente do fenômeno
vital, não é tampouco casualidade, ainda que seja uma vergonha para o passado losó co. Mas
o que seria frívolo é querer variar, em cada exposição desta doutrina fundamental, as
expressões, como se se tratasse meramente de expressar guras retóricas.

78 Charles Baudelaire, Pequenos poemas em prosa. Anywhere out of the World: “Em
qualquer lugar do mundo”. — nt

79 O outro mundo da religião não seria o caso, porque para ir até ele seria preciso antes de
tudo morrer e aqui se trata de transmigrar em vida.

80 Cf. “Prólogo a um livro de casa”, no volume Dos prólogos, 194[4].

81 Leis, [803, 4].

82 Outra terceira linha de inspiração religiosa, que melhor pode denominar-se para-
religiosa, é a que encontra a sua forma mais perfeita no budismo.

83 Mazdeus: indica a origem remota do maniqueísmo no antigo Irã. — nt

84 A. E. Haigh, e Attic eatre. Terceira edição revisada por A. W. Pickard-Cambridge,


1907, pp. 1–2.

85 Há vinte anos que nos falava o Dilthey: Das Leben ist eben mehrseitig. — A vida é
precisamente multilateral.

86 Lévy-Bruhl.

87 Wilson D. Wallis, Religião em sociedade primitiva, p. 174.

88 Ao m desta etapa, a digestão dessa primeira desilusão termina no descobrimento de que,


além do que é (o real), existe “o que se crê”, “o que parece ser” e o “como se”.

89 Ibid., p. 120.
90 Sobre o que são os estupefacientes, aliás, o “invento” mais antigo da humanidade, veja-se
meu Comentário ao banquete de Platão.

91 Um estudo mais detalhado da religião dionisíaca pode ser encontrado no supracitado


Comentário.

92 Poderá causar um pouco, e talvez, muita surpresa que Homero seja quali cado como
amaneirado. Mas não há nada o que fazer: O como e o porquê se verá em meu livro A origem
da loso a, na iminência de ser publicado.

93 Isso já está perfeito como “possessão eterna” em a Psique de Erwin Rhode, um livro
portentoso, que grandes asnos lológicos, como Wilamowitz-Moellendorf, conseguiram
desterrar e desquali car durante anos, embora a cada dia assume nova e maior refulgência.

94 Amputação dos membros, amarrando-os embaixo das axilas, para que o fantasma do
morto não retornasse para se vingar. — nt

95 Apolo em Delfos não outorgava oráculos mediante visões senão mediante a interpretação
racional de certos signos. Os intérpretes, adscritos a seu templo, chamavam-se profetas no seu
sentido estrito dessa palavra, para os gregos como para os hebreus. Na tradução Septuaginta, da
Bíblia, traduz-se — e mal — o vocábulo hebreu nabi, que signi ca algo muito diferente.
Quando a religião dionisíaca entrou triunfante em Delfos e Apolo teve que compactuar com
ela, introduziu-se ali a adivinhação — μαντεία — através de visões que a Sibila obtinha
intoxicando-se com vapores mefíticos. Uma das datas marcantes da história grega foi aquela da
entronização da Sibila, em torno de 660 a.C. Todavia, em Heráclito (475 a.C.) repercute o efeito
desta tremenda inovação. Cf. meu livro A origem da loso a.

96 Só Apolo tem ares de autêntico e digno deus.

97 Hesíodo, Teogonia, v. 44. [Na tradução de Bruno Palavro: “Raça louvável de deuses...”, in.:
A eogonia de Hesíodo. tcc: ufrgs. Porto Alegre, 2019. p. 56. — nt]

98 Conferir sobre tudo isso em Comentário ao banquete de Platão — capítulo intitulado: “In
vino Veritas ou o pensar visionário e o pensar lógico”.

99 Conferir meu livro sobre O banquete.

100 Ateneu, xxiv, 628 a.

101 “Em tudo, há medida”, Horácio, Sátiras, i, 1, v. 106. — nt

102 Dança espanhola da corte dos séculos xvi e xvii, de caráter calmo e solene. — nt

103 Dia em que se libava com hidromel — água, vinho e mel — sobre o túmulo dos mortos.
Um exemplo de liberação (χοαί) aos deuses subterrâneos pode ser encontrada em Deus nasceu
no Exílio, do romeno Vintila Horia, editado pela Flamboyant, 1961. — nt

104 É notório que o verso primigênio não tinha intenção nem sentido prático, senão mágico
ou jurídico: é conjuro ou lei. Para citar só um caso espanhol, recorde-se que no périplo de
Avieno, dize-se que tartesios, quer dizer, os proto-andaluzes, já tinham um som de
“seguidilhas”.

105 O vocábulo só era usado nesta forma que é a plural, para “as atuações rituais”.

106 Cf. R. Otto, O santo. Tradução da Revista do Ocidente, 1925. [Em edição brasileira: R.
Otto. O sagrado. Tradução Walter O. Schlupp. Ed. Vozes, 2007. — nt]

107 A inspiração divina. — nt

108 Cf. o melhor estudo que existe hoje em dia sobre este problema das origens: Pickard
Cambridge: Dithyramb, Tragedy and Comedy, 1927, p. 104.

109 Não há o que dizer sobre esta etimologia popular de “tragédia”, sendo sumamente
problemática.

110 Os “bufões” seriam, pois, idênticos ao bull-roarers de que falam os atuais etnógrafos
ingleses.

111 A mais recente etnogra a — a escola de Malinowski, professor de Antropologia em


Londres — insiste que a investigação etnográ ca tem que ser acentuadamente “estudo sobre o
terreno”, ver e ouvir os primitivos, falar e conviver com eles.

112 Este egrégio livro, cuja tradução foi publicada em minha pequena aventura editorial, o
Editorial Azar-Lisboa, é, em parte, inspirado pelas minhas idéias, enunciadas em ensaios muito
antigos, sobre “o sentido desportivo e festivo da vida”. Em conversas privadas, Huizinga disse-
me, muitas vezes, em que medida as breves insinuações feitas lhe haviam movido a empreender
sua grande obra sobre esse tema.

113 Na Grécia, há muitos séculos, dava-se a mesma resistência aos ingressos da religião
dionisíaca nos costumes da polis e também ali o místico, jucundo e intoxicante frenesi do deus
triunfou.

114 “Coeterum quae res sit ignorare: alios deorum aliquot cultum, alios concessum ludum et
lasciviam credere”. Tito Lívio, livro 39, xv. Pelo visto, adorava-se uma deusa Simula ou Stimula
(Juvenal, ii, 5). Santo Agostinho diz que se chamava assim porque estimulava, quer dizer,
intoxicava. De Civitade Dei [A cidade de Deus], iv, 11 e 16. Sem dúvida, trata-se de Sêmele,
mãe de Dioniso-Baco; conferir Macróbio: Saturnalia, I, 12, e Ovídio: Fastos, vi, 65.

115 Já faz bastantes anos que Cartailhac e o abade Brewil presumiram isto: “Le masque
devait être connu par nos artistes paléolithiques et aussi la danse masquée”. La Caverne de
Santillane près Santander, pp. 142–143. [A máscara devia ser conhecida pelos nossos artistas no
paleolítico e também o baile de máscaras]. Posteriormente esta antecipação veio a se con rmar
plenamente.

116 Nem o “existencialismo” teria feito nada de errado, assumindo desta forma a nitude
constitutiva do homem, com a qual também teria conseguido evitar o presente melodrama.

117 É a tese de Lévy-Bruhl que, inconcebivelmente, arrasta quase todo o mundo, a não ser,
claro, Bergson, que a tritura galantemente, como sem querer.
118 Cf. meu Apontamentos sobre o pensamento, sua teurgia e sua demiurgia, no fascículo
primeiro da revista Logos, 1941, da Faculdade de Filoso a e Letras de Buenos Aires.

119 Pascal, “O homem é um caniço pensante”, Pensamentos, vi, 347. — nt

120 “Em suma, a forma de seus julgamentos não nos espanta apenas por não estar em
acordo com seu conteúdo”. Meyerson, E. Du cheminement de la pensée, 1931. — nt

121 Só como sintoma da puerilidade e inconsciência com que atua, por tudo, esta revoada da
moda “existencialista”, basta notar que o autor a quem se atribuem suas teses principais —
Heidegger — protestou que sua loso a se chamasse “existencialismo”. Assim, nada mais, nada
menos. Daí em diante, em toda esta tendência, topamos com uma série de irresponsabilidades,
de tolices e, em suma, de um típico “sensitismo intelectual”.

122 A análise formal de sua doutrina, especialmente neste ponto da morte como “a mais
própria possibilidade da vida” está em meu livro Epílogo...

123 José Mármol, El Reloj [O Relógio], in. José Mármol, Cantos del Peregrino. Poesías
diversas. Buenos Aires: Felix Lajoune, 1889, p. 508. — nt

124 Cf. O pensador, de Rodin. — nt

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