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02/08/2021 Sobre «O Tropo Tropicalista» de João Camillo Pena | by Ed Caliban | Revista Caliban

Sobre «O Tropo Tropicalista» de João Camillo


Pena
Ed Caliban
Feb 6, 2018 · 15 min read

João Camillo Pena

Henry Burnett

G ostaria de poder esperar 15 anos para escrever esta resenha, mas não posso me
dar ao luxo de ignorar uma urgência — não da resenha, mas a que o livro que a
suscita motiva –, tampouco estaria assegurado que o tempo de maturação da leitura
me tornaria mais ou menos seguro sobre o teor de O tropo tropicalista, de João Camillo
Penna. Quem acompanha a vida literária brasileira sabe que a cifra não é aleatória: 15
anos foi o tempo que separou a publicação de Verdade tropical, de Caetano Veloso
(1997), de sua “resenha” mais importante, “Verdade tropical: um percurso de nosso
tempo” (2012), de Roberto Schwarz. É sobre a leitura dialética aplicada por Schwarz
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ao livro de Caetano, e ao tropicalismo, que trata o livro de Camillo Penna. Eu mesmo


me insurgi contra o texto mais recente de Schwarz em um artigo, em nada comparável
ao que movimenta este livro.[1] A meu ver, e digo temendo exageros de uma possível
leitura apressada, O tropo tropicalista é um marco em nossa cena acadêmica, pelos
motivos que tentarei expor abaixo.

Não seria exagero afirmar que, em nossa vida literária, uma característica transparece
de modo mais acentuado que outras: alguns críticos se tornaram “maiores” ou, às
vezes, mais famosos que alguns dos escritores analisados; não por qualquer tipo de
desnível de nossas letras, mas pela força de algumas obras. Hoje sabemos que algumas
delas extrapolaram a dimensão crítico-literária para se tornarem interpretações do país
através de sua literatura. Antonio Candido é o exemplo máximo dessa possível
peculiaridade, que é também um traço distintivo. Desconheço se essa é uma
característica nacional ou se também ocorre em outras tradições com a mesma
transparência. Penso nisso ao ler o livro O tropo tropicalista, de João Camillo Penna
(Circuito/Azougue, Rio de Janeiro, 2017). Quem são os atores principais desta obra?
Roberto Schwarz e Caetano Veloso.

De cara, como se vê, não estamos diante de uma análise crítica tradicional, ou melhor
dizendo, corriqueira, já que Schwarz não está interessado, até aqui, na obra poética de
Caetano, mas em seu ensaio memorialístico Verdade tropical e suas entrelinhas. O leitor
não pode piscar os olhos: um dos mais importantes críticos do Brasil abre um espaço
gigantesco em sua obra, mormente dedicada a Machado de Assis, para ocupar-se de
um compositor popular, tal como já havia feito, com teor semelhante a esta mais
recente investida, no célebre artigo “Cultura e política, 1964–1969” (1970, 1978).[2]
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No entanto, o que poderia significar um avanço em nossa crítica cultural mostrou-se,


ao contrário, salvo engano, um retrocesso, que motivou várias reações, tanto contrárias
quanto favoráveis.[3] É preciso dizer uma coisa com precisão e insistência: a obra de
Roberto Schwarz não está em julgamento aqui, tampouco no livro; o que se discute é
sua interpretação do tropicalismo através da devassa ideológica de sua figura maior.
Como tudo nesse mundo, pode-se concordar ou não com João Camillo Penna, mas não
podemos negar que seu livro é o trabalho de maior fôlego até aqui produzido sobre a
questão e que o autor toma uma posição firme.

O movimento da crítica literária mais avançada, que deveria ser motivo de festa para a
canção brasileira, resulta em uma compreensão equívoca do movimento musical mais
importante de nossa história. Como? Em primeiro lugar porque o crítico não tem
nenhum interesse na obra literomusical de Caetano Veloso (ou não tem “bom
conhecimento de música nem das composições do autor”).[4] Isso, a meu ver, já é uma
incongruência, porque não é preciso ser especialista em MPB (existe isso?) para um
crítico desse porte ler as letras de Caetano Veloso, força maior de sua obra cancional;
ainda mais sendo, ele mesmo, o crítico, um poeta bissexto. Seu interesse, como dizer
com cuidado, é estritamente ideológico. Lembremos de um lance curioso no jogo dos
objetos literários: Schwarz sempre resenha de modo extremamente elogioso alguns
dos romances de Chico Buarque, se não todos, mas nunca disse nada sobre sua poesia
cantada, nunca se ocupou dela, salvo engano. Não existem contradições aqui: trata-se,
sem dúvida, de uma crítica dialética e esquerdizante; mas o silêncio sobre a canção
também diz muito sobre estética, ou sobre o que Roberto Schwarz entende por
estética.[5]

João Camillo Penna assume uma tarefa que poucos teriam coragem e capacidade de
assumir: apontar os equívocos de Roberto Schwarz em sua compreensão do
tropicalismo. Não em uma resenha da resenha, mas em um livro de quase 250 páginas.
O que muitos poderão julgar uma afronta, eu considero uma necessidade. Não pense o
leitor que minimizo a importância de Roberto Schwarz inclusive como intérprete da
cultura brasileira, isso seria não compreender o livro de Camillo Penna e tudo que está
jogo. Qual sua estratégia de confronto com o eminente crítico? Utilizar as mesmas
armas de seu oponente: dissecar o texto até as últimas possibilidades de leitura; com
fôlego, paciência, mas sobretudo com clareza e com uma capacidade de análise de
obras incomum na crítica cultural atual (chegaremos a isso adiante).

O livro como um todo é um primor de estilo e de cuidado, como não poderia deixar de
ser considerando seu objeto: o texto de Schwarz, talvez o único escritor que consegue
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escrever em português incorporando a estrutura e o funcionamento da língua alemã


em sua valorização semântica e conceitual, além da estilística de corte adorniano —
isso já é um feito inigualável. Mas não apenas isso. Como seria impossível mostrar aqui
a capacidade de contraposição do autor — para isso seria preciso transcrever o livro na
íntegra — recupero o essencial do essencial, isto é, aquilo que, apenas para mim,
dentro dos limites desta resenha, significa o livro em todo seu espectro.

No centro da crítica de Schwarz a Caetano repousa uma cobrança de geração. Aos


olhos do autor de “As ideias fora de lugar”, o compositor expôs ao longo do Verdade
tropical uma incômoda adesão aos poderes repressores instaurados em 1964, além de
demonstrar pouca familiaridade e comprometimento com a revolução esquerdizante.
Roberto esquadrinha o livro de Caetano com a mesma precisão utilizada para ler
Machado de Assis, e retira daí sintomas para ele inequívocos de uma, no mínimo,
ambiguidade fundamental do compositor — sua forma de leitura mostra o respeito
com que Schwarz trata seu objeto.

Em uma das passagens mais importantes do livro, que corresponde também ao


momento de virada do livro de Schwarz, quando Caetano interpreta de modo
equivocado — aos olhos do crítico — uma cena de Terra em transe, de Glauber Rocha,
Camillo Penna afirma, em relação ao suposto descaso de Caetano Veloso em relação ao
povo, leia-se, ao proletariado: “como pode haver de fato ‘desaparecimento do povo’ na
obra cancional de um músico popular? Como se atém à matéria narrativa, Roberto não
consegue ‘ouvir’ as marcas do ‘povo’ — sempre entre aspas — que permeiam e
estruturam como um todo, pela letra e pela música, a forma da canção de Caetano
Veloso. Como pode desaparecer o ‘povo’ se este respira a cada vez que pulsa o ritmo
contramétrico, como eterno retorno desencontrado a si da presença negra (afro-
brasileira) de sua matriz? Haveria que relacionar a regra rítmica da interrupção que
estrutura o romance machadiano da maturidade, na reconstrução de Roberto, com a
contrametria generalizada, regra rítmica da canção popular brasileira desde a sua
origem. Mas como Roberto não ouve a canção, apenas lê o que dela fala o cancionista
transformado em memorialista, essa passagem lhe escapa” (p. 162).

Se o leitor do livro tivesse apenas este recorte de breviário em mãos, ele teria já uma
cápsula concentrada do argumento: não é que Roberto Schwarz não possa
compreender a presença secular do povo (do popular) nas canções de Caetano (e de
Chico Buarque, Paulinho da Viola, Gilberto Gil, Dorival Caymmi, Marcelo Camelo,
Vitor Ramil e alguns milhares de outros), ele não considera a canção uma forma de
representação digna de observação; a canção não é uma “forma”, simplesmente isso.
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Estamos diante de um dos maiores tabus de nossa vida literária, a discussão — perdão
leitor pelo tom e pela impaciência — imbecil sobre o valor (ou o não valor) das canções
como narrativa profunda da vida nacional, do eco arcaico que nela reverbera, na força
profunda de sua ligação com o tempo, com a poesia primitiva, mas também no seu
ponto de chegada brasileiro, isto é, a literatura culta. Em alguns momentos parece que
Roberto Schwarz não leu tudo que Antonio Candido escreveu, ou achou que este P.S.
não tinha importância (para mim ele é um mantra e já perdi a conta de quantas vezes o
citei): “Post Scriptum: Aqui foram abordados alguns aspectos da vida cultural posterior
a 1930; mas haveria muitos outros, relativos ao teatro, rádio, cinema, música, que
escapam à minha competência. Lembro apenas que na música popular ocorreu um
processo equivalente de ‘generalização’ e ‘normalização’, só que a partir das esferas
populares, rumo às camadas médias e superiores. Nos anos 30 e 40, por exemplo, o
samba e a marcha, antes praticamente confinados aos morros e subúrbios do Rio,
conquistaram o País e todas as classes, tornando-se um pão-nosso quotidiano de
consumo cultural. Enquanto nos anos 20 um mestre supremo como Sinhô era de
atuação restrita, a partir de 1930 ganharam escala nacional homens como Noel Rosa,
Ismael Silva, Almirante, Lamartine Babo, João da Bahiana, Nássara, João de Barro e
muitos outros. Eles foram o grande estímulo para o triunfo avassalador da música
popular nos anos 60, inclusive de sua interpenetração com a poesia erudita (grifo meu),
numa quebra de barreiras (grifo meu) que é dos fatos mais importantes da nossa
cultura contemporânea e começou a se definir nos anos 30, com o interesse pelas
coisas brasileiras que sucedeu ao movimento revolucionário”.[6]

Camillo Penna está dizendo o que ninguém diz de forma direta, por motivos que não
gostaria de retomar aqui em toda sua extensão (leiam Luís Augusto Fischer): a crítica
literária mais “engajada” é, muitas vezes, míope para a revolução estética tropicalista.
A polarização esquerda vs. vanguarda nacional nunca foi totalmente resolvida,
vivemos a eterna procura por uma arte nacional, desde Mário de Andrade, quando, na
verdade, a arte nacional já foi, já está, e diante dela parte da crítica… silencia, e cobra
dela seu vínculo com o mercado, vendo nisso uma impossibilidade, um entrave, ao que
Camillo Penna pontua: “Mas alguma vez a música popular pretendeu ser independente
do mercado, de onde retira o seu sustento, sem que isso explique ou dê conta da
música popular? Roberto parece exigir da canção popular que se torne pesquisa
universitária e assim independa do mercado, o que a faria final perder a sua
ambiguidade constitutiva” (p. 163). Uma primeira conclusão pode ser enunciada:
Roberto Schwarz é incapaz de compreender o lugar que o tropicalismo e a obra de
Caetano ocupa no século XX em um país periférico como o Brasil. Não compreende

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porque ignora? É o que parece. É um problema relacionado com as categorias críticas


que atravessam a obra de Schwarz, com seus referenciais teóricos? A resposta
afirmativa também é quase obrigatória e chega a incomodar quando, mesmo Adorno,
parece ser ignorado em sua crítica oscilante à indústria cultural: “Schwarz parece ter
esquecido da lição, portanto tão próxima de sua análise, do Adorno de ‘Palestra sobre
lírica e sociedade’, que alerta que ‘a referência ao social não deve levar para fora da
obra de arte, mas sim levar mais fundo para dentro dela’ (Theodor Adorno. “Palestra
sobre lírica e sociedade”. Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo:
Editora 34, 2003, p. 66). Sua leitura da ‘conversão’ de Caetano, ainda Camillo, é
estritamente lukacsiana: aonde o povo se ausenta enquanto tema perde-se o
fundamento do processo social” (p. 165).

Outra passagem incontornável nos esclarece o nó da leitura de Schwarz: “Transformar


a arte em simulacro crítico visualmente indistinguível do entulho industrial,
confundindo irresistivelmente o artefato artístico com o produto da fábrica; fazer da
arte a repetição da produção industrial cotidiana, indecidivelmente afirmativa,
comercial, e irônico-crítica. Eis o projeto pop. Ele, sim, a meio caminho entre a crítica e
a adesão, a simpatia e o desgosto, o sarcasmo e o comercialismo. Essa equivocidade —
uma aparência, duas essências distintas — dá perfeitamente conta do impasse
diagnosticado por Roberto. Mas não dá conta da negatividade tropicalista. A
equivocidade instituída pelo tropicalismo produz uma afirmação inteiramente
diferente da repetição pop. Este, o ponto fundamental” (p. 105–106).

O tropicalismo não pode ser compreendido acusando nele um vínculo com o mercado;
Chico Buarque é um artista pop porque foi catapultado pela televisão. O que dizer de
Caetano Veloso? É quase ingênuo. Quando eu disse anteriormente que Camillo Penna
opera uma das mais completas análises da matéria tropicalista, também me referia ao
que hoje parece apenas orbitar em torno de Caetano e Gil, mas que a bem da verdade
são componentes essenciais de um movimento maior que a música popular em torno
do mote tropicalista: “A genealogia do programa tropicalista recomposta em Verdade
tropical deve ser situada, como resumiu Flora Sussekind (Flora Sussekind. “Chorus,
Contraries, Masses: The Tropicalist Experience and Brasil in the Late Sixties”. Carlos
Basualdo (ed.) Tropicália: a Revolution in Brasilian Culture, 1967–1972. São Paulo:
Cosac Naify, 2005), na sequência de eventos ocorridos em 1967: a mostra ‘Nova
objetividade brasileira’ (em abril), onde se encontrava a instalação Tropicália, de Hélio
Oiticica, que batizaria o movimento; a exibição de Terra em Transe de Glauber Rocha
(em maio); o lançamento de Panamérica de José Agrippino de Paula (em julho); a

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apresentação de O Rei da vela, de Oswald de Andrade, pelo Teatro Oficina de Zé Celso


Martinez Corrêa (em setembro); assim como a própria composição da canção
‘Tropicália’ (entre agosto e setembro); e as apresentações de Caetano e Gil, no III
Festival da MPB, com ‘Alegria, alegria’ e ‘Domingo no parque (em outubro). Ora, cada
uma dessas faces do programa tropicalista é ao mesmo tempo, inteiramente fiel às
vanguardas históricas, como sistematização do programa supressivo da ‘antiarte’, e as
transcende com uma armação que não pode ser de maneira nenhuma confundida nem
com renúncia, nem com a pura repetição” (pp. 106–107).

O leitor encontrará no livro de Camillo Penna uma senda que funciona como uma
“introdução” ao problema principal. Sua análise cobre praticamente todas as obras
acima listadas, e o que impressiona: com a mesma acuidade com que desmonta palavra
por palavra o argumento de Roberto Schwarz sobre Verdade tropical. Desculpe
novamente o leitor pela empolgação, mas o autor mostra como o crítico uspiano
passou batido quando analisou, por exemplo, o teatro de Augusto Boal e de Zé Celso.
Num esforço redobrado, Camillo amplia sua contraposição e nos oferece a mesma
atenção concentrada, e analítica, que dedica ao problema musical. Sobressai nesse
momento a presença de Walter Benjamin como mediador, e é inescapável lembrar da
querela com Adorno, restando uma verdadeira atualização do debate crítico a partir da
dinâmica dos objetos artísticos, no caso o tropicalismo em todas as suas frentes; nada
mais próximo dos ditames de uma teoria crítica originária e modelar. Camillo usa as
mesmas armas de Schwarz para emenda-lo: “Nos termos de Benjamin (…), Schwarz
não salvaria o particular, ignorando-lhe as diferenças, e homogeneizando-o à
abstração mediana do universal” (p. 72). Segue-se a esse introito fundamental uma
longa análise, irreprodutível aqui em todos os seus meandros, que resulta em uma
quase sentença: “Faço aqui uma observação que deverá nos acompanhar ao longo
deste livro: o que Roberto Schwarz insistentemente exige das formas culturais que
analisa, do tropicalismo, e adiante das experiências relatadas do livro de memória de
Caetano Veloso, Verdade tropical, é a submissão à mediação universal e social, que seus
objetos não realizam a contento. Ao contrário, parece-me que a análise que precisa ser
realizada aqui é a de, ao modo benjaminiano, salvar sempre a experiência particular, a
mônada do absoluto” (p. 78).

Em um dos capítulos mais belos do livro, “Aço frio de um punhal”, Camillo refaz a
experiência da prisão de Caetano e, num dos poucos momentos onde se pode pensar
em um limite de sua paciência, o autor eleva a tensão ao nível máximo: “Entendamos o
que pede Roberto: é preciso que no auge do desespero, em meio à mais profunda

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incerteza sobre o que acontecerá, e sobre que destino lhe será dado, o preso político,
segundo uma tradição que desconheço, interrompa tudo isso e cumpra o receituário da
prática política. É na prisão que deve-se demonstrar a coerência, a avaliação do
projeto, o balanço do futuro. Atenção, presos políticos e comuns, não esqueçam de
repensar seus projetos e reavaliar seus programas! Caetano, por favor, comporte-se” (p.
223).

Schwarz exige de Caetano o cumprimento de um quase receituário-esquerdista-


padrão, o que obviamente o conduz a uma nova decepção. Se nos fosse permitido
abusar dos clichês, diríamos que há ‘patrulha ideológica’, mas isso parece pequeno
diante da visão ampla do crítico. Ainda assim, Camillo Penna exacerba: “Em nenhum
momento o equívoco estético-político de Roberto Schwarz a respeito de Verdade
tropical é mais flagrante do que em sua leitura de ‘Narciso em férias’. Para ele, o ‘tom
queixoso’ do capítulo, onde Caetano externaria ‘surpresa e decepção’ pela prisão,
motivada por uma confiança de fundo em que ‘tudo terminará bem’, trai a verdade
última da fraca carga de negatividade, i.e., da provocação, e do programa tropicalista.
‘Por que a surpresa e a decepção de Caetano quando seus ataques são mal recebidos?’,
reagiria o Narciso decepcionado’ (Roberto Schwarz, “Verdade tropical: um percurso do
nosso tempo”, p. 65). A provocação programática tropicalista pressupõe, em última
análise, a conciliação: ‘que as partes opostas estejam no mesmo campo’, ou seja, que os
militares deveriam, na fantasia de Caetano, segundo Schwarz, ter sido
compreensivos!” (p. 221).

Penso que, no geral, Schwarz cobra do tropicalismo uma autocrítica que Verdade
tropical não faz; e não deveria fazer. Insisto num ponto que me parece essencial, e que
pode, eventualmente, não estar no plano geral do livro de Camillo: o material musical
é a chave, a forma-canção é o repositório de nossa educação sentimental, e é
justamente isso que uma estética esquerdizante não foi capaz de assimilar. Contra isso
não há tese que valha. O arcaísmo original que é fonte da canção urbana é anacrônico,
deslocado historicamente, em certa medida fora do tempo. Aceitar isso é compreender
profundamente o Brasil através do que aquele momento histórico fundamental
produziu sob o manto do tropicalismo como um desdobramento daquela fonte
primeva. Pensar que o dionisíaco em Zé Celso é ilustrativo é não ter ideia da atualidade
desse conceito redivivo no contexto latino, é não entender o vínculo entre arte e vida,
“O sujeito desenhado pela crítica de Schwarz não deve ter qualquer aderência à vida”
(p. 225).

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Por fim, o que talvez seja a mais difícil tarefa do leitor, entender como um livro que se
posiciona contra uma figura emblemática da esquerda pode, ao mesmo tempo, ser um
livro conectado com o momento político nacional, assumindo nele uma posição
radicalmente de esquerda… : “Cabe agora, em 2017, retomar a pergunta dubitativa
sobre o estatuto do nosso fracasso ou de nossa esperança. Aos velhos sobreviventes da
ditadura civil-militar de 1964–1985 cabe conferir os termos desta repetição ditatorial,
e circunscrever a diferença para com a nova ditadura, agora ‘constitucional’, civil e
midiática que se abateu sobre o Brasil em 2016” (p. 240). Ou sejam Camillo Penna e
Roberto Schwarz estão do mesmo lado; a vida não é fácil. Caberá ao leitor, enfim,
aceitar ou não a divisão entre estética e política, porque é disso que se trata.

Como o livro termina? “Este livro fala da liberdade e da repressão dos movimentos
libertários, revolucionários, contraculturais e de esquerda. Ele tenta fornecer
elementos para que se comece a compreender as razões do mal-entendido, e as
antinomias constitutivas que permearam de maneira estrutural as relações entre
contracultura e esquerda naqueles anos. Como emblema destas antinomias, a
desconversa dialética sem síntese, esse duo equívoco e desencontrado em que
contracenam dois dos seus mais ilustres representantes: Caetano Veloso e Roberto
Schwarz” (p. 243). Quem se arrisca e anular essa monstruosa antinomia? Como disse
nosso poeta no famoso discurso “É proibido proibir”: “se vocês, em política, forem
como são em estética, estamos feitos!”.

Henry Burnett é compositor e professor de filosofia da Unifesp

[1] Henry Burnett. “Canções em busca do absoluto”. In: Revista Rapsódia: Almanaque
de filosofia e arte. Publicação do Departamento de Filosofia da USP, n° 8, 2014.

[2] Roberto Schwarz. “Cultura e política, 1964–1969. Alguns esquemas”. O pai de


família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

[3] Cito algumas delas: Ruy Fausto. “Caetano Veloso, Roberto Schwarz, etc.”. In:
Revista Fevereiro nº 6, 2012; Denise Martins Freitas. “Veloso e Schwarz”. Revista
Sibila, 22.05.2012; Milton Ohata. “Progresso à moda brasileira”. Revista Piauí nº 69,
junho de 2012; José Miguel Wisnik. “Versus”. O Globo, 28.04.2012; Francisco Bosco.
“Esquerda x esquerda”. O Globo, 02.05.2012; Fabio Mascaro Querido. “Colapso da
modernização, Roberto Schwarz e a atualização da dialética à brasileira”. Novos estud.
— CEBRAP, São Paulo, n. 97, p. 227–233, Nov. 2013; Marcos Augusto Gonçalves.
Feitiço tropical — Schwarz versus Caetano. Folha de S.Paulo, 15.042012.

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[4] Roberto Schwarz. “Verdade tropical: um percurso do nosso tempo”. In: Martinha
versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 52.

[5] A resenha de Estorvo por Roberto Schwarz começa assim: “Estorvo é um livro
brilhante, escrito com engenho e mão leve. Em poucas linhas o leitor sabe que está
diante da lógica de uma forma”. In:
http://www.chicobuarque.com.br/critica/crit_esto_schwartz2.htm. (Acesso em:
24.01.2018). É isso, uma questão de forma, e de lógica, algo que Schwarz e meio
mundo acham que não pode habitar na canção.

[6] Antonio Candido. “a revolução de 1930 e a cultura”. In: A educação pela noite &
outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989, p. 198.

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