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todos que estão aqui para me ouvir falar um pouco da pesquisa que eu desenvolvi no
mestrado lá na UFF e que eu conclui em 2016, há quase dois anos. Desde então eu venho
tentando reelaborar, lentamente, bem lentamente!, alguns pontos levantados na
dissertação. Para começar eu poderia dizer, de uma forma geral, que minha dissertação é
um estudo antropológico da planta de tabaco no contexto da América Indígena
fundamentado em dados etnográficos de algumas sociocosmologias ameríndias que pude
reunir e conhecer através de uma pesquisa bibliográfica em livros, teses, dissertações,
artigos, etc.
Acredito que a pertinência antropológica em abordar esse tema, para o qual minha
atenção foi direcionada em decorrência do diálogo com minha orientadora do mestrado,
assenta-se, principalmente, na pertinência que essa planta tem na vida dos indígenas sul-
americanos. Eu diria então que é interessante estudar o tabaco no contexto ameríndio,
pois os índios mostram-se muito interessados no tabaco. Este interesse pode ser
reconhecido em diferentes evidências ou fatos etnográficos, entre os quais, eu cito: *a
ampla difusão e grande anterioridade do uso do tabaco entre as populações ameríndias,
*as variadas formas de consumo da planta que eles desenvolveram; *as inúmeras
narrativas míticas existentes acerca da origem e as potencialidades do tabaco; *e também
o emprego do tabaco em práticas e rituais que possuem centralidade em suas
sociocomoslogias, tais como práticas de fabricação da pessoa e práticas xamânicas de
variadas finalidades...
Se de saída era possível constatar esse interesse generalizado pela planta de tabaco entre
os ameríndios, só com a pesquisa quase finalizada é que me dei conta de que, a despeito
de seu uso difuso, não seriam todos os grupos que atribuem centralidade a planta de
tabaco em seus discursos e práticas. Alguns povos, mais que outros, empregam-na em
importantes rituais e possuem ricas narrativas sobre as origens e potencialidades desta. A
pesquisa se centrou, então, em trabalhos monográficos recentes, acerca de grupos que –
a despeito das descontinuidades linguísticas e geográficas – podem ser aproximados
justamente pela importância sociocosmológica que atribuem à planta de tabaco, tais
como, os Guna do Panamá, os Guarani do sudeste brasileiro, os Hupd’äh do noroeste
amazônico, os Kulina e os Matsés do oeste amazônico, os Muinane da Amazônia
colombiana e os Wauja do Alto Xingu.
***
Como muitos aqui devem saber o tabaco é uma planta originariamente americana. É neste
continente que existiam, há alguns milhões de anos atrás, as condições ecológicas ideias
para que o tabaco pudesse surgir em sua forma silvestre, ou “natural”. Alguns estudos
arqueológicos apontam que o uso humano dessa planta na América do Sul tem uma
anterioridade entre seis e dez mil anos. Desde quando teve início, o terrível episódio, ao
qual costumamos dar o nome de “descobrimento da América”, há registros acerca do
apreço e do uso difundido da planta de tabaco pelas populações humanas que aqui viviam
e que foram, e vem sendo, dizimadas pela máquina colonialista. O calvinista francês Jean
de Léry, assim como outros missionários que participaram da empresa colonizadora,
noticiou à metrópole “a grande estima” que os Tupinambá da costa brasileira possuíam
por uma tal erva ainda desconhecida pelos europeus, descrevendo também o uso contínuo
que desta eles faziam “sempre carregando-a pendurada no pescoço”.
Creio que são os estudos de Lévi-Strauss, principalmente os que se encontram nos dois
primeiros volumes das Mitológicas, aqueles que, de forma pioneira, colocam maior
ênfase nas concepções propriamente indígenas acerca do tabaco. Isso é dizer que são as
análises do antropólogo francês que nos oferecem as pistas iniciais para que possamos
começar a compreender o tabaco dos ameríndios nos próprios termos ameríndios.
Analisando mitos de distintos povos sul-americanos e outras espécies de dados
etnográficos, Lévi-Strauss chama atenção para a ambivalência conceitual que o tabaco
possuía no pensamento ameríndio, sendo um elemento, assim como o mel e as bebidas
fermentadas, marcado por um grande contraste interno. Por um lado, isso significa que o
tabaco não possuía uma natureza culinária definida, figurando nos mitos ora como um
alimento, ora como um veneno, ora seco, ora molhado. Por outro lado essa proposição de
Lévi-Strauss também indica que o tabaco seria caracterizado pela filosofia indígena como
uma espécie de elemento que serviria, nas narrativas míticas, como o termo de relação,
ou uma espécie de dobradiça, entre o que o autor considerava serem diferentes domínios
ontológicos, Natureza e Sobrenatureza, ou também uma espécie de conversor entre a
animalidade e a humanidade.
Tomando a sério essas proposições do autor e adensando-as a partir de dados etnográficos
de alguns povos que pude conhecer através da leitura de etnografias recentes o que se
constata desde o início é que o tabaco é uma categoria ontológica bastante distinta daquela
que ele é entre nós, se, por uma certa economia de linguagem, podemos dizer que o tabaco
dos ameríndios é uma planta, certamente ele não é uma planta tal qual a concebemos. Os
indígenas não parecem concebê-lo como uma substância que só ganha sentido quando
destacada do mundo e examinada em laboratório. Mais que um objeto a ser conhecido e
examinado, a planta de tabaco na paisagem ameríndia constitui-se, ela própria, numa
espécie de ferramenta conceitual do pensamento indígena. É uma substância, pois, cujas
propriedades sensíveis assumem o papel de categorias empíricas no sistema lógico
ameríndio o qual opera por meio das qualidades sensíveis, conforme postulou Lévi-
Strauss.
O material bibliográfico explorado nessa pesquisa permitiu conhecer ainda mais duas
dessas faces. Vou finalizar falando da variação perspectiva registrada entre os Witoto pelo
antropólogo Juan Echeverri. Para compreender a natureza do tabaco naquele contexto é
preciso que a gente conheça o mito de surgimento do tabaco. Que eu vou contar
rapidamente aqui.
Uma mulher-espírito que aparecia nos sonhos de um homem desconhecedor da
agricultura, e que se alimentava apenas do que conseguia coletar na floresta dizia para o
homem: receba-me bem. É para você que eu venho. Você também nasceu para mim‘.
Mas pela manha o homem não mais podia vê-la nem ouvi-la, pois ela se abrigava dentro
de uma pequena cabaça. Então, certo dia, ele finge que está dormindo e consegue captura-
la. Sem poder retornar para o abrigo, a mulher-espírito passa a viver com o homem como
uma pessoa. Aquela mulher era tabaco. Muito dedicada ao trabalho, sozinha ela plantava
e cuidava de vários cultivos. Invejosos da força e habilidades daquela mulher, alguns
espíritos animais de caça estupraram-na. Ela então não pôde mais viver com o seu
companheiro. Antes de deixá-lo, porém, ela disse que retornaria. Para tanto, o homem
deveria varrer a casa e colocar a sujeira acumulada nos pés de uma palmeira pupunha. O
homem fez o que ela mandou, mas ela não retornou. Em sonho ela disse a ele para olhar
na sujeira que ele havia acumulado. Olhando cuidadosamente ele viu uma pequena planta
que crescia: era a planta de tabaco. Ela ensinou a ele como cozinhar as folhas e produzir
a pasta de tabaco. A partir de então a mulher-espírito passou a ter o poder supremo sobre
todos aqueles que tentaram rebaixá-la. A força que ela tinha, para cuidar e cultivar plantas,
foi transformada em um poder de caça contra os animais predadores. A pasta de tabaco é
o sangue menstrual daquela mulher. É dali que provém seu poder.
No episódio, após ser molestada por espíritos maléficos que apareceram na forma de
animais predadores, a mulher se vinga, transforma sua capacidade de cultivo em uma
capacidade predatória, e seduz aqueles que lhe prejudicaram os fazendo cair em seu
sangue menstrual. Do ponto de vista desses espíritos maléficos, que continuam a atuar no
cosmos Witoto, a pasta de tabaco que os homens e mulheres ―lambem corresponde ao
sangue menstrual dessa mulher que eles molestaram e que passou, na sequência, a
dominá-los. Um homem Witoto, após ajudar sua esposa a contar esse mito da Mulher
Tabaco, diz ao antropólogo: “o que é prejudicial para saúde não é o tabaco, mas as
capacidades predatórias do sangue menstrual” [dessa mulher que é capaz de predar os
espíritos maléficos]. O homem Witoto fazia menção à mensagem estampada nas
embalagens do cigarro pelo governo colombiano: “fumar es prejudicial a la salud”.
Penso que nesse comentário o homem Witoto está dizendo é que ao afirmarem que o
tabaco é prejudicial, os brancos o estariam vendo a partir de uma perspectiva não humana,
aquela dos espíritos maléficos.
Por fim, a focalização de práticas de fabricação corporal e de metamorfoses xamânicas
permitem conhecer uma espécie de gradiente ontológico do tabaco, assim há casos em
que ele é qualificado como um princípio vital dos humanos, ao mesmo tempo em ele
próprio possui certo grau de subjetividade, sendo qualificado como um deus, ou um xamã.
Variadas narrativas colocam em evidência o fato de o tabaco surgir, em diversas
cosmologias, a partir de um processo de especiação em que diferentes tipos de
multiplicidades ontológicas passam, após determinados eventos, à condição de existência
na forma de tabaco. Dessa maneira, sendo o mito o registro de um tempo em que os seres
não possuíam um estatuto ontológico definido, em que eram atravessados todos eles, por
uma diferença interna e intensiva (Viveiros de Castro, 2015) as narrativas nos contam não
do surgimento de algo em si, mas da transformação do sangue-menstrual, das cinzas ou
da carne putrefata de mulheres-canibais, das cinzas de homem com patas de cutia ou de
uma cobra-filhote em tabaco.