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MARIA PADILHA, RAINHA DO CANDOMBLÉ, FIRMA CURIMBA, QUE TÁ

CHEGANDO MULHER: MEMÓRIAS E NARRATIVAS DO CULTO DE POMBAGIRA


NO TERRITÓRIO DA UMBANDA POÇOENSE

CELIO SILVA MEIRA1

Introdução

Nós, latino-americanos e especialmente brasileiros, temos uma larga história de


devoção com santos, especialmente na tradição católica, herança do nosso processo de
colonização europeia, onde, fiéis estabelecem relações de favor e troca com estes.
Com o espraiamento das religiões de matriz afro-brasileiras no curso dos séculos,
herdado dos povos africanos que foram transladados para as américas, nos parece oportuno
afirmar que esta intimidade com personagens do universo do sagrado teria intensificado. Há,
na nossa cultura popular brasileira, uma infindável lista de entidades sobrenaturais, onde os
fiéis podem estabelecer relações diversas, contatos personalizados, sobretudo mediante
cerimônias em que essas entidades se apresentam por meio do transe ou incorporações
diversas: caboclos, orixás, marinheiros, exus e as pombagiras da qual trata este estudo.
Cultuadas nos terreiros de candomblés e umbandas, é um desses personagens muito populares
em todo o Brasil. É comum apelar a pombagira para a solução de problemas relacionados a
fracassos e desejos da vida amorosa e da sexualidade, dentre outros.
Estudar os cultos de pombagira permite-nos entender algo das aspirações e frustrações
de largas parcelas da população que estão muito distantes de um código de ética e moralidade
embasado em valores da tradição ocidental cristã.
O texto ora aqui apresentado, objetivou discutir como se processa o culto a essas
entidades a partir das memórias e das narrativas feitas pelos adeptos e pelas próprias
pombagiras incorporadas nos fiéis no momento dos rituais de Umbanda da cidade de Poções-
BA. Para a efetivação deste trabalho, utilizamos a metodologia da Etnografia enquanto
método de pesquisa. Angrosino (2009) nos relata sobre métodos etnográficos em contexto de
pesquisa:
A pesquisa etnográfica pode ser realizada onde quer que haja pessoas interagindo
em cenários „naturalmente‟ coletivos. A verdadeira etnografia depende da
capacidade de um pesquisador de observar e interagir com as pessoas enquanto

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Doutorando do Programa em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social (UCSal). Membro do Grupo
de Pesquisa Desenvolvimento, Sociedade e Natureza (DSN).
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elas essencialmente executam suas rotinas do dia a dia (ANGROSINO, 2009:43).

Usamos para coleta dos dados a entrevista semiestruturada e a observação do


cotidiano ou a Observação Participante que aconteceram no decorrer dos rituais, sempre tendo
em mente que não é propriamente uma técnica de coletar dados, mas sim o papel adotado pelo
etnógrafo para facilitar sua coleta de dados. Quanto aos roteiros das entrevistas, estes foram
elaborados previamente e com questões relativas aos níveis de conhecimentos e
especificidades dos entrevistados dos terreiros em estudo, ressaltando que as mesmas foram
realizadas entre os meses de março a novembro de 2017. Sendo que foram escolhidos três
terreiros de Umbanda para a aplicação das entrevistas com os líderes e filhos de santo destas
casas e várias gravações de festas de Pombagiras que aconteceram no decorrer dos meses
citados acima. A escolha destes se deu por serem os terreiros mais conhecidos na cidade e
onde seus líderes e adeptos são mais permissivos ás pesquisas etnográficas.
Transcrevemos todas as gravações e usamos no decorrer da escrita deste texto. Os
procedimentos metodológicos aqui utilizados representaram, assim, um excelente recurso para
uma inserção mais densa nas práticas e representações vivenciadas pelos líderes e fiéis das
expressões religiosas, pois nos permitiu enquanto pesquisadores uma análise mais delimitada
e específica, devido a incursões mais constantes que se pode fazer no dia-a-dia das
experiências com o sagrado e relatar de forma mais elucidativa as memórias que compõem a
oralidade deste segmento religioso.

Mas quem é Pombagira?

Para responder a essa pergunta tão incisiva, nos reportamos a Prandi (1996), na obra
Herdeiras do Axé, que segundo este Pombagira é um Exu de Umbanda, ou melhor, um Exu-
mulher, como a maioria delas gosta de ser chamada. Na concepção umbandista, Exu é um
espírito do mal, um anjo decaído, um anjo expulso do céu, um demônio, enfim. Ainda
segundo o supracitado autor e as observações realizadas em campo, o Exu da Umbanda é
diferente do orixá Exu cultuado nos candomblés de nação. Para os umbandistas trata-se de um
espírito de um antepassado; enquanto que no candomblé onde predomina uma ligação mais
intrínseca com as tradições africanas é um espírito divinizado, um orixá que poderá ser dono
da cabeça de um filho ou filha de santo, diferentemente do que é praticado na religião de
Umbanda, onde tal procedimento não se realiza.
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No candomblé nagô (iorubá), Exu é o nome do orixá mensageiro entre o mundo dos
homens e o dos orixás. No candomblé jeje (fon) é chamado Legba ou Elegbara. No
batuque é mais conhecido pelo nome de Bará. Nos candomblés congo e angola
(bantos), um dos nomes de Exu, o orixá mensageiro, é Bombogirá (Bambojira), do
qual Pombagira certamente é uma corruptela. Com o tempo, esse nome acabou por
se restringir à qualidade feminina de Exu (tipicamente banta) (PRANDI, 2010:145).

O culto à entidade de Pombagira se dá em quase todas as ramificações religiosas de


matriz africana e afro-brasileira em nosso país, e especialmente na Umbanda. Sendo esta
religião nascida em solo brasileiro, fruto do processo de misturas de diversas religiões: o
catolicismo, o espiritismo kardecista, o candomblé de raiz africana e das religiões indígenas,
denominando o que Lévi-Strauss (1976) chamou de bricolagem. Para este autor, o que a
caracteriza é a sua elaboração de conjuntos estruturados não diretamente com outros, mas
com resíduos e fragmentos de outrora que faziam parte de outros conjuntos coerentes,
resultado de um processo de reelaboração, em determinada conjuntura histórica. Valendo
ressaltar, que a Umbanda recebeu no seu curso enquanto formação de religião, forte influência
de outros segmentos culturais religiosos, um deles merece especial destaque que foi o
Candomblé Banto, Magnani (1991) nos afirma dizendo que:

As religiões das nações bantos, ao contrário, foram mais permeáveis ao influxo de


outros cultos e, em primeiro lugar, dos próprios ritos nagôs e jejes. Destes, adotam
não apenas o panteão – fazendo novas correspondências-, como também a estrutura
das cerimônias e dos ritos de iniciação. Em contato com populações indígenas e
mestiças nas zonas rurais e no sertão, sofreram também a influência de cultos como
a pajelança e o catimbó. [...], a dispersão das linhagens tornava inviável o culto aos
antepassados, e a distância dos rios, florestas e montanhas da África impedia os
cultos ligados e eles, na nova terra. Nas cerimônias de congos e angolas, não são
mais os antepassados familiares que passam a receber as homenagens, mas
antepassados da raça negra escravizada (Pai João, Maria Conga, Pai Joaquim de
Angola), ao lado de espíritos de indígenas: os caboclos (MAGNANNI, 1991:17).

Portanto, a Umbanda é considerada uma religião genuinamente brasileira, composta de


elementos outros e formada por Linhas e Falanges, “princípios de organização e classificação
dos espíritos” (MAGNANI, 1991:33). Essa classificação constituem divisões que agrupam as
entidades de acordo com afinidades intelectuais e morais, origem étnica e, sobretudo, segundo
o estágio de evolução espiritual em que se encontram, no astral.
Outra característica da religião de Umbanda é o caráter aberto desta estrutura religiosa
que permite a inclusão de entidades, de acordo com os mais variados critérios e sem limite de
números, o que na prática se traduz por uma multiplicidade de esquemas, a partir das sete
linhas tradicionais que a compõem. E é justamente em uma dessas linhas que se encontra a
chamada “Linha do Povo da Rua”, que se enquadra o culto às entidades dos exus e das
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pombagiras. Os terreiros umbandistas que os admitem em seus cultos o fazem em ocasiões


especiais ou determinados dias da semana por exemplo. No caso em estudo, esse culto
acontece ao longo do ano e em especial no mês de Agosto, que segundo a tradição local é o
mês dedicado ao culto dos exus e consequentemente das pombagiras.
Segundo Prandi (2010) pombagira é singular, mas é também plural. Elas são muitas,
cada qual com nome, aparência, preferências, símbolos, mito e cantigas particulares. Entre
dezenas, as mais conhecidas são: Pombagira Rainha, Maria Padilha, Pombagira Sete Saias,
Maria Molambo, Pombagira da Calunga, Pombagira Cigana, Pombagira do Cruzeiro,
Pombagira Cigana dos Sete Cruzeiros, Pombagira das Almas, Pombagira Maria Quitéria,
Pombagira Dama da Noite, Pombagira Menina, Pombagira Mirongueira, Pombagira das Sete
Encruzilhadas e Pombagira Menina da Praia, Pombagira Canela de Aço, Pombagira das Sete
Rodilhas, etc.
Durante a execução desta pesquisa, a pombagira que mais deparamos nas festas, foi a
de nome Maria Padilha e também foi a que mais conversamos e entrevistamos quase todos os
terreiros da cidade rendem homenagem a ela. Daí o porquê do nome dela fazer parte do título
deste artigo.

Ancorando o estudo: A Umbanda na cidade de Poções-Bahia.

Segundo Silva (2018), o povoamento do município de Poções e sua exploração pelo


colonizador europeu datam da segunda metade do século XVIII, mais precisamente por volta
de 1732, quando o coronel André da Rocha Pinto tomou rumo pelo Rio de Contas até o Rio
Verde e a cabeceira do Rio São Mateus. A ocupação do território foi resultado do início de
incursões bandeirantes pelo interior da colônia. O primeiro objetivo de tais incursões era
descobrir ouro ou outros metais preciosos. Mais tarde, porém, houve a necessidade da fixação
no solo, instalando-se ali fazendas, onde eram praticadas a pecuária bem como a agricultura
de subsistência. A cultura do algodão também começou a ser praticada como forma de
aproveitamento do solo e das condições propícias da região.
O município de Poções de hoje faz limite com as cidades de Boa Nova, Nova Canaã,
Iguaí e Bom Jesus da Serra. Possui uma área total de 966,3 km², ocupada por 44.152
habitantes, sendo que a maioria (31.753) mora na zona urbana, cabendo à zona rural 1/3 da
população total (12.399). As mulheres são maioria no município. Dados censitários de 2000
registram 9.316 domicílios na sede e 3.506 na zona rural (IBGE, 2010).
No tocante à distribuição das religiões de Poções, segundo o último censo do IBGE
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(2010), tomando como base o número total de habitantes, apresentou os seguintes dados:
Católica Apostólica Romana 80,39%, Espíritas 11% e Evangélica 35%. No que se refere ás
religiões afro-brasileiras, representou menos de 1% do total de habitantes. Quando
questionamos a agência do IBGE local, o responsável pela mesma nos deu a seguinte
explicação:

Nós, agentes do IBGE, quando se trata de perguntas de „autodeclararão‟ não


podemos interferir. Quando se trata de pesquisas sobre dados econômicos da
população, a gente costuma conversar antes com o entrevistado, para que as
informações „batam‟ com a realidade, quando se trata de cor e religião em que as
pessoas se auto declaram é diferente. Muitas pessoas acham que o
Candomblé/Umbanda não são religiões e sim seitas; para essas pessoas, religião é
só a Católica e as Protestantes (IBGE, 2017).

Outra interpretação/explicação nos foi apresentada para os dados mostrados na tabela,


em entrevista com a presidente da Sociedade do Culto Afro-Brasileiro de Poções e
Microrregião (SOCAB),

Esses dados são de 07 anos atrás, onde a SOCAB ainda não tinha uma atuação
direta com essas comunidades no que se refere a conscientização de que se trata de
uma religião como outra qualquer. Ou seja, a sociedade do culto-afro ainda não
existia oficialmente. Creio que no próximo censo essa realidade poderá ser
alterada, pois hoje as pessoas do candomblé/umbanda já têm uma autoestima
melhor trabalhada. Realizamos várias atividades para que isso seja feito. O
Novembro Negro é um exemplo, a Marcha do Dendê também (SOCAB, 2017).

Para reforçar os dados apresentados, é interessante mencionar Michael Pollak (1989)


no que refere aos conceitos de memória oficial e memória subterrânea. Segundo o autor, a
sociedade em que vivemos apresenta traços nítidos de exclusão social e tal fato resulta na
existência de memórias marginais ou subterrâneas que, frequentemente, são rejeitadas pelas
memórias oficiais. Essas memórias ficam adormecidas no subconsciente coletivo, não são
reveladas, ou seja, não são usadas para compor a história dos homens e do local onde se
processa a história, o que nos torna extremamente interessante uma recomposição desta por
meio da oralidade de um passado que precisa ser relembrado para montar a história cultural
local.
O município de Poções tem, atualmente, cerca de 30 terreiros2 de religiões de matrizes
africanas, sendo sua grande maioria terreiros de Umbanda. Na execução da pesquisa, foram
detectados apenas dois terreiros pertencentes á nação Ketu. Quase todos estão localizados em
2
O número exato de terreiros é de difícil quantificação, uma vez que eles surgem e desaparecem com uma
velocidade muito grande, mudam de lugar (endereço), muitos fecham outros, com a morte dos seus líderes
acabam desaparecendo.
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áreas rururbanas (CARNEIRO, 2001) que ficam entre a zona urbana e rural, geralmente onde
se localiza a população mais carente da cidade. Estas zonas são locais propícios para a
instalação destes terreiros, pois os mesmos exigem áreas geralmente territoriais grandes,
embora nem todos tenham grandes espaços para a execução de seus cultos.
Com isso, percebemos que um grande número de adeptos da Umbanda em Poções não
assume seu pertencimento à religião. As causas são várias, segundo os relatos apresentados,
tanto por parte do funcionário do IBGE quanto da presidente da SOCAB. Porém, essa questão
não é o cerne deste trabalho. O que percebemos durante as nossas observações empíricas é
que o número de umbandistas é muito superior aos dados apresentados pelos órgãos oficiais,
e, os cultos às entidades, em especial as de pombagiras são numerosos e movimentam a
dinâmica dos terreiros ao longo dos anos (Figura 1).

Figura 1 - Memórias e narrativas dos cultos à Pombagira

Fonte: Acervo Mãe Bibiu de Oyá

Das casas observadas nesta pesquisa, todas realizam festas para as “moças” como
costumam chamar as festas de pombagiras. Uma das nossas entrevistadas nos deu o seguinte
depoimento:

Para mim ele é tudo, sem ela eu não sou ninguém, ela me deu tudo que eu tenho e
tudo que eu faço agradeço primeiramente a ela. Desde os meus 14 anos que ela me
acompanha, ela foi herança de uma irmã de sangue minha que tinha um centro de
Umbanda em São Paulo que resolveu ser “crente” e acabou com tudo, um dia eu
estava em casa, aqui em Poções, na minha cama dormindo, acordei com ela
incorporada, chorava e reclamava que tinha sido abandonada pela minha irmã e
que queria ficar sendo cultuada, nesta noite Maria Padilha bebeu um litro de
uísque. Deste momento, eu comecei a cuidar dela e nunca mais deixei (Mãe Bibiu de
Oyá, maio de 2017).
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Ainda segundo a depoente:

Quando eu comecei a receber Padilha com os meus 14 anos, minha mãe-de-santo


não gostava muito de Pombagira, tanto que para a minha Padilha ficar no terreiro
ela teve que trabalhar para a casa durante sete anos de graça para ser aceita lá no
terreiro. Trabalhou e deu muitos resultados positivos para as pessoas que a
procuravam (Mãe Bibiu de Oyá, Maio de 2017).

Simbolicamente, as pombagiras são representadas nas cores vermelha e preta, e a elas


são oferecidos tecidos sedosos, perfumes, joias e bijuterias, champanhe e outras bebidas,
cigarros com o filtro vermelho geralmente, rosas vermelhas, maquiagens etc. Outra marca
muito presente na imagem social das pombagiras, é a carga de sensualidade trazida por estas
personagens. Esta exprime toda uma gama de atributos que a torna muito desejada,
especialmente no imaginário masculino, pois está intimamente ligada ás questões do sexo em
si.
É interessante percebermos que a pombagira representa para a mulher um ideal de
independência almejado por muitas ao longo dos anos em que a mesma foi e ainda continua
reprimida por uma sociedade patriarcal, machista e preconceituosa onde a figura da mulher
em muitas situações sociais ainda é vista como inferior á do homem. Seraceni (2008:29) nos
afirma que: “Pombagira foi logo no início de sua incorporação dizendo ao que viera e
construiu um arquétipo forte, poderoso de mulher”.
Para exemplificar o que estamos discutindo, vejamos mais este depoimento desta mãe-
de-santo acerca do culto á entidade:

Dou duas festas na minha casa para as pombagiras, uma no mês de fevereiro e
outra em agosto, a primeira é uma festa social com som, comida e bebida e convido
todos e quem quiser chegar para a sua festa. A minha Maria Padilha gosta muito de
música alegre, ela é fã de Tayroni Cigano, é apaixonada por ele, nesta noite
contrato um tecladista ou uma banda para alegrar a festa dela. Já a segunda festa é
fechada, somente para os filhos da casa e alguns convidados, á a obrigação dela,
sempre faço, aliás, todo ano, nunca deixei e fazer, não pode deixar de agradá-la,
pois ela sempre coloca o dinheiro na minha mão quando á época da festa dela
agradeço muito a ela (Mãe Bibiu de Oyá, Agosto de 2017).

A entidade de pombagira, pelo depoimento acima, está muito próxima dos humanos,
traz consigo sentimento, desejos, preferências, algo que é natural no ser humano, atende e
entende todos os problemas inerentes às pessoas que a procuram.

Minha Padilha atende a todos, sem olhar quem é pobre ou rico que procura os
serviços dela. Ela resolve muitos “mandus”, outro dia mesmo um rapaz veio se
consultar com ela para que ela ajudasse a trazer seu amor (namorada) que tinha
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separados. Ela fez um trabalho e em três dias os dois tinham voltado (Mãe Nice,
Junho, 2017).

No decorrer da realização das entrevistas, tivemos a oportunidade de participar de


várias festas dedicadas às pombagiras. E em algumas, tivemos a oportunidade de conversar
com as próprias. E coletamos e seguinte depoimento de uma delas:

Sou eterna, vivi várias vidas, e hoje sou uma pombagira de luz, meu nome é Maria
Padilha para quem não me conhece. Ajudo a quem me procura, e lasco com a vida
de quem me desafia. Não tenho medo de feitiço e nem de reza mal rezada. Quem me
dá o de comer também come quem me dá o de beber também bebe. Mas quem nada
me oferta, eu também não tenho nada para dar (Pombagira Maria Padilha, Agosto
de 2017).

O caráter de entidade perigosa e feiticeira, com o que se deve tomar muito cuidado,
qualifica Pombagira para trabalhar contra aqueles que são seus inimigos e inimigos de seus
amigos. Ela considera seus amigos aqueles que a procuram necessitando seus favores e que
sabem como agradecer-lhe e agradá-la. Para ser amigo ou devoto de Pombagira é preciso ter
uma causa pela qual ela possa trabalhar, pois é o feitiço que a fortalece e lhe dá prestígio.
Pombagira, entretanto, não vive só de feitiços, ela não vem só para “trabalhar”. Em suas
festas, Pombagira vem para se divertir, dançar e ser apreciada e homenageada.
A ideia mais generalizada sobre pombagira é a de que se trata de uma entidade muito
parecida com os seres humanos. Como mulher, teria tido uma vida passada que espelha
certamente uma das mais difíceis condições humanas: a prostituição:

Moro no cabaré, lá é meu lugar, moro nas encruzilhadas e em qualquer lugar, quem
quiser me ver, me agradar passa em um desses lugares. Juraram de me matar na
porta deum cabaré, passa por lá todo dia, não mata porque não quer kkkkkkkkkkkkk
(Pombagira Maria Padilha, Setembro de 2017).

Com Pombagira, assegura-se o acesso às dimensões mais próximas do mundo da


natureza, dos instintos, das pulsões sexuais, das aspirações e desejos inconfessos. Seu culto
revela esse lado “menos nobre” da concepção popular de mundo e de agir no mundo.
(PRANDI, 2010). As religiões afro-brasileiras são religiões que aceitam o mundo como ele é.
Este mundo é considerado o lugar onde todas as realizações pessoais são moralmente
desejáveis e possíveis. Cada um deve lutar para que seus desejos se realizem, pois é através da
realização humana que os orixás ficam mais fortes. Sua força sagrada transformadora, o axé,
cresce e eles, assim, podem nos ajudar ainda mais. O empenho em ser feliz não pode hesitar
diante de nenhuma barreira, mesmo que a felicidade de um implique o infortúnio do outro,
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porque o mundo é assim.

Tecendo algumas considerações finais:

Ao reportarmos a Le Goff (2003:447) sobre o seu conceito de memória, entendemos


que: “A memória é um glorioso e admirável dom da natureza, através do qual reevocamos as
coisas passadas, abraçamos as presentes e contemplamos as futuras, graças á sua semelhança
com as passadas”. É por meio da memória que reconstituímos o passado, compreendemos o
presente e projetamos o futuro. A oralidade tem um papel fundamental na construção de uma
outra história, que na maioria das vezes não estão nos registros oficiais. Não fazem parte dos
livros que contam a história social dos diversos povos e suas respectivas culturas, é o que
(MONTENEGRO, 2013:74) chama de “o outro lado do espelho”. O lado que não é mostrado,
exibido como períodos da história oficial que parecem passar despercebido de uma grande
parcela da população.
É como se os acontecimentos da história narrada, nada de especial trouxessem, não
deixando marcas que se constituíssem em referências de um passado, fundantes de
explicações de um presente, quiçá de projetos futuros.
Apesar de não fazer parte da história oficial da cidade de Poções, o culto á pombagira
faz parte da vida e da memória daquelas pessoas que têm na religiosidade popular, em
especial a Umbanda, um entrelaçamento com a fé e com a devoção ás suas entidades, sem
uma preocupação com um código de ética e moralidade cristã.
Os estudos do sociólogo francês Maurice Halbwachs (2006) contribuíram
definitivamente para a compreensão dos quadros sociais que compõem a memória. Para este
autor, a memória mais particular remeterá sempre a um grupo, essa compreensão poderá ser
aplicada à Umbanda, quando esta recorre a tipos populares, muitas vezes do folclore
brasileiro, ou de heranças familiares, de amigos etc., nos seus cultos, nos seus rituais. O
indivíduo carrega em si a lembrança, da memória só é articulada porque o mesmo está sempre
interagindo com a sociedade, seus grupos e instituições.

Referências

ANGROSINO, Michael. Etnografia e observação participante. Porto Alegre: Artmed,


2009. (Coleção Pesquisa Qualitativa).

CARNEIRO, Maria José Teixeira. Do rural e do urbano: Uma nova terminologia para uma
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velha dicotomia ou a reemergencia da ruralidade. In: SEMINÁRIO SOBRE O NOVO


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e População residente por situação do domicílio, religião e sexo, Poções. 2010.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). 2017. (entrevista


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Paulo: Ed. da UNICAMP, 2003.

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MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada.


6.ed. 2 reimpressão. São Paulo: Contexto, 2013.

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SERACENI, Rubens. O livro de Exu. O mistério revelado. São Paulo: Madras, 2008.

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2018.

SOCIEDADE DO CULTO AFRO-BRASILEIRO DE POÇÕES E MICRORREGIÃO


(SOCAB), Poções- BA, 2017. (entrevista com a presidente).

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