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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – DEDC CAMPUS II


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

PRISCILA GODINHO MARTINS DOS SANTOS

O Pagador de Promessas em movimento: a trajetória da obra de Dias


Gomes dos palcos ao cinema (1959-1969)

Alagoinhas
2019
PRISCILA GODINHO MARTINS DOS SANTOS

O Pagador de Promessas em movimento: a trajetória da obra de Dias Gomes dos


palcos ao cinema (1959-1969)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História da Universidade do
Estado da Bahia – Campus II como requisito
parcial para a obtenção do Título de Mestre em
História.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Santos Silva.

Banca Examinadora:

_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Santos Silva
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

______________________________________________________________________
Profa. Dra. Izabel de Fátima Cruz Melo
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

_______________________________________________________________________
Prof. Dr. Antônio Maurício Freitas Brito
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Suplente:

______________________________________________________________________
Prof. Dr. Raimundo Nonato Pereira Moreira
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

Alagoinhas 10, setembro de 2019.


FICHA CATALOGRÁFICA

S237p Santos, Priscila Godinho Martins dos.

O Pagador de Promessas em movimento: a trajetória da obra de Dias


Gomes, dos palcos ao cinema (1959-1969)./ Priscila Godinho Martins
dos Santos – Alagoinhas, 2019.

108f.il.

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia.


Departamento de Educação. Mestrado em História.

Orientador: Prof.º Drº Paulo Santos Silva.

Biblioteca do Campus II / Uneb


1. Gomes, Dias, 1922-1999 – Crítica e interpretação. 2. Teatro
brasileiro – História
Bibliotecária: e crítica
Rosana Cristina – Séc.Barretto
de Souza XX. I. Silva,
- CRB:Paulo
5/902 Santos. II.
Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Educação. III.
Título.

CDD B869.2
Acima de tudo, agradeço a Deus por mais
essa realização. Dedico à minha mãe,
Mainha, por toda colaboração, incentivo e
amparo nas horas de desespero.
AGRADECIMENTOS

Nesses dois anos e alguns meses de pesquisa, várias pessoas me acompanharam,


algumas mais de perto e outras, mesmo distantes, se fizeram presentes nos conselhos, no
incentivo, na distração. Por sinal, precisei me fazer sorrir para lembrar que a vida é feita
de desafios, mas também de momentos de lazer que nos ajudam a respirar e voltar com
mais foco para enfrentá-los.
Primeiramente, agradeço a orientação competente, paciente e presente do
professor Paulo Santos Silva, fazendo-me chegar a uma narrativa coerente, evitando
equívocos no percurso da pesquisa. Agradeço a cada diálogo que se fez rico na
culminância desta dissertação.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em História da UNEB – Campus II.
Aos professores do Mestrado que contribuíram academicamente com a pesquisa: Aldrin
Armstrong Silva Castellucci e Clóvis Frederico Ramaiana Moraes Oliveira. A Diana
Dantas Marinho, pelo suporte burocrático. Sempre prestativa e educada.
Agradeço aos funcionários do arquivo que frequentei, pela solicitude: Biblioteca
Pública do Estado da Bahia, setor Periódicos Raros. Agradecer às ricas contribuições de
Izabel de Fátima Cruz Melo e Antônio Maurício Freitas Brito na avaliação, durante o
processo de qualificação. Apontamentos, reflexões e sugestões, que ajudaram no sentido
de amadurecer o trabalho em questão.
Aos professores da UNEB – Campus XIII, devo agradecer o incentivo e
aprendizado absorvido. A Adriana Albert, Cristiane Batista, Lígia Conceição, Regiane
Lopes, Silene Arcanjo, Gilmara Pinheiro, Jucélia Santos, Cleber Simões, Luiz Alberto
Lima, Hamilton Rodrigues, Josivaldo Oliveira, Rodrigo Lopes, Sidney Oliveira. E a
minha ex orientadora da graduação, Marinélia Silva, bruta flor de Riachão. Meu respeito
e carinho.
Igualmente, agradeço aos meus companheiros e companheiras de turma. Quem
disse que é difícil construir boas amizades durante esse período mentiu. Construímos um
laço bonito de respeito, camaradagem e carinho. Gostaria de render agradecimentos a:
Ane Miranda, mulher arretada que me inspira; a Aline Soraia Nascimento, pessoa doce e
atenciosa; Diego Gouveia, minha bolsa de mandinga; Emerson Carmo, meu amigo
intelectual e sarcástico; a Albione, companheiro de orientações e de desespero; a Esdras,
sempre sereno; a Celina, por tirar nossos risos nos momentos mais difíceis; a Caio, pelo
cuidado e pressão (risos); a Valnete (Iara) e Daiana (Dai), por chutar o pau da barraca
quando preciso.
Não posso deixar de agradecer à República das Minas, em Alagoinhas, onde morei
durante os créditos do mestrado. À minha companheira de quarto que se tornou uma
amigona, Tia Liu, Hanna, Monique e Ellen. Pelos risos e diversão em momentos vagos.
A incrível amizade que carrego ao longo desse percurso acadêmico: Daniana
Oliveira. Uma criatura maravilhosa, parceira, arretada e super otimista. Aos meus demais
amigos (as) do Campus XIII: Poli, Fran, Jéssica, Alcione, Rose, Tahy, Grazy, Atílio,
Jhon, Caio, Izac e Nei. Obrigada pela torcida constante.
Agradeço aos colegas do IFBA – Campus de Irecê: Carlos Joulbert, Leonardo de
Jesus, Stella de Jesus, Aline Moraes, Alba Rodrigues, Juliano Lopes, Ivan Belo, Filipe,
Nalysson, Priscila de Jesus, Raquel Sachdev, Jorge Cotinguiba, Palloma Rios, Luciene
Chaves, Samile Guimarães, José Oliveira, Rogério Boas, Luzia de Azevedo, Airan
Protazio, Cida, Taiane, Ancelmo, Ana Carolina, Seu Ney e tantos outros colegas que se
alongaria em descrever aqui. Sintam-se lembrados pelo apoio e incentivo que me foi
fornecido.
Agradeço à minha família, por todo apoio prestado. Em especial a minha mainha,
Dona Jô! A painho, Baldo. Aos meus irmãos: Raphaela, Raphael, Jamil, pelos momentos
que me divertiram, me hospedou, me deram carinho e amor naqueles dias de longas
orientações e pesquisa em Salvador. A Larissa (Lari) agradeço as extensas conversas, as
trocas de experiências com nossas pesquisas, as palavras sensatas de motivação e todo o
amor compartilhado.
Aos meus sobrinhos, maravilhosos: Lulu, Davi e Bento que chegou no meio dessa
jornada de mestrandas. Eu e sua “mami” te amamos muito! Agradeço aos meus cunhados:
Rafa, exemplo de historiador; a Lipe, pela acolhida, boas conversas e risos; a Lidy, pelo
incentivo. Enfim, a todos que contribuíram direto e indiretamente para que eu concluísse
essa pesquisa.
RESUMO

Esta dissertação delineia a trajetória da peça O Pagador de Promessas, do dramaturgo


Alfredo de Freitas Dias Gomes (1922-1999). Coloca-se em perspectiva a repercussão da
sua escrita, encenação e versão fílmica que se estende até o final da década de 1960, a
partir de estreias e reestreias em diversas partes do mundo. Para narrar o percurso desse
produto cultural, entrecruza-se o contexto histórico, social e político de 1959 a 1969, além
de levarmos em conta a rede de artistas e intelectuais da qual Dias Gomes fazia parte. As
indagações que norteiam a investigação e dão sentido ao objeto da pesquisa emergem dos
desdobramentos do texto teatral, que transita do palco ao cinema. Discute-se a
intervenção de Dias Gomes no debate acerca da identidade nacional-popular e da
religiosidade. A interpretação do Brasil que realiza em sua obra teatral de 1959
desdobrou-se e foi perseguida pela censura tanto no teatro como no cinema.

Palavras- chave: Trajetória; peça; filme; Dias Gomes.


ABSTRACT

This thesis outlines the trajectory of the play O Pagador de Promessas, by the playwright
Alfredo de Freitas Dias Gomes (1922-1999). We put in perspective the repercussion of
his writing, staging, and film version extending into the late 1960s, from debuts and re-
debuts in various parts of the world. To narrate the course of this cultural product, the
historical, social and political context from 1959 to 1969 is intersected, and we take into
account the network of artists and intellectuals of which Dias Gomes was part. The
questions that guide the investigation and give meaning to the object of research emerge
from the unfolding of the theatrical text, which goes from stage to cinema. We discuss
the Dias Gomes' intervention in the debate about religiosity and national-popular identity.
His Brazil's interpretation in the 1959 theatrical work unfolded and was pursued by
censorship in both theater and cinema.

Keywords: Trajectory; play; movie; Dias Gomes.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Imagem 1: Cartaz de divulgação da peça O Pagador na Bahia. A Tarde, 13 jul. 1962, p.


9.....................................................................................................................................72

Imagem 2: Dias Gomes e o cartaz do filme. Revista Manchete, Rio de Janeiro, 1jun.1962,
p. 49. Nº 525..................................................................................................................75

Imagem 3: Divulgação da peça no Rio de Janeiro. Correio da Manhã, 7 set. 1965, p. 8.82

Imagem 4: Capa da Revista Manchete, Rio de Janeiro, 9 jun. 1962, Nº 529....................89

Imagem 5: Atriz francesa Edwige Feuillère entregando o Palma de Ouro a Anselmo


Duarte. Revista Manchete, Rio de Janeiro, 16 jun. 1962, p. 42, Nº 525............................90

Imagem 6: Poster com o elenco do filme. Revista Manchete, Rio de Janeiro, 16 jun. 1962,
p. 45, Nº 525.....................................................................................................................91

Imagem 7: Chegada do diretor e do elenco de O Pagador ao porto de Santos, Revista


Manchete, Rio de Janeiro, 21 jul. 1962, p. 84, Nº 535.......................................................92

Imagem 8: Anselmo Duarte, Dias Gomes e o elenco desfilando em cima do carro de


bombeiros em Santos. Revista Manchete, Rio de Janeiro, 21 jul. 1962, p. 86, Nº 535......93
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABL - Academia Brasileira de Letras

ABCT - Associação Brasileira de Críticos Teatrais

AI - Ato Institucional

BNDigital - Biblioteca Nacional Digital

BPEB - Biblioteca Pública do Estado da Bahia

CCC - Comando de Caça aos Comunistas

CICT - Círculo Independente de Cronistas de Teatro

CPCs - Centros Populares de Cultura

CPDOC - Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil

CTI - Comando dos Trabalhadores Intelectuais

DIP - Departamento de Imprensa e Propaganda

DOPS - Departamento de Ordem Política e Social

ISEB - Instituto Superior de Estudos Brasileiros

OPP - O Pagador de Promessas

PCB - Partido Comunista Brasileiro

SNT- Serviço Nacional de Teatro

TAP - Teatro de Amadores de Pernambuco

TBC - Teatro Brasileiro de Comédia

TNC - Teatro Nacional de Comédia

UNE - União Nacional dos Estudantes


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................13

1. O CONTEXTO DE O PAGADOR DE PROMESSAS.........................................26

1.1 Brasil e Bahia nos rastros de uma década (1959-1969)....................................26

1.2 “Escritor precoce” e engajado: uma breve trajetória........................................33

1.3 Dias Gomes e o Golpe de 1964........................................................................44

2. A GESTAÇÃO DA PEÇA E SUAS ESTREIAS...............................................52

2.1 O processo de escrita........................................................................................52

2.2 O dualismo entre campo e cidade na peça.......................................................58

2.3 Identidade Nacional-Popular na dramaturgia...................................................61

2.4 A estreia e (reestreias) e a repercussão nacional e internacional.....................66

3. VERSÃO CINEMATOGRÁFICA, A PALMA DE OURO E A CENSURA...77

3.1 Adaptação para a versão cinematográfica..........................................................77

3.2 O Pagador de Promessas depois de Cannes....................................................86

3.3 A censura que rondava as produções culturais..................................................97

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................102
5. FONTES...........................................................................................................104
6. REFERÊNCIAS...............................................................................................105
13

INTRODUÇÃO

O objetivo desta dissertação é analisar a trajetória da peça O Pagador de Promessas,


de Alfredo de Freitas Dias Gomes (1922-1999), articulando o texto dramatúrgico com as
condições sociais e políticas que ensejaram sua composição. A análise toma como ponto
de partida o momento de escrita da obra (1959) até sua transformação em filme (1962).
Assim, consideram-se as estreias e as reestreias da peça e do filme em um processo que
se estende até o final dos anos de 1960. Levada ao palco pela primeira vez em São Paulo
pelo Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) em 1960, O Pagador de Promessas, em sua
versão cinematográfica, foi lançado no Festival Internacional de Cannes, premiado então
com o Palma de Ouro, em 1962.
A peça narra a história de Zé-do-Burro, personagem que sai do sertão da Bahia para
pagar uma promessa na Capital, feita para seu amigo Nicolau, o burro, na Igreja de Santa
Bárbara. O animal foi atingindo por um galho de árvore, durante um dia de tempestade.
Segundo a Mãe de Santo, era para Iansã que Zé tinha que cumprir a obrigação.
Quando Zé contou ao padre Olavo que fez a promessa à imagem de Iansã, em um
terreiro de Candomblé, justificando seu ato por conta da falta de uma imagem da Santa
na capela do povoado, o padre não permitiu que a personagem realizasse seu desejo.
Intolerante, disse-lhe que a promessa foi feita para o diabo e não para a Santa Bárbara.
Não aceitou também o fato de Zé-do-Burro ter procurado um rezador afamado em sua
região, Preto Zeferino, que, por vezes, já tinha lhe curado uma dor de cabeça.
A hipótese inicial com a qual se partiu para a investigação não se manteve. Tratava-
se de perceber elementos religiosos de matriz africana na composição do texto
dramatúrgico de Dias Gomes. Havia pistas para esta possibilidade quando se levava em
conta as relações pessoais do escritor com intelectuais do seu entorno, particularmente
Jorge Amado e mais ainda Edison Carneiro. No correr da pesquisa, as fontes revelaram
que a ideia do sincretismo religiosos só apareceu no texto da peça em sua versão reescrita,
conforme uma fala do autor, devidamente citada no corpo do capítulo que se ocupa da
questão do processo de escrita da peça.
Este exercício de ir e vir das fontes à escrita abriu a perspectiva de uma nova hipótese
de trabalho ajustada às condições da investigação. Optou-se então pela perspectiva de
análise que sugere examinar os produtos culturais como um fenômeno dinâmico, que se
transforma de acordo com as demandas e as circunstâncias de diferentes conjunturas. Daí
14

as razões de se abordar O Pagador de Promessas tanto em sua versão para os palcos como
no cinema. Não para analisar a realização sob critérios estéticos ou sob a ótica da história
do teatro ou do cinema brasileiro, mas como uma intervenção intelectual e artística que,
mesmo em diferentes suportes, continuou incomodando o sistema e atraindo os
dispositivos da censura.
Essa circunstância cobrou da abordagem a ampliação do recorte temporal para dar
conta dos desdobramentos de uma obra que rompeu seus limites originais, ganhando
novos horizontes que ultrapassaram os propósitos iniciais de seu criador. Disso resultou
a trajetória que foi construída nesta dissertação com vista a cumprir a necessária
articulação entre indivíduos, grupos sociais e artísticos, conjunturas políticas em
perspectiva histórica.
A passagem dos palcos à tela significou a transferência de suporte e, portanto, de
sentido, aspecto que deve ser levado em consideração na análise histórica, conforme
alerta, entre outros, Roger Chartier, “[...] a possível transferência do patrimônio escrito
de um suporte a outro, do códex à tela [...]”1.
As questões que esta dissertação analisa remetem as estratégias de abordagem
desenvolvidas no âmbito da História Cultural. Esta vertente possibilitou aos historiadores
novos olhares, novas fontes e problemas. A literatura, o cinema e os periódicos, por
exemplo, durante anos foram considerados fontes complementares e "auxiliares".
Segundo Roger Chartier, ao se referir à História Cultural “[...] tem por principal objetivo
identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade
cultural é construída, pensada, dada a ler.”2
Nesses termos, as noções de práticas e representações elaboradas por Chartier,
contribuem para a análise das representações coletivas e das identidades sociais. Ele
acredita que as “[...] representações são matrizes de práticas construtoras do próprio
mundo social”3, ou seja, seriam determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam.
Segundo o autor, é necessário ressaltar as lutas de representações, pois enceta a
“hierarquização da própria estrutura social.” A História Cultural pode ser útil à
compreensão do social, pois também incide sua atenção sobre as estratégias que

1
CHARTIER, Roger. Formas e sentidos. Cultura escrita: entre distinção e apropriação. Tradução Maria de
Lourdes Meirelles Matencio. Campinas, SP: Mercado de Letras; Associação de Leitura Brasil (ALB), 2003,
p. 46.
2
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1990, p. 17.
3
Ibid., p. 17.
15

determinam posições e relações de força entre os grupos sociais. 4 A partir das noções
apresentadas por Chartier, analisamos as representações elaboradas por Dias Gomes.
Há sobre o uso da literatura uma série de concepções e abordagens distintas quanto à
sua utilização pelos historiadores. Dessa forma, procura-se dialogar com alguns críticos
como Antônio Cândido, que nos adverte sobre o problema fundamental para a análise
literária de obras, sobretudo de teatro e ficção: “[...] averiguar como a realidade social se
transforma em componente de uma estrutura literária, a ponto dela poder ser estudada em
si mesma; e como só o conhecimento desta estrutura permite compreender a função que
a obra exerce.”5
A realidade social exposta em O Pagador é a de um Brasil nacionalista e populista.
Nessa perspectiva, Dias Gomes se alinha aos valores políticos de esquerda na busca por
essa identidade cultural que poderia ser convertida em símbolo de luta.
Ao discutir o estatuto da “verdade” na esfera ficcional, Mario Vargas Llosa sugere
pistas que ajudam o historiador em suas investigações. Segundo ele, a literatura dispõe
do poder de ter “[...] a verdade escondida no coração das mentiras humanas”6 sem engano
algum “[...] a não ser para os ingênuos, que acreditam que a literatura deve ser
objetivamente fiel à vida e tão dependente da realidade quanto a história.”7 Por isso, se
torna pertinente, ao analisar O Pagador de Promessas, a liberdade imaginativa de Dias
Gomes.
O Pagador de Promessas consistiu em uma forma de intervenção política, tanto pela
militância do autor como pela problemática discutida no texto dramatúrgico. Roberto
Schwarz, cujos escritos são empregados aqui para analisarmos a cultura e a política
durante e após a ditadura, afirma que a presença da cultura de esquerda não foi liquidada
com o golpe em 1964. Mesmo com a repressão e a censura, ela não parou de crescer.
Essas considerações do crítico encontram suporte na trajetória da peça de Dias Gomes.
Schwarz questiona: “[...] que interesse terá a revolução nos intelectuais de esquerda,
que eram muito mais anticapitalistas de elite que propriamente socialistas?” 8 Essa
contradição foi sobretudo respondida pela literatura, por exemplo, em Quarup, de

4
CHARTIER, 1990, p. 23.
5
CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 9 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre o Azul, 2006, p.9.
6
VARGAS LLOSA, Mário. A verdade das mentiras. Trad. Cordelia Magalhães. São Paulo: Editora Arx,
2004, p. 25.
7
Ibid., p. 25.
8
SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 55.
16

Antônio Callado (1917-1997)9. Na obra, a personagem intelectual, o padre, “[...] viaja


geográfica e socialmente o país, despe-se de sua profissão e posição social, à procura do
povo, em cuja luta irá se integrar.”10 No final da peça, Dias Gomes, ao retratar a união do
povo quando juntos enfrentaram as autoridades e entraram na igreja carregando o corpo
de Zé-do-Burro, talvez, esteja propondo uma metáfora segundo a qual somente o povo
unido fará a revolução.
Essa produção cultural logo no início dos anos 1960 dá ênfase ao nacionalismo,
porém, tem como ponto de partida a noção de povo. Foi largamente disputada tanto por
diversos campos da esquerda quanto entre as esquerdas e o estado. Segundo Heloísa
Buarque de Hollanda, tanto no pré como no pós-64 as artes foram marcadas pelo debate
político: “Seja ao nível da produção em traços populistas, seja em relação às vanguardas,
os temas da modernização, da democratização, o nacionalismo e a ‘fé no povo’, estarão
no centro das discussões, informando e delineando a necessidade de uma arte participante
[...]”11
Os estudos de Heloísa Buarque de Hollanda fazem refletir sobre a efervescência
política dessa década e sobre a adesão dos artistas e intelectuais ao projeto revolucionário.
Nesse processo, o engajamento cultural estava diretamente relacionado à militância
política.12
Essa efervescência cultural aconteceu em âmbito nacional. Na Bahia, vários artistas e
intelectuais ligados ao Partido Comunista do Brasil (PCB)13 aderiram a esse projeto, que
mesclava militância de esquerda ao engajamento cultural, a exemplo de Jorge Amado,
Edison Carneiro e Dias da Costa.

9
Antônio Carlos Callado (1917-1997) diplomou-se em Direito em 1939. Foi um jornalista, romancista,
biografo e dramaturgo brasileiro. Disponível em: <http://www.academia.org.br/academicos/antonio-
callado/biografia> Acesso em: 14 jul. 2018, às 13:16 h.
10
Ibid., p. 55.
11
HOLLANDA, Heloísa Buarque. Impressões de Viagem CPC, Vanguarda e Desbunde: 1960/1970. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1980, p. 17.
12
Ibid., p. 15.
13
“Primeiro, é necessário enfatizar o caráter histórico desta questão. O PCB (Partido Comunista Brasileiro)
é o partido histórico dos comunistas brasileiros, reconhecido pela Internacional Comunista e pelos partidos
comunistas que se alinhavam com a antiga União Soviética. Fundado em 1922, com o nome de Partido
Comunista do Brasil e a sigla PCB, no início dos anos 60, em função da possibilidade de legalização e para
evitar provocações da direita, que afirmava ser o PCB apenas uma sucursal da Internacional Comunista, o
partido trocou o nome de Partido Comunista do Brasil, para Partido Comunista Brasileiro, de forma a
enfatizar o caráter nacional do Partido. Essa foi uma decisão da absoluta maioria do partido visando a sua
legalização.” Acontece uma cisão em 1958, e em 1962, “[...] companheiros se apropriaram do nome anterior
do PCB (Partido Comunista do Brasil), e colocaram no novo partido a sigla PC do B, que aparece pela
primeira vez na história política brasileira – isso em 1962.” Disponível em: <
https://pcb.org.br/portal2/580/as-diferencas-entre-pcb-e-pcdob/> Acesso em: 26 jul. 2019, às 11:40 h.
17

Ao estudar a movimentação cultural na Bahia nos anos de 1950 e 1960, Maria do


Socorro Silva Carvalho destaca significativas mudanças políticas, sociais e, sobretudo,
culturais. A autora propõe que a produção cultural dessa época se propagou através das
ciências sociais, do teatro, da literatura, da música e do cinema. Sua abordagem analisa
aspectos da cultura cinematográfica baiana, entre os anos de 1956 e 1961.14
É importante pensar Dias Gomes como membro dessa propagação, já que O Pagador,
em 1961, estava circulando nas livrarias através da publicação da obra pela Editora Agir.
Também já tinha sido encenada desde 29 de julho de 1960, pelo TBC, sob a direção de
Flávio Rangel (1934-1988), e se preparava para sua versão fílmica. As mudanças
políticas, sociais e culturais estão presentes em O Pagador de Promessas. A peça
apresenta Salvador já em processo de modernização, com uma sociedade heterogênea
com crenças e valores diversos, além de retratar questões como a reforma agrária.
A pesquisa desenvolvida por Marcelo Ridenti corrobora esta abordagem na medida
em que explica, sobretudo, a produção artística e intelectual do pós-64, o vínculo cultura
e política desse período, dando ênfase ao conceito nacional-popular. Segundo Ridenti, o
romantismo, descrito por Michael Löwy e Robert Sayre, busca “[...] recuperar no presente
certos valores humanos essenciais que foram perdidos com a alienação, a reificação e a
generalização do fetichismo da mercadoria.”15
Dias Gomes estava nesse círculo de artistas e intelectuais denominados por Carlos
Guilherme Mota de“forças vivas da nação”, os quais buscavam no desenvolvimento
econômico maior participação política e social, para chegar possivelmente a uma
revolução burguesa no país.16 Mota, em alguma medida, acredita que a cultura e a política
pós-64 surgiram como faces de uma só moeda, em que “[...] a conjuntura dinamizada
pelas forças da repressão provocou a eliminação das ‘distâncias’ entre os dois níveis.”17
Desse modo, visualizamos no enredo da obra de Dias Gomes a possibilidade do Zé-do-
Burro e os demais personagens representarem esse povo. Um segmento que é simples, do
interior ou da Capital, constituído por beato (a), baiana de acarajé, filhos de santo (a),
capoeiristas, cordelista, dono de vendola, cafetão e prostituta.

14
CARVALHO, Maria do Socorro Silva. Imagens de um tempo em movimento: cinema e cultura na Bahia
nos anos JK (1956-1961). Salvador: EDUFBA, 1999, p. 23.
15
RIDENTI, Marcelo. In: LÖWY, Michel; SAYRE, Robert. Revolta e Melancolia: o Romantismo na
contramão da modernidade. 1ed. São Paulo: Boitempo, 2015. Orelha.
16
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira, 1933–1974. São Paulo: Editora Ática, 9º ed.,
1994.
17
Ibid., p. 205.
18

Em perspectiva mais ampla, Marcos Napolitano fornece uma síntese do Regime


Militar em que tem por objetivo refletir sobre um período longo de autoritarismo político
no país e suas repercussões sociais: “A parte da sociedade brasileira comprometida com
a democracia, em seus diversos matizes, não só lutou contra o Estado autoritário como
foi obrigada a encarar os valores autoritários presentes nas relações sociais como um
todo.”18
Embora tenha sido concebida antes do golpe de 1964, a peça de Dias Gomes já
questionava “os valores autoritários” presentes na sociedade civil brasileira, inclusive no
âmbito da Igreja Católica. O viés crítico da obra continuou sólido e vigente mais ainda
durante os anos do regime.
Além de Ridenti, Mota e Napolitano que se dedicaram à problemática da cultura do
período, outros autores, de forma mais direta e específica, escreveram e descortinaram
questões a respeito do dramaturgo Dias Gomes. Entre eles, Igor Pinto Sacramento que,
em sua tese, Nos tempos de Dias Gomes: a trajetória de um intelectual comunista nas
tramas comunicacionais, faz a análise das relações entre a intelectualidade comunista e a
indústria midiática (teatro, rádio, cinema e televisão) a partir da trajetória de Dias Gomes
e o jornalista e crítico de teatro, Anatol Rosenfeld que escreve sobre Gomes no livro, O
mito e o herói no moderno teatro brasileiro, publicado em 1982.19
Dias Gomes relatou em uma entrevista a Encontros com a Civilização Brasileira nº
6, em 1978, que Anatol Rosenfeld foi de fato, o instrumento crítico mais bem aparelhado
posto a serviço do teatro brasileiro. “[...] quando ele classifica minhas experiências como
uma dramaturgia em favor do povo, ele define também a minha concepção de teatro
popular, um teatro em favor, ou melhor, do ponto de vista do povo.”20 E por fim,
dialogamos com o livro de Iná Camargo Costa, publicado em 2017, Dias Gomes: um
dramaturgo nacional-popular.21
Nesse livro, Iná Costa enriquece nossa compreensão do teatro moderno brasileiro e
de seu contexto histórico, ao analisar doze peças de Dias Gomes, reportando-se à sua

18
NAPOLITANO, Marcos. O Regime Militar Brasileiro:1964-198. São Paulo: Atual, 1998, p. 100.
19
ROSENFELD, Anatol. O mito e o herói no moderno teatro brasileiro. São Paulo: Editora Perspectiva,
1982.
20
GOMES, Luana Dias; GOMES, Mayra Dias. Dias Gomes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012, p.
86.
21
Esse livro de Costa é fruto de sua dissertação de mestrado defendida no Departamento de Filosofia da
Universidade de São Paulo (USP), em 1987. O texto foi resgatado pela professora do Departamento de
Filosofia da Unesp, Ana Portich, que recebeu o aval da autora para digitalizá-lo na íntegra, uma vez que o
texto foi redigido à máquina de datilografia, e não permitia a execução da necessária revisão para o formato
livro.
19

produção de 1959 a 1979. O recorte temporal dela é mais abrangente que o nosso e aborda
sob olhar diferente, filosófico, em relação às peças, sem destaque para a trajetória de O
Pagador e a questão da religiosidade popular. A autora conclui no livro que, “[...]
desenvolvido em terras nacionais sem laço concreto com o operariado, o teatro nacional-
popular brasileiro opta por evidenciar, no plano da criação cultural, a falência da aliança
de classe que vigorava até o golpe de 1964.”22
O aspecto específico da abordagem de Iná da Costa que se conecta com esta pesquisa
é justamente o fato da dramaturgia de Dias Gomes voltar-se para o nacional-popular. Ela
concluiu em suas investigações que o teatro político ainda estava por ser escrito no Brasil.
Porém, afirma que coube ao Partido Comunista do Braileiro (PCB), por meio dos Centro
Popular de Cultura (CPC), que desde o início se pautou em favor de um teatro nacional-
popular e a sua disseminação, cumprir essa tarefa.
Para Iná da Costa, o teatro nacional-popular se torna hegemônico quando o Teatro
Brasileiro de Comedia (TBC) “[...] até então trincheira mais importante do teatro
‘apolítico’ – encenou O Pagador de Promessas [...]”23. As fontes utilizadas por Iná da
Costa foram críticas teatrais de periódicos da época, paulistas e cariocas, que ajudaram
na análise das produções culturais de Dias Gomes que expressam dentre outras coisas o
imaginário contemporâneo sobre o Brasil.
A abordagem aqui proposta ancora-se na peça O Pagador de Promessa, na
autobiografia Dias Gomes: Apenas um subversivo (1998), no livro de entrevistas e artigos
selecionados pelas filhas do dramaturgo, Dias Gomes (2012) e nos periódicos baianos e
cariocas (jornais e revistas).
Antonio Celson Ferreira ressalta que afirmar que a literatura compõe o repertório das
fontes históricas não causa, ou não deveria causar, qualquer estranheza ou polêmica. O
autor acredita que os textos literários passaram a ser enxergados pelos historiadores como
materiais de múltiplas leituras, “[...] especialmente por sua riqueza de significados para o
entendimento do universo cultural, dos valores sociais e das experiências subjetivas de
homens e mulheres no tempo.”24
Sandra Pesavento acredita que a partir do cruzamento entre História e Literatura, o
historiador se vale do texto literário “[...] como porta de entrada às sensibilidades de um

22
COSTA, Iná Camargo. Dias Gomes: um dramaturgo nacional-popular. São Paulo: Editora Unesp, 2017.
Orelha.
23
Ibid., p. 166.
24
FERREIRA, Antônio Celson. A fonte fecunda. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tânia Regina de
(Org.). O Historiador e suas fontes. 1. Ed. São Paulo: Contexto, 2011. p.61.
20

outro tempo, justo como aquela fonte privilegiada que pode acessar elementos do passado
que outros documentos não proporcionam.”25Aqui destacamos a importância da peça
impressa, que possibilita fazer a análise de O Pagador de Promessa com base nos
elementos circunstanciais que marcaram suas condições de escrita e produção:
desenvolvimentismo, nacionalismo, populismo, reforma agrária, religiosidade e
intolerância que estão discutidos ao longo da dissertação.
A intensificação do diálogo entre os dois campos deve-se aos compromissos com os
procedimentos narrativos que aproximam as escritas ficcional e historiográfica. Podemos
citar pesquisas refinadas nesse sentido, em que se fundem de maneira exemplar a história
cultural e a história social, além de reconhecerem a contribuição da ficção na escrita dos
historiadores, preocupando-se com a narrativa em seus textos. Natalie Zemon Davis
mostra, ao narrar a trajetória de Martin Guerre e do embuste Arnaud Du Tilh, na França
do século XVI, como o historiador pode proceder utilizando a imaginação, sem deixar de
lado a pesquisa documental.26
Outro historiador citado com frequência pelos demais, devido a seu investimento em
favor da narrativa, é Carlo Ginzburg no livro O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias
de um moleiro perseguido pela Inquisição. Neste trabalho, Ginzburg analisa de forma
minuciosa as fontes que vão além dos processos inquisitoriais.
São várias as abordagens que inspiram e justificam os procedimentos aqui adotados.
Assim, valorizamos a fonte literária sob a influência das questões formuladas por Nicolau
Sevcenko ao se referir à criação literária. Segundo ele, este tipo de fonte “[...] revela todo
o seu potencial como documento, não apenas pela análise das referências esporádicas a
episódios históricos ou do estudo profundo dos seus processos de construção formal, mas
como uma instância complexa e repleta das mais variadas significações [...]”27
A fonte literária é vista como discurso produtor de realidade e, ao mesmo tempo,
produzida em determinadas condições históricas e tomada como uma obra a ser
fecundada pela imaginação, como nos sugere Durval Muniz de Albuquerque Jr.28, ao se
referir a desierarquização de fontes. Por isso, a importância de trabalhar com essa fonte

25
SILVA, Paulo Santos (Org.). Desarquivamento e Narrativas: História e Literatura e Memória. Salvador:
Quarteto, 2010, p.18-19.
26
DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Tradução Denise Bottmann. Rio de Janeiro; Paz e
Terra, 1987.
27
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República.
São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 246.
28
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez,
2009, p.45.
21

rica em detalhes que, “[...] incorpora a história em todos os seus aspectos, específicos ou
gerais, formais ou temáticos, reprodutivos ou criativos, de consumo ou produção.”29
Na peça de Dias Gomes identificamos as condições históricas da Bahia daquela época,
nas divergências entre as crenças e valores acoplados por segmentos da Capital em
processo de desenvolvimento e o interior do Estado de onde Zé-do-Burro se desloca. Com
suas fronteiras porosas, no drama de Zé-do-Burro, espaços urbanos e rurais se fundem e,
em certa medida, se contradizem, sem anular o nexo com a cultura popular, articulando
modalidades de crenças e identidades sócio-religiosas.
É sabido que temos uma vasta bibliografia sobre história e biografia. Tomamos como
referência o que Giovanni Levi aponta sobre biografia e contexto, quando afirma que
“[...] uma vida não pode ser compreendida unicamente através de seus desvios ou
singularidades, mas ao contrário, mostrando-se que cada desvio aparente em relação às
normas ocorre em um contexto histórico que o justifica.”30Assim, não é possível pensar
as intervenções de Dias Gomes fora de um contexto que sem o limitar, o possibilita e abre
perspectiva para repercutir em outras circunstâncias, sob novas leituras.
É importante considerarmos o que Edward Carr afirma sobre sociedade e indivíduo:
“Toda sociedade é uma arena de conflitos sociais e aqueles indivíduos que se enfileiram
contra a autoridade existente não são menos produtos e reflexos da sociedade do que
aqueles que a sustentam.”31Intercalando sua vida pessoal e profissional, seguimos o nexo
de uma ordem cronológica que também é uma ordem lógica, como nos sugere Pierre
Bourdieu “[...] desde um começo, uma origem, no duplo sentido de ponto de partida, de
início, mas também de princípio, de razão de ser, de causa primeira, até seu término, que
também é um objetivo.”32
As práticas de escrita de si podem evidenciar como uma trajetória individual tem um
percurso que se altera ao longo do tempo e decorre por sucessão. É o caso de Dias Gomes:
escritor precoce e engajado; incursão do artista no Partido Comunista Brasileiro (PCB),
no Serviço Nacional de Teatro (SNT) e na Academia Brasileira de Letras (ABL); nos
meios de comunicação de massa, bem como seu relacionamento com a escritora/autora
Janete Clair e com a atriz Bernadete Lys.

29
Ibid., p. 246.
30
LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (org.) Usos
e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p. 176.
31
CARR, Edward Hallet. A Sociedade e o Indivíduo. In: CARR, Eward Hallet. Que é História? Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 87.
32
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO Janaína (og.)
Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p. 184-191.
22

Segundo Schmidt, “[...] o gênero biográfico emerge na história e no jornalismo no


bojo de um processo de aproximação destas áreas com a literatura, o que implica uma
incorporação do elemento ficcional e a adoção de determinados estilos e técnicas
narrativas.”33As obras sobre Dias Gomes de que lançamos mão nesta abordagem
prendem-se a esta condição, sobretudo aquelas em que ele realiza uma “escrita de si”.
Para Philippe Lejeune, a autobiografia nada mais é que uma biografia, escrita pelo
interessado. No caso do itinerário autobiográfico de Dias Gomes narrado em seu livro
Apenas um Subversivo (1998) não nos deixa dúvidas que a identidade de nome ocorre
entre autor, narrador e personagem. Segundo Ângela Gomes, temos uma oferta de
múltiplos e frutíferos exercícios de análise, utilizando a escrita de si como fonte e/ou
objeto de estudos historiográficos.34
A orelha da autobiografia é intitulada A Palavra Insubmissa. É escrita pelo crítico
literário Eduardo Portella, que apresenta o livro como memória desconfiada do
dramaturgo Dias Gomes “A opção da memória é quase precedida de uma advertência
convicta, que se repete ao longo do livro: ‘Não confio nela, mas o que posso fazer?’. A
memória arranca as coisas de dentro das pessoas, com aquela voracidade que quase nunca
se faz acompanhar da veracidade.”35
A escrita de si nos apresenta a “[...] verdade, não mais unitária, mas sem prejuízo de
solidez, passa a ser pensada em sentido plural, como são plurais as vidas individuais,
como é plural e diferenciada a memória que registra os acontecimentos da vida.”36
Lejeune propõe, em O Pacto Autobiográfico, que o nome do personagem igual ao
nome do autor, por si só, exclui a possibilidade de ficção, embora advirta: “Ainda que,
historicamente, seja completamente falsa, a narrativa será da ordem da mentira (que é
uma categoria autobiográfica) e não da ficção.”37 Dias Gomes inicia o livro sobre sua
trajetória frisando: “Não poderia nunca jurar dizer a verdade, toda verdade, nada mais que
a verdade, tão forte é a imagem da mentira que vem junto, grudada, parasitada. Não será

33
SCHMIDT, Benito Bisso. Construindo Biografias...Historiadores e Jornalistas: Aproximações e
Afastamentos. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 10, nº 19, 1997, p. 8.
34
GOMES, Ângela Castro. Escrita de si, escrita história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p.22.
35
PORTELLA, Eduardo. A Palavra Insubmissa. In: GOMES, Dias. Dias Gomes: Apenas um subversivo.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. Orelha.
36
GOMES, 2004, p. 14.
37
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Organização Jovita Maria
Gerheim Noronha; tradução Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. 2ed., Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2014.p. 35.
23

a mentira, muitas vezes, mais reveladora que a verdade?”38 Concluiu dizendo que a última
tem muito mais a ver com ele.
Outros suportes documentais são as reportagens nos periódicos baianos sobre a peça
e o filme O Pagador de Promessas. Periódicos da Biblioteca Pública do Estado da Bahia
(BPEB) setor raros: Diário de Notícias (BA), Estado da Bahia, A Tarde, Jornal da Bahia.
As Revistas: Manchete (RJ) e Teatro Ilustrado (RJ). Na Biblioteca Nacional Digital
(BNDigital) optamos por fazermos uma varredura em alguns periódicos cariocas: Diário
de Notícias (RJ), Correio da Manhã (RJ), Jornal do Brasil (RJ) e o Tribuna da Imprensa
(RJ).
Ao consultar estas fontes, procuramos perceber a manipulação e o interesse de
intervenção dos editoriais nas matérias utilizadas. Os periódicos são veículos de
comunicação que não são transmissores imparciais, possuindo posição ideológica,
política e social dentro do meio em que estão inseridos.
Segundo Tania de Luca, o papel desempenhado pelos periódicos em regimes
autoritários, como é o caso do regime civil-militar, serviu de amordaçamento, “[...] em
vários momentos, a imprensa foi silenciada, ainda que por vezes sua própria voz tenha
colaborado para criar as condições [...]”39 Sejam na condição de espaços de resistência,
que contestavam o regime, ou editoriais no papel de difusor de propaganda política
favorável aos militares.
Ainda utilizando os periódicos como fontes, volta-se a atenção para algumas imagens
e fotografias dos jornais e revistas analisadas. Essas são representações do real, como nos
sugere Circe Maria Fernandes Bittencourt. Para analisar a fotografia como documento
temos que desconstrui-la: “A desconstrução da imagem fotográfica pode ser iniciada pela
análise do papel do fotógrafo na produção de uma foto. Existe sempre um sujeito por trás
da máquina fotográfica. Existe sempre a manipulação da fotografia por ele [...]”40 Esta
preocupação esteve presente em vários momentos desta pesquisa.
Em uma das imagens analisadas no terceiro capítulo desta dissertação, da Revista
Manchete, usou-se da escolha do espaço, das pessoas em determinadas posturas, a
luminosidade, o foco em determinados ângulos para destacar o elenco do filme que
ganhou o prêmio em Cannes. Os personagens estão na escadaria que foi cenário da

38
GOMES, Dias. Dias Gomes: Apenas um subversivo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1998, p. 13.
39
LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezzi
(org). Fontes Históricas. São Paulo, 2008, p. 129.
40
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. "Documentos não escritos na sala de aula". In: Ensino de
História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez Editora, 2011, p. 367.
24

película. Alguns estão olhando para câmera, outros estão sorrindo um para o outro; se
olhando e alguns como se estivessem conversando. O protagonista Zé-do-Burro se
encontra de braços cruzados como se estivesse reclamando com a esposa, Rosa, que se
encontra de braços dados com Bonitão, que tem Marli segurando no outro braço. Ou seja,
esse cenário foi organizado pelo fotografo com o objetivo de divulgar o produto cultural.
É relevante considerar o que Marcos Napolitano alerta em relação a pesquisa do
historiador que, segundo ele, deve partir do próprio filme, através de análise interna e
depois seguir para análises externa: “O cinema, ou o audiovisual de ficção, ocupa um
estatuto intermediário entre as duas ilusões aludidas, a ‘objetivista’ e a ‘subjetivista’.”41
Devemos identificar outros processos que ajudam a compreender melhor os
significados históricos e sociais daquela produção, para além do que a imagem fílmica
em movimento apresenta. A busca do que está em volta do filme é o que Marc Ferro vai
chamar do “não-visível através do visível”.42 Apesar de não utilizar o filme em si como
fonte, é importante levar-se em conta esses recursos metodológicos do audiovisual, para
compreender como as imagens em movimento impactaram a plateia da película.
Todas essas fontes foram analisadas de formas diferentes. Tomamos o cuidado para
não cair na “ilusão biográfica” ao utilizarmos a autobiografia. Identificamos que ela segue
um nexo em relação às entrevistas já concedidas por Dias Gomes antes da sua publicação.
O livro de entrevistas elaborado por suas filhas — Dias Gomes — também evidencia o
interesse em manter a versão do pai das autoras sobre protagonismo dele em suas
histórias.
No primeiro capítulo desta dissertação esboçamos a trajetória deste autor, dramaturgo,
telenovelista e ensaísta, Dias Gomes. Intercalamos sua vida pessoal e profissional,
compreendendo seu engajamento político ideológico, sua formação religiosa, a dinâmica
intelectual do período em destaque, elementos/fatores que possivelmente lhe
influenciaram na escrita da peça. Analisamos como a identidade nacional-popular se fez
presente na dramaturgia e como o Regime Militar afetou Dias Gomes e suas produções.
No segundo capítulo, nos dedicamos à análise do processo de criação da peça, desde
quando surgiu a ideia do tema a até suas adaptações feitas por diversos grupos de teatro.
Destacamos também a presença do universo urbano e do rural em que é possível perceber

41
NAPOLITANO, Marcos. “Fontes audiovisuais: A História depois do papel”. In: PINSKY, Carla
Bassanezi (org.) Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2010, p. 236-237.
42
FERRO, Marc. “O filme: uma contra-análise da sociedade?” In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre
(Orgs.). História: novos objetos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 79-115.
25

como o último está ligado ao arcaico e o primeiro ao moderno. Por fim, ancorados em
periódicos, damos visibilidade e analisamos a estreia da peça pelo Teatro Brasileiro de
Comédia (TBC) e por outros grupos de teatros nacionais e internacionais, assim como a
repercussão da obra nesses dois âmbitos interno e externo.
No terceiro capítulo nos dedicamos à análise da adaptação para versão
cinematográfica, assim como refletimos sobre a censura durante o regime civil-militar.
Concluímos com um elucidativo material documental que nos permite narrar a
repercussão de O Pagador após Cannes.
O “pequeno X” da dissertação, fazendo uma alusão, a Sabina Loriga43, diz respeito à
trajetória de um produto intelectual, O Pagador de Promessas, em seus três suportes:
texto, peça encenada e filme, assim como suas várias reedições, reestreias (montadas por
diferentes companhias teatrais nacionais e internacionais), e a versão em película que foi
sendo exibida ao longo da década de 1960 em outros países da América Latina e da
Europa.
A trajetória de O Pagador de Promessas está embutida na trajetória de Dias Gomes,
pois é no produto intelectual que o autor se objetiva. Essa objetivação acontece na medida
em que ele consegue finalizar algo com efeito social, com intervenção político-social,
permitindo-lhe realizar-se enquanto literato, dramaturgo e militante.

43
LORIGA, Sabina. O limiar biográfico. In: LORIGA, Sabina. O Pequeno X: da biografia à história. Belo
Horizonte: Autêntica, 2011, p.17-47.
26

Capítulo I

O CONTEXTO DE O PAGADOR DE PROMESSAS

1.1 Brasil e Bahia nos rastros de uma década (1959- 1969)

Norbert Elias toma como analogia os fios e a rede de tecido para pensar o homem e o
contexto social em que está inserido. Ele desconstrói a perspectiva que os coloca em
oposição:

[...] nem a totalidade da rede nem a forma assumida por cada um de seus fios
podem ser compreendidas em termos de um único fio, ou mesmo de todos eles,
isoladamente considerados; a rede só é compreensível em termos da maneira
como eles se ligam, de sua relação recíproca.44

A partir dessa premissa de Nobert Elis, buscamos apontar questões que remeteram
ao cenário nacional e local do período em que Dias Gomes escreve a peça O Pagador de
Promessas.
Carlos Guilherme Mota, ao analisar os anos 1950, afirma que essa década fornece
um campo de observação de extrema complexidade e riqueza, “[...] uma vez que no
transcorrer forjaram-se novas concepções de trabalho intelectual, definiram-se novas
opções em relação ao processo cultural, assim como novas e radicais interpretações no
tocante à ideologia da cultura Brasileira.”45 Concluiu dizendo que nessa década os
intelectuais que eram apenas acadêmicos metamorfosearam-se em políticos, a exemplo
de Celso Furtado e Darcy Ribeiro. Afirma que esses mesmos intelectuais, nos anos de
1960, refletiram sobre a pré-revolução brasileira.
Assim, as novas linhas de produção cultural estão ligadas ao nacionalismo e ao
desenvolvimentismo. Porém, afirma que seria exagero dizer que, nos anos 1950 toda
intelectualidade progressista embarcava nos projetos do reformismo nacionalista. “O que
não quer dizer que a tônica geral não fosse dada pela temática do nacional-
desenvolvimentismo, transportando o centro das preocupações dos analistas para o campo
sediço do debate ideológico.”46 Ou seja, favorecer interesses partidários, segundo Mota.

44
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994, p.33.
45
MOTA, 1994, p. 154.
46
Ibid., p. 174.
27

Na metade da década de 1950, eclodem as manifestações do Instituto Superior de


Estudos Brasileiros (ISEB), a campanha pela Escola Pública, que Mota afirma ter sido
conduzida por Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Fernando de Azevedo e Almeida Júnior.
Além disso, houve um longo e lento labor nas instituições universitárias que veio à luz
com as publicações das revistas: Brasiliense, Brasileira de Estudos Políticos, Anhembi,
Revista de História entre outras.
Carlos Guilherme Mota resumiu: “[...] nenhum analista dos anos 50 teria
escapado, no limite, de entrar pelas veredas do nacionalismo, ou marxismo ortodoxo, ou
desenvolvimentismo, ou do populismo. Ainda que tangencialmente.”47Mota destaca a
produção intelectual de Antônio Cândido, Florestan Fernandes e Raymundo Faoro que
desenvolveram pesquisas sobre a cultura brasileira desse período.
Na década de 1960 houve um momento complexo e crucial da produção cultural
brasileira, que se deu a partir de 1964. Marcos Napolitano, em Coração Civil, ao analisar
a vida cultural brasileira na década de 1960, mas especificamente em 1964, afirma que
desde 1922, com os modernistas, os intelectuais e artistas posteriores conservaram a
cultura nacional-popular e, em 1950, foi marca das correntes culturais do Partido
Comunista do Brasil (PCB),

A questão do nacional-popular no Brasil foi, antes de tudo, uma ideia força que
fez o antigo nacionalismo conservador mesclar-se a valores políticos de
esquerda na busca de uma expressão cultural e estética que se convertesse em
arma de luta pela modernização e contra o imperialismo.48

Alguns grupos de resistência ao regime militar herdaram a defesa da cultura


nacional-popular. Napolitano dá visibilidade aos artistas e intelectuais que pensaram a
arte de resistência em todos os seus matizes, o que não vem ao caso nesta pesquisa.
Marcelo Ridenti, em O Fantasma da Revolução Brasileira, afirma, como também
fez Roberto Schwarz, já mencionado na introdução, que o golpe de 1964 não conseguiu
“[...] estancar o florescimento cultural diversificado que acompanhou o ascenso do
movimento de massa a partir do final dos anos 50.”49 Os militares, segundo Ridenti, não
souberam, ou não puderam desfazer a movimentação cultural após 1964, que só teria fim

47
MOTA, 1994, p. 175.
48
NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: a vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985) –
ensaio histórico. São Paulo: Intermeios: USP – Programa de Pós-Graduação em História Social, 2017, p.
22.
49
RIDENTI, Marcelo. O Fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora da Universidade Estadual
Paulista, 1993, p. 75.
28

em 1968 com o AI-5. Essa arte que se inicia em 64 incluía a reação e o sentimento social
ante o golpe. Grupos e movimentos artísticos de diversas artes fizeram oposição ao
regime como o Cinema Novo, o Teatro Arena, o Teatro Oficina, o Teatro Opinião, os
Centros Populares de Cultura (CPCs) entre outros.
Destacamos esses grupos porque eles são mencionados pelo dramaturgo Dias
Gomes. Em sua autobiografia e em entrevistas afirmou que não esteve integrado a
nenhum dos movimentos do teatro. Porém, em uma justificativa a Ferreira Gullar, na
entrevista publicada na Encontros com a Civilização Brasileira, nº6, ele pondera:

[...] Acho que ninguém pode me acusar de individualismo. Um pouco de


timidez, talvez. Sempre fui um criador solitário, tanto que a única peça que
escrevi em parceria com alguém foi Dr. Getúlio, com você, mesmo. Mas isso
não explica tudo, porque eu teria participado de todos esses movimentos, se
alguém tivesse tentado ganhar-me para eles. Principalmente o CPC, com o qual
eu tinha algumas discordâncias menores, mas que de modo algum poderia
reprovar, pois a bandeira do teatro político e popular foi a bandeira da minha
geração. No que eu discordava do CPC era na colocação do primado político
sobre o artístico. Eu achava e continuo achando que a eficiência de um
espetáculo político depende basicamente de sua qualidade artística. Logo a arte
deve vir em primeiro lugar.50

É importante frisarmos que este discurso do dramaturgo é uma rememoração do


período. Ele concedeu esta entrevista em 1978, ainda sob a vigência do regime. Como
propõe Michael Pollak, a memória apresenta tentativas de definir e reforçar sentimentos
de pertencimento:

[...] fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos,


sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao
passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem
uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade,
mas também as oposições irredutíveis.51

Ao rememorar sobre os grupos teatrais, dos quais não foi membro, Dias Gomes
afirmou que era contra colocar o primado político na frente do artístico, como fazia os
CPCs. Em uma entrevista ao Jornal de Guarulhos, em março de 1983, ele conta que o
movimento Cinema Novo surgiu em uma das muitas reuniões que aconteciam em sua
casa, com a participação de Anselmo Duarte, Glauber Rocha e Cacá Diegues. Relatou
que preferia ouvir, a ser ouvido nessas reuniões. É contraditório, pois afirmou que sua

50
GOMES; GOMES, 2012, p. 79
51
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3,
1989, p. 7.
29

participação foi por meio de ideias e opiniões.52 Frisou que o nome do movimento,
inclusive, “[...] surgiu nesta sala, após uma reunião que atravessou horas.”53
Segundo Heloísa Buarque de Hollanda, “[...] os artistas com formação literária
desviam-se para grandes novidades do momento: o nascimento de uma geração de
cineastas que constituem o grupo conhecido como Cinema Novo [...]”54 e nos grupos de
teatro e em setores jovens da música popular. A autora reporta-se a uma entrevista de
Glauber Rocha ao Jornal do Brasil, em 1978, em que o cineasta baiano revelava-se
categórico: “Quando escolhi fazer cinema, queria fugir dos círculos literários.”55
Estas duas entrevistas, em que Dias Gomes fala sobre os grupos e movimentos
artísticos de 1960, nos faz levar em consideração o que Michael Pollak sugere sobre a
seletividade da memória, ou seja, nem tudo fica registrado, ou gravado. Porém, devemos
levar em conta um elemento da memória: “[...] a sua organização em função das
preocupações pessoais e políticas do momento mostra que a memória é um fenômeno
construído. Quando falo em construção, em nível individual, quero dizer que os modos
de construção podem tanto ser conscientes como inconscientes.” 56 É um verdadeiro
trabalho de organização o que a memória grava, relembra e exclui.
Voltemos para o contexto de 1960. Heloísa Buarque de Hollanda relata a
participação engajada no calor dos anos 60 a partir da produção “popular revolucionária”,
em que os jovens acreditavam numa forma de engajamento cultural diretamente
relacionada com a militância. Segundo a autora, a efervescência política favorecia a
aderência dos intelectuais e artistas ao projeto revolucionário:

Esse projeto, ao lado das contradições levantadas pelo processo de


modernização industrial, configurado de forma acentuada a partir do período
JK, emerge como referente de uma poesia que seja de vanguarda ou de dicção
populista e traz para o centro de suas preocupações o empenho da participação
social.57

Segundo Heloísa Hollanda, no início dos anos 1960, por conta da crise política
causada, dentre outras razões, pela intensificação do processo de industrialização dos
anos 1950, e da pressão do capitalismo monopolista internacional, vem à tona problemas

52
GOMES; GOMES, 2012, 175-176.
53
Ibid., p. 107.
54
HOLLANDA, 1980, p. 32.
55
Ibid., p. 32.
56
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992,
p. 203-204.
57
HOLLANDA, Op. Cit., p. 15.
30

para os setores da classe dominante, que clamam pela permanência de uma economia
agrário- exportadora.
O Estado foi perdendo o controle da manipulação populista e a esquerda,
principalmente o PCB, frisa a autora, “[...] passa a reivindicar uma coerência política do
governo e o nacionalismo ganha importância, tendo como ponto de partida uma noção de
‘povo’ um tanto escamoteadora das contradições entre as diversas classes e frações de
classe que compõem a sociedade.”58
Heloísa Buarque de Hollanda pesquisa o engajamento cepecista, desde o seu
anteprojeto, em 1962, o Manifesto do Centro Popular de Cultura, em que tenta
sistematizar suas hipóteses em relação à situação política e cultural do país. Fala da
importância da “arte popular revolucionária”, em que “[...] o artista e o intelectual devem
assumir um compromisso de clareza com público, o que não significa uma negligência
formal [...] cabe ao artista realizar o laborioso esforço de adestrar seus poderes formais a
ponto de exprimir correntemente na sintaxe das massas [...]”59 Essa necessidade deixa
claro a diferenças de classes e de linguagem que, segundo Hollanda, separam o povo dos
intelectuais.
Para Roberto Schwarz, em 1964, os intelectuais e artistas com ideário de esquerda
foram poupados, pois o presidente Castelo Branco não proibiu a circulação teórica ou
artística desses “esquerdistas”, houve até o seu florescimento. Segundo Schwarz, antes
de 1964 o socialismo que se difundia no Brasil era fraco na propaganda e na organização
da luta de classe e forte em antimperialismo.
A estratégia que o partido comunista adotava baseara-se na aliança com a
burguesia nacional. Formou-se um complexo ideológico de conciliação de classe que
combinava com o populismo e o nacionalismo predominante. Já a “[...] ideologia original,
o trabalhismo ia cedendo terreno.”60
Marcelo Ridenti chama atenção, em seu livro Em Busca do Povo Brasileiro, para
o fato de que em várias reflexões e relatos de artistas e intelectuais sobre a década de 1960
aparece o adjetivo Romântico, que, segundo ele, serve para “[...] caracterizar as lutas e as
ideias do período nos campos da política e da cultura.”61 Conclui que diversas versões

58
HOLLANDA, 1980, p. 16.
59
Ibid., p. 19.
60
SCHWARZ, 2001, p. 10.
61
RIDENTI, 2000, p. 23.
31

diferenciadas desse romantismo estavam presentes no período pré e pós-golpe de 1964


nos movimentos políticos, sociais e culturais:

[...] havia grupos mais românticos que outros, mas todos respiravam e
ajudavam a produzir a atmosfera cultural e política do período, impregnada
pelas ideias de povo, libertação e identidade nacional – ideia que já vinham de
longe na cultura brasileira, mas traziam especialmente a partir dos anos 50 a
novidade de serem mescladas com influências de esquerda, comunistas ou
trabalhistas.62

Esse romantismo revolucionário acreditava que a volta ao passado serviria para


edificar o homem novo, já mencionado na introdução. Porém, esse retorno ao passado
tinha como objetivo construir uma utopia para o futuro. Ou seja, buscavam no “[...]
passado elementos que permitiriam uma alternativa de modernização da sociedade que
não implicasse a desumanização, o consumismo, o império do fetichismo da mercadoria
e do dinheiro.”63
Uma referência utilizada por Marcelo Ridenti para conceituar romantismo
revolucionário é o livro de Michael Löwy e Robert Sayre. Para eles, “[...] romantismo
como visão do mundo constitui-se enquanto forma específica de crítica da modernidade:”

[...] o romantismo representa uma crítica da modernidade, isto é, da civilização


capitalista, em nome de valores e ideias do passado (pré-capitalista, pré-
moderno). Pode-se dizer que desde a sua origem o romantismo é iluminado
pela luz da estrela da revolta e do ‘sol negro da melancolia’ (Nerval). 64

Pode-se dizer que Dias Gomes foi um dos precursores desse romantismo
revolucionários no Brasil, se levarmos em conta que ele escreveu O Pagador de
Promessas, em 1959, e para Ridenti várias circunstâncias históricas permitiram esse
florescimento de diversas versões do romantismo revolucionário a partir do final da
década de 1950. Por exemplo: a revolução cubana em 1959, a independência da Argélia,
além das lutas que se iniciavam na África (anticoloniais) e no Vietnã (anti-imperialista).
Löwy e Sayre dividem o romantismo revolucionário em tipologias diversas, tais
como: jacobino-democrático, populista, utópico-humanista, libertário e marxista. Ridenti
nos adverte para esses tipos de romantismos revolucionários no Brasil: “O florescimento
das mais variadas formas de romantismo revolucionário nos anos 60 só pode ser

62
RIDENTI, 2000, p. 25.
63
Ibid., p. 25.
64
LOWY; SAYRE, 2015, p. 38-39.
32

compreendido dentro da temporalidade em que ele se desenvolveu e, posteriormente,


refluiu [...]”65
Na Bahia, Maria do Socorro Silva Carvalho se dedica a estudar o movimento do
Ciclo do Cinema Baiano a partir de acontecimentos nacionais, “[...] quando se vivia a
euforia desenvolvimentista dos anos JK – e, principalmente, da sua projeção na Bahia,
que também criava, à época, sua utopia de anos dourados.”66 Para Carvalho, o slogan “50
anos em 5” baseava-se no processo de modernização técnica, através da industrialização
acelerada que o país viveu naquele período.
Em contrapartida, também se teve a “[...] renovação cultural manifestada pelo
surgimento de diversos movimentos artísticos que atingiram profundamente a sociedade
(ISEB); a Poesia Concreta; a implantação da televisão; o Teatro Arena e o Teatro Oficina;
a Bossa Nova, o cinema de autor [...]”67 Segundo ela, são exemplos expressivos dessas
mudanças. É preciso frisar que a superação do subdesenvolvimentismo, “[...] exigiria,
além de tecnologia, uma mentalidade do desenvolvimento.”68
Antônio Risério escreveu sobre alguns momentos históricos, político e cultural da
Bahia durante cinco séculos. Nos interessa no ensaio do autor a descrição que ele faz de
alguns acontecimentos durante a década de 1950 e 1960, por exemplo, o relato sobre a
chegada do comunismo na Bahia.
Segundo Antônio Risério, o marxismo e o comunismo marcaram de forma intensa
a história cultural e política da Cidade da Bahia. Intelectuais baianos absorveram o
desenvolvimento comunista em nosso meio. Destacaram-se nesse processo figuras como
Edison Carneiro, Carlos Marighella, Jacob Gorender, Mário Alves, Jorge Amado, entre
outros.
Os intelectuais de esquerda tinham como motivação central sublinhar em suas
obras aspectos da cultura brasileira, valorizando nossas origens. Dias Gomes tomou parte
nesse debate escrevendo diversas peças que retratam a “brasileiridade” e a “baianidade”.
O Pagador é fruto desse projeto de valorização do nacional e popular.
A maioria desses intelectuais baianos eram membros do Candomblé, e assim se
empenharam em fortalecer e valorizar social e culturalmente a religião, por meio de

65
RIDENTI, 2000, p. 33.
66
CARVALHO, 1999, p. 23.
67
Ibid., p. 40.
68
Ibid., p. 41.
33

produções literárias, jornalísticas e textos antropológicos. Portanto, o Candomblé também


abriu suas portas para dar proteção e acolhimento aos comunistas:

Foi uma espécie de contrapartida candomblezeira ao apoio que vinha da


esquerda. Os casos de Edison e do deputado comunista Aristeu Nogueira são
bons exemplos disso. Perseguidos pela ditadura do Estado novo, Edison ficou
escondido no peji de Oxum do Axé do Opô Afonjá, aos cuidados de uma
adolescente que viria a ser uma das grandes ialorixás do Brasil, Senhora.
Aristeu, cassado e caçado pelos militares em 1964, acabou fugindo para o
terreiro de uma mãe-de-santo, no interior do Estado.69

Para Antônio Risério, o partido e a militância acabaram assumindo uma “cor


local”, suas práticas, suas crenças, um olhar estético-antropológico atento para as
manifestações culturais mestiças. Esse olhar influenciou artistas e intelectuais da década
de 1960, de alguma forma vinculados à esquerda como Glauber Rocha (1939-1981), Tom
Zé, Caetano Veloso e Gilberto Gil.
A década de cinquenta e sessenta foram influenciadas pelo desenvolvimentismo,
pelo nacionalismo-populismo, além de uma expressiva participação de artista e
intelectuais ligados à esquerda no campo cultural. A dinâmica desses pensadores em
âmbito nacional e regional se entrelaçam. A maioria ligadas ao PCB e com produções
literárias, cinematográfica, jornalística, textos acadêmicos com prerrogativas
semelhantes, destacando os assuntos mencionados.

1.2 “Escritor precoce” e engajado: uma breve trajetória

O soteropolitano Alfredo de Freitas Dias Gomes (1922-1999) era filho de Alice


Ribeiro de Freitas Gomes e Plínio Alves Dias Gomes, um engenheiro. O pai faleceu
quando Dias Gomes tinha apenas três anos de idade. Gomes estudou o primário no colégio
Nossa Senhora da Vitória dos Irmãos Maristas. Depois, ainda em Salvador, estudou no
Ginásio Ipiranga até que em 1935 mudou-se para o Rio de Janeiro com a família, pelo
fato de seu irmão mais velho, Guilherme, ter sido transferido para o Rio.70

69
RISÉRIO, Antônio. Uma história da cidade da Bahia. 2 ed. Rio de Janeiro: Versal, 2004, p. 503.
70
GOMES; GOMES, 2012, p. 67.
34

Em uma entrevista para Encontros com a Civilização Brasileira, já mencionada,


Gomes fala com o entrevistador Ferreira Gullar sobre seu irmão e sua ida para o Rio de
Janeiro:

Meu irmão mais velho, Guilherme, que era médico, havia se transferido para
o Rio de Janeiro. E eu tive que acompanhá-lo, juntamente com minha mãe,
pois ele era o arrimo da família. Eu era órfão de pai desde os três anos de
idade.71

Já no Rio, continuou os estudos no Ginásio Vera Cruz e posteriormente no


Instituto de Ensino Secundário, até que, em 1943, entra para a Faculdade de Direito por
três anos e acaba abandonando. Na mesma revista Encontros com a Civilização, Ferreira
Gullar, ao entrevistar o dramaturgo, lhe questiona se realmente ele foi um menino
prodígio. A observação deveu-se ao fato de Gomes ter escrito sua primeira peça aos
quinze anos, A Comédia dos Moralistas (1937), encenada para uma plateia de parentes
na Bahia. Jorge Amado também começou cedo a vida literária, quando fazia o ensino
secundário em Salvador, já trabalhava em jornais, escrevendo artigos e foi um dos
fundadores da Academia do Rebeldes ainda na adolescência. Publicou seu primeiro
romance em 1931, O país do carnaval. Raquel de Queiroz outra literata brasileira,
cearense, que nasceu uma década antes de Dias Gomes, também é considerada precoce,
por ter seu escrito seu primeiro romance aos 19 anos, O Quinze.
Seu tio Alfredo jurou ter descoberto um “gênio” na família e, segundo Gomes,
tratou de imprimir o texto da peça em uma gráfica e contratou um crítico para elogiá-la
nas páginas do jornal A Tarde. Dos 500 exemplares distribuídos em consignação nas
livrarias do Rio de Janeiro, venderam-se 13 exemplares. No ano seguinte, a peça foi
premiada num concurso patrocinado pelo Serviço Nacional de Teatro e pela União
Nacional dos Estudantes (UNE), ganhando o prêmio de 500 mil-réis. Gomes narrou os
fatos acima colocando-se como protagonista de sua história. Apesar dos esforços do tio,
o mérito do sucesso de seu texto veio do próprio autor.
Rememora Gomes: “Mas não foi essa minha primeira incursão no teatro e na
literatura. Aos 10 anos escrevi o primeiro conto e aos 12 ‘encenei’ num teatrinho
improvisado na casa daquele tio de quem falei, alguns esquetes que eu bolava e
representava com meus primos em dias de festas.”72

71
GOMES; GOMES, 2012, p. 67.
72
Ibid., p.66.
35

Em outra entrevista, Dias Gomes disse que esse primeiro conto era autobiográfico.
A história de um menino que só sabia correr, e não sabia andar, conforme explica:
“Chamava-se As Aventuras de Rompe-Rasga. Rompe-Rasga era como meu pai me
chamava porque eu, quando corria derrubava tudo, quebrava louça, o diabo. Aliás, eu só
aprendi a andar normalmente lá pelos dozes anos.”73
Segundo Philippe Lejeune, “[...] autobiografia se define por algo que é exterior ao
texto, não se trata de buscar, aquém, uma inverificável semelhança com uma pessoa real,
mas sim de ir além, para verificar, no texto crítico, o tipo de leitura que ela engendra, a
crença que produz.”74 Dias Gomes contou em sua autobiografia que suas primeiras
experiências literárias foram determinadas pelo desejo de imitar seu irmão Guilherme
Dias Gomes, que sempre lhe foi apontado como exemplo a ser seguido. Seu irmão,
embora tenha estudado medicina por determinação paterna, foi cronista, poeta e
romancista. Acabou morrendo aos 30 anos sem se realizar como escritor, vocação que lhe
foi represada.
Guilherme Dias Gomes chegou a fazer parte de um grupo auto-intitulado
Academia dos Rebeldes, em oposição a Academia Brasileira de Letras (ABL). Que tinha
como membros os seguintes baianos: Jorge Amado, Edison Carneiro e Dias da Costa
escritores que começavam a colher seus primeiros sucessos, afirmou Dias Gomes.75
Esse grupo, segundo Ângelo Barroso Costa Soares, valorizava em seu projeto
ideológico e estético a cultura popular local, a cultura africana e afro-baiana. Expunham
suas ideias nos periódicos Meridiano e O Momento, revistas lançadas, entre 1929 e início
da década de 1930. Apesar da curta existência do grupo e da participação do irmão do
teatrólogo, ele era considerado um intelectual respeitado, que falava várias línguas.76 Para
Edison Carneiro, “[...] era um dos poucos brasileiros que na época, aprendera alemão na
Bahia. Sabia francês, inglês, espanhol, italiano e até se aventurou a estudar japonês e
árabe. Com ele iniciei um curso de nagô com Martiniano do Bonfim.”77
A trajetória de Dias Gomes como escritor inicia-se cedo, o que era comum aos
contemporâneos dele. Dias Gomes, embora soteropolitano, ganhou inicialmente
notoriedade no Rio de Janeiro. É importante frisar que a mudança para o Rio marcou a

73
STEEN, Edla Van. Viver e Escrever: volume 1: 2 ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2008, p. 106.
74
LEJEUNE, 2014, p. 55.
75
GOMES, 1998, p.23.
76
SOARES, Ângelo Barroso Costa. Academia dos Rebeldes: modernismo à moda baiana. (Dissertação de
Mestrado em Literatura e Diversidade Cultural) - Departamento de Letras e Artes, Universidade Estadual
de Feira de Santana, Feira de Santana, 2005.
77
CARNEIRO, Edison, 1935, apud. SOARES, 2005, p. 129.
36

trajetória de muitos outros intelectuais da Bahia de então. Assim, acompanhar seu


percurso significa seguir os passos de uma geração que, segundo Luiz Carlos Maciel
(1938-2017), estava em "transe".
Dias Gomes escrevia compulsivamente, duas, três peças ao mesmo tempo. Tinha
o pressentimento que a morte lhe alcançaria na faixa dos vinte anos, segundo ele, seria
causada pelo trauma do falecimento prematuro do pai. Em 1938, Gomes passou uma
temporada em Porto Alegre, na Escola Preparatória de Cadetes, um grande equívoco.
Gomes afirma: “Tomei uma decisão da qual iria arrepender-me mais tarde: resolvi prestar
exame para a Escola Militar. Não que eu tivesse qualquer propensão para a carreira – era
o caminho mais rápido para livrar-me da dependência de meu irmão.”78
“Caveirinha” era o apelido do dramaturgo Dias Gomes em sua infância, conforme
relata em sua autobiografia.79Ângela de Castro Gomes frisa que a escrita de si traduz a
intenção de revelar dimensões “íntimas e profundas” do indivíduo que assume sua
autoria. Notamos essas dimensões no itinerário escrito por Dias Gomes.
Em suas entrevistas e autobiografia conta que teve formação religiosa Católica no
período em que morava na Bahia, onde estudou no colégio de padres. Como um “bom
cristão” católico rezava todas as noites, e ia à missa todos os domingos. Dias Gomes relata
que suas decepções religiosas vieram justamente desses padres do colégio que também
tinham lhes catequizado. Muitos deles, alegou, não tinham comportamento condizente
com os princípios religiosos da Igreja. 80
Em 1942, escreveu Amanhã Será Outro Dia, um drama antinazista que deu para
o ator-empresário Jayme Costa (1897-1967) ler.81 Ele era um getulista fanático e se negou
a encenar aquela peça, alegando que correria o risco do Brasil entrar na guerra a favor da
Alemanha. E lhe encomendou uma peça réplica de Deus lhe Pague, de Joracy Camargo
82
(1898-1973) , que seu rival Procópio Ferreira (1898-1979)83 encenava em todas as
temporadas desde os anos 1930.

78
GOMES, 1998, p. 44.
79
Ibid., p.27.
80
GOMES; GOMES, 2012, p.72
81
Jayme Costa (1897-1967) Um dos atores mais importantes da geração que ficou conhecida pelo nome do
teatro que lhe deu abrigo – Trianon. Disponível em: <
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa349474/jaime-costa > Acesso em: 28 nov. 2018, às 20:19 h.
82
Joracy Camargo (1898-1973) jornalista, cronista, professor e teatrólogo. Quarto ocupante da Cadeira 32,
eleito em 17 de agosto de 1967, na sucessão de Viriato Correia e recebido pelo Acadêmico Adonias Filho
em 16 de outubro de 1967. Disponível em: <http://www.academia.org.br/academicos/joracy-
camargo/biografia> Acesso em: 28 nov. 2018, às 20:24 h.
83
Procópio Ferreira (1898-1979) Ator. Narigudo, baixinho e sem pescoço, o antigalã interpreta não apenas
os principais coadjuvantes cômicos, como, com seu lugar de primeiro ator do teatro brasileiro de seu tempo,
37

A peça que Dias Gomes escreveu em um mês foi Pé-de-cabra, que não saiu uma
réplica, e sim uma espécie de sátira da peça de Joracy Camargo. Jayme Costa achou o
texto subversivo e que não seria aprovado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP) getulista, que censurava os espetáculos. Gomes resolveu ir até Procópio Ferreira
lhe mostrar Amanhã Será Outro Dia. Procópio lhe disse que naquele momento as pessoas
querem rir e não chorar com o teatro.
É importante levarmos em consideração que esses são relatos narrados por Dias
Gomes, em entrevistas e depois reforçados em sua autobiografia, construindo um nexo
nessas histórias já contadas outrora. Mais uma vez, ao retomá-las, coloca-se como
protagonista desses relatos.
O interlocutor perguntou, então, se Gomes não tinha uma comédia. Foi aí que se
lembrou de Pé-de-cabra, e respondeu-lhe que tinha, mas que estava comprometida.
Procópio insistiu em ler e no dia seguinte lhe disse que a peça estreava em 15 dias e lhe
daria um adiantamento dos direitos autorais. Aceitou, e a peça foi um sucesso: aplaudido
de pé quando Procópio o chamou no palco depois da estreia, houve um “oh!”, quando
Procópio revelou que Dias Gomes tinha apenas 19 anos.
Porém, as coisas não foram tão fácies, conforme registra nas entrevistas e na
autobiografia, Pé-de-cabra só estreou uma semana depois da data prevista. O
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) tinha proibido a encenação com o
argumento de que se tratava de uma peça marxista. Até o momento, segundo Dias Gomes,
ele não havia lido uma só linha de Marx e nem de seus discípulos. Argumentou que veio
daí seu interesse posterior pelo marxismo.84Quando Joracy Camargo conheceu Gomes,
abraçou-lhe de forma “paternal e aparentemente comovido”. Dias Gomes afirma que se
sentiu um patife e que o equívoco se estendeu aos críticos “que não perceberam o tom
satírico, a gozação irreverente e me tomaram por um discípulo de Joracy Camargo.”85
Dias Gomes já se sentia admitido à família teatral em 1943. Passava as noites
pulando de espetáculo em espetáculo da Cinelândia à Praça Tiradentes e, à noite,
terminava em bares com a reunião de artistas boêmios. Ainda nesse ano, seu irmão, figura
em quem se espelhava, acabou falecendo. Guilherme Dias Gomes era primeiro-tenente

leva os autores a escreverem inúmeras peças para um protagonista interpretado no melhor estilo Procópio:
o cômico inteligente que arma confusões, o feioso esperto que termina com a moça bonita. Dono de uma
riqueza vocal rara, que ele usa nas mínimas nuances, o ator dá vida a cerca de 500 personagens. Disponível
em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8154/procopio-ferreira> Acesso em: 28 nov. 2018, às
20:28 h.
84
GOMES, 1998, p. 67.
85
GOMES, 1998, p.69-70.
38

médico na Escola Militar de Realengo, morreu no hospital central do exército após quinze
dias internado. Os médicos militares não conseguiram diagnosticar as causas de sua
morte.86
Com o falecimento de seu irmão, Dias Gomes entendeu que não poderia mais
viver de direitos autorais e, para sustentar sua mãe, aceitou o convite de Oduvaldo Vianna
(pai), para integrar o quadro de redatores da sua emissora de rádio que acabara de fundar
em São Paulo, a Rádio Pan-Americana. Nesse período, encontrou tempo para estudar
sociologia, filosofia e marxismo motivado pela censura da sua peça e pela sua filiação ao
Partido Comunista do Brasil (PCB).
Dias Gomes lembra em sua autobiografia que Oduvaldo Vianna lhe influenciou a
filiar-se ao Partido Comunista do Brasil. Isso se deu pelo fato de estar cansado de ter suas
peças censuradas e ser tido como comunista, antes mesmo de aderir a essa corrente
político-ideológica. Sua filiação se deu somente em meados de 1944 e seu desligamento
aconteceu por volta de 1973, quando se dedicou ao trabalho na televisão.
Em 1953, Gomes foi à União Soviética. Naquele tempo, era um crime, aos olhos
do Estado. A viagem foi programada pelo partido: “Eu fui escondido em uma delegação
de escritores, era a segunda delegação de escritores brasileiros que ia [...]”87 Dias Gomes
narrou em entrevistas e na autobiografia que fingiu ter ido para a Inglaterra. Contou que
foi para Praga e de lá pegou um avião para Moscou.
Porém, o jornalista Carlos Lacerda (1914-1977), diretor e fundador do jornal
Tribuna de Imprensa, descobriu sua viagem para Moscou e encontrou uma foto do
dramaturgo na Praça Vermelha carregando uma corroa de flores para o túmulo de Lênin.88
Dias Gomes contou que ele fez uma matéria mentirosa dizendo: “Diretor da Rádio Clube
vai a Moscou depositar flores para o túmulo de Stalin com dinheiro do Banco do Brasil.”89
O diretor de teatro Renato Borghi relatou que a cantora e compositora Nora Ney
foi expulsa da Rádio Nacional por ter também visitado a União Soviética. Segundo

86
Ibid., p. 84.
87
GOMES; GOMES, 2012, p. 156.
88
Carlos Frederico Werneck de Lacerda (1914-1977), embora registrado em Vassouras (RJ), nasceu no Rio
de Janeiro, então Distrito Federal, em 30 de abril, filho de Maurício Paiva de Lacerda e de Olga Werneck
de Lacerda. Em 27 de dezembro de 1949, fundou a Tribuna da Imprensa, que, representando as principais
propostas da UDN, viria a fazer oposição a forças políticas vinculadas ao getulismo. A princípio Lacerda
apoia o regime militar em 1964. Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-
biografico/carlos-frederico-werneck-de-lacerda> Acesso em: 14 jul. 2018, às 17:19 h.
89
GOMES; GOMES, 2012, p. 156.
39

Borghi, “[...] foi a época da caça às bruxas, do dedo-duro, da criação do bode expiatório
e da omissão.”90
Segundo Gomes, quem o denominou de subversivo foi Carlos Lacerda. É
interessante destacar como ele assume esse rótulo do jornalista,91 tanto que intitula sua
autobiografia, aparentando uma resposta ou provocação ao jornalista, porém muitos anos
depois de passado o perigo. Foi demitido da Rádio Clube depois da matéria de Carlos
Lacerda e durante um ano não conseguiu trabalhar, sublinhou Gomes.
Um dos motivos da manchete era combater a Rádio Clube. Gomes explica sobre
o episódio em uma entrevista ao Programa Roda Viva, da TV Cultura, em junho de 1995:

[...] O dinheiro eu tomei com um agiota, na ocasião, e levei um ano pagando.


Mas o Carlos Lacerda estava em uma campanha contra o Samuel Wainer,
aquela célebre campanha que levou o Getúlio ao Suicídio, e o Samuel havia
tomado um empréstimo do Banco do Brasil facilitado pelo Getúlio Vargas.
Então por isso ele estava combatendo a Última Hora e a Rádio Clube, que era
do Samuel. E eu entrei bem nessa história. Quando eu cheguei aqui, fui
demitido. Era a época do macarthismo, então eu fiquei em uma espécie de lista
negra, e durante um ano, eu não consegui trabalhar.92

O dramaturgo passou 20 anos de peregrinação radiofônica, de emissora em


emissora, fazendo adaptações de 500 obras estrangeiras, o que lhe proporcionou
conhecimento da literatura universal. Gomes retornou ao Rio de Janeiro, depois de seis
anos fora dos trilhos do teatro, que era naquele período no Rio, segundo ele. Voltaria de
fato a ter uma peça encenada em 1954 com Os Cinco Fugitivos do Juízo Final, pela
companhia de Jayme Costa no antigo Teatro da Glória, na Cinelândia.
A estreia foi um fracasso, segundo Dias Gomes. Esse fato adiou seu retorno ao
teatro, depois de ter morado em São Paulo de 1944 a 1950, e ter trabalhado na Rádio Pan-
Americana. Contou na autobiografia sua hesitação em ir morar em outro estado: “Hesitei
um pouco. Na época, o Rio era a principal praça teatral. O teatro paulista ainda não tinha
vida própria. Afastar-me do Rio poderia significar a perda de um espaço que eu julgava
ter.”93
Outro fato na história de Dias Gomes é seu casamento com escritora que se tornou
autora de novelas globais — emissora de TV, Rede Globo — que também aparece nas
entrevistas selecionadas por suas filhas e em sua autobiografia. No período que trabalhou

90
SEIXAS, 2008, p. 107.
91
Lembrando que ele faz isso muitos anos depois. Portanto, trata-se de uma reconstrução da memória.
92
GOMES; GOMES, Op. Cit. p. 156-157.
93
GOMES, 1998, p.88-89.
40

no rádio, Dias Gomes conheceu Janete Clair (1925-1983), com quem se casa, em 1950.
Tiveram quatro filhos, Alfredo Dias Gomes, Guilherme Dias Gomes, Marcos Plínio
(falecido) e Denise Emmer.
Anos depois, em um explícito trabalho de reconstrução da memória, Dias Gomes
falou à emissora TV Cultura sobre sua relação com Janete Clair. Disse que ambos eram
muito diferentes, talvez por isso eles deram-se bem, tendo uma união que durou trinta e
três anos. Gomes lembrou nessas entrevistas algumas dessas diferenças:

Janete era católica, eu sempre fui ateu, eu fui marxista, tive formação marxista
e tudo. E ela tinha também um estilo de realismo romântico, e eu sempre fui
um realista empedernido. O meu realismo talvez sofra um pouco do fantástico,
do absurdo, da mágica. Mas, de qualquer maneira, é uma posição realista. [...]
Janete não escrevia quando eu casei com ela, veio a escrever depois.
Evidentemente ela aprendeu comigo, mas depois seguiu o seu próprio
caminho.94

Quando ela faleceu Dias Gomes se viu “desamparado” em uma profunda


depressão, segundo narrou em entrevistas e na autobiografia. Seis meses depois, o
dramaturgo teve consultas com um analista, coisa que ele jamais imaginou fazer por “[...]
formação ideológica, jurava que jamais me deitaria no divã de um analista e lá estava eu
[...]”95
As “forças do destino” só conspirariam a seu favor, conforme sua narrativa sugere.
Em 1959, escreve O Pagador de Promessas. E volta definitivamente para o teatro e
recebe vários prêmios por esta peça e por trabalhos posteriores nessa mesma década.
Diante das dificuldades enfrentadas após 1964 por conta da censura, por exemplo,
Dias Gomes construiu uma justificativa para a sua entrada na televisão. É importante
salientar que ele foi muito criticado. Nesse sentido, para defender-se disse que: “[...]
verdadeiros intelectuais me estimularam. Os intelectualoides torceram o nariz.”96
Em 1968, escreve sua primeira novela, Verão Vermelho, para a Rede Globo,
emissora que apoiava a Ditadura. Em entrevista ao Jornal Opinião, publicada em
fevereiro 1973, Dias Gomes afirma:

Faço parte de uma geração de dramaturgo que levantou entre os anos de 1950
e de 1960 a bandeira de um tetro político e popular. Esse teatro esbarrou numa

94
GOMES; GOMES, 2012, p. 175-176.
95
Ibid., p. 195.
96
GOMES; GOMES, 2012, p. 56.
41

contradição básica: era um teatro dirigido a uma plateia popular, mas visto
unicamente por uma plateia de elite.97

Ainda nessa entrevista, Gomes disse que a televisão lhe ofereceu uma plateia
popular e para o autor “[...] recusar, virar as costas, seria incoerente, burro e
reacionário.”98 Por mais que se considerasse um “subversivo”, ou apenas tivesse aderido
a essa carapuça, notamos que Dias Gomes estava, sim, preocupado com o que os críticos
iam dizer e pensar sobre seu eu “intelectual”. Em uma entrevista à Revista Veja, em abril
de 1974, ele diz:

Eu realmente entrei para TV repleto de preconceitos [...] E foi quando me


perguntei se eram realmente justos os meus preconceitos: se como autor que
advogava o teatro para o povo, eu tinha o direito de me recusar para uma plateia
de milhões de telespectadores. Senti que aquilo era um desafio e resolvi suar a
camisa.99

Fica nítida a preocupação de Dias Gomes em esclarecer sua entrada para a


televisão, ainda nesta entrevista disse que “[...] felizmente, eu creio que hoje este
preconceito está superado.”100 E que não entrou antes para TV, porque simplesmente,
ainda não tinha sido convidado. Ele escreveu várias novelas e séries: Assim na terra como
no céu (1970/1971), Bandeira 2 (1971/1972), O bem-amado (1973), O espigão (1974),
Roque Santeiro (1975), Saramandaia (1976), entre outras, que tiveram grande
repercussão com seus temas ligados a problemas sociais e políticos.
Em 1987, Gomes escreve a versão em minissérie de O Pagador de Promessas
para a emissora Rede Globo, com cerca 15 episódios, porém só foram ao ar 8 episódios.
Dias Gomes em uma entrevista ao jornal A Tarde, nesse mesmo ano, disse que estava
mais maduro, mais apto a falar da temática da peça do que há anos atrás. 101 Isso se deu
por conta da pesquisa mais detalhada sobre as questões abordadas na obra:

A peça é a eclosão de todo o processo que veio antes, então eu tive que pegar
a gênese da história, a gênese de Zé do Burro, da sua promessa e seu mundo
de onde ele veio, porque ele é assim, porque ele fez a promessa. Isso me deu a
oportunidade de fazer um estudo maior do homem do campo, dos seus
problemas, dos problemas da terra no Brasil, da luta pela terra, pela posse da
terra, o papel da igreja etc.102

97
Ibid., p. 51.
98
Ibid., p. 51.
99
Ibid., p. 56.
100
Ibid., p. 56.
101
GOMES; GOMES, 2012, p. 125.
102
Ibid., p. 125.
42

Em 1991, Dias Gomes foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Trata-se de mais uma oportunidade para recompor suas memórias e “reinventar” seu
passado, ressaltando dessa vez sua identidade socialista, marcada por certa ambivalência.
Ele relatou em uma de suas entrevistas ao programa Roda Viva, em 1995, que só entrou
para academia a pedido de amigos e disse, “Eu sempre tive um caminho meio solitário.
Então a Academia é um grupo fechado de quarenta pessoas, entre as quais eu tenho
amigos, tenho pessoas que prezo e que admiro, mas eu não tenho muita vocação para esse
convívio. Eu sou um socialista insociável.”103
Relutou por mais de dez anos a se candidatar à entidade, a pedido de Jorge Amado,
alegando sua falta de vocação acadêmica. Segundo Gomes, isso se comprovou depois de
eleito. Quando jovem fez críticas à Academia: “[...] escritor de esquerda que nunca
contestou a Academia ou nunca foi jovem, ou nunca foi de esquerda.”104 Um concorrente
à cadeira escreveu cartas anônimas para todos os acadêmicos acusando Dias Gomes de
ser comunista, como se isso fosse uma grande revelação, afirma o dramaturgo que se
tornou membro da ABL.
Dias Gomes foi o sexto ocupante da Cadeira 21, eleito em 11 de abril de 1991, na
sucessão de Adonias Filho (1915-1990).105 Foi recebido pelo Acadêmico Jorge Amado,
em 16 de julho de 1991. Em seu discurso de posse no dia 16 de setembro desse mesmo
ano, ele disse:

[...] neste momento, é bom, é justo, é importante reconhecer: nem eu mudei,


nem a Academia. Ela me aceita tal como sou, inconformado escritor do meu
povo, engajado no sonho de vê-lo livre e feliz. Tal como já acolheu a outros,
que a honraram e a honram, ecumenicamente, generosamente. Destina-me uma
Cadeira na qual me sinto confortável. Não fosse esta, a Cadeira 21, como a
batizou Adonias, a Cadeira da Liberdade.106

103
Ibid., p. 172.
104
GOMES, 1998, p.352.
105
Adonias Aguiar Filho (1915-1990). Quinto ocupante da Cadeira 21, eleito em 14 de janeiro de 1965, na
sucessão de Álvaro Moreyra e recebido em 28 de abril de 1965 pelo Acadêmico Jorge Amado. Recebeu a
Acadêmica Rachel de Queiroz e os Acadêmicos Otávio de Faria, Joracy Camargo e Mauro Mota. Adonias
Filho (A. Aguiar Fo), jornalista, crítico, ensaísta e romancista, nasceu na Fazenda São João, em Ilhéus, BA,
em 27 de novembro de 1915, e faleceu na mesma cidade, em 2 de agosto de 1990. Disponível em:
<http://www.academia.org.br/academicos/adonias-filho/biografia> Acesso em: 18 jul. 2018, às 19:47 h.
106
Disponível em: < http://www.academia.org.br/academicos/dias-gomes/discurso-de-posse>. Acesso em:
29 jun. 2018, às 21:50 h.
43

Ainda em seu discurso, Dias Gomes conta um episódio de sua vida em que foi
surpreendido pelo telefonema de Adonias Filho, a quem viria a suceder na Academia. Foi
no ano de 1971, quando Dias Gomes preparava-se para comparecer perante um oficial
encarregado de um inquérito policial militar. “Era o primeiro dos sete a que iria responder,
por isso estava apreensivo. Tinha motivos: ia conhecer o famigerado ENIMAR. Podia ser
torturado, como tantos. Podia não voltar, como muitos. Estava preparado para tudo. A
família de sobreaviso, os amigos.”107
Gomes conta que a surpresa foi pelo fato de Adonias Filho e ele terem apenas um
conhecimento superficial, trocaram meia dúzia de palavras cordiais, e estavam de lados
opostos, Dias Gomes um militante de esquerda e o outro intelectual de direita. “Havia
apoiado o golpe militar, amigo dos generais. Eu entre os perseguidos, ele com os
perseguidores. Um homem afável, de fala mansa, de jeito interiorano, grapiúna. Mas um
inimigo. Eu caça, ele caçador, naquele momento. Por que me telefonaria?”
O telefonema foi para tranquilizá-lo, e lhe dizer que nada de mal lhe aconteceria.
Segundo Dias Gomes, Adonias Filho usava de sua influência e,

[...] prestígio para reparar injustiças, defender perseguidos, evitar crueldades.


Ele, Adonias Filho, um homem de direita. Ou um homem direito. Ou apenas
um Homem? Buscando entender, aproximei-me dele através de seus livros. Aí
deveria estar a solução do mistério. A verdade é a totalidade. O homem é o seu
todo e não a sua circunstância.108

Conclui essa parte do discurso fazendo elogios a esse literato e a suas obras. Dias
Gomes também foi casado com a atriz Bernadete Lys, com quem teve duas filhas. O
percurso do dramaturgo ficou marcado pela peça O Pagador de Promessas que lhe deu
visibilidade nacional e internacional. Essa trama, a abordagem (crítica social) e os
personagens (populares) foram os motivos do sucesso.

107
Disponível em: < http://www.academia.org.br/academicos/dias-gomes/discurso-de-posse>. Acesso em:
29 jun. 2018, às 21:56 h.
108
Disponível em: < http://www.academia.org.br/academicos/dias-gomes/discurso-de-posse>. Acesso em:
29 jun. 2018, às 22:11h.
44

1.3 Dias Gomes e o Golpe 1964

Em 1964, Dias Gomes era reconhecido principalmente pelo sucesso de O Pagador


de Promessas. Naquele momento já tinha sua versão fílmica e repercussão da peça em
vários países da América e da Europa. Por isso, talvez seja a obra mais censurada, se
pensarmos na visibilidade que ela adquiriu em âmbito nacional e internacional, questão
que será discutida no próximo capítulo.
Dias Gomes em uma entrevista ao jornal Opinião, publicada em 1973, afirmou
que depois de 1964 aconteceu no Brasil um processo de intimidação e castração imposto
à dramaturgia e que não encontrou no “[...] teatro condições objetivas para continuar a
obra modesta, mas profundamente séria que vinha desenvolvendo. Tenho um pensamento
e um projeto a respeito do teatro e não pretendo mudá-lo.”109 Sublinhou que sua obra
estava incompleta e que pretendia terminá-la, porém, enfatizou: “[...] dentro do que me
propus. Sem me trair e sem me violentar.”110
Cabe lembrar que quando concedeu essa entrevista o dramaturgo já era
funcionário da Rede Globo, ou seja, estava fazendo mais uma justificativa para a
transferência do seu laboratório para televisão. Anos mais tarde, quando narra sua
vivência com a ditadura militar na autobiografia e em outras entrevistas posteriores,
afirma que se via “acuado”, mas continuava a colocar em suas peças ingredientes sobre a
sociedade daquele momento, com profundas críticas políticas e sociais. Para Dias Gomes,
não ser subversivo era ser acomodado. A maneira encontrada pelo dramaturgo para
denunciá-las foi através de suas obras.
Dia Gomes, no programa Roda Viva de 1995, relatou a Alberto Guzik que sempre
foi “[...] um rebelde na juventude, nos movimentos estudantis [...]. Tinha aquele negócio,
aquela revolta da juventude.” o que impulsionava contra qualquer coisa e, segundo ele,
esse estado de espírito o teria levado naturalmente ao partido comunista em São Paulo.111
No início de 1964, antes do golpe consumado entre os dias 31 de março e 1º de
abril, Dias Gomes foi nomeado para o Serviço Nacional de Teatro. O Diário de
Notícias112 (RJ), em 22 de fevereiro de 1964, informou: “O autor Dias Gomes é mais um

109
GOMES; GOMES, 2012, p. 46.
110
Ibid., p. 46.
111
GOMES; GOMES, Op. Cit., p. 157-158.
112
O Diário de Notícia, Rio de Janeiro, era um jornal pautado em princípios liberais. Segundo o verbete de
Marieta de Morais Ferreira, desde seu lançamento, “a posição do Diário de Notícias foi definida
claramente. Sua proposta básica era lutar contra ‘a estrutura oligárquica’ da República Velha, colocando-
45

comunista no poder [...] a nomeação de Di Cavalcânti, que também é comunista, está


confirmada [...]”113
Dias Gomes concedeu uma entrevista ao Jornal do Brasil nessa data e declarou,
“[...] que sua gestão à frente daquele serviço será dirigida aos interesses da classe teatral
brasileira, pois sua candidatura foi uma imposição da mesma.”114Também mencionou a
vontade de criar uma Universidade de Teatro e transformar o SNT em um órgão
exclusivamente cultural.
Em outra matéria do Diário de Notícias (RJ), comentou-se o assunto da nomeação
do teatrólogo Dias Gomes:

[...] Trata-se de nome efetivamente pertencente à classe teatral e, portanto, pelo


menos em teoria, apto a conhecer e procurar soluções para as dificuldades de
nosso teatro. Aguardaremos a divulgação das diretrizes que pretende adotar à
frente do órgão, para opinarmos mais circunstanciadamente sobre essa escolha,
na esperança de que não tenhamos outra tentativa de teatro político e ainda por
cima primária e inconsistente, como a que tentou seu antecessor, Roberto
Freire. Também comunista até aquele momento.”115

“Dias Gomes é o novo diretor do S. N. T.” Desatacou no título uma matéria do


Diário de Notícias (RJ), em 26 de fevereiro de 1964: “Foi nomeado diretor do Serviço
Nacional de Teatro do Ministério da Educação e Cultura o dramaturgo Alfredo Dias
Gomes, autor notadamente de O Pagador de Promessas.”116 A matéria sublinha que se
trata de nome efetivamente pertencente à classe teatral e, portanto, pelo menos em teoria,
apto a conhecer e procurar soluções para as dificuldades do teatro naquele período.
Notamos o posicionamento de oposição do periódico em relação aos artistas de esquerda.
Em sua autobiografia, Dias Gomes narrou que, em 1964, desenvolvia atividades
políticas em várias frentes. E que no fatídico mês de março, Jango lhe nomeou diretor do
Serviço Nacional de Teatro, porém a nomeação não chegou a ser publicada no Diário

se como porta-voz de um ‘espírito revolucionário’ que visava a transformação da sociedade.” Esse espírito
revolucionário significava a reforma nos métodos políticos antiliberais, mas não tinha uma conotação de
modificações profundas na sociedade. Porém, segundo Marieta de Morais Ferreira, quando eclodiu o
movimento político-militar em 1964, o jornal apoia os militares e publica a seguinte declaração: “Podemos
ter agora o que perdemos há três anos, um governo. Governo para cumprir e fazer cumprir a Constituição
e não para rasgá-la em praça pública a pretexto de reclamar reformas de base.” A Expectativa do jornal em
relação aos governos militares acabou por não se concretizar, levando o Diário de Notícias a aproximar-se
da oposição até seu fechamento, na primeira metade da década de setenta. Disponível em:
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/diario-de-noticias-rio-de-janeiro> Acesso
em: 30 jul. 2018, às 19:56 h.
113
Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 22 fev. 1964, p. 6.
114
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 fev. 1964, p. 9.
115
Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 26 fev. 1964, p. 2.
116
Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 26 fev. 1964, p. 2.
46

Oficial “[...] não tendo eu, por isso, chegado a tomar posse. Se tivesse sido empossado,
provavelmente, não teria escapado à prisão.”117
Gomes relatou que após o Comício da Central, ou Comício das Reformas que
aconteceu, em 13 de março de 1964, na cidade do Rio de Janeiro, na praça da República,
em que Jango anunciou o projeto das reformas de base, ele reuniu em sua casa intelectuais
de esquerda, que festejavam aquele ato político. Diziam que Jango não poderia mais
recuar e que a direita, acuada, teria que engolir aquelas reformas. Segundo Dias Gomes,
só lhe vinha a cabeça as palavras de um deputado comunista, Marcos Antônio Coelho,
que ao descer do palanque após o comício, lhe abraçou e lhe disse em voz firme: “Nós
nos encontraremos no presídio da Ilha Grande.”118 O dramaturgo, ao relembrar o fato,
frisou que o tal deputado era a única pessoa lúcida e sensata naquele momento. Marco
Antônio foi preso e torturado pelo Doi-Codi até enlouquecer.
Dias Gomes também foi membro do Comando dos Trabalhadores Intelectuais
(CTI), grupo que lutava contra a ditadura militar, a repressão, sobretudo artística-
cultural.119Essa associação de intelectuais teve vida curta. Foi constituída em 1963, no
Rio de Janeiro, com o objetivo de formar uma frente única com as forças populares em
defesa das liberdades democráticas. Mas logo foi extinto pelo regime de 1964.
“Reconhecendo a necessidade de uma luta conjunta pela emancipação econômica,
política e cultural do país, um grupo de intelectuais liderados pelo diretor da Editora
Civilização Brasileira, Ênio Silveira, decidiu criar o CTI.”120 Em 17 de janeiro de 1964,
o Jornal do Brasil (RJ) informou sobre uma Assembleia Geral dessa associação:

400 intelectuais nacionalistas inscritos como fundadores do Comando dos


Trabalhadores Intelectuais (CTI) farão realizar no dia 24 do decorrente mês,
às 21 horas, no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), na rua das
Palmeiras, 55 (Botafogo), a Assembleia Geral para discussão e aprovação dos
Estatutos, leitura do relatório das atividades já realizadas, e eleição do
Conselho Deliberativo da entidade composto de 24 membros. Somente os
membros fundadores – já estão inscritos até a presente data – terão direito a
voz e voto.121

117
GOMES, 1998, p. 192.
118
Ibid., p. 192.
119
CZAJKA, Rodrigo. Redesenhando Ideologias: Cultura e Política em Tempos de Golpe, p. 47. IN:
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 40, p. 37-57. Editora UFPR, 2004.
120
Disponível em: < http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/comando-dos-
trabalhadores-intelectuais> Acesso em: 28 jul. 2018, às 16:53 h.
121
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28 jul. 1964, p. 12.
47

Dentre esses membros fundadores estavam Dias Gomes, Ênio Silveira, Edison
Carneiro, Alex Vianny, Álvoro Lins, Di Cavalcanti, Ferreira Gullar, Moacyr Felix,
Nelson Werneck Sodré, Carlos Lira, Glauber Rocha, Jorge Amado e Oscar Niemeyer.
Dias Gomes sublinhou em sua autobiografia que no dia seguinte ao 31 de março
de 1964 foi para Rádio Nacional trabalhar, onde era diretor artístico na época. A emissora
apoiava o governo de João Goulart. Gomes disse que os corredores da rádio estavam
cheios de delegações de sindicalistas que queriam expressar solidariedade a Jango através
dos microfones. “Todos esses pronunciamentos foram gravados pelo Dops e serviram
para meter muita gente na cadeia.”122
Contou que também estiveram na rádio nesse dia os representantes do CTI, Ênio
Silveira, Nélson Werneck Sodré, Alex Vianny, Moacyr Félix entre outros. Segundo
Gomes, pediu ao historiador Nélson Werneck Sodré que sentasse em sua “[...] máquina e
escrevesse o primeiro boletim de guerra das forças antigolpes.” Até que durante à tarde o
superintendente da rádio, Hemílcio Fróes que chegara do Palácio da Guanabara, lhes
mandou acabarem com aquela batalha sonora que estavam travando. Lhes disse: “-
Acabou. Jango já deixou o Palácio Guanabara, está voando não sei pra onde.”123
Os militares apontavam um canhão para o operador-chefe do transmissor, segundo
informaram a Hemílcio Fróes, se permanecessem ali seriam presos, frisou Dias Gomes.
De forma fatídica Gomes sublinhou que passaram de carro em frente à UNE, ele e
Teixeira Filho que lhe deu uma carona no carro da emissora. Naquele momento o edifício
de representação estudantil pegava fogo: “Pensei nos amigos e companheiros Vianinha,
Gullar, Leon Hirshman, Werneck - estariam lá, prisioneiros das chamas de uma nova
Inquisição?”124
Segundo Gomes, quando Teixeira Filho lhe deixou na porta de casa, Janete Clair
e sua mãe acompanhavam tudo pela TV, antes de seu amigo sair, escuta na Rádio Globo
nomes dos comunistas que deviam ser presos, e os nomes dos dois estavam na lista. Gritou
Gomes e se esconderam em um hotelzinho na avenida Mem de Sá. De forma romantizada,
talvez tomado do romantismo revolucionário, Dias Gomes contou que depois de dias ele,
Hemílcio Fróes e Teixeira Filho resolvem buscar asilo na embaixada da Argentina. No
caminho, ele pede para os companheiros pararem o carro e lhes disse que não estava

122
GOMES, 1998, p. 198.
123
Ibid., p. 198.
124
Ibid., p. 199.
48

louco: “Vim pelo caminho pensando, não tenho temperamento para suportar um exílio.
Prefiro ficar e enfrentar o que der e vier.”125
Dias Gomes permanece escondido, pois policiais e oficiais do exército
vasculhavam a cidade à procura de subversivo. Gomes narrou que o capitão do exército
incumbido de capturar alguns inimigos do novo regime, entre eles Dias Gomes, era seu
primo. Por isso, declarou não ter lhe encontrado, utilizando do sarcasmo, Gomes relatou:
“Primeiro a família, depois a pátria.”126E continua em tom irônico: “Hoje lamento esse
gesto de solidariedade familiar, porque não ter sido preso é uma falha na minha biografia
que me envergonha, uma injusta lacuna, pois, por tudo que fiz, sem modéstia, eu acho
que merecia uma honrosa cadeia.”127
Nesse período, O Pagador fazia sucesso no exterior, em Washington, por
exemplo, enquanto Gomes perambulava de esconderijo em esconderijo, perseguido e
punido pelo regime militar. Assim, foi demitido da Rádio Nacional pelo Ato Institucional
Nº 1, seu nome estava em uma lista dos que seriam presos se tentassem entrar nos estúdios
da emissora. Trinta dias depois, lhe demitiram por abandono de emprego, fato que Gomes
satiriza mais uma vez, afirmando que o AI1 que lhe demitiu realmente.128
No ano seguinte, artistas e intelectuais redigem uma carta de protesto para o
marechal Castelo Branco denunciando a repressão a atividades artísticas que vinham
sendo tomadas por algumas autoridades públicas. A carta “[...] foi redigida no teatro Santa
Rosa, por uma comissão da qual faziam parte o teatrólogo Dias Gomes, o poeta Thiago
de Mello, o crítico cinematográfico Sérgio Augusto e os poetas Moacyr Félix e Ferreira
Gullar.”129 A iniciativa foi tomada diante do quadro de ameaças à liberdade de expressão
que vinham sofrendo.
Em 1965, Dias Gomes teve a peça O berço do herói proibida no dia de sua estreia.
Nesse ano o Jornal do Brasil publicou a matéria: “Teatro diz basta à falta de senso nos
cortes da censura.” Os artistas de teatro protestavam contra as arbitrariedades da censura,
no manifesto que foi lido em frente a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) no Rio de
Janeiro, dizia o seguinte: “A classe teatral brasileira unida, vem denunciar à Nação o
quadro de crescente arbitrariedade que vem caracterizando os órgãos de censura em face

125
GOMES, 1998, p. 202.
126
Ibid., p. 204.
127
Ibid., p. 204.
128
Ibid., p. 204.
129
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 25 jul. 1965, p. 8.
49

da atividade teatral, assim como a intromissão ilegal e abusiva de outros órgãos


policiais.”130Dias Gomes mais uma vez assinou o manifesto e esteve presente.
O Correio da Manhã, de 14 de janeiro de 1967, noticiou um manifesto dos
intelectuais brasileiros ao governo. Um dos assinantes do manifesto foi o teatrólogo Dias
Gomes. A matéria cujo título é “Intelectuais não aceitam a carta por ser obra da fôrça”
diz: “Cerca de 200 intelectuais brasileiros subscreveram manifesto contrário ao projeto
de reforma constitucional, que consideram inaceitável por ter partido de ‘um governo de
força’ e dirigido ‘a um congresso coagido e mutilado.”131
Já em 1968, o AI-5 desabava sobre os dramaturgos, e mais uma peça de Dias
Gomes foi proibida, dessa vez A invasão. Ele falou sobre isso a Ferreira Gullar: “[...] em
1969 eu estava escrevendo Vamos soltar os demônios e antes mesmo de terminá-la,
entendi que, dentro da nova situação política do país, sua encenação era impossível. Até
mesmo o filme ‘O Pagador de Promessas’ não obtinha renovação de certificado de
censura desde 1967,”132 questão que será abordada no capítulo terceiro desta dissertação.
Numa luta constante, os artistas e intelectuais buscavam manter a arte viva e
dialogar com a censura. No Correio da Manhã (RJ), em 7 de março de 1968, a matéria
em destaque é “Artistas vão à justiça para cobrar promessas”

Artistas de teatro e cinema vão hoje ao ministro da justiça, num segundo


encontro desde o início do movimento da classe teatral, ‘para fazer através de
memorial, uma cobrança das promessas por ele feitas e ainda não cumpridas.’
Os artistas farão a entrega do memorial ao Grupo de Trabalho nomeado para
estudar a reformulação da censura.133

O texto diz que é grande a indignação dos artistas, pela inexplicável demora com
que a censura se manifesta sobre cada pronunciamento apresentado, protelando a
liberação de peças, causando enormes prejuízos, como é o caso do Capeta de Caruaru,
de Aldomar Conrado, que se encontrara retida em Brasília há 50 dias, quando o prazo que
aquele órgão tinha para se pronunciar era de apenas dez dias, segundo a matéria:
“Também retida pela censura Federal, estão as peças Barrela, de Plínio Marcos; Pic-Nic
no Frent, de Fernando Arrabal; Santidade, de Carlos Kroebber; Getúlio, de Dias Gomes;
e O começo é difícil, vamos tentar outra vez, de Antônio Bivar.”134

130
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 out. 1965, p. 14.
131
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 14 jan. 1967, p. 3.
132
GOMES; GOMES, 2012, p. 83.
133
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 7 mar. 1968, p. 1.
134
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 7 mar. 1968, p. 1.
50

Ainda em 1968, Dias Gomes deu uma palestra para universitários mineiros na
(Sucursal) e retratou o tema: “Cultura e Liberdade”, o Jornal do Brasil fez uma síntese
da palestra do dramaturgo e intitulou: “Dias Gomes acusa Costa e Silva”. Afirmou que a
atitude do presidente, ao proibir a peça Santidade, se caracterizara um abuso de poder e
uma tentativa, segundo ele, em mistificar a opinião pública, “[...] fazendo-a crer que a
classe teatral luta apenas pela liberdade do palavrão, quando lutamos pela livre
manifestação do pensamento.”135 Dias Gomes concluiu sua apresentação dizendo que o
governo brasileiro estava diante de uma opção:

Ou acaba com a censura e permite o trabalho dos artistas nacionais, ou então,


se achar que a arte não é necessária num país em desenvolvimento, mantenha
a censura, impedindo assim, de uma vez por todas a liberdade de expressão.
Onde há cultura não pode haver censura.136

O Correio da Manhã (RJ), em 5 de outubro de 1968, publicou a matéria “Projeto


de Censura tem Crítica do Teatro”:

O anteprojeto de Censura classificatória já em mãos do presidente Costa e


Silva, foi violentamente criticado ontem por vários representantes da classe
teatral da Guanabara, tendo o teatrólogo Dias Gomes afirmado que é tudo
mistificação: “Grupo de Trabalho, Conselho Superior de Censura, censura-
prévia. Os empresários – acentuou – estão cansados de gastar somas
astronômicas e depois verem seus esforços à mercê de um censor subserviente
que de maneira nenhuma deixará de contratar seu ‘patrão’, que será o sr.
ministro de Estado, de acordo com a cartilha enviada agora para
regulamentação.” O teatrólogo lembrou as declarações do ministro da Justiça,
no sentido de que o critério da censura abrangera certos preceitos
constitucionais visando à salvaguarda da ordem e do regime, bem como das
relações amistosas com outros países.137

Dias Gomes não vê como uma peça teatral possa vir a ferir preceitos de segurança.
É sempre possível e fácil alegar-se razões de Estado quando se quer proibir uma peça,
afirma o dramaturgo.138
Dias Gomes estava conectado a uma rede de intelectuais da Bahia que incluía
dramaturgos, artista e intelectuais da década de 1960, cujo objetivo era "representar" em
suas obras o "povo", categoria que remete ao homem simples, do campo. O teatrólogo

135
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23 mar. 1968, p. 10.
136
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23 mar. 1968, p. 10.
137
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 5 out.1968, p. 8.
138
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 5 out.1968, p. 8.
51

baiano encontrava-se também ligado à rede de comunistas, membros do Partidão que,


assim como ele, lutaram contra a censura e outras medidas arbitrarias impostas através
dos Atos Institucionais.
Argumentamos que a trajetória de Dias Gomes entrelaça-se com a escrita de suas
obras. As questões políticas, as críticas sociais, o destaque a personagens populares
fizeram parte de sua formação enquanto brasileiro, baiano e principalmente militante,
pois a cultura nacional-popular no Brasil, integrava a política cultural do PCB, que
segundo Iná da Costa, era sua tentativa de disputar a direção das lutas do período.139
No próximo capítulo narramos como se deu a gestação de O Pagador de
Promessas (1959), a montagem para sua estreia, reestreias e repercussão nacional e
internacional da peça, que se dá até fins de 1960.

139
COSTA, 2017, p. 169.
52

Capítulo II

A GESTAÇÃO DA PEÇA E SUAS ESTREIAS

2.1 O Processo de escrita

Dias Gomes escreveu O Pagador de Promessas em 1959 e publicou a primeira versão


do texto impresso em 1961, pela Editora Agir. A peça é dividida em três atos e a ação se
passa em Salvador. A primeira edição é dedicada a Janete Clair, Pascoal Longo e Edison
Carneiro, o que faz cogitarmos ter sido uma das referências que o dramaturgo utilizou
para pesquisar sobre a cultura afro-brasileira e o sincretismo baiano.
Segundo Décio de Almeida Prado, o teatro brasileiro apontando para a década de
sessenta tinha um padrão que poderíamos classificar de internacional. Porque
usufruíamos de “[...] montagens ricas, grandes elencos, repertório em parte clássico,
cenografia (mesmo quando reduzida a dispositivos cênicos) e indumentária faustosas.”140
Os autores e encenadores na véspera de 1960 continuavam a revolução cênica. Todos
representavam o nacionalismo em suas peças, ou por inclinação política, ou pelo simples
fato de retratarem aspectos menos explorados dramaticamente do país. Em face do
predomínio do repertório estrangeiro, era significativo essa tomada de posição.
Prado afirmou que “[...]todo bom escritor tem seu instante de graça, possui a sua obra-
prima, aquela que congrega numa estrutura perfeita os seus dons mais pessoais. Para Dias
Gomes, essa hora de inspiração veio-lhe no dia em que escreveu O Pagador de
Promessas.”141 Segundo o crítico teatral, Zé-do-Burro era o herói ideal, pois unia o
máximo de caráter ao mínimo de inteligência.
Em 1961, o Diário de Notícias (RJ), em 03 de setembro, lança uma nota do crítico
literário Léo Gilson Ribeiro: “[...] à Livraria Agir Editora agradece pela remessa de ‘O
Pagador de Promessas’, de Dias Gomes, cuja leitura utilizaremos para uma série de
conferências de teatro, já anunciadas em outro local.”142
O etnólogo Edison Carneiro já era uma referência para Dias Gomes, desde criança,
quando frequentava sua casa na qualidade de amigo do seu falecido irmão, Guilherme

140
PRADO, 1988, p. 61.
141
Ibid., p. 90.
142
Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 3 set. 1961, p. 4.
53

Dias Gomes. Juntos eram membros da Academia dos Rebeldes, cujo projeto ideológico
e estético valorizava em seus artigos nas revistas Meridiano e o Momento, assim como
em suas obras, romances e pesquisas como é o caso de Edison Carneiro, já mencionada
no capítulo anterior. Edison Carneiro se torna amigo de Dias Gomes, apesar da diferença
de idade entre eles.
Esse laço de amizade se confirmou quando a primeira pessoa a ler O Pagador de
Promessas foi Edison Carneiro, esse amigo herdado de seu irmão, que lhe afirmou: “Sêo
menino, você escreveu uma peça porreta.”143 Edison Carneiro havia lhe ajudado outrora
quando foi demitido da Rádio Clube por conta da viagem à União Soviética, como já
mencionamos. Dias Gomes disse que andou de emissora em emissora, de revista em
revista, de jornal em jornal, mas ninguém queria lhe empregar. Aí entra o folclorista: “[...]
tentou ajudar-me, encomendou-me um artigo para uma revista que dirigia e, constrangido,
explicou-me mais tarde que o artigo só sairia se meu nome fosse suprimido.”144
Dias Gomes relatou em uma entrevista que depois de Edison Carneiro ter lido a peça,
levou-a para Martim Gonçalves (diretor da Escola de Teatro da Universidade da Bahia)
fazer a leitura. Como “bom baiano”, afirmou que queria a peça encenada primeiro em sua
terra, e só depois excursionaria. Porém, a peça jamais foi lida por Martim Gonçalves.
Quando ele recebeu o dramaturgo e o texto, lhe disse que leria, mas guardou em sua
estante. Segundo Gomes:

Meses após, quando o sucesso da montagem do TBC de São Paulo chegou a


Salvador, ele comentou com Brutus Pedreira: “Sabe que tem uma peça de um
jovem autor baiano fazendo enorme sucesso em São Paulo?” Brutus
respondeu: “Sei, essa peça está ali, naquela estante.” Claro, santo de casa não
faz milagre [...]145

Dias Gomes mencionou mais um fato em relação a esse encontro com Martim
Gonçalves em 1960: “[...] verificou que a escola era na casa do meu tio. Um casarão
imenso onde eu passara a minha infância, brincando de pílula no enorme pomar com meus
primos, brincadeiras que às vezes se estendia até a Roça dos Padres, hoje a Universidade
da Bahia.”146 Relatou nostalgicamente em relação à casa do tio Alfredo, que ficava no
bairro do Canela, na rua João das Botas ao lado do colégio que Gomes estudou, o Ginásio
N. S. da Vitória.

143
GOMES, 1998, p.164.
144
Ibid., p. 147.
145
STEEN, 2008, p. 105.
146
Ibid., p. 104.
54

O próximo a ler foi o diretor do Teatro dos Sete, Gianni Rato,147 para quem Dias
Gomes mostrou a peça com intuito de que ele levasse à cena. Segundo Gomes, Rato lhe
disse que: “[...] era o melhor texto brasileiro que havia lido.”148 O autor de O Pagador
contou na sua autobiografia que ficou emocionado na hora, mas procurou controlar-se.
Rato lhe fez algumas perguntas pertinentes o que lhe motivou a reescrever a peça, afirmou
Dias Gomes:

— Por que você fez um personagem tão interessante como Bonitão quase
desaparecer no terceiro ato?- Não fui eu, foi ele que não quis...eu me esforcei,
mas ele fugia...se recusava...Rato cravou em mim aquele olhar perfurante que
me assustava um pouco.- É isso mesmo, rapaz. Você é um verdadeiro
dramaturgo. Parabéns pelo seu belíssimo texto, que terei o maior prazer de
encenar.149

Outro personagem que também achamos ter sido silenciado nessa narrativa de
Dias Gomes é o rezador Preto Zeferino. O rezador é citado através dos discursos do
protagonista, que relata ter ficado bom de uma dor de cabeça depois de suas rezas, já com
seu amigo “Nicolau não houve reza que fizesse ele levantar. Preto Zeferino botou o pé na
cabeça do coitado, disse uma porção de orações e nada.”150. O protagonista Zé-do-Burro
tinha fé no rezador, por isso o procurava.
Outra observação que Rato fez e influenciou o dramaturgo a reescrever a peça foi
a seguinte. Na primeira versão, as razões para o Padre não deixar Zé-do-Burro entrar na
Igreja era “[...] simplesmente a dedução de que Zé pretendia, pretensiosamente, imitar
Jesus e transformar-se num beato.”151
Segundo Dias Gomes, os temas abordados na peça resultaram de sua pesquisa em
Salvador quando reescreveu o texto por sugestão do diretor Gianni Ratto. Gomes relatou
que a solução para o seu problema era o sincretismo, que foi fruto de sua pesquisa. O
dramaturgo deve ter feito visitas em terreiros de candomblé, umbanda e igrejas, além de
ter lido escritores como Edison Carneiro e outros contemporâneos dele como é o caso de

147
Gianni Ratto (1916-2005) nasceu em Milão, mas viveu até a juventude em Gênova, com a mãe, Maria
Ratto, pianista e professora de canto lírico. Foi um diretor, cenógrafo, iluminador, figurista, escritor e ator.
Veio ao Brasil a convite da atriz Maria Della Costa para dirigir um espetáculo e aqui ficou. Em 1959, uniu-
se à companhia teatral Teatro dos Sete, formado por: Fernanda Montenegro, Fernanda Torres, Paulo Autran
e outros. Disponível em: < http://gianniratto.org.br/gianni.html> Acesso em: 16 ago. 2018,
148
GOMES, 1998, p. 167.
149
Ibid., p. 167.
150
GOMES, 1961, p 55.
151
GOMES, Op. Cit., p. 168.
55

Jorge Amado, também membro da Academia dos Rebeldes, em que o sincretismo estava
sempre presente em seus romances.
A peça ganhou força e autenticidade e Gomes disse ter sido grato ao diretor Gianni
Rato por isso. Em entrevista Dias Gomes relatou: “Faço mil anotações, entrego-me a uma
verdadeira masturbação mental, pesquisando até a exaustão a temática que vou abordar e
investigando minuciosamente a vida dos personagens que vou manipular [...]”152
Conforme sua autobiografia, a peça só seria encenada mais de dois anos pelo
Teatro do Sete, ficaria a quinta no repertório. Assim, Dias Gomes, que estava ansioso
com a estreia do seu texto, resolveu levá-lo para Franco Zampari, proprietário do Teatro
Brasileiro de Comédia (TBC).
O dramaturgo contou: “[...] acho que o teatro tem mais a ver com arquitetura do
que com literatura. O dramaturgo é um construtor de peças. O processo é vertical e
limitado no espaço e no tempo, tal como a construção de um prédio. Tijolo por tijolo.”153
Já o romance, segundo Dias Gomes, se desenvolve horizontalmente, praticamente sem
limitações.
Dias Gomes contou em uma entrevista ao Jornal de Guarulhos, em março de
1983, que “[...] a temática surgiu de forma não muito agradável, através de um telegrama
de uma agência de notícias da Alemanha.”154 Relatava o caso de um soldado que, ao
perder os movimentos das pernas, faz a promessa de carregar uma cruz até certa igreja,
se ficasse bom.
Em outra entrevista de Gomes disse que “[...] aquele ex-combatente alemão, por
estranho que possa parecer em seu misticismo e em sua fidelidade à promessa feita, à
palavra empenhada, tinha muito a ver com minha gente, bem podia ser um homem do
povo, do meu povo da Bahia [...]”155 Povo afeito a fazer e a pagar promessas e obrigações
as mais ambiciosas, aos santos e aos orixás. Gomes também afirma que O Pagador de
Promessas tem muito a ver com ele, pois foi criado com sua mãe fazendo promessas.
Uma delas:

[...] incluía uma peregrinação em todas as igrejas da Bahia, onde ela assistiria
uma missa em cada uma. A lenda dizia que a Bahia possuía 365 igrejas, o que
na verdade não correspondia à realidade, já que eu acompanhei minha mãe
nesta peregrinação que esteve nas 90 igrejas que a Bahia possuía até então. 156

152
STEEN, 2008, p. 102.
153
Ibid., p. 102.
154
GOMES; GOMES, 2012, p. 106.
155
STEEN, Op Cit., p. 99.
156
GOMES; GOMES, Op. Cit., p.106.
56

Sua mãe havia feito essa promessa para que seu irmão recém-formado em
Medicina passasse num concurso, para o Rio de Janeiro. Dias Gomes expressa na obra
suas vivências com o sincretismo baiano na infância, assim como seu engajamento
político para falar de problemas sociais que vão além da intolerância religiosa.
No entanto, analisando as tensões e contradições no discurso do dramaturgo, em
sua autobiografia, encontramos a seguinte consideração: “O Pagador é uma peça nascida
compulsivamente da necessidade interior de entender o mundo. Mas não é uma peça
didática e, muito menos panfletária.”157 Disse que apesar do tema fundamental ser a
liberdade de escolha, ante o qual se posicionava, não teve, ao escrevê-la, a preocupação
em expelir qualquer mensagem política. Será que foi isso mesmo? Dias Gomes parece
está fazendo uma defesa da não intervenção do Partidão em sua escrita, ao dizer que não
sofreu influência partidária.

[...] jamais discuti o texto com qualquer dirigente ou membro do Comitê


Cultural, do qual fazia parte. Acredito mesmo que poderia haver restrições
ideológicas não muito graves, caso a peça fosse submetida à análise do Partido.
(Digo isso para acabar com a falácia de que no Comitê Cultural se discutiam e
aprovavam ou reprovavam obras de membros ou não-membros do Partido.
Nunca tive uma peça ou romance analisado ou discutido no Comitê Cultural
ou em qualquer organismo partidário.158

Porém, os assuntos abordados na peça podem ser frutos de discussões nas reuniões
do partido e do Comitê Cultural, mas Dias Gomes preferiu a seguinte afirmativa:
“Simplificando, eu tivera apenas um objetivo em mente: escrever uma boa peça.”159 O
Dramaturgo afirmou: “Zé-do-Burro é trucidado não pela Igreja, mas por toda uma
organização social, na qual somente o povo das ruas com ele confraterniza e a seu lado
se coloca, inicialmente por instinto e finalmente pela conscientização produzida pelo
impacto emocional de sua morte.”160
Em uma entrevista, Dias Gomes reafirmou esse discurso: “O Pagador não é uma
peça anticlerical. É uma peça contra a intolerância, o dogmatismo, uma fábula sobre a
liberdade de escolha, temas sempre atuais.”161 Por isso, afirmou que escreveria aquela

157
GOMES, 1998, p. 178.
158
Ibid., p.179.
159
Ibid., p. 179.
160
GOMES, Op. Cit., p.179-180.
161
STEEN, 2008, p. 106.
57

peça no dia em que concedeu a entrevista, por se tratar de assuntos atemporais. Segundo
Gomes:

Não é a igreja que está em causa, como instituição. E padre Olavo é apenas um
símbolo de intolerância. Poderia ser uma fábula dos anos 70, anos de
intolerância e obscurantismo, em que muitos Zés-do Burro tombaram,
querendo pagar suas promessas. Se O Pagador for entendido como uma
metáfora, nunca perderá sua atualidade.162

Ainda pensando as contradições e tensões nos discursos de Dias Gomes, em uma


entrevista ele disse ter pouquíssimas recordações do colégio dos Irmãos Maristas, mas o
que sua memória imprimiu foi: “[...] a imposição de uma fé religiosa.” O catolicismo lhe
trouxe traumas:

Ir à missa todos os domingos contava pontos. E num desses domingos saí de


casa em jejum. Durante a missa, sofri uma vertigem, fui de cara no chão. Isso
me traumatizou a tal ponto, que durante muitos anos não podia ficar cinco
minutos numa igreja sem sentir que ia desmaiar. Talvez esse incidente tenha
contribuído, de certo modo, para o meu afastamento da religião. Comecei a
não ir mais à igreja e, quando ia, ficava na porta, com receio de entrar. 163

Ele mencionou na autobiografia e em entrevistas que se decepcionou com o


comportamento dos padres desse colégio, que também o influenciou no distanciamento
com a Igreja. Sabemos o papel histórico da Igreja em nossa sociedade. Dias Gomes
relatou que nos anos 1960 a Igreja fazia “[...] parte de uma engrenagem social repressora,
aliada sempre aos poderosos, em sua essência anticristã. E eu não podia pintar outro
retrato da Igreja Católica, até aquele momento, sem fugir à verdade histórica.”164
A Igreja também teve seu papel desempenhado na zuna rural, por menor que seja
o lugarejo, sempre existia uma capela. No meio do sertão baiano, na peça de Dias Gomes,
tinha a capela, mesmo com suas precariedades, no caso a falta de imagens de santos
católicos, motivo pelo qual a personagem vai à procura da imagem de Iansã num terreiro
de candomblé.

2.2 O Dualismo entre campo e cidade na peça

162
STEEN, 2008, p. 106.
163
Ibid., p. 105.
164
Ibid., p. 106.
58

Dias Gomes apresenta o Padre como fanático, a personagem, que é da capital, dita
“civilizada”, versus a personagem Zé-do-Burro, que é da “roça”, do interior. O
autor/narrador fez uma crítica ou uma sátira à sociedade, pois o papel de fanático caberia
ao personagem sertanejo como é sabido, através de uma extensa produção do pensamento
social e cultural do brasileiro, uma forma de estereotipação ao descrever a imagem dos
sertanejos, a exemplo, dos profetas, dos conselheiros e dos santorais.
Segundo Rui Facó, a ideologia das populações rurais, que viviam mergulhadas em
um quase completo analfabetismo e obscurantismo em relação ao nível cultural de
desenvolvimento, só poderia ter um caráter religioso e místico, que se convencionou a
chamar fanatismo.165 Fanatismo: “Quer dizer, adeptos de uma seita, ou misto de seitas,
que não a religião dominante. Só que a seita por eles abraçada, fortemente influenciada
pela religião católica, que lhe dá o substrato, era a sua ideologia.”166
Quando Dias Gomes descreve a personagem de Zé-do-Burro, ele nos passa a
imagem de um homem arcaico e simples:

Êle é um homem ainda moço, de 30 anos presumíveis, magro de estatura


média. Seu olhar é morto, contemplativo. Suas feições transmitem bondade,
tolerância e há em seu rosto um ‘quê’ de infantilidade. Seus gestos são lentos,
preguiçosos, bem como sua maneira de falar. Tem barba de dois ou três dias e
traja-se decentemente, embora sua roupa seja mal talhada e esteja amarrotada
e suja de poeira.167

Estaria o autor fazendo esta divisão entre personagens arcaicos e modernos? No


personagem do interior temos a descrição ligada à ingenuidade e bondade ao contrário da
descrição de uma das personagens da cidade, em que temos a maldade urbana impregnada
na descrição do cafetão, Bonitão:

Êle é frio e brutal em sua “profissão”. Encara a exploração a que submete Marli
e outras mulheres, como um direito que lhe assiste, ou melhor, um dom que a
natureza lhe concedeu, juntamente com seus atributos físicos. Em seu entender,
sua beleza máscula e seu vigor sexual, aliados a um direito natural de subsistir,
justificam plenamente seu modo de vida. É de estatura um pouco acima da
média, forte e de pele trigueira, amulatada. A ascendência negra é visível,
embora os cabelos sejam lisos, reluzentes de gomalina e os traços regulares,
com exceção dos lábios grossos e sensuais e das narinas um tanto dilatadas.
Veste-se sempre de branco, colarinho alto, sapatos de duas cores.

165
“Sob esta denominação têm-se englobado os combatentes de Canudos ou do Contestado, do Padre Cícero
ou Beato Lourenço [...]” FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos. 9º Ed., Editora Bertrand, Rio de Janeiro.
1991, p. 47.
166
Ibid., p. 47-48.
167
GOMES, 1961, p. 14.
59

Bonitão é a imagem da condenação moral da cidade. O próprio nome Zé-do-Burro


soa pejorativo, sugerindo a figura de uma pessoa sem inteligência, um atrapalhado. Na
descrição da personagem não há adjetivos como força, coragem ou, até mesmo, valentia,
características marcantes dos sujeitos nordestinos descritos tanto na literatura, como no
cinema, teatro e televisão. Entretanto, a partir do desenrolar da narrativa, notamos essas
características presentes nas atitudes de Zé-do-Burro.
Dias Gomes destacou em uma entrevista que a personagem protagonista do
Pagador tem muito dele.168 Descreve com propriedade o homem do campo, porém sua
trajetória se molda na figura de um homem urbano. Portanto, Zé-do-Burro é construído a
partir de características comuns a tantos outros personagens nordestinos descritos tanto
na literatura, quanto no teatro e no cinema. Se assemelha à forma que Heloísa Buarque
de Hollanda narrou:

O artista revolucionário popular poderia ser o indivíduo que mora na


zona sul, trabalha e ganha dinheiro, tem mãe, mas vê que a favela é logo
ali e que na porta de seu edifício dorme um mendigo adulto. Sente-se,
então, compelido a renegar sua existência de “burguês de doirada tez”
para juntar-se ao povo.169

Também notamos na narrativa o compromisso com a fé, com a santa. Zé-do-Burro


não “arredou o pé” da porta da Igreja, antes que se cumprisse a promessa. “Padre: Muito
bem. E que pretende fazer depois...depois de cumprir a sua promessa?” Zé lhe respondeu:
“Que Pretendo? Voltar para minha roça, em paz com minha consciência e quites com a
Santa.”170
Segundo Cândido da Costa e Silva, o catolicismo urbano tem os padrões religiosos
tradicionais abalados, por conta das diversas orientações religiosas, que vão colocar em
xeque o catolicismo, assim como os novos hábitos e costumes urbanos. Acredita que na
zona rural se tem o confinamento dos sertanejos e com isso a guarda dos ensinamentos
tradicionais da diáspora do catolicismo. Segundo o autor,

[...] Veio a se tornar um fator de diferenciação, contrapondo o catolicismo “da


rua” ao “da mata”. O núcleo urbano ao tempo em que registra o impacto de

168
GOMES; GOMES, 2012, p. 106.
169
HOLLANDA, 1980, p. 25.
170
GOMES, 1961, p. 59.
60

incipientes. Orientações religiosas (protestantes, espíritas), capazes de pôr em


dúvida a unanimidade da crença, fomenta a aparição de novos hábitos e
costumes citadinos, via de regra inovadores para o sistema de vida tradicional
chocantes aos padrões religiosos já sedimentados. Na roça, ao contrário o
confinamento de sua gente conserva a herança oriunda da diáspora.171

Na obra de Dias Gomes acontece o contrário. O Padre Olavo se encontra na


capital baiana cheio de princípios tradicionais do catolicismo, e o Zé-do-Burro que vem
da roça, é quem procura por outras “crendices”, outras vias religiosas para a cura de seu
animal Nicolau.
Sonia Regina de Mendonça analisa esse dualismo entre campo e cidade, fazendo
uma descrição de como cada um é representado. A descrição que ela faz do homem do
campo é peculiar a tantas outras figuras descritas na literatura e no cinema. Assim,
conseguimos visualizar Zé-do-Burro nesse indivíduo desenhado por ela.

[...] as noções de campo e cidade deram origens a variados sistemas de


representações e valores, tão distintos quantos expressivos. O significante
campo e seus múltiplos significados, costumam ser associados a formas de
vida social consideradas naturais, plenas de paz, simplicidade ou inocência.
Por outro lado, o segundo termo do binômio, e seus corolários, é vinculado à
ideia de centros de empreendimento, saber e progresso. De igual forma, têm-
se combinado importantes associações negativas ora a um, ora a outro: a cidade
como espaço do egoísmo, da competitividade, da ambição; o campo como
lugar do atraso, da ignorância, da rotina.172

Tanto os indivíduos do campo como os da cidade descritos na peça se enquadram


na descrição feita por Mendonça. Lembrando que o Padre, a polícia, o Repórter e as
Beatas eram uma espécie de elite da sociedade, porque os demais membros descritos na
obra são a massa popular, pessoas humildes como os capoeiristas, a baiana de acarajé,
Minha Tia, Dedé Cospe-Rima, Galego o dono da budega e o Mestre Coca, que estavam
ao lado do romeiro, talvez não apenas por solidariedade, mas por terem se reconhecido
naquele indivíduo que está lutando não apenas contra a intolerância, mas contra uma
ordem, uma classe social.
O povo contra a igreja, esses indivíduos sincréticos, em sua maioria
afrodescendentes em uma tradição da cinematografia brasileira como nos sugere Ella
Shohat e Robert Stam: “[...] as estratégias textuais sincréticas não são simplesmente

171
SILVA, Cândido da Costa e. Roteiro da vida e da morte: Um estudo do catolicismo no sertão da Bahia.
São Paulo: Ática, 1982, p. 32.
172
DE MENDONÇA, Sonia Regina. O ruralismo brasileiro: 1888-1931. São Paulo: Editora Hucitec, 1997,
p. 9.
61

operações de adição, mas um espaço de choque e troca entre elementos culturais.”173 Cita
como exemplos: Macunaíma, de Mário de Andrade; O Pagador de Promessas, de Dias
Gomes; Tenda dos Milagres, de Jorge Amado e Terra em Transe, de Glauber Rocha. Diz
serem especialmente ricos em sincretismo, tanto de uma perspectiva temática quanto
formal. Sobre o Pagador, afirma-se o seguinte:

O Pagador de Promessas gira em torno dos valores conflitantes do catolicismo


e do candomblé, evocados através da utilização de certos símbolos que dão
origem a uma batalha cultural entre, por exemplo, o berimbau e o sino da
igreja, numa sinódoque que remete a uma luta religiosa e política muito
maior.174

Segundo os autores citados, o sincretismo tem servido de inspiração constante


para as artes. Um desses modos em que ele é descrito é na união entre vanguarda europeia
e a cultura local e a antropofagia brasileira. Questionam a Dias Gomes em uma entrevista
o porquê da igreja católica está sempre presente em suas peças. Ele disse que a igreja é
um dado tão importante que jamais poderia escamotear “[...] porque todo o meu teatro
contrapõe o homem ao sistema social. E é inegável o papel desempenhado pela Igreja
nesse sistema, na formação do nosso povo, desde os tempos da catequese.” 175

2.3 Identidade Nacional-Popular na dramaturgia

O pensador católico e intelectual Alceu de Amoroso Lima176, que assinava suas


matérias jornalísticas e artigos com o pseudônimo Tristão de Athayde, discuti sobre o
modernismo, em março de 1960 no prefácio do romance de Antônio Callado a Assunção
de Salviano. Ele acredita que a partir do modernismo podemos indicar várias tendências,
uma delas se processa em três tempos: “no primeiro o que predomina é a passagem do

173
SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da Imagem Eurocêntrica: multiculturalismo e representação.
Tradução Marcos Soares. Editora Cosacnaify, 2006, p. 438.
174
Ibid., p. 437.
175
STEEN, 2008, p. 105.
176
Alceu Amoroso Lima (1893-1983), também conhecido pelo pseudônimo literário Tristão de Ataíde,
nasceu no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, no dia 11 de dezembro de 1893, filho de Manuel José de
Amoroso Lima e de Camila da Silva Amoroso Lima. Em 1913, formou-se em direito pela Faculdade do
Rio de Janeiro. No ano de 1935, Alceu Amoroso Lima tornou-se diretor da Ação Católica Brasileira e foi
eleito para a Academia Brasileira de Letras. Após o golpe militar em 1964, Alceu Amoroso Lima colaborou
também em diversos jornais como A Manhã e o Jornal do Comércio, no Rio, o jornal integralista A
Ofensiva, e o La Prensa de Buenos Aires. Foi ainda diretor da Revista da Academia Brasileira de Letras.
Era casado com Maria Teresa Faria, filha do escritor Alberto de Faria, com quem teve sete filhos. Faleceu
em Petrópolis (RJ) no dia 14 de agosto de 1983. Disponível em:
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/lima-alceu-amoroso> Acesso em: 24 nov.
2018, às 14:44 h.
62

cosmopolita ao nacional. No segundo, a fixação do aspecto nacional, no regional. No


terceiro, a tendência do regional ao universal.”177
O ponto que nos interessa dessa análise de Tristão de Athayde é quando ele frisa
que na década de 1950 teremos romancistas escrevendo e valorizando a passagem do
nacional ou regional ao universal. Entre eles destacam-se Jorge Amado, Guimarães Rosa,
Fernando Sabino, Antônio Callado entre outros. Considera: “Em todos eles o que notamos
é essa passagem ao universal, mesmo no mais estritamente regional de todos eles.”178
No romance de Antônio Callado, Assunção de Salviano, escrito no mesmo período
da peça O Pagador de Promessa, notamos que Callado aborda questões polêmicas e
semelhantes às apresentadas na peça de Dias Gomes. Questões agrárias, religião,
comunismo, revolução entre outras. Esse romance narra a história de Manuel Salviano,
um homem ateu que finge ser um religioso por conta de um plano do Partido Comunista,
“Operação Canudos”, com o intuito de arraigar fieis através da palavra de Deus para que
no dia da procissão de Nossa Senhora da Conceição posseiros fizessem uma revolta
camponesa. Nesse dia Salviano anunciaria para o povo que era um militante comunista e
não um religioso. Porém, o personagem se converte à religião que tanto criticava, dizendo
que os padres sempre ficavam do lado dos mais fortes e ricos.
Quando Salviano relata ao partido que não está mais disposto a colaborar, eles
montam uma armadilha para o carpinteiro, que é preso acusado da morte de um homem.
Resumindo, o personagem morre dentro da prisão cercada pelo povo que ameaçava
invadir para se vingarem do enganador. Em um episódio místico o corpo do Salviano
desaparece e o povo só encontra um buraco no telhado e deduzem que o corpo foi para o
céu.
Segundo Décio de Almeida Prado, na segunda metade da década de 1950, vão
surgir diversas peças que retratam o nacionalismo, “[...] seja por inclinação política, seja
por retratar em cena aspectos menos conhecidos ou menos explorados dramaturgicamente
do Brasil, seja, enfim, pela simples presença em palco de suas peças, o que em face do
predomínio do repertório estrangeiro.”179
Entre essas peças estão: A Moratória, de Jorge Andrade, 1955; O Auto da
Compadecida, de Ariano Suassuna, em 1956; Eles não Usam Black-Tie, de

177
ATHAYDE DE. Tristão. Prefácio. In: CALLADO, Antônio. Assunção de Salviano. 2º ed. Rio de
Janeiro: Editora Civilização Brasileira S. A., 1960, p. 3.
178
Ibid., p. 5.
179
PRADO, 1988, p. 61.
63

Gianfrancesco Guarnieri, 1958; Chapetuba Futebol Clube, de Oduvaldo Vianna Filho,


em 1959 e em 1960, O Pagador de Promessas, de Dias Gomes; e Revolução na América
do Sul, de Augusto Boal. Segundo Prado, “Todos eles tinham em comum a militância
teatral e a posição nacionalista.”180 Dias Gomes apesar de ter deslocado-se ainda criança
para o Rio de Janeiro sempre procurou retratar em suas obras o Nordeste e sobretudo a
Bahia, que foi palco de algumas de suas peças, como é o caso do Pagador.
Para Iná Camargo Costa, em meados de 1950, aparece na pauta de reivindicações
apresentadas ao teatro brasileiro, não só o clamor pela dramaturgia nacional. Começam a
se intensificar as manifestações em favor do teatro popular. Segundo Costa, a retomada
da dramaturgia de Dias Gomes acontece na confluência desses vários aspectos de nossa
produção teatral. Quando retorna com O Pagador de Promessas ao teatro “[...] está
determinado a ser não apenas mais um dramaturgo brasileiro, mas principalmente um
dramaturgo nacional-popular.”181
Décio de Almeida Prado também fala a respeito desse protagonismo do povo. Para
ele, era a aliança entre o teatro e o povo, o que todos os dramaturgos desse período
queriam cimentar:

O povo figurava, portanto, nos mais diversos projetos, seja como emissor, seja
como destinatário, seja como objeto da mensagem – e não seria difícil aplicar
ao caso outros conceitos cedidos pela linguística à teoria da comunicação.
Buscava-se tanto articular a voz do povo, quase inaudível em meio à cacofonia
moderna, quanto adivinhar-lhe as obscuras intenções. Obedecia-se, ou
supunha-se as obscuras intenções.182

A construção da imagem do herói: “[...] um homem que quer entrar numa igreja
com uma cruz e só o consegue depois de morto (O Pagador de Promessas).”183 O
dramaturgo se comunicava de maneira clara e direta. Segundo Prado, esse contato com o
público mais simples, pesou decerto em sua técnica,

[...] Zé-do-Burro – herói ideal, por unir o máximo de caráter ao mínimo de


inteligência, naquela zona fronteiriça entre o idiota e o santo – o enredo espalha
a malícia e a maldade de uma capital como Salvador, mitificada pela música
popular e pela literatura, na qual o explorador de mulheres se chama
inevitavelmente Bonitão, o poeta popular, Dedé Cospe-Rima, e o mestre de
capoeira, Manuelzinho Sua-Mãe.”184

180
PRADO, 1988, 61.
181
COSTA, 2017, p. 53.
182
PRADO, Op. Cit., p. 100.
183
Ibid., p. 88.
184
PRADO, 1988, p. 90.
64

Para Anatol Rosenfeld, o teor popular é acentuado em quase todas as peças de


Dias Gomes. “[...] antes de tudo por se tratar de uma dramaturgia em favor do povo [...]
As peças transpiram vida popular brasileira de todos os poros, também graças à
linguagem saborosa, direta, rica de regionalismo, expandindo-se num diálogo espontâneo
e comunicativo [...]”185
A peça O Pagador de Promessas é nitidamente uma dramaturgia nacional-
popular, pelo fato de discutir questões nacionais como intolerância religiosa, reforma
agrária, sincretismo e fanatismos, dentre outras questões. Com a morte inesperada de Zé-
do-Burro fica explicito a que ponto se chegou a intolerância do Padre que não lhe deixou
cumprir a promessa. Temos aí a participação popular, o povo adentrando a igreja com o
corpo de Zé em cima da cruz, essa encenação seria o retrato da conscientização do povo,
como nos sugere Iná Camargo Costa. “Minha Tia, Rosa, Os Capoeiristas e Mestre Coca
querem realizar o último desejo de Zé colocar a cruz no altar de Santa Bárbara.”186
Para o Padre esse povo “[...] bruxas...elas ainda existem! É mais difícil combatê-
las agora, porque são inúmeros os seus disfarces. Mas o objetivo de todas continua a ser
um só: a destruição da Santa Madre Igreja!”187 Com a morte do devoto nenhuma estrutura
da Igreja é abalada, apenas o padre foi desautorizado pela força do povo unido.
Segundo Iná Camargo Costa, O Pagador de Promessas tem a função de “[...]
advertência, do tipo ‘façamos reformas antes que o povo faça a revolução’, pois,
conforme seu teorema, é o conjunto de forças empenhadas em preservar o sistema que
transforma reivindicações populares sem maiores consequências em ‘problemas
sociais.’”188
Segundo Marcelo Ridenti, alguns artistas e intelectuais do movimento nacional e
popular, como o Teatro Arena, os CPCs, o Cinema Novo, entre outros, identificaram-se
ao camponês explorado, no qual estaria enraizada a genuína arte e sabedoria do povo.
“Essa identidade seria ainda mais forte após 1964, quando a ameaça da indústria cultural
à liberdade artística e intelectual fez-se mais presente, e o apego às tradições populares
pré-capitalistas [...]”189 foi uma forma de resistência das artes em relação a essa
modernização industrial e tecnológica que o regime militar veio impor.

185
ROSENFELD, 1982, p. 57.
186
COSTA, 2017, p. 69.
187
GOMES, 1961, p. 164.
188
COSTA, Op. Cit., p. 69.
189
RIDENTI, 1993, p. 77-78.
65

Kátia Paranhos ressalta que importantes segmentos do teatro vão se destacar ao


manter uma posição contra o regime. Segundo a autora, na “[...] época, o grupo de artistas
que esteve ligado ao Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes
(UNE) reuniu-se com o intuito de criar um foco de resistência e protesto contra aquela
situação.”190 Mesmo sofrendo censura e repressão. É sabido que não só no teatro, mas
diversos segmentos das artes, como o cinema, a literatura e a música utilizaram-se de suas
artes para se colocarem contra o regime.
Segundo Napolitano, essas três expressões artísticas — o teatro, a música e o
cinema — enfatizavam uma cultura nacional-popular; a maioria dos artistas, tanto
músicos, como dramaturgos e cineastas, estavam ligados diretamente à esquerda, muitos
filiados ao PCB. Para Napolitano, a arte engajada possuía uma articulação entre “Artista-
obra-público”. O público principal nesse período era os jovens estudantes e, sobretudo,
de esquerda. Buscavam reflexões através de suas artes sobre o absurdo que a ditadura
praticava, por exemplo, falta de liberdade e de expressão. 191 De acordo com o autor:

Reflexão, diversão e agressão foram categorias que acabaram por


problematizar o projeto de educação sentimental, estética e ideológica,
marcando a crise da esfera pública da arte engajada, entre 1965 e 1968. Novos
códigos, novos segmentos sociais, novos meios de divulgação concorreram
para selar as mudanças da arte engajada no Brasil. E claro, o acirramento da
repressão provocada pelo AI-5, com a censura e o exílio que pesaram sobre os
criadores, não pode ser minimizado [...]192

Podemos frisar que as obras teatrais construíram o nacional-popular em seus


produtos, porém o público receptor dessa construção era a classe média, que não se
enxergavam naquela identidade elaborada pela dramaturgia e por outras artes como
mencionou Marcos Napolitano. Contudo, fez-se importante, como afirmou Ridenti, essa
valorização das tradições populares e da figura do povo perante o regime.

190
PARANHOS, Kátia Rodrigues. Arte e Engajamento no Brasil pós-1964: dramaturgos e grupos de teatro
trafegando na contramão. Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP
– UNESP-Franca. 06 a 10 de setembro de 2010, p. 4.
191
NAPOLITANO, Marcos. A arte engajada e seus públicos (1955/1968). Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, nº 28, 2001, p. 103-124.
192
Ibid., p. 121-122.
66

2.4 A estreia e (reestreias) e a repercussão nacional e internacional

No dia 24 de julho de 1960, o Correio da Manhã anunciava a estreia da peça: “Do


produtor Dias Gomes, da Rádio Nacional, o Teatro Brasileiro de Comédia lançará em
São Paulo, na quarta-feira (27), a peça O Pagador de Promessas.”193 A matéria também
mencionava o nome dos principais atores: Leonardo Vilar, Natália Timberg e Cleide
Yaconis. Assim como o diretor que foi escolhido pelo próprio dramaturgo para dirigi-la,
Flávio Rangel.
Dias Gomes tinha levado o texto para Franco Zampari (1898-1966) o proprietário
do TBC, que depois de ter a peça do tal autor desconhecido elogiada por seu secretário
Armando Pascoal, manda lhe chamar para fechar negócio. Gomes narrou em sua
autobiografia que os diretores do TBC estavam todos entusiasmados para dirigirem O
Pagador, mas Zampari lhe perguntou quem ele escolheria para essa função e Dias Gomes
falou sem hesitar: Flávio Rangel. Zampari questionou, dizendo que ele era muito novo e
que a companhia tinha grandes diretores, porém Gomes estava decidido da sua escolha.
Queria um diretor brasileiro.
Segundo o autor, “O Pagador de Promessas mudaria a cara do TBC, que daí em
diante passaria a dar preferência ao autor brasileiro e a uma dramaturgia preocupada com
os nossos problemas sociais.”194 Em uma entrevista ao programa Roda Viva, TV Cultura,
em junho de 1995, Dias Gomes respondeu à pergunta da jornalista Rita Buzzar se ele
pegava os originais das peças e olhava de novo, reescrevia. Ele respondeu que reescreveu
muitas peças, mas na mesma época, por exemplo:

[...] O Pagador de Promessas eu escrevi três vezes. A versão encenada em São


Paulo, em 1960, pelo Flávio Rangel, no TBC, foi a terceira. A primeira já havia
ganhado um prêmio, mas eu continuei e tal. Eu fui para a Bahia, depois eu
submeti a críticos, eu recebi algumas críticas, fiz outra versão. A primeira
versão, por exemplo, não tinha o problema do sincretismo religioso, que só foi
aparecer na terceira, que é fundamental para a peça.195

Como se pode perceber, a sugestão de Gianni Rato fez a diferença na peça. “A


promessa de Zé do Burro” foi o título da matéria do Correio da Manhã do dia 31 julho
de 1960, o periódico expôs o sucesso do lançamento da peça: “O TBC viveu uma de suas

193
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24 jul. 1960, p. 5.
194
GOMES, 1998, p. 169.
195
GOMES; GOMES, 2012, p. 169.
67

noites de vacas gordas com a estreia, sexta-feira, em São Paulo, de O Pagador de


Promessas, uma peça de grande qualidade, de Dias Gomes.”196 O jornal sintetiza a peça
para seus leitores dizendo que se trata da odisseia de um caboclo que para salvar a vida
de seu amigo Nicolau faz uma promessa a Iansan (Santa Bárbara), no candomblé.
Quando a matéria do jornal chama Zé-do-Burro de “caboclo”, ela está se baseando
em que? Já que em momento algum na peça Dias Gomes refere-se assim ao personagem.
Esse termo está ligado a miscigenação do índio com o branco, ou está ligado a um
estereótipo que se reflete nesta descrição já mencionada “[...] há em seu rosto um ‘quê’
de infantilidade. Seus gestos são lentos, preguiçosos, bem como sua maneira de falar.”197
No desenrolar da peça, “quando o pároco da Igreja descobre que o Nicolau é um
jumento e que a promessa à santa dos aflitos foi feita num terreiro, fecha as portas da sua
Igreja ao caboclo, o qual acampa na praça fronteira ao templo e se transforma numa figura
discutida em toda a cidade.”198
Décio de Almeida Prado considera em relação a Dias Gomes que: “Não seria
errado datar a sua carreira a partir de 1960, quando o TBC levou à cena O Pagador de
Promessas [...]”199Apesar de ter escrito as primeiras peças a serem encenada com 20 anos,
Gomes relata em sua autobiografia que “A partir do TBC, O Pagador iniciou vitoriosa
carreira em que alcançou unanimidade crítica, tanto no país como no exterior. Lembro-
me apenas de um crítico que lhe fez algumas restrições, Bárbara Heliodora.”200
Bárbara Heliodora (1923-2015) foi uma crítica teatral que manteve uma coluna
especializada em teatro para o Jornal do Brasil de 1958 a 1964. Nessa coluna ela
mencionava várias vezes o dramaturgo Dias Gomes e suas obras. Ela era uma crítica
temida e respeitada por sua erudição, era considerada a “Dama de Ferro”, por conta do
seu rigor e alto grau de exigência quando assistia uma peça e escrevia a crítica. Heliodora,
tradutora de Shakespeare no Brasil, também assumiu a direção do Serviço Nacional de
Teatro, assim como Dias Gomes, permanecendo até 1967.
O dramaturgo lembrou que foi questionado por Paulo Francis, em 1962, se já tinha
ofendido Bárbara Heliodora em sua “vaidade de mulher.” Após ter sido escolhido melhor
autor do ano, pela Associação de Críticos Independentes, obteve apenas um voto contra,
o da crítica teatral. Segundo Paulo Francis, só isso explicaria o ódio que ela nutria pelo

196
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 31 jul. 1960, p. 1.
197
GOMES, 1961, p. 14.
198
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 31 jul. 1960, p. 1.
199
PRADO, 1988, p. 87.
200
GOMES, 1998, p. 180.
68

dramaturgo. Em sua defesa, Dias Gomes disse em sua autobiografia que nunca trocou
com “aquela senhora” mais do que meia dúzias de palavras convencionais. 201
No mês seguinte ao da estreia, o Diário de Notícias (RJ) lança uma biografia
sintetizada do teatrólogo mais comentado na ocasião, intitulada: “Autor Brasileiro no
TBC”, frisando que o espetáculo do momento era de produção nacional, algo incomum
naquela companhia.202 Segundo Luiz Carlos Maciel, a tradicional companhia de Teatro
Brasileiro de Comédia (TBC) era dirigida por italianos ricos e tinha inclusive diretores da
Europa dirigindo seus espetáculos.203
Conforme Maciel, “O TBC representava o verdadeiro teatrão: seu objetivo não
era a pesquisa de linguagem, mas tão somente montar espetáculos de qualidade
internacional para que famílias endinheiradas não precisassem ir à Europa para assistirem
a uma montagem digna de grandes textos.”204 Era um teatro da alta burguesia paulista.
Renato Borghi reafirmou que o TBC era muito sofisticado, montavam peças dos
dramaturgos mais famosos do mundo. Segundo Borghi: “Zampari estava atendendo à
demanda da burguesia progressista paulista.”205
Em oposição ao TBC, foi fundado nos anos sessenta a companhia do Teatro
Arena, em que os fundadores eram ligados ao Partido Comunista do Brasil (PCB), como:
Vianinha, Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri. As peças tinham caráter social, eram
produções baratas e as temáticas de certa forma alfinetavam o TBC. O Arena era um
teatro político, mas, para Luiz Carlos Maciel, não trazia inovações. Assim surge o Oficina
que marca seu lugar naquele contexto. Também era um teatro de tendência esquerdista,
porém, evoluiu “no sentido de desenvolver um outro lado, mais inovador: apresentava
tendências estéticas de preocupação com a forma teatral – e não apenas com o
conteúdo.206” A importância de José Celso Corrêa para o teatro brasileiro é inegável,
“seus espetáculos mostram que, além de convicção, tem estilo, intuição, audácia e
intimidade com o palco.207” Maciel frisa que há de viver pra sempre na memória da
geração.
Voltemos à matéria do Diário de Notícias (RJ): “Dias Gomes surgiu na
dramaturgia brasileira muitos anos atrás, quando Procópio desfrutara ainda os ecos de seu

201
GOMES, 1998, p. 181.
202
Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 07 ago. 1960, p. 5.
203
MACIEL, 1996, p. 151.
204
Ibid., p. 151.
205
SEIXAS, 2008, p.38-39.
206
MACIEL, Op. Cit., p.152.
207
Ibid., p.153.
69

apogeu com Deus lhe pague e Anastácio, de Joracy Camargo, como um rapaz-prodígio
de 20 anos.”208 Segundo o periódico, o dramaturgo seguiu do prolongamento da linha
Joracy’s em que as peças dialogam com o didatismo político-social.
Notamos que os periódicos estavam interessados em noticiar o retorno triunfante
do dramaturgo Dias Gomes ao teatro, após uma interrupção de 20 anos de trabalho
dedicado ao Rádio. E um desses jornais traz a boa nova em setembro desse mesmo ano:
“Dias Gomes tem ‘promessa’ na Broadway” é o tema da matéria do crítico teatral Van
Jafa, que fez elogios ao teatrólogo:

Quem revelou a boa nova foi Paschoal Longo. Telefonou ameaçando-me a


notícia com sua inteligência e seu jeito de lago suíço. E aqui estou praticando
um dever quanto prazer de anunciar à cidade e ao mundo que "O Pagador de
Promessas" de Dias Gomes virá a Broadway. Dias Gomes é um baiano de
inteligência lúcida (baiano inteligente é pleonasmo) que acaba de colher êxito
maduro e esférico com sua peça "O Pagador de Promessas" em cena no TBC
da Rua Major Diogo em São Paulo entusiasmando quantos a vêem.209

O que não aconteceu tão rápido, em novembro desse mesmo ano o Tribuna da
Imprensa também noticiou: “Um empresário americano pretende encenar O Pagador de
Promessas de Dias Gomes na Broadway.”210 Em 1962, vem a confirmação pelo mesmo
periódico, “Estão confirmadas as notícias do lançamento nos Estados Unidos da peça de
Dias Gomes O P. P. Vai para a Broadway através da adaptação e direção de Stanley
Richards, encenador americano que visitou o Brasil no ano passado, sob o título de
‘Joumeyto Bahia’.”211A tradução da peça foi feita por Paulo Francis, menos o título que
segundo a matéria nunca ocorreria a um brasileiro.
Ainda nessa reportagem do Tribuna, afirma-se que O P. P. teve carreira brilhante
na montagem do TBC, em São Paulo, e está sendo preparado, no Rio, pelo Teatro
Nacional de Comédia (TNC) para estreia ainda no primeiro semestre de 1962. E anuncia
o novo desdobramento da obra “Dentro em breve será lançado também, no Brasil, o filme
baseado na peça, realizado por Anselmo Duarte.”212Os desdobramentos da versão
cinematográfica serão abordados no terceiro capítulo.
Em 23 de maio de 1962, o Jornal da Bahia relatou que a peça já havia sido
traduzida para o inglês, castelhano, alemão, francês e polonês, “[...] estando em ensaio no

208
Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 7 ago. 1960, p. 5.
209
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 2 set. 1960, p. 3.
210
Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 29 nov. 1960, p. 4.
211
Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 14 mar. 1962, p. 2.
212
Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 14 mar. 1962, p. 2.
70

Teatro Contemporâneo de Varsóvia, devendo também, ser apresentado na Broadway em


setembro próximo, pela produtora Elizabeth Swan.”213 E mencionou os prêmios já
arrebatado pela peça até aquele momento:

Quando a peça foi representada em São Paulo em 1960 conquistou o Prêmio


Nacional de Teatro, após permanecer em 4 meses. Conquistou mais 13 outros
prêmios, sendo 3 de melhor Espetáculo e 2 de melhor autor, o Prêmio
Governador do Estado e o da Associação Paulista de Críticos Teatrais.
Representada em Recife, em 1961, ganhou 6 prêmios.214

Embora a peça tenha sido traduzida para o inglês e se aguardasse o lançamento


para breve, somente em 1965 aparecem nos periódicos matérias com a divulgação da peça
nos EUA, no Correio da Manhã: “O Pagador de Promessas em cartaz em Nova York”215
Na autobiografia Dias Gomes narrou que enquanto se escondia do regime militar “[...]
em Washington, O Pagador era encenado, com direito a pré-estreia patrocinada pelo
embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Juracy Magalhães.”216
Já em 1968, o Tribuna da Imprensa noticiou que após o sucesso nos Estados
Unidos “O autor, convidado para uma série de palestras sobre teatro, teve dificuldades
com o Itamarati, e acabou não indo. Mas segue para Alemanha, onde irá acompanhar a
encenação de outra peça Santo Inquérito.”217
No Brasil, a peça ganhou vários prêmios, em 1960, ganhou o Prêmio Nacional de
Teatro e o Prêmio Melhor Peça Brasileira, pela Associação Brasileira de Críticos Teatrais
(ABCT). Em 1961, ganhou o prêmio governador do Estado de São Paulo:

A comissão Estadual de Teatro distribuiu, na semana passada, os prêmios


Governador do Estado, referente a 1960, as diversas categorias de profissionais
e amadores. Entre os primeiros foram os seguintes os premiados: melhor
espetáculo: O Pagador de Promessas (Cr$ 100 mil); melhor autor vivo: Dias
Gomes, por O Pagador de Promessa (Cr$ 80 mil); melhor diretor: Flávio
Rangel, por O Pagador de Promessas (Cr$ 60 mil)... melhor ator: Leonardo
Vilar, por O Pagador de Promessas (Cr$ 45 mil).218

A peça foi encenada no Rio de Janeiro, em 1962, conforme se noticiou: “A


companhia Tônia-Celi-Autran já escolheu seu próximo espetáculo: O Pagador de

213
Jornal da Bahia, Salvador, 23 maio 1962, p. 1.
214
Jornal da Bahia, Salvador, 23 maio 1962, p. 1.
215
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 7 fev. 1965, p. 10.
216
GOMES, 1998, p. 206.
217
Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 10 maio 1968, p. 9.
218
Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 3 abr. 1961, p. 2.
71

Promessas, de Dias Gomes, que foi montado em São Paulo pelo TBC, mas que nunca
chegou até o Rio.”219
O diretor do Serviço Nacional de Teatro, Edmundo Moniz revelou ao Correio da
Manhã que o original “O Pagador de Promessas” será a peça de estreia do elenco do
Teatro Nacional de Comédia, na sua temporada oficial de 1962 “[...] em sua sede oficial,
à Avenida Rio Branco, no Rio (antigo Cine Parisiense) totalmente remodelado, com
direção de José Renato [...]”220
Iná Costa, afirma que a encenação de O Pagador de Promessas por José Renato
no TNC há de ter sido comemorada como uma das grandes vitórias do teatro político no
Brasil, porque a peça dispunha dos recursos econômicos do governo Federal, que segundo
ela, era um indício da valorização da cultura nacional-popular. O “[...] golpe de 1964
encarregou-se de acabar com as condições que permitiam a ocorrência e o
desenvolvimento da festa nacional-popular [...]”221 Porém, houve resistência por parte de
diversos artistas que não se neutralizaram, e não aceitaram o “contrato social” da classe
dominante que almejava “[...] pôr fora de combate a arte, o artista e a própria luta.” 222
No mês de abril, a coluna de Van Jafa, do Correio da Manhã, informou que O
Pagador estava “em tempo de ensaio” no Rio de Janeiro. Concluiu a matéria dizendo ser
a favor de várias montagens de uma mesma peça, como já acontecia na Europa e nos
Estados Unidos. “[...] cada diretor constrói o seu espetáculo, ou seja, a sua visão da
peça.”223 Além disso, a peça permanecia inédita para a plateia carioca, já que a versão
paulista do TBC não tinha feito temporada no Rio.
O Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP) foi a companhia responsável por
encenar O Pagador de Promessas no Nordeste. Em 1962, o TAP leva a peça para a Bahia.
O TAP foi fundado na década de 1940 pelo professor, médico e crítico de arte Waldemar
de Oliveira (1900-1977). Segundo Décio de Almeida Prado, o TAP:

[...] representava o papel de um TBC menor, valendo-se fartamente do


repertório estrangeiro, importando do sul encenadores europeus (lá estiveram
Ziembinski e Bollini), buscando e achando com frequência o ponto exato de
equilíbrio entre o sucesso comercial e o sucesso artístico. Sem passar ao
profissionalismo e sem abandonar o regime de temporadas esporádicas, o TAP
assegurou, com admirável pertinácia, até os dias de hoje, a continuidade da
vida teatral pernambucana, mantendo sempre alto o nível da interpretação e

219
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 dez. 1961, p. 4.
220
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 30 mar. 1962, p. 2.
221
COSTA, 2017, p. 170.
222
Ibid., 173.
223
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 10 abr. 1962, p. 3.
72

chegando até mesmo a construir – e a reconstruir, após um incêndio – a sua


própria sala de espetáculos, num exemplo único de junção entre o desinteresse
amador e as responsabilidades econômicas do profissionalismo.224

O Pagador de Promessas foi a 570ª peça montada pelo Teatro de Amadores de


Pernambuco. Sua direção coube a Graça Melo, que com ela conquistou o prêmio de
melhor diretor de 1961. Segundo a matéria do jornal A Tarde, publicada nos dias 14 e 15
de julho de 1962, parte da renda do espetáculo foi destinada ao Instituto de Cegos da
Bahia. A companhia já tinha apresentado a peça no Recife antes de trazê-la para a Bahia:

O Teatro de Amadores de Pernambuco detém por determinação da peça – Dias


Gomes – a exclusividade de representações no Nordeste, Leste e Norte do
Brasil, a partir da Bahia. A peça já foi representada pelo TAP 23 vêzes no
Recife e 2 em Natal para o Ministro Oliveira Brito e Edmundo Moniz, diretor
do Serviço Nacional de Teatro e comitiva, presentes ao I Encontro de Diretores
de Teatro do Norte e Nordeste do Brasil. ‘- O espetáculo do TAP conquistou
em 1961, seis dos nove prêmios anualmente distribuídos pela Associação dos
Cronistas Teatrais de Pernambuco a saber: ‘melhor ator’ (Reginaldo de
Oliveira). ‘Melhor atriz e melhor cenógrafa’ (Janice de Oliveira). ‘Melhor
revelação masculina’ (José Silvio Custódio). ‘Melhor diretor’ (Graça Melo) e
‘Melhor espetáculo de 1961.’225

Imagem 1: Cartaz de divulgação da peça O Pagador na Bahia. A Tarde, 13 jul. 1962, p. 9.

O Cine Teatro Guarani foi criado em 1920 e muda de nome, em 1981, para Cine
Glauber Rocha com a morte do cineasta baiano. O Cine teatro fica na praça Castro Alves
na capital baiana. Na coluna de Vital Cavalcante no Jornal da Bahia elogiou-se a versão

224
PRADO, 1988, p. 78.
225
A Tarde, Salvador, 14 e 15 jul. 1962, p. 8.
73

do TAP da peça baiana O Pagador de Promessas. Segundo o colunista, seria a mais


comentada e original de teatro dos últimos tempos, no Brasil.
Elogia a direção de Graça Melo e conclui que “O Pagador de Promessas pelo
TAP deve ser assistido por todos aqueles que apoiam o bom teatro e não desmerecendo o
conjunto que é perfeito, destacamos a interpretação de Reinaldo de Oliveira (Zé-do-
Burro), Janice de Oliveira (Rosa) [...]”226 E ainda parabenizou o fundador, diretor e ator
do TAP, Waldemar de Oliveira.
Em 1978, Ferreira Gullar reafirma que o retorno do dramaturgo se dá com O
Pagador de Promessa, encenado pelo TBC, em 1960. E que com ela Dias Gomes se
torna um nome nacional e internacional. Por fim, lhe questionou se essa peça marcou uma
virada em suas obras. Gomes lhe respondeu o seguinte:

Virada, no sentido de reviravolta, de mudança, acho que não. O Pagador, como


todas as peças que se seguiram, a meu ver, estão dentro da mesma linha
esboçada nas experiências da primeira fase. Com uma diferença fundamental:
vivência. A ideia para O Pagador poderia ter surgido nos meus vinte anos.
Apenas eu não poderia tê-la escrito por falta de maturidade, traço comum a
todas as peças daquela fase. Aliás, hoje eu acho, sinceramente, que todas as
peças que escrevi naquela época foram experiências antes do tempo, pois nem
eu, nem o público, estávamos preparados para elas.227

Em sua autobiografia Dias Gomes afirmou: “[...] minha vida mudou a partir de O
Pagador; eu era agora um autor de projeção nacional, traduzido em várias línguas, e podia
viver voltado para o teatro durante a década de 1960.”228 Conta que com o sucesso do
filme, em 1962, fez a peça voltar à cena no TBC, com a mesma direção de Flávio Rangel,
por quem Gomes tinha estima, e com o mesmo elenco.
Em 1963, o Círculo Independente de Cronistas de Teatro (CICT) elegeu o
teatrólogo Dias Gomes pelo conjunto de obras o melhor autor, segundo essa
organização.229 Nesse mesmo ano, em fevereiro com a matéria: “O Pagador em
Barcelona”, o Diário de Notícia (RJ) frisa que a peça de Dias Gomes foi muito aplaudida
pelo público em sua estreia, ela foi encenada no Teatro Talia de Barcelona, também
recebeu elogios amplos da crítica, segundo o periódico. 230

226
Jornal da Bahia, Salvador, 17 jul. 1962, p. 7.
227
GOMES; GOMES, 2012, p. 76.
228
GOMES, 1998, p. 185.
229
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 jan. 1963, p. 5.
230
Diário de Notícia, Rio de Janeiro, 21 fev. 1963, p. 2.
74

Em abril, esse mesmo periódico divulga o êxito da peça na Polônia, “O P. P.,


apresentado, há pouco, sob a direção de Skuszanka, num dos mais renomados teatros
poloneses, o de Nowa Huta bairro industrial de Cracóvia. Obteve grande sucesso e
provocou muito interesse tanto por parte do público quanto da crítica teatral.”231 Em maio,
ganha um prêmio pela encenação na Polônia:

No terceiro Festival de Teatro Polonês, realizado em Kalisz, o Teatro Nowy de


Lodz, que se apresentou com a peça brasileira O Pagador de Promessas de
Alfredo Dias Gomes, recebeu vários prêmios ‘ex-aequo’, como a encenação
de obra teatral moderna de mais profundo conteúdo ideológico. O ator Luwig
Benoit, intérprete do principal papel (Zé do Burro), foi também premiado como
a melhor atuação masculina do Festival.232

Ainda em 1963, “O Pagador abocanhou outro prêmio internacional. Desta feita


foi o prêmio do IV Festival Internacional de Cartagena, na Colômbia: uma réplica em
prata dos Zapatos Viejos, avaliado em 7 mil dólares [...] quase 5 milhões de cruzeiros!
Benção, Dias Gomes.”
Em 1965, o Jornal do Brasil afirma que a peça de Dias Gomes ainda resiste e
comove pela autenticidade, mesmo após as várias representações no Brasil e no exterior,
“A ignorância e a boa índole do principal personagem de O Pagador de Promessas,
debatendo-se contra a intolerância e o dogmatismo frio da chamada civilização urbana,
consegue ainda bulir e incomodar os espectadores que fatalmente tomarão partido no
contexto dos três atos.”233
A reportagem que estava se referindo à reestreia no Rio de Janeiro no Teatro
Princesa Izabel frisou que os ocupantes da plateia não apoiaram: o padre, a polícia, o
veículo da imprensa e as beatas, pelo contrário quando se finda a peça acabaram
“constrangidos e perpassados pela morte estúpida do pagador de uma promessa a Santa
Bárbara.”234 A imagem dos capoeiristas no anúncio do jornal, talvez esteja dando
destaque a participação que eles tiveram ao defenderem Zé-do-Burro, a resistência que
esse patrimônio imaterial da humanidade carrega ao longo de sua história.

231
Diário de Notícia, Rio de Janeiro, 23 abr. 1963, p. 2.
232
Diário de Notícia, Rio de Janeiro, 31maio 1963, p. 2.
233
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 set. 1965, p. 5.
234
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 set. 1965, p. 5.
75

Imagem 2: Divulgação da peça no Rio de Janeiro. Correio da Manhã, 7 set. 1965, p. 8.

No ano seguinte o Jornal do Brasil, lançou a matéria: “O Pagador vai à cena em


Santiago.” A reportagem mencionou que após vinte e cinco anos o Teatro Universitário
da Universidade Católica de Santiago do Chile incluirá peças estrangeiras em seu
repertório, e afirmou que duas delas seriam peças de autores brasileiros contemporâneos,
no caso foram as obras de Dias Gomes, O Pagador de Promessas, e a de Jorge Andrade,
A Escada.235
Em 1967, o Correio da Manhã trouxe considerações das críticas internacionais
em relação O Pagador de Promessas:

“[...] Uma das peças mais notáveis da dramaturgia contemporânea mundial.”


(J. Brozklewlcz, Polônia); “Estranha, perturbadora, magnífica tragédia, creio
nunca haver visto, no palco, nada tão cruel.” (Mário Luz Morals, Diário de
Barcelona); “...Poderoso e contundente.” (Robert Day, Tines Union, EUA).236

Portanto, a mídia nacional e internacional passou quase uma década noticiando e


fazendo críticas ao Pagador. Em montagens distintas, idiomas diferentes, mas com o
esqueleto do original de teatrólogo Dias Gomes, O Pagador de Promessas teve
visibilidade em diversos países, onde conquistou alguns prêmios o que contribuiu para o
sucesso do seu autor.
Neste capítulo narramos como se deu o processo de escrita da peça. Analisamos a
presença de duas vertentes entre arcaico e moderno, rural e urbano. Expusemos a partir
dos periódicos a divulgação e a repercussão que a peça teve em várias de suas montagens,
assim como a quantidade de prêmios que a obra ganhou. Partimos para o terceiro capítulo

235
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 fev. 1966, p. 15.
236
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 30 jun. 1967, p. 2.
76

desta dissertação buscando analisar a visibilidade e premiações da versão fílmica,


principalmente depois do festival de Cannes.
77

Capítulo III

VERSÃO CINEMATOGRÁFICA, A PALMA DE OURO E A CENSURA

3.1 Adaptação para a versão cinematográfica

O longa metragem tem 98 minutos de duração e imagens em preto e branco, foi o


único filme brasileiro a receber a Palma de Ouro no festival de Cannes (1962) e o
primeiro filme brasileiro indicado ao Oscar (1963, EUA), também ganhou nos
Estados Unidos, em 1962, no San Francisco International Film Festival, prêmio
Golden Gate nas categorias: melhor filme, melhor trilha sonora (Gabriel Migliori).
Alguns críticos como o cineasta Glauber Rocha acreditam que Anselmo Duarte fez a
produção do filme com o intuito de ganhar o festival de Cannes, pois conseguiu
reproduzir muito bem a história da religiosidade popular brasileira.237

[...] Quando apresentado pela primeira vez, em 1962, o filme entusiasmou a


plateia presente. Após receber o prêmio do Festival de Cannes, O Pagador de
Promessas levou o Brasil a várias manchetes de cinema. Essa produção, entre
tantas outras, como O cangaceiro, Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do
Sol e Central do Brasil, compõe o mapa da cinematografia sertaneja. O cinema
sertanejo brasileiro, principalmente durante o período do Cinema Novo, instiga
várias investigações acerca do diálogo entre a literatura e o cinema, por ser um
tema recorrente em tais artes no Brasil.238

Entre 1958-1962 surgiu o Ciclo Baiano de Cinema, e com ele vamos ter a
representação dos sujeitos nordestinos/sertanejos pelo olhar de diretores e escritores
baianos, como é o caso de Dias Gomes, que escreveu O Pagador de Promessa, e ao
adaptá-la, tem essa versão dirigida pelo então paulista Anselmo Duarte, que se tornou
um “grande sucesso” nas telas. Além da cinematografia estrangeira que
recorrentemente fez uso de clichês e estereótipo ao representar o Brasil,
especificamente o Nordeste, os sulistas se destacam como pioneiros na produção
fílmica do país.

237
SANTIAGO, Nayara Carneiro. Processo de transposição de linguagem na obra o pagador de
promessas. Artigo publicado na Revista Graduando. Nº 2 jan/jun, ISSN 2236-3335. UEFS, 2011, p. 89.
238
Ibid., p. 89.
78

Durval Muniz de Albuquerque Jr., ao discutir sobre o olhar do cinema para o


Nordeste, fez uma análise do filme O Pagador de Promessas. O autor foca na
dicotomia entre cultura rural e urbana. “Toda a luta de Zé do burro é para ser
reconhecido e aceito pela ordem, ser acolhido e integrado numa ordem reformadora
com a sua presença.”239
Segundo Albuquerque Jr., o estereótipo nordestino/sertanejo, demonstrado no
cinema, só começa a mudar com o surgimento do Cinema Novo. Ressalta que o atraso
nacional não está apenas na região Nordeste: “Esse novo cinema irá constatar que o
subdesenvolvimento estava, também, nas cidades sulistas, não apenas no campo e no
Nordeste [...]”240
Em janeiro de 1961, o Jornal do Brasil já noticiava a versão cinematográfica da
da peça O Pagador de Promessas.

A adaptação para o cinema já foi feita pelo próprio autor, que entregará a
Anselmo Duarte para que seja então preparado o roteiro técnico. O Pagador
de Promessas foi o maior sucesso teatral do ano passado, em São Paulo, tendo
conseguido nada menos que seis prêmios da crítica paulista: espetáculo e
direção (Flávio Rangel) autor, atriz (Natália Timberg), ator (Leonardo Vilar) e
revelação e cenógrafo.241

Dias Gomes contou em sua autobiografia que tinha com Flávio Rangel um
compromisso, “[...] se O Pagador viesse a ser filmado, ele seria o diretor. Desde a
estreia da peça, Flávio alimentava esse sonho e procurava um produtor para o
filme.”242 No entanto, o próprio Flávio Rangel cede a direção da versão fílmica para
Anselmo Duarte. Em um dos espetáculos da peça no TBC, Flávio Rangel convidou
Anselmo Duarte e Oswaldo Massaini para assistirem, e os dois ficaram interessados
na adaptação.
Em certo dia, o diretor da peça Flávio Rangel levou Anselmo Duarte à casa de
Dias Gomes e lhe disse: “Dias, eu queria muito fazer esse filme, mas não consigo
produtor. Anselmo tem um produtor, Oswaldo Massaini, e eu abro mão da
exclusividade que você me deu.”243 Gomes alega que hesitou, duvidava que Anselmo
Duarte fosse o melhor diretor para O Pagador de Promessas, consultou seus amigos

239
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes; prefácio de Margareth
Rago. 2. Ed., Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2001, p. 210.
240
Ibid., p. 210.
241
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 4 jan. 1961, p. 4.
242
GOMES, 1998, p. 182.
243
Ibid., p. 182.
79

do Cinema Novo, Leon Hirshman e Alex Vianny que segundo ele, acharam uma
temeridade. Anselmo Duarte mesmo percebendo a resistência do dramaturgo insistiu
na ideia e certa vez lhe falou: “Se você me der essa peça, eu vou com ela ganhar a
Palma de Ouro, juro por Deus.”244
Gomes narrou que não acreditou que ele ganharia o Palma, mas a determinação
dele lhe deu a certeza de que Anselmo Duarte faria o melhor. Mesmo assim, o
dramaturgo fez algumas exigências:

[...] no contrato que assinei com Oswaldo Massaini, fiz constar uma cláusula:
uma vez o roteiro definitivo aprovado, o diretor seria obrigado a segui-lo cena
por cena; queria assegurar inteira fidelidade à minha história. Desse contrato
constava também a obrigação de fazer a adaptação cinematográfica, onde
procurei também me resguardar, mantendo quase literalmente o
desenvolvimento e os diálogos da peça, e nisso amarrando a direção, reconheço
– dessa acusação, que é feita a Anselmo, eu tenho culpa. Nos créditos do filme
aparece somente o nome dele como autor do roteiro; isso é falso, entreguei-lhe
a adaptação já em seu terceiro tratamento, isto é, a história dividida em cenas,
com a ação das personagens e os diálogos definitivos, cabendo-lhe acrescentar,
no tratamento final, a definição dos planos e a movimentação de câmera.245

Notamos como o dramaturgo faz questão em seu discurso de dizer que elaborou boa
parte do roteiro do filme, mesmo não tendo seu nome nos créditos da película. Dias
Gomes mencionou na autobiografia que viajaram juntos para Salvador a fim de
escolherem os locais de filmagem. Anselmo Duarte via a história da peça de forma
maniqueísta, uma luta entre o bem e o mal “[...] entre heróis e bandidos, em que o herói
era o candomblé, e o bandido, a igreja católica. Custei a convencê-lo de que o sentido do
argumento era muito mais complexo. Mas ele, finalmente, me deu razão.”246
Uma missão que eles tiveram na Bahia foi convencer o clero a deixar gravarem e
usarem alguns templos católicos como cenário, por exemplo, a Igreja do Passo. Anselmo
Duarte, acreditando que os eclesiásticos não aceitariam, narrou-lhes o seguinte: “A
história que contou aos padres, de profunda religiosidade, terminava com um milagre de
Santa Bárbara, que aparecia a Zé-do-Burro e o levava consigo para o céu.”247 Assim,
obtiveram o aval da Igreja Católica.
Logo os periódicos nacionais começaram a dar destaque ao filme. O Diário de
Notícias (BA), de 1962 destacou: “O Pagador vai a Cannes”. A matéria expunha que o

244
GOMES, 1998, p. 182.
245
Ibid., p. 182-183.
246
Ibid., p. 183.
247
GOMES, Op. Cit., p. 184.
80

cinema nacional acabara de receber um êxito com um filme filmado na Bahia. Tratara-se
de O Pagador de Promessas, de Dias Gomes e dirigido por Anselmo Duarte. O filme foi
“[...] exibido numa sessão privada para um grupo de críticos e diplomatas do Itamarati,
incumbidos de selecionar o representante brasileiro ao Festival de Cannes, deixou todos
empolgados pela sua elevada categoria.” 248 Saíram fascinados com o filme, segundo o
periódico, “O Pagador de Promessa representará oficialmente o cinema brasileiro no
importante Festival de Cannes e não será surpresa se vir a conquistar um dos prêmios do
certame.”249
O Diário de Notícia (RJ) já havia noticiado no dia 03 de abril que na noite da sessão
especial antes de ir para Cannes: “Pela primeira vez, no Brasil, assiste a um acontecimento
que é tão comum em vários países: o povo bater palmas de pé quando uma cena se destaca
ou quando um trecho de filme o impressiona.” A matéria ainda trouxe um apelo ao
Itamarati e ao nosso Ministério de Relações Exteriores para dar-lhe ajuda e publicidade
naquele momento a fim de que o filme trouxesse o prêmio que merecia. E concluiu:

Anselmo Duarte e toda sua equipe deram-nos um filme marcantemente


brasileiro, onde as paisagens e os personagens têm características brasileiras,
onde tudo é fielmente realizado. O Pagador de Promessas, de Dias Gomes,
naquele cenário baiano, com seus tipos tão bem traçados, com seus choques
tão bem marcados pela peça, foi por Anselmo Duarte aproveitado em toda sua
extensão e profundidade.250

No mês seguinte, o Tribuna da Imprensa publicou: “Pagador merece a Palma.” Esse


era o título da matéria que trazia o comentário de um crítico de Paris: “Ao brasileiros em
estilo de pureza e emoção deixaram cair entre nós uma bomba intitulada ‘O Pagador de
Promessas’ e por isso devem receber o prêmio da Palma de Ouro.”251A reportagem frisa
que outras críticas de diversos jornais da Europa também elogiam a película baseada na
peça de Dias Gomes.
No dia 22 de maio o Jornal da Bahia já cogitava a premiação do filme. Após a
exibição: “[...] foi considerado pela crítica como a melhor película que o Brasil já mandou
ao exterior, sendo apontado como um dos melhores já produzido em país da América
Latina [...]”252 Também elogiaram a atuação de Leonardo Vilar que na ocasião rivalizava

248
Diário de Notícias, Salvador, 8 e 9 abri. 1962, p. 6.
249
Diário de Notícias, Salvador, 8 e 9 abri. 1962, p. 6.
250
Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 03 abri. 1962, p. 2.
251
Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 4 maio1962, p. 1.
252
Jornal da Bahia, Salvador, 22 maio 1962, p. 1.
81

com os melhores atores já premiados pela interpretação masculina em competições


cinematográficas internacionais.
A matéria também frisou que o filme foi exibido com o título francês de: “La Parole
Donnée”, o que, segundo o jornal, despertou em todos os expectadores maior interesse
pelo Brasil. “Várias vezes foi a fita brasileira aplaudida durante a projeção. O acolhimento
do público foi classificado de entusiasta, e a crítica lhe tem sido favorável, estando os
discordantes em franca minoria.”253
No dia 23, o Jornal da Bahia fez questão de demarcar que “Pagador é baseado em
peça de um baiano” dando mérito do sucesso a Dias Gomes, soteropolitano, e não ao
paulista, Anselmo Duarte. Expuseram: “O Pagador de Promessas filme brasileiro, que
está fazendo sucesso no Festival de Cannes, foi baseado em uma peça do baiano Dias
Gomes, em 3 atos, escrita em 1959 e estreada em junho de 1960 [...]”254
Ainda nesse periódico, na página 4 traz críticas de alguns jornais do mundo que
assistiram na ocasião a sessão da película de O Pagador, em Cannes:

“II Messagero”, de Roma: Uma película valente que toca um tema que é
perigoso para o país de origem...a realização da película é imperfeita, porém
sua execução é excelente. “La Stampa”, de Turim: Um filme de vigor, com
belas cenas e um estilo sincero e místico.
“YA”, de Madri: A película se apresenta com certo vigor acompanhado de
colorido e lirismo. “L’Aurore”, de Paris: Os brasileiros...é um estilo de pureza
e emoção, deixaram cair entre nós uma bomba intitulada O Pagador de
Promessas... por isto, devem receber o Prêmio da Palma de Ouro...
“Liberación”, de Paris: É possível que a película brasileira não ganhe o Prêmio
da Palma de Ouro (a melhor película), porém não seria compreensível que o
júri não lhe outorgue um prêmio especial...seria ridículo ignorá-la. “Le Soir”,
de Bruxelas: O ator Leonardo Vilar é surpreendente.255

Outro periódico da Bahia lançou a boa nova nesse mês: “Pagador de Promessas
ganha Palma de Ouro”. Filme rodado sob a direção de Anselmo Duarte ganha o prêmio
com Palma de Ouro, no Festival de Cannes. “Este grande tento da cinematografia
brasileira traz para a Bahia mais uma glória. Esta película foi totalmente rodada nas ruas
antigas da cidade e com mais da metade do elenco de artistas bahianos.”256

253
Jornal da Bahia, Salvador, 22 maio 1962, p. 1.
254
Jornal da Bahia, Salvador, 23 maio 1962, p. 1.
255
Jornal da Bahia, Salvador, 23 maio 1962, p. 4.
256
Estado da Bahia, Salvador, 24 maio 1962, p. 1.
82

Imagem 3: Revista Manchete, Rio de Janeiro, 16 jun. 1962, p. 49. Nº 525.

Esta imagem da revista Manchete foi publicada no mês seguinte à premiação da


película e nos mostra a alegria do teatrólogo Dias Gomes ao abrir o cartaz do filme
exposto em Cannes. A revista está dando visibilidade ao dramaturgo, ao autor da peça,
ampliando seu prestígio nos meios intelectuais.
Ainda no dia 24, o Diário de Notícias (RJ) publicou em primeira página: “Foi entre
manifestações de júbilo que a delegação brasileira recebeu o veredito do júri do Festival
Internacional de Cannes, que, depois de seis horas de deliberações, decidiu conferir a ‘O
Pagador de Promessas’ o prêmio máximo e cobiçadíssimo por todos os países.”257 Nessa
matéria especifica entrevistaram Dias Gomes e Flávio Rangel, respectivamente autor e
diretor da peça, em que se baseou a película. Mostraram-se surpresos pela conquista,
embora considerassem que o filme merecia. Já Anselmo Duarte manifestou seu
contentamento e disse ao jornal que o júri fez justiça.
No dia seguinte, 25 de maio de 1962, o Estado da Bahia traz uma manchete com o
título: “Vencemos!”. Segundo a matéria, a vitória do filme significava mais que mero
prêmio cinematográfico de âmbito nacional. Significava mais que a consagração de
Anselmo Duarte:

A “Palma de Ouro” conquistada com o talento de uma equipe brasileira e a


verdade de um tema nosso vem nos dizer de perto que o cinema brasileiro
encontrou o seu caminho exato como arte de um povo jovem e necessitado de
maior comunicação humana, como o início da concretização de uma famosa
profecia que nos colocava no futuro como o país realizador do maior e melhor
cinema do mundo. “O Pagador de Promessas” recebendo os aplausos

257
Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 24 maio 1962, p. 1.
83

internacionais não está na mira da apologia. Quem ganha, com Anselmo


Duarte, Osvaldo Massumi, Dias Gomes e os outros em Cannes é todo o esforço
de dezenas de brasileiros que sentiram a necessidade de um cinema mais
brasileiro e mais comunicativo, de um cinema com o olho câmera dirigido para
o homem e para as suas circunstâncias históricas. O mundo somente poderia
prestar atenção à arte brasileira se esta arte estivesse voltada para dentro não
dos nossos limites, mas das nossas concepções vivencias e dos problemas do
nosso povo. Para dentro do nosso misticismo, da nossa coragem, da nossa
covardia, da nossa crença e da nossa descrença da nossa maldade, do nosso
ódio e do nosso amor do nosso grande amor. “O Pagador de Promessas” é o
início de uma vitória maior. É uma batalha ganha com brio e honestidade na
preparação da conquista total. Nenhum povo, nenhum, está mais apto a
conquistar artisticamente o mundo do que nós.258

Para o jornal com Cannes o mundo abre as suas portas para “[...] deixar que as nossas
vozes sejam ouvidas.”259 Enfim, segundo o periódico: “venceremos pela verdade.” Em
junho de 1962 o A Tarde lançou a matéria: “Os brasileiros pararam o trânsito em
Cannes” entrevista Jean Lucien Descave. Membro da delegação designada pelo Itamarati
para representar nosso país no XV Festival Cinematográfico de Cannes, ele contou ao
jornal:

— Fui eu quem deu a notícia à delegação brasileira de que a Palma de Ouro


havia sido concedida ao Pagador de Promessas. O júri estava reunido desde
às 10 horas da manhã e somente às 14 horas foi afinal conhecido o veredicto.
Saí correndo para o hotel, onde estavam reunidos todos os brasileiros que
receberam, atônitos, os meus gritos: Palma de Ouro I. No primeiro momento,
ninguém queria acreditar na grande notícia. Quando afinal compreenderam o
significado da grande vitória, houve uma reação comovida de todos, tendo
Norma Beneguel sido acometida de uma crise.260

Jean Descave, francês, casou-se com uma baiana, já tendo, inclusive, produzido
filmes na Bahia. Ele residia em São Paulo. Foi o primeiro membro da delegação a
regressar ao país, e narrou as emoções dos membros ao receber a notícia do prêmio:

— Tínhamos, todos, grandes esperanças – acrescentou ele – pois ao ser exibido


o “Pagador de Promessas”, recebeu uma verdadeira ovação, aplaudindo a
platéia, durante cinco minutos, sem parar, ao final da sessão. A saída do
cinema, os brasileiros receberam a consagração pública. Os artistas delegados
eram alvo de verdadeira ovação popular, todos querendo abraçar-nos. A coisa
foi de tal ordem, que o trânsito de veículos esteve interrompido, durante 10
minutos, à frente do cinema. E, pela primeira vez, a decisão do júri contou
com a aprovação unânime dos 700 jornalistas do mundo inteiro que ali se
achavam reunidos. Afirmou Jean Lucien que a vitória de o “Pagador de
Promessa” abriu não somente as portas do mercado mundial ao nosso cinema
mas, especialmente pôs os artistas brasileiros no (metiê) internacional,
oferecendo-lhes oportunidades as mais otimistas, Norma Benguell já recebeu

258
Estado da Bahia, Salvador, 25 maio 1962, p. 1.
259
Estado da Bahia, Salvador, 25 maio 1962, p. 1.
260
A Tarde, Salvador, 14 e 15 jul. 1962, p. 8.
84

inúmeras propostas, devendo cumprir vários contratos na Europa, em base


econômicas que se equipararam às das grandes estreias do cinema
internacional. Jean Lucien Descave deixou hoje a Bahia, rumo a São Paulo,
onde reside.261

Quando O Pagador venceu o festival de Cannes, foi geral a perplexidade.


Segundo Dias Gomes, os cineastas do movimento Cinema Novo (Leon Hirshman, Alex
Vianny, Joaquim Pedro, Glauber Rocha entre outros) sentiram inveja e “[...] certa
indignação inconfessada. Anselmo não pertencia ao movimento, era ideologicamente
alienado, trazia ainda como estigma o de galã das chanchadas da Atlântida – e se atrevera
a ganhar o Palma de Ouro. Ou, melhor, roubar-lhes a Palma [...]”262 Esses cineastas
sentiram-se furtados.
Em uma entrevista ao Jornal de Guarulhos, em 1983, Dias Gomes, ao rememorar
sobre o movimento Cinema Novo, disse que “[...] acabou virando uma masturbação
intelectual que sucumbiu por sua própria impotência. Este esteticismo levou a um elitismo
tão grande, que o movimento se tornou mafioso.”263 Quando foi perguntado pelo jornal
por que mafiosos, ele respondeu:

Porque se achavam os donos da verdade e do mundo, com direito a julgar e a


crucificar. E foi o que fizeram com Anselmo Duarte após ele ter ganhado a
Palma de Ouro em Cannes. Ele foi execrado pela pseudointelectualidade do
cinema novo, que nem criativa era. Alijaram o Anselmo da história do cinema.
Você não vê o nome dele em nenhum livro que fale do cinema novo. Mas ele
teve uma importância enorme, abriu as portas no exterior, despertou a
curiosidade do mundo inteiro para o cinema brasileiro. Glauber teve seu
caminho aberto por Anselmo e no entanto, ajudou a liquidá-lo, tanto que nunca
mais Anselmo fez um filme que merecesse maiores considerações da crítica.
Tornou-se um grupinho fechado, onde eles se devoravam uns aos outros, se
autodestruindo.264

No primeiro capítulo desta dissertação, mencionamos como Dias Gomes fez


questão, em uma entrevista, de dizer que o Cinema Novo surgiu na sala de sua casa, e
depois há essa outra fala do dramaturgo em relação ao movimento e aos seus membros.
Uma crítica ressentida. No livro “Patrulhas Ideológicas”, de Carlos Alberto M. Pereira e
Heloísa Buarque de Hollanda, encontra-se uma entrevista de Glauber Rocha nos anos
1980, em que ele também faz críticas a artistas brasileiros, entre eles Dias Gomes:

261
A Tarde, Salvador, 14 e 15 jul. 1962, p. 8.
262
GOMES, 1998, p. 185.
263
GOMES; GOMES, 2012, p. 108.
264
Ibid., p. 108.
85

Como diz o Oswald de Andrade, no Brasil, o contrário de burguês não é o


proletário, é o boêmio. Intelectual aqui é um palhaço da burguesia, são as
mesmas figuras da revista Interview, das colunas sociais do Globo, desses
bares decadentes aí. É o grotesco, é o expressionismo caipira latino-americano,
como em Cuba de Batista. Show da Gal Costa, espetáculo de Ney Matogrosso,
teatro de Dias Gomes é tudo uma porcaria só. São as filigranas, o texto da
decadência da colônia do Rio de Janeiro, um porto prostituído.265

Ainda nessa entrevista o cineasta baiano falou que vários intelectuais ligados ao
Partido Comunista se corromperam inteiramente. “[...] a maioria de atores, diretores,
argumentistas etc., foram trabalhar na Globo, no auge da ditadura do General Medici. Se
corromperam, inclusive se corromperam esteticamente, ideologicamente, um desastre. Se
venderam ao Roberto Marinho, a preços módicos.”266 Notamos que ambos os artistas,
tanto Glauber Rocha como Dias Gomes trocavam ofensas, mesmo que indiretamente.
Glauber Rocha disse que no Brasil todo mundo esculhamba o Cinema Novo, mas
segundo ele nunca se escreveu um ensaio criticando-o. “Se esculhamba com frases em
jornais, e isso todo mundo: a direita, a esquerda... a maior frente ampla do Brasil, o maior
lugar comum que existe. É a fuga ao debate.”267
Deixando os ressentimentos de Glauber Rocha e Dias Gomes de lado, voltemos
aos periódicos baianos. No Diários de Notícias (BA) saiu a seguinte matéria frisando não
poder separar a versão fílmica da versão peça, utilizando os seguintes argumentos:

Não há como separar O Pagador de Promessas, a parte puramente


cinematográfica da parte ideológica, isto é: o que Anselmo Duarte (diretor)
“escreveu” “em imagens” do que Dias Gomes (autor da peça teatral da qual o
filme foi tirado) deixou dito “em ideias”. E isso, não porque os vestígios da
peça de teatro sejam por demais evidentes no filme. Há, sem dúvida uma outra
passagem que se sente a “lembrança teatral”. Mas, não é daí que vem a
oposição a que me referi. Para chegar até ela, creio que o caminho mais
eficiente é partir da distinção aparentemente arbitraria: imagem não
revolucionária e tese-revolucionária. Isto é: enquanto Anselmo Duarte dirige
burguêsmente (ainda que muito bem), Dias Gomes pensa marxistamente (e não
vai além do primarismo ideológico habitual aos dramas sociais de esquerda).
O resultado é O Pagador de Promessas, que tantas vezes lembra o ímpeto
revolucionário do “Encouraçado Potemkine”, não consegue a unidade íntima
que o tornaria um filme realmente extraordinário. Eis porque, também o filme
entusiasmou o público e esse júri de Cannes – esse público e esse júri de
Cannes que vivem torcendo o nariz para os filmes soviéticos, mas que adoram
todos os ‘compromissos esquerdizantes, principalmente se tiverem um
qualquer matriz anti-clerical laivos de inconformismo. Bem sei, a ideia-mestra
de ‘O Pagador de Promessas’ não é puramente anti-clerical. O próprio Dias

265
PEREIRA, Carlos Alberto M.; HOLLANDA, Heloísa Buarque. Patrulhas Ideológicas. Livraria
Brasiliense Editora S.A., São Paulo, 1980, p. 28.
266
Ibid., p. 27.
267
Ibid., p. 26.
86

Gomes fez questão de declarar (segundo testemunha Van Jaga, no seu artigo
“De como Dias Gomes situa seu Pagador”, em o Correio da Manhã de 23-05-
62).268

É a partir dessa semelhança da versão fílmica com a versão teatral que Dias Gomes
e Anselmo Duarte se glorificam após Cannes. Ambos se elogiam, mas notamos que o
protagonismo do sucesso é disputado pelos dois em nossa leitura.

3.2 O Pagador de Promessas depois de Cannes

Logo depois da premiação, O Pagador continuou ocupando as páginas dos


periódicos nacionais. Dias Gomes declarou ao Diário de Notícias (BA) que se encontrava
feliz e orgulhoso pelo prêmio alcançado, segundo a reportagem, “[...] menos por ser autor
da peça do que por ser brasileiro.”269 Notamos que a declaração do dramaturgo tende ao
nacionalismo, almejando, segundo a nossa leitura, que os brasileiros também sentissem
orgulho do filme.
Afirmou que tal prêmio “[...] não pertence particularmente a ninguém, mas as artes
do Brasil que demonstram sua maturidade e as suas possibilidades artísticas.”270 E elogiou
mais uma vez o trabalho de direção do Anselmo Duarte e dos artistas que participaram da
película. Finalizou a entrevista dizendo: “[...] o filme estreará no Brasil dentro de 30 dias
e que já foi vendido comercialmente na França, Suíça, Alemanha e em andamento em
outros contratos internacionais.”271
O Diário de Notícias, em 26 de maio de 1962, noticiou “O Sucesso de ‘O
Pagador’”:

Continua repercutindo intensamente nos meios artísticos do país a espetacular


conquista da Palma de Ouro do Festival de Cannes pelo filme brasileiro “O
Pagador de Promessa”. Foi uma vitória extraordinária do cinema nacional,
visto que a obra de Anselmo Duarte teve que competir com películas de
famosos realizadores italianos, franceses, soviéticos, americanos, japoneses,
ingleses e de outras nacionalidades, onde o cinema já alcançou um elevado
grau de desenvolvimento. Antes do veredito, de quarta-feira, já a quase que
unanimente apontava a produção de Oswaldo Massaine com a provável
detentora do laurel máximo do famoso certame fílmico: Jean de Baroncelli, o

268
Diário de Notícias, Salvador, 9 set. 1962, p. 6.
269
Diário de Notícias, Salvador, 24 maio 1962, p. 1.
270
Diário de Notícias, Salvador, 24 maio 1962, p. 1.
271
Diário de Notícias, Salvador, 24 maio 1962, p. 1.
87

exigente crítico francês do jornal “Le Monde” dizia: “É uma excelente


película, solidamente construída, inteligente narrada, formidavelmente
interpretada.” Para Baroncelli, a causa direta do entusiasmo do público é a
parte final do filme, em que o peregrino, que fizera uma promessa para obter a
cura de seu burro doente, é linchado, preso numa cruz e levado ao templo,
numa cena de expressivo simbolismo o crítico prossegue dizendo que o mérito
do diretor Anselmo Duarte é não haver caído na “tentação folclorista”. Diz que
‘com toques leves e com a ajuda de um artista a quem o filme deve muito,
Leonardo Villar. Anselmo sensibiliza a alma rude de seu herói, com uma fé
ingênua que mistura inocentemente cristianismo e paganismo.’ Conclui
Barocelli: “Tudo isso faz uma obra terna, simpática, enormemente
emocionante, uma obra digna de figurar entre os merecedores do Palma.”272

As críticas internacionais deram ainda mais visibilidade ao filme. No caso do


jornal Le Monde, por exemplo, importante periódico francês que fez vários elogios à
película, como observamos em parte da matéria do Diário de Notícias (BA). No geral, a
maioria das críticas eram positivas, devido à comoção durante a projeção do longa-
metragem.
A revista Manchete em junho publicou: “Diversas vezes, durante a projeção, a
plateia levantou-se para aplaudir cenas de O Pagador de Promessas”. Segundo a matéria,
há anos nem poderíamos esperar por tal honra: “Só filmes de diretores consagrados,
oriundos de países de grandes tradições artísticas, sobretudo no campo do cinema,
poderiam aspirar a tais grandezas. Mas agora o cinema brasileiro, num novo impulso,
orientado em melhor sentido, consegue o que antes era impossível.”273
O periódico também mencionou na matéria que os críticos presentes em Cannes
duvidavam que a película de Anselmo Duarte pudesse se igualar às películas que eram
bem quistas pela crítica: “O Anjo Exterminador”, de Luís Buñuel e de “Plácido”, do
também espanhol Luís Berlanga, por mais que se falasse na repercussão alcançada pelo
O Pagador.

Contudo, às primeiras imagens, que mostram Zé do Burro (figura central do


filme) carregando a sua cruz até a porta da Igreja de Santa Bárbara, em
Salvador, cenas sobre as quais foram superpostos os títulos em francês do filme
(La Parole Donnée, na inscrição do Festival), mesmo os mais céticos
começaram a impassível, como quem sabia que a batalha já estava ganha.
Houve um instante em que a plateia se levantou, quase em massa, para
aplaudir: quando Zé do Burro fita demoradamente a imagem de Santa Bárbara
sendo introduzida na Igreja. O público não resistiu à progressão dramática da
cena e vibrou.274

272
Diário de Notícias, Salvador, 26 maio 1962, p. 5.
273
Manchete, Rio de Janeiro, 2 jun. 1962, p. 24, Nº 528.
274
Manchete, Rio de Janeiro, 2 jun. 1962, p. 24, Nº 528.
88

Nos momentos finais do filme, tivemos sua consagração, “[...] palavras


entusiásticas e aplausos misturaram-se num delírio incontido.”275 Segundo a matéria, foi
a maior consagração dispensada até aquele momento a qualquer filme durante o Festival.
O Jornal da Bahia entrevistou a atriz Glória Menezes, principal intérprete daquela
película, que acabava de regressar da Europa. Disse na entrevista:

O filme já foi negociado em diversos países europeus, entre os quais a Itália,


França, e Alemanha, por 80 mil dólares – disse ainda – A sua estreia mundial
já está marcada para o próximo dia 17, em Paris, e outros países demonstram
interesse em adquirir o filme, como por exemplo, os Estados Unidos, por
quantia superior a 80 mil dólares.276

Ainda nessa matéria, o jornal expôs a vontade do presidente John Kennedy em ver
o filme: “[...] comunicou à Embaixada do Brasil nos Estados Unidos seu interesse em
assistir em sessão cinematográfica especial, na sala de projeções da Casa Branca, ao filme
brasileiro O Pagador de Promessas, recente laureado em Cannes.”277Essa notícia,
certamente, deixou as pessoas que ainda não tinham assistido o filme mais curiosas,
principalmente os críticos cinematográficos de outras partes do mundo.
A revista Manchete estampou na sua capa os protagonistas do filme O Pagador
de Promessas: “Glória Meneses e Leonardo Vilar os vencedores de Cannes.” A capa
ilustra os atores incorporados nos personagens: Rosa e Zé-do-Burro, com a representação
de um casal apaixonado se admirando enquanto sorriem. A capa também expõe algumas
notícias do período como: a Copa do Mundo no Chile; o norte-americano na lua, dessa
vez o primeiro em órbita; e um subtítulo que destaca a política nacional e interroga:
“Haverá mesmo eleições?”
Como é sabido, o Brasil passava por um regime parlamentarista de governo, que
vigorou de 1961 a 1962, reduzindo os poderes constitucionais de João Goulart, que era
considerado por opositores conservadores, pela elite dominante e por setores das Forças
Armadas, um esquerdista. Esta medida de governo parlamentarista foi a “saída”
encontrada pelo Congresso Nacional para a crise que assolava o país.
Em janeiro de 1963, João Goulart convocou um plebiscito para decidir sobre a
manutenção ou não do sistema parlamentarista. O resultado foi que os eleitores votaram

275
Manchete, Rio de Janeiro, 2 jun. 1962, p. 24, Nº 528.
276
Jornal da Bahia, Salvador, 3 e 4 de jun. 1962, p. 3.
277
Jornal da Bahia, Salvador, 3 e 4 de jun. 1962, p. 3.
89

pelo restabelecimento do sistema presidencialista. A partir de então, Jango passou a


governar o país com mais poderes constitucionais. Até que em 1964, as Forças Armadas
interrompem seu mandato com o golpe militar.

Imagem 4: Revista Manchete, Rio de Janeiro, 9 jun. 1962, Nº 529.

Além da revista Manchete, a revista Teatro Ilustrado, também publicou sobre a


premiação em Cannes. “Peça de teatro brasileiro ganha prêmio no cinema mundial”.
Frisou: “Já apresentada com êxito em São Paulo, no cinema e pelo Teatro Brasileiro de
Comédia (TBC), e Palma de Ouro em Cannes, único filme brasileiro que concorreu ao
Festival Internacional [...]”278
Notamos que o Jornal da Bahia deu destaque em larga escala ao filme de Dias
Gomes e de Anselmo Duarte antes e depois de Cannes, o periódico trouxe em suas
páginas matérias relacionadas à película e aos seus realizadores. O jornal informou o
lançamento de O Pagador na Bahia, no mês seguinte, julho de 1962. Frisou sua premiação
no Festival cinematográfico de Cannes, além de uma pequena síntese dos realizadores:

Baseado na peça original de Dias Gomes, que também se incumbiu do roteiro


e diálogos, O Pagador de Promessas foi dirigido por Anselmo Duarte, um ex-
ator de chanchadas com larga experiência prática e consciência artística
cristalizada, responsável anteriormente por uma comédia que se coloca entre
as melhores já realizadas no Brasil: “Absolutamente Certo”. Bom elenco,
reunindo Leonardo Vilar, Glória Menezes, Norma Benguell, Dionísio
Azevedo, Geraldo D’el Rey e coadjuvantes locais, inclusive Irênio Simões da
redação do Jornal da Bahia.279

278
Teatro Ilustrado, Rio de Janeiro, jun. 1962, p. 11, nº 35.
279
Jornal da Bahia, Salvador, 12 jun. 1962, p. 7.
90

A matéria finaliza destacando que já foi uma vitória do cinema brasileiro esse
prêmio de O Pagador, uma afirmação de sua maturidade, segundo o jornal. Considerou
que nos últimos meses foram lançados vários filmes brasileiros de gabarito internacional.
“Sem contar os baianos, podemos citar Os Cafagestes, de Ruy Guerra, Cinco Vezes
Favela, e outros. Esperamos somente que eles sejam logo exibidos na Bahia, para que
possamos assisti-los sem excessivo atraso.”280
Em 16 de junho, a revista Manchete dedicou sete páginas da edição para falar
sobre O Pagador de Promessas e sua premiação em Cannes. Além de mencionar a ideia
do filme, trouxe uma síntese da biografia de Glória Meneses, uma das protagonistas do
longa-metragem. A matéria foi assinada pelo colunista Justino Martins com o título:
“Cannes – Por que o Brasil venceu a Palma”. Depõe Justino Martins:

Não há nada mais perigoso do que arriscar previsões sobre os prêmios do


Festival de Cannes. Este princípio jornalístico eu aprendi cerca de dez anos
atrás, quando pela primeira vez, aceitei a missão de cobrir a grande festa do
cinema. Desta vez, entretanto, o respeitável conselho não me parecia tão
importante. Assistira a O Pagador de Promessas, numa sessão especial, no Rio,
antes de viajar. Experiente frequentador dos bastidores do Festival, sabia que
o nosso filme figuraria no “Palmarés”.281

Na página 42 há a foto do momento em que a atriz francesa Edwige Feuillère


entrega o prêmio a Anselmo Duarte, vestido a caráter e expondo uma imagem que não
sabemos a autoria, enquanto Edwige Feuillère também muito elegante como de costume
nesses festivais, segura o troféu.

Imagem 5: Revista Manchete, Rio de Janeiro, 16 jun. 1962, p. 42,Nº 525.

280
Jornal da Bahia, Salvador, 12 jun. 1962, p. 7.
281
MARTINS, Justino. “Cannes: Por que o Brasil venceu a Palma de ouro”. Manchete, Rio de Janeiro, 16
jun. 1962, p. 41, Nº 525.
91

Ainda nessa edição da revista a Manchete trouxe um poster com os artistas da


película. A imagem é simbólica, pois foi tirada no principal cenário do filme, as escadarias
da Igreja de Santa Bárbara. A fotografia é descontraída para a maioria dos personagens
que estão se comunicando entre si, através de olhares. Rosa com o olhar fixo, meio que
perdida entre Zé-do-Burro e Bonitão. Apenas, o Mestre-Coca está olhando para a câmera.
“Equipe que deu ao Brasil as glórias do Festival”:

Equipe artística de O Pagador de Promessas, que se projetou em Cannes com


a conquista do prêmio máximo, é integrado, entre outros, por estes valores:
Leonardo Villar (Zé do Burro), Glória Meneses (Rosa), Anselmo Duarte
(Diretor), Norma Bengell (Marli), Dionísio Azevedo (Padre Olavo), Geraldo
Del Rei (Bonitão), Gilberto Marques (Galego), Roberto Ferreira (Dedé Cospe
Rima) e Antônio L. Sampaio (Mestre-Coca do grupo de capoeira). A eles
pertencem ou louros da vitória.282

Imagem 6: Revista Manchete, Rio de Janeiro, 16 jun. 1962, p. 45, Nº 525.

No dia 14 de julho, a revista Manchete publicou sobre o lançamento da película


brasileira em Paris, com direito à sessão especial para convidados, promovida pelo
Embaixador francês:

Depois de Cannes, O Pagador de Promessas passou brilhantemente pela prova


de Paris. Na véspera do lançamento do filme em dois grandes cinemas –
Mercury e Madeleine – o Embaixador Alves de Sousa promoveu uma
apresentação de gala no L’Ambassade – Gaumont, na Avenida Champs
Elysées. Escritores, artistas, diplomatas, críticos, jornalistas e altas autoridades
francesas acorreram ao cinema, cuja fachada iluminada ostentava as bandeiras

282
Manchete, Rio de Janeiro, 16 jun. 1962, p. 45, Nº 525.
92

do Brasil e da França e uma grande Palma de Ouro. Entre todos os presentes o


mais feliz era, sem dúvida, o teatrólogo Dias Gomes.283

No dia 21 de julho, a revista Manchete trouxe a reportagem de Durval Ferreira em


suas páginas com o título: “A volta do campeão de Cannes” e a nota: “Anselmo Duarte
recebeu em Santos a maior homenagem até hoje tributada a um artista brasileiro”. As
imagens feitas pelos fotógrafos: Geraldo Móri, Jorge Butsuem e Perilo Silva, transmitiu
a comoção e emoção dos presentes naquele momento. A narrativa de Durval Ferreira
expôs:

Durante a travessia do Atlântico os passageiros do “Augustus” não deram


especial atenção àquele rapaz alto, moreno, que costumava passar pelo convés
com máquinas fotográficas a tiracolo. Ouviram dizer que se tratava de um
cineasta brasileiro, mas isso, efetivamente, ainda é pouco para chamar a
atenção de um europeu. Quando o navio atracou no Rio, viram-no cercado, no
salão principal, por dezenas de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas. No dia
seguinte, ao aproxima-se o transatlântico do porto de Santos, os passageiros
ficaram intrigados percebendo, em terra, compacta multidão. Haveria algum
político ilustre e incógnito a bordo? Seria Pelé? Ao longe, milhares de pessoas
empunhavam faixas e cartazes. Qual não foi a surpresa geral, quando viram o
moço alto e moreno sair do navio carregado nos braços do povo que gritava
(em estilo de comício) seu nome: “Anselmo! Anselmo!” Anselmo Duarte, o
grande vitorioso do Festival de Cinema de Cannes com o filme O Pagador de
Promessas, recebia, naquele instante, a maior homenagem até hoje tributada a
qualquer artista brasileiro.284

Imagem 7: Revista Manchete, Rio de Janeiro, 21 jul. 1962, p. 84, Nº 535.

283
Manchete, Rio de Janeiro, 14 jul. 1962, p. 97, Nº 531.
284
Manchete, Rio de Janeiro, 21 jul. 1962, p. 85, Nº 535.
93

Notamos na imagem acima, o quanto ela é eloquente e com intervenções políticas.


Anselmo Duarte cumprimentando as pessoas e sendo escoltado, lembra um comício de
um político carismático. O “povo brasileiro” estava orgulhoso e sentindo-se parte daquele
prêmio, que não era apenas de O Pagador de Promessas e de seus realizadores, era
também do próprio “povo” que se via naquele longa. O cinema nacional teve seu
reconhecimento em meio a multidão.
A matéria de Durval Ferreira continuou nas próximas páginas da edição: “O
Triunfal cortejo iniciado no Porto de Santos terminou nas ruas centrais de São Paulo”.
Segundo o repórter, subiram no carro dos bombeiros os protagonistas Leonardo Vilar,
Glória Meneses, Dionísio Azevedo, o autor Dias Gomes e o produtor Osvaldo Massaini.
“Sob aplausos e foguetes, o cortejo atravessou as ruas de Santos.”285Anselmo Duarte
falou aos repórteres: “- Uma vez me perguntaram onde os brasileiros encontravam
reservas de vergonha para suportar as vaias do público quando se apresentavam em
festivais de cinema de categoria. A resposta aí está!”286

Imagem 8: Revista Manchete, Rio de Janeiro, 21 jul. 1962, p. 86, Nº 535.

Ao analisarmos esta fotografia e levando em conta o que Circe Bittencourt nos diz
sobre fotografias: “É sempre necessário perguntar o que está sendo fotografado, a fim de
compreender por que e para que algumas fotografias foram feitas. Uma foto é sempre
produzida com determinada intenção, existem objetivos e há arbitrariedade na captação
das imagens.”287

285
Manchete, Rio de Janeiro, 21 jul. 1962, p. 86, Nº 535.
286
Manchete, Rio de Janeiro, 21 jul. 1962, p. 86, Nº 535.
287
BITTENCOURT, 2011, p. 367.
94

Notamos que Dias Gomes está ali ao fundo em cima do carro dos bombeiros, e
Anselmo Duarte logo à frente erguendo a Palma de Ouro, ou seja, o protagonismo na
volta de Cannes era do diretor da película, talvez por isso em várias entrevista Dias Gomes
fez questão de afirmar que adaptou a peça para versão cinematográfica e participou das
filmagens das cenas. Em uma entrevista ao Programa Roda Viva, TV Cultura, em 1995,
Dias Gomes mais uma vez falou sobre isso:

[...] o filme é uma peça filmada; há duas ou três cenas fora, mas o resto, se
você acompanhar, vai ver que é igualzinho quase. Que era uma prova da minha
insegurança com relação ao cinema. Então eu disse: “Vou me garantir”. Isso
fez até certo ml, talvez, ao filme...Ficou um filme, talvez, muito acadêmico,
embora seja realmente um trabalho muito bom do Anselmo. Eu tenho até que
louvar essa fidelidade dele ao meu texto, foi a única vez que eu tive um texto
no cinema com absoluta fidelidade.288

O Jornal da Bahia noticiou a “Homenagem da Bahia a Anselmo Duarte” a matéria


dizia: “A Diretoria de Turismo da Prefeitura e a Sociedade Bahiana de Combate à Lepra
oferecerão, no próximo dia 6, quinta-feira, às 18 horas, no Belvedere da Sé, um coquetel
a Anselmo Duarte e seus companheiros de realização de O Pagador de Promessas.”289Na
ocasião o periódico disse que esperava pela presença de Dias Gomes, Dionísio Azevêdo,
Glória Menezes e Leonardo Vilar.
No dia da homenagem o Jornal da Bahia lançou a matéria: “Dias Gomes na
Bahia”. Estava na sua terra natal para assistir no dia 10 a estreia de O Pagador de
Promessas (filme), o dramaturgo relatou que considerava aquela viagem como um
pagamento de uma promessa.
E afirmou que os atores Leonardo Vilar e Dionísio Azevedo, atores de O Pagador
chegariam a tempo para comparecerem ao coquetel oferecido pelo Departamento de
Turismo à equipe realizadora da película. E por fim falou que não achou excessivas as
críticas francesas: “[...] mas reputou de passionais as aparecidas na imprensa italiana,
explicando-as pelo atrito inicial havido entre a delegação da Itália e a direção do festival
de Cannes.”290
Anselmo Duarte em uma entrevista concedida ao colunista Durval Ferreira, da
revista Manchete, fez declarações inflamadas em relação aos italianos, que segundo ele,
não estavam satisfeitos com a vitória de O Pagador:

288
GOMES; GOMES, 2012, p. 170.
289
Jornal da Bahia, Salvador, 01 set. 1962, p. 7.
290
Jornal da Bahia, Salvador, 6 set. 1962, p. 1.
95

Os italianos não se conformaram com a minha vitória em Cannes. Mas O


Pagador de Promessas era um filme original e por isto venceu. Os diretores
brasileiros precisam saber que não adianta copiar Antonioni ou Fellini para
obter sucesso. Estou contente porque o júri do Festival não conseguiu definir
o meu filme. Situaram-no na escola clássica, na épica, no neo-realismo e até
na “Nouvelle Vague”. Finalmente, acabaram falando no “Filme do Brasil”. Era
isto o que eu queria e isto foi o que mais me orgulhou. Nosso país caminha,
hoje, para um verdadeiro amadurecimento artístico. Ainda mostraremos ao
mundo muitos filmes de valor.291

No dia seguinte o Jornal da Bahia publicou: “Homenagem a O Pagador” e


resume a fala do autor: “[...] o teatrólogo Dias Gomes agradeceu a acolhida da Bahia a
todos os participantes do filme, desde o seu diretor, Anselmo Duarte, até os maquinistas,
afirmando que a vitória de O Pagador é mais de um povo que se seus realizadores.”292
Traz nas páginas seguintes a entrevista completa ao teatrólogo. Dias Gomes disse
que aproveitou a oportunidade da vinda à Bahia para mostrar a sua esposa e seus filhos a
terra em que nasceu e a que deve a temática de O Pagador de Promessas. O Jornal lhe
perguntou se ele achava que o filme tinha sido premiado em Cannes pela qualidade do
argumento de sua peça, ou pela direção de Anselmo Duarte.
Gomes respondeu que foi premiada por dois motivos: “1º) pela autenticidade e
universalidade do seu argumento; 2º) pela ausência de cerebralíssimo e sofisticação da
direção de Anselmo Duarte.”293 E concluiu a resposta falando sobre a crise de temática
no cinema:
O cinema atualmente atravessa uma crise temática, e O Pagador de Promessas
levava alguma coisa de novo, ainda que discutível, e, por outro lado, os
europeus estão cansados do artifício estético com que alguns diretores
procuram esconder a crise em que se debatem.294

O jornal lhe perguntou se ele considerava “[...] o filme uma obra prima, mesmo
julgado através de padrões absolutos, ou seja, sem o julgar produto do cinema de um país
subdesenvolvido?”295 Respondeu o seguinte:

Todos nós sabemos, e Anselmo também, que O Pagador de Promessas não é


uma obra-prima, tem defeitos não só como cinema, como qualidade de
estrutura dramática. Nem podia deixar de ser assim. Estamos num país onde

291
Manchete, Rio de Janeiro, 21 jul. 1962, p. 86, Nº 535.
292
Jornal da Bahia, Salvador, 7 set. 1962, p. 1.
293
Jornal da Bahia, Salvador, 7 set. 1962, p. 7.
294
Jornal da Bahia, Salvador, 7 set. 1962, p. 7.
295
Jornal da Bahia, Salvador, 7 set. 1962, p. 7.
96

tudo está se construindo, inclusive uma cultura, que tem a desvantagem de não
contar com a tradição e tem que abrir seus próprios caminhos.296

O Jornal da Bahia, no dia 23 de setembro, publicou: “Eles Premiaram O Pagador


de Promessas”. Frisou que o prêmio máximo obtido pelo filme brasileiro foi dado pela
“[...] aprovação de um júri altamente classificado.”297 Dois dos jurados foram destacados:
Sophie Desmarets e Henri Deutschneister. Segundo o jornal, Sophie participou de uns
quarentas filmes e de umas dezenoves peça até aquele momento.
Em novembro, o jornal A Tarde entrevistou o ator alagoano que estava na ocasião
de passagem pela Bahia, Modesto de Souza. A matéria destaca que “Tico-tico precedeu
O Pagador em Cannes”, o ator falou sobre os problemas do teatro brasileiro, destacando
a insuficiência de casas de espetáculos nos grandes centros, como Rio e São Paulo, e,
segundo ele, no interior, adquiriam-se proporções maiores.
Quando perguntado sobre o êxito de O Pagador respondeu: “[...] não foi um caso
raro, recordam do que Tico-tico no fubá foi a Cannes e obteve menção honrosa, sendo
Anselmo Duarte o ator principal.”298 O ator não frisou que até aquele momento O
Pagador de Promessas era o único a receber o prêmio máximo no festival,
desconhecemos o motivo. Ainda nessa entrevista Modesto faz elogio ao Estado:

A Bahia tem um campo vasto e interessante para cinema e ultimamente vem


sendo bem explorado. O nosso cinema vai crescendo. O que faltava antes, bons
diretores temos agora e muitos vão surgindo. O brasileiro tem facilidade de
aprender o essencial em qualquer atividade.299

Nesse mesmo ano, Glauber Rocha produzia seu primeiro filme Barravento. Um
longa-metragem que contava a história de um pescador que retorna à aldeiazinha para
salvar o povo da dominação religiosa. Em uma entrevista Glauber Rocha relatou: “Meu
primeiro filme, Barravento, feito em 62, é contra a macumba. A religião é o ópio do povo,
segundo Marx, a religião só é interessante quando é um investimento revolucionário
[...]”300
Glauber Rocha também faz uma crítica a Igreja Católica, assim como Dias Gomes fez
em O Pagador, porém o jovem cineasta era mais enfático: “A Igreja Católica disputa o

296
Jornal da Bahia, Salvador, 7 set. 1962, p. 7.
297
Jornal da Bahia, Salvador, 23 set. 1962, p.3.
298
A Tarde, Salvador, 19 nov. 1962, p. 9.
299
A Tarde, 19 nov. 1962, p. 9.
300
PEREIRA; HOLLANDA, 1980, p.31
97

poder patriarcal sobre os camponeses no Brasil e foi o principal agente da destruição de


índios.”301 Para Glauber Rocha a Igreja Católica se faz proprietária da população
interiorana, ou seja, proprietária espiritual. Com uma cinematografia que trazia vários
assuntos polêmicos como esses, os filmes da década de 1960 depois do golpe civil-militar
de 1964 e principalmente em 1968, os cineastas e suas películas sofreram com a censura.

3.3 A censura que rondava as produções culturais

Com o regime civil-militar os cineastas passaram a conviver com a censura em seus


filmes. Não só o cinema, mas no teatro, na música e em outras artes. Dias Gomes relatou:
“[...] a censura primava pela falta absoluta de critérios, era muito difícil você saber
exatamente o que ia ser proibido.”302 Gomes mencionou que aprendeu a jogar com
censura, “[...] muitas vezes, eu fiz cenas para serem cortadas, que é uma maneira de você
entregar o boi...”303
Inimá Simões, ao falar sobre a censura cinematográfica no Brasil, também afirma que
os critérios da censura eram muito subjetivos, “[...] dando margem a interpretações
pessoais de toda ordem. Para se ter uma ideia, em 1965, o chefe da Censura, Pedro José
Chediak (apelidado por alguns cineastas ‘Chediak, o stripador’), baixou uma portaria
proibindo o stri-tease nos filmes.”304
Segundo Inimá Simões, a censura era realizada por um grupo de três censores. “Eles
assistiam aos filmes em uma pequena sala de projeção. Quando surpreendiam alguma
cena ou diálogo que julgavam impróprios, apertavam uma campainha e o projecionista
colocava em pedaço de papel no rolo do filme, marcando o ponto exato.”305Dependendo
do número de cortes o filme era interditado, e cabia ao diretor e produtor da película
recorrer ou propor um meio-termo aos “tesourinhas” que se encontravam na nova capital
do país, Brasília.
Dias Gomes disse ao programa Roda Viva, TV Cultura, que a censura do meio de
produção era pior que a do Estado, pois a censura de Brasília, por exemplo, era

301
PEREIRA; HOLLANDA, 1980, p. 33.
302
GOMES; GOMES, 2012, p. 161.
303
Ibid., p. 161.
304
SIMÕES, Inimá. Roteiro da Intolerância: a censura cinematográfica no Brasil. São Paulo: Editora
SENAC São Paulo, 1999, p. 77.
305
Ibid., p. 76.
98

negociável: “[...] eu ia para Brasília, discutia com a censura, às vezes conseguia convencer
o censor a liberar alguma coisa, algumas cenas e tal, havia uma negociação. Quando a
censura é da empresa, é um problema da empresa, pronto e acabou.”306
Em 1964, a censura ainda era branda, mas no ano seguinte ela já se fazia presente com
rigor a qualquer diálogo que para eles fosse considerado subversivo, contra a moral da
sociedade. Segundo Marcos Napolitano, essa relativa liberdade de expressão concedida
aos artistas e intelectuais de esquerda fazia crer que eles estavam diante de uma
“ditabranda” e não de uma “ditadura”.
Em 1965, o clima já não estava favorável aos jovens cineastas “[...] que entendiam o
cinema como instrumento de mobilização e conscientização.” O que estes jovens estavam
fazendo era transformar a precariedade de recursos cinematográficos em bandeira
estética, o que causou segundo Inimá Simões, impacto na cena internacional. Porém:

O Brasil vive uma das mais criativas temporadas cinematográficas de toda a


sua história, mas por azar ela coincide com um momento em que a Censura,
sob o regime militar, emite sinais contraditórios. Libera, mas em seguida
proíbe. Ou libera e depois volta a avaliar, com rigor ainda maior.307

O filme O padre e a moça, de Joaquim Pedro de Andrade, que tinha como


narrativa a história de amor de um padre do interior de Minas Gerais por uma mulher. A
película foi inspirada em um poema de Carlos Drummond de Andrade. A princípio o
filme foi liberado para maiores de 18 anos, em 1966, mas logo o novo chefe da Divisão
de Censura, Romero Lago, pediu revisão, que submetia a novo exame com censores
escolhidos a dedo.
Segundo Inimá Simões, Romero Lago estava se antecipando às possíveis reações
da alta cúpula da Igreja Católica, que havia apoiado o golpe militar em 1964. Depois da
negociação, o filme foi permitido a maiores de 21 anos, sem contes. Porém, na ocasião
das negociações Romero Lago citou uma carta que havia recebido do cardeal paulista,
Dom Ângelo Rossi:

[...] pedindo mais rigor ao órgão oficial da censura sobre vários filmes
brasileiros, “solapadores das bases cristãs da nacionalidade”, citando
explicitamente A hora e vez de Augusto Matraga, Deus e o diabo na terra do
sol, Vereda da Salvação, O santo milagroso, O pagador de promessas e O padre
e a moça. Diante da repercussão negativa, o cardeal desmentiu que tivesse feito

306
GOMES; GOMES, 2012, p. 160.
307
SIMÕES, 1999, p. 81.
99

as sugestões, obrigando a Polícia Federal a divulgar publicamente o ofício


enviado de São Paulo.308

Inimá Simões conclui que o desfecho dessa história foi negativo para a Polícia
Federal e para a Censura que acabou azedando relações com um dos mais importantes
nomes da hierarquia da Igreja Católica, que dava antes do ocorrido apoio declarado ao
governo Militar.
Flora Sussekind sugere que ao contrário do que normalmente se pensa, a censura
não foi a única estratégia proposta pelos militares em seus governos contra a cultura.
Segundo a autora:

O espetáculo como tática – até 1968, curiosamente, houve certa liberdade


inclusive para produção cultural engajada. A estratégia do governo Castelo
Branco foi, por um lado, expansionista – superdesenvolvimento dos meios de
comunicação de massa, sobretudo a televisão; por outro, até liberal com
relação à arte de protesto e à intelectualidade de esquerda, desde que cortados
seus possíveis laços com as camadas populares.309

Flora Sussekind traz uma observação pertinente em relação a essa liberdade


cultural durante o governo de Castelo Branco: “Flávio Tambellini, profissional de
cinema, afirmasse cheio de entusiasmo em 1967: ‘Jamais o cinema no Brasil contou,
como no governo Castelo Branco, com tão nítido apoio.’”310
Segundo a autora, a estratégia dos militares foi bem sucedida. Deixava-se os
artistas e intelectuais produzirem protesto e denúncias em suas obras, porém a massa
popular, seus possíveis espectadores tinham sido roubados pela TV. “[...] a produção
artística e ensaística de esquerda se via transformada assim numa espécie de Cassandra.
Podia falar sim, mas ninguém a ouvia. A não ser outras idênticas cassandras.”311
A metáfora utilizada por Flora Sussekind ao utilizar o nome “Cassandra”, refere-
se a uma escritora brasileira censurada pela ditadura, a qual os militares a chamavam de:
“escritora maldita”. Cassandra Rios incomodou o regime por conta do conteúdo erótico
de seus livros, que iam de encontro à moral e aos bons costumes, e outro motivo era o
fato da escritora ser lésbica e seus livros serem visto como romances eróticos voltados

308
SIMÕES, 1999, p. 84.
309
SUSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários e relatos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1985, p. 13.
310
Ibid., p. 13.
311
Ibid., p. 14.
100

para o universo homossexual feminino. A escritora teve mais de 30 livros censurados pelo
regime e, mesmo censurada com frequência Cassandra continuou escrevendo.312
Dias Gomes também destacou este aspecto em sua autobiografia: “Minha geração
de dramaturgos — a dos anos 60 — erguera a bandeira do teatro popular, que só teria
sentido com a conquista de uma grande plateia popular, evidentemente.”313 O que,
segundo ele, não aconteceu, cada vez mais eles falavam para uma plateia aburguesada.
Já o cineasta Carlos Diegues (Cacá) em uma entrevista para Patrulhas
Ideológicas, disse que não acreditava em nação e nem em povo, porém era a favor de uma
cultura nacional-popular. E explicou:

Nação é uma abstração. Assim como não existe cinema brasileiro, não pode
existir uma nação brasileira. E o povo? Meu povo é o público que entra no
cinema. Eu não tenho outro povo. É o meu público, e o meu povo. Não posso
achar que estou fazendo um filme para um sujeito que nunca foi ao cinema,
como é o caso de 80, 90% da população rural desse país.314

Para Roberto Schwarz, foi se construindo uma guerra revolucionária que os


militares tiveram quem barrar em 1968:

Através de campanhas contra tortura, rapina americana, inquérito militar e


estupidez dos censores, a inteligência do país unia-se e triunfava moral e
intelectualmente sobre o governo, com grande efeito de propaganda. Somente
em fins de 68 a situação volta a se modificar, quando é oficialmente
reconhecida a existência de guerra revolucionária no Brasil. Para evitar que ela
se popularize, o policialismo torna-se verdadeiramente pesado, com delação
estimulada e protegida, a tortura assumindo proporções pavorosas, e a
imprensa de boca fechada.315

Marcos Napolitano afirma que mesmo com essa relativa liberdade, “[...] é um mito
dizer que não houve censura até o AI-5. No teatro e no cinema, sobretudo, a censura entre
1964 e 1968 foi bem atuante. Entretanto, nada próximo ao que ocorreria depois do fatídico
13 de dezembro de 1968.”316 Para Napolitano, o regime militar foi criterioso, ou seja,
primeiro cortou o elo dos artistas/intelectuais de esquerda com o povo, para depois
impedir a criação e expressão de ideais desse segmento ideológico.

312
MODELLI, Laís. 55 anos do golpe militar: A história de Cassandra Rios, a escritora mais censurada da
ditadura. São Paulo, para BBC News Brasil. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-
47756468 > Acesso em: 31 abri. 2019, às 13:47 h.
313
GOMES, 1998, p. 255.
314
PEREIRA; HOLLANDA, 1980, p. 21.
315
SCHWARZ, 2001, p. 25.
316
NAPOLITANO, 2017, p. 63.
101

E assim, a cultura de esquerda era produzida e consumida pela classe média


intelectualizada, que, segundo o autor, “[...] poderia se manifestar desde que se limitasse
aos espaços autorizados, quase sempre circuitos mercantilizados, vigiados pela censura
(ainda não tão implacável), e moderasse seu conteúdo crítico, diluindo-o em imagens
metafóricas e generalizantes.”317
Napolitano conclui que a questão cultural foi uma espécie de “[...] mote para que
a críticas política pudesse se reconfigurar e as alianças em torno da resistência ao regime
pudessem se recompor.”318 Dentre essas artes engajadas e de protesto temos a
radicalização do cineasta Glauber Rocha, a do teatro Oficina e na música pelos
tropicalistas a partir de 1967.
Há na historiografia uma gama de trabalhos sobre esse período de censura e de
resistência cultural, temos inúmeras fontes de manifestos que foram escritos e assinados
pelos artistas e intelectuais de esquerda, citamos algumas matérias no primeiro capítulo
desta dissertação, em que o dramaturgo Dias Gomes se fez presente em alguns desses
manifestos, que se estenderam em assembleias, atos públicos e em passeatas.
Na área teatral, segundo Marcos Napolitano, a resistência obedeceu a uma
cronologia de intensidade entre 1965 e 1968. Eram proibições arbitrárias das peças, com
interdições a montagens feitas nas vésperas das estreias. A proibição, por exemplo, da
peça de Dias Gomes, O berço do herói, faltando apenas quatro horas antes da estreia, foi
um evento que segundo Gomes, mobilizou a categoria na luta contra a censura.
Napolitano nos propõe que não devemos dizer que, em bloco, os intelectuais e
artistas de esquerda aderiram à guerrilha armada, já que muito afinados com o PCB, eram
efetivamente contra essa opção. Para ele, o que predominou: “[...] foi a adesão de artistas
e intelectuais aos movimentos de massa que se esboçavam em 1967 e 1968, contra a
censura e pelas liberdades democráticas...”319 frisa que houve participações individuais
em redes de apoio, tanto direta como indiretamente aos grupos de guerrilha armada.
Portanto, a luta contra a censura durou até 1979, com a lei da anistia promulgada
no governo do presidente João Batista Figueiredo, que extrapola o recorte temporal desta
dissertação. Até aqui, notamos que os artistas e intelectuais estavam na luta constante
contra o regime e suas medidas castradoras.

317
NAPOLITANO, 2017, p. 63-64.
318
Ibid., p. 66.
319
Ibid., p. 84-85.
102

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir desta dissertação mostrou-se a repercussão que O Pagador de Promessas


teve em vários lugares do mundo, desde as reestreias da peça até as mostras do filme que
levou ao reconhecimento do trabalho do diretor Anselmo Duarte e do dramaturgo Dias
Gomes. É relevante, a quantidade de periódicos que noticiaram a trajetória desse produto
cultural, que saiu do papel para os palcos e depois para as telas de cinema. A quantidade
de reedições do próprio texto. Assim, a peça passa a ser interpretada por cada leitor
individualmente.
As questões que nortearam esta investigação e deram sentido ao objeto da
pesquisa emergiram dos desdobramentos do texto teatral, que transita do palco ao cinema.
Discutimos a intervenção de Dias Gomes no debate acerca da identidade nacional-popular
e da religiosidade. A interpretação do Brasil que realizou em sua obra teatral de 1959
desdobrou-se e foi perseguida pela censura tanto no teatro como no cinema.
Nessa perspectiva, analisamos o contexto em que a peça foi escrita, encenada
(reencenada nacionalmente e internacionalmente) e posteriormente a estreia da película e
seus diversos prêmios. Levamos em conta a rede de intelectuais da qual Dias Gomes fazia
parte, entrecruzando sua trajetória individual com a trama do social e das conjunturas
políticas.
É importante perceber o quanto a peça faz-se refletir sobre o contexto sócio-
político e econômico do Brasil desse período. A representação do romeiro associada a
identidade nacional-popular, que os artistas e intelectuais dos fins da década de 1950 e
1960 davam visibilidade, era uma espécie de denúncia que se ocupava do povo esquecido
pelos governantes e ao mesmo tempo, da valorização e fortalecimento de laços
identitários. A peça também se reporta à questão do dualismo entre campo e cidade. O
Pagador de Promessas deixa expostas as vertentes do catolicismo conservador verso as
crenças e as práticas de cura populares e as religiões de matrizes africanas.
O texto nos fez questionar se o dramaturgo estaria aderindo a “maldade” do urbano
ao descrever alguns personagens e o sistema, ou seja, condenando a moral das cidades e
humanizando a ingenuidade e simplicidade do campo, da zona rural, na figura dos
personagens do interior.
Procurou-se traçar um panorama das redes artísticas e intelectuais nas quais Dias
Gomes estava inserido. Analisou-se em que medida operou-se essa influência com base
103

no caso de Edison Carneiro e Jorge Amado. O reconhecimento dessa influência está


presente em entrevistas em sua própria autobiografia, fonte que foi lida com as devidas
ressalvas críticas, contestada em diversos momentos, já que se trata de uma escrita de si,
e não se pode deixar cair na “ilusão biográfica”.
Apesar de soteropolitano, foi no Rio de Janeiro, centro da efervescência cultural
de então, que Dias Gomes teve sua primeira oportunidade para levar aos palcos uma peça
sua. Em São Paulo, desenvolveu sua carreira como radialista. O convívio com intelectuais
e artistas destas três cidades formam a rede de influência compartilhada por Dias Gomes.
Demarcou-se a importância que a versão da película adquiriu ao ganhar um dos
maiores prêmios da cinematografia, a Palma de Ouro. Fez-se um “novo” Pagador depois
de Cannes, já que ficou conhecido mundialmente. Destacou-se igualmente a perseguição
que esse produto cultural sofreu desde as origens até os dispositivos da censura durante
os governos militares.
Portanto, acredita-se que se cumpriu o objetivo desta pesquisa que era analisar a
trajetória de O Pagador de Promessas, com todas as suas reviravoltas, dos palcos ao
cinema. A partir desta narrativa espera-se que novos trabalhos com novas indagações,
possam ser desenvolvidos para falar da peça ou sobre Dias Gomes, que foi filiado ao
PCB, não entrou em nenhum grupo teatral engajado da década de 1960, foi membro da
Academia Brasileira de Letras e que entra para televisão, tornando-se funcionário da
emissora que apoiou o regime militar que o perseguiu e censurou suas obras.
As possíveis sinuosidades de sua trajetória são resultados de suas escolhas e suas
circunstâncias. O que se mostrou nesta abordagem foi o percurso de um intelectual, cuja
vida exprimiu as transformações de uma época que nele ganhou uma forma de objetivação
específica, articulando indivíduo e sociedade em tempos discricionários.
104

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