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BRUNO DIAS SANTOS

SOB O ESPECTRO DA TRAIÇÃO:


frei Betto e a construção social da memória da ditadura militar brasileira

ASSIS
2021
BRUNO DIAS SANTOS

SOB O ESPECTRO DA TRAIÇÃO:


frei Betto e a construção social da memória da ditadura militar brasileira

Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista


(UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis,
para a obtenção do título de Doutor em História
(Área de Conhecimento: História e Sociedade)

Orientador(a): Ricardo Gião Bortolotti

Bolsista: Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) -
Código de Financiamento 001

ASSIS
2021
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Laura Akie Saito Inafuko - CRB 8/9116

Santos, Bruno Dias


S237s Sob o espectro da traição: frei Betto e a construção
social da memória da ditadura militar brasileira / Bruno Dias
Santos. Assis, 2021.
222 f.

Tese de Doutorado - Universidade Estadual Paulista


(UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis
Orientador: Dr. Ricardo Gião Bortolotti

1. Betto, Frei, 1944-. 2. Ditadura. 3. Brasil - História -


1964-1985. I. Título.

CDD 981.06
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

Câmpus de Assis

CERTIFICADO DE APROVAÇÃO

TÍTULO DA TESE: SOB O ESPECTRO DA TRAIÇÃO: frei Betto e a construção social da memória da
ditadura militar brasileira

AUTOR: BRUNO DIAS SANTOS


ORIENTADOR: RICARDO GIÃO BORTOLOTTI

Aprovado como parte das exigências para obtenção do Título de Doutor em HISTÓRIA, área: História
e Sociedade pela Comissão Examinadora:

Prof. Dr. RICARDO GIÃO BORTOLOTTI (Participaçao Virtual)


Departamento de História / UNESP/Assis

Prof. Dr. MARCOS FRANCISCO NAPOLITANO DE EUGENIO (Participaçao Virtual)


Departamento de História / USP/São Paulo

Prof. Dr. MILTON CARLOS COSTA (Participaçao por Parecer Circunstanciado)


Departamento de História / UNESP/Assis

Prof. Dr. EDUARDO JOSÉ AFONSO (Participaçao Virtual)


Departamento de História / UNESP/Assis

Prof. Dr. FERNANDO SELIPRANDY FERNANDES (Participaçao Virtual)


Rio de Janeiro-RJ / Fundação Biblioteca Nacional

Assis, 26 de janeiro de 2021

Faculdade de Ciências e Letras - Câmpus de Assis -


Av. Dom Antonio, 2100, 19806900
http://www.assis.unesp.br/posgraduacao/historia/CNPJ: 48.031.918/0006-39.
Aos meus pais, Gilberto e Nadir.
AGRADECIMENTOS

Poder agradecer aos colaboradores, instituições e amigos, depois de um árduo


itinerário de muito trabalho, e algumas angústias, além de ser um momento de imensa alegria,
é também a justa oportunidade para salientar que esta tese é o resultado de um esforço
coletivo. Espero que, apesar da simplicidade, essas palavras consigam transmitir a gratidão e
o carinho que tenho por todos aqueles que tornaram possível a realização desta pesquisa.
Agradeço aos funcionários da biblioteca da UNESP/Assis e da Secretaria de Pós-
Graduação pela gentileza com que sempre nos assistiram.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Ricardo Gião Bortolotti, pela confiança com que aceitou
assumir a complexa missão de orientar uma pesquisa já iniciada. Não há palavras capazes de
retribuir a paciência e gentileza com as quais sempre me recebeu e a dedicação com que
buscou enriquecer e qualificar este trabalho.
Ao professor Dr. Milton Carlos Costa, meu orientador durante o Mestrado e início do
Doutorado, por sempre ter acreditado no meu trabalho e pela dedicação com que buscou
contribuir para a pesquisa ao longo desses anos, especialmente, durante o exame de
qualificação.
Ao professor Dr. Marcos Napolitano, pela participação no exame de qualificação;
pelos apontamentos e sugestões que revelam uma leitura dedicada e generosidade para
compartilhar sua experiência e grande conhecimento.
Muitas pessoas colaboraram direta ou indiretamente para que este trabalho fosse
realizado; peço desculpas àquelas que, por esquecimento, não foram mencionadas. De toda
forma, gostaria de agradecer em particular alguns amigos queridos que foram fundamentais
nesses anos de pesquisa e já fazem parte da minha história.
À minha esposa Renata pelo carinho, apoio e compreensão durante esse período de
trabalho marcado por alguns momentos de ausência e muito desgaste emocional.
À Bruna Almeida pelo trabalho dedicado, paciente e generoso.
A Edmar Lourenço da Silva pela amizade que compartilhamos desde o início da
graduação; pela generosidade com que sempre me ensinou muito sobre a vida e a História,
mesmo sem perceber; pela paciência com que várias vezes me hospedou em sua casa para que
eu pudesse frequentar as disciplinas da pós-graduação. Assim como já disse anos atrás, não
existem palavras que possam expressar com justeza minha gratidão a este amigo, que já
considero um irmão.
A Charles Nascimento de Sá pela amizade e convivência durante esses anos de
Doutorado; pelas conversas que nesses últimos meses tanto me incentivaram e inspiraram.
Aos amigos Andrey Martin, Augusto Netto, Luís Gustavo Botaro, Luiz Karat e Renan
Milanez Vieira pelo companheirismo durante os anos de pós-graduação, pelas conversas (nas
quais rimos bastante, reclamamos um pouco e, ainda por cima, conseguimos aprender muito)
e pelas cervejas (especialmente com o Botaro, na rodoviária de Londrina). A lembrança
desses momentos é o que nos dá a certeza de que tudo o que vivemos nesse período valeu a
pena.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de


Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001.
SANTOS, Bruno Dias. Sob o espectro da traição: frei Betto e a construção social da
memória da ditadura militar brasileira. 2021. 222 f. Tese (Doutorado em História). –
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2021.

RESUMO

Desde o golpe que depôs o presidente João Goulart, em 1964, as subsequentes transformações
históricas pelas quais o Brasil passou têm acirrado as disputas em torno da hegemonia e, até
mesmo, da influência no processo de construção da memória da ditadura militar. Nesse
sentido, memorialistas dedicados ao tema foram impelidos a revisar suas narrativas sobre o
regime autoritário, perante o risco de que seus discursos, com o passar do tempo, perdessem a
funcionalidade política. Dessa forma, o estudo da obra memorialística de frei Betto apresenta-
se como valiosa contribuição no perscrutar a historicidade e o caráter político dessa
representação do passado. O religioso é um dos autores que persiste em reeditar suas
lembranças do Estado de exceção e seu livro mais conhecido, Batismo de Sangue, ascende
como referência para o debate acerca da memória dominante do período. Assim, por meio da
análise das estratégias de convencimento e da comparação entre as intepretações da ditadura
militar que o dominicano desenvolveu em seus cinco livros dedicados ao registro de suas
reminiscências (publicados ao longo de quase quarenta anos), este trabalho buscou
compreender de que maneira as variações conjunturais – especialmente aquelas que reportam
ao processo de Abertura durante os anos 1980 até a Era Lula (2002-2010) – promoveram a
emergência de novos projetos políticos que ensejaram uma luta pela remodelagem da
memória do regime autoritário. Esse embate não se restringe ao tradicional eixo Direita-
Esquerda e, estendendo-se também a memorialistas pertencentes ao mesmo espectro
ideológico, apresenta-se como fundamental na demonstração do predomínio que o contexto
da articulação discursiva exerce sobre a narrativa do passado, o que, portanto, corrobora a tese
acerca do caráter histórico e dos usos políticos desse tipo de construção.

Palavras-chave: Memória. Frei Betto. Ditadura militar.


SANTOS, Bruno Dias. Under the betrayal specter: frei Betto and the social construction of
the memory of the Brazilian military dictatorship. 222 p. Thesis. (Doctorate in History and
Society). São Paulo State University (UNESP), School of Sciences and Languages, Assis,
2021.

ABSTRACT

Since the 1964 coup d’état that deposed President Joao Goulart, the ensuing historical
transformations that Brazil has undergone have deepen disputes over hegemony and even the
influence over the process of building the memory of the military dictatorship. In this sense,
memorialists dedicated to this issue were compelled to revise their narratives about the
authoritarian regimen, due to the risk of their speeches, over time, would end up losing their
political functionality. Thus, the study of frei Betto’s memorialistic work presents itself as a
valuable contribution in exploiting the historicity and the political character of that
representation of the past. The religious is one of the authors who is persistent in reissuing his
memories about the state of exception and his most well-known book, Batismo de Sangue,
rises as a reference on the debate around the dominant memory of the period. Therefore, by
analyzing the strategies of convincement and comparing the interpretations of the military
dictatorship developed by the Dominican in his five books (issued over almost forty years),
that were dedicated to register his reminiscences, this work has sought to understand how the
juncture variations – mainly those referring to the Opening Process during from the 1980’s to
the Lula era (2002-2010) – promoted the emergency of new political projects that led to a
fight in order to reshape the memory of the authoritarian regimen. That struggle is not
restricted to the conventional left-right axis and, extending to memorialists belonging to the
same ideological spectrum as well, it is fundamental in demonstrating the predominance that
the context of discursive articulation exerts over the narrative of the past, which, accordingly,
corroborates the thesis about the political character and the political uses of this type of
construction.

KEYWORDS: Memory. Frei Betto. Military dictatorship.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 10

1 TEMPO PRESENTE: um cárcere entre o passado e o futuro................................ 20


1.1 Frei Betto: um protagonista para o enredo.................................................................. 30

1.2 Correspondência do cárcere: a memória sob um olhar prospectivo........................... 36

1.3 A caserna e a sacristia................................................................................................. 40


1.4 O carisma e o poder.................................................................................................... 54
1.5 O pecado de Judas....................................................................................................... 66

2 1980: a política da verdade.......................................................................................... 72

2.1 Estratégias de convencimento..................................................................................... 88

2.2 Princípio explicativo e teleologia................................................................................ 93


2.3 A verdade nos detalhes............................................................................................... 99
2.4 O trabalho de humanização......................................................................................... 101
2.5 Autoritarismo à brasileira: iludidos e privilegiados.................................................... 112
2.6 A ditadura segundo Fernando Gabeira........................................................................ 115
2.7 A ditadura segundo Frei Betto.................................................................................... 121

3 SÉCULO XXI: genealogia dos valores....................................................................... 138

3.1 Memória: tempo e paradigma..................................................................................... 142

3.2 Caminho de Damasco................................................................................................. 157


3.3 Ditadura: tradição autoritária...................................................................................... 183

CONCLUSÃO................................................................................................................. 202

FONTES .......................................................................................................................... 208


REFERÊNCIAS.............................................................................................................. 208
10

INTRODUÇÃO

Às vésperas de se completarem 55 anos desde o golpe civil-militar no Brasil, o porta-


voz da Presidência da República, general Otávio Rêgo Barros, em entrevista coletiva, no dia
25 de março de 2019, foi indagado se eram reais as notícias de que o presidente Jair Messias
Bolsonaro estaria estimulando a comemoração da data que se avizinhava. Antes mesmo de
responder à questão, o representante do governo fez questão de afirmar que:

O presidente não considera trinta e um de março de 1964 golpe militar. Ele


considera que a sociedade reunida e percebendo o perigo que o País estava
vivenciando naquele momento, juntou-se civis e militares e nós conseguimos
recuperar e recolocar o nosso País num rumo que, salvo melhor juízo, se isso não
tivesse ocorrido, hoje nós teríamos um tipo de governo aqui que não seria bom para
ninguém. E o nosso presidente já determinou ao Ministério da Defesa que faça as
comemorações devidas com relação a 31 de março de 1964, incluindo uma ordem
do dia patrocinada pelo Ministério da Defesa que já foi aprovada pelo nosso
presidente.1

Dando prosseguimento, Barros confirmou que o presidente “determinou ao Ministério


da Defesa que faça as comemorações devidas com relação a 31 de março de 1964, incluindo
uma ordem do dia”. Em resposta imediata, a Defensoria Pública da União (DPU) propôs à
justiça federal, em Brasília – no dia 26 de março – uma Ação Civil Pública que visava
impedir que “a UNIÃO pratique quaisquer atos inerentes à comemoração da implantação da
Ditadura Militar, especialmente à utilização de quaisquer recursos públicos para realização de
tais eventos, protegendo o erário e a moralidade administrativa.”2 Passados três dias, a juíza
Ivani Silva da Luz decidiu favoravelmente ao pedido e proibiu as comemorações.3 Entretanto,
no dia 30 de março, a desembargadora Maria do Carmo Cardoso cassou a liminar.4

1
BARROS, Otávio Rêgo. Declaração à imprensa do senhor Porta-Voz, general Otávio Rêgo Barros -
Brasília-DF. [entrevista coletiva] Brasília, 2019. Disponível em: <http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-o-
planalto/porta-voz/2019/declaracao-a-imprensa-do-senhor-porta-voz-general-otavio-rego-barros-brasilia-df-25-
de-marco-de-2019-brasilia-df>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
2
BRASIL. Defensoria pública da união. Processo de Assistência Jurídica (PAJ) nº 2019/001-3517. Ação Civil
Pública com pedido de tutela provisória de urgência. Brasília, DF, 26 de mar. de 2019. 19 p. Disponível em:
<https://www.revistaforum.com.br/wp-content/uploads/2019/03/1-inicial-acp-impedir-comemoracxxaxxo-
ditadura.pdf>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
3
TASSY, Luiz Philippe. Juíza proíbe governo Bolsonaro de comemorar golpe de 1964. Correio Braziliense,
Brasília, 29 de mar. de 2019. Disponível em:
<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/03/29/interna_politica,746271/juiza-proibe-
governo-bolsonaro-de-comemorar-golpe-de-1964.shtml>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
4
ROSSI, Marina. Justiça suspende decisão que proibia Forças Armadas de celebrarem golpe de 1964. El País,
Madri, 30 de mar. de 2019. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/30/politica/1553963400_195148.html>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
11

Amplamente noticiada pela imprensa5, a ordem do presidente provocou imediatas


reações. Instituições como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), sindicatos/associações
profissionais6 e o Instituto Vladimir Herzog publicaram notas de repúdio à iniciativa do chefe
do poder executivo.
Em sua manifestação do dia 28 de março, a OAB afirmou:

A Comissão de Direitos Humanos (CDH) da OAB SP, juntamente com a diretoria


da Secional, vem a público denunciar a postura do chefe do Poder Executivo, que
afronta o Estado Democrático de Direito. Não podem a opinião pessoal e as
idiossincrasias ideológicas do ocupante da Presidência servirem de pretexto para
determinar que órgãos públicos comemorem a derrubada inconstitucional de um
governo e festejem o regime que o sucedeu, responsável por graves atentados aos
Direitos Humanos, como o assassinato ou o desaparecimento de 434 adversários
políticos e mais de oito mil indígenas, além de várias dezenas de milhares de prisões
ilegais, com parte expressiva dos presos submetidos a torturas, espancamentos e
execuções realizadas por órgãos do Estado. Não pode haver glória se não há
nenhuma honra na atuação de membros das Forças Armadas e das polícias
perpetrando as mais repulsivas formas de violência contra brasileiras e brasileiros,
de modo geral, indefesos.7

No mesmo dia, a nota publicada pelo Instituto Vladimir Herzog, defendia que:

A atitude de Bolsonaro é totalmente incompatível com o Estado Democrático de


Direito e fere frontalmente o direito à memória e à verdade – previsto na
Constituição de 1988. Festejar o golpe de 64 e os anos do regime militar é relativizar
a gravidade dos atos cometidos durante esse período sombrio, marcado por
violência, autoritarismo, corrupção e gravíssimas violações de direitos humanos
perpetradas contra cidadãos em todo o país.
[...] Isso nos mostra, de forma preocupante, que a tarefa de consolidar a democracia
no Brasil ainda está incompleta e é indissociável da necessidade de se garantir o
direito à justiça, à memória e à verdade a todos que sofreram com as violações de
direitos humanos cometidas durante a ditadura.8

5
FERNANDES, Talita; URIBE, Gustavo. Bolsonaro determinou 'comemorações devidas' do golpe de 1964, diz
porta-voz. Folha de S. Paulo (Online), São Paulo, 25 de mar. de 2019. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/bolsonaro-determinou-comemoracoes-devidas-do-golpe-de-
1964-diz-porta-voz.shtml>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
SANTA RITA, Bruno; KAFRUNI, Simone; SOUZA, Renato. Bolsonaro recomendou 'devidas comemorações'
do golpe de 1964, diz Porta-Voz. Correio Braziliense, Brasília, 25 de mar. de 2019. Disponível em:
<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/03/25/interna_politica,745271/bolsonaro-
recomendou-devidas-comemoracoes-do-golpe-de-1964-diz-port.shtml>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
6
ANPUH-BRASIL. Nota da ANPUH-BRASIL contra a orientação da Presidência da República a respeito
das “comemorações” do golpe de 1964. São Paulo, 1 de abr. de 2019. Disponível em:
<https://anpuh.org.br/index.php/2015-01-20-00-01-55/noticias2/noticias-destaque/item/5141-nota-da-anpuh-
brasil-contra-a-orientacao-da-presidencia-da-republica-a-respeito-das-comemoracoes-do-golpe-de-1964>.
Acesso em: 7 de abr. de 2019.
7
OAB-SP. OAB SP repudia comemoração do golpe de 1964. São Paulo, 28 de mar. de 2019. Disponível em:
<http://www.oabsp.org.br/noticias/2019/03/oab-sp-repudia-comemoracao-do-golpe-de-1964.12881>. Acesso
em: 1 de abr. de 2019.
8
INSTITUTO VLADIMIR HERZOG. Instituto Vladimir Herzog repudia comemorações ao golpe de 64. São
Paulo, 28 de mar. de 2019. Disponível em: <https://vladimirherzog.org/nota-oficial-instituto-vladimir-herzog-
repudia-comemoracoes-ao-golpe-de-64/>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
12

No dia seguinte, o jornalista Jamil Chade noticiou que, por meio de um documento
“enviado em caráter confidencial”, a OAB e o Instituto Vladimir Herzog denunciaram o
presidente Bolsonaro junto à Organização das Nações Unidas (ONU) por incitar a
comemoração do golpe de 1964. Chade destaca:

[...] as entidades alertam que existe uma ‘tentativa de modificar a narrativa do


golpe de estado de 31 de março de 1964 no Brasil" e que isso ocorreria por meio de
"instruções diretas do gabinete do presidente, desconsiderando as atrocidades
cometidas”.
[...] Tanto a OAB como o Instituto Herzog consideram que tais atos "cometidos no
mais alto nível do Estado são violações dos direitos humanos e do direito
humanitário". A carta ainda aponta que usar o cargo para defender e comemorar tais
atrocidades constitui "uma violação dos tratados aos quais o Brasil passou a fazer
parte depois de retornar à democracia’. 9

Apesar da notável animosidade que caracterizou esse episódio recente – fruto do


contexto de extrema polarização política vivido no Brasil desde as manifestações de junho de
2013 – debates como esse, sobre qual seria a memória legítima para ser divulgada e
comemorada figuram nos meios de comunicação desde o início do processo de
redemocratização e se intensificaram após a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
em 2002.
Na história recente do Brasil, especialmente após o advento do século XXI, através de
suas manifestações de insatisfação com a memória liberal-conservadora – que desde o
término do regime exerce uma hegemonia nesse campo e influencia a política de reparação do
Estado brasileiro – os militares consagraram a interpretação segundo a qual, tendo vencido as
esquerdas nas armas, eles foram derrotados na luta pela construção da narrativa sobre esse
passado. Assim, segundo o ex-ministro Jarbas Passarinho, a versão dominante seria a da
“história reescrita pelos vencidos”.10
Essa interpretação da construção da memória como uma simples reedição do
enfrentamento entre militares e militantes de esquerda no contexto da Luta Armada ganhou
cada vez mais solidez à medida que uma profusão de autobiografias de ex-militantes ganhou
espaço no mercado editorial e novas manifestações da insatisfação militar com a memória do
regime vieram a público.

9
CHADE, Jamil. OAB denuncia Bolsonaro na ONU por recomendação sobre 1964. Genebra, 29 de mar. de
2019. Disponível em: <https://jamilchade.blogosfera.uol.com.br/2019/03/29/oab-denuncia-bolsonaro-na-onu-
por-recomendacao-sobre-64/?utm_source=facebook&utm_medium=social-
media&utm_campaign=noticias&utm_content=geral>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
10
PASSARINHO, Jarbas. Réquiem em vez de ação de graças. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 123, n.
39858, 03 de dez. de 2002. Espaço Aberto, p. A2. Disponível em:
<https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20021203-39858-spo-2-opi-a2-not>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
13

O historiador Marcos Napolitano, em seu livro 1964: História do Regime Militar


Brasileiro, narra alguns episódios em que a insatisfação militar com a evocação desse passado
pela imprensa provocou a quebra, ainda que momentânea, do silêncio autoimposto pelos
homens da caserna. Dois exemplos, em especial, demonstram como essa intepretação é
recorrentemente reavivada. O primeiro decorreu da publicação pelo Correio Braziliense, em
2004, de fotos que até então acreditava-se serem do jornalista Vladimir Herzog, pouco antes
de ser assassinado na prisão.11
A reação militar se deu através de uma nota oficial do Centro de Comunicação Social
do Exército, do dia 18 de outubro de 2004. Nela, se defende que em 1964, com o apoio de
amplos setores da sociedade civil, as forças armadas, atenderam a um clamor popular,
integrando uma “força de pacificação” para salvar o país do golpe arquitetado pelo
movimento comunista internacional, garantindo o seu desenvolvimento econômico e social.
Conforme esse discurso, as medidas de repressão adotadas durante o governo militar,
inclusive a criação de órgãos como o Destacamento de Operações e Informações – Centro de
Operações e Defesa Interna (DOI-CODI), seriam uma resposta legítima ao radicalismo das
esquerdas armadas. A nota também questiona a veracidade das denúncias dos assassinatos
nessas operações; para isso, argumenta que não existem documentos que as comprovem. Por
fim, defende que as forças armadas se mantem fiéis ao “espírito da Lei de Anistia”:

[...] cujo objetivo foi proporcionar ao nosso país um ambiente pacífico e ordeiro,
propício para a consolidação da democracia e ao nosso desenvolvimento, livre de
ressentimentos e capaz de inibir a reabertura de feridas que precisam ser,
definitivamente, cicatrizadas. Por esse motivo considera os fatos como parte da
história do Brasil.
Mesmo sem qualquer mudança de posicionamento e de convicções em relação ao
que aconteceu naquele período histórico, considera ação pequena reavivar
revanchismos ou estimular discussões estéreis sobre conjunturas passadas, que a
nada conduzem.12

Diante do desconforto causado pelo tom taxativo assumido na nota, ao se tratar de


temas tão delicados como o das mortes de ex-militantes, o general de Exército Francisco
Roberto de Albuquerque publicou, no dia seguinte, uma nota de retratação em nome da
instituição.

11
NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014. p. 328.
12
CENTRO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DO EXÉRCITO. Nota oficial. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano 84,
n.27593, 19 de out. de 2004. p. A8. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=16234&keyword=centro&anchor=5191621&origem=busca&pd=
097eccc5c5398d0456bdff5ae51599d8>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
14

O Exército Brasileiro é uma instituição que prima pela consolidação do poder da


democracia brasileira.
O Exército lamenta a morte do jornalista Vladimir Herzog. Cumpre relembrar que,
à época, este fato foi um dos motivadores do afastamento do comandante militar da
área, por determinação do presidente Geisel.
Portanto, para o bem da democracia e comprometido com as leis do nosso país, o
Exército não quer ficar reavivando fatos de um passado trágico que ocorreram no
Brasil.
Entendo que a forma pela qual esse assunto foi abordado não foi apropriada, e que
somente a ausência de uma discussão interna mais profunda sobre o tema pôde fazer
com que uma nota do Centro de Comunicação Social do Exército não condizente
com o momento histórico atual fosse publicada.
Reitero ao senhor presidente da República e ao senhor Ministro da Defesa a
convicção de que o Exército não foge aos seus compromissos de fortalecimento da
democracia brasileira.13

Apesar do tom apaziguador, observa-se que a mensagem almeja uma retratação por
considerar inadequada a forma – não o conteúdo – como o assunto foi abordado na nota do
Centro de Comunicação Social do Exército; em nenhum momento ela se contrapõe às
afirmações tecidas. O mais importante é notar que em ambas as manifestações se reconhece
que a expressão da memória, seu esquecimento, ou mesmo, seu silenciamento, cumprem uma
função política. Nesse caso, se expressa explicitamente que a consolidação da democracia
como projeto político depende, sine qua non, da decisão firme dos “dois lados” dessa
“batalha”, de não se reabrir “feridas que precisam ser, definitivamente, cicatrizadas”,
evitando-se para isso que se reavivem “fatos de um passado trágico”.
O outro episódio exemplar desse reconhecimento da memória como instrumento
político foi a reação militar à instauração da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em
novembro de 2011, conforme instituído pela lei 12.528.14 Em 12 de maio de 2012, o jornal O
Estado de São Paulo publicou o artigo “Lei do silêncio”, do general de Exército Rômulo Bini
Pereira.
De maneira áspera, o general afirma que a instalação da CNV representava a quebra
do pacto político pela “reconstrução democrática no Brasil”, selado pela lei da Anistia em
1979, após “muitos debates em amplos segmentos de nossa sociedade”. Segundo o militar, as
forças armadas, desde então, cumpriram o acordo e “mantiveram-se em silêncio”. Mas diante
da “tentativa de criar uma nova história” sobre o período, seria urgente que os chefes militares

13
ALBUQUERQUE, Francisco Roberto. Nota oficial. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano 84, n.27594, 20 de out.
de 2004. p. A6. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=16235&keyword=centro&anchor=5191676&origem=busca&pd=
2cd48f674a0818d87039acd77837197b>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
14
BRASIL. Decreto-lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011. Cria a Comissão Nacional da Verdade no âmbito
da Casa Civil da Presidência da República. Brasília, DF: Presidência da República, [2011]. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12528.htm>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
15

abandonassem o laconismo, ou seja, adotassem uma nova estratégia para prosseguir com a
“batalha”. Nas palavras de Pereira:

Não se admite mais este silêncio reinante. Nas redes virtuais, pela simples leitura
de manifestos e artigos oriundos da reserva de nossas forças singulares se percebe
que estamos num ponto crítico. A nossa autoestima está em visível declínio,
agravada por outros fatores, entre eles os baixos salários de nossos subordinados.
Dissensões poderão surgir, por a reserva expressa um muito o pensamento dos
soldados da ativa. [...] não é possível mais calar. A lei do silêncio deve ser
quebrada!15

Episódios como esses sinalizam claramente que a memória é um instrumento político


poderosíssimo, ao qual nenhum dos agentes sociais está disposto a renunciar para enfrentar as
disputas inerentes a esse campo. O fato em si de eleger-se um porta-voz da “história
verdadeira” é uma estratégia para se adquirir capital simbólico, fundamental na luta pela
implementação de determinados projetos políticos.16 Não, por acaso, as manifestações
recentes da OAB e do Instituto Vladimír Herzog, mencionadas anteriormente, também fazem
questão de afirmar que evocar um tipo de reminiscência – neste caso específico, encarnada
pela inciativa do presidente de comemorar um golpe de Estado – ameaçaria a “já frágil
transição democrática no Brasil” e atrapalharia a sua consolidação, por ignorar a necessidade
“de se garantir o direito à justiça, à memória e à verdade a todos que sofreram com as
violações de direitos humanos”.
Entretanto, a interpretação da construção da memória como uma batalha travada por
agentes sociais que encarnariam dois lados diametralmente opostos, longe de representar a
realidade, promove, na verdade, um ocultamento da pluralidade de maneiras de se lembrar de
um mesmo passado. Ainda que compartilhassem a filiação a um espectro ideológico, ou até
que tenham pertencido à mesma organização política, os memorialistas apresentam
divergências significativas entre suas narrativas sobre experiências em comum.
A posição hegemônica à qual foi alçada uma das versões sobre a ditadura militar em
um período histórico determinando não significou a vitória de um dos supostos lados que
teriam se enfrentado em uma “batalha” pela memória. Seu estabelecimento resultou, na
realidade, de um processo complexo e não linear do qual a análise é mais elucidativa quanto à

15
PEREIRA, Rômulo Bini. Lei do silêncio. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 133, n. 43306, 12 de mai. de
2012. Espaço aberto, p. A2. Disponível em: <https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20120512-43306-spo-2-
opi-a2not/busca/lei+sil%C3%AAncio>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
16
A pertinência dos conceitos sociológicos desenvolvidos por Pierre Bourdieu, para se refletir acerca dos discursos
memorialísticos, é discutida no terceiro capítulo desta tese.
16

conjuntura político-social de sua consagração, do que simplesmente reveladora das táticas


adotadas pelos agentes envolvidos, segundo uma lógica belicosa e dicotômica.
Dessa forma, observa-se que, assim como apontou Régine Robin, “o passado não é
livre”.17 A historiadora ressalta que a saturação da memória ou a sua escassez – que se
traduziria no esquecimento – são os indícios de que “[...] não há memória justa, nem
reconciliação total com o passado. Há sempre ‘muito pouco’ e ‘muito’, em função das
conjunturas e das versões afetando as grandes narrativas do passado.”18 Mesmo quando esse
trabalho de escuta e conservação das reminiscências busca atender às necessidades individuais
e coletivas de enfrentar os traumas provocados por experiências de violência – especialmente
daquelas perpetradas por agentes do Estado –, dados os primeiros passos em direção ao “que
seria no social o equivalente da perlaboração”19, ainda assim, se observam desvios e
instrumentalizações.
Sem dúvida, ao se iniciar uma pesquisa sobre a memória em qualquer área do
conhecimento, deve-se dedicar um imenso respeito ao caráter traumático que o ato de
relembrar pode assumir na vida de qualquer pessoa, principalmente, aquelas atingidas por
violências físicas, psíquicas e morais. Contudo, o reconhecimento do aspecto doloroso não
deve impedir a sua recognição em função de ter sido expressa e tornada pública, seja pelos
meios que forem. Interessa observar essa ação não apenas como faculdade psíquica, inerente
ao ser humano; mas, acima de tudo, como uma construção discursiva enredada em interesses
político-sociais.
Um dos interesses mais elementares de qualquer discurso é o convencimento de seu
interlocutor. Curiosamente, por ser considerado óbvio, as estratégias para alcançá-lo, muitas
vezes, não são devidamente analisadas. Dessa forma, essa atitude, no ato da comunicação, de
coordenar recursos disponíveis, articulando-os às condições do contexto, para alcançar um
determinado objetivo, revelam o que Michael Foucault denomina como “vontade de
verdade”20. Através dela, é possível conhecer não só as intenções de quem empreende o

17
ROBIN, Régine. A memória saturada. Tradução Cristiane Dias, Greciely Costa. Campinas: Editora da
Unicamp, 2016. p. 31.
18
Ibid, p. 37.
19
Ibid, p. 36.
20
Segundo Foucault, existe um combate pela verdade: “[...] A verdade não existe fora do poder ou sem poder [...].
A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados
de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso
que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os
enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e procedimentos que
são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como
verdadeiro.” Cf. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Ed. 2. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2015. p.49.
17

discurso, mas principalmente, os critérios de verossimilhança consagrados por uma


determinada sociedade em um contexto histórico específico.
Dada a proximidade temporal entre o fim da ditadura militar brasileira e os dias atuais,
não há dúvida, mesmo para o senso comum, do caráter político das memórias publicadas
sobre o período; sejam as produzidas por aqueles que exerciam o poder e seus apoiadores, ou
as que foram publicadas pelos opositores, especialmente, ex-militantes da luta armada de
esquerda. O avanço nas pesquisas históricas demonstra que essas disputas e discordâncias não
opunham apenas militares e ex-militantes, mas também os integrantes desses grupos.21
Dessa forma, a análise de obras memorialísticas, como as de frei Betto, é exercício
bastante profícuo para se compreender o caráter político desse tipo de discurso. Através desse
trabalho, é possível entender as estratégias adotadas pelo autor para munir sua narrativa
acerca da ditadura militar brasileira e da luta armada de verossimilidade, sem que com isso se
conteste a legitimidade dessa atitude.
Preso no Rio Grande do Sul, em 1969, por auxiliar perseguidos políticos a deixarem o
país pela fronteira com o Uruguai e a Argentina e por colaborar com a organização liderada
por Carlos Marighella, a Ação Libertadora Nacional (ALN), Carlos Alberto Libânio Christo
(o “frei Betto”) é um dos autores que desde a década de 1970 tem persistido na reedição e
revisão de suas reminiscências.
A publicação recorrente de livros dedicados à memória em intervalos de até duas
décadas tornou a obra memorialística de frei Betto uma fonte preciosa para perscrutar a
historicidade da memória, pois, ela permite o raro exercício de se poder comparar as
narrativas de um passado desenvolvidas por um mesmo autor em diferentes contextos.
Embora essa metodologia de análise faça saltar aos olhos as rupturas, elas só podem ser
devidamente compreendidas se cotejadas com os aspectos que permanecem. No caso
específico da obra do dominicano, o que persiste, a despeito das mudanças conjunturais, é a
função política que o autor atribui às suas reminiscências da ditadura militar.
Pessoalmente atingido pela derrota da luta armada, frei Betto buscou construir com a
publicação de suas memórias uma ponte entre essa experiência de fracasso e os novos
projetos políticos das esquerdas que emergiram nas conjunturas posteriores à Abertura. O
dominicano narra os equívocos das organizações revolucionárias durante o regime autoritário,
não como uma forma de desqualificar suas atitudes e seu ideário, mas sim como uma

21
Esse aspecto recebe uma abordagem aprofundada no segundo capítulo deste trabalho através da comparação
entre as obras de frei Betto nos anos 1980 e o livro O que é isso, companheiro? do jornalista Fernando Gabeira.
18

instrução sobre os caminhos e descaminhos da vitória indispensável para a viabilização de


novas agendas.
Assim, tanto os livros lançados em meio às agitações sindicais na região do ABC
paulista e a euforia com a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), quanto aqueles
publicados após a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da república – processos
históricos nos quais frei Betto esteve diretamente envolvido – procuram ressaltar que o
principal equívoco da luta armada e a causa de seu ocaso foi o isolamento social. Dessa
forma, fica bastante claro que durante o período que abarca a publicação de sua obra
memorialística persiste a aposta do autor na perspectiva de um partido operário de massa
como meio através do qual as esquerdas poderiam chegar ao poder e viabilizar sua agenda
política.
A obra memorialística de frei Betto pode ser analisada e periodizada com base na
conjuntura de suas publicações. Dessa forma, podemos compreendê-la sistematicamente a
partir de três blocos. O primeiro, relativo aos anos 1960/1970, é composto pelas obras que
reproduzem as cartas que o frade escreveu na prisão; o segundo reúne aquelas lançadas no
contexto da Abertura, nos anos 1980; e o terceiro, e último, é integrado pelos títulos da
primeira década do século XXI.
Por meio desse procedimento e da comparação das narrativas de frei Betto –
produzidas ao longo de quatro décadas – pode-se identificar alguns dos critérios que foram
desenvolvidos pela sociedade brasileira, no período da redemocratização, para considerar
verdadeiras determinadas memórias. Essa tarefa também permite vislumbrar os resultados do
processo de revisão empreendido pelo autor para, a partir de diferentes contextos, selecionar o
que seria mais importante lembrar, assim como, o que deveria ser esquecido para que sua
versão sobre os fatos conservasse sua eficácia política.
No primeiro capítulo, se procura demonstrar como as cartas que frei Betto escreveu na
prisão definiram as linhas gerais do que seria a sua escrita reminiscente na posteridade.
Assim, o conjunto dessas missivas – Cartas da prisão: 1969 a 1973 (2008) – é analisado
como um verdadeiro projeto memorialístico revelador de como o período de contestação da
ação política do autor e sua percepção de que nos grandes jornais se construía,
paulatinamente, uma narrativa – para ele, insatisfatória – sobre a luta armada e sobre o papel
dos dominicanos no assassinato de Carlos Marighella, o levou a arquitetar as bases de um
discurso para refutar a pecha de hereges, terroristas e traidores que se imputava aos frades
presos.
19

A segunda seção versa sobre a inaugural e mais importante iniciativa de frei Betto
para executar seu projeto memorialístico. Através da análise de Batismo de Sangue (1982), O
dia de Ângelo (1985) e da comparação de sua interpretação da ditadura militar com a de
Fernando Gabeira em O que é isso, companheiro? (1979), busca-se demonstrar como o
contexto de hegemonia da memória liberal-conservadora e de extrema valorização do discurso
testemunhal influenciou o autor nas escolhas das estratégias que deveriam ganhar maior
destaque ou serem arrefecidas em função da construção das teses empreendidas pela sua
versão. Sobretudo, se destaca a edificação de uma narrativa que estabeleça uma
correspondência entre a reminiscência da morte de seu confrade Tito de Alencar Lima e os
modelos hagiográficos do martírio cristão.
O terceiro e último capítulo aborda a revisão que frei Betto promove em sua memória
da ditadura militar na primeira década do século XXI através de seus livros Alfabetto:
autobiografia escolar e Diário de Fernando: Nos cárceres da ditadura militar brasileira. O
período que marcou trajetória do dominicano pela passagem do estado de euforia ao de
frustração com a tão sonhada ascensão de um partido operário de massa ao poder – com a
eleição de Lula em 2002 – e pela emergência dos primeiros sinais de enfraquecimento da
memória liberal-conservadora também registrou uma mudança significativa nas táticas
adotadas pelo dominicano para que sua escrita memorialística preservasse sua funcionalidade
política. Por meio da análise das estratégias de convencimento utilizadas e do cotejo das
obras, procura-se compreender de que maneira o autor construiu uma verdadeira genealogia
dos valores que advoga serem capazes de legitimar as atitudes que ele e seus confrades
tomaram no passado. A narrativa do itinerário que teria dotado os dominicanos de seus
princípios e paradigmas, não só justificaria seu apoio à luta armada, como também lhes teria
dado a clarividência para enxergar que a ditadura instaurada em 1964 e sua prática mais
abjeta, a tortura, não serviam a qualquer agenda política, exceto à retroalimentação do poder
de seus artífices e a sua exibição hedonista perante seus opositores.
20

1 Tempo presente: um cárcere entre o passado e o futuro

Na manhã do dia 05 de novembro de 1969, os jornais de maior circulação no Brasil


traziam estampada em suas capas a notícia de que, aproximadamente, às vinte horas e trinta
minutos da noite anterior havia tombado o homem mais procurado do país. Ao resistir à
ordem de prisão, o líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), uma das mais importantes e
combativas organizações de luta armada, teria entrado em confronto com a polícia sendo
metralhado pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury.22
Dois dias após o ocorrido, na edição de 06 de novembro, O Estado de São Paulo,
assim como parte da população, questionava se os tiros que alvejaram Marighella também
teriam malferido, consequentemente, as guerrilhas de esquerda no país, pondo, assim, um
ponto final em sua breve história.23 Passados quase cinquenta anos, as únicas certezas que
permanecem são as de que o assassinato do revolucionário baiano, ainda que se considere a
sinalização de sua falência, não só não encerrou as atividades da luta armada, como ganhou
importância com o passar do tempo por marcar o início de uma disputa intestina em torno da
memória e da história da ditadura militar no Brasil.
Embora não ignorassem o impacto e a importância da notícia, dificilmente algum dos
editores-chefes dos maiores jornais do país poderia imaginar a dimensão e a longevidade das
polêmicas que permeiam, ainda hoje, a edificação da história sobre o período, cujas
manchetes podem ser tomadas como pontapé inicial.
Essas querelas em torno do estabelecimento de uma narrativa dominante capaz de
definir para a posteridade o que foi o regime político inaugurado em 1964, e que,
aparentemente, perpetuavam a clássica oposição entre Direita e Esquerda não se referem,

22
MARIGHELA morre metralhado em São Paulo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 181, 5 de
nov. de 1969. 1º Caderno p.14. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691105&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 1 de set. de 2018.
MORTO o chefe terrorista Marighela. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.752, 5 de nov. de 1969.
p.1. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3468&keyword=Marighela&anchor=5172343&origem=busca>.
Acesso em: 22 de set. de 2018.
PADRES levam Marighella à morte. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 90, n. 29.012, 5 de nov. de 1969.
p.14. Disponível em: <https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19691105-29012-nac-0014-999-14-
not/busca/Marighella>. Acesso em: 10 de nov. de 2018.
23
O TERROR acaba ou vai se unir? O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 90, n. 29.013, 6 de nov. de 1969. p. 24.
Disponível em: <https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19691106-29013-nac-0024-999-24-
not/busca/Marighela>. Acesso em: 11 de nov. de 2018.
REVELAÇÕES sobre as investigações. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.754, 7 de nov. de 1969.
p. 8. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3470&keyword=Frei&anchor=5172414&origem=busca&pd=cea
c1211ad69369e2a12d504a55e1fba>. Acesso em: 24 de set. de 2018.
21

exclusivamente, às versões do caso em si como, por exemplo: se Marighella reagiu à ordem


de prisão; se os dominicanos o traíram; ou se na véspera do fatídico encontro ele tinha ciência
da prisão dos religiosos. Mas, em perspectiva muito mais ampla, essa disputa pela construção
da memória busca enredar o período de maneira a afirmar as verdades sobre o objetivo da luta
armada, assim como a colaboração de agências norte-americanas de inteligência com os
órgãos de informação e repressão brasileiros e, também, as razões para a derrota das
organizações das esquerdas armadas.
A morte de um dirigente comunista tão conhecido quanto Carlos Marighella já era
razão suficiente para que a população em geral tivesse aquela estranha sensação de presenciar
“a história acontecendo”. No entanto, ainda mais chocante era o que as manchetes traziam em
seu bojo. Nos dias subsequentes, os jornais afirmavam que frades dominicanos colaboravam
assiduamente com os terroristas que eram acusados de roubar, matar, sequestrar e praticar
todo tipo de crime, real ou imaginário, que pudesse por em xeque a ordem pública.
O Estado de São Paulo, naquela manhã do dia 05 de novembro, noticiava que “padres
levam Marighella à morte”. O jornal sugeria que, além de cúmplices do “terrorismo” no
Brasil – o que por si só já seria digno de reprovação – os frades haviam traído a organização,
colaborando com a polícia para emboscar o chefe da ALN. De acordo com a matéria:

Frei Ivo e Frei Fernando foram no Volks azul para o encontro com Marighela.
Quando veio a ordem de prisão, êles saíram do carro com as mãos sobre a cabeça,
mas ainda tentaram fugir. Só não o conseguiram porque foram atacados por dois
cães pastores alemães que os imobilizaram contra uma parede.
Detidos, os freis voltaram ao DOPS, de onde saiam para levar a Polícia ao encontro
de Marighela.24

O Jornal do Brasil afirmava de maneira ainda mais direta que: “A polícia descobriu a
maneira de encontrar Carlos Marighela há dias, quando prendeu 11 padres num convento do
bairro do Paraíso”.25 Na notícia completa, o jornal afirmava que “dois dos padres presos
ajudaram a arquitetar um plano para a captura de Carlos Marighela, marcando com ele um
encontro para tratar de uma programação subversiva”.26

24
PADRES levam Marighella à morte. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 90, n. 29.012, 5 de nov. de 1969.
p.14. Disponível em: <https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19691105-29012-nac-0014-999-14-
not/busca/Marighella>. Acesso em: 10 de nov. de 2018.
25
MARIGHELA morre metralhado em São Paulo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 181, 5 de
nov. de 1969. 1º Caderno p.1. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691105&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 1 de set. de 2018.
26
Ibid, p. 14.
22

Após confessarem que pertenciam ao grupo Marighela, frei Ivo e frei Fernando
concordaram em marcar um encontro com o ex-deputado na Alameda Casa Branca.
O telefonema foi gravado; a senha era “vou à tipografia às 20h30m”.
Os policiais cercaram o local, inclusive com a ajuda de cães pastores, que durante o
tiroteio evitaram a fuga dos dois frades, frei Fernando foi mordido na perna quando
tentava escapar aproveitando a confusão.27

Com tom inquisitorial, o editorial de O Globo associou a figura dos dominicanos à de


Judas, apóstolo que entregara Jesus para que fosse preso e crucificado, segundo a narrativa
bíblica. Travestindo-se de autoridade eclesiástica, assim vociferava:

Frei Ivo e Frei Fernando já haviam traído a Igreja e a Ordem a que pertencem
quando, renegando os votos de amor e caridade impostos pelo Evangelho cristão,
abraçaram a filosofia de ódio ensinada por Lenine APUD Marx.
Essa traição foi o primeiro beijo de Judas que deram. Todo o resto decorreu desta
apostasia – ainda mais grave que o usual, pois fingiram que ainda continuavam
dentro da Igreja, quando apenas dela se utilizavam para servir ao terror. [...]
Frei Ivo e Frei Fernando, que rasgaram os votos que livremente firmaram diante de
Deus, perderam a resistência moral e traíram os votos de fidelidade à própria
doutrina da violência. Entregaram Marighella à polícia com meticulosa
proficiência.28

Apesar da curiosa ênfase que os jornais deram às atitudes dos frades dominicanos, seja
por terem apoiado as organizações de luta armada ou pela suposta “colaboração”29 que teria
levado a polícia ao paradeiro do guerrilheiro baiano, Carlos Marighella era, sem sombra de
dúvida, o personagem mais importante daquele episódio.
Enquanto frei Ives do Amaral Lesbaupin (1946), Frei Fernando de Brito (1936), frei
Tito de Alencar Lima (1945) e Frei Betto (1944) eram apenas jovens desconhecidos que há
poucos anos haviam assumido o hábito branco dos frades pregadores e que há menos tempo
ainda haviam se envolvido com as organizações de luta armada, o líder da ALN, aos
cinquenta e oito anos de idade, contabilizando quase quatro décadas deles em militância
comunista, a maior parte delas fiel ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), era uma figura

27
POLICIAIS procuram ex-deputado. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 182, 6 de nov. de 1969. 1º
Caderno p.15. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691106&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 10 de set. de 2018.
28
O BEIJO de Judas. O Globo. Rio de Janeiro, 6 de nov. de 1969. Ano XLV, n13.345. p.1. Disponível em:
<https://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=pagina&ordenacaoData=relevancia&allwords=o+beijo+
de+judas&anyword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=1960&anoSelecionado=1969&mesSeleciona
do=11>. Acesso em: 8 de abr. de 2019.
29
MARIGHELA morre metralhado em São Paulo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 181, 5 de
nov. de 1969. 1º Caderno p.1. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691105&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 1 de set. de 2018.
23

imponente entre os oposicionistas mais famigerados do Brasil, além de ser o principal inimigo
da ditadura militar.
Membro do PCB desde o início da chamada “era Vargas”, na década de 1930, quando
ainda cursava engenharia na Escola Politécnica da Bahia30, Marighella foi preso durante o
Estado Novo (1937-1945) e barbaramente torturado. Sua resistência às sevícias a que foi
submetido para não entregar qualquer informação que pudesse prejudicar seus companheiros
e comprometer sua luta lhe rendeu o respeito até mesmo de alguns de seus torturadores.
Somada à sua sensibilidade artística e habilidade social, ela se transformou em sua aura
mítica. Segundo frei Betto, um delegado teria afirmado: “só existe um macho no Partido
Comunista: é esse baiano Marighella.31
Após o golpe civil-militar de 1964, suas críticas à imobilidade do “partidão” soavam
como música para ouvidos jovens, mas já cansados de “esperar acontecer”. O gesto inaugural
desta rota de colisão com o PCB foi sua resistência à ordem de prisão no Cine Eskye-Tijuca
no dia 9 de maio de 1964.
Pouco mais de um mês após o golpe civil-militar, ao receber voz de prisão, Marighella
se levantou aos gritos de “abaixo a ditadura militar fascista! Viva a democracia! Viva o
Partido Comunista!”.32 Essa atitude contrariava a orientação do partido que, segundo frei
Betto, era “evitar provocações”.
O significado político da resistência à prisão e de bradar palavras de ordem diante da
polícia naquele momento fica comprovado pelas reações que essa atitude provocou. De um
lado, Marighella escreveu o livro Por que resisti à prisão explicando os motivos que o
levaram a desafiar as recomendações do partido; do outro, a direção do PCB não só reprovou
seu conteúdo como tentou censurá-lo. Segundo Magalhães: “Parte da executiva se enfureceu
porque o texto não lhe foi submetido para o imprimátur. Não houve ‘permissão’, enfatizou
Zuleika Alambert, em conversa de março de 1966 com Vladímir N. Kazimirov, funcionário
da embaixada soviética no Rio de Janeiro”.33 O autor ressalta que era a primeira vez que o

30
MAGALHÃES, Mario. Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo. 6. ed. São Paulo: Companhia das
letras, 2012. p. 42-77.
31
MARIGHELA morre metralhado em São Paulo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 181, 5 de
nov. de 1969. 1º Caderno p.12. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691105&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 1 de set. de 2018.
32
BETTO, Frei. Batismo de sangue: Os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1982. p. 16.
33
MAGALHÃES, 2012. p. 333.
24

dirigente baiano polemizava com a cúpula sem se dirigir exclusivamente ao círculo


partidário.34
Mas o ataque frontal veio em 1966 com a publicação de A crise Brasileira. Duas eram
as questões fundamentais que opunham o ex-deputado à direção do partido: por que não
houve resistência ao golpe civil-militar? Qual seria a melhor opção tática para derrubar a
ditadura?
Como resposta para a primeira questão, Marighella deu voz a uma queixa que já era de
muitos militantes do PCB antes mesmo de abril de 1964: o reboquismo35. Essa era a
denominação para a postura adotada pelo partido diante do governo de João Goulart. Segundo
o autor, apesar de doloroso, não foi o golpe em si o responsável pela grande derrota moral de
todas as forças de esquerda, mas o fato de não ter havido resistência.36 E esta teria sido a
consequência de todo o tempo perdido cultivando ilusões. Em sua visão, o partido teria se
deslumbrado com a perspectiva de um pacto com a burguesia por meio de uma “frente
ampla”. Dessa forma acreditou-se que seria possível, pacificamente, levar a cabo as reformas
de base utilizando como arma apenas a pressão das massas trabalhadoras do campo e da
cidade.37
Outra ilusão que inebriava a direção do partido, segundo Marighella, era a de que a
elite econômica, comprometida com a democracia e com as reformas, empenhar-se-ia na
prevenção e até mesmo na resistência a qualquer tentativa de golpe por parte das forças
conservadoras de direita. Assim, no geral, reboquismo sintetizava a subserviência do partidão
no pacto com a burguesia e o governo Goulart, seu principal erro estratégico.38
Mesmo reconhecendo a necessidade da autocritica e comprometendo-se a fazê-la,
Marighella não deixou de expressar a urgência de se estabelecer estratégias para o seu
problema presente. E dessa necessidade imediata é que advém o seu segundo questionamento:
como derrubar a ditadura?
Para Marighella, o PCB subestimava a força e os instrumentos de dominação do
inimigo, além de ainda manter-se crédulo de que aquele movimento era uma quartelada como

34
Ibid, p. 332.
35
MARIGHELLA, Carlos. A crise brasileira. In MARIGHELLA, Carlos. Escritos de Carlos Marighella. São
Paulo: Livramento, 1979. p. 50.
36
As questões referentes ao “reboquismo” e à “derrota sem resistência” em 1964 são aqui citadas como forma de
elucidar as reflexões de Marighella que o levaram a romper com o PCB e que influenciaram pessoas que, como
frei Betto, decidiram militar na organização criada pelo ex-deputado. Entretanto, é preciso salientar que existe
um debate em aberto na historiografia brasileira sobre esses temas, nos quais não nos propomos a adentrar neste
trabalho específico.
37
Ibid, p. 50.
38
Ibid, loc. Cit.
25

as outras pelas quais o país já passara em sua história republicana, o que significava que não
duraria muito tempo. Atento aos acontecimentos dos dois primeiros anos do regime,
Marighella apregoava que os golpistas não hesitavam em utilizar a violência para combater
seus opositores. Assim sendo, a via pacífica não teria mais eficácia e apenas a luta armada
poderia dar início a um processo revolucionário que, primeiramente, devia destituir os
militares do poder.
Diante de críticas tão contundentes e perspectivas absolutamente distintas, não
demorou muito para que a relação entre o dirigente baiano e o partido se extinguisse de vez. O
marco definitivo desse rompimento foi o encontro da Organização Latino-Americana de
Solidariedade (OLAS), ocorrido em Havana em 1967.
Apesar de ter sido convidado a enviar representantes, o PCB preteriu ao encontro da
OLAS por não comungar das teses revolucionárias defendidas pelo Partido Comunista local.
Contrariando o comitê central, Marighella compareceu ao evento e reafirmou a admiração que
nutria pela revolução cubana e sua inspiração foquista39, o que foi considerado uma afronta
pelos dirigentes brasileiros.40
A partir desse episódio, enquanto o comitê central do partido no Brasil se preparava
para protocolar sua expulsão definitiva, em Cuba, Marighella redigia uma carta por meio da
qual comunicava o seu desligamento partidário. A mensagem foi lida por seu próprio autor e
transmitida via rádio intercontinental de Havana no dia 17 de agosto de 1967. Nela, o ex-
deputado reafirmava sua opção de:

[...] lutar revolucionariamente junto com as massas e jamais ficar a espera das
regras do jogo político, burocrático e convencional que impera na liderança. [...]
Prosseguirei pelo caminho da luta armada reafirmando minha atitude revolucionária
e rompendo em definitivo com vocês.41

39
O Foquismo é uma teoria revolucionária desenvolvida por Régis Debray. A teoria do Foco afirma que a
revolução não necessita de um partido político para liderá-la, e a ideia de que um pequeno núcleo guerrilheiro
agindo no campo, por ser o local ideal, daria início a uma mobilização da massa, que tomaria o poder.
Inspirados na ação de Fidel Castro e Che Guevara em Cuba, grupos guerrilheiros do Brasil também assumiram
esse projeto revolucionário; temos como exemplo a ALN de Carlos Marighella.
40
O SUBVERSIVO, dos versos ao terror. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 181, 5 de nov. de
1969. 1º Caderno p.14. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691105&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 1 de set. de 2018.
41
MARIGHELLA, 1979, p. 89-97.
26

Alguns meses depois, sua expulsão foi oficializada durante o VI congresso partidário
que ocorreu em dezembro de 1967.42 Assim encerravam-se 37 anos de militância no PCB.
Nesse mesmo ano, juntamente com outras dissidências do partido, Marighella criou o
Agrupamento Comunista de São Paulo, um embrião do que viria a ser, um ano mais tarde, a
Ação Libertadora Nacional. Para que essa nova organização não incidisse nos mesmos erros
do partidão, sua estratégia foi abandonar a aspiração partidária e estabelecer uma estrutura
horizontal43 composta por pequenos subgrupos de três integrantes. Porquanto, para os jovens
comunistas dos anos 1960, o grande feito de Marighella foi desafiar ao mesmo tempo o
autoritarismo da ditadura e o imobilismo do PCB.
Marighella considerava que a burocracia de um partido político inviabilizava a luta
revolucionária. Dessa forma, a ALN deveria se dedicar exclusivamente à ação. Por meio de
suas atividades urbanas, uma de suas maiores aspirações era levantar fundos para implementar
a guerrilha rural e, assim, formar de um exército revolucionário no Brasil.
Segundo o pronunciamento do Agrupamento Comunista de São Paulo, de fevereiro de
1968:

Os princípios pelos quais se rege essa instituição são três: o primeiro é que o dever
de todo revolucionário é fazer a revolução; o segundo é que não pedimos licença
para praticar atos revolucionários e o terceiro é que só temos compromissos com a
revolução.44

Dessa forma, a ousadia e os planos de Marighella lhe renderam a fama de inimigo


número um do regime, que o tornou o homem mais procurado do país. A despeito disso, o
foco das notícias sobre sua morte foi a suposta traição de dois frades cujas existências eram
absolutamente ignoradas pela opinião pública até então.
Através de um trabalho minucioso de análise de notícias relacionadas ao período
ditatorial no Brasil, a tese de Maria Lourdes Motter, Doutora em Ciências da Comunicação,
demonstra que a abordagem dos maiores jornais do país apresenta elementos suficientes para

42
RIDENTI. Marcelo. Esquerdas Armadas Urbanas: 1964-1974. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI,
Marcelo. História do marxismo no Brasil: Partidos e Movimentos após os anos 1960. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1991. v. 6. p. 110.
43
A maneira como ALN se estruturou expressava claramente a crítica à burocracia e teorizações do PCB. A
organização era formada por pequenos grupos que se dividiam em: “Grupo de Trabalho Estratégico (GTE),
responsável pelo planejamento e implantação da guerrilha rural; o Grupo de Tático Armada (GTA), voltado para
as ações armadas; e o Grupo de Ação (GA), que deveria estar ligado ao trabalho de massa. Havia ainda os
Grupos Independentes (GI’s), setores de apoio, simpatizantes, sem uma ligação orgânica com a organização”.
Cf. SALES, Jean Rodrigues. A Ação Libertadora Nacional, a Revolução Cubana e a luta armada no Brasil.
Revista Tempo, Niterói, v. 14, n. 27, p. 199-217, 2009.
44
MARIGHELLA, 1979, p. 134.
27

que se conclua que eles assumiram a versão criada pela polícia para o ocorrido na Alameda
Casa Branca em novembro de 1969.45
Segundo Motter, a recorrente utilização de palavras que fazem parte do jargão policial,
a ausência de outros depoimentos e a incongruência semântica das notícias evidenciam que
sua redação não era fruto do trabalho de jornalistas, habituados a observar esse tipo de
precaução, mas uma transcrição, quase literal, do enredo transmitido pelos órgãos de
segurança.46 Assim, as culpas imputadas ou reforçadas pela imprensa diária podem ser
consideradas pistas preciosas de quais eram as representações que as autoridades desejavam
que se inculcasse na opinião pública.
Assim sendo, o que se queria fazer crer com a veiculação dessas publicações e
manchetes era que os dominicanos, como legítimos representantes da ala progressista da
Igreja Católica, nesse fatídico episódio, teriam dado provas da vileza moral intrínseca a todos
aqueles que professavam ideias que, falsamente ornadas de boas intensões e transvestidas de
verdades evangélicas, buscavam minar as bases da “civilização cristã ocidental” utilizando a
religião como instrumento de propagação do comunismo.
Distante 1.144 km da capital paulista, outro personagem fundamental nessa história
acompanhava pelos jornais o que se dizia dos frades dominicanos e a entrada de seu próprio
nome nas especulações sobre a organização liderada por Carlos Marighella.47
Não é preciso dizer que sobravam razões pessoais para que frei Betto se ressentisse e
fosse refratário à versão apresentada pela imprensa diária. No entanto, a experiência de
repórter da Folha da Tarde e de ex-estudante de jornalismo na extinta Universidade do Brasil
lhe garantiam a habilidade necessária para identificar a farsa apresentada pelos jornais e suas
intenções.48
Mais importante do que desmentir a versão midiática, o que já foi feito de maneira
peremptória pela pesquisa histórica, é observar que a percepção implícita nas cartas de frei
Betto de que existia uma verdadeira campanha difamatória contra os dominicanos e a ala mais
progressista da Igreja Católica é perfeitamente justificável. Posteriormente, esse desejo das

45
MOTTER, Maria Lourdes. Ficção e História. Imprensa e construção da Realidade. São Paulo: Arte & Ciência,
2001. p. 93-100.
46
Ibid, p. 95.
47
COMO a operação Bandeirante chegou a Marighela. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.753, 6 de
nov. de 1969. p. 12. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3469&keyword=Marighelas&anchor=5172384&origem=busca&
pd=0b8e8ee87e4708173f00d9048c309301>. Acesso em: 23 de set. de 2018.
48
FREIRE, Américo; SYDOW, Evanize. Frei Betto: biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. p. 67-
77.
28

autoridades de que os religiosos fossem desmoralizados foi confirmado pelas pesquisas do


historiador Kenneth Serbin.49
Segundo o historiador norte-americano, o fato da autoridade moral junto à população e
à opinião pública internacional resguardar aos bispos católicos certo nível de imunidade
diante das ofensivas da repressão era motivo de incômodo para os militares. O autor inclusive
aborda o caso de Dom Helder Câmara, grande desafeto do regime, que foi vítima de uma
minuciosa e orquestrada campanha de difamação que visava desacreditar suas denúncias em
vários países sobre a sistemática prática de tortura no Brasil pelos agentes do Estado.50 Essa
insatisfação também é esmiuçada nas pesquisas de Paulo Cesar Gomes.
Segundo Gomes, autor de Os bispos católicos e a ditadura militar Brasileira,
produzir dossiês sobre o episcopado do país era uma tarefa complexa para os agentes de
órgãos como as Divisão de Segurança e Informação (DSIs) e do Serviço nacional de
Informação (SNI), dedicados a essa atividade. Tal dificuldade resultava de dois fatores em
especial: o poder simbólico do qual goza a Igreja e a sua já tradicional relação de intimidade
com o Estado.51
Dessa forma, dificilmente os dados arrolados por essas repartições e as conclusões de
seus analistas, os quais deixavam clara a “subversão” nas atitudes e manifestações dos bispos,
chegavam a provocar o acionamento dos órgãos de repressão. Na maioria das vezes, as fichas
referentes as suas atividades eram arquivadas. No entanto, a grande insatisfação dos militares
com a Igreja advinha de outra fonte.52
Serbin enfatiza que a decepção e a suspeita dos militares em relação à Igreja vinham
da sensação de que esta havia traído sua missão. Para grande parte dos membros das forças
armadas, e para outras alas conservadoras da sociedade brasileira, era reservado à instituição o
papel de legitimadora do status quo contra qualquer afã revolucionário e de guardiã dos
princípios morais que fundamentavam “a civilização cristã ocidental”. Portanto, o esforço de
sua hierarquia em empreender uma renovação nos 1960 - mesmo que isso não significasse
necessariamente mudanças que ultrapassassem aspectos intramuros como a liturgia ou a
formação sacerdotal - foi visto como uma traição, ou melhor, uma deserção. Essa reação foi

49
SERBIN, Kenneth P. Diálogo nas sombras: Bispos militares, tortura e justiça social na Ditadura. Tradução
Carlos Eduardo Lins da Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 109.
50
Ibid, p. 108.
51
GOMES, Paulo César. Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira: a visão da espionagem. Rio de
Janeiro: Record, 2014. p. 113-193.
52
Ibid, p.191.
29

ainda mais severa quando essa tentativa de tonar a Igreja mais próxima dos problemas do
mundo moderno erigiu como uma de suas bandeiras a ênfase na busca por justiça social.53
Esse descontentamento fica bastante claro ao se observar que até as mudanças mais
insignificantes nos hábitos dos clérigos eram merecedoras de reprovação nos relatórios
militares. Serbin observa que:

[...] um relatório do DOPS-GB observava que padre Francisco da Rocha


Guimarães “nunca usou batinas”. Pior ainda, ele fez um sermão na capela do forte
de Copacabana “usando palavras que agrediam as elites e as instituições de
consumo, sendo, por esse motivo, suspenso de pregar novamente naquele templo”.
Uma investigação militar sobre dom Waldir acusou-o de não usar o anel episcopal
apropriado, de ouro e pedras preciosas, e de preferir ser chamado simplesmente de
“padre”.54

De acordo com a documentação acessível até o presente momento, a Igreja Católica


foi uma das instituições que conseguiram estabelecer um canal de comunicação com a
ditadura militar brasileira para a discutir algumas de suas iniciativas, ainda que de maneira
extraoficial. Esses debates duraram quatro anos, entre 1970 e 1974, e contaram com 24
encontros circunscritos à cidade do Rio de Janeiro.55
A comissão “bipartite” significou um esforço por parte de militares, bispos e civis no
sentido de diminuir os atritos entre as forças armadas e a Igreja. Ou seja, aplacar o mal-estar
causado pelas ações dos órgãos de informação/repressão contra membros desta instituição,
assim como, o desconforto entre as duas esferas institucionais provocado pela participação de
católicos nas organizações, armadas ou não, que contestavam o regime.56
Apesar da curiosidade que o conteúdo desses encontros pode causar, é necessário
observar, antes de tudo, o que as reuniões em si representavam. Claramente, esse empenho em
não permitir que suas divergências levassem a uma separação definitiva e traumática
demonstra o quanto a Igreja era importante para os militares – o que também se pode dizer
das forças armadas e do Estado em relação à hierarquia católica. Entretanto, evidencia,
igualmente, que a nova linguagem dos padres, o abandono de velhas tradições e sua
insistência em incentivar o debate sobre justiça social desagradavam, profundamente, o
governo.
Partindo da premissa de que a cordialidade descrita por Sérgio Buarque de Holanda
em seu livro clássico Raízes do Brasil é intrínseca aos brasileiros, Serbin interpreta a

53
SERBIN, 2001, p. 117.
54
Ibid, p. 118.
55
Ibid, p. 213-217.
56
Ibid, p. 205.
30

comissão “bipartite” como uma amostra perfeita de como funcionaria a cultura política da
elite nacional, da qual faziam parte clérigos e militares.57
Caracterizada pelo seu paternalismo, clientelismo, mas, principalmente por seu desejo
de conciliação a fim de promover reformas sociais e políticas sem a participação das massas,
a cultura política da elite seria o que produzia entre bispos e militares um esprit de corp.
O ressentimento da elite conservadora pela hierarquia Católica teria sua raiz na
abertura que a instituição promoveu ao laicato na década de 1960. Ao exortar o povo a
participar e tomar consciência dos problemas sociais, de certa forma, a Igreja rompia com o
pacto que tradicionalmente caracterizava os laços entre o Estado e a ideologia cristã.

1.1 Frei Betto: um protagonista para o enredo

No dia em que Marighella foi morto, frei Betto se encontrava no Rio Grande do Sul.
O frade dominicano havia se transferido para o seminário Cristo Rei na cidade de São
Leopoldo em maio de 1969, portanto cinco meses antes do ocorrido.
Em seu novo endereço, ele desejava preparar-se para deixar o país rumo à Alemanha.
O objetivo era despistar a repressão que acreditava estar em seu encalço desde o início do ano.
Em seu livro Batismo de sangue, o frade narra o episódio em que supostos vendedores de
produtos farmacêuticos estiveram a sua procura no prédio em que então residia no centro de
São Paulo. O porteiro, desconfiando de que eram policiais, o teria alertado sobre a visita
suspeita, o que o levou a passar alguns meses vivendo na clandestinidade até que pudesse
abandonar a capital paulista.58
A transferência para o sul do Brasil foi vista pelo frade dominicano e pelo líder da
ALN como a oportunidade perfeita para estabelecer um sistema que possibilitasse a fuga de
perseguidos políticos para o Uruguai e para a Argentina através das fronteiras brasileiras.
Assim, em novembro de 1969, frei Betto estava encarregado de garantir o funcionamento
logístico do esquema, quando foi surpreendido pelo aviso de que em pouco tempo a polícia
estaria no Cristo Rei a sua procura.
O frade recolheu alguns pertences e antes de pegar um ônibus para Porto Alegre, para
atrasar a perseguição policial, anotou no livro de saídas que retornaria às dezenove horas. Ele

57
Ibid, p. 47.
58
BETTO, 1982, p. 50.
31

permaneceu escondido na capital gaúcha até a manhã do dia 09 de novembro, quando foi
preso em um apartamento no centro da cidade.59
Curiosamente, apesar de estar a mais de mil quilômetros de distância do número 800
da Alameda Casa Branca, onde fora assassinado Marighella, frei Betto passou a figurar entre
os nomes mais citados das notícias subsequentes. Como, por exemplo, na edição do Jornal do
Brasil do dia 06 de novembro. Para explicar como a polícia havia chegado ao encalço do
líder da ALN, a matéria apresentava uma lista de pessoas que estariam presas no
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo por envolvimento com o
caso. Entre eles estava:

Carlos Alberto Cristo, mais conhecido como Frei Beto, que morava em São
Leopoldo, Rio Grande do Sul, e era encarregado de fazer os homens da Ala
Marighela transpor a fronteira para o Uruguai, partindo do convento Cristo Rei,
naquela cidade da fronteira. Lá ele fornecia outra documentação falsa aos foragidos,
além daquela que eles tinham conseguido em São Paulo. Com Joaquim Câmara
Ferreira foi assim.60

O frade afirma que na mesma data se encontrava escondido na casa das Irmãs de Jesus
Crucificado na Rua Castro Alves, centro de Porto Alegre. Poucos dias depois, ele foi preso
nas imediações, cerca de um quilômetro, na Avenida Independência.61
Nas primeiras notícias, frei Betto era apenas um religioso ligado a “ala Marighella”
que ajudava foragidos a atravessar a fronteira.62 Com poucos dias, a nova informação
vinculada pela imprensa foi a suposta apreensão em seu quarto, no seminário, de um vasto
material “subversivo”. Nele se destacariam livros de Lênin, Che Guevara e um grande pôster

59
Ibid, p. 89-105.
60
TERRORISTA prêso por acaso deu la. pista de Marighela. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N.
182, 6 de nov. de 1969. 1º Caderno p.15. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691106&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 1 de set. de 2018.
61
BETTO, 1982, p. 94.
62
POLÍCIA diz que frade ajudava subversivos. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 184, 8 de nov. de
1969. 1º Caderno, p.13. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691108&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 3 de set. de 2018.
32

de Mao Tsé-tung que o religioso alega desconhecer, tendo visto pela primeira vez através dos
jornais.63
Com notícias sobre prisões e solturas de supostos integrantes do “grupo de frei Betto”,
em uma semana, o frade passa a ser tratado como líder de uma guerrilha urbana, ou seja, um
grupo próprio aliado, mas autônomo em relação à Marighella.64 Com grande alarde, os jornais
noticiavam que o religioso teria pedido armas e dinheiro ao líder da ALN que só não pode
atender ao “homem da fronteira” por que foi morto pela polícia.65
Com aspas na palavra “frei”, O Estado de São Paulo do dia 13 de novembro de 1969
claramente questionava a condição de religioso do dominicano, e até mesmo de cristão, ao
mesmo tempo em que descrevia quais seriam as supostas atividades de frei Betto no Rio
Grande do Sul:

“FREI” AJUDAVA TERRORISTAS A FUGIR


Segundo o secretário de segurança gaúcho apurou-se que frei Beto seria líder de
uma guerrilha urbana que eclodiria no estado. Para isso solicitou armas e dinheiro a
Marighela mas não obteve resposta, pois no meio tempo o líder terrorista foi
morto.66

Frei Betto afirma que a iniciativa dos jornais de potencializar sua importância era
resultado de um esforço das autoridades gaúchas:

63
SECRETARIO fala no RGS. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.755, 8 de nov. de 1969. p. 9.
Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3471&keyword=Beto%2Cfrei&anchor=5172450&origem=busca
&pd=70e207d65352e61d1d34f31c85e8257a>. Acesso em: 25 de set. de 2018.
DOMINICANO terrorista foi preso no Rio Grande do Sul. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.758,
11 de nov. de 1969. p.5. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3474&keyword=Beto%2CFrei&anchor=5172576&origem=busc
a&pd=abc19a93bfaa2c9facdcd60b2136b673>. Acesso em: 14 de set. de 2018.
POLÍCIA diz que frade ajudava subversivos. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 184, 8 de nov. de
1969. 1º Caderno, p.13. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691108&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 3 de set. de 2018.
64
POLÍCIA gaúcha vai soltar 3 padres do grupo de frei Beto. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N.
191, 19 de nov. de 1969. 1º Caderno, p.13. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691119&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 10 de set. de 2018.
65
POLÍCIA gaúcha afirma que frei Beto pediu até armas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 188,
13 de nov. de 1969. 1º Caderno, p.16. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691113&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 7 de set. de 2018.
APREENDIDAS armas no RGS. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.765, 18 de nov. de 1969. p. 5.
Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3481&keyword=Beto&anchor=5172846&origem=busca&pd=17
d2e53f4817916b2c83e7f46bd2b0f3>. Acesso em: 21 de set. de 2018.
66
“FREI” ajudava terroristas a fugir. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 90, n. 29.019, 13 de nov. de 1969. p.
7. Disponível em: <https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19691113-29019-nac-0007-999-7-
not/busca/Frei+Beto>. Acesso em: 1 de nov. de 2018.
33

Enfim, a repressão do Rio Grande do Sul atribuía-me uma importância muito


especial. Mais tarde eu compreenderia que, assim, ela se esforçava por recuperar o
prestígio frente ao SNI. Quando mais ampliadas as dimensões do peixe, maior a
impressão de uma pesca excepcional.67

Ainda que se discuta se a imprecisão das notícias seria produto de um descuido em


checar os dados e ouvir outros depoimentos que pudessem confrontar as informações oficiais
ou de uma deliberada campanha difamatória, o que se deve observar como dado relevante é o
esforço da imprensa para que o caso dos dominicanos fosse visto pela opinião pública como
uma eventualidade que, por sorte, ensejou o questionamento da legitimidade das mudanças
pelas quais passava a Igreja Católica e, até mesmo, que as autoridades pudessem exigir um
posicionamento mais austero da instituição em relação aos “abusos” de sua ala mais
progressista.
A prisão, tortura e condenação certa dos frades dominicanos envolvidos com a ALN
não bastariam para a ditadura militar brasileira. Era necessário que esse caso específico
ensejasse uma censura formal dos religiosos; para que assim, por consequência, também se
condenasse a onda progressista que desde o fim dos anos 1950 atravessava a Igreja Católica.
Esse desejo foi noticiado pelo Jornal do Brasil na sua edição do dia 07 de novembro de 1969:

No Rio, autoridades militares aguardam, para qualquer momento, um


pronunciamento de autoridade da Igreja Brasileira condenando formalmente o
envolvimento de religiosos em atividades subversivas, agora que se acham de posse
de provas da participação de padres dominicanos paulistas nas ações do grupo de
Carlos Marighela. Como se trata de “uma oportunidade feliz”, alguns funcionários
de órgãos de informações admitiam, ontem, que um dossiê contendo as provas que
atestam a participação dos dominicanos nas atividades extremistas será levado ao
conhecimento das principais autoridades eclesiásticas. [...] Uma alta patente bem
situada nos serviços de informações admitia que D. Agnelo Rossi, presidente da
conferencia nacional dos bispos do Brasil (e que está para chegar de Roma) venha a
manifestar a formal condenação da Igreja ao envolvimento de religiosos paulistas
nas ações de terror, sabotagens e assaltos a bancos na região centro-sul.
Acreditam as autoridades dos serviços de informações que D. Agnelo Rossi ou
qualquer outra figura de destaque da Igreja só venha a fazer qualquer manifestação
depois de se inteirar das provas da participação dos religiosos. Razão por que se
pretende entregar um volumoso documento atestando os fatos.
As autoridades pretendem aproveitar a oportunidade para não só destacar a
participação dos padres dominicanos na ofensiva desencadeada pelo grupo de Carlos
Marighela como também relacionar diversos sacerdotes que, em vários pontos do
país, acham-se diretamente envolvidos com elementos extremistas.
Todas as facilidades deverão ser dadas à missão que D. Aloísio Lorscheider,
secretário geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, desenvolva para
apurar a participação de dominicanos nos atos extremistas.
Também no Rio, as autoridades esperam colocar à disposição de religiosos
credenciados da hierarquia da Igreja Católica todas as informações que lhes forem

67
BETTO, 1982, p. 95.
34

solicitadas. Segundo informações transmitidas por fontes de alta categoria nos


serviços secretos militares, o desbaratamento dos núcleos subversivos que atuavam
no Rio e, sobretudo, em São Paulo, “atingindo o comando do movimento, a própria
cabeça”. Incluindo a liquidação de um dos principais chefes - Marighela – levou o
pânico e a desorganização às bases ou aparelhos.68

A utilização da curiosa expressão “oportunidade feliz” revela que o anseio de se exigir


da Igreja uma condenação formal do envolvimento de seus membros com a “subversão” já
existia e era discutido muito antes dos dominicanos de São Paulo caírem nas mãos do
delegado Fleury. Isso também explicaria a ênfase que os comunicados oficiais e as notícias
subsequentes à morte de Marighella davam a uma suposta “traição” dos religiosos.
Ou seja, se os frades já mereciam a condenação da justiça e da Igreja por congregarem
com homens tidos como terroristas que assaltavam, sequestravam e assassinavam, maior
ainda deveria ser sua punição e humilhação pública por somarem a esses crimes a degradação
moral que representava o crime de Judas, a traição.
Durante quase todo o mês de novembro os órgãos de imprensa estiveram atentos aos
mais sutis movimentos de alguns bispos brasileiros a fim de colherem um pronunciamento
que pudesse simbolizar uma condenação formal. Entre os mais citados estavam: o presidente
da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) dom Agnelo Rossi, dom Aloisio
Lorscheider e o arcebispo de Porto Alegre, dom Vicente Scherer.
Após vários dias de especulação, Dom Agnelo Rossi se pronunciou, mas não satisfez
o desejo das autoridades. Apenas afirmou que não se considerava inteirado de todos os fatos e
provas para que pudesse emitir um julgamento. No entanto, salientava que não solicitaria
nenhum tipo de privilégio para os presos por se tratarem de religiosos, apenas o resguardo de
seus direitos humanos.69
O pronunciamento desejado pelos jornais aconteceu apenas no dia 17 de novembro,
comunicado pela rádio Difusora de Porto Alegre, durante o programa de dom Vicente
Scherer, “A voz do pastor”. No dia seguinte à transmissão, as palavras do bispo estampavam
grandes matérias. No Jornal do Brasil se proclamava: “CARDEAL AFIRMA QUE É

68
AUTORIDADES esperam que Igreja condene frades. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 183, 7
de nov. de 1969. 1º Caderno, p.13. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691107&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 2 de set. de 2018.
69
D. AGNELO pronuncia-se contra o terrorismo. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.758, 11 de nov.
de 1969. p.5. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3474&keyword=Beto%2CFrei&anchor=5172576&origem=busc
a&pd=abc19a93bfaa2c9facdcd60b2136b673>. Acesso em: 14 de set. de 2018.
35

DIFICIL FREI BETO PROVAR INOCÊNCIA”70; em O Estado de São Paulo o título era:
“SCHERER VERBERA A CUMPLICIDADE”71.
Segundo o Jornal do Brasil do dia 18 de novembro de 1969:

O cardeal dom Vicente Scherer afirmou ontem que será difícil para frei Carlos
Alberto Cristo –frei Beto- “desfazer as provas acumuladas contra ele e mostrar sua
inocência” A voz do pastor, programa radiofônico semanal do arcebispado, foi
dedicado à prisão de religiosos e suas ligações com grupos subversivos.
Dom Vicente Scherer classificou como “baixeza” a atitude dos dominicanos
paulistas que “depois de colaborarem com criminosos os entregaram à prisão e à
morte” (Carlos Marighela), porque “quem participa de esquema comum com os
terroristas torna-se conivente com tais crimes e participa de sua responsabilidade”.
[...]
Em sua palestra, sob o título o veredito da justiça, o cardeal-arcebispo de Porto
Alegre negou-se a proferir um julgamento sobre os fatos que envolveram sacerdotes
e seminaristas, porque “diversos aspectos parecem claros e outros se apresentam
ainda confusos”. [...]
O arcebispo de Porto Alegre condenou todos os processos de violência e terrorismo
para a solução dos conflitos e questões políticas e sociais, porque “nesse estágio de
civilização penosamente alcançado não podemos regredir para a lei das selvas, que é
a negação de toda lei, é regime de tirania e opressão do mais forte, do mais astuto,
do mais feroz, do mais maquiavélico, que explora e aniquila os mais débeis e
desprotegidos”.
- só por total inversão de critérios e valores tentaria alguém justificar colaboração
em qualquer esfera com terroristas que assaltam, roubam e matam
desapiedadamente. Quem lhes desse cobertura ou auxílio se tornaria co-responsável
em suas culpas e delitos. Não se entende como se defenderia a singular declaração
de que os dominicanos poder ser condenados pela lei civil, mas não infringiram
nenhum dispositivo da lei canônica. [...]
O cardeal finalizou seu programa radiofônico dizendo que “o terrorismo e os
métodos da violência não tem a ver com esforções infatigáveis e urgentes pelo
estabelecimento da justiça social. Pela implantação de uma organização jurídica,
econômica e social, em que todos se abram caminhos de acesso aos bens da
civilização”.
- quanto mais formal e enérgica nossa repulsa aos processos violentos, mais
decidido nosso apoio e nossa participação nas atividades em prol de uma ordem
social que, mais justa e humana, assegura paz, desenvolvimento e bem-estar –
conclui dom Vicente Scherer.72

Assim, as palavras do cardeal foram encaradas pelos órgãos de informação e repressão


como mais um fator a legitimar suas operações que acossavam os membros da Igreja que
envolviam com a luta armada, ou qualquer outra atividade considerada “subversiva”.

70
CARDEAL afirma que é difícil frei Beto provar inocência. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N.
192, 18 de nov. de 1969. 1º Caderno, p.16. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691118&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 11 de set. de 2018.
71
SCHERER verbera a cumplicidade. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 90, n. 29.023, 18 de nov. de 1969.
p.52. Disponível em: <https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19691118-29023-nac-0052-999-52-
not/busca/Scherer>. Acesso em: 9 de nov. de 2018.
72
CARDEAL afirma que é difícil frei Beto provar inocência. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N.
192, 18 de nov. de 1969. 1º Caderno, p.16. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691118&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 11 de set. de 2018.
36

1.2 Correspondência do cárcere: a memória sob um olhar prospectivo

O projeto memorialístico de frei Betto foi delineado, justamente, nessa conjuntura de


contestação de sua cultura política e religiosa. Independentemente de sua intencionalidade,
suas cartas escritas na prisão constituem os primeiros documentos que registram como ele
lidou com o que se dizia naquele momento sobre os dominicanos presos e como a memória se
tornou, aos poucos, uma ferramenta para enfrentar o futuro. Dessa forma, os livros que,
posteriormente, transformaram esse esboço em realidade são, certamente, a marca mais
perene de sua trajetória intelectual, o que atesta a sua importância.
O ativismo político e religioso de frei Betto renderam-lhe prestígio e admiração em
diversos círculos sociais desde muito jovem, quando ainda era um dos líderes da Juventude
Estudantil Católica (JEC), no início da década de 1960. Posteriormente, o dominicano se
dedicou a diversas atividades: jornalista, assistente de teatro,73 educador, assistente de
movimentos sociais, principalmente nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e, até
mesmo, assessor especial da Presidência da República durante o primeiro mandato de Luiz
Inácio Lula da Silva (2002-2006).74 Também não se pode deixar de mencionar sua
importantíssima intermediação no diálogo entre a Igreja Católica cubana e o governo da ilha,
além de seu trabalho junto às comunidades religiosas da Nicarágua após a revolução
sandinista (1978).75 Ainda assim, é como uma das mais importantes e persistentes vozes da
memória sobre a ditadura militar brasileira que o dominicano é reconhecido.
Uma análise rigorosa dos livros de frei Betto dedicados à memória do período (1964-
1985) revela uma série de conteúdos que ao serem periodicamente reeditados estabelecem, em
conjunto, uma narrativa sobre o que teria sido o regime ditatorial e sobre o sofrimento
daqueles que decidiram combatê-lo. Ao comparar esses resultados (que serão abordados
adiante) com as cartas que ele redigiu enquanto esteve preso (1969-1973), percebe-se que elas
exerceram o papel de projeto introdutório para seus temas e versões. É importante ressaltar,
que essa constatação não implica afirmar que elas tenham sido conscientemente escolhidas
pelo dominicano para desempenharem essa função.
Comumente, algumas pessoas que se dedicam a corresponder-se por meio de cartas
têm o cuidado de preservar aquelas que recebem e, em alguns casos, até mesmo, mantêm

73
FREIRE; SYDOW, 2016, p. 45-83.
74
Ibid, p. 319-341.
75
Ibid, p. 235-254.
37

cópias daquelas que enviam. Assim, deve-se observar que, ao escreverem sobre os aspectos
mais banais do seu cotidiano ou discorrerem sobre temas complexos, elas estão estabelecendo
um pensamento prospectivo. Conscientemente ou não, os correspondentes que guardam seus
registros estão contribuindo para a construção de uma memória que, como nos casos em
questão, servem à compreensão de sua época em suas especificidades factuais e históricas.
Dessa forma, fica evidente que uma das possibilidades do trabalho de utilização de
missivas como fonte/objeto para a pesquisa histórica é a abordagem da sua relação com a
memória. As prováveis dificuldades em se enxergar o aspecto potencial desses registros
residem no fato de que, em alguns casos e diferentemente de outras fontes, eles podem
tangenciar o tema da memória não recordando o passado, mas vislumbrando o que se vai
rememorar no futuro.
Nas mais de 200 cartas que frei Betto escreveu para seus familiares e amigos ao longo
de quatro anos, algumas peculiaridades são evidentes e atestam a sua potencialidade como
objeto/fonte para a pesquisa histórica em função da maneira pela qual o autor estabelece uma
projeção para a memória que iria se construir. A primeira delas é a sua publicidade.
Embora frei Betto afirme recorrentemente que suas cartas não foram escritas com a
intenção de serem publicadas,76 existem indícios suficientes para se afirmar que ele tinha
consciência de que elas, de maneira nenhuma, eram privadas. O próprio autor, em algumas
delas, recomenda a seus interlocutores que as mostrem a terceiros.77 Entretanto, são dois os
fatos que atestam a publicidade de sua correspondência.
O primeiro é o fato de terem sido remetidas do interior de presídios no período em que
se vivia sob um regime autoritário. Em diversas missivas, frei Betto registra ter consciência de
que elas eram lidas e censuradas pelos diretores dessas instituições, podendo ser, até mesmo,
encaminhadas para os órgãos governamentais de segurança e informação.
Outro indício de que o autor tinha consciência de que não existia qualquer garantia de
que a correspondência dos presos, sobretudo dos que tinham envolvimentos políticos,
chegaria às mãos de seus familiares e amigos após a censura do presídio é o caráter
longamente dissertativo acerca dos temas discutidos em suas cartas sem que fizesse
questionamentos aos seus correspondentes. Portanto, não valia a pena investir na construção
de diálogos assíduos. Até porque, também não se sabia se receberia a resposta.

76
Em sua correspondência, frei Betto afirma: “não escrevi essas cartas no intuito de publicá-las nem cuidei de tirar
cópia”. Cf. BETTO, 2008, p.12.
77
Ibid, p. 125.
38

Até semana passada, em sete meses que estamos aqui, era o diretor que censurava
nossas cartas, e podíamos remetê-las duas vezes por semana. Agora transferiu esse
encargo para o serviço de censura da penitenciaria, que cuida da correspondência de
todos os presos. Isso significa algumas restrições. A partir do dia 22 só poderemos
enviar cartas uma vez por semana, e os envelopes de quem nos escreve devem ser
devolvidos para o arquivo. Antes assinávamos recibo num livro e os envelopes
ficavam em nosso poder. A correspondência que nos chega do exterior é enviada a
S. Paulo, a 700 Km daqui, para ser traduzida. Uma carta que recebi das monjas
contemplativas de Blagnac, na França, deu entrada aqui em 25 de novembro; até
agora não chegou as minhas mãos.78

O segundo e mais importante é o fato de suas cartas terem sido publicadas enquanto o
frade ainda se encontrava preso. Aquelas que haviam sido redigidas nos dois primeiros anos
de cárcere foram lançadas na Itália como livro sob o título Dai Soterranei Della Storia, em
dezembro de 1971. Dessa forma, a partir desta data, o dominicano passa a escrever consciente
de que, assim como o primeiro, o segundo conjunto de suas missivas seria publicado.79
Não bastasse saber que suas reflexões não ficariam restritas aos seus pais, irmãos e
amigos, frei Betto ainda tem mostras de que elas poderiam alcançar as mais importantes
autoridades da Igreja e da sociedade. Assim, através delas, ele poderia defender sua visão de
mundo e justificar suas opções político-religiosas. Isso se deu, especialmente, quando o
dominicano foi informado de que o papa havia lido suas cartas:

“Não há dúvida de que Paulo VI está muito atento ao que vocês dizem. Há três
semanas fui chamado a Secretaria de Estado. O adjunto mostrou-me duas folhas
escritas pelo próprio papa: suas reflexões sobre as cartas do Betto. Ele as leu para
mim. Muito edificante; apesar de todo seu trabalho, ele se debruçou longamente
sobre estes textos”. [...]
Isso não chega a me envaidecer, embora me sinta feliz por ver que essa provação
não é inútil. Imagino o papa lendo as cartas, sinto a impressão de um diálogo íntimo
com ele. Vivendo na prisão, tenho certeza de um diálogo íntimo com a Igreja. 80

Assim, tendo provas de sua publicidade e de seu alcance, frei Betto faz das suas cartas
um manifesto por meio do qual defende as ideias que estruturariam sua obra memorialística.
Observa-se que ao escrever para a família e amigos, o autor dirige-se a três grupos
implicitamente: a Igreja, a sociedade e a esquerda.
Curiosamente, apesar de não desenvolver uma reflexão explícita sobre a memória,
através do pensamento prospectivo apresentado em suas cartas da prisão, frei Betto
empreende sua tentativa inaugural de sistematizar um discurso sobre a experiência traumática

78
Ibid, p. 205.
79
Ibid, p. 115.
80
Ibid, p. 150.
39

que vivenciava e, assim, preparar o caminho para um futuro trabalho de enquadramento nos
moldes do roteiro identificado por Michael Pollak81.
Ao tornar públicas as cartas que escrevia relatando o dia a dia na prisão, frei Betto se
apresenta como candidato a porta-voz da narrativa que desejava que se consolidasse
(selecionando quais temas relativos à situação dos dominicanos, entre tantos possíveis, seriam
constantemente abordados). Assim como, através do registro e quantificação constante dos
cárceres pelos quais passou, ele sugere que, na posteridade, esses espaços poderiam cumprir a
função de “lugares da memória”. Por fim, a inclinação que àquela altura o dominicano já
demonstrava para se enveredar pela escrita reminiscente denota sua crença de que no futuro
caberia a ela cumprir a tarefa de produzir novas representações dessa versão do passado.
Ainda que a escrita reminiscente do dominicano não possa ser considerada
propriamente a realização do trabalho da memória descrito pelo sociólogo austríaco, a adoção
por parte do autor de alguns dos procedimentos delineados por Pollak potencializa a
legitimidade da mobilização de suas cartas como fontes para o estudo e a compreensão do
processo de edificação da memória especialmente voltada à ditadura militar no Brasil.
Ao discorrer sobre diversos temas de maneira quase despretensiosa, frei Betto revela
um profundo desconforto com o modo como a participação dos dominicanos presos na luta
armada era tratada na contemporaneidade por jornais e formadores de opinião, manifestando
uma preocupação com o que provavelmente seria a sua representação no futuro. Diante dessa
“ameaça”, o autor faz do conjunto de suas cartas uma exortação para que aqueles
acontecimentos se tornassem, com urgência, objetos de um “trabalho da memória”.
Independentemente de ter consciência quanto a esse processo, ele produz uma seleção de

81
Crítico à conotação exclusivamente positiva atribuída à “memória coletiva” pelo sociólogo francês Maurice
Halbwachs em seu livro homônimo (HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução Beatriz Sidou.
São Paulo: Centauro, 2003.), Pollak propõe a substituição dessa noção pela de “memória enquadrada”, a qual
considerava mais apropriada por explicitar, também, suas consequências negativas, como a condenação de
alguns grupos ao silêncio e de muitos fatos ao esquecimento.
Com essa nova nomenclatura, Pollak pretendeu identificar e esquadrinhar o processo de engendramento de uma
versão dominante sobre o passado. Entretanto, o autor faz questão de salientar que isso não se dá de maneira
natural. Seria necessário um deliberado e árduo trabalho de construção, que exige a realização de procedimentos
determinados e a utilização de alguns instrumentos específicos, para que essa memória cumpra satisfatoriamente
as funções políticas desejadas. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio
de Janeiro: vol. 2, n.3, 1989. p. 9.
O sociólogo austríaco afirma que a memória dominante é um produto do trabalho de enquadramento. Este se dá
através de três procedimentos: Selecionar o que deve ser lembrado, Reinterpretar constantemente o passado à luz
do presente e Reforçar pontos de identificação do grupo para que, assim, mantenham a sua aderência social. Ibid,
p. 9-11.
Para a realização dos procedimentos, ou seja, selecionar, reinterpretar e reforçar seria necessário a utilização de
alguns instrumentos. Pollack elenca entre eles, os historiadores oficiais (vozes da memória), os espaços da
memória (como monumentos, bibliotecas etc) e, por fim, as produções culturais (representantes da memória).
Ibid, p. 10.
40

temas e estratégias que buscam legitimar as opções dos confrades e reafirmar a identidade do
grupo, marcando sua posição na disputa pela construção da versão dominante sobre os fatos.
Percebendo que ganhava força, principalmente na imprensa, a imagem dos religiosos como
hereges para a Igreja, terroristas para a sociedade e traidores para a esquerda, o escritor
dirige-se a cada um desses grupos e procura, estrategicamente, afirmar suas posições.

1.3 A caserna e a sacristia:

Frei Betto sabia que era enorme a desconfiança de parte da Igreja em relação aos
dominicanos e severas as acusações de sua ala mais conservadora, que fazia coro àquelas
promovidas pela imprensa diária. Dessa forma, em suas missivas, ele procura rebater os
questionamentos sobre a legitimidade de sua condição de religioso e, até mesmo, de cristão,
além de afirmar sua opção radical pelos mais pobres.

Ontem dom Agnelo Rossi deu entrevista ao Estadão, na qual afirma que a nossa
atitude nada teve a ver com o cristianismo. Disse que não fomos presos nem
confessando, nem comungando... como se o cristianismo fosse apenas confessar e
comungar – coisa, aliás, que Jesus não fez, e ainda acrescentou que “nem todo
aquele que diz ‘senhor, senhor’ entrará no reino dos céus”. 82

Assim, em muitas cartas o autor transfere o foco da preocupação com a memória que
se teria dos dominicanos para contrapor as atitudes destes às consequências de uma postura
omissa, isto é, acerca das atitudes da instituição diante das arbitrariedades do regime. Ou seja,
ele salienta que em um futuro próximo, a passividade dos bispos perante as prisões, mortes,
torturas e desaparecimentos poderia ser alvo de muitos mais questionamentos do que as ações
de jovens religiosos que colaboraram com uma organização de luta armada.

Quando tudo isso for contado no futuro, uma pergunta ficará: e a Igreja, não disse
nada? Digo isso não para que venham em nossa defesa, mas porque é sua obrigação
defender os direitos da pessoa humana, promover os pobres, combater as (riscado
pela censura do presídio). Esta pergunta paira sobre a Alemanha, onde 6 milhões de
judeus foram dizimados sem que “ninguém visse”.83

Segundo Pollak, “as preocupações do momento constituem um elemento de


estruturação da memória.”84 Ou seja, toda essa seletividade para definir aquilo que deveria
permanecer registrado ou o que seria melhor esquecer busca justamente atender à demanda
82
BETTO, 2008, p. 50.
83
Ibid, p. 52.
84
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: vol. 5, n.10, 1992. p.
204.
41

“do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa.”85 Essa característica é
reforçada por Pierre Nora ao afirmar que ela, por ser viva e dinâmica:

está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento,


inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e
manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações.86

Para enfrentar as acusações da ala conservadora da Igreja e dos jornais que afirmavam
que eles não eram verdadeiramente cristãos, frei Betto adota uma segunda estratégia de
defesa: a desqualificação da denúncia. O que, para ele, distinguia os dominicanos daqueles
católicos que os acusavam não eram as suas ações práticas, mas seus pressupostos teóricos.
Assim, as denúncias das quais eram alvo não passavam de uma profunda incompatibilidade
de princípios que gerava uma também profunda incompreensão.
Buscando legitimar as opções dos dominicanos de se envolverem diretamente com a
política nacional, chegando a apoiar a violência revolucionária, frei Betto procura atribui-las a
uma nova concepção sobre qual deveria ser o papel da Igreja na sociedade e sobre a
importância da promoção da justiça social na história da salvação.
Em suas cartas, o dominicano defende a tese de que a Igreja Católica passava por um
processo de transformação que, embora lento, já dava seus frutos e era irreversível. Desse
modo, ele filia a visão que professa sobre as responsabilidades da instituição com a promoção
da justiça e o processo soteriológico à essa nova visão do cristianismo que teria surgido com o
Concílio Vaticano II, em 1962.
A renovação pela qual a Igreja passava não deixava, em sua perspectiva, de gerar o
embate entre visões distintas do cristianismo. Para o autor, aquela, anterior ao concílio e
marcada pelo triunfalismo clerical, seria incapaz de compreender esse novo entendimento do
papel da instituição na sociedade, ao qual os dominicanos se perfilhavam.
Assim, a demonstração da existência desse embate deixaria claro o quanto a
incompreensão e a ignorância seriam as verdadeiras razões das acusações explícitas ou
veladas de que os dominicanos presos não passavam de comunistas que se infiltraram na
Igreja para arregimentar os quadros religiosos. Para o autor, a gravidade dessas denúncias era
reforçada pelos jornais e agentes da ditadura que não cessavam de questionar se as atitudes do
grupo permitiriam que ainda fossem considerados cristãos e, principalmente, membros da
Igreja Católica.

85
Ibid, p. 204.
86
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: PUC-SP. n.
10, 1993. p. 9.
42

Em carta à família, o autor afirma:

De fato, havia uma interpretação ideológica do cristianismo feita pelos poderosos.


E a ordem social, que tem abusos na sua própria essência, encontrou nessa
interpretação a sua justificativa. [...] um bispo como dom Sigaud pode afirmar, sem
risco de ser considerado herético, que a ordem social, dividida em ricos e pobres,
provem da vontade divina que não quer todos os homens iguais...
Agora, na época pós-conciliar, estamos em fase de reformização (volta às fontes).
Vemos claramente que o cristianismo não se identifica com nenhuma ordem social;
o cristianismo desafia e contesta todas elas. [...]. Vejo com otimismo a renovação da
Igreja.87

A visão religiosa de jovens como frei Betto e seus confrades centrada nas ideias de
que a justiça social é a antecipação do estabelecimento do Reino de Deus e de que a história
humana é parte fundamental do processo de salvação – negando, assim, a proeminência da
alma em relação ao corpo –88 foi, sem dúvida, profundamente influenciada por esse
movimento de renovação da Igreja e reconciliação com o presente. Por isso, seu envolvimento
com as esquerdas e a luta armada foi visto pelos setores conservadores, civis, militares e
eclesiásticos, como um sinal claro de que as mudanças promovidas pela Igreja no século XX
eram um equívoco temerário para ela e para a sociedade como um todo, pois, sem perceber,
estaria oferecendo quadros e legitimidade para o “comunista internacional” subverter as
hierarquias naturais e a ordem social.
Analisando com cuidado as palavras introdutórias das encíclicas sociais da Igreja,
partindo da Rerum Novarum até a Populorum Progressio, é evidente que essas mudanças nos
ritos, no léxico e nos temas do universo católico nasceram da preocupação dos pontífices com
a percepção de que as estruturas tradicionais já não atendiam às demandas de um presente
que, conforme se passava o tempo, com mais velocidade se transformariam o que,
consequentemente, tornava o povir mais ameaçador. Dessa forma, para os papas, o passado e
o futuro se tencionavam de tal maneira, no final do século XIX e primeira metade do XX, que

87
BETTO, 2008, p. 44.
88
Ibid, p. 90.
43

este fenômeno representava um desafio para a instituição, que urgentemente precisava


oferecer uma resposta. 89

89
Convencionalmente, tomou-se a publicação da encíclica Rerum Novarum, em 1891, pelo papa Leão XIII (1878-
1903), como ato inaugural de uma nova postura da Igreja Católica perante o universo temporal. O documento é
enfático na condenação da luta de classes, de certas práticas liberais e em defender o caráter natural do direito à
propriedade privada. Interpretado como uma tentativa da Igreja, por fim, romper o distanciamento que desde o
século XV havia se estabelecido entre ela e a sociedade civil, e reconciliar-se, dessa maneira, com a
modernidade, o documento, a despeito da inovação de sua temática, ainda conserva a concepção de que, mesmo
revestida de toda a legitimidade, apenas contingencialmente a instituição deveria pronunciar-se sobre os
conflitos na esfera temporal. IGREJA CATÓLICA. Papa (1958-1963: Leão XIII). Carta Encíclica Rerum
Novarum. In. SANCTIS, Frei Antônio de. Encíclicas e documentos sociais: da “Rerum Novarum” a
“Octogesima Adveniens”. São Paulo: LTR, 1972. p. 13-14. Segundo Leão XIII, não havia dúvidas de que a
Igreja deveria se importar com a vida material de seus seguidores. Entretanto, como a raiz de todos os conflitos
humanos era o abandono de ensinamento evangélico (Ibid, p. 28) ela continuaria a centrar seus esforços na
propagação da doutrina cristã. Ou seja, quando necessário, ela abordaria os problemas temporais para anunciar o
Cristo como sua única solução e denunciar as doutrinas “errôneas e falazes” (Ibid, p. 13): “É com toda confiança
que Nós abordamos êste assunto, e em tôda a plenitude do Nosso direito; porque a questão de que se trata é de tal
natureza, que, a não se apelar a religião e para a Igreja, é impossível encontrar-lhe uma solução eficaz. [...]
certamente uma questão dessa gravidade demanda ainda de outros a sua parte de atividade e de esforços: isto é,
dos governantes, dos senhores e dos ricos, e dos próprios operários, de cuja sorte se trata. Mas, o que Nós
afirmamos sem hesitação, é a inanidade da sua ação fora da Igreja. É a Igreja, efetivamente, que haure no
Evangelho doutrinas capazes ou de pôr termo ao conflito ou ao menos de o suavizar, expurgando-o de tudo o que
êle tenha de severo e áspero [...].” Ibid, p. 20. Entretanto, a Igreja não se contenta com indicar o caminho que
leva à salvação; ela conduz a esta e aplica por sua própria mão ao mal o conveniente remédio. [...] Nem se pense
que a Igreja se deixou absorver de tal modo pelo cuidado das almas, que põe de parte o que se relaciona com a
vida terrestre e mortal. [...] os costumes cristãos desde que entram em ação, exercem naturalmente sôbre a
prosperidade temporal a sua parte de benéfica influência. Ibid, p. 27. Foi apenas em 1961, por meio da encíclica
Mater et Magistra, escrita pelo papa João XXIII, que de maneira mais incisiva a Igreja afirmou como sua missão
– dada por Jesus Cristo – ser mãe e mestra das nações para que os homens encontrem salvação plena. Ou seja,
deixar patente que comprometer-se com a promoção do homem materialmente, assim como já se fazia em
relação à vida espiritual, era uma obrigação evangélica e não uma benevolência. Retomando os preceitos da
encíclica leonina de anunciar os ensinamentos evangélicos como o único caminho para a salvação da alma, e
enunciar as injustiças e falsas doutrinas sociais como empecilhos para que o homem viva de maneira
completamente digna, João XXIII aspirou transformar a contingência em atitude sistemática: “A doutrina de
Cristo, com efeito, une, por assim dizer, a terra ao céu, pois assume o homem na sua totalidade, alma e corpo,
intelecto e vontade, ao mesmo tempo em que o impele a elevar a mente das mutáveis condições de vida presente
às alturas da vida eterna, onde lhe será dado gozar um dia de uma felicidade e de uma paz que não terá fim.”
IGREJA CATÓLICA. Papa (1958-1963: João XXIII). Carta Encíclica Mater et Magistra. In. SANCTIS,
1972, p. 225. O papa justificava a exortação para que os católicos agissem na esfera temporal para promover a
justiça social através da afirmação atribuída à Jesus de que ele era “o caminho, a verdade e a vida”; ou seja, de
que ao se referir à salvação da alma, ele não deixa de considerar as necessidades do corpo:
“Essa a razão pela qual, ainda que a Igreja caiba santificar as almas e faze-las participantes dos bens eternos. Ela
se preocupa, entretanto com as necessidades cotidianas dos homens, não só as que dizem respeito à subsistência
e às condições de vida, como as que se referem ao seu bem-estar e à sua prosperidade, sob todas as formas que
possam assumir com o progresso dos tempos.” Ibid, p. 225. Portanto, a Igreja, tendo como essência de sua
doutrina a tomada do homem como “o fundamento, a causa e o fim de todas as instituições sociais” (Ibid, p.
282), deveria empenhar-se para que se somasse a salvação da alma à dignidade do corpo para que, assim, o ser
humano encontrasse a sua integralidade. O convite ao abandono da exclusividade do espírito, característica do
período tridentino, em favor da promoção do homem em sua totalidade, como queria João XXIII, foi retomado
pelo papa Paulo VI na encíclica Populorum Progressio, seis anos após a publicação da Mater et Magistra. O
pontífice afirma a necessidade de que a Igreja assuma uma nova postura perante o mundo moderno, mostrando-
se atenta aos “sinais dos tempos”: “Fundada para estabelecer já neste mundo o reino do céu e não para conquistar
um poder terrestre, a Igreja afirma claramente que os dois domínios são distintos, como são soberanos os dois
poderes, eclesiástico e civil, cada um na sua ordem. Porém, vivendo na história, deve ‘estar atenta aos sinais dos
tempos e interpretá-los à luz do Evangelho’. Comungando nas melhores aspirações dos homens e sofrendo de os
ver insatisfeitos, deseja ajudá-los a alcançar o pleno desenvolvimento e por isso, propõe-lhes o que possui como
próprio: uma visão global do homem e da humanidade”. IGREJA CATÓLICA. Papa (1963-1978: Paulo VI).
Carta Encíclica Populorum Progressio. In. SANCTIS, 1972, p. 397.
44

Convocado em janeiro de 1959 por João XXIII e encerrado em dezembro de 1965


pelo então papa Paulo VI90, o Concílio Vaticano II foi, sem dúvida, o ápice desse esforço da
Igreja Católica para resolver seu mal-estar com o tempo.91 O sínodo buscou promover uma
modernização da instituição e persuadir seu corpo hierárquico sobre a necessidade,
imprescindível na contemporaneidade, de estar atento às peculiaridades da realidade histórico-
social. Ele também procurou reafirmar a concepção de que a salvação do homem deve ser
integral, ou seja, não se deve privilegiar a elevação da alma e negligenciar os imperativos da
sobrevivência física; ambas devem ser almejadas em equilíbrio. Esse é um dos aspectos que
mais claramente influenciaram o ideário que moveu frei Betto e seus confrades para o
engajamento político-social.
Através da constituição pastoral Gaudium et Spes, promulgada em 7 de dezembro de
1965, quase quatro anos após sua abertura, o Concílio Vaticano II afirmou:

Nenhuma ambição terrena move a Igreja, mas unicamente esse objetivo: continuar
sob a direção do espírito paraclito, a obra de cristo, que veio ao mundo para dar
testemunho da verdade, não para jugar mas para salvar, não para ser servido mas
para servir. Para levar a cabo essa missão, é dever da Igreja investigar a todo o
momento os sinais dos tempos, e interpretá-los a luz do Evangelho; para que assim
possa responder, de modo adaptado a cada geração, as eternas perguntas dos homens
acêrca do sentido da vida presente e futura, e da relação entre ambas. É, por isso,
necessário conhecer e compreender o mundo em que vivemos, as suas esperanças e
aspirações, e o seu caráter tantas vezes dramático.92

A recepção do Vaticano II na América Latina não poderia ser mais entusiástica.93 O


concílio ensejou o desenvolvimento de uma orientação pastoral centrada no laicato que
incentivava o cultivo de uma visão crítica quanto à realidade social do continente, marcada
pela dependência econômica e pela extrema miséria. Especificamente no Brasil, o Concílio
fortificou o esprit de corp do episcopado e legitimou as práticas que sua ala mais progressista
desenvolvia desde a década de 1950. Segundo, Beozzo, o sínodo:

Propiciou, a um episcopado brasileiro atravessado por diversidade de origens e


pertenças (brasileiros e estrangeiros, religiosos e seculares), por diversidade de
situações (áreas missionarias das prelazias de recente criação e áreas do antigo
catolicismo colonial), a oportunidade de esboçar uma identidade própria e de
articular-se em torno de um plano de pastoral de conjunto, o PPC, que nem mesmo a
criação da CNBB, em 1952, fora capaz de fomentar, devido às distâncias entre as

90
João XXIII faleceu em 3 de junho de 1963, em meio ao Concílio. Após dezoito dias, seu sucessor, Paulo VI, foi
eleito o novo pontífice.
91
BEOZZO, 2001, p. 27.
92
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição pastoral Gaudium et Spes In. SANCTIS, 1972, p. 299.
93
BEOZZO, 2001, p. 391.
45

dioceses, o isolamento dos seus bispos e a ausência de mecanismos de intercâmbio e


articulação.94

O representante mais emblemático da recepção do Concílio Vaticano II no continente


americano foi o documento final do segundo Encontro do (CELAM), que ocorreu na cidade
colombiana de Medellín, em 1968 – seu caráter inovador foi tão empolgante para frei Betto
que ele chega até mesmo a definir seu evento de publicação como “a versão latino-americana
do Concílio” que faria com que a Igreja, na América Latina não fosse mais “o ópio do povo e
o ócio da burguesia”95 –. Nessa manifestação, os bispos se dispõem a interpretar o momento
histórico para estabelecer os caminhos de uma ação pastoral capaz de promover a dignidade
do “homem deste continente, que vive um momento decisivo de seu processo histórico.”96
Assim, logo na introdução se reafirma explicitamente a existência de uma nova compreensão
do papel da Igreja na sociedade.
Essa mudança de orientação pastoral empreendida pela Igreja, especialmente no
continente americano, curiosamente foi vista, tanto pela ala progressista no Brasil, da qual frei
Betto fazia parte, quanto pelos conservadores como um fator de legitimação do engajamento
político-social. Entretanto, a convergência não se estende para além dessa constatação. Para
os primeiros, essa era a confirmação de que a justiça social era uma etapa inescapável no
caminho da salvação. Já para os setores representados pelos militares no poder, essa
transformação sinalizava a ingenuidade do episcopado latino ante as artimanhas de cooptação
do movimento comunista. O envolvimento de católicos na luta armada seria a prova de que,
ao invés de promover a dignidade humana, as inovações da instituição, involuntariamente,
colaboravam com a subversão.
Reconhecendo que ao longo da história seus membros clérigos ou leigos, por fraqueza
humana, não assistiram devidamente ao homem do continente para promover sua dignidade
integral, o episcopado latino-americano afirmava que “acatando o juízo da história sobre estas
luzes e sombras, quer assumir inteiramente a responsabilidade histórica que recai sobre ela no
presente.”97
Os bispos exortavam a Igreja a participar das transformações sociais, por meio da
politização e da consciência religiosa98, o que significava ir muito além do limite que

94
Ibid, p. 32.
95
BETTO, 1982, p.61.
96
CELAM. Conclusões de Medellín. 5ª edição. São Paulo: Edições Paulinas, 1984. p. 5.
97
Ibid, loc. Cit.
98
SERBIN, 2008, p. 164.
46

historicamente ela já havia alcançado. Afirmavam ser aquele o momento de agir para
promover o desenvolvimento humano:

Não basta, certamente, refletir, conseguir mais clarividência e falar. É necessário


agir. A hora atual não deixou de ser a hora da “palavra”, mas já se tornou, com
dramática urgência, a hora da ação 58. Desejamos afirmar que é indispensável a
formação da consciência social e a percepção realista dos problemas das
comunidades e das estruturas sociais. Devemos despertar a consciência social e
hábitos comunitários em todos os meios [...].99

Ao mesmo tempo em que se reafirmava o compromisso da Igreja Latino-americana


com os preceitos do Concílio Vaticano II, o documento final da conferência enfatizou em seu
discurso teológico a “opção preferencial pelos pobres”, tomando como eixo de orientação
pastoral, a junção entre a fé e a crítica à situação histórica na América: “nossa reflexão
orientou-se para a busca de formas de presença mais intensa e renovada da Igreja na atual
transformação da América Latina”:100

O mandato particular do Senhor, que prevê a evangelização dos pobres, deve levar-
nos a uma distribuição tal de esforços e de pessoal apostólico, que deve visar,
preferencialmente, os setores mais pobres e necessitados e os povos segregados por
uma causa ou outra, estimulando e acelerando as iniciativas e estudos que com esse
fim se realizem.101

Desse modo, fica evidente que a década 1960 trouxe consigo uma verdadeira
revolução para o mundo católico ocidental. As mudanças na concepção da Igreja sobre sua
missão no mundo provocaram uma transformação significativa, também, nos hábitos,
linguagens e preocupações de seus membros ordenados. A concomitância entre essa
“gestação” de um novo sacerdócio e o recrudescimento dos segmentos conservadores no
Brasil foi o processo histórico que colocou o clero progressista brasileiro em rota de colisão
com Doutrina de Segurança Nacional102 adotada pelos governos militares, após o golpe de
1964.
Apesar da veemência com que o dominicano defendia as causas que o levaram à
prisão, e de sua professada certeza quanto à nobreza delas, em sentido prático era necessário
deixar evidente para as alas conservadoras da Igreja, para a sociedade e, mais do que tudo,
para a posteridade, que os frades presos eram apoiados por importantes membros da
99
CELAM. op. cit., p. 5.
100
Ibid, p. 8.
101
Ibid, p. 146.
102
BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Orgs.). O Brasil Republicano: O Tempo da Ditadura. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003. p. 15-42.
47

hierarquia Católica. Isso fica claro ao se observar o registro de todos os bispos, padres e
membros de ordens religiosas que os visitaram na prisão. Aqueles que lá estiveram mais de
uma vez têm seus nomes repetidos por completo. Entre eles, se destacam os nomes de: Dom
Vicente Scherer103, Dom Agnelo Rossi104, Dom Umberto Mazzoni105, Dom Avelar
Brandão106, Dom Tomás Bauduíno107, Dom Paulo Evaristo Arns108, Dom José Gonçalves da
Costa109, Dom Lucas Moreira Neves110; também pelos representantes da Ordem dos Frades
Pregadores: padre Vincent de Couesnongle111, padre Aniceto Fernandez112 e frei Domingos
Maia Leite113.
O autor também faz questão de registrar o gesto de apoio que recebeu do Vaticano por
meio dos representantes da ordem religiosa que transmitiram aos prisioneiros, em suas visitas
e pelas correspondências, a certeza de que Paulo VI tinha ciência da situação em que se
encontravam os dominicanos brasileiros, de que recebera a carta enviada pelos prisioneiros, e
ainda, que escreveu uma reflexão acerca das cartas de frei Betto.114 Para ele, esse era o mais
importante atestado de legitimidade de suas opções.
Embora o envolvimento de leigos e religiosos com a oposição ao regime – como por
exemplo o engajamento de frei Betto e seus confrades no auxílio à luta armada – salte aos
olhos como a razão maior dos atritos pontuais entre os artífices da ditadura militar brasileira e
da Igreja, esses conflitos não foram causados apenas por essas atitudes individuais.
O acossamento de católicos como no caso dos dominicanos que colaboravam com a
ALN foi, na verdade, a manifestação mais visível de uma insatisfação tácita que o alto escalão
do governo nutria por conta das mudanças pelas quais a instituição115 passou a partir do
advento da década de 1960. Essa determinação acentuada dos órgãos de repressão para deter
esses quadros hierarquicamente inferiores era, inclusive, uma forma de atingir os bispos, já
que por suas posições proeminentes e prestígio social não era conveniente punir diretamente
membros do episcopado. Ou seja, já que eles gozavam de imunidade diante da repressão,

103
Cardeal, Arcebispo de Porto Alegre, RS (1947-1981).
104
Cardeal, Arcebispo de São Paulo, SP (1965-1970).
105
Núncio apostólico (1969- 1973).
106
Cardeal, Arcebispo de Salvador, BA (1971-1986).
107
Bispo de Goiás (1967-1998).
108
Arcebispo metropolitano de São Paulo, SP (1970-1998).
109
Bispo da diocese de Presidente Prudente, SP (1969-75); a qual pertence à cidade de Presidente Venceslau-SP,
onde frei Betto cumpriu a última parte de sua pena.
110
Bispo-auxiliar de São Paulo, SP (1967-1974).
111
Representante do mestre da Ordem dos Frades Pregadores.
112
Mestre Geral da Ordem dos Frades Pregadores
113
Superior dos Dominicanos no Brasil.
114
BETTO, 2008, p. 150.
115
MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e a política no Brasil, (1916-1985). Tradução Heloisa Braz de
Oliveira Prieto. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 101-165.
48

castigavam-se seus assessores e subordinados, cujas atitudes podiam levá-los a serem


torturados, presos, expulsos do país e até mortos.116
Na visão dos militares, o verdadeiro incômodo constituído pela Igreja, considerada
como um dos pilares da civilização cristã ocidental, era que a renovação pela qual ela se
dispôs a passar nos anos 1960 acabou por incentivar e legitimar o ativismo político-social de
figuras subalternas como frei Betto, o que, em si, manifestaria claramente um desprezo pela
sua estrutura secular de poder e um abandono das tradições. Toda essa ânsia por
modernização era encarada como um golpe doloroso sobre o projeto de nação dos homens da
caserna, visto que esse “ataque às hierarquias” poderia exercer influência sobre a própria
sociedade.
Se nenhuma providência fosse tomada, a desestruturação do poder na Igreja chegaria a
um nível realmente incontrolável e irreversível. O que não só significaria perder uma aliada
poderosa, uma vez que o catolicismo dispunha de uma corporação multiétnica,
intelectualmente bem formada e gozando de uma ampla inserção social, portanto, tê-lo na
trincheira inimiga representava uma ameaça que não se deveria subestimar.117
Para analisar a visão militar sobre a Igreja Católica no Brasil, Serbin apresenta um
memorando, presente no boletim reservado da 1ª região militar do dia 2 de dezembro de 1967,
redigido pelo general José Horácio da Cunha Garcia. Nele o militar alertava suas tropas sobre
o clero progressista:

Não esqueçamos que os padres tem muito mais contato com o povo,
particularmente com o povo pobre [...]. Eles podem fazer muito mal. Para mim,
prezados camaradas, mesmo católicos, esses indivíduos traíram a Revolução, e estão
traindo. Eles hoje estão trabalhando para a oposição, não tanto para essa que fala no
congresso e na imprensa, mas para os que queriam em 64 comunizar o Brasil, para
os cassados, os corruptos e os revanchistas [...] Os mandões comunistas, russos,
chineses ou cubanos estão batendo palmas porque a Igreja, no Brasil, trabalhou para
eles.118

Pode-se imaginar que o que justificaria a desconfiança dos militares em relação ao


momento vivido pela Igreja Católica era, simplesmente, o envolvimento de alguns de seus
membros, leigos e religiosos – como frei Betto –, com a luta armada. No entanto, movimentos
voltados para questões internas à instituição, principalmente no tocante à hierarquia, eram
observados com ressalvas pelo governo, pois eram encarados como a verdadeira raiz da

116
A morte do padre Antônio Henrique Pereira Neto em 25 de março de 1969 e a expulsão do teólogo belga José
Comblin em março de 1972 podem ser citadas entre os exemplos da utilização dessa tática. Ambos eram muito
próximos a Dom Helder Câmara, grande desafeto da Ditadura militar. Ibid, p. 120.
117
SERBIN, 2001, p. 133.
118
Ibid, p. 107.
49

insubordinação de seus quadros e a brecha pela qual o ideário comunista seria introjetado no
léxico de padres e freiras.
Um bom exemplo de que a Igreja vivia um momento de questionamento da sua
hierarquização foi o surgimento de um movimento de seminaristas pedindo mudanças
drásticas na vida sacerdotal e o elevado número de padres que deixaram a batina após o
Concílio Vaticano II.
Motivado pela abertura do Concílio, um grupo de seminaristas do Rio Grande do Sul
fundou no dia 11 de outubro de 1962 a União dos Seminaristas Maiores do Sul (USMAS),
tomando como sua porta-voz a revista O seminário.119
Em seus primeiros anos, a USMAS buscou estabelecer contato com os seminaristas de
outros estados promovendo reuniões em todo o território nacional. Desse modo, em 1967, a
associação já contava com subdivisões em outras regiões do Brasil denominadas USMAS-1,
USMAS-2 e USMAS-3. A partir desse período, a sua maior aspiração era a criação de uma
organização que representasse todos os seminaristas do país, além da participação de alguns
de seus membros das reuniões da CNBB.120
No entanto, o que realmente desafiava a visão hierárquica de bispos e militares eram
suas reivindicações. Segundo Serbin, as mudanças sociais e políticas dos anos 1960 levaram a
um questionamento do papel tradicional do padre. O mundo estava se transformando depressa
e esse processo deixava evidente, para uma ala da Igreja, que o sacerdócio de molde tridentino
não se adequava aos novos tempos. O autor qualifica esse período como de “mal-estar” para
os que já eram ordenados ou desejavam abraçar a vocação. Assim, o concílio convocado pelo
papa João XXIII era visto como a oportunidade perfeita para que se gestasse um novo tipo de
clérigo.121
Para os seminaristas somente mudanças significativas poderiam transportar os padres
do século XVI para o século XX. Entre elas, a mais radical era sem dúvida a liberação da
obrigatoriedade do celibato pela sua adoção opcional; outro desejo era o abandono da
formação enclausurada nos seminários em função de uma maior inserção na realidade dos
leigos por meio da criação de pequenas comunidades em casas e apartamentos nos bairros
residenciais e da possibilidade de que os futuros padres se profissionalizassem nas mesmas
atividades que qualquer homem comum; também era uma aspiração a atualização dos

119
SERBIN, Kenneth P. Padres, Celibato e conflito social: uma história da Igreja Católica no Brasil. Tradução
Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 171.
120
Ibid, p. 172.
121
Ibid, p. 196.
50

currículos, possibilitando assim o estudo das ciências sociais no lugar da filosofia; por fim, se
buscava o fim do autoritarismo dentro da Igreja.122
Não demorou muito tempo para que as reinvindicações dos seminaristas motivassem a
tomada de uma atitude enérgica por parte dos bispos. Assim, a USMAS foi fechada em 1968.
No ano seguinte foi a vez da revista O seminário, que continuava a ser a voz do movimento,
embora tivesse mudado de nome e abandonado as pretensões eclesiásticas para assumir um
tom mais radical.123
Apesar do movimento dos seminaristas ter sido controlado pela mão forte da
hierarquia, a crise de identidade continuou a assolar os clérigos no mundo todo.124
Especificamente no Brasil, aquilo que era um mal-estar pré-conciliar se transformou em
confusão depois do Vaticano II e, para muitos, em frustração por não promover a revolução
desejada125, o que levou um número considerável de padres a abandonar o sacerdócio na
primeira década depois do sínodo. Segundo Serbin, “Somente no Brasil, quase 2 mil padres
deixaram a batina entre 1967 e 1976, fazendo com que o total de padres em 1977 caísse para
abaixo dos costumeiros 13 mil.”126

A rápida transição do mal-estar pré-conciliar à confusão pós-conciliar gerou nova


crise de identidade no clero. Os padres mais velhos não conseguiam entender as
reformas, e os mais jovens impacientavam-se. A tradicional imagem do sacerdote
estava se desintegrando. Reconstruí-la era difícil, por causa das modificações
políticas, sociais e religiosas dos anos 1960. Os arquiconcervadores aferravam-se à
tradição enquanto os ultraprogressistas diziam que o sacerdócio definharia até
desaparecer. Não havia um caminho único e claro para o futuro.
A intransigência de Roma mergulhou o clero em uma crise ainda mais grave. Por
toda parte, padres questionavam sua vocação e começavam a abandonar o
sacerdócio. Segundo um estudo, o celibato era a razão mais importante das
desistências; em segundo lugar vinha a imutável estrutura hierárquica. No Brasil, o
êxodo também foi causado pela ausência de uma postura mais firme dos bispos
contra o regime militar. Os padres decepcionaram-se imensamente quando as
grandes expectativas sobre o Vaticano II não se materializaram ou não alcançaram
tanto quanto o clero desejava. Como afirmaram sociólogos da Igreja brasileira, “o
padre não deixa propriamente o ministério sacerdotal, mas, por assim dizer, não o
encontra”. A Igreja brasileira perdeu muitos de seus melhores homens.127

Assim sendo, para os militares, o enfraquecimento da hierarquia da Igreja somada a


um discurso inadvertido sobre a situação sociopolítica na América Latina oferecia a

122
Ibid, p. 175-186.
123
Ibid, p. 185-193.
124
BEOZZO, José Oscar. Padres conciliares brasileiros no Vaticano II: participação e prosopografia - 1959-
1965. 2001. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Carlos, 2001. p. 36.
125
SERBIN, 2008, p. 195.
126
Id, 2001, p. 102.
127
SERBIN, op. cit., p. 195.
51

oportunidade para que a “subversão” se alastrasse pela instituição e utilizasse sua inserção
social para alcançar a população mais pobre.
Kenneth Serbin, em Diálogos na sombra, detalha as teses defendidas pelo general
Adolpho João de Paula Couto, integrante da seção de guerra psicológica do Estado-Maior do
Exército, no documento A guerra revolucionária e a Igreja, à luz de Medellín, apresentado
em janeiro de 1971, durante o segundo encontro da comissão “bipartite” que aconteceu no
colégio “Sagrado Coração de Jesus”.128
O desejo do general era atestar o quanto os bispos eram ingênuos e mal informados
diante das táticas do movimento comunista internacional. Dessa maneira, sem
intencionalidade, a nova Doutrina Social da Igreja ajudava os subversivos. O exemplo
utilizado pelo militar foi o documento final da Conferência Geral do Episcopado Latino
Americano (CELAM) que ocorrera em 1968 na cidade colombiana de Medellín.
Segundo Serbin, Paula Couto procurava demonstrar as proximidades existentes no
documento da Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano entre as suas temáticas e
os jargões do movimento comunista. Assim, para a intelligence do regime era quase
impossível distinguir onde terminava a aspiração por “justiça social” e onde começava a
“subversão”.
Na visão do general Paula Couto, ao falarem em “opressão”, “burguesia” e
“imperialismo”, os bispos teriam exagerado quanto à desigualdade social, o que incentivava a
luta de classes, de acordo com o ideal comunista, além de produzirem uma rejeição pelos
Estado Unidas da América (EUA), considerada injusta por não reconhecer que o país seria o
líder e defensor da civilização cristã ocidental contra a expansão comunista.129
Almejando abandonar o caminho teórico e intelectualizado pelo qual a discussão
estava se enveredando, outra voz do regime se levantou. O assessor do Ministro da Justiça
Alfredo Buzaid, Dantas Barreto, fez colocações ríspidas para uma reunião de conciliação e
causou desconforto entre os participantes ao “pôr as cartas na mesa”.
Sua missão era deixar claro que não era desejo do regime entrar em conflito com a
Igreja Católica. No entanto, isso só seria possível se a instituição se concentrasse estritamente
no campo que lhe correspondia, ou seja, o espiritual. Em suas palavras, “religião e política são
esferas distintas [...] Não compete à Igreja promover o bem comum temporal.”130

128
Id, 2001, p. 249.
129
Ibid, p. 250.
130
Ibid, p. 254.
52

É importante observar que ao se estabelecer um panorama da documentação acessível


sobre os conflitos com a Igreja, produzidos pelo regime, salta aos olhos que sua principal
característica é tratar de episódios como o da morte de Marighella e personagens específicos
como frei Betto. Ou seja, raramente, ela se direciona a instituição como um todo. Diante disto,
torna-se tentadora a impressão de que o engajamento de padres e freiras em movimentos
contestatórios e até na luta armada foi a verdadeira e única raiz desses atritos com a ditadura
militar.
No entanto, sua análise rigorosa somada a uma ampla contextualização, que abarque o
período anterior e posterior ao golpe, demonstra que, na verdade, os episódios específicos,
como o envolvimento de dominicanos com Marighella, com certeza causavam a ira dos
artífices do regime. Contudo, mais do que motivadores dos conflitos, a gravidade e
repercussão desses casos eram o pretexto perfeito para que insatisfações preexistentes e muito
mais profundas fossem expressas. Ou seja, como já foi mencionada, a prisão de religiosos da
ala progressista era a “oportunidade feliz” para demonstrar como a nova Doutrina Social da
Igreja legitimaria a “subversão” e teria permitido a infiltração comunista entre seus quadros.
As mudanças que a Igreja Católica empreendia em sua doutrina e em seus ritos,
durante e após o Concílio Vaticano II, de maneira nenhuma eram assuntos apenas de interesse
interno. Prova disso era a presença constante do tema nos jornais de grande circulação através
de matérias que anunciavam e tentavam explicar quais eram essas mudanças.131
Curiosamente, em algumas edições as notícias sobre os dominicanos eram veiculadas
ao lado de notícias sobre as mudanças na missa.132 Apesar desse fato não poder ser tomado
como uma prova de que a reprovação quanto às atividades dos frades se estendia às mudanças

131
D. CASTRO Pinto explica as crises na Igreja. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.753, 6 de nov. de
1969. p. 4. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3469&keyword=Marighelas&anchor=5172384&origem=busca&
pd=0b8e8ee87e4708173f00d9048c309301>. Acesso em: 23 de set. de 2018.
AS ALTERAÇÕES principais. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.774, 27 de nov. de 1969. P. 15.
Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3490&keyword=Beto&anchor=5173207&origem=busca&pd=40
9140dfcbdb8dfb8868029227d11d65>. Acesso em: 13 de set. de 2018.
132
A PARTIR do próximo domingo começam as mudanças na missa. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n.
14.774, 27 de nov. de 1969. p. 15. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3490&keyword=Beto&anchor=5173207&origem=busca&pd=40
9140dfcbdb8dfb8868029227d11d65>. Acesso em: 13 de set. de 2018.
CHARBONNEAU, Paul-Eugéne. A Igreja: renovada ou acabada. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n.
14.770, 23 de nov. de 1969. 8º Caderno folha ilustrada, p.73. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3486&keyword=igreja%2CIgreja&anchor=5173095&origem=bu
sca&pd=a81bc03c8547da2a2688164b9113fb0d>. Acesso em: 13 de set. de 2018.
53

na Igreja, não se pode ignorar que de alguma forma os jornais relacionavam os dois
fenômenos.133
A imprensa, como em outras oportunidades, fez às vezes de porta-voz das autoridades
e, assim, sutilmente se empenhava em estabelecer uma distinção entre aqueles que deveriam
ser considerados falsos ou verdadeiros cristãos.134 Pode-se tomar como exemplo a notícia, já
citada, de O Estado de São Paulo, em que se contesta a autenticidade do status religioso de
frei Betto utilizando as aspas na designação que antecede seu nome. Se ela for comparada
com uma matéria do mesmo jornal do dia 20 de novembro, essa, por assim dizer, curiosa
“preocupação religiosa” fica ainda mais evidente.
Naquela manhã, O Estado de São Paulo informava que vinte delegados assinaram
uma moção de apoio aos três companheiros de profissão que haviam sido excomungados pelo
bispo da cidade de Ribeirão Preto, no interior paulista, dom Felício César da Cunha
Vasconcelos, por conta da prisão e tortura da irmã franciscana Maurina Borges, em outubro
de 1969.135
O aspecto curioso da notícia reside nos termos pelos quais o jornal qualifica os
delegados excomungados: “Católicos Apostólicos Romanos”, tratamento respeitoso que nem
mesmo os clérigos mais admirados pelo regime recebiam. Ao passo que o bispo responsável
pela excomunhão nem mesmo tem seu nome mencionado.

Delegados apóiam excomungados


Vinte e nove delegados de polícia católicos apostólicos romanos, lotados no
DOPS de São Paulo, assinaram moção de solidariedade ontem aos bacharéis Renato
Ribeiro Soares e Miguel Lamano, de Ribeirão Preto, excomungados pelo arcebispo
daquela cidade, na última quinta-feira.
(descabidas e arbitrárias)

133
Na mesma página que apresentava a reportagem em que o bispo auxiliar do Rio de Janeiro Dom José de Castro
Pinto falava sobre as crises na Igreja Católica, a Folha de S. Paulo publicou uma matéria em que o general Paula
Couto alertava sobre o “perigo da guerra revolucionária”. Cf. O GEN. Paula Couto, na formatura do ECEME,
adverte para o perigo da guerra revolucionária. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.753, 6 de nov. de
1969. p. 4. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3469&keyword=Marighelas&anchor=5172384&origem=busca&
pd=0b8e8ee87e4708173f00d9048c309301>. Acesso em: 23 de set. de 2018.
134
FREI SECONDI em conferência cita como é o cristão ideal. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N.
189, 14 de nov. de 1969. 1º Caderno, p.7. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691114&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 8 de set. de 2018.
PADRE Bezerra condena frades e livra a Igreja. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 190, 15 de
nov. de 1969. 1º Caderno, p.15. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691115&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 9 de set. de 2018.
135
DELEGADOS apoiam excomungados. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 90, n. 29.025, 20 de nov. de
1969. p.9. Disponível em: <https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19691120-29025-nac-0009-999-9-
not/busca/excomungados>. Acesso em: 7 de nov. de 2018.
54

“como mirificamente realçou d. Vicente Scherer, cardeal arcebispo de Porto


Alegre, que sabiamente disse: quem participa de um esquema comum com
terroristas, que assassinam inocentes a sangue frio, assaltam e roubam tornam-se
coniventes com tais crimes e participa de sua responsabilidade”.
Lamentamos contristados que criaturas humanas, que pela formação religiosa
deveriam cultuar o amor ao próximo, tenham em desastrosa inversão, substituído o
bem pelo mal, o justo pelo injusto, a simplicidade pela rompância, a humildade pela
arrogância, a serenidade pela precipitação, a tranquilidade pela violência e o amor
pelo ódio”
“não permitiremos que se transformem os conventos em valhacoutos, nem os
templos em mercado de corruptores e nefastos inimigos da pátria a serviço do
comunismo internacional.”136

Dessa maneira, fica evidente que esses religiosos presos foram tomados pelas
autoridades e pela imprensa como perfeitos representantes da ala eclesiástica entusiasmada
com o seu papel relacionado à mudança social. Essa “subversão da ordem” seria introduzida
em pequenas doses; a começar pela mudança nos temas dos documentos oficiais, na
linguagem dos fiéis, na liturgia secular da missa e até mesmo nos hábitos dos clérigos.

1.4 O Carisma e o poder:

Outra preocupação manifesta pelo frade em sua correspondência era com a opinião
pública sobre os dominicanos, visto que ela era profundamente influenciada pela imprensa
que os qualificava como terroristas. Assim como em relação à Igreja, o autor procura
denunciar a omissão da sociedade civil, questionando como essa atitude seria lembrada no
futuro.
Nesse sentido, diversas vezes o autor compara a indiferença da sociedade brasileira
diante das arbitrariedades do regime, que se instaurou com o golpe de 1964, com a postura da
sociedade alemã diante dos crimes do regime nazista. Com essa analogia, ele procura deixar
patente a afirmação de que os dominicanos são vítimas do regime autoritário, e não inimigos
do país, como queriam fazer crer as autoridades que os mantinha presos137.

Em pequenas aldeias do interior da Alemanha, durante a última guerra, as donas-


de-casa reclamavam da fuligem expelida pelas chaminés das “fabricas” nazistas.
Ninguém via nada, o único sinal era a fuligem. Derrotado o nazismo, o mundo soube
que aquelas “fabricas” eram campos de extermínio de judeus e comunistas. Tarde

136
DELEGADOS apoiam excomungados. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 90, n. 29.025, 20 de nov. de
1969. p.9. Disponível em: <https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19691120-29025-nac-0009-999-9-
not/busca/excomungados>. Acesso em: 7 de nov. de 2018.
137
O exemplo da memória do Holocausto foi, sem dúvida, uma referência fundamental para a edificação do
discurso reminiscente de frei Betto. A análise aprofundada de seu papel nesse processo está exposta no terceiro
capítulo deste trabalho.
55

demais. A fuligem desaparecera, as vítimas também. O Vigário permaneceu


calado.138

Outro artifício evocado para dar legitimidade aos dominicanos presos,


independentemente da consciência do autor ao utilizá-lo, é a recorrente alusão à figura de
Jesus como um perseguido político, empregada em todo o período de correspondência, de
modo a propor uma reavaliação da legitimidade de uma condenação pública de um indivíduo
perante a apuração dos fatos que a levaram a essa prévia conclusão. Ou seja, se a falibilidade
dos seres humanos foi tão determinante em seu discernimento a ponto de fazê-los julgar como
criminoso e condenar à morte o próprio filho de Deus – segundo sua crença religiosa –, o
mínimo do bom senso exigiria uma relativização quanto à justeza das sentenças proferidas
pelo arbítrio dos homens; além, é claro, de ponderar os interesses que as permeiam.
Em carta a uma amiga, o frade afirma:

Ontem os jornais publicaram nota oficial do governo; afirma que no Brasil não
existem presos políticos, só bandidos. Veja a que fui promovido! Bandido para o
Estado e frade para a Igreja. Mas Cristo não foi crucificado como marginal ao lado
de dois ladrões? Portanto, para nós a piada não é nova.139

Em relação à Igreja, a imagem de Jesus como perseguido político também é


apresentada como o paradigma inaugural do papel contestatório que o Cristianismo deveria
assumir diante das injustiças dos poderes constituídos. Sua prisão e condenação à morte
seriam as provas mais contundentes de que, estando presos, os dominicanos dariam
testemunho de que seguiam fielmente o projeto salvífico de Cristo. Viver como pobres ao
lado dos pobres e padecer pela justiça seriam as demandas da renovação atravessada pela
Igreja.
A atitude de frei Betto de selecionar e registrar em suas missivas a omissão da Igreja e
da sociedade brasileira ante as arbitrariedades da ditadura militar como temas capazes de
confrontar a versão que se solidificava paulatinamente na imprensa e na opinião pública sobre
o caso dos dominicanos presos exemplifica a observação de Pollack segundo a qual o
processo de construção de uma narrativa dominante não se realiza de maneira tranquila, pelo
contrário: “A memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e
intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos.”140

138
BETTO, 2008, p. 48.
139
Ibid, p. 43.
140
POLLAK, 1992, p. 205.
56

Também o historiador francês Jacques Le Goff em sua clássica obra História e Memória
reafirma essa observação:

A memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças
sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das
grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e
dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são
reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva.141

Casos específicos de religiosos envolvidos na “subversão”, como o de frei Betto,


longe de terem sido a causa dos ataques promovidos pela imprensa e por agentes do Estado à
Igreja serviram, na verdade, como pretextos para que viessem à baila antigos ressentimentos e
se cobrasse um posicionamento mais severo do episcopado nacional em relação às suas
“ovelhas”. Na visão militar as novas linguagens e temáticas dos documentos oficiais e das
homilias durante as missas, independente da intenção, ajudavam os “inimigos da pátria” a
popularizar e legitimar seu ideário que questionava as tradições hierárquicas e a propriedade
privada.
Em um apanhado geral, observa-se que, basicamente, três elementos contribuíram para
que se estabelecesse a insatisfação dos homens da caserna para com aqueles que escolheram a
sacristia: em primeiro lugar, a imunidade dos bispos ante a repressão, em um momento em
que os militares tinham plenos poderes para perseguir e expurgar aqueles que consideravam
subversivos ou nocivos ao regime. O segundo fator foi o engajamento de católicos na
oposição e na luta armada, o que, além de ser visto como um desrespeito inadmissível às
hierarquias sociais, obrigou o governo a confrontar a Igreja, uma de suas mais importantes e
respeitadas aliadas históricas. Por fim, e o mais importante deles, a incompreensão quanto às
mudanças do catolicismo nos anos 1960.
Assim, aprofundando-se a reflexão, fica evidente que o cerne de todo o desagrado é a
questão hierárquica. Segundo a visão militar, o processo de abertura do catolicismo ao laicato
e a intensificação do ativismo político de religiosos significava uma subversão da ordem
natural da sociedade. Em outras palavras, o fato de se permitir que leigos e religiosos como
frei Betto atuassem à revelia de seus superiores, os bispos, contra os militares comprometeu
as alianças entre o Estado e a Igreja em função da manutenção de uma ordem social, e mais
que isso, colocou essa relação sob a luz de ataques e reprovações. Por isso, o acossamento dos
subalternos dos bispos envolvidos na oposição ao regime não era visto apenas como uma

141
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução Bernardo Leitão. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.
p. 426.
57

forma de punir os indivíduos, mas, principalmente, como uma maneira de evidenciar o quanto
o novo posicionamento da instituição estava equivocado.
Fica claro, que para uma parcela dos artífices do regime esta era uma preocupação
autêntica desde o fim dos anos 1950. Dada a importância e influência da Igreja Católica no
Brasil, se nenhuma providência fosse tomada, não tardaria para que esse “mal” que acometia
a instituição se alastrasse pela sociedade brasileira; o que para alguns já era visível.
O suposto abandono do respeito intransigente às hierarquias na Igreja daria contornos
reais à percepção que as elites tinham da política nacional, cada vez mais enquadrada pelas
exigências da mobilização dos de baixo, como os estudantes da União Nacional dos
Estudantes (UNE), os camponeses das ligas de Francisco Julião e os operários dos sindicatos
reunidos no Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). Para parcelas da conspiração e da
coalizão anti-Goulart, a preservação da ordem “natural” da sociedade era uma premissa
fundamental para o desenvolvimento do Brasil como nação. Ou seja, permitir que figuras do
“baixo clero” como frei Betto abraçassem o ativismo político das esquerdas sem que houvesse
uma reprovação categórica por parte dos bispos significaria permitir a corrosão da ordem, o
que seria sucumbir à anarquia que destruiria não só a Igreja como também o próprio país.
No entanto, é imprescindível que se advogue uma visão complexa e nuançada da
realidade, de maneira a evitar reducionismos teóricos e determinismos. Como foi
demonstrado, parte da elite civil e militar autenticamente enxergava as mudanças na Igreja
Católica como um problema digno de preocupação para o país; constatação esta que, de
maneira nenhuma, deve anular a certeza de que tantos outros, ardilosamente,
instrumentalizaram essa preocupação para, transvestidos com boas intenções, pudessem
defender a preservação de seus privilégios e provocar um clima de instabilidade política. Da
mesma forma que no caso específico dos membros politicamente engajados da instituição,
como frei Betto, havia quem de fato enxergasse seu ativismo como uma ameaça real e aqueles
que apenas se valeram do medo da anarquia e do comunismo para manterem seus próprios
poderes e vantagens.
Não por acaso, essas mesmas observações se aplicam às insatisfações com o governo
de João Goulart, o que evidencia que as razões para os conflitos com a Igreja ligam-se
intimamente a algumas das próprias razões do golpe de 1964.
A partir de 1963, a conspiração que se tramava desde a crise da posse do João Goulart
em 1961, entre uma pequena parcela das forças armadas e do empresariado brasileiro, tendo
como centros iniciais de articulação o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e o
58

Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD)142, começou a ser reforçada por civis e
militares que, movidos por distintas motivações, a transformariam no início de 1964 em uma
coalizão anti-Goulart.143
Segundo Argelina Cheibub Figueiredo:

O golpe contra o governo, em 1964, foi saudado com satisfação por grupos cuja
oposição à intervenção militar havia sido crucial em 1961. Isso significa que a
conspiração foi uma condição necessária, mas não suficiente para o sucesso do
golpe de 1964. Muitos outros fatores contribuíram para fortalecer a conspiração e
para converter um grupo golpista minoritário em uma ampla coalizão de apoio a
derrubada do governo constitucional.144

Dadas as diferenças entre as características da “conspiração” e da “coalizão”145 que se


formaram contra o governo João Goulart - como suas extensões, durações e objetivos - é
sumamente importante que não se confunda uma com a outra. Como já demonstrou a pesquisa
histórica, a conspiração durou mais tempo, mas contava com uma parcela minoritária de
oficiais das forças armadas e do empresariado. Seu objetivo prático era apear Jango do poder
e com isso alcançar uma meta mais profunda, no caso, evitar que por meio da mobilização
popular a implementação das Reformas de Base extinguisse a estrutura histórica de
privilégios existente no Brasil. A representante mais emblemática dessa “ameaça” era a
proposta de uma reforma agrária que buscava combater a concentração fundiária que
atravancava o desenvolvimento socioeconômico do país há séculos.146
Já a coalizão anti-Goulart era muito mais ampla e teve uma vida muito mais curta. A
partir de 1963, diante de um cenário de crise econômica, da radicalização entre Esquerda e
Direita e de episódios pontuais em que as decisões de Goulart não obedeceram à tradicional
lógica hierárquica das forças armadas e da própria sociedade brasileira, empresários, militares
legalistas e outros grupos, incluindo setores da imprensa e da Igreja Católica formaram uma
aliança para depor o presidente.147 Considerando o número e a diversidade de personagens
envolvidos é evidente que também as motivações eram bastante variadas embora três sejam as
mais relevantes.

142
DREYFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado – ação política, poder e golpe de classe. Rio de
Janeiro: Vozes, 1981. p. 155.
143
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “Perigo Vermelho”: o anticomunismo no Brasil (1917-
1964). São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 264.
144
FIGUEIREDO, Argelina Cheibub. Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política: 1961-
1964. São Paulo: Paz e Terra, 1993. p. 171.
145
Ibid, p. 171-185.
146
BANDEIRA, Muniz. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil (1961- 1964). 4. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1978. p. 75-80.
147
MOTTA, 2002, p. 259.
59

Uma discussão latente na historiografia sobre o golpe civil-militar de 1964 é a que


questiona qual teria sido o real papel do anticomunismo nesse processo. Para alguns
historiadores e escritores memorialistas, ele foi simplesmente um instrumento para justificar o
injustificável. Ou seja, diante da certeza de que até mesmo os conspiradores sabiam que Jango
era um rico estancieiro criador de gado, e que, portanto, nada tinha de comunista, não
restariam dúvidas de que aqueles que aventaram “o perigo vermelho” para fundamentar a
supressão da democracia e a derrubada de um presidente o fizerem simplesmente para
esconderem suas reais intenções.
No entanto, não se pode deixar de considerar que mesmo entre os conspiradores
existiam os que aderiram ao conluio simplesmente por professarem um anticomunismo
extremado. Esses enxergavam o presidente da República como um caudilho populista
alinhado à mais autêntica tradição latino-americana, pronto para suplantar a constituição e
perpetuar-se no poder através da manipulação das massas. Ou, simplesmente, como um
homem franco que, entorpecido pelas boas intenções, seria facilmente manipulado pelas
esquerdas para golpear as instituições democráticas e depois ser golpeado por elas.148 É o que
demonstra a historiografia; em especial, a tese de Rodrigo Patto Sá Motta intitulada Em
guarda contra o perigo vermelho.
Nesse trabalho já clássico, o autor procura demonstrar como, desde as primeiras
décadas do período republicano, o anticomunismo tem se constituído em uma “sólida
tradição” na cultura política da sociedade brasileira.149 Crítico às interpretações que
promovem uma redução do fenômeno a simples instrumento para justificar “golpes
autoritários, reprimir movimentos populares, garantir interesses imperialistas”150, Motta
defende uma visão mais complexa que leve em consideração também que “houve grupos e
indivíduos (não necessariamente fanáticos) que sinceramente acreditaram na existência de um
risco real.”151 Dessa forma, seu trabalho procura perscrutar tanto as ações quanto as
representações produzidas com o intuito de combater e alertar sobre o perigo comunista no
Brasil.
Motta ressalta que, dada a heterogeneidade de seus personagens e o fato de constituir-
se contra, e não a favor de algo, o anticomunismo gera mobilizações que, em geral, são
efêmeras e emergem em momentos de crise. Assim, o autor elenca dois períodos da história
nacional como aqueles nos quais ocorrem os mais notáveis surtos desse fenômeno. O primeiro

148
Ibid, p. 9-10.
149
Ibid, p. XXII.
150
Ibid, p. XXIV.
151
Ibid, loc. Cit.
60

remete ao levante comunista de 1935, durante a era Vargas, e o segundo aconteceu no


transcorrer do governo João Goulart.152
Após uma apreciação pormenorizada dos episódios e fatores, de ordem interna e
externa, que fizeram de João Goulart um alvo para os grupos e indivíduos anticomunistas153,
Motta defende a ideia de que o golpe não foi o resultado de uma instrumentalização do medo
da revolução comunista.
Embora não negue a existência de manipulações, o autor procura atribui-la,
primeiramente, à tradicional estratégia anticomunista de transmitir à sociedade representações
aterrorizantes sobre os “vermelhos” e, em segundo lugar, à imprecisão com que os líderes da
coalizão abordavam o propalado perigo. O exemplo mais emblemático dessa mistura de
imprecisão e manipulação seria a campanha para convencer a população quanto à iminência
de um golpe comunista durante o governo Goulart. 154
Desta forma, o historiador defende a tese segundo a qual:

O temor anticomunista foi o “cimento” da mobilização antiGoulart, o elemento que


propiciou a unificação de setores heterogêneos numa frente favorável à derrubada do
presidente. O objetivo principal não era dar um golpe, mas combater os comunistas.
O recurso à solução autoritária era um meio para eliminar a “ameaça comunista” e
não um fim. Parcelas mais conservadoras e radicais da “frente anticomunista”,
certamente, desejavam o autoritarismo em si, enquanto alguns agentes recusavam
qualquer alteração na ordem social e econômica. Outros tinham como principal
preocupação colocar fim as políticas nacionalistas e estadistas ensaiadas por
Goulart. Porém, suas opiniões não tinham capacidade de obter consenso entre as
elites sociais e setores moderados e conservadores. A única posição unânime era a
recusa a “comunização”.155

Certamente, o anticomunismo foi um “cimento” para a coalizão contra o governo de


Jango. No entanto, não se pode negar que o pânico diante do “perigo vermelho” funcionou de
maneira muito mais eficaz para arregimentar setores da classe média, justamente por esse ter
uma existência bastante concreta na história do país, ainda que se reconheça que até mesmo
na conspiração havia quem dela participasse movido por ele. Dessa forma, fica claro que
admitir a instrumentalização do anticomunismo não diminui em nada sua importância e nem
impede a constatação de sua autenticidade. A exploração política desse medo só poderia
constituir-se em um instrumento altamente eficaz se, de fato, encontrasse aderência entre os
receptores. Assim, uma visão mais complexa sobre o golpe deve reconhecer tanto a
autenticidade dessa tradição, quanto a sua utilização em larga escala para mobilizar camadas

152
Ibid, p. XX.
153
Ibid, p. 234-276.
154
Ibid, p. 276.
155
Ibid, loc. Cit.
61

sociais contra um determinado inimigo, nesse caso, o presidente João Goulart. Para parte
daqueles que apoiaram a quartelada e a ditadura subsequente, figuras como frei Betto
representavam, de fato, a infiltração comunista na Igreja. Por isso, tornar pública suas
atividades “subversivas” era uma forma de pressionar a instituição para que repensasse seu
posicionamento acerca da realidade social, deslegitimando, assim, seus membros que,
porventura, tenham se aventurado na oposição ao regime.
A segunda motivação para que a coalizão anti-Goulart arregimentasse integrantes foi a
crença de que o governo estava atacando as hierarquias; o que, para muitos, se somava à
primeira. Esse elemento foi especialmente importante para a adesão de parte da ala legalista
das forças armadas. Para a maioria da oficialidade, a articulação política de militares de baixa
patente e as decisões do presidente em relação a alguns episódios de insubordinação foram o
“fiel da balança” para que se considerasse a situação insustentável e decidisse apoiar uma
ação para deter a “anarquia” que teria se instalado nos quartéis e na própria sociedade.
Tal percepção das forças armadas foi instigada, sobretudo, por dois episódios. O
primeiro foi a insurreição de sargentos em Brasília nos dias 11 e 12 de setembro de 1963; e o
segundo foi a comemoração do biênio da fundação da Associação dos Marinheiros e
Fuzileiros Navais do Brasil no sindicato dos metalúrgicos do Rio de Janeiro que ocorreu no
dia 25 de março de 1964.
No primeiro, reagindo à decisão do Supremo Tribunal Federal de considerar
inelegíveis os sargentos eleitos no pleito de 1962, o que acarretou a perda dos mandatos, um
grupo de subtenentes e sargentos das forças armadas e auxiliares do Brasil, por meio de uma
assembleia convocada às pressas, decidiu tomar o poder pelas armas.

Resolveram tomar de assalto a Base Aérea e o Grupamento de Fuzileiros Navais


(GFN). Convocando e armando soldados e cabos, seus subordinados, eles partiram
para a ação. Imediatamente obstruíram as rodovias estratégicas, bem como o
aeroporto civil, e tomaram o Serviço de Radiopatrulha do Departamento Federal de
Segurança Pública no Ministério da Justiça e a Central Telefônica.156

A ação dos revoltosos logo levou à reação das autoridades. Com a participação do
comando das três forças armadas, concentrados no prédio do Ministério da Guerra, e a
chegada de reforços no final da tarde do dia 12, o movimento foi derrotado e mais de 500
militares foram presos.157

156
FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2011. p. 361.
157
Ibid, p.352.
62

Apesar de seu desfecho, dois detalhes agravaram a repercussão do episódio: a


desconfiança que ele desencadeou entre os oficiais de que a manutenção da disciplina nos
quartéis estava de fato em risco e a má impressão gerada pela facilidade com que um “grupo
mal articulado de sargentos, cabos e soldados tomou a capital da República”;158 o que levou
setores civis conservadores e militares a imaginar que, verdadeiramente, não existia qualquer
barreira que pudesse impedir João Goulart de dar um golpe de Estado, ainda mais se este
fosse maquinado por seus oficiais aliados.
Apesar da agressividade da atuação dos sargentos em 1963, seus desdobramentos
provocaram uma instabilidade menos violenta se comparada com a que foi desencadeada pela
ação dos marinheiros no ano seguinte. Esse agravamento, no segundo episódio elencado, se
dá graças ao contexto de radicalização política e crise institucional, o que aumentou a
sensação de anarquia militar.
Reunidos no sindicato dos metalúrgicos do Rio de Janeiro no dia 25 de março de 1964
para comemorar o segundo aniversário de sua associação, marinheiros e fuzileiros navais
aproveitavam a festividade para reforçar uma série de reivindicações, o que dava um tom
político ao evento causando enorme descontentamento na oficialidade que o enxergava como
uma flagrante quebra da hierarquia.159 Entre as exigências dos subalternos estavam o
reconhecimento da associação, o direito a se casarem (o que era proibido pelo regulamento
militar), melhor tratamento e alimentação nos navios.
Insatisfeito com o processo de politização da associação, o Ministro da Marinha,
Silvio Mota, ordenou a prisão de seus dirigentes e dos organizadores do evento. Assim sendo,
no dia da festividade fuzileiros foram enviados para invadir o prédio e dispersar os
participantes. No entanto, parte da tropa de choque não só se negou a cumprir a ordem como
se juntou aos amotinados.160
A visão militar de que esses acontecimentos por si só já eram um exemplo nítido do
nível de insubordinação em que se encontravam as forças armadas foi robustecida pelas
ordens do governo durante e depois do ocorrido. Em um primeiro momento, o presidente
ordenou que os marinheiros não fossem atacados, o que gerou grande insatisfação entre os
comandantes por intervir na cadeia hierárquica ao desautorizar as ordens previamente dadas
pelo Ministro da Marinha. Posteriormente, ele confirmou a saída de Silvio Mota que havia
pedido demissão dessa pasta, diante da insubordinação da tropa de choque, e a sua

158
Ibid, p.363.
159
MOTTA, 2002. p. 269.
160
FERREIRA, 2011, p. 446.
63

substituição pelo almirante Paulo Márcio Rodrigues, por influência do CGT. Por fim – e a
mais grave de todas as medidas –, concedeu anistia161 aos amotinados presos que, depois de
libertos, desfilaram pela Avenida Rio Branco em clara provocação aos superiores que estavam
no clube naval.162
O atestado mais significativo da importância da questão disciplinar para a
arregimentação de parte do setor militar em função da coalizão é o fato de que, justamente, a
atuação de João Goulart em dois eventos promovidos por subalternos se constituiu no
pretexto, para alguns, e no estopim, para outros, para que se deflagrasse o golpe. A anistia aos
marinheiros e, depois de cinco dias, a presença e o discurso do presidente no Automóvel
Clube do Rio de Janeiro, durante a festa de posse da nova diretoria da Associação dos
Sargentos, serviram de “sinal verde” para que um dos centros conspiratórios (Minas Gerais)
precipitasse os planos golpistas e iniciasse as ações para a deposição de Jango.163
A iniciativa do general Olímpio Mourão Filho de acionar a Operação Popeye no dia
31 de março de 1964, liderando a marcha de suas tropas de Juiz de Fora rumo à capital
fluminense, valeu-se da certeza de que os setores legalistas estavam convencidos de que
Jango estava atacando a hierarquia militar.164 O clima de animosidade nas forças armadas era
tão grave que muitos segmentos, sobretudo aqueles que se integraram tardiamente à coalizão,
passaram a acreditar que eram as próprias atitudes do presidente que davam legitimidade às
ações em prol de sua deposição. Com a propagação dessa visão, o argumento passou a ser o

161
“A anistia aos marinheiros e ao almirante Aragão atingiu profundamente a integridade profissional das Forças
Armadas. Todo o conjunto de ideias, crenças, valores, códigos comportamentais e a maneira como eles davam
significado às suas instituições encontrava-se subvertidas. A disciplina e a hierarquia, os fundamentos básicos
que exprimiam o que era ‘ser militar’ se esfacelaram.” Cf. Ibid, p. 452.
162
“Até fins de 1963, segundo rodrigo Patto Sá Motta, a conspiração contra o governo Jango era confabulações de
grupos radicais marginalizados do processo político, mas em meados de março de 1964 movimento golpista
forma um amplo leque de alianças. Ao final do mês, as condições para a deposição do presidente estavam dadas:
‘faltava apenas a fagulha, o elemento para detonar o mecanismo golpista e empurrar à ação os que ainda
hesitavam ante a hipótese de rompimento institucional’. O elemento detonador foi a rebelião dos marinheiros.”
Cf. Ibid, p. 454.
163
Segundo Ferreira, “O importante era que a revolta dos marinheiros e a ida de Jango à solenidade do Automóvel
clube desestabilizaram as forças armadas. Como afirma Elio Gaspari, ‘a organização militar, baseada em
princípios simples, claros e antigos, estava em processo de dissolução. Haviam sido abaladas a disciplina e a
hierarquia’. Desde 1961, algumas unidades militares viviam sob uma espécie de duplo comando, entre oficiais e
sargentos. Marinheiros utilizavam a rede de transmissão dos navios para divulgar palavras de ordem. Oficiais
simpáticos ao governo, sem contar os ‘generais do povo’, protegiam os diversos atentados à disciplina, enquanto
outros, com receio de enfrentar o ‘dispositivo militar’ e sofrer punições, toleravam tudo aquilo. No entanto, ‘a
revolta dos marujos ofendeu a grande massa politicamente amorfa. O levante de mourão sugeriu-lhes a
possibilidade do desafio. A inercia do governo incentivou-a a mover-se ou, pelo menos, a não fazer nada’.” Cf.
Ibid, p. 488.
164
Ibid, p. 453-462.
64

de que não havia um golpe de Estado por parte de seus opositores políticos, mas uma atitude
em defesa da ordem geral. E esse foi o raciocínio que serviu à adesão dos setores civis.165
A terceira motivação que endossou as fileiras da coalizão anti-Goulart foi a mesma
que animava a conspiração, ou seja, o desejo de impedir a desarticulação das estruturas de
privilégios que existiam no país; o que se daria através da mobilização popular para a
realização das Reformas de Base.166
Segundo Napolitano:

A virtude principal do governo Jango, ao menos se quisermos manter uma


perspectiva progressista, foi revisar a agente política brasileira na direção de uma
democratização da cidadania e da propriedade. Reiteramos, tratava-se de uma
agenda do que, propriamente, de um projeto político de inclusão social,
nacionalismo econômico e democratização política. Entretanto, em um ambiente
político profundamente conservador e excludente, marcado pela tradição liberal-
oligárquica e pelo autoritarismo pragmático, ambos elitistas e avessos à participação
das massas na política, esta mudança de agenda serviu para fazer convergir contra o
governo Jango tanto o golpismo histórico, que vinha do começo dos anos 1950,
alimentado pelo medo do comunismo nos marcos da Guerra Fria, como o eventual,
engrossado no calor da crise política conjuntural do seu governo. No momento em
que as esquerdas ameaçaram transformar sua agenda reformista em um projeto
político de governo, o que aconteceu a partir de 1963, as direitas agiram. 167

Entretanto, é sumamente importante que se ressalte que para os integrantes da coalizão


(segmentos da classe média, de militares, de profissionais da imprensa e de religiosos),
diferentemente dos membros que compunham a conspiração, tal objetivo não estava
claramente formulado. Até porque essa oposição ao movimento popular pelas reformas estava
matizada às outras motivações já apresentadas como o anticomunismo e a defesa das
hierarquias.168
Para os setores conservadores de direita, esse engajamento de estudantes, operários e
camponeses a favor das reformas era claramente reflexo e expressão da infiltração comunista
que, supostamente, tomaria conta das universidades, dos sindicados e das ligas. Para os mais
radicais, as próprias medidas propostas por Goulart eram o pontapé inicial para a

165
“O comício de 13 de março unificou os conspiradores de direita, civis e militares, em suas ações para depor o
presidente, e também atuou entre os liberais, lançando entre eles sérias desconfianças sobre as reais intenções de
Goulart. As direitas, portanto, passaram a ter os liberais como fortes e importantes aliados no processo de
desestabilização do governo.” Ibid, p. 429.
166
Ibid, loc. Cit.
BANDEIRA, 1978. p. 186.
167
Cf. NAPOLITANO, 2014. p.17.
168
Segundo Napolitano, “as classes médias bombardeadas pelos discursos anticomunistas da imprensa e de várias
entidades civis e religiosas reacionárias acreditaram piamente que Moscou tramava para conquistar o Brasil,
ameaçando a civilização cristã, as hierarquias ‘naturais’ da sociedade e a liberdade individual.” Cf. Ibid, p.48.
65

“cubanização” do Brasil.169 O que se observa nitidamente na desconfiança, ou até mesmo no


ódio, à proposta de Reforma Agrária, considerada como o projeto vil do governo para solapar
o direito “sagrado” à propriedade privada.
Também o protagonismo dos grupos populares e a sua progressiva radicalização na
exigência da realização das reformas eram vistos com ressalvas.170 À luz da tradição brasileira
de pacto das elites, segundo a qual elas deveriam unir-se para dirigir a nação alijando do
centro decisório os setores populares, as exigências e as ações políticas de estudantes,
operários e camponeses seriam uma ameaça à hierarquia natural da sociedade. Toda essa
insubordinação estaria se nutrindo, naquele momento, dos exemplos tomados dos subalternos
das forças armadas e da própria Igreja Católica. Ou seja, de acordo com essa visão, o
envolvimento de frei Betto com a luta armada, por exemplo, seria a demonstração perfeita de
como o desrespeito à autoridade institucional – intramuros – contaminaria as relações de
poder nos espaços externos, também levando à contestação da ordem social.
Como comprovam as pesquisas, até entre segmentos conservadores e à direita se
reconhecia a necessidade de se realizar as reformas de base171, assim sendo, não se pode
afirmar que em todos os casos era a oposição a elas que movia os conspiradores. Para estes, o
real problema era o papel que os setores populares posicionados à esquerda desempenhariam
nesse processo. Justamente porque, se fossem eles os protagonistas, a estrutura de privilégios
defendida por aqueles seria posta em xeque. Prova disso é o fato de que, após a vitória do
golpe civil-militar e a consolidação da ditadura, os militares empreenderam uma série de
reformas que integravam a agenda do Governo Goulart que, no entanto, foram feitas de cima
para baixo, ou seja, sem participação popular.
Essa insatisfação com a maneira de Goulart atuar política e administrativamente
precedia a sua chegada à Presidência da República. No período em que foi ministro do
trabalho de Getúlio Vargas (1953-1954), a maneira como ele rompeu com a tradição brasileira
de reprimir ferozmente manifestações populares, que até então eram tratadas como “casos de
polícia”, assim como outras questões sociais, e o fato de ter “escancarado” as portas do
Ministério do Trabalho para negociar com sindicatos e assistir trabalhadores, independente de

169
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro:
Record, 2000. p. 34.
170
FERREIRA, Jorge. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964, in: ______.; DELGADO, Lucília de
Almeida, 2003, p. 355.
BANDEIRA, 1978. p. 67.
NAPOLITANO, 2014, p. 56-57.
171
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe de 1964 e a ditadura nas pesquisas de opinião. Tempo, 2014, v. 10.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/tem/v20/pt_1413-7704-tem-1980-542X-2014203627.pdf>. Acesso em
21 de set. de 2017. p. 7.
66

sua filiação ideológica, dispensando o cerimonial do cargo, despertou a desconfiança e até a


hostilidade de parte das elites. Logo, as aversões à sua figura nutriam-se do fato de ser um
herdeiro político de Vargas e de manifestar um suposto desprezo pelas hierarquias sociais.172
Além, é claro, de sua má vontade em discriminar os comunistas.
Dessa maneira, compostas por civis e militares, conspiração e coalizão se uniram e,
com o apoio do governo dos EUA,173 empreenderam o golpe de Estado que derrubou João
Goulart do poder e inaugurou a ditadura militar. A partir desse momento, a insatisfação com a
Igreja ganhou materialidade. Com os órgãos de informação e repressão em seus encalços
padres, bispos, freiras e outros religiosos passaram a serem vigiados, alguns presos e
torturados. Enfim, munidos da Doutrina de Segurança Nacional e detendo em suas prisões os
“subversivos” católicos – como frei Betto –, os militares tinham o necessário para questionar
a nova postura da Igreja e exigir mudanças.
Também não se pode esquecer o papel que o anticomunismo exerceu nesse
empreendimento. Se na mobilização anti-Goulart ele teve um papel importante por,
autenticamente, motivar vários segmentos da sociedade, após a instalação do regime
autoritário, o governo e setores que o apoiavam lançaram mão largamente de sua
instrumentalização. Por um lado, ele era uma ferramenta bastante eficaz na tentativa de
legitimar suas ações repressivas, por outro, sua utilização visava promover uma coesão social
em torno da luta contra o inimigo externo (o comunismo internacional) e o interno (os
“subversivos”).

1.5 O pecado de Judas:

Entretanto, o ponto mais sensível das preocupações de frei Betto era a desconfiança e,
em alguns casos, a difamação que se produziu acerca da participação dos dominicanos na
trágica emboscada que resultou no assassinato de Carlos Marighella. Essa inquietação se

172
Segundo Ferreira, “a atuação de Goulart no ministério chocou amplos setores conservadores da sociedade
brasileira – civis e militares. Afinal, um homem nascido entre as elites sociais do país, rico e empresário rural e
exercendo um cargo ministerial estava recebendo, em seu próprio gabinete, trabalhadores, sindicalistas e pessoas
comuns – a maioria de origem social humilde. Muitas vezes o preconceito de classe se confundia com o da cor
da pele, uma vez que vários daqueles indivíduos eram negros. Goulart fugia completamente aos padrões e aos
costumes dominantes, longamente aceitos e partilhados. Motivos, portanto, não faltavam para os rancores e os
ódios que as elites do país passaram a dedicar ao ministro do Trabalho.” FERREIRA, 2011, p. 98.
MOTTA, 2002, p. 234.
173
NAPOLITANO, 2014, p. 60-62.
Cf. FICO, Carlos. O grande irmão: da operação Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados
Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
67

justifica pelo fato de ter sido, justamente, a narrativa desse acontecimento produzida pelos
jornais a porta de entrada daquele grupo de frades na vida pública.
Desse modo, apesar da legitimidade perante a Igreja ser algo importantíssimo para os
dominicanos por serem seus membros ativos e, mais ainda, por participarem de uma ordem
religiosa, o fator que mais instiga a reflexão de frei Betto em sua correspondência é a
desconfiança que as esquerdas nutriam por eles. Pois, se seria insatisfatório serem lembrados
como “padres terroristas” pela sociedade, muito pior seria carregarem para a posteridade a
mesma pecha do apóstolo Judas diante daqueles que se opuseram ao regime e dos grupos
revolucionários.
Não se pode deixar de mencionar que essa desconfiança já se alimentava pela
tradicional postura da Igreja Católica no Brasil de legitimadora do status quo. Assim, a
participação de seus membros em movimentos contestatórios era vista com apreensão por
muitos militantes. Mas, certamente, nada aguçou mais essa visão do que a morte de
Marighella. Prova disso é a discussão entre frei Betto e o historiador Jacob Gorender sobre os
meios que teriam levado o DOPS de São Paulo a rastrear o guerrilheiro baiano.
Frei Betto em Batismo de sangue defende a tese de que a Agência Central de
Inteligência (CIA) dos Estados Unidos, por meio de agentes infiltrados na ALN e grampos
telefônicos instalados nos locais ligados aos dominicanos, foi a responsável por rastrear o
paradeiro de Carlos Marighella e entregar à ditadura brasileira as informações necessárias
para que preparassem a cilada na qual o líder comunista seria assassinado.174 Já Gorender, em
sua obra célebre Combate nas Trevas, atribui a obtenção dessas informações às sessões de
tortura a que frei Fernando de Brito e Ivo Lesbaupin foram submetidos pelo DOPS de São
Paulo.175
As próprias considerações de Marighella revelam a carga moral sob a qual se
sustentava o silêncio daqueles submetidos à repressão e tortura. Mário Magalhães, na
biografia que escreveu sobre o revolucionário baiano – Marighella: o guerrilheiro que
incendiou o mundo –, afirma que uma das “ilusões capitais” alimentadas pelo líder comunista
em seus escritos foi “associar a resistência à tortura meramente a uma escolha. Como se fosse
possível isolar a mente sã do corpo flagelado.”176

174
Id, 1982, p. 141-186.
175
GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. 5. ed. São Paulo: Editora Ática, 1998. p. 171-179.
176
MAGALHÃES, 2012, p. 536.
68

Citando escritos de Marighella, Magalhães demonstra que o líder comunista define a


entrega de informações mediante tortura como uma prova da inadequação e até mesmo de
indignidade do militante diante da causa revolucionária:

No opúsculo se fores preso, camarada... (1951), ele sustentou: a polícia tem


consciência de que as “torturas físicas”, “por piores que sejam, não são capazes de
dobrar a vontade de um militante digno”. Marighella relaciona confissões extirpadas
a ferro e fogo à traição, como se a responsabilidade pelas informações obtidas não
fosse do torturador e do Estado do qual é funcionário: “não há torturas que façam
um militante revolucionário trair seus camaradas”. 177

Portanto, para os dominicanos havia o risco de figurarem na memória das esquerdas


como fracos e traidores, por conta daqueles que não aguentaram as torturas e colocaram a
perder o projeto da revolução. Diante disso, narrar o sofrimento dos religiosos na prisão se
tornou, para frei Betto, a melhor estratégia para que, mesmo que não pudesse mudar a
concepção das esquerdas sobre a não resistência à tortura, fosse capaz de demonstrar que eles
eram verdadeiramente identificados com o grupo dos que lutavam contra a ditadura e eram
cruelmente perseguidos por seus agentes, tendo sofrido na prisão e no pau-de-arara os
mesmos males que todos os outros presos políticos pela defesa de um ponto de vista contrário
ao regime.
Assim, Frei Betto faz de suas missivas um verdadeiro manifesto em defesa da
dignidade dos dominicanos. Para isso, ele procura repetidamente alguns exemplos dessa
condição. Um dos muitos detalhes curiosos de sua correspondência, que podem passar
despercebidos, é o fato de inúmeras vezes os nomes de companheiros de cela serem
mencionados por completo, inclusive dos confrades dominicanos. Mesmo em cartas
endereçadas aos familiares que, portanto, conheciam bem os amigos do autor, os sobrenomes
são utilizados.178 Esse detalhe indica a consciência de que as missivas poderiam se tornar
públicas, e que serviriam como um registro quase formal do sofrimento dos religiosos.
Ao longo dos quatro anos de correspondência, o autor insiste no registro das péssimas
condições da prisão, da morosidade do processo, do desrespeito a direitos básicos dos presos,
além de fazer referência às sucessivas transferências injustificadas.
Em carta a uma religiosa, ele afirma:

Na última quinta, nos mandaram pra cá, próximo 30 km do Mato Grosso, distante
640 Km de São Paulo – onde temos família e advogado. Parece pesadelo tudo isso;

177
Ibid, p. 536.
178
BETTO, 2008, p. 127.
69

como se alguém brincasse com vidas humanas, tornando-as joguetes de seus


caprichos.179

Protestando contra a precariedade e as arbitrariedades dessas condições, o grupo de


presos políticos que se formou, principalmente, no presídio Tiradentes na capital paulista,
empreendeu em 12 de maio de 1972 uma greve de fome. Para o dominicano, essa é uma das
mais importantes provas da grandeza moral de seus companheiros. Era a chance de
demonstrar a resiliência e fidelidade dos religiosos aos outros companheiros presos:

Ontem, às 18 horas, terminou a nossa greve de fome, que durou 33 dias nessa
segunda fase, e seis na primeira, um total de 39 dias – provavelmente a mais longa
de que se tem notícia no Brasil. Entre os 36 presos políticos que participaram não
houve nenhuma defecção, todos firmes até o fim.180

A perda da liberdade não acarreta necessariamente a perda da dignidade. Por isso


não me dobro às injustiças dentro da cadeia. Há presos, infelizmente, que tudo
aceitam, como se fossem surdos e cegos. Para estes importa apenas uma coisa:
recuperar a liberdade física, a qualquer preço. Não sou desses. Agir assim seria a
minha destruição moral. Mesmo que aquela greve de fome venha a significar a perda
da liberdade condicional, não me importo.181

Apesar da importância que frei Betto atribuiu aos exemplos supracitados, dois são
tomados como os mais emblemáticos do sofrimento dos religiosos presos. Em primeiro lugar,
as torturas sofridas pelo seu confrade Tito de Alencar Lima, na Operação Bandeirante
(OBAN):
Em carta a uma amiga, o frade afirma:

Ele estava bem, alegre, tranquilo, recuperado do que havia sofrido no DEOPS.
Bem como todos nós, livres da fase de interrogatórios. Pouco implicado, aguardava
o momento de o colocarem em liberdade. Mas veio o DOI-CODI e o levou. Isso há
pouco mais de uma semana [...]. Hoje, soubemos que frei Tito de Alencar Lima
“tentou suicídio” no DOI-CODI... Levado ao Hospital Militar, recebeu transfusões
de sangue, mas continua incomunicável.182

O autor faz questão de ressaltar o orgulho com que frei Tito narrava o fato de ter
resistido à tortura, não entregando, assim, qualquer informação aos agentes da repressão:

Tito já se encontra conosco. Acamado, manca, recupera-se dos sofrimentos


recebidos. A intensão do exército era interrogar de novo todos os dominicanos;
considerava que nossos depoimentos no DEOPS haviam sido colhidos a toque de

179
Ibid, p. 142.
180
Ibid, p. 153.
181
Ibid, p. 139.
182
Ibid, p. 22.
70

caixa. Agora Tito está bem, com o moral altíssimo. Todos que resistem ficam com o
moral bem alto.183

Em segundo lugar, o autor sublinha o fato de que os dominicanos, juntamente de


alguns outros detentos, tiveram seus direitos políticos cassados. Passaram, com isso, à
condição de presos comuns. Integrados à população carcerária, eles perderam qualquer direito
que os distinguissem dos muitos assassinos, estupradores e ladrões que ali cumpriam suas
penas.184
Por não ser um fato usual na história do Brasil, a passagem de um “preso político”
para a condição de “preso comum” é interpretada pelo autor como algo que distingue os
religiosos dos outros perseguidos:

De um lado, recebo com profundo espírito de fé esta oportunidade de solidarizar-


me na carne aos “condenados da Terra”. De outro, sei da responsabilidade histórica
que pesa sobre os nossos ombros; a conquista do direito de prisão especial ao preso
político é fruto de muita luta e incontáveis sacrifícios. O futuro indagará quem foram
os primeiros obrigados, no Brasil, a anular essa conquista consagrada hoje pelo
direito internacional.185

Passar à condição de preso comum significava a perda de qualquer garantia, inclusive


de segurança. Facilmente, a repressão poderia incumbir um preso qualquer de eliminar um
deles. Para o frade, o julgo de uma arbitrariedade adicional era mais um sofrimento que não
poderia ser desconsiderado pela opinião pública. Para que assim, na memória a ser construída
sobre o período, o “martírio” dos dominicanos lhes rendesse, ao menos, o benefício da
dúvida, diante das acusações de fraqueza e traição.
Pollack ressalta que a finalidade de todo processo de seleção e reinterpretação do
passado é fazer com que a memória cumpra as funções que lhe são características. Entre as
mais importantes estão: gerar/reforçar identidades e estabelecer fronteiras sociais capazes de
manter a coesão de um grupo.186
Ainda que de maneira inconsciente, também são esses os objetivos do projeto
memorialístico de frei Betto. Sua intenção ao destacar as arbitrariedades da ditadura – perante
as acusações que sofria e que poderiam se agravar no futuro – era a de fortalecer a coesão
entre os presos políticos como um grupo que sofria as investidas de um algoz comum. Suas
trajetórias e a perseguição que sofriam dotavam-nos de uma identidade própria que os

183
Ibid, p. 25.
184
Ibid, p. 161.
185
Ibid, p. 159.
186
Ibid, p. 9.
71

caracterizava coletivamente, seja, pela tortura e perda dos direitos políticos mediante a prisão
ou pela campanha difamatória que sofreram na imprensa por estarem em posição contrária ao
regime que os ameaçava.
Diante do exposto, fica bastante claro que ocorreu um verdadeiro processo de
transformação na relação de frei Betto com a memória. Através da análise de suas cartas,
percebe-se que de uma simples preocupação natural de pessoas que têm suas vidas
esquadrinhadas por matérias jornalísticas surge seu receio para com a projeção das
lembranças das atividades do grupo ao qual pertenceu, transformando-a em uma poderosa
arma no combate às versões oficiais dos discursos do regime.
Ainda que inconsciente, a preocupação do dominicano era de que, se os dominicanos
não se pronunciassem, figurariam na memória da Igreja, da sociedade e da esquerda,
respectivamente, como comunistas que se infiltraram nos grupos de jovens para conquistar
corações e mentes; como terroristas punidos com justiça por seus atentados à ordem
estabelecida; e traidores por não resistirem às sevícias a que foram submetidos. Os religiosos
ficariam, dessa forma, estigmatizados como a ala mais fraca da luta armada que, desprovida
da resiliência necessária para assumir o compromisso com a revolução brasileira, levou o
mais admirado líder da guerrilha urbana no Brasil ao fatídico encontro com a repressão e,
consequentemente, com a morte.
A análise das fontes permite observar que a relação que o indivíduo que narra o
passado estabelece com o tempo não se restringe a uma visão retrospectiva. Nesse caso
específico, evidencia-se um verdadeiro trabalho de projeção da memória que se guia pelas
tensões e disputas do presente. No entanto, ele não almeja o estabelecimento de uma narrativa
definitiva, imutável. O próprio ato de precaver-se contra possíveis versões insatisfatórias dos
fatos indica a consciência de que novos contextos históricos levarão a novos questionamentos
e, justamente por isso, é preciso estar atento e munido de um projeto memorialístico. Assim,
se o passar do tempo trouxe consigo novas contestações para a narrativa memorial de frei
Betto, esta foi sendo reeditada para que assim, continue servindo para resguardar o cerne de
sua versão.
72

2 1980: a política da verdade

Depois de ter passado quatro anos no cárcere, Frei Betto e seus companheiros
dominicanos foram libertos no dia 04 de outubro de 1973. Com quase 30 anos de idade, o
frade tinha a opção de deixar o Brasil por um tempo para concluir seus estudos em teologia,
saindo assim do radar da repressão, ao menos, momentaneamente. Entretanto, o exílio não
passava pela sua cabeça. Desse modo, ele buscou a alternativa que melhor atendia as suas
aspirações religiosas, voltando suas pretensões para o trabalho em meio à população mais
pobre. Esse desejo, somado a necessidade de sair dos holofotes da política, fez com que o
dominicano se mudasse para a cidade de Vitória, no Espírito Santo, a fim de assessorar as
CEBs.
Entre 1974 e 1979, frei Betto viveu em um barraco no morro Santa Maria, na periferia
da capital capixaba. Fora do eixo Rio de Janeiro/São Paulo/Belo Horizonte, o frade teve a
tranquilidade que precisava para desenvolver suas atividades pastorais – com a anuência do
arcebispo Dom João Batista da Mota e Albuquerque e do bispo auxiliar Dom Luis Fernandes
– e continuar a carreira de escritor, nesse período, voltada especialmente para temas
religiosos.187
Com o advento da década de 1980 e a consolidação de um clima de distensão política,
frei Betto voltou a morar no convento dos dominicanos, situado no bairro de perdizes, na
capital paulista; sem, no entanto, abrir mão de seu trabalho pastoral. Impressionado com a
efervescência política vivida pelo movimento sindical da região do ABC paulista, o frade se
colocou à disposição de Dom Cláudio Hummes para assessorar a Pastoral Operária nas
cidades de São Bernardo e Diadema. O bispo recebeu a oferta de bom grado, visto que o seu
rebanho na enorme diocese de Santo André chegava a quase 1,5 milhão de pessoas.
Assim, de 1979 até 2002, frei Betto se dedicou a assessorar a Pastoral Operária na
região do ABC paulista.188 Nos anos 1980, o frade se tornou amigo pessoal de Luiz Inácio
Lula da Silva, o então presidente do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo e
Diadema, chegando a morar em sua casa no período em que o líder operário esteve preso.189
A atividade pastoral e a amizade com Lula lhe permitiram estar no epicentro das grandes
greves que ocorreram naquele período e conhecer de perto os representantes do “novo
sindicalismo”.

187
FREIRE; SYDOW, 2016, p. 159.
188
Região metropolitana de São Paulo-SP, na qual se situam as cidades de Santo André, São Bernardo do Campo e
São Caetano do Sul. Ibid, p.183.
189
Ibid, p. 206.
73

Presumivelmente, sua presença no ABC paulista naquele exato momento não passaria
despercebida, nem deixaria de produzir ilações sobre a importância de sua influência política
nas greves operárias. Em pouco tempo, a atividade pastoral de frei Betto lhe rendeu a imagem
de mentor de Lula e, por consequência, a evocação do fatídico episódio da morte de Carlos
Marighella.
No dia 21 de abril de 1980, o Jornal do Brasil apresentava uma matéria sobre o apoio
que os grevistas recebiam da Igreja Católica. O jornalista José Neumanne Pinto, que assinava
a matéria, ressaltava que, apesar do envolvimento do bispo diocesano, o representante mais
emblemático da Igreja em meio aos grevistas era um antigo conhecido da justiça:

O representante mais evidente da Igreja junto ao centro da organização da greve,


contudo, não é o bispo, mas um homem de sua confiança, o irmão leigo Carlos
Alberto Libânio Cristo, conhecido nacionalmente como Frei Beto, um dos quatro
dominicanos acusados pela polícia política de terem marcado um ponto com o líder
da ALN, Carlos Marighela, na noite de 4 de novembro de 1969, na Alameda Casa
Branca, em São Paulo. Naquela noite, Carlos Marighela foi morto pelos policiais do
DOPS de São Paulo, liderados pelo Delegado Sérgio Fleury.
A partir de então, Frei Beto, ao contrário de um de seus companheiros, sumiu do
noticiário. Foi preso, solto, viajou para o Exterior e voltou, semiclandestinamente,
ao Brasil, para fazer um trabalho junto a uma comunidade de base em favela em
Vitória, no Espírito Santo, antes de se instalar no ABC.
Frei Beto tornou-se uma espécie de eminência parda da greve. Amigo pessoal e
homem de confiança de Lula, passou a morar com o líder operário em sua casa, no
Jardim Assunção, em São Bernardo do Campo. Frei Beto é conhecido por suas
instruções táticas e, segundo um militante sindical, “é ele quem empurra Lula para a
frente, na hora em que os pessimistas vêm com seus conselhos negativos e suas
lamentações”.190

No dia seguinte, em entrevista ao mesmo jornal, frei Betto deu uma demonstração
clara do incômodo gerado pela especulação sobre sua ascendência sobre Lula. Esse
desconforto era ainda maior quando o que se propagava era a tese de que Carlos Marighella
morreu graças à traição dos frades dominicanos.

O irmão leigo Carlos Alberto Libânio Cristo, Frei Beto, disse ontem que jamais
interferiu na campanha salarial dos metalúrgicos do ABC ou participou de reunião
sobre o assunto. “Minha presença é pastoral e de amizade pessoal a Lula e sua
família.” [...].
O irmão leigo Carlos Alberto Libânio de Cristo classificou a reportagem do
JORNAL DO BRASIL de ontem de “muito infeliz”. Afirmou que “o episódio da
Alameda Casa Branca foi montado pela polícia. Eu não estava na Alameda Casa
Branca na noite da morte de Carlos Marighela, simplesmente porque estava no Rio

190
POLÍCIA muda de tática e greve se apoia na Igreja. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano XC, N. 13, 21 de abr.
de 1980. 1º Caderno p.4. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19800421&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 22 de set. de 2018.
74

Grande do Sul, onde fui preso uma semana depois. A acusação que se faz aos
dominicanos é uma acusação policial e sem fundamento”.
Ele negou que também ter saído do Brasil e voltado semiclandestinamente, como
disse o JB: “Cumpri pena. Aliás, fui condenado a dois anos de prisão e passei quatro
atrás das grades. Depois fui morar numa Igreja, em Vitória, no Espirito Santo,
fazendo trabalho pastoral e em pleno gozo de meus direitos legais, com exceção aos
direitos políticos, que foram cassados. Então, jamais regressei semiclandestinamente
ao país, porque dele nunca sai”. 191

Foi nesse contexto que frei Betto desenvolveu a redação de Batismo de Sangue. Ao
mesmo tempo em que se via novamente no centro das agitações políticas do país, por conta de
suas atividades junto ao meio sindical, ele estreitava seus vínculos com os revolucionários na
Nicarágua e em Cuba, onde se tornou um interlocutor importantíssimo para que se tentasse
reestabelecer o diálogo entre o governo e a Igreja Católica da Ilha. Como se não bastassem
todas essas atividades e lutas políticas, o escritor ainda teve que assistir à evocação de “velhos
fantasmas” do período da prisão como instrumento especulativo para se questionar sua
atuação.192
Com Batismo de Sangue e O dia de Ângelo, frei Betto procura não só reafirmar a
dignidade daqueles que optaram pela luta armada; mas, acima de tudo, transformar sua
memória – através do mapeamento de seus erros - em uma arma para as pelejas de seu
presente.
A emergência de um novo sindicalismo e a fundação de um partido que fundamentava
seu capital político junto às massas fez com que o dominicano acreditasse que relembrar o
papel trágico que o isolamento do povo teve na derrota dos revolucionários do seu passado
recente poderia garantir que o Partido dos Trabalhadores não só cultivasse o apego pelas
organizações populares, como também desse protagonismo à elas. Para o frade, a figura de
Lula encarnava esse projeto. Não por acaso, pouco mais de duas décadas depois, ao se
desligar do governo do ex-metalúrgico, a principal crítica de frei Betto ao amigo presidente
era a supressão dos canais de protagonismo popular.
Esse entusiasmo de frei Betto com a perspectiva da constituição de uma agenda
política para o país legitimamente fundada pelo povo, e não apenas em nome do povo, foi
certamente provocado pela percepção de que haviam brechas que tornavam real a
possibilidade de interferência popular no processo de transição, apesar de seu trajeto ter sido
inteiramente tutelado pelos governos militares.

191
FREI BETTO diz que é só amigo de Lula. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano XC, N. 14, 21 de abr. de 1980.
1º Caderno p.12. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19800422&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 22 de set. de 2018.
192
FREIRE; SYDOW, 2016, p. 233-253.
75

Essa intuição se justificava pelas progressivas vitórias eleitorais da oposição que se


iniciaram com o êxito do MDB no pleito legislativo de 1974 e culminaram na eleição de
Tancredo Neves pelo colégio eleitoral em 1985. Entretanto, foi o protagonismo dos operários
no ABC, os quais dispensaram a estrutura dos antigos sindicatos oficiais e a mediação do
Ministério do trabalho nas negociações salariais, o que mais deu a certeza ao dominicano de
que aquele era um momento precioso para as esquerdas compreenderem que cultivar a
proximidade com as massas era condição imprescindível para a sua renovação.193
A impressão expressa por frei Betto em O dia de Ângelo de que a saída de cena dos
militares não significava uma transformação substancial na estrutura política do país194 dava-
lhe ainda mais a certeza de que o único caminho possível aos projetos das esquerdas era
permanecer ao lado da massa e, consequentemente, não cometer os mesmos erros da luta
armada. O autor ressalta que, obedecendo ao conselho da “escola mineira”, o mote das
alterações projetadas pelos homens da caserna para o regime pós-1974 era: “façamos a
transição antes que o povo faça a revolução”.195 Dessa forma, fica explícito que, para ele, o
verdadeiro objetivo dessas mudanças era, ironicamente, assegurar a conservação da ordem
política e social.
De fato, essa percepção de frei Betto encontra respaldo em alguns aspectos da
transição política pela qual o Brasil passou entre os anos de 1974-1989. Esse processo foi
marcado pela institucionalização de determinados dispositivos autoritários próprios do regime
inaugurado com o golpe de 1964.
A manutenção de núcleos de poder, “dotados de grande independência e nenhum
controle político [...] ou social [...]”196, foi uma das tentativas de garantir, em meio a uma
rotina eleitoral democrática, que o establishment dispusesse de poder suficiente para barrar
qualquer ensaio futuro da imposição de uma agenda popular encabeçada por movimentos
sociais, como os sindicatos ou a emergência de mobilizações qualificadas como “populistas”
por conta de seus líderes “carismáticos” e seus discursos “demagógicos”.197

193
Segundo Napolitano, “[...] o trabalho de massas, como se dizia, ao fim e ao cabo, tangenciava o problema da
democracia. As autocríticas ocorriam em um momento em que algumas lentes mais sensíveis já captavam o
crescimento dos movimentos sociais de novo tipo, formado por vizinhos, abrigados em comunidades religiosas,
e avessos ao vanguardismo dirigista e instrumental da tradição leninista.” NAPOLITANO, 2014, p. 242.
194
BETTO, frei. O dia de Ângelo. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 95-114.
195
Ibid, p. 102.
196
CODATO, Adriano Nervo. Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia.
Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 25, p. 165-188, jul./dez. 2005. Disponível em:
<https://revistas.ufpr.br/rsp/article/view/7074/5046>. p. 183.
197
Ibid, p. 181.
76

Embora esse ideal de uma, por assim dizer, “modernização conservadora” tenha se
mantido intacto durante o percurso de execução do projeto de mudança política elaborado
pelo governo de Ernesto Geisel, as alterações conjunturais que sua implementação
desencadeou fizeram com que seu resultado final se tornasse distinto de sua concepção
original.
A distensão proposta pelo grupo que chegou ao poder com o general em 1974
almejava promover um “relaxamento dos controles políticos impostos à sociedade” e o
retorno dos militares à caserna, ou seja, um “desengajamento gradual das Forças Armadas da
condução cotidiana dos negócios de Estado”198, sem necessariamente democratizar o sistema
político,199 ou seja, se projetava a institucionalização do regime.
Entretanto, conforme gradualmente essa “liberalização” do regime foi implementada,
mais brechas se abriam para que os diversos grupos sociais interviessem no processo político.
Os êxitos eleitorais da oposição e a emergência de um novo sindicalismo são algumas dessas
consequências iniciais. À medida que essas interferências civis se tornaram realidade, elas
também se transformaram em catalisadores da “política de abertura” do governo militar sem
que tivessem, no entanto, o poder de desviar a sua “direção conservadora”. Segundo
Napolitano:

[...] Havia uma pressão cada vez maior dos movimentos sociais unidos, ocupando
de forma crescente a praça pública em tono da democracia, o que sem dúvida era um
fator de pressão a mais sobre as políticas de distensão e abertura no caso brasileiro.
Eram fatos novos, imprevistos, que colocavam novas demandas políticas, sociais e
econômicas, para os quais a estratégia do governo oferecia pouca resposta além da
repressão. A pressão das ruas talvez tenha sido o elo perdido e esquecido entre a
tímida distensão de 1974 e a efetiva agenda de abertura em 1978.200

Dessa forma, a substituição do projeto de distensão do governo Geisel para a agenda


de abertura lenta, gradual e segura não se deu de maneira linear nem absolutamente calculada.
Apesar da tutela militar que se estendeu até a fase de transição – representada pelo governo de
José Sarney201 –, a pressão dos agentes sociais influenciou decisivamente esse processo.
A despeito do conservadorismo que marcou esse percurso, as manifestações populares
representaram para parte da esquerda, assim como para frei Betto, uma razão para manter viva

198
Ibid, p. 175.
199
Nas palavras de Napolitano, “como estadista de visão estratégica, Geisel sabia que o aparato policialesco de
repressão era insuficiente e arriscado para tutelar o sistema político, sob risco do governo isolar-se dele.
Efetivamente, há uma agenda de abertura, quando muito, só após 1977. Até então “abertura”, dentro da
concepção palaciana, era sinônimo de institucionalização da exceção, descompressão pontual, restrita e tática e
projeto estratégico de retirada para os quartéis sine die.” NAPOLITANO, 2014, p. 234.
200
NAPOLITANO, loc. Cit.
201
CODATO, 2005, p. 170.
77

a esperança por uma revolução política e social. Entretanto, foi a atuação dos setores liberais,
aglutinados na grande imprensa e no MDB, nas negociações com os militares202 que, no
campo da oposição, mais decisivamente influiu no destino do país demonstrando, assim, o
papel premente que esse grupo teve no processo de transição.
Uma das expressões da preponderância dos liberais nesse processo foi a hegemonia
alcançada por sua memória da ditadura militar antes mesmo do início efetivo do processo de
transição do regime e que vigorou soberana até a virada do século, quando surgiram os
primeiros sinais de desgaste da sua funcionalidade política.
Entre a posse de Ernesto Geisel (1974) e a eleição de Fernando Henrique Cardoso
(1994), as linhas mestras da memória liberal-conservadora que, em pouco tempo, ocuparia
uma posição hegemônica, começaram a ser delineadas, principalmente, na imprensa e na
literatura memorialística. A primeira afirma que os militares usurparam o Estado brasileiro.
Dela deriva a ideia segundo a qual a sociedade, alheia a essa ação, foi a sua principal vítima.
Já a segunda celebra a resistência civil pacífica como “verdadeiro caminho que isolou e
‘derrotou’ o regime”.203 Consequentemente, essa interpretação implica a condenação do
autoritarismo militar e da luta armada como faces de uma mesma moeda, o extremismo.
No caso da esquerda revolucionária, apresentada como um conjunto de jovens
idealistas e inconsequentes204, sua opção pelo caminho da guerrilha seria condenável por
alimentar a “espiral de violência”, além de não ter chances de vitória, graças ao isolamento
social no qual se colocavam seus militantes.

202
Napolitano destaca que, através dessas negociações, militares e liberais puderam garantir “uma retirada sem
punição às violações aos direitos humanos e sem mudanças abruptas do modelo econômico fundamental,
sancionado pelas elites, ao mesmo tempo em que retornavam, de maneira gradual, as liberdades civis e o jogo
eleitoral. NAPOLITANO, 2014, p. 235.
Segundo Oliveira, a anistia – maior exemplo desse poder de influência da oposição liberal – “[...] teria sido então
um ponto de inflexão na dinâmica de liberalização do regime, ao mesmo tempo que se apresentou como uma
concessão às mobilizações socias e contemplou uma parte restrita dos militares. Ao ser aprovada, junto à
pluralidade partidária, colocou uma agenda de participação institucional de acordo com as demandas opositoras,
que centraram suas forças na formalização de novos partidos políticos.”. OLIVEIRA, Lucas Monteiro. As
dinâmicas da luta pela anistia na transição política. São Paulo, 2014. 174 f. Dissertação (Mestrado em
História). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. p. 98.
Codato afirma que as reformas econômicas implementadas nos anos 1990, especificamente pelo governo
Fernando Henrique Cardoso, “tiveram como precondição o arranjo autoritário dos processos de governo e a
ausência de responsabilidade dos governantes. Daí que sua implementação não combinou com as exigências de
ampliação da cidadania e controle social sobre o Estado, sua burocracia e aparelho de poder.” CODATO, 2005,
p. 183.
203
NAPOLITANO, Marcos. Recordar é vencer: as dinâmicas e vicissitudes da construção da memória sobre o
regime militar brasileiro. Antítese, Londrina, v. 8, n. 15, p. 09-44, nov. 2015. Disponível em:
<http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/23617/17356>. Acesso em: 19 de abr. 2019.
p.23.
204
NAPOLITANO, Marcos. Desafios para a História nas encruzilhadas da memória: entre traumas e tabus.
História: questões e debates, Curitiba, v. 68, p. 18-56, jan./jun. 2020. Disponível em:
<https://revistas.ufpr.br/historia/article/view/67794>. Acesso em: 13 de abr. p. 35.
78

A afirmação dessa memória crítica se desenvolve em meio ao período no qual o


regime perde progressivamente suas “bases de legitimação simbólica”205. A escalada da crise
econômica, que impunha um fim desesperador ao “milagre econômico”, as notícias sobre
corrupção, o ressurgimento das pressões do movimento sindical e o aguçamento do incômodo
da classe média com violência – sinalizando o desgaste de sua justificação em nome da defesa
da segurança nacional –, demandaram do governo a iniciativa da construção de uma agenda
de transição que garantisse, dessa forma, seu protagonismo e controle do processo, o que foi
concretizado com a anuência da oposição moderada do MDB.206
Nesse mesmo contexto, a sinalização dada pela Lei da Anistia de que os militares
optariam pelo silêncio sobre os anos de ditadura, acreditando que dessa forma poderiam
promover seu esquecimento, potencializou a percepção da oposição moderada (liberais e
esquerda ligada ao PCB) de que edificar uma memória crítica ao regime era uma estratégia
fundamental para viabilizar seus projetos políticos no período pós “abertura, lenta, gradual e
segura”. Dessa forma, esse segmento transformou a perspectiva de um futuro democrático
para o país na pedra de toque para os seus posicionamentos e discurso memorialístico.
A posição hegemônica dessa versão foi alcançada graças à sua capacidade de
promover, simultaneamente, o esquecimento que ex-apoiadores do regime desejavam e
contemplar parte da memória da esquerda, ao adotar a tese de que ela sempre lutou pela
restauração da democracia – desfocando, assim, de seus projetos revolucionários – e de
oferecer às ações armadas o álibi histórico de representarem, ainda que de maneira extremada,
o espírito de resistência que supostamente entusiasmava toda a sociedade.
Portanto, para esquecer, seria preciso lembrar. Napolitano ressalva que:

[...] não se trata de mero cinismo dos atores políticos diante das verdadeiras posições
do passado, mas um processo intrínseco à construção de qualquer memória social,
marcada pelo jogo entre esquecimento e rememoração seletivos para justificar
posições no passado e identidades no presente.207

A imagem dessa espécie de “julgamento da história” está presente, notadamente, em


Batismo de Sangue. Refutando as acusações que sofriam os dominicanos nos jornais da
época, frei Betto atribui apenas às classes populares a capacidade de proferir uma sentença
justa sobre a legitimidade de suas ações no passado. Assim, ele afirma que: “Artífice real da

205
NAPOLITANO, 2015, p. 22.
206
Id, 2014, p. 317.
207
Id, 2015, p. 20.
79

história, as classes populares seguirão sempre como o fiel da balança, pendendo para um dos
lados e confirmando as teorias que o inclinam na direção do futuro”.
Nessa obra, ele também condena veementemente as acusações e críticas feitas pela
imprensa aos que colaboraram na luta armada: “É cômodo julgar, do alto de nossas ideias tão
arrumadas, impecavelmente imaculadas, a prática de quem ousou sujar as mãos quando o
regime militar já não admitia nenhuma forma de luta legal”. Portanto, se os jornais assumiam
de bom grado o papel de acusador, cabia aos acusados lutar pela publicidade de suas
memórias, afinal essas seriam as únicas armas das quais dispunham para se defender.
A constatação de que essa conjuntura de luta sindical e de contestação da legitimidade
de sua atuação política exerceram uma influência decisiva sobre a escrita de frei Betto pode
parecer ser uma simples dedução construída a partir da concomitância entre seu trabalho no
ABC e a redação/lançamento de Batismo de Sangue. Entretanto, o próprio autor oferece
amostras dessa relação. Nas primeiras páginas da obra, ele a dedica “aos trabalhadores
brasileiros que, com suas lutas, restauram esperanças”.
Desse modo, Batismo de Sangue foi lançado em 1982 como uma tentativa de elucidar
os questionamentos sobre a participação dos dominicanos na morte de Carlos Marighella.
Entretanto, o autor usa essa oportunidade para dizer muito mais do que o estritamente
necessário para convencer o público sobre o que aconteceu na Alameda Casa Branca. A obra
é o ensejo por meio do qual ele justifica suas opções pessoais e a escolha de publicar sua
versão sobre o que teria sido o regime militar no Brasil.208
80

Após um período traumático para alguns, por conta de como o rumo de suas vidas foi
alterado pelo golpe de 1964 – seja pelo exílio, voluntário ou obrigatório, pela militância
armada, pela tortura ou pela prisão – os anos 1980 eram o momento de fazer a catarse, de
exorcizar os demônios que depois de terem flagelado a carne, atormentavam o espírito. Para a
população em geral, os problemas econômicos começavam a dar à política repressiva e ao
discurso anticomunista do governo o aspecto de paranoia em descompasso com o tempo
presente, que apresentava desafios novos.
A iniciativa de narrar as violências perpetradas pelos agentes da ditadura militar foi
assumida por memorialistas como frei Betto com mais urgência à medida que a consolidação
da memória liberal-conservadora sinalizava o “isolamento do trauma em bolsões sociais
muito específicos”.209

208
Entre as peculiaridades da escrita memorialística de frei Betto, é importante ressaltar o fato de que as
identidades de seus biografados foram utilizadas como um dispositivo auxiliar na tarefa de se tentar explicar
atitudes pontuais e extremas que marcaram decisivamente suas trajetórias (nesse caso específico, a opção pela
luta armada). Assim, se nas biografias e autobiografias as atitudes controversas de seus protagonistas são
comumente abordadas para reafirmar as especialidades de suas identidades ou atestar sua complexidade, nos
livros do dominicano, elas são apresentadas tacitamente como o tema principal.
Segundo Philipe Lejaune, sobretudo no caso das autobiografias, a identidade é o cerne do pacto que define o
pertencimento de uma obra a esse gênero. Esse acordo firmado implicitamente entre escritor e leitor estabelece
que nesse tipo de narrativa deve haver uma correspondência entre a identidade do autor e a do protagonista, a
qual pode ser estendida, eventualmente, também ao narrador. Cf. LEJAUNE, Philippe. O Pacto
Autobiográfico: de Rousseau à internet. Ed. 2. Tradução Jovita Maria Gerheim Noronha; Maria Inês Coimbra
Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. p. 30.
Outras particularidades que corroboram a constatação de que a obra do dominicano não se adéqua aos modelos
clássicos desse gênero são: a mistura da escrita biográfica e autobiográfica em uma mesma publicação, assim
como a narrativa da trajetória de mais de um personagem e o lançamento de suas memórias em momentos que
não marcavam o encerramento de algum ciclo, que nem mesmo sinalizavam o final da vida do autor. O
exemplo mais emblemático é Alfabetto (2002) – único livro exclusiva e assumidamente autobiográfico do
religioso –, pois se propõe a narrar os 25 primeiros anos da formação escolar do autor que, na data de sua
publicação, contabilizava 58 de idade.
Logo, pode-se considerar que, através desse conjunto de peculiaridades, frei Betto buscou construir um tipo de
biografia/autobiografia contextual. Segundo Giovanni Levi, o contexto – muito valorizado nesse “uso” da
biografia – é entendido como um fator da compreensão de um acontecimento que “à primeira vista parece
inexplicável e desconcertante”. LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: AMADO, Janaína; FERREIRA,
Marieta de Moraes (Orgs). Usos & abusos da história oral. Ed. 8. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 175.
De acordo com a definição de Levi: “Essa utilização repousa sobre uma hipótese implícita que pode ser assim
formulada: qualquer que seja a originalidade aparente, uma vida não pode ser compreendida unicamente
através de seus desvios ou singularidades, mas, ao contrário, mostrando-se que cada desvio aparente em
relação às normas ocorre em um contexto histórico que o justifica.” Ibid, p. 176.
Dessa forma, fica evidente que as biografias/autobiografias de frei Betto não assumem a expressão de uma
identidade ou a narrativa de sua trajetória como sua finalidade. Na verdade, ele utiliza esse gênero de escrita
como um instrumento para que sua memória cumpra uma função política, ou seja, sirva de “ponte” entre uma
experiência do passado e seus projetos no presente. De maneira mais específica, a análise de seus livros de
memória demonstra que o dominicano busca extrair lições da experiência de fracasso da luta armada para
instruir as esquerdas – especialmente, a ala que escolheu a via do partido operário de massa – no contexto dos
anos 1980 e, posteriormente, na primeira década do século XXI. Sua principal conclusão é de que não haveria
possibilidade de vitória no afastamento das forças populares.
81

Esse processo foi potencializado pelo controle que os militares exerceram sobre o
movimento de retorno à caserna e pela escolha de parte das esquerdas, naquele contexto, de
privilegiar outros projetos em detrimento dessa questão210, dificultando, por consequência, o
estabelecimento de um debate nacional sobre quais seriam os caminhos a seguir para superar
esse trauma211 com vistas a um “[...] pacto social para a reconstrução da normalidade”.212
O desejo de conciliação que consagrou essa versão do passado, através de um longo e
negociado processo de Abertura, afastou progressivamente a possibilidade do reconhecimento
coletivo de que a violência perpetrada pelo regime provocou uma “marca patológica” na
história da sociedade como um todo e, não apenas na trajetória de suas vítimas diretas; pois, a
versão liberal-conservadora ao tomar distância das rememorações nostálgicas das “ações
extremas” – ou seja, a ditadura “imposta” pelos militares e a luta armada empreendida por
parte das esquerdas –, transformou a lembrança dessa violência (tanto da sofrida quanto da
perpetrada) em um aspecto particular ao passado dos integrantes desses dois “polos”.213
Dessa forma, frei Betto procura fazer de sua escrita uma reação a esse processo não só
para combater as três teses sobre os dominicanos (hereges, terroristas e traidores) como
também para impedir a restrição progressiva dos canais de escuta das vítimas.214 Por isso, a
autorreflexão e reafirmação acerca da filiação de suas memórias aos paradigmas do

209
NAPOLITANO, 2020, p. 36.
210
Ibid, p. 34.
211
Ao refletir sobre as possibilidades da edificação de testemunhos de catástrofes históricas, como o holocausto
judeu e o genocídio armênio, Seligmann-Silva afirma que “o trauma é caracterizado por ser uma memória de um
passado que não passa”. Ou seja, ele é uma imagem produzida por uma experiência, de tal forma impactante, que
impede a sua representação simbólica, por exemplo através da linguagem, e suspende seu fluxo temporal.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma: a questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psicol.
clin. Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p.65-82, 2008. p. 69.
212
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Direito pós-fáustico: por um novo tribunal como espaço de rememoração e
elaboração dos traumas sociais. In: FICO, Carlos; ARAUJO, Maria Paula; GRIN, Monica (orgs.). Violência na
história: memória, trauma e reparação. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012.p. 111.
213
NAPOLITANO, 2020, p. 35.
214
O itinerário político para se lidar com a memória de experiências-limite idealizado e consagrado no pós-guerra
se projetou no sentido de superar o trauma. Dessa forma, os Estados deveriam promover uma justiça de transição
que assegurasse o reestabelecimento da verdade histórica sobre os fatos e oferecesse uma digna reparação às
vítimas e suas famílias; responsabilizando e punindo os perpetradores da violência, a despeito dos descaminhos
observados nos processos históricos concretos. NAPOLITANO, Marcos. Aporias de uma dupla crise: história e
memória diante de novos enquadramentos teóricos. Sæculum: Revista de História, João Pessoa, v. 39, p. 205-
218, jul./dez. 2018. p. 209.
Entretanto, continuam os debates acerca das políticas de memória para enfrentar passados traumáticos e os
discursos negacionistas. Em meio a uma pluralidade de questões e posicionamentos, o embate mais visível opõe
os agentes sociais que defendem a impossibilidade da representação de tais acontecimentos, com o argumento de
que a tentativa de a empreender implica no risco de produzir sua banalização – kitschização da memória ROBIN,
2016, p. 331. – e aqueles que advogam a necessidade do estabelecimento de canais institucionais de escuta para
que as vítimas possam narrar, elaborar e esquecer esse passado. NAPOLITANO, 2020, p. 31-32. Assim, tanto o
indivíduo quanto a sociedade poderiam se libertar do sofrimento causado por essa memória estática.
SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 69.
82

holocausto e da resistência215 – que compõe o regime de memória contemporâneo –, podem


ser consideradas maneiras de defender a centralidade da vítima e a importância do
testemunho.216
Esse momento histórico reforçou a importância do testemunho ocular. A torrente de
publicações memorialísticas que veio à tona nos anos 1980 dá mostras de como a voz
daqueles que presenciaram os acontecimentos ligados ao período ditatorial brasileiro tornava-
se, aos poucos, cada vez mais atrativa ao público geral. Assim, nesse contexto, o principal
trunfo para que uma obra como Batismo de Sangue reivindicasse o status de verdade era o
próprio fato de ser baseada em memórias. E a iniciativa do autor de deixar claro, o tempo
todo, seu caráter pessoal, através de uma narrativa em primeira pessoa, tem caráter
estratégico.
Os anos 1980 balizam o apogeu de uma valorização profunda da narrativa memorial e,
principalmente, das testemunhas. Segundo o historiador francês François Hartog, em sua obra
Regimes de Historicidade:

De fato, os anos 1980 viram o desabrochar de uma grande onda: a da memória.


Com seu alter ego, mais visível e tangível, o patrimônio: a ser protegido,
repertoriado, valorizado, mas também repensado. Construíram-se memoriais, fez-se
a renovação e a multiplicação de museus, grandes e pequenos. Um público comum,
preocupado ou curioso pelas genealogias, pôs-se a frequentar os arquivos. As
pessoas passaram a interessar-se pela memória dos lugares, e um historiador, Pierre
Nora, propôs em 1984 o “lugar de memória”. Organizadora do grande
empreendimento editorial dos Lieux de mémoire [lugares de memória], a noção
resultava inicialmente de um diagnóstico baseado no presente da França.217

215
A expressão “paradigma” não é utilizada neste trabalho como uma adaptação direta do conceito desenvolvido
por Thomas Kuhn em sua obra A estrutura das revoluções científicas. Mas, sim, como sinônimo de modelo,
padrão. Seu emprego em referência à memória do Holocausto e dos movimentos de resistência à ocupação
nazista busca afirmar que as características do tratamento que se deu às lembranças desses acontecimentos –
como a hipervalorização do relato das vítimas de períodos violentos – serviram como exemplos para os discursos
reminiscentes produzidos depois do outros eventos-limite ao longo do século XX.
216
Em Batismo de Sangue, essa filiação à memória do holocausto como paradigma (abordada de maneira mais
pormenorizada no capítulo subsequente), para reivindicar a centralidade do testemunho das vítimas na
constituição da memória de tempos traumáticos, é desenvolvida através dos personagens e episódios da história
do nazifascismo que o autor referencia para descrever o terror e a crueldade experimentados por aqueles que
foram acossados pela ditadura militar. Assim, os agentes dos órgãos de repressão são comparados aos oficiais do
regime totalitário – “O delegado "Pudim" era o braço direito do Dr. Fleury. Alto, aloirado, lembrava a figura de
um oficial nazista, embora lhe faltasse o porte marcial” Cf. BETTO, 1982, p. 217. Já os presos e perseguidos
brasileiros são comparados às vítimas dos campos de concentração e da Gestapo – “[...] Um dos frades recordou-
lhe Dietrich Bonhõeffer, teólogo protestante alemão assassinado no cárcere pelos nazistas, em 1944, após dois
anos de prisão, onde escrevera eruditos textos de Teologia, mas nada teve tanto peso e influência quanto a obra
Resistência e Submissão, que reúne as cartas que ele redigiu na cela”. Cf. Ibid, p. 202.
217
HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiencia do tempo. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2014. p. 24.
83

Para reforçar essa interpretação, Hartog também menciona livros e filmes que foram
lançados na França nesse período. No entanto, o fenômeno não se limitou ao país. Segundo o
autor, a onda de memória que nasceu na Europa ocidental atingiria todo o mundo. Nas
décadas de 1980 e 1990, ela viveu seu apogeu nos países que acabavam de sair de conjunturas
traumáticas, como “a América do Sul após as ditaduras, a Rússia da glasnost e os ex-países de
Leste europeu, a África do Sul após o Apartheid.”218 Ele, inclusive, aponta esses contextos
como os epicentros desse fenômeno: “não há dúvida de que os crimes do século XX, seus
assassinatos em massa e sua monstruosa indústria da morte são as tempestades de onde
partiram essas ondas memoriais.”219
Assim sendo, diante de tamanha violência, foi atribuída à memória a obrigação moral
de perpetuar a sua denúncia, que “interrogou-se sobre o esquecimento, fez-se valer e invocou-
se o “dever de memória.” 220
o que também, segundo o autor, corroborou para dar
centralidade, no espaço público, um importante figura representante da memória: a
testemunha.
Hartog toma esse momento de extrema valorização da memória como um sintoma da
relação que a sociedade contemporânea estabelece com o tempo. Sua conclusão é de que esse
fenômeno sinaliza a existência de uma brecha no tempo histórico, o que ele qualifica como
“crise”.
Esse seria, justamente, um daqueles momentos em que as “articulações do passado, do
presente e do futuro” parecem perder sua clareza. Essa definição se ajusta perfeitamente,
segundo o autor, à percepção do homem contemporâneo diante dos acontecimentos que
marcaram o século XX.
As duas guerras mundiais; os conflitos em meio à Guerra Fria; as revoluções na Ásia;
os protestos estudantis em 1968; a crise do petróleo nos anos 1970, que encerraram os 30
gloriosos; o processo de globalização; o fim do Socialismo Real e a queda do muro de Berlim
teriam provocado um rompimento na articulação entre o passado, o presente e o futuro, “de
modo que a produção do tempo histórico parece suspensa.” 221
Partindo das considerações de Reinhard Koselleck de que o tempo histórico é o
produto da distância e da tensão entre o “campo da experiência” e o “horizonte de
expectativa”, Hartog desenvolve, como ferramenta destinada a auxiliar a compreensão dessas

218
Ibid, p.25.
219
Ibid, loc. cit.
220
Ibid, loc. cit.
221
Ibid, p.39.
84

crises do tempo: o conceito de “regime de historicidade”. Sua função é caracterizar os tipos de


“relações com o tempo” que se desenvolveram ao longo da história.222
Analisando, especificamente, o modelo dessa relação que se desenvolve na
contemporaneidade, do qual o espocar da memória seria um sintoma, Hartog defende a tese
de que se ainda não se pode afirmar que o regime de historicidade característico do período
moderno foi superado,223 haveriam indícios claros de que ele vive uma das crises que mais
ameaçam a sua manutenção. Por outro lado, seu possível sucessor já manifestaria os primeiros
sinais de sua presença, como por exemplo, a sensação de um presente absoluto: “essa
percepção contemporânea de um presente perpétuo, inacessível e quase imóvel que busca,
apesar de tudo, produzir para si mesmo o seu próprio tempo histórico.”224

Longe de ser uniforme e unívoco, este presente presentista é vivenciado de forma


muito diferente conforme o lugar ocupado na sociedade. De um lado, um tempo de
fluxos, da aceleração e uma mobilidade valorizada e valorizante; do outro [...] a
permanência do transitório, um presente em plena desaceleração, sem passado [...] e
sem futuro rela tampouco [...]. o presente pode, assim, ser um horizonte aberto ou
fechado: aberto para cada vez mais aceleração e mobilidade, fechado para uma
sobrevivência diária e um presente estagnado. A isso, deve-se ainda acrescentar
outra dimensão de nosso presente: a do futuro percebido não mais como promessa,
mas como ameaça; sob a forma de catástrofes, de um tempo de catástrofes que nós
mesmos provocamos.225

Referenciado por Hartog, Pierre Nora é outro historiador que analisa o espocar do
fenômeno memorialístico dos anos 1980. Na introdução de sua obra clássica, Les Lieux de
Mémoire, ele afirma:

Nenhuma época foi tão voluntariamente produtora de arquivos como a nossa, não
somente pelo volume que a sociedade moderna espontaneamente produz, não
somente pelos meios técnicos de reprodução e de conservação que dispõe, mas pela
superstição e pelo respeito ao vestígio. À medida em que desaparece a memória
tradicional, nós nos sentimos obrigados a acumular religiosamente vestígios,
testemunhos, documentos, imagens, discursos, sinais visíveis do que foi, como se
esse dossiê cada vez mais prolífero devesse se tornar prova em não se sabe que
tribunal da história. O sagrado investiu-se no vestígio [...].226

Nora atribui esse boom do interesse pela preservação e cultivo dos lugares de memória
a um processo de “aceleração da história”, ou seja, uma progressiva tomada de consciência de
que teria se produzido, na contemporaneidade, uma ruptura profunda entre o passado e o

222
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2006.
223
HARTOG, 2014, p.14.
224
Ibid, p.39.
225
Ibid, p. 15.
226
NORA, 1993, p. 15.
85

presente.227 Assim, os saberes e os valores transmitidos por grupos sociais como a família, a
escola e a Igreja não seriam mais capazes de orientar as decisões de hoje, nem de preparar o
amanhã.228
A ascensão dos “lugares” seria um fenômeno inversamente proporcional ao declínio
da verdadeira memória,229 isto é, a própria antítese da exteriorização que a cultura dos lugares
representa. Por pertencer a grupos vivos, ela seria vivida no interior de cada integrante, por
isso, enquanto eles a cultivavam, ela se manteve viva, atualizada, afetiva e mágica. Além de
garantir sua coesão e identidade. Vivenciar esse tipo memória, transformaria o dia-a-dia em
um constante ritual que sacraliza e atualiza o passado, assegurando, assim, que o ato de
lembrar não se torne, simplesmente, expressão de uma relação sentimental com algo que
esteja ausente.
O declínio dessa maneira ritualizada de se relacionar com o passado teria produzido na
sociedade contemporânea uma patológica necessidade de exteriorizar a memória, dada a
consciência de que ela estaria se esvaindo; o que explicaria a ascensão de uma “memória-
registradora”. Segundo Nora, quanto:

Menos a memória é vivida do interior, mais ela tem necessidade de suportes


exteriores e de referências tangíveis de uma existência que só vive através delas. Daí
a obsessão pelo arquivo que marca o contemporâneo e que afeta, ao mesmo tempo, a
preservação integral de todo o presente e a preservação integral de todo o passado. É
uma memória registradora, que delega ao arquivo o cuidado de se lembrar por ela
[...].230

Outra mudança importante que Nora atribui a essa mudança de “regime de memória” é
a sua conversão de uma prática coletiva em um exercício individual. “A psicologização
integral da memória contemporânea leva a uma economia singularmente nova da identidade
do eu, dos mecanismos da memória e da relação com o passado.”231
Assim, se a memória deixa de ser a repetição cotidiana do passado, encarnada no
hábito, para reafirmar os valores e visões de mundo de uma determinada coletividade, e é
substituída por uma prática que objetiva materializar/monumentalizar aquilo que o homem
contemporâneo não mais se dispõe a cultivar na sua vida diária, abre-se espaço, segundo o
autor, para que surjam “homens-memória”, ou seja, “consciências solitárias” que decidiram se
encarregar da memória. O que explicaria outras duas peculiaridades da contemporaneidade: a

227
Ibid, p. 7.
228
Ibid, p. 8.
229
Ibid, p. 12.
230
Ibid, p. 14-15.
231
Ibid, p. 18.
86

extrema confiabilidade que se deposita na figura da testemunha e a elevação das trajetórias


individuais à condição de produtoras de documentação histórica dignas de inspirarem uma
narrativa memorialística. Nas palavras do autor:

A materialização da memória, em poucos anos, delatou-se prodigiosamente,


desacelerou-se, descentralizou-se, democratizou-se. Nos tempos clássicos, os três
grandes produtores de arquivos reduziam-se às grandes famílias, à Igreja e ao
Estado. Quem não se crê autorizado hoje a consignar suas lembranças, a escrever
suas memórias, não somente os pequenos atores da história, como também os
testemunhos desses atores, sua esposa e seu médico?232

A escritora Argentina Beatriz Sarlo considera que esse impetuoso despontar da


memória na cena europeia dos anos 1980, e especialmente o reavivamento dos debates sobre
o Holocausto que marcou a década, potencializou a demanda das sociedades latino-
americanas (que acabavam de sair de um período de ditadura militar) por narrativas capazes
de restaurar “os laços sociais e comunitários perdidos no exílio ou destruídos pela violência
de Estado.”233
De maneira respeitosa e sensível ao drama das vítimas das ditaduras no continente,
referindo-se sobretudo ao de seu próprio país, Sarlo questiona o desenvolvimento de um
processo de “fetichização da verdade testemunhal”234, ou seja, a transformação histórica da
narrativa em primeira pessoa, desenvolvida pelos que sofreram na pele ou presenciaram as
atrocidades cometidas por representantes do Estado, na única fonte aceitável para se
investigar esse passado e também a atribuição de uma confiabilidade superior à esse tipo de
fonte. A autora afirma: “Se há três ou quatro décadas o “eu” despertava suspeitas, hoje nele se
reconhecem privilégios que seria interessante examinar.”235
Sarlo ressalta a importância que o contexto teve nesse processo de supervalorização do
testemunho. Especialmente na Argentina, os processos judiciais, que levaram ditadores e
torturadores ao banco dos réus, exigiram que um grande número de vítimas relatasse suas
experiências. Através desses relatos, emergia a percepção do quanto era doloroso reviver o
ocorrido pela lembrança que a narrativa testemunhal suscitava; além, é claro, do próprio
horror provocado pelo acontecimento em si. O fator da perplexidade impedia, pois, que se
questionasse a respeito da capacidade dessas memórias de elucidar o passado. Certamente,

232
Ibid, p. 15-16.
233
SARLO, Beatriz. Tempo Passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução Rose Freire d’Aguiar.
São Paulo: Companhia das letras, 2007. p. 45.
234
Ibid, p. 48.
235
Ibid, p. 21.
87

estabelecer, naquele momento, uma avaliação crítica pareceria uma imensa insensibilidade
diante do “dever de memória”.
Embora reconheça o valor e a necessidade desses discursos testemunhais, Sarlo afirma
o caráter problemático desses impeditivos morais e afetivos. Em sua visão, eles estendem a
todos os aspectos do relato em primeira pessoa, e não só aos traumáticos, o status de verdade
inquestionável e de única fonte fidedigna. Segundo a autora, essas memórias são, antes de
tudo, discursos e “não deveriam ficar confinados numa cristalização inabordável.”236 Ela
defende que:

Não há equivalência entre o direito de lembrar e a afirmação de uma verdade da


lembrança; tampouco o dever de memória obriga a aceitar essa equivalência. Ao
contrário, grandes linhas do pensamento do século XX se permitiram desconfiar de
um discurso da memória exercido como construção de verdade do sujeito.237

Essa crítica se justificaria pelo fato de que os aspectos não-traumáticos como, por
exemplo, o contexto sócio-político das ditaduras ou a ação política de um determinado grupo,
nesses períodos, no Cone Sul, foram registrados em outras fontes, o que permitiria a sua
confrontação com a versão testemunhal, e principalmente, por não haver razão moral para não
se examinar metodicamente esses discursos.238
Tendo em vista o caso específico da América Latina, sobretudo no contexto de
abertura política pós-ditaduras militares, e em comparação à historiografia acadêmica, Sarlo
apresenta a hipótese de que a explicação para a popularidade alcançada pela narrativa
testemunhal nos anos 1980 pode ser construída a partir da análise de distintas mediações
discursivas.
Se por um lado, o labor acadêmico exige que as teses sobre o passado sejam mediadas
pelas regras metodológicas e pela avaliação constante por seus pares, as memórias são
construídas “em função de necessidades presentes, intelectuais, afetivas, morais ou
políticas.”239 No entanto, a autora ressalta que essa constatação científica longe de atestar a
falsidade desse tipo de discurso deve nos atentar para sua íntima ligação com o imaginário
contemporâneo.240

236
Ibid, p. 47.
237
Ibid, p. 44.
238
Ibid, p. 47.
239
Ibid, p. 14.
240
Ibid, p. 13.
88

2.1 Estratégias de convencimento:

Embora se esforcem para que suas narrativas não negligenciem a complexidade do


contexto sociopolítico do Brasil durante os anos de ditadura militar, Batismo de Sangue e O
dia de Ângelo são obras que têm como mote o drama pessoal de seus personagens. O que
pode levar o leitor, na maioria das vezes, à uma leitura mais atenta aos aspectos emocionais e
psicológicos; certamente, corroborada pelo processo de empatia pela vítima que o horror
diante da descrição da tortura, e de todas as outras formas de autoritarismo, pode provocar.
Dessa forma, para que essas memórias possam ser tomadas como fontes para o
conhecimento histórico, como narrativas capazes de contribuir para a elucidação das relações
entre o processo de construção da memória e o saber/poder, é necessário que se faça um
esforço analítico visando o entendimento de suas intencionalidades e estratégias. Não
obstante, também é preciso cuidado para que essa abordagem política não se torne demasiado
rígida, correndo o risco de negar o caráter dramático e humano das experiências narradas.
Uma vez que isso poderia dar margem para que a escrita das obras fosse interpretada como
uma mera tentativa de deturpar a realidade.
Ao se analisar as estratégias de convencimento adotadas por quem escreve uma obra,
nesse caso específico, de cunho memorialístico, não se pretende realizar qualquer avaliação
moral sobre essa atitude, nem mesmo tomá-las como elementos que maculem a legitimidade e
a confiabilidade de sua versão dos fatos. O que se almeja é compreender quais ferramentas o
autor utiliza para satisfazer sua vontade de verdade; pressupondo-se que que ela existe como
princípio de composição de qualquer livro de caráter não-ficcional.
Outro aspecto digno de atenção é o caráter de construção coletiva determinado pela
escolha de suas ferramentas discursivas, as quais refletem as estratégias narrativas do autor.
Para que provoquem o efeito desejado, não basta que elas atendam ao gosto pessoal de quem
as utiliza. Apenas serão eficazes se estiverem em consonância com os critérios que o grupo ao
qual se destinam considera válidos para conferir legitimidade ao discurso. Assim, elas
também são edificações históricas que se modificam de acordo com o tempo e o espaço.
Sarlo localiza as funções da memória na relação que o sujeito estabelece com o
passado e com o futuro. Quando se volta ao que já aconteceu, aquele que rememora busca
“responder a insegurança perturbadora causada pelo passado”, ou seja, construir um enredo
que estabeleça uma lógica e um sentido para aqueles acontecimentos traumáticos, visando
89

amenizar o sofrimento. Ao vislumbrar o porvir, sua ambição é a “autodefesa” que garanta a


manutenção da identidade pela legitimação moral das ações de seu grupo.241
Para exercer eficazmente essas duas funções, antes de tudo, o discurso necessita ser
crível. Nas palavras da autora: “Todo testemunho quer ser acreditado”242. Dessa forma, ela
busca rastrear as particularidades que garantem o status de verdade ao testemunho, dando a
essa “visão do passado” maior apelo popular em comparação àquelas produzidas pelos
historiadores acadêmicos.
A primeira característica que garantiria o interesse público pelas visões do passado
não acadêmicas, em especial pelo testemunho, é a soberania de “um princípio organizador
simples.”243 Essa peculiaridade dá a narrativa um caráter teleológico que estabelece uma
linearidade galgada na relação de “causa e consequência”; dota de significado todos os
detalhes que são evocados pelo autor, mesmo que pareçam incongruentes em relação ao
discurso; e o mais importante, “produz uma nitidez argumentativa”. Essas especialidades
atestariam que esse tipo de relato se move “pelo impulso de bloquear os sentidos que
escapam; não só eles se articulam contra o esquecimento, mas também lutam por um
significado que unifique a interpretação.”244
Segundo Sarlo, essas seriam algumas das características de um modo de narração
testemunhal denominada como “realista-romântica”245. Entretanto, as mais importantes são as
que justificam esse título. Seu realismo é reivindicado pela menção constante de detalhes, em
muitos casos, de maneira abundante. Em suas palavras:

A proliferação do detalhe individual fecha ilusoriamente as fendas da intriga e a


apresenta como se ela pudesse ou devesse representar um todo, algo completo e
consistente porque o detalhe reforça o tom de verdade íntima do relato: o narrador
que lembra de modo exaustivo seria incapaz de passar por alto o importante, nem
forçá-lo, pois o que narra formou um desvão pessoal de sua vida, e são fatos que ele
viu com os próprios olhos. Num testemunho, jamais os detalhes devem parecer
falsos, porque o efeito de verdade depende deles, inclusive de sua acumulação e
repetição.246

241
Ibid, p. 15.
242
Ibid, p. 37.
243
Ibid, p. 14.
244
Ibid, p. 50.
245
Ibid, p. 55.
246
Ibid, p. 52.
90

Já o romantismo se manifestaria através de dois aspectos: o protagonismo da


subjetividade das vítimas, (especialmente quando a narrativa é em primeira pessoa) e a
idealização da juventude como uma fase de “desprendimento, ímpeto e idealismo”.247
Entretanto, nenhuma dessas características seriam válidas se não houvesse um
profundo diálogo com as questões e demandas do presente. Assim sendo, Sarlo salienta que o
principal interesse desse tipo de análise não é contrapor o relato testemunhal, mas questionar
o contexto histórico de sua produção e as “condições culturais e políticas que o tornam
fidedigno.248
Sua conclusão para a aderência contemporânea às narrativas memorialísticas centra-se
na relação que elas estabelecem com o presente. Em sua visão:

São versões que se sustentam na esfera pública porque parecem responder


plenamente às perguntas sobre o passado. Garantem um sentido, e por isso podem
oferecer consolo ou sustentar a ação. Seus princípios simples reduplicam modos de
percepção do social e não apresentam contradições com o senso comum de seus
leitores, mas o sustentam e se sustentam nele.249

Nos anos 1980, através das obras Batismo de Sangue e O dia de Ângelo, Frei Betto
inicia o processo de concretização do projeto memorialístico que havia formulado em sua
escrita epistolar, dez anos antes. Como foi demonstrado no capítulo anterior, ele estava
baseado no propósito de comprovar que as ações dos dominicanos presos, e também de todos
os que optaram pela luta armada, não eram o simples resultado de um romantismo
irresponsável, típico aos jovens; mas sim, a expressão legítima de uma profunda reflexão que
os havia levado ao dissenso com as convenções políticas e religiosas.
Assim sendo, sua aspiração era comprovar que os dominicanos não eram hereges que
distorceram os dogmas da fé, mas portadores de uma visão renovada e dinâmica do
Cristianismo. Da mesma forma, era preciso deixar claro que aqueles que apoiaram ou
abraçaram a luta armada não eram simples terroristas assassinos, mas sujeitos que, sedentos
de justiça e acossados pela repressão militar, encontraram nessa opção a única forma de
vencer a desigualdade social e a ditadura.
A palavra que o autor consagra para nomear esse movimento que afastou os
dominicanos da postura tradicional da Igreja e os revolucionários da estrutura partidária é
“dissidência”. Assim, nos dois livros mencionados há uma clara disposição em valorizá-la
como fenômeno.
247
Ibid, p. 55-56.
248
Ibid, p. 21.
249
Ibid, p. 14-15.
91

As primeiras páginas de O dia de Ângelo são uma amostra da importância que autor
atribui à “dissidência” na construção de sua escrita memorialística. A narrativa se inicia com a
aparição, em sonho, do espectro da freira e poetisa Juana Inés de la Cruz ao protagonista.250
Em sua longa fala, ao clamar ao jornalista Ângelo P. que não abandonasse a prática da
escrita, o fantasma da religiosa, que viveu no vice-reino da Nova Espanha no século XVII, lhe
pede que “não permitas que acorrentem o Deus que te habita. Cria.”251 E, assim, lamenta:

Tive medo dos horrores da Inquisição [...] censurei o que de melhor havia em
minha criatividade, e afinal, renunciei as letras em nome de preceitos e de abnegada
submissão que – agora sei – nada tinham de evangélicos. Meros caprichos da razão
do poder.252

Através da fala da poetisa, frei Betto defende a ideia de que as raízes desse poder que
a obrigou a disfarçar os impulsos que alimentavam sua criatividade artística – como a
sensualidade – se encontram nas ortodoxias. Entretanto, o autor faz questão de, sutilmente,
afirmar que essa intransigência doutrinária não era defendida com unhas e dentes apenas por
aqueles que abraçam a missão de vigiar e condenar os que ousam questionar as hierarquias e
os valores do status quo, ela também seria peculiar àqueles que, alimentando o sonho de uma
revolução, seja política ou em relação aos costumes, exigem que a arte seja impreterivelmente
portadora de uma mensagem política. Dessa forma, a freira continua:

Pesava sobre mim o milenar fardo da doutrina cristalizada em ortodoxia, da


ortodoxia metrificada por severos canonistas, dos canonistas que integram tribunais
que excluem o direito de defesa do réu e emitem sentenças suplementadas pelo fogo
do inferno. Sim, encontrei nos claustros inúmeros artistas, músicos, escultores,
pintores e até bailarinas. Na maioria o talento conservava-se sem criatividade,
atrelado à missão, como um cavalo amansado preso à carroça, acostumado a trafegar
sempre pela mesma trilha e tão dócil que se sente orgulhoso por cumprir sua
obrigação sem que precisem chicoteá-lo. [...] Querem vestir a criação artística com a
camisa-de-força da ortodoxia – política ou religiosa – é um meio de cerceá-la pela
padronização, pelo caráter panfletário, tornando-a mercadoria proselitista de
consumo obrigatório.253

Nota-se, como estratégia de composição, a opção de introduzir o tema central da


narrativa a partir da associação ao esforço de uma freira e poetisa do período colonial em
emergir do mundo dos mortos, para advertir um preso político, encarcerado há dois anos,
sobre os riscos de render-se às regras criadas e impostas pelos detentores de poder. Tal

250
BETTO, 1987, p. 15-17.
251
Ibid, p. 17.
252
Ibid, loc. cit.
253
Ibid, p. 15.
92

escolha pode ser interpretada como uma tentativa, por parte do autor, de construir uma visão
da dissidência como algo necessário, imperioso, e não apenas como simples rebeldia ou
insubmissão. Dessa perspectiva, enquanto preso político, resistir seria uma obrigação moral, a
única maneira de sobreviver à barbárie à qual era submetido. Subentendendo-se que se a vida
não puder ser resguardada em seu aspecto físico, ela permanecerá presente na obra do artista.
Misturando elementos de um passado real com a construção de uma narrativa
ficcional, O dia de Ângelo é em si uma reflexão sobre os questionamentos que surgem
mediante o encontro entre a liberdade criativa do artista e os fatos da realidade que são
evocados pela sua memória.
Sendo a escrita a arte pela qual frei Betto expressa sua memória, o livro questiona se o
desejo de conhecer a realidade imporia limites à atividade. Ou, sendo a liberdade condição
sine qua non para o trabalho do artista, ele poderia compor a memória ao seu bel-prazer?
Em um trecho em que se refere à memória, frei Betto desenvolve essa reflexão:

Que faria um homem desprovido de memória? Teria a contemporânea passividade


das vacas ou o agressivo instinto de defesa dos tigres? E um povo que ignorasse seu
próprio passado? Estaria condenado à cíclica repetição de seus erros, de seus
fracassos, de suas ignomínias? Ah, quão ínfima é cada pessoa e, no entanto,
insuperável! Toda a infinita mecânica dos astros dobra-se ao poder de opções do
homem. E toda a beleza das flores, dos pássaros e dos seres numinosos que
compõem a natureza se encerra em seus ciclos repetitivos. Criativa é somente a arte
como acréscimo do homem à natureza, como bem sabiam os gregos. Arte cujo
segredo é captar, os bastidores a trivialidade da vida, o enredo, o sinuoso enredo da
historicidade humana, faminta de sentido e de harmonia.254

Assim, o autor defende a ideia de que a “arte da memória” é, antes de tudo, uma
necessidade e uma escolha. Lembrar é escolher agir, meter-se em uma peleja. No entanto,
essa memória não é um produto da natureza; mas, sim, da criatividade humana que, de
maneira decidida e livre das amarras da “ortodoxia panfletária”255, precisa enredá-la,
construindo-lhe um sentido.
Frei Betto também inicia Batismo de Sangue propondo uma reflexão sobre a
dissidência, de modo a assegurar sua dignidade e importância. Em um longo texto que
compõe o primeiro capítulo da obra, o autor a apresenta como o elemento que faz com que a
cultura humana “acerte o passo” como as transformações históricas mais amplas.256
Interpretando a história humana como um movimento dialético e teleológico, o autor
apresenta Jesus, o apóstolo Paulo, Francisco de Assis e Martinho Lutero como exemplos de

254
Ibid, p. 66.
255
Ibid, p. 16.
256
BETTO, 1982, p. 28.
93

homens que por assumirem uma visão religiosa heterodoxa, dissidente, fizeram com que a
Igreja se renovasse e se fortalecesse ao longo dos séculos. Também o itinerário da Esquerda,
como corrente política, é interpretado sob essa ótica. Ela teria sido marcada pela ação de
homens como Lênin e Marighella que “apostataram aos olhos de seus antigos camaradas”257,
mas contribuíram para que sua luta se revitalizasse.

É através das dissidências que a História acerta os seus passos. Há um momento


em que as possibilidades de uma proposta – religiosa ou política – parece esgotar-se
sob o peso dos anos, da rigidez de seus princípios, da inflexibilidade de sua
disciplina, da intransigência de seus dogmas, da prepotência de seus líderes. Como a
fonte seca a beira da estrada, incapaz de saciar a sede dos peregrinos que atraiu, a
proposta vê-se rejeitada por seus discípulos dispostos a caminhar sem a tutela que
lhes atrasa o passo. [...]a dissidência não significa, necessariamente, ruptura. E é
justamente essa capacidade de uma instituição suportar a emergência do novo e
assumir a gravidez que prenuncia, ao mesmo tempo, a sua transformação e o seu
futuro, que dá a ela perenidade.258

Batismo de Sangue apregoa que, por ser típica na trajetória das correntes políticas e
das matrizes religiosas, essa insurgência de alguns de seus membros ante o poder da ortodoxia
seria a característica análoga às duas esferas. Tanto na primeira quanto na segunda, as
dissidências emergem como um sinal de liberdade para os mais jovens e, por isso, elas os
seduzem. No entanto, nessa disputa intestina cabe à história exercer o papel de juiz:
“indiferentes ao nosso maniqueísmo, é possível que a prática e o tempo sejam menos
intolerantes e apontem os erros e os acertos de ambos os pratos da balança.”259 Dessa forma,
frei Betto demonstra acreditar que a narrativa é, antes de tudo, um dispositivo de poder ao
sublinhar que, se o dissidente vence, ele é “remido pela vitória”; se ele perde, sua morte é o
atestado de que os defensores da ortodoxia tinham razão. Logo, seria a memória que
expressaria ou falsearia a legitimidade da causa pela qual alguém lutou.

2.2 Princípio explicativo e teleologia:

Batismo de sangue é uma obra dedicada a retrilhar os caminhos de Carlos Marighella


durante os seus 59 anos de vida. O primeiro capítulo compendia as duas pontas de sua
trajetória. Entretanto, ela é percorrida em sentido inverso: sua primeira seção narra o anúncio
da morte do líder comunista durante o intervalo de uma partida de futebol entre o Santos de
Pelé, que estava prestes a contabilizar seu milésimo gol, e o Corinthians de Roberto Rivelino

257
Ibid, p. 30.
258
Ibid, p. 28.
259
Ibid, p. 30.
94

que, naquela noite, impediu a festa do alvinegro praiano. A segunda, descreve a origem dos
progenitores do protagonista, Augusto Marighella e Maria Rita. Seu intento é descrever não
só o seu nascimento biológico, mas acima de tudo, o político. Ao se referir ao pai, frei Betto
faz questão de ressaltar que ele: “mecânico de profissão, socialista de ideias, trazia consigo a
experiência emergente do sindicalismo europeu”; quanto à mãe, o autor salienta: “descendia
ela dos negros haussás, escravos africanos trazidos do Sudão, sempre rebeldes à privação da
liberdade.”260
Nas seções seguintes do capítulo - visando empreender uma escrita dinâmica e não-
linear – frei Betto transcreve a famosa prova de química em versos que Marighella redigiu
quando frequentava o Ginásio da Bahia; narra a sua entrada para o PCB; explica o conflito
que a morte de Lênin gerou entre Stálin e Trotsky; e, por fim, relata a visita que fez à casa na
qual o criador do Exército Vermelho foi assassinado, situada na cidade de Coyoacán, no
México.261
Embora os temas escolhidos para iniciar o livro e, até mesmo, sua ordenação pareçam
incongruentes entre si, eles constituem uma preciosa amostra das intenções do autor e das
estratégias adotadas para alcançar esses objetivos.
O desejo mais elementar de qualquer escritor é convencer o leitor de que a versão que
ele construiu sobre o passado é a verdadeira. Assim sendo, a primeira estratégia de frei Betto
para alcançar essa meta é alicerçar a sua obra sobre um princípio explicativo, que nos casos de
Batismo de Sangue e O dia de Ângelo consistem no fenômeno da dissidência. Essa opção,
como apontou Sarlo, age como força organizadora do discurso, dotando-o de nitidez
argumentativa ao estabelecer “origem e causalidade”. 262
As dez primeiras páginas de Batismo de Sangue, que misturam as histórias de
Marighella, Trotsky e do próprio frei Betto, sugerem que a dissidência foi o catalizador que
conduziu, de maneira mais rápida, esses personagens ao encontro de seus destinos. Assim
sendo, a obra apresenta uma interpretação teleológica de todas as trajetórias mencionadas; a
heterodoxia teria sido uma opção consciente, diante dos dogmatismos políticos e religiosos,
para manterem-se fiéis aos valores que lhes foram legados e cultivados desde a infância.
Ao iniciar sua narrativa pela morte do revolucionário baiano, e logo em seguida
evocar suas origens, frei Betto procura construir um cerne discursivo para a sua biografia;
opção que justifica a menção às ideias socialistas do pai e à sede por liberdade dos

260
Ibid, p. 4.
261
Ibid, p. 8-10.
262
SARLO, 2007, p. 14.
95

predecessores da mãe. Seria a fidelidade intelectual e afetiva a esses valores, o


condicionamento que explicaria o abandono da formação universitária, apesar de sua
capacidade intelectual, e o dissídio com o PCB. O que, consequentemente, o teria feito
abraçar a luta armada e, em seguida, encontrar-se com a morte trágica:

O privilégio da carreira universitária não apagou, em Carlos, as marcas de sua


origem proletária e as ideias socialistas que recebera do pai. Sua sensibilidade trazia
da infância as histórias de trabalhadores desempregados pelo rápido avanço
tecnológico da industrialização europeia e dos escravos refugiados em quilombos
nordestinos. O gosto amargo da injustiça queima as entranhas, sangra o coração,
exige o conduto político para não perder-se na revolta individual ou na abnegada
fatalidade do destino.263

A estratégia utilizada pelo autor para expor o caso dos dominicanos que se envolveram
com a ALN é a mesma utilizada em Batismo de sangue. A dissidência exerce, assim, um
papel de princípio explicativo tanto para a trajetória de Carlos Marighella, quanto para a dos
dominicanos.
Por meio desse recurso, frei Betto procura estabelecer uma espécie de biografia
coletiva dos religiosos com o objetivo de comprovar que os quatro frades abraçaram a
dissidência política movidos pelos mesmos valores e princípios. As trajetórias de Fernando,
Ivo, Tito e do próprio autor são narradas como pequenas amostras que relatam a importância e
o caráter revolucionário que o processo histórico de transformação do catolicismo na década
de 1960 teve na história da Ordem Dominicana, mas especialmente, na vida de cada um
desses personagens.
Frei Betto busca, de maneira constante, sedimentar a tese de que o único caminho
possível para se compreender as opções políticas do grupo de dominicanos presos é
considerar a emergência de uma nova visão do cristianismo no pós-guerra. A defesa
intransigente dessa interpretação não se deve apenas ao fato de oferecer uma explicação para
esse passado; mas também, e sobretudo, por vislumbrá-la como um meio de legitimá-lo,
especialmente, diante da Igreja Católica. Assim, em sua narrativa, essa dissidência religiosa
seria o elemento que dá sentido às suas histórias de vida, e, por sua vez, ao apoio à luta
armada.
O desencanto com o conservadorismo e a austeridade da Igreja Católica pré-Concílio
Vaticano II teria levado uma geração de jovens nascidos, especialmente, na década de 1940 a
enxergar os grupos especializados da Ação Católica como a vanguarda de um cristianismo
revitalizado, humanizado e crítico.

263
BETTO, 1982, p. 6.
96

Como exemplos dessa construção narrativa, podem ser tomados dois pequenos textos
nos quais frei Betto se dedica a biografar de maneira bastante resumida as experiências de Ivo
e Fernando, os frades que foram usados como iscas para que a polícia pudesse rastrear
Marighella.
Nos dois textos, frei Betto, com tom emotivo, se dirige diretamente aos confrades,
como se redigisse uma carta. Logo em seguida, ele narra as sessões de tortura das quais foram
vítimas. Através desses artifícios o autor proporciona a quem lê Batismo de Sangue a
impressão de estar penetrando a intimidade do diálogo privado entre dois amigos; o que, por
consequência, potencializa o status de verdade da narrativa.
Ao se dirigir ao frei Fernando, como se procurasse fazê-lo lembrar dos episódios mais
importantes de sua vida, mais uma vez, frei Betto apresenta o fenômeno da dissidência como
o princípio explicativo da narrativa. Assim, as raízes desse princípio estariam fincadas em
uma inquietação desenvolvida na infância do religioso, ou seja, na indignação com a
desigualdade social.
Frei Betto sugere que a visão renovada e desafiadora do cristianismo, descrita como
uma “proposta que inclui ascetismo, perseguições, difamações, prisões, torturas e morte”264,
teria dado ao confrade a compreensão da relação de causa e consequência existente entre sua
origem e o sofrimento vivido nas dependências do DOPS. Exatamente a noção de que ele
almeja incutir no leitor de Batismo de Sangue. Assim, segundo o autor, no espírito de frei
Fernando “prenunciava-se a estrada que, mais tarde, o conduziria ao calvário.”265
A infância de frei Fernando o teria conduzido a produzir um importante contraste
entre, de um lado, a vida de estudante junto aos tios abastados em um sítio de Visconde de
Rio Branco, em Minas Gerias; e o prazer que ele demonstrava em estar entre os empregados
da propriedade.
Assim, a narrativa de frei Betto insinua que foi a simplicidade do confrade, atestada
pelo seu apreço pelo convívio com os vaqueiros e seus filhos, o valor moral que o levou a
inquietar-se com uma realidade social que muitos vislumbravam – inclusive a Igreja,
representada pela figura do “velho vigário [...] que só falava em dinheiro”266 e se preocupava
apenas em aliviar a consciência dos ricos por meio da caridade – sem, no entanto, ao menos
comover-se com ela:

264
Ibid, p. 195.
265
Ibid, loc. cit.
266
Ibid, p. 193.
97

De noite, encolhido sob o lampião no chão rústico da casa dos vaqueiros e dos
peões, você ouvia os casos antigos, aprendia benditas curas vegetais e era
introduzido, assustado, no misterioso mundo dos lobisomens, das mulas-sem-
cabeça, dos sacis-pererês. Café ralo e pipoca distraiam o apetite e, neles, enganava a
fome que você não conhecia. 267

Essa simplicidade, típica de quem não faz distinção entre as pessoas por sua condição
social, somada ao convívio com os vaqueiros e peões, teria revelado ao jovem Fernando o
quão vergonhosa era a diferença entre a vida na casa dos tios e a sobrevivência na “choça”
dos mais pobres, associada, pelo autor, à distinção entre a casa-grande e a senzala dos tempos
da escravidão:

A casa da fazenda era solene, quartos recortados em janelas, comida farta, pomar
abundante e variado, contrastando com as choças dos empregados, o telhado vazado
na chuva, a família apertada no mesmo cômodo, dormindo em colchões de palha de
milho, as crianças misturadas aos porcos e às galinhas, pisando o mundo, o cuspe
dos homens com a boca desdentada atravessada pelo cigarro de palha e das mulheres
pensativas com seus cachimbos de barro.268

Esse tipo de estrutura narrativa produz uma série de características que, como apontou
Sarlo, tornam sua argumentação nítida e sua leitura bastante atrativa. Entre elas, se destacam:
o caráter teleológico e a linearidade. Até mesmo os mais ínfimos detalhes da narração se
tornam repletos de significado impreteríveis para se compreender os caminhos que teriam
levado o protagonista ao encontro de seu destino.
Ao narrar as sevícias de frei Fernando pelas mãos dos torturadores do DOPS, frei
Betto constrói um fio condutor que, ao ser observado retrospectivamente, sugere que elas
foram o resultado de sua postura dissente em relação ao conservadorismo da Igreja – o que a
tornava pactuante das elites – que lhe parecia “ainda fechada ao mundo”, o que, por sua vez,
teria decorrido necessariamente de sua inquietação com a injustiça social vivenciada durante a
sua infância:

Em 1954, você chega a Belo Horizonte para estudar com os franciscanos. Esses
holandeses eram expansivos, liberais, misturavam-se aos alunos e gostavam de boa
cerveja. Mas também não responderam às suas indagações. No ano seguinte, colegas
o convidaram à romaria dos estudantes da JEC, rumo à serra da Piedade, onde o
dominicano Frei Rosário Joffily já tinha plantado sua tenda de eremita, revestido de
sabedoria, fazendo da mística um explosivo desafio à vida e, especialmente, à
soberana arte da política. No caminho, você conheceu jovens diferentes que
contavam piadas entre reflexões cristãs, partilhavam suas angústias e descobertas
sexuais com a mesma seriedade com que falavam de seus estudos e dos problemas
sociais. A surpresa maior, entretanto, foi ver aquele homem de hábito branco metido

267
Ibid, loc. cit.
268
Ibid, loc. cit.
98

nas conversas sem inibir os jovens, irradiando simpatia, confiança e argúcia: Frei
Mateus Rocha, que se tornaria pai de uma geração mineira, inspirada em seu
exemplo e estímulo. Na mesma noite, os ventos frios da serra, assobiando entre as
pedras, protegeram seu longo papo com Frei Mateus. Toda a sua vida aflorou
naquela noite. Se o frade não lhe deu respostas, ao menos abriu pistas a serem
seguidas e alargadas. E plantou em você um hábito: a leitura cotidiana do Novo
Testamento.
Na JEC, o estudo das encíclicas sociais e a atividade apostólica o fizeram percorrer
o caminho que, logo, o levaria ao convento da Serra, onde você assumiu o hábito
dominicano. São Tomás de Aquino e os místicos tornaram-se seus companheiros
diletos, embora a Igreja lhe parecesse uma casa ainda fechada ao mundo. A janela
foi aberta pela encíclica Mater et Magistra do velho e bom Papa João que, logo em
seguida, escancarou as portas convocando a Igreja para o Concilio Vaticano II. Você
descobria que o fermento não pode ficar fora da massa, a luz não deve ser escondida
debaixo da mesa e nem o sal separado da comida. A inserção no social foi
consagrada pela encíclica de Paulo VI, a Populorum Progressio, em 1967, na qual se
assegura aos oprimidos até mesmo o direito de se defenderem da violência dos
opressores. No ano seguinte, a versão latino-americana do Concilio aconteceria na
conferência episcopal de Medellín, conclamando todos os cristãos a passarem das
palavras à ação.269

No caso de Frei Ivo, a estrutura se repete. Frei Betto evoca a infância do confrade para
estabelecer um fio condutor que explique o abandono da vida tranquila na cidade do Rio de
Janeiro, repleta de “mar e areia e sol”, para sentir na pele “as pedras, os espinhos e a noite” da
capital paulista.
Assim como no caso de frei Fernando, frei Betto elenca a simplicidade como o
elemento que deu ao jovem Ivo um espírito crítico ante as desigualdades sociais, o que, por
conseguinte, o entusiasmou para a militância política. Essa construção é bastante evidente no
trecho em que ele ressalta que o confrade, mesmo após ter se mudado para o glamuroso bairro
de Copacabana, não se “afastou das peladas na praia, do basquete e da dança”, nem se
“impregnou do elitismo que inebriava, por condição social, seus colegas de classe.”270
De maneira linear, e estabelecendo uma relação de causa e consequência, frei Betto
apresenta essa simplicidade pueril como o valor moral que fez com que o confrade carioca, de
ascendência francesa, se encantasse na adolescência pelo cristianismo rejuvenescido e
descontraído da JEC e dos frades dominicanos do Leme.
Em sua narrativa, mais uma vez, frei Betto procura contrastar a concepção do grupo
religioso que integrava sobre a verdadeira vida cristã, com a visão professada pelo catolicismo
tradicional. Ele afirma que a fé que despertou a vocação religiosa em Ivo, e que seria
compartilhada por seus confrades, era “menos centrada nos ritos porque mais voltada para os
outros”, justamente, porque baseava-se na articulação de uma “opção cristã com o interesse
pelas questões sociais”. Dessa forma, seria o compromisso radical com a justiça social, como

269
Ibid, p. 194.
270
Ibid, p. 200.
99

antecipação do “Reino de Deus”, a razão deliberada para o apoio à ALN e as denúncias às


torturas narradas na sequência do livro.

2.3 A verdade nos detalhes:

A segunda estratégia para dar veracidade às narrativas que compõem às obras de frei
Betto é o uso copioso de detalhes. Através da leitura de Batismo de Sangue observa-se que
essas minúcias referem-se tanto a detalhes físicos dos locais e das pessoas mencionadas como
a traços de personalidade e estados emocionais.
Quando o frade narra, por exemplo, o episódio de sua prisão em um apartamento no
centro de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, não só detalha as características físicas dos
militares que o apreenderam, como também, o local e a tensão que a situação provocara nos
presentes.
O coronel Moreira é descrito como “de meia-idade, magro, cabelos encardidos, rosto
estreito, esforçava-se por demonstrar simpatia.”271 Já o major Áttila, que o acompanhava, era
“mais jovem, cerca de quarenta anos, cabelo à príncipe Danilo bem-aparado dos lados, rosto
redondo, a gordura bem-disfarçada sob a roupa.”272 Ao receber voz de prisão dos militares à
paisana, o dominicano solicitou permissão para ir ao banheiro. Ao explicitar esse detalhe, o
autor revela a atitude como um pretexto para se livrar de qualquer objeto que pudesse levantar
maiores suspeitas.
A composição narrativa desse episódio é marcada por sequências descritivas, com
riqueza de detalhes, acerca do espaço, das pessoas e, até mesmo, e, curiosamente, da urina:

“o corredor entre o salão de jogo e o Hall terminava à porta do banheiro; [...]


Insisti que queria só urinar. Concederam-me com a condição de manter a porta
aberta. Constrangido sob olhares, não consegui esvaziar os bolsos e nem a bexiga.
Mentalizei uma torrencial cachoeira até que o líquido amarelo, espumante, cessasse
de esguichar e fosse tragado pela descarga.
ao atravessar o hall, percebi que olhos curiosos, amedrontados, me acompanhavam
sorrateiros do alto da escada. À porta, estacionado sobre a grama do jardim, o jipão
verde-oliva, fechado, dirigido por um soldado da polícia do exército.273

Outro episódio em que se nota a abundância de detalhes é a conversa, na prisão, entre


Marcelo Cavalheira, então padre, e Jeová de Assis Gomes, jovem estudante de física da
Universidade de São Paulo (USP) e militante da ALN. Nesse diálogo, diferentemente do

271
Ibid, p. 104.
272
Ibid, p. 105.
273
Ibid, loc. cit.
100

exemplo anterior, os detalhes não consistem em descrições pormenorizadas das pessoas ou do


espaço; antes, elas se referem à tentativa de reprodução de discursos:

Gravou-se em minha memória este diálogo entre os dois, através das grades
solitárias:
– Jeová, você foi torturado horas seguidas. Desmaiou várias vezes. Fizeram com
você o que não fizeram com o Cristo. Quebraram seus brações e pernas. Você podia
ter morrido. Não passou por sua cabeça que a morte seria o encontro com o
Absoluto, com Alguém? Você se sente realizado? E se tivesse morrido?
– Padre, agora me sinto feliz porque conheço o gosto da morte. Sei, por
experiência, que sou capaz de dar a minha vida pela causa revolucionária. Minha
vida foi entregue aos oprimidos.
– Quem ama passa da morte para a vida. Nenhuma leitura cristã, de fé, quem faz a
experiência do dom total, do amor, está salvo e se encontra com Deus. A Bíblia não
diz que serão salvos os que tem fé e celebram o culto, mas sim os que são capazes
de amar. Para estar aqui nesse calabouço, eu arrisquei muito pouca coisa. Mas você
arriscou sua juventude, a carreira universitária, a formação de uma família e a
própria vida, por amor. Você faz a experiência do dom total. Isso, numa leitura
cristã, vale mais que proclamar a fé.
Jeová retrucou enfático:
– Como o senhor arriscou pouco!? O senhor é monsenhor!
– Sou merda e você é Cristo. O capítulo 25 do evangelho de São Mateus mostra
claramente quais são os critérios de salvação: são as respostas eficazes que damos às
necessidades econômicas, sociais e espirituais do próximo. Jesus se identifica com
quem tem fome, sede, vive abandonado ou aprisionado. O que fazemos ao oprimido
para libertá-lo é ao próprio Cristo que o fazemos. Portanto, Jeová, o que você faz
pela humanidade, pelo amor dos homens, é por Ele que você o faz.274

Ao transcrever a lembrança da conversa reproduzida, frei Betto recorre à memória


como instrumento de construção de sentido. A tentativa de reprodução de um diálogo
relativamente longo pode levar, por outro lado, o leitor a questionar a sua diafaneidade,
sobretudo, após mais de uma década.
Em vista disso, não seria absurdo imaginar que frei Betto, lembrando-se das linhas
gerais do diálogo, o tenha enriquecido com sua habilidade literária. Entretanto, mais
importante do que certificar se a descrição se originou ou não exclusivamente da memória do
autor, é compreender que sua persistência em registrar tantos detalhes em sua obra, sejam eles
de que natureza forem, indica sua confiança na instrumentalização dessa ferramenta para
alcançar o resultado desejado junto ao leitor.
Como bem salientou Sarlo, a profusão de detalhes dá verossimilhança à narrativa
memorialística; pois, provoca no leitor a impressão de poder visualizar o passado de maneira
completa. Torna-se muito mais difícil para um relato fazer-se crível quando se apresenta
diluído em fragmentos de memória que, com o passar do tempo escasseiam-se e tendem a
assumir uma configuração desordenada e, muitas vezes, aparentemente ilógica.

274
Ibid, p. 208.
101

2.4 O trabalho de humanização:

A terceira e mais usada estratégia de frei Betto em Batismo de Sangue e O dia de


Ângelo é a “humanização”. Podem ser assim caracterizados alguns trechos em que o autor
constrói uma descrição afetiva da personalidade e dos talentos de determinadas pessoas
mencionadas em sua narrativa, especialmente, daquelas que se envolveram diretamente com a
luta armada.
A edificação desse tipo de perfil visava contrapor-se àqueles que eram veiculados nos
jornais de grande circulação, responsáveis por qualificar os militantes das esquerdas como
terroristas e assassinos privados de qualquer sentimento. Assim, frei Betto opta por entremear
esses pequenos textos ao longo da obra, buscando dotá-los de emotividade e, assim,
convencer o leitor da face humana dos companheiros de militância. O autor se dirige a eles
por meio da forma de missiva, reportando-se diretamente ao personagem descrito, nos moldes
que já foram apontados anteriormente em relação aos confrades dominicanos.
A lista das pessoas que tiveram seus perfis “humanizados” é diversificada. Entre elas
estão: Heleny Telles Ferreira Guariba275; José Roberto Arantes de Almeida276; Clara Charf277;

275
“Heleny, formada em Filosofia pela USP, especializou-se em cultura grega. Paralelamente, estudou teatro.
Trabalhou como professora na Faculdade de Filosofia da USP e na Escola de Arte Dramática de São Paulo
(EAD). [...]
Com a edição do AI-5, seu trabalho foi interrompido. Em março de 1970, foi presa em Poços de Caldas (MG).
[...] foi localizada no DOPS/SP [...]. Tinha marcas roxas nas mãos e nos braços, provocadas por choques
elétricos. Na Oban (DOI-Codi/SP), foi torturada pelos capitães Benoni de Arruda Albernaz e Homero César
Machado, tendo sido internada no Hospital Militar durante dois dias em função de hemorragia provocada pelas
torturas. Foi transferida para o Presídio Tiradentes, onde cumpriu pena durante um ano [...]. Em abril de 1971,
conseguiu a liberdade [...].
Heleny foi presa junto a Paulo de Tarso Celestino da Silva (dirigente da Ação Libertadora Nacional) por agentes
do DOI-CODI/RJ em 12 de julho de 1971, no Rio de Janeiro, e nunca mais foram vistos.
Seus nomes constam da lista de desaparecidos políticos do anexo I, da lei 9.140/95.” Cf. COMISSÃO DA
VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO. Mortos e Desaparecidos/ Heleny Ferreira Telles Guariba.
Disponível em: <http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/heleny-ferreira-telles-guariba>.
Acesso em 18 de abr. de 2019.
102

Aurora Maria Nascimento Furtado278. Somam-se a esses nomes, os confrades já mencionados:


Fernando, Ivo e Tito; além, é claro, do próprio Marighella.

276
“José Roberto Arantes de Almeida [...] com Carlos Marighella e outros descontentes com a direção nacional do
PCB em São Paulo, funda a Dissidência Comunista de São Paulo, cuja maior parte dos membros mais tarde
integraria a Ação Libertadora Nacional (ALN). José Arantes transformou-se rapidamente em importante e
conhecida liderança estudantil, ocupando a vice-presidência da UNE na gestão de 1967-1968. Preso em outubro
de 1968, na ocasião do XXX Congresso da UNE, em Ibiúna/SP, consegue fugir das dependências do DOPS/SP e
assume a presidência da entidade. [...] Em 1969, deixa o país pela fronteira sul com destino a Cuba para
realização de cursos políticos e militares na preparação para a guerrilha. [...]. Depois de retornar
clandestinamente ao Brasil em 1971, José Roberto Arantes – assim como outros militantes com curso de
guerrilha em Cuba – passou a ser vigiado e perseguido pelos órgãos de repressão do estado. [...] José Roberto
Arantes foi preso em 4 de novembro de 1971, na Rua Cervantes, nº7, Vila Prudente em São Paulo, no mesmo
local e data do desaparecido político Aylton Mortati. Preso, foi levado vivo à sede do DOI-CODI II Exército,
onde morreu depois de intensas sessões de tortura. Enterrado como indigente no cemitério D. Bosco, em Perus,
seu corpo só foi entregue à família depois que o delegado do DEOPS/SP, Emiliano Cardoso de Mello, – amigo
da família – informou, uma semana depois dos fatos, familiares sobre a prisão e morte de Arantes. [...] O nome
de José Roberto Arantes consta no Dossiê ditadura: Mortos e Desaparecidos no Brasil (1964-1985) organizado
pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, nas páginas 286 e 287.” Cf. COMISSÃO DA
VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO. Mortos e Desaparecidos/ José Roberto Arantes de Almeida.
Disponível em: < http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/jose-roberto-arantes-de-almeida
>. Acesso em 18 de abr. de 2019.
277
“Clara Charf [...] filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), aos 21 anos, onde conheceu Carlos
Marighella, seu futuro companheiro de vida e militância. Ao lado dele, viveu na clandestinidade e militou pelo
comunismo durante os anos pós-Segunda Guerra Mundial e contra a ditadura civil-militar que se instaurou em
1964.
Integrou a Ação Libertadora Nacional (ALN), fundada em 1967 por Marighella, militante que chegou a ser
considerado o inimigo número um do regime. O relacionamento dos dois durou de 1948 a 1969, até o assassinato
dele por agentes da ditadura, em ação comandada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury.
Logo após a morte do companheiro, Clara se exilou em Cuba, onde viveu por dez anos com identidade falsa,
trabalhando como tradutora. Com a promulgação da Lei da Anistia em 1979, voltou ao Brasil, e se filiou ao
recém fundado Partido dos Trabalhadores (PT), pelo qual saiu candidata a deputada federal em 1982.” Cf.
INSTITUTO VLADIMIR HERZOG. Clara Charf. Projeto Memórias da Ditadura. Disponível em:
<http://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/clara-charf/>. Acesso em 18 de abr. 2019.
278
“Nasceu em 17 de junho de 1946, em São Paulo (SP) [...]
Estudante de Psicologia na Universidade de São Paulo era a responsável pela imprensa da UEE/SP. Manteve
ativa presença no movimento estudantil nos anos 1967 e 1968; conhecida como Lola, foi namorada de José
Roberto Arantes de Almeida (assassinado em 1971).
[...] após o AI-5, passou a atuar politicamente na clandestinidade. Integrou-se à ALN, atuando no Rio de Janeiro
(RJ), onde foi responsável pela imprensa, publicando o jornal da organização chamado Ação.
Foi presa em 9 de novembro de 1972, no bairro de Parada de Lucas, Rio de Janeiro, durante uma batida policial
realizada por uma patrulha do 2º Setor de Vigilância Norte, após rápido tiroteio, em que matou um policial. [...]
Foi torturada desde o momento de sua prisão na presença de vários populares que se aglomeravam ao redor da
cena. Aurora foi conduzida para a Invernada de Olaria, onde continuou sendo torturada por policiais do DOI-
CODI/RJ e integrantes do Esquadrão da Morte.
Aurora viveu os mais terríveis tormentos nas mãos dos torturadores que, além de utilizarem os tradicionais pau-
de-arara, sessões de choques elétricos, espancamentos, afogamentos e queimaduras, aplicaram-lhe a ‘coroa de
Cristo’, ou torniquete, uma fita de aço que vai sendo gradativamente apertada, esmagando aos poucos o crânio
da vítima.
Em 10 de novembro, morreu em conseqüência das torturas, quando jogaram seu corpo crivado de balas na
esquina das ruas Adriano com Magalhães Couto, no bairro do Méier, no Rio de Janeiro. Seu corpo chegou ao
IML/RJ classificado como o de “desconhecida”, pela guia 43 da 26ª DP. [...].
Conclusão: Aurora Maria Nascimento Furtado foi morta sob tortura pelos agentes do DOI-Codi do I Exército do
Rio de Janeiro.” Cf. COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO. Mortos e Desaparecidos/
Aurora Maria Nascimento Furtado. Disponível em: <http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-
desaparecidos/aurora-maria-nascimento-furtado>. Acesso em 18 de abr. de 2019.
103

As descrições referentes a essas personalidades evidenciam o esforço do autor em


construir uma imagem diversa da veiculada pelos órgãos oficiais de informação da época,
ancorando-se, para isso, em particularidades capazes de notabilizarem e enobrecerem-nas.
No trecho em que frei Betto se dirige a uma amiga chamada de “Ana Maria” e relata
um reencontro no início de 1980, em Teresópolis, no Rio de Janeiro – após anos de incerteza
e notícias desencontradas sobre qual teria sido seu destino – ele equipara a construção de uma
família, para um militante, à conquista da tão sonhada revolução:

Gostei muito de vê-la, Aninha. Sua casa cor-de-rosa, o marido afável, as crianças
lindas e saudáveis. Na sala, o casal de operários, seus amigos. [...] decifrei em sua
face que a vida lhe foi pródiga; provei na sua comida o sabor da amizade que se faz
mais responsável na sobrevivência; contemplei em sua família que os frutos do
parto, gerados no amor, igualam-se à tomada do poder pelos famintos de justiça e
sedentos de liberdade.279

Na mesma “carta”, o autor aproveita o relato sobre a falta de notícias a respeito de


“Ana Maria” para descrever o sofrimento das famílias dos militantes desaparecidos:

Sofrida esperança de famílias à porta da mesma casa de onde saíram seus filhos, a
aguardar-lhes a silhueta na curva da esquina, a estremecer de saudades o coração de
um pai a cada toque estridente do telefone, a tremer as mãos sôfregas da mãe
querendo adivinhar a letra da filha no papel de carta.280

No texto destinado a outra amiga, o frade ressalta o alento que a presença da família
significava na vida daqueles que estavam sofrendo as agruras da tortura e da prisão. Assim,
ele descreve a comemoração do aniversário de Heleny Guariba no presídio Tiradentes:

Guardo de você o retrato da última vez que nos vimos: era seu aniversário e seus
filhos levaram um bolo com velinhas e um presente. Ao desfazer a fita de cetim rosa
e o papel colorido, você viu o que era e começou a achar muita graça, a mostrar pra
todo mundo, a beijar as crianças que, como você, riam das calcinhas em suas
mãos.281

Outra característica dos militantes que frei Betto procura registrar é o carinho para
com seus parceiros amorosos. Ao se dirigir à Clara Charf, viúva de Marighella, o escritor
salienta a cumplicidade e o ardor de uma relação que foi vivida, quase que o tempo todo, em
meio aos perigos da clandestinidade:

279
O uso do nome no diminutivo também é uma forma de humanizar a personagem. Cf. BETTO, 1982, p. 126.
280
Ibid, p. 125.
281
Ibid, p. 52.
104

A busca de palavras adequadas para exprimir o amor que os uniu seria tão precária
como o esforço dos poetas para traduzir, nos limites do código alfabético, os
eflúvios de uma sensibilidade apaixonada. Os mistérios do amor transbordam as
palavras. [...] para nós Marighella foi o revolucionário cujas ideias e ações podemos
recuperar pela memória. Para ti, foi também o companheiro que deu vida a tua vida,
numa fusão única e rara: o caso de amor transubstanciado em causa de amor. 282

Em outro trecho, dirigido a José Arantes, o frade rememora a volúpia que


caracterizava a relação do amigo com “Lola” – pseudônimo de Aurora Maria Nascimento
Furtado –, sem, no entanto, deixar de mencionar o quanto a intensidade desses encontros era
potencializada pelo medo constante de, a qualquer momento, terem de confrontar a polícia:

“Lola” foi o grande amor da sua vida. [...] Não foi preciso manter à mão a arma
que lhe dava segurança. O local era quase deserto e você e “Lola” passaram horas
brincando no mar, o sol aquecendo seus braços, as ondas embalando seus sonhos, a
areia fina impregnada na pele banhada de suor, saciada de amor. Foram dias de
muita descontração e alegria.283

Na descrição de José Arantes, a exaltação de sua capacidade intelectual é um exemplo


de outra característica que frei Betto almeja registrar no perfil de seus companheiros,
notabilizando, com especial apreço, os sinais de sensibilidade artística:

Também fui escoteiro na infância, Zé. Só que não deixei a tropa pelo piano, como
você fez. [...] Sua aprovação no vestibular do Instituto Tecnológico da Aeronáutica
de São José dos Campos, em 1961, foi comemorada com muita alegria. Você tinha
apenas dezesseis anos e entrar no ITA, àquela época, era prova de superior
capacidade intelectual, mormente na sua idade. Muitos tentavam, poucos
conseguiam. 284

A valorização do intelecto aliada, sobretudo, à sensibilidade quanto às artes é


registrada em outros perfis como, por exemplo, o de Heleny: “Um dia você contou, com seu
jeito alegre, cativante, que fizera um curso de teatro na França [...]. Mesmo na prisão, sua
alegria contagiava.”285 E também aparece no de frei Tito:

Trazia da adolescência a espiritualidade cristã, acentuadamente mística, e a


racionalidade política embasada na ciência. [...]. afetuoso, ficava amigo de infância
em cinco minutos e mantinha-se fiel às suas amizades. Gostava muito de música
popular brasileira e aprendera a dedilhar o violão. 286

282
Ibid, p. 184.
283
Ibid, p. 62.
284
Ibid, loc. cit.
285
Ibid, p. 51.
286
Ibid, p. 49.
105

Mas, sem dúvida, o perfil que recebeu uma atenção especial quanto a essa
característica é o de Marighella. Frei Betto se esforça em demonstrar o caráter multifacetado
da personalidade do revolucionário baiano. Pode-se deduzir que isso se deve ao fato de que os
meios de comunicação construíram uma reputação caluniosa do líder da ALN, a qual
inspirava entre os seus amigos, companheiros e admiradores um sentimento de injustiça. A
sua posição de proeminência no universo da luta armada fazia com que o seu nome fosse
frequentemente veiculado.
Por isso, ao tratar de sua trajetória, Frei Betto conjuga a tenacidade de um
revolucionário forjado no sofrimento com a sensibilidade de um homem espirituoso. Assim,
logo no primeiro capítulo, ele descreve sua resistência hercúlea às seções de tortura a que foi
submetido, contrastadas ao seu espírito de poeta:

Queimam-lhe as solas dos pés com maçarico, enfiam-lhe estiletes sob as unhas,
arrancam-lhe alguns dentes. Mas não conseguem fazê-lo falar. Seu mutismo é o selo
da fidelidade. Conseguem apenas deixar em sua testa larga a pequena cicatriz que
restou da coronhada recebida ao dar uma risada na cara de um policial, em plena
tortura. Seu comportamento levaria um delegado a afirmar que “só existe um macho
no partido comunista: é esse baiano Marighella”.287

a lógica militante, precisa, cartesiana, eivada de dogmatismo, como figuras


geométricas talhadas em mármore, abre lugar em sua sensibilidade poética tecida em
humor, irreverência e paixão.288

Outro episódio que frei Betto mobiliza em seu texto com o intuito de atestar a
complexidade da personalidade de Marighella é o lançamento, em 1966, de dois livros com
poemas do militante. Para isso, o autor associa ao fato de que essa iniciativa se dá no mesmo
ano em que se exasperam as suas discussões com o comitê central do PCB sobre qual seria a
melhor tática para vencer a ditadura. A gravidade dessas divergências, levou-o a romper com
a direção do partido em agosto do ano seguinte.
Dessa forma, frei Betto destaca:

Naquele mesmo ano de 1966, entre polêmicas e opções decisivas, Carlos


Marighella encontra tempo para reunir os poemas que escrevera desde 1929 e
publica-los sob o título Uma Prova em Versos e Outros Versos e Os Lírios já Não
Crescem em Nossos Campos.289

287
Ibid, p. 11.
288
Ibid, p. 10.
289
Ibid, p. 26.
106

Por meio desse trabalho de “humanização” da imagem dos companheiros de militância


política e religiosa, frei Betto atribui à sua obra mais uma característica compatível com
aquelas elencadas por Sarlo para definir o conceito de narrativa testemunhal denominado
como “realista-romântica”.290
Especialmente no caso de frei Tito, as categorias elencadas por Sarlo são exploradas
no sentido construir uma espécie de “hagiografia contemporânea”. O título do capítulo que
frei Betto dedicou aos episódios derradeiros e trágicos da vida do confrade (Tito: a paixão)
prenuncia que, mais do que apresentar sua história de sofrimento e as circunstâncias de sua
morte, seu objetivo é demonstrar que o suicídio do religioso (prática historicamente
condenada pela Igreja Católica) foi, na verdade, um típico martírio cristão. Dessa forma, o
autor constrói uma narrativa que matiza as características mais peculiares dessa vertente da
literatura hagiográfica.
Ao iniciar o capítulo, frei Betto afirma que “na prisão, os próximos minutos assustam
mais que o feixe de anos da pena [...]. O próximo minuto pode ser o início de uma fuga, a
lâmina de uma faca retalhando a carne, a visita inesperada”.291 Logo, em seguida, ele
transcreve um trecho de uma carta na qual o frei Tito relativiza esse desejo de preservar a
própria vida. Na missiva, o frade cearense afirma:

Na cadeia, tenho descoberto o Evangelho de S. Mateus. O troço tem que ser ou pão
ou pedra. Noutras palavras, acho que ele nos convida a sermos simplesmente
homens. É impressionante como tantos não-cristãos aqui vivem isso até as últimas
conseqüências. Outro dia dizia-me um jovem: "Não falei nada porque fiz uma opção
e diante dela morrer ou não é secundário".292

Assim, frei Betto procura demonstrar que poucos dias antes de ser levado pelos
agentes do DOI-CODI e submetido às mais bárbaras sevícias, o confrade refletia sobre o
significado de resistir à tortura e sobre como o compromisso com os seus companheiros e
com os seus ideais tornava o risco de morte algo menos importante.
Isso ressignificaria o fato, recorrentemente mencionado pelo autor, de que frei Tito
manteve o silêncio, não sucumbindo, dessa forma, aos maus-tratos dos quais foi alvo, apesar
do nível extremo de violência. Segundo a narrativa, o dominicano já havia experimentado a
dor e tinha plena consciência do perigo, mas, ainda assim, escolheu se calar e assumir os

290
SARLO, 2007, p. 52-56.
291
BETTO, 1982, p. 227.
292
Ibid, p. 227.
107

riscos desse ato. Ou seja, sua atitude revelaria uma indiferença diante da morte e uma aposta
na “vitória do espírito sobre a carne”.293
Na narrativa de frei Betto não há distinção entre a postura do confrade diante das
torturas reais ou daquelas que sofria nas alucinações que experimentou depois de ser expulso
do Brasil. Mesmo delirando, a primazia de seus valores deslocaria o medo de morrer para um
segundo plano:

O silêncio de sua quietude mística, povoada pela presença inefável do Pai, rompe-se
por efeito de um pavoroso delírio: ele ouve continuamente a voz rouca e autoritária
do delegado Fleury, hóspede intruso do cérebro, do medo e dos porões da
consciência de Frei Tito. Quer que ele confesse e diga todas as coisas que sabe e
invente o que puder e dê vivas aos generais brasileiros e delate todos os seus amigos
e acuse os dominicanos, a Igreja, o Papa, e assine depoimentos falsos. Tito resiste,
não fala, suporta estoicamente todos os sofrimentos experimentados na Oban, agora
introjetados em seu espírito. Fleury ameaça torturar cada um dos membros de sua
família: o velho pai, a mãe, as irmãs, os irmãos. Tito prefere morrer do que ceder.
Ainda que sua família padeça, há nele uma força descomunal que o impede de trair
seus ideais. O chefe do Esquadrão da Morte cumpre a promessa: em seu estreito
quarto no convento de L'Arbresle — que visitei no outono de 1980 —, Frei Tito
estremece aos gritos do pai espancado no DOPS, geme aos berros da mãe
dependurada no pau-de-arara, arrepia-se de pavor aos espasmos de seus irmãos
eletrocutados, contorce-se em calafrios ao ver as irmãs despidas pelos homens do
Esquadrão. Todavia, a dor, o pânico, a subjetividade como palco de intenso conflito
entre o Absoluto e o absurdo não quebram a sua fidelidade.294

Entretanto, frei Betto, ao descrever em Tito essa atitude de quase desprezo pela
ameaça física, busca ressaltar e justificar o fato de que, ao não dizer nada aos seus algozes, o
confrade aceitou o suplício e a morte voluntariamente, a exemplo de Jesus. Segundo Carlota
Miranda Urbano, essa é a principal característica do mártir nas tipologias da hagiografia: a
emulação do sacrifício de Cristo ao “abraçar livremente a paixão”.295
Urbano afirma que a solidez e longevidade da herança literária que as tipologias do
martírio na hagiográfica representam pode ser demonstrada pela presença, já no Antigo
Testamento, desse modelo de narrativa, através do qual, se deseja abordar o sofrimento
daqueles que aceitaram enfrentar a rejeição, as perseguições e até o risco de serem mortos em
nome de suas convicções religiosas. Nas histórias de profetas como Isaias, Elias e Jeremias,
por exemplo, já se ensaiam algumas peculiaridades que, posteriormente, nos textos bíblicos
sobre a paixão de Jesus, formariam o protótipo do martírio cristão.296

293
URBANO, Carlota Miranda. Tipologias literárias do martírio na hagiografia. As origens. Theologica. Braga.
ISSN 0872-234X. Nº 41. 2ª série – Fasc. 2 p. 331-358, 2006. p. 343.
294
BETTO, 1982, p. 245.
295
URBANO, 2006, p. 343.
296
Ibid, p. 332.
108

Urbano ressalta que os evangelhos, sobretudo o joanino, transformaram a figura de


Jesus em modelo de martírio ao enfatizarem dois aspectos na história de seu sofrimento. O
primeiro é a aceitação voluntária da morte, destacada, por exemplo, na menção à sua
iniciativa de ir para Jerusalém, às vésperas de sua prisão, para cumprir o plano divino. O
segundo é a apresentação desse quadro de condenação à morte como sinônimo de triunfo e
glória; e não de humilhação, como seria o esperado.297
Assim, Urbano demonstra que nos vários modelos de narrativa hagiográfica, o
martírio é definido sobremaneira como a emulação do sofrimento de Jesus. O mártir seria a
pessoa que encara as perseguições como uma missão a ser abraçada e a morte em nome da fé
como um privilégio. Ao aceitar voluntariamente e avançar em direção ao sofrimento, ele
nutriria a certeza de que o sangue derramado, o “batismo de sangue”298, traria a purificação e
a dor experimentada seria o caminho para a glória.
A primeira iniciativa de frei Betto no capítulo é ressaltar em Tito uma postura de
indiferença ante o risco do sofrimento físico e da morte; característica apresentada por Urbano
como própria do mártir. Para isso, ele propõe um contraste entre a consciência do perigo,
habitualmente desenvolvida pelos prisioneiros, e a atitude do confrade.
A frase “é melhor morrer do que perder a vida”299 encontrada nas anotações de frei
Tito, após sua morte, e recorrentemente mencionada por frei Betto, sintetiza como o autor
constrói a narrativa do suicídio do amigo. Ao se enforcar em uma árvore no interior da
França, em agosto de 1974, atormentado pelos torturadores que se apossaram de sua mente, o
confrade teria rechaçado qualquer chance de passividade, oferecendo ativa e voluntariamente
a sua vida aos seus carrascos. Segundo o autor: “Seu mergulho na morte foi uma deliberada
atitude de quem buscou desesperadamente a vida em plenitude, lá onde ela se situa além de
nossos limites físicos, biológicos e históricos”.300
Em outro trecho, misturando suas palavras às do próprio Tito, frei Betto, mais uma
vez, ressalta o caráter voluntarioso das ações do amigo. No fragmento, são utilizados
símbolos da narrativa do episódio da morte de Jesus nos evangelhos para demonstrar que os
passos do confrade em direção à morte eram sua imitação. Entre eles estão a metáfora do
“cálice” que Jesus deveria beber; seu clamor para que ele fosse “afastado”; e o “Horto das
Oliveiras”, como o lugar no qual ele escolheu voluntariamente bebê-lo, ou seja, aceitar a
morte na cruz.

297
Ibid, p. 335-336.
298
Ibid, p. 354.
299
BETTO, 1982, p. 253.
300
Ibid, loc. cit.
109

Oblativa, emergiu em ti, irmão, a sombra da morte, Recolhias em teu dom o risco
que sobre nós pairava. Resgatava-nos das florestas do medo pela tua coragem de
abrir as portas dos jardins do Éden, anjo sentinela à entrada proibida das moradas
inferiores. Apossaste-te sozinho do cálice que te foi dado beber no Horto das
Oliveiras, sorvendo-o sofregamente, até a última gota. Clamaste ao Pai para afastá-
lo de nós, entregando-te a copa na qual nos deste teu corpo e teu sangue.
— Na cela cheia de lixo encontrei uma lata vazia. Comecei a amolar sua ponta no
cimento. [...] tratava-se desimpedir que outros viessem a ser torturados e de
denunciar à opinião pública e à Igreja o que se passa nos cárceres brasileiros. Só
com o sacrifício de minha vida isso seria possível, pensei. Como havia um Novo
Testamento na cela, li a Paixão segundo São Mateus. O Pai havia exigido o
sacrifício do Filho como prova de amor aos homens. Desmaiei envolto em dor e
febre.301

Frei Betto faz questão de detalhar em sua narrativa as torturas e as tentativas de


suicídio de frei Tito. Reproduzindo os próprios relatos do amigo, ele apresenta o sofrimento
dos choques elétricos, do pau de arara, da cadeira do dragão, o desespero na decisão de cortar
as veias do braço com a lâmina de um barbeador emprestado e de buscar a morte nos galhos
de uma árvore. Segundo Urbano, essa descrição pormenorizada da aflição e da morte é típica
das Passiones, uma das modalidades de narrativa hagiográfica do martírio.302
Outro detalhe que frei Betto explora são as provocações e ofensas que os torturadores
tecem enquanto supliciam o confrade. O autor detalha que, em meio à agressão física dos
pontapés, socos e choques elétricos, o confrade é atacado verbalmente com acusações sobre
corrupção na Igreja e ilações acerca da sexualidade de padres e religiosos. No relato sobre o
período em que esteve no DOI-CODI, Frei Tito afirma:

[...] O capitão Albernaz queria que eu dissesse onde estava o Frei Ratton.
Como não soubesse, levei choques durante quarenta minutos. Queria os
nomes de outros padres de São Paulo, Rio e Belo Horizonte "metidos na
subversão". Partiu para a ofensa moral: "quais os padres que têm amantes?",
"porque a Igreja não expulsou vocês?", "quem são os outros padres
terroristas?" Declarou que o interrogatório dos dominicanos feito pelo DOPS
tinha sido "a toque de caixa" e que todos os religiosos presos iriam à Oban
prestar novos depoimentos. Receberiam também o mesmo "tratamento".
Disse que "a Igreja é corrupta, pratica agiotagem, o Vaticano è dono das
maiores empresas do mundo". Diante de minhas negativas, aplicavam-me
choques, davam-me socos, pontapés e pauladas nas costas. Revestidos de
paramentos litúrgicos, os policiais me fizeram abrir a boca "para receber a
hóstia sagrada". Introduziram um fio elétrico. Fiquei com a boca toda
inchada, sem poder falar direito. Gritavam difamações contra a Igreja,
berravam que os padres são homossexuais porque não se casam. Às 14
horas, encerraram a sessão. Carregado, voltei à cela, onde fiquei estirado no

301
Ibid, p. 234.
302
URBANO, 2006, p. 345.
110

chão.303

Simbolicamente, frei Betto constrói a história desse confronto de frei Tito com as
autoridades que o atacavam em dois episódios descontínuos. No primeiro, ele narra a
renovação dos votos do religioso em 1970, contrariando a proibição imposta pela Auditoria
militar. Nas palavras do autor:

Em fevereiro de 1970, Tito deveria renovar seus votos religiosos. O


Provincial solicitou à Auditoria Militar licença para celebrar missa no
presídio. O juiz chamou-o para uma conversa e explicou que não daria a
autorização porque a missa poderia ser entendida como afronta ao Governo.
Frei Domingos é o tipo de homem difícil de envergar, impossível de quebrar.
No primeiro dia de visita aos presos, em março de 1970, Tito desceu ao pátio
carregado pelos companheiros. Ali mesmo, como nas catacumbas, o
Provincial recebeu os seus votos, indiferente às preocupações do juiz.304

O segundo episódio abordado é a saída de frei Tito do presídio Tiradentes, em janeiro


de 1971. Banido do Brasil após seu nome figurar na lista dos presos políticos que deveriam
ser libertos em troca do embaixador suíço Giovanni Enrico Bücher, sequestrado em dezembro
do ano anterior pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o religioso passou por uma
triagem em meio a equipes da OBAN e do DOPS para que pudesse deixar o país. Frei Betto
narra que durante o procedimento lhe perguntaram a que organização política ele pertencia; o
dominicano cearense, por sua vez, teria respondido “à Igreja”.305
Aparentemente sem grande importância, os dois episódios são profundamente
simbólicos na escrita de frei Betto. Em ambos, o amigo enfrenta as autoridades que o acursam
e faz uma profissão de fé. Segundo Urbano, a narrativa desse confronto verbal caracteriza os
Acta, outra modalidade de hagiografia do martírio. Nas palavras da autora:

[...] O clímax destas narrativas é, não o momento da morte do mártir, mas a


sua confissão de fé que o levará à morte. Nestes textos dá-se todo o relevo ao
martírio no seu sentido etimológico original, isto é, à declaração em que o
‘réu’ se assume como testemunha no agôn verbal que trava com o ‘tirano’.
Mártir e tirano representam os dois pólos de um sistema bipolarizado entre o
bem e o mal, Deus e Demónio, cristãos e pagãos.306

303
BETTO, 1982, p. 232.
304
Ibid, p. 241.
305
Ibid, p. 243.
306
URBANO, 2006, p. 345.
111

Entretanto, por unir em uma mesma narrativa o sofrimento físico, típico das
Passiones, e o confronto verbal, próprio dos Acta, o dossiê que frei Betto construiu sobre o
amigo Tito se aproxima mais das Legendas. Segundo Urbano, esse modelo de hagiografia do
martírio, além de promover a junção dessas duas modalidades de escrita, que lhe garante
como resultado um texto mais elaborado, apresenta como característica fundamental a
celebração da grandeza do mártir que seria “proporcional à força do mal e das trevas”.307
Segundo a autora:

Esta idealização do mártir não nos apresenta o homem limitado pela natureza
humana, sujeito à sua fragilidade, resignado ao sofrimento que lhe é
infligido, sustentado pela força da sua fé, mas uma figura quase sobre-
humana, inteiramente favorecida por Deus, seu aliado. Mesmo antes da
prova suprema do martírio, o mártir surge como vencedor, participando já da
glória que posteriormente vai receber na apoteose final.308

Michel de Certeau denomina essa grandeza como “virtude”. Mas adverte que o termo
“se aproxima mais do extraordinário e do maravilhoso”309, deixando para segundo plano o seu
frequente significado moral. Ou seja, a capacidade do mártir em persistir na profissão de fé,
mesmo sendo submetido a violências lancinantes, seria a manifestação de um poder
inteiramente baseado no apoio divino.
Facilmente se percebe a influência da tradição das Legendas na narrativa de frei Betto.
A constância com que ele salienta a resistência de frei Tito às dores indizíveis da tortura, sua
tenacidade ao manter-se calado e sua coragem/generosidade de oferecer/tirar a própria vida
como forma de salvar os companheiros e de fazer com que o bem triunfasse sobre o mal
(representado pela figura dos torturadores que se apossaram da sua mente) revela que esses
são os fundamentos para que sua escrita celebre a grandeza/virtude de seu companheiro.
Esses elementos são apresentados pelo autor como símbolos de momentos específicos
na trajetória do amigo, nos quais ele ultrapassou os limites da humanidade e, no mínimo,
tocou o campo do divino. Isso não significa dizer que frei Betto os interpreta como produtos
de milagres sobrenaturais, o que não é do seu feitio; mas, que considera que o caráter sobre-
humano das atitudes do confrade nessas situações-limite só pode ser compreendido mediante
o reconhecimento de que sua base foi o apoio irrestrito e constante de Deus. Dessa forma, frei
Betto procura demonstrar que a narrativa do destino trágico de frei Tito é, na verdade, a de um

307
Ibid, p. 346.
308
Ibid, loc. cit.
309
CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1982. p. 273.
112

“martírio contemporâneo”, pois, ao contrário do herói que conquista seu lugar na memória
graças à sua trajetória de vida, é através de sua morte que um mártir alcança seu assento na
história.
Ao abrir espaço em uma narrativa tão trágica como a do assassinato de Marighella e
do suplício de frei Tito para ressaltar que – para além da firmeza ideológica que dava aos seus
amigos disposição para morrer por um projeto de revolução ou pela derrubada de uma
ditadura – existia o apego à família, o carinho pelos parceiros amorosos, a fidelidade às
amizades e a sensibilidade intelectual/artística, frei Betto promove uma valorização da
subjetividade, o que, segundo Sarlo, constitui o caráter romântico da escrita memorialística.

2.5 Autoritarismo à brasileira: iludidos e privilegiados

A construção de discursos memorialísticos sobre o que foi a luta armada, e de maneira


correspondente, a ditadura militar, apresenta dois objetivos básicos inerentes: justificar as
escolhas feitas no passado e reforçar a identidade de um determinado grupo. No caso
específico da narrativa de alguns ex-militantes, essa segunda aspiração se direciona a dois
grupos: as organizações das quais faziam parte e a própria sociedade como um todo.
Nesse sentido, Denise Rollemberg e Daniel Aarão Reis julgam o livro O que é isso
companheiro? de Fernando Gabeira como aquele que melhor corresponde aos anseios
políticos da sociedade brasileira no contexto de transição do regime autoritário para o sistema
democrático durante a década de 1980. Sucesso de vendas, a obra é considerada pelos
historiadores como a versão sobre o que foi a ditadura e a luta armada no Brasil que se
estabeleceu como uma espécie de senso comum para a opinião pública.
Pesquisadora das biografias e autobiografias de ex-militantes da luta armada de
esquerda junto à Universidade Federal Fluminense, onde é professora, Denise Rollemberg
empreende uma reflexão sobre as razões pelas quais o livro de Gabeira continua a ocupar a
posição de versão dominante sobre o que foi a luta armada apesar de, continuamente, novas
biografias serem publicadas. E também sobre o porquê, diante desse quadro, das editoras
insistirem em novos lançamentos.
Rollemberg defende a tese de que o livro de Fernando Gabeira deve seu sucesso ao
fato de ter realizado com êxito uma “depuração” do passado.310 Assim, escolhendo com
destreza o que deveria ser lembrado e o que deveria ser esquecido, ou mesmo permanecer no

310
ROLLEMBERG, Denise. Esquecimento das memórias. In: MARTINS FILHO, João Roberto (org.). O golpe de
1964 e o regime militar. São Carlos: EDUFSCar, 2006. p. 84.
113

silêncio, o jornalista conseguiu não só contribuir para uma aparente “vitória” da esquerda no
campo da memória, como também conseguiu sobrepor sua versão sobre as muitas outras que,
apesar de publicadas, não conseguem, ainda hoje, alcançar a mesma aderência.
Segundo a historiadora, essa dupla vitória foi o resultado da capacidade de Gabeira de
atender às demandas do contexto de Abertura. Diante do processo de distensão, promovido e
controlado pelos militares, cujo marco cronológico mais emblemático é a volta dos exilados
em 1979 – processo no qual se inclui o autor –, era preciso falar do passado sem, no entanto,
tocar a ferida, de maneira que se promovesse uma conciliação. Por outro lado, para a
sociedade e até mesmo para grupos de esquerda, a tese de que haviam lutado para reaver a
democracia perdida era altamente desejável por seu potencial legitimador. Dessa forma, a
versão de Gabeira teria sido produzida sob a “égide da resistência”.311
Em O que é isso companheiro? se reforça a ideia de que a sociedade não tinha
consciência do que acontecia com os presos políticos e, nem mesmo, com os comuns. Dessa
forma, se dissipa qualquer referência ao apoio que vários setores deram ao golpe e ao regime
que se inaugurou com a derrubada de Goulart. Essa constatação exemplificaria o seu esforço
para esquecer certos aspectos daquele período; o que, segundo Rollemberg, não é
exclusividade do trabalho de Gabeira uma vez que: “Nas próprias autobiografias, a reflexão
sobre as relações da sociedade com o regime é muito fragilizada.”312
Através do livro de Fernando Gabeira, Rollemberg procura salientar as funções da
memória. Embora reconheça o papel silenciador que O que é isso companheiro? exerce sobre
as outras autobiografias de ex-militantes da luta armada, ela resiste a atribuir-lhe os mesmos
adjetivos elencados por Michel Pollack para caracterizar a chamada “memória englobante”.313
Considerando que o livro se destaca muito mais por dar coesão aos grupos em que o
autor estava inserido (em relação à sociedade e à esquerda armada), a historiadora prefere
qualificá-lo como “marginalizador”.314 Sua proposta é que a reflexão sobre a construção da
memória em relação ao período assuma como referências imprescindíveis tanto as funções
positivas (formação de uma comunidade afetiva) quanto as negativas, sem que com isso se
desconsidere a discordância assimétrica que existe entre as posições de Pollack e Halbwachs.

311
Ibid, p. 85.
312
Ibid, p. 88.
313
Ibid, p. 86.
314
Segundo Rollemberg, “[...] será preciso pensar a memória coletiva nessas duas abordagens, simultaneamente,
como coesiva e marginalizadora, embora mais aquela do que esta, mas sempre expressão da sociedade que se
queria renovada para os novos tempos, lembrando para esquecer. Nesse processo mais uma vez, a luta armada –
agora a sua memória ou parte substantiva dela – passava ao largo da sociedade, reafirmando-se, no presente, sua
vocação no passado.” Cf. Ibid, loc. cit.
114

As críticas de Daniel Aarão Reis ao livro de Gabeira vão nesse mesmo sentido e são
referências para o trabalho de Rollemberg. O autor também considera que a versão de Gabeira
prevaleceu graças a sua capacidade de atender às demandas do contexto.
Reis deixa claro que, como em qualquer obra memorialística, a narrativa é muito mais
testemunha do contexto em que é empreendida, do que fonte reveladora de aspectos do
período que aborda. Assim, o autor considera que em O que é isso companheiro? a autocrítica
de Gabeira e a maneira como ele conduz o leitor através do desenrolar da história tirariam o
foco de questões sensíveis do período. Ao produzir a memória, por consequência, também se
estabelece o esquecimento. E assim, se crê ser possível reconciliar a sociedade com o passado,
evitando os revanchismos.

Em Gabeira, o procedimento é mais marcado: a visão crítica do período,


amadurecida coletivamente no longo exílio, é retrospectivamente localizada no fogo
mesmo dos acontecimentos, concentrando-se no personagem principal. E, assim,
Gabeira/guerrilheiro ressurge descolado da ingenuidade ambiente, reescrito pelo
autor com uma superconsciência das tragédias que haveriam de vir. Essa atitude
distanciada, crítica, irônica, a maioria dos leitores a desejava, e assim foi possível
reconstruir o passado sem se atormentar com ele.315

Segundo a interpretação de Reis, a memória construída sobre a ditadura militar teve


como pano de fundo o contexto da distensão política e a transição para a democracia. A
aspiração da sociedade brasileira, principalmente dos segmentos liberais, era que o espírito
conciliatório assumisse o papel de protagonista nesse processo.316 Assim sendo, “o ano de
1979, marco no longo processo, expressa o sentido de conciliação no qual a transição da
ditadura para a democracia estruturou-se.”317
Reis ainda salienta que, se por um lado, a aspiração pela conciliação influenciou
profundamente a produção de um tipo de memória da ditadura – atendendo a um desejo de
verdade – por outro, ela foi utilizada, também, como uma arma poderosa na luta para
consolidar a hegemonia dessas versões. A complexidade desse processo fica bastante clara ao
se comparar o livro de Gabeira com as obras de outros militantes; especialmente, com a
produção memorialística de frei Betto na década de 1980.

315
AARÃO REIS, Daniel (Org.). Versões e Ficções: O seqüestro da História. São Paulo: Editora fundação Perceu
Abramo, 1997. p. 36.
316
Ibid, p. 37.
317
ROLLEMBERG, Denise. As Trincheiras da Memória. A Associação Brasileira de Imprensa e a ditadura (1964-
1974). In: QUADRAT, Samantha Viz; ______ (Orgs.). A construção social dos regimes autoritários:
legitimidade, consenso e consentimento no Século XX. Vol. 2: Brasil e América Latina. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010. p. 99.
115

2.6 A ditadura segundo Fernando Gabeira:

Em O que é isso companheiro?, Gabeira anuncia que sua narrativa é uma tentativa de
compreender os acontecimentos das décadas de 1960 e 1970 que o havia levado para o
exílio.318 Dessa forma, do começo ao fim, o livro é um grande julgamento das ações das
esquerdas. Ao narrar, o autor alterna a utilização da primeira pessoa do singular e do plural,
construindo uma oscilação entre a sua perspectiva pessoal e a do grupo ao qual pertencia,
buscando, com isso, fazer uma crítica contundente ao universo ideológico por meio da ironia
de suas próprias ilusões.
Embora, comumente, acredite-se que o objetivo principal do livro era narrar o
sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, ocorrido em setembro de 1969,
em uma ação conjunta pelo Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e a ALN – que
de longe foi a ação mais conhecida e simbólica das organizações de luta armada no Brasil –
esse acontecimento é apresentado, na verdade, como um exemplo que revelaria uma série de
erros conceituais e práticos que teria sido responsável pela tragédia que se abateu sobre as
organizações de esquerda no Brasil. Referindo-se ao livro, Reis afirma:

A versão mais difundida apresenta os movimentos revolucionários dos anos 60


como uma grande aventura, no limite da irresponsabilidade: ações tresloucadas.
Boas intenções, claro, mas equivocadas. Uma fulguração, cheia de luz e de alegria,
com contrapontos trágicos, muita ingenuidade, vontade pura, puros desejos, ilusões.
Diante do profissionalismo da ditadura, o que restava àqueles jovens? Ferraram-se.
Mas demos todos boas risadas. Afinal, o importante é manter o bom humor.319

Uma característica comum e importante da escrita memorialística é que, de maneira


sutil e fragmentada, ela se vai apresentando a partir de uma série de considerações sobre o
contexto histórico em que a narrativa está imersa. Dessa forma, ao se localizar, agrupar e
analisar essas afirmações, é possível identificar uma interpretação sobre a história do período
que o autor, independente da sua consciência, transmite ao leitor.
O caso de O que é isso companheiro? não é diferente. Através da narrativa de seus
próprios passos, em um passado não tão distante, Gabeira apresenta sua versão a respeito das
razões que levaram ao golpe de 1964, da ausência de uma resistência civil e militar, da

318
“Este portanto é o livro de um homem correndo da polícia, tentando compreender como é que se meteu, de
repente, no meio da Irarrazabal, se havia apenas cinco anos estava correndo da Ouvidor para a Rio Branco, num
dos grupos que fariam mais uma demonstração contra a ditadura militar que tomara o poder em 1964. Onde é
mesmo que estávamos quando tudo começou?” Cf. GABEIRA, Fernando. O que é isso companheiro? São
Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 10.
319
AARÃO REIS, 1997, p. 102.
116

radicalização das esquerdas e da repressão; além, é claro, de apresentar uma vasta lista de
erros que explicariam a derrota da luta armada. Logo no início do livro, ele afirma que os
períodos na clandestinidade, na cadeia e de contato com outros militantes acossados pela
repressão permitiram que ele compusesse um quadro explicativo mais claro sobre o que teria
sido o golpe.
Sintomaticamente, as primeiras questões que Gabeira afirma ter respondido para
alcançar esse discernimento do processo histórico eram: “Onde é que estavam os estudantes?
Por que é que não vieram as armas do Aragão?”320 Dessa forma, sua interpretação toma como
ponto de partida o imobilismo das esquerdas e não as motivações que impulsionaram civis e
militares a empreenderam a tomada do poder. Ou seja, para o jornalista, a falta de reação
daqueles que rechaçavam o novo regime explicaria a vitória do golpe. Para que não se diga
que não há qualquer menção às razões dos golpistas, o autor elenca a quebra da hierarquia
pelos subalternos das forças armadas como o ponto final na paciência dos militares para com
o presidente João Goulart.
O Presidente da República é outro personagem que tem enorme destaque na
interpretação de Gabeira. Em todas as menções ao seu nome há um tom de reprovação em
relação às suas decisões. Goulart é apresentado como um homem fraco e hesitante que tinha,
no entanto, todas as condições de vencer a oposição que queria derrubá-lo, mas, “preferiu o
Uruguai”.321
Mesmo quando o autor reconhece sua mágoa e se dispõe a ser mais complacente com
Jango, sua escrita revela que em nenhum momento ele deixou de considerar o presidente
deposto como um caudilho preocupado, sobretudo, com seus interesses pessoais:

Em minas se diz: cão danado, todos dão nele. Era assim com o governo Goulart.
Da minha parte havia uma certa inconsciência, uma certa vontade de brilhar como
redator, mas havia também uma certa mágoa. Goulart caíra sem resistir; Getúlio se
matou; Allende, mais tarde, se mataria também. Getúlio escreveu uma carta onde
dizia que saiu da vida para entrar na história. Goulart parecia sair da história para
entrar na vida: ia cuidar de seus rebanhos no Uruguai. Tudo era mágoa com quem
não se conformava com o desfecho. O melhor talvez fosse tentar entender o que se
passava. Goulart compreendeu que estava perdido e resolveu ir para o Uruguai, certo
de que o golpe era temporário, que, mais tarde, seria chamado para ocupar seu papel
na vida política do país.322

Também o PCB é apontado como um dos responsáveis pela imobilidade das esquerdas
e por não conseguir conscientizar a população da gravidade do momento político do país.

320
GABEIRA, 2009, p. 15.
321
Ibid, p. 20.
322
Ibid, p. 23.
117

Nesse sentido, O que é isso companheiro? apresenta-o como um partido anacrônico. Essa
característica o teria impedido de se aproximar da população e estabelecer um diálogo com
ela. Mais importante que isso, ela teria gerado diversas discordâncias no cerne da militância.
Assim, sua incapacidade de resistir teria resultado, para Gabeira, do cultivo de concepções
retrógradas, de seu isolamento em relação à sociedade e do fato de suas fileiras estarem
cindidas pelas discussões teóricas, o que impedia uma ação coesa e coordenada.323
Gabeira faz questão de ressaltar que essa cisão entre as pessoas que permaneceram
militando no “partidão” e aquelas que abraçaram a dissidência se estendeu até mesmo ao pós-
ditadura. Ou seja, a tentativa de se construir uma explicação para a derrota das esquerdas – ou
seja, para a letargia da resistência –, na redemocratização, foi marcada pela mesma divisão
política. Assim:

As grandes derrotas que vimos no continente ensinaram muita coisa. Uma delas é
que o vencido não tem apenas de se por em retirada o mais rápido possível. Na
primeira esquina ele precisa parar para fazer sua luta interna, rediscutir seus
métodos, definir de quem foi a culpa. Esse processo chega às vezes a um resultado
curioso. A ala moderada do movimento de esquerda acusa a ala mais radical de ser a
responsável pela derrota e o setor mais radical acusa a ala moderada. E esse pingue-
pongue toma às vezes muito tempo, até que se perceba sua inutilidade. [...] Enquanto
a luta interna se desenrolava, aqui fora, na vida real, tocava-se o barco lentamente.324

O livro de Fernando Gabeira também defende a ideia de que a ditadura militar foi
imposta à sociedade. Segundo Rollemberg, “As esquerdas, na política, na academia, na vida
pública, construíram a memória baseada na idéia de que os militares só se impuseram
naqueles anos pela força, pela manipulação dos meios de comunicação, da censura etc”.325
Três exemplos são apresentados em O que é isso companheiro? para comprovar essa
afirmação: a perseguição aos opositores políticos, a repressão aos órgãos de imprensa que
denunciassem as arbitrariedades do governo e a política de arrocho salarial para controlar a
inflação. Com eles, ficaria claro o desejo de se comprovar que, por meio da força, os militares
sobrepuseram seu projeto político à sociedade, seja quando acossaram os segmentos da classe
média que rumaram para a oposição política – armada ou não –, ou quando fixaram a redução
salarial aos grupos populares, sem que esses dispusessem de canais para reclamar a usurpação

323
Ibid, p. 25.
324
Ibid, p. 28.
325
ROLLEMBERG, 2006, p. 89.
118

de seus direitos. Logo, o clima seria de uma “asfixia geral que a ditadura militar tinha imposto
ao país.”326
Gabeira ainda afirma, em relação à política de arrocho salarial, a importância da
manipulação para arregimentar apoio ao regime. Logo, teria se explorado “o pavor da
dissolução das diferenças entre o trabalho intelectual e o trabalho manual. Diziam: os
estivadores estão querendo ganhar tanto quanto um médico. É um absurdo, uma república
sindicalista”. Rollemberg também aponta essa como uma das teses mais comuns nas
memórias de ex-militantes da luta armada para explicar a vitória do golpe de 1964.
Embora mencione o clima de perseguições e até o caso de tortura de Gregório Bezerra
logo nos primeiros dias após o golpe, o livro também apresenta a ideia de que o Ato
Institucional nº 5 (AI-5) foi um golpe dentro do golpe. Certamente, essa é a seção de sua
narrativa na qual fica mais clara a aspiração conciliatória que a obra carrega, pois ele
apresenta esse ato como aquele que selou a tomada de consciência por parte da sociedade
quanto ao caráter ditatorial do regime. Esse processo teria se iniciado a propósito do enterro
do estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto, no dia 29 de março de 1968.
Segundo o autor, o assassinato do jovem de 18 anos em meio ao protesto estudantil no
restaurante Calabouço, no dia anterior, teria potencializado a acessão de um movimento de
massa contra a ditadura. O fato teria chocado a classe média e os protestos estudantis
ensejaram a expressão de todas as insatisfações, mesmo que sem nenhum projeto político
consistente. “Nascia, progressivamente, um movimento das camadas médias que tinha como
vanguarda o setor estudantil.”327 Teria sido esse o momento do encontro de dois grupos
diferentes: os engajados politicamente e a sociedade civil. Eles falariam línguas distintas, mas,
ali, teriam selado um pacto de resistência ao autoritarismo imposto ao país.
Esse foi o ensejo para que, mais uma vez, os líderes estudantis evocassem o
compromisso com a luta pela revolução socialista. Mas, também, a oportunidade para que o
homem comum protestasse contra os problemas do cotidiano. Ao se referir à “língua” falada
por essas pessoas, Gabeira afirma:

A outra, das pessoas que iam passando, que não dispunham de nenhum programa
global para salvar nenhum país mas que se sentiam sufocadas por mil problemas
cotidianos, pelo medo, pela pobreza. Uma gente cheia de vida, capaz de subir as
escadas da câmara e dizer que assim não dava mais, que o preço dos aluguéis estava
muito alto, que o custo de vida tinha que parar de subir. 328

326
GABEIRA, 2009, p. 35.
327
Ibid, p. 57.
328
Ibid, p. 56.
119

Embora Gabeira mencione as discussões que eram travadas entre militantes de


esquerda sobre a opção pela luta armada, sua narrativa elenca o AI-5 como o “fiel da
balança”. A organização da narrativa sugere que ele foi a resposta do governo ao crescimento
dos protestos da sociedade contra o regime, a exemplo da passeata dos 100 mil.
Em suas palavras: “Com o AI-5 fomos jogados mais ainda na clandestinidade”. Logo,
fora esse fechamento intransigente de todos os meios democráticos, segundo o autor, um
“golpe de misericórdia na caricatura de democracia”,329 o elemento que fez com que que parte
da oposição abraçasse mais significativamente a luta armada.
Outra questão importante que Gabeira procura responder – e talvez essa seja a questão
principal do livro – é o porquê da luta armada, e da esquerda de um modo geral, ter sido
derrotada em seu empreendimento de derrubar a ditadura militar. O autor apresenta o
sequestro do embaixador norte-americano como a baliza temporal que demarca o “início do
fim” para as organizações armadas. De maneira bastante enfática e crítica, ele aponta várias
características que julgou comungarem do malogro da missão.
Durante toda a narrativa, o “erro” insistentemente mencionado é o isolamento da luta
armada. A incapacidade de se comunicar com a população se explicaria pela própria
clandestinidade em que viviam os militantes, o que impedia que pudessem aparecer em
público sem incorrerem no risco de serem presos. Entretanto, na visão do autor, ela resultava,
principalmente, da lógica inflexível da esquerda, que promovia uma exaltação exagerada da
“ação” ao mesmo tempo em que incutia como princípio de seus quadros uma forte
desconfiança das iniciativas exclusivamente políticas. Dessa maneira, o povo não só não teria
condições de se identificar com os revolucionários, como teriam na verdade medo de seus
atos, qualificados, ademais, como terroristas por parte da imprensa.
Ao abordar as discussões das esquerdas sobre a luta armada como forma de derrubar a
ditadura, o autor afirma: “Teorizava-se aí a grande ilusão do período: a luta contra o governo
poderia ser feita independentemente do povo, por alguns grupos armados, dotados de muita
técnica e, naturalmente, de ousadia.”330 Gabeira exemplifica esse estranhamento entre a
militância e a sociedade quando fala sobre a radicalidade e rigidez de pensamento de
Dominguinhos, participante do MR-8 e suposto autor da frase que dá nome ao livro:

Dominguinhos estava eufórico no dia dos Cem Mil. Subia em todos os postes, em
todos os caixotes e conseguia também subir em algumas bancas de jornal que
estavam fechadas naquele dia. Fazia discursos inflamados, prometia apocalipses,

329
Ibid, p. 84.
330
Ibid, p. 44.
120

um, dois, três Vietnãs. E piscava o olho pra mim, ao cabo de cada uma daquelas
revoluções sangrentas que ele descrevia. Creio que as pessoas se perguntavam, com
razão, que país era aquele. Um garoto de pouco mais de quinze anos e já tão
radicalizado...331

Em nenhum momento, Gabeira fala claramente que parte da sociedade, principalmente


da classe média, apoiou o golpe. Ele atribui a passividade da população, em abril de 1964, à
incompreensão geral da gravidade do momento. Assim, fica sugerido que ela explicaria o
posicionamento da população durante o regime, assim como o seu desconhecimento quanto
ao que acontecia no DOPS, na OBAN e em outras dependências do governo e das Forças
Armadas.
Logo, o livro de Gabeira também corrobora a chamada “tese dos porões”, ou seja, a
sociedade não teria consentido a barbárie das torturas, dos assassinatos e desaparecimentos;
ela apenas não sabia o que estava acontecendo. A expressão “porões” é utilizada nesse
sentido, até mesmo quando não se referia ao universo da luta armada: “nunca nos comovemos
de fato com o Esquadrão da Morte – as torturas que se passavam nos porões da polícia
comum eram apenas injustiças que iam desaparecer com o socialismo.”332 Essa argumentação,
implicitamente, fortalece a ideia de que sociedade ignorava o que se passava no Brasil. Ou
seja, se até os militantes não sabiam precisamente o que acontecia nas cadeias, ao homem
comum essa realidade estava ainda mais obscura e distante:

Ninguém poderia prever, com exatidão, o que estava se passando dentro das
prisões brasileiras. Todos nós, em diferentes níveis, estávamos estupefatos. Por mais
que nós enviássemos bilhetes da cadeia, por mais que colecionássemos histórias
escabrosas, não conseguiríamos aprender aquele processo em sua complexidade,
antes de vivê-lo na carne. [...] no fundo, fomos surpreendidos com o que vimos no
interior dos quarteis.333

Um dos aspectos que Gabeira mais critica e aponta como um equívoco grave é a
inadequação dos militantes para aquele empreendimento. Quando menciona as discussões
sobre qual seria a melhor tática a ser empregada, o autor afirma: “tudo se passava como se
houvesse especialistas em luta contra o governo, especialistas que iam cuidar de tudo e, num
determinado momento, quando não se sentissem mais ameaçados, chamariam o povo para
participar daquela luta.”334 Outros trechos demonstram, através de um tom irônico, a aspereza
dessa crítica:

331
Ibid, p. 68.
332
Ibid, p. 192.
333
Ibid, p. 180.
334
Ibid, p. 44.
121

A libertação do Brasil exigia pessoas práticas, organizadas e com disciplina.


Estudantes de engenharia, de química, por exemplo. Precisávamos de técnicos, gente
capaz de transformar um bolo de aniversário numa bomba que fizesse voar o
parlamento. Eu usava óculos, esquecia as tarefas mais elementares e, num momento
daqueles, me interrogava se Burke realmente amava Euviry.335

As tarefas teóricas praticamente não existiam no horizonte das ocupações


cotidianas. Eram vistas com desconfiança, apesar do nível geral ser muito baixo.
Nenhum de nós havia lido o capital, nenhum de nós conhecia profundamente a
experiência revolucionária em outros países, nenhum de nós, enfim, problematizava
alguns aspectos do marxismo, ou mesmo inventara um campo novo para pesquisar.
Tendíamos a uma concepção muito estreita do movimento e muitos achavam,
mesmo, que a ação era tudo.336

Gabeira também atribui outros erros capitais à esquerda que teriam inviabilizado
qualquer chance de sucesso da luta armada. Entre eles estão: a fragmentação; a ineficiência
das ações nas cidades que só acumulariam “rabos”337 ao invés de força; a megalomania dos
discursos que falavam em enfrentar a polícia (quando na realidade, o “máximo de
ofensividade possível era devolver com um pontapé as bombas de gás que caiam”338), e que
asseguravam a existência de um esquema de segurança (“que quase sempre consistia em
avisar a família e o advogado, publicar uma notinha nos jornais”339); e, por fim, as
improvisações como, por exemplo, comprar uns poucos móveis para dar aos aparelhos uma
aparência de que recebia moradores “normais”.

2.7 A ditadura segundo Frei Betto:

Apesar de fazer questão de apresentar suas fontes e descrever a pesquisa realizada para
que pudesse escrever sua mais importante obra, frei Betto claramente não almejava que
Batismo de Sangue fosse um livro de História. Não só por não ser um historiador profissional,
mas, principalmente porque o que fortalecia sua argumentação e lhe dava prestígio era o
caráter memorialístico de sua narrativa, ou seja, poder afirmar-se como testemunha ocular dos
fatos; em outras palavras, perante o público em geral, a narrativa se dota de maior, ainda que
aparente, confiabilidade. Portanto, longe de querer esconder o caráter memorialístico e
pessoal de sua narrativa, o autor percebeu, justamente nele, um potencial para o seu êxito e
utilizou-o conscientemente.
335
Ibid, p. 107.
336
Ibid, p. 133.
337
Ibid, p. 44.
338
Ibid, p. 45.
339
Ibid, p. 46.
122

Assim, justamente por ser um livro de memórias, o autor se dá a liberdade de


construir uma narrativa em que a caracterização da ditadura militar é feita de maneira
fragmentada e disposta descontinuamente ao longo do texto. Por isso, o regime é mencionado
com a função de oferecer um contexto às histórias de Marighella, de frei Tito e do próprio frei
Betto. Inclusive, esse ritmo, por assim dizer, de menções ao regime é uma das estratégias para
que as opiniões do autor sobre o período ganhem o aspecto de “ponto pacífico”.
Tendo em vista esse aspecto inerente à composição da obra, visualizar e analisar o que
foi a ditadura militar brasileira, segundo Batismo de Sangue, exige o mesmo procedimento
proposto na apreciação do livro de Gabeira; isto é, um trabalho minucioso para localizar
pequenos trechos distribuídos ao longo do texto e estabelecer um conjunto narrativo coerente.
Ao fazê-lo, simultaneamente, também começam a emergir as opções do autor que ajudam a
elucidar alguns dos objetivos de seu trabalho.
As escolhas mais importantes que rapidamente ganham evidência são os dois eixos
temáticos sob os quais está estruturada a narrativa; os quais dialogam claramente entre si. O
primeiro aborda o processo que teria levado ao pacto das elites para executarem o golpe de
1964, até a sua dissolução em 1968. Já o segundo versa sobre a formação e a derrocada da
luta armada.
Segundo Batismo de Sangue, o golpe de 1964 foi o ápice da tensão entre as classes
sociais no Brasil. As classes populares, insatisfeitas com a situação de miséria e com a
estrutura econômica que garantia que o país crescesse economicamente sem que jamais
diminuísse o abismo social entre ricos e pobres, enfim, se mobilizaram em torno de um
projeto nacional que lhes garantisse a cidadania. A reação a esse protagonismo dos pobres,
que representava uma ameaça aos interesses dos ricos, não poderia ter sido mais virulenta.
Forjou-se um pacto entre os grupos dominantes que, utilizando-se da força, romperam a
ordem constitucional para garantir “a livre expansão do capitalismo monopolista”.340
No fundo, o catalizador dessa história seria o processo de industrialização do Brasil.
Segundo o frade, ele teve início sob a tutela de Getúlio Vargas e foi impulsionado pelo capital
estrangeiro. Assim, as insatisfações com a desigualdade social que ele agravou teriam sido
amenizadas num primeiro momento; no caso das classes populares, pelo braço forte do
ditador; no da classe média politizada, pela confiança quase cega no anti-imperialismo da
burguesia nacional. No entanto, findo o Estado Novo, uma nova república nasceu exigindo
novos arranjos políticos e sociais. Entretanto, eles não foram capazes de “azeitar” totalmente

340
BETTO, 1982, p. 46.
123

as relações. Consequentemente, no início dos anos 1960 surgiu um novo conflito, no qual a
população assumiu seu protagonismo, o que atiçou a reação da elite. 341
Entretanto, o pacto não teve vida longa. Segundo o frade, o ano de 1968 marcou o seu
rompimento.342 Esse teria sido o ponto fulcral que colocou em polos opostos os militares e a
sociedade civil. De um lado, a ala militar do golpe estaria marginalizando seus aliados civis;
do outro, a burguesia, a classe média e setores populares se articulariam através de
manifestações de insatisfação com o regime.
Frei Betto faz questão de eleger símbolos fortes para esse divórcio. Assim como no
livro de Gabeira, os protestos pelo assassinato de um estudante no restaurante Calabouço em
28 de março de 1968 constituem o primeiro indício desse posicionamento. Esse episódio é
apresentado como aquele que foi capaz de colocar toda a sociedade em uma mesma trincheira,
enfrentando um inimigo comum: “O tiro mortal que atinge o estudante Edson Luís, nas ruas
do Rio, fere o coração de toda a sociedade civil.”343
Em outro trecho, o frade utiliza o fato histórico de ter-se produzido um cordão de
isolamento humano para impedir a intervenção da polícia militar durante a missa de sétimo
dia de Edson Luís. Esse fato produziu uma alusão da ligação física entre os presentes através
da materialização de uma união política no campo democrático contra o Estado de exceção:
“À frente da igreja da candelária, no centro carioca, sacerdotes paramentados e intelectuais
marxistas dão-se as mãos para erguer uma barreira humana entre o povo e os batalhões de
choque da polícia militar.”344
O segundo símbolo, não menos importante, é o Ato institucional nº 5. Ao longo de seu
livro, frei Betto afirma que este foi o golpe dentro do golpe. No entanto, ao contrário da
opinião dominante entre aqueles que defendem essa perspectiva, ele não acredita que os
primeiros anos do regime tenham sido menos violentos e voltados para uma ordenação
institucional que apenas, eventualmente, deu margem a abusos de autoridade. A descrição que
o autor faz dos primeiros anos deixa clara essa perspectiva:

A partir, porém, de 13 de dezembro de 1968, não foi mais preciso a direita apelar
aos grupos paramilitares para que tentassem parar a Roda Viva de Chico Buarque de
Hollanda no Teatro Ruth Escobar ou fornecessem fuzis automáticos para os grupos
radicais da Universidade Mackenzie atirarem nos estudantes da Faculdade de
Filosofia da USP, transformando a Rua Maria Antônia numa praça de guerra. Foi
decretado o Ato Institucional n.°5, o golpe no golpe. O Congresso entrou em recesso
por tempo indeterminado e ao Presidente da República foram facultadas sanções

341
Ibid, p. 46-47.
342
Ibid, p. 47.
343
Ibid, loc. cit.
344
Ibid, p. 47-48.
124

políticas independentes do controle judiciário. A repressão, violenta, cassa e caça os


setores mais combativos do país.345

Entretanto, ele utiliza a ideia de um “golpe dentro do golpe” como forma de sinalizar o
rompimento que os militares estabeleceram em sua relação com os setores civis. Ou seja, o
AI-5 seria a institucionalização dessa separação. A partir desse ponto, frei Betto passa a
trabalhar o segundo eixo temático: a formação da luta armada e a sua derrocada.
Citando escritos de Marighella, frei Betto procura vincular a opção pela luta armada
ao recrudescimento do regime. Assim, a partir do momento em que os militares mandaram
“às favas [...] todos os escrúpulos de consciência”346 e abandonaram qualquer
contemporização com os civis, uma parte importante dos setores mais politizados do meio
popular, mas principalmente da classe média letrada, teria sido “empurrada” para as armas.
Ou seja, fechados todos os canais democráticos, só restava o caminho revolucionário. E o seu
objetivo principal era derrubar a ditadura.
Mesmo citando escritos do próprio líder da ALN que discriminava alguns anseios que
iam muito além do simples reestabelecimento do regime democrático, frei Betto evita inserir
outras qualificações para a revolução almejada que não seja “popular” e “nacionalista”. No
entanto, assim como o pacto das elites com a ditadura, a reação mais radical a ela também não
teve vida longa.
Frei Betto demarca o sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick em
1969, como o “início do fim” da luta armada, corroborando a tese defendida em O que é isso
companheiro?. Ao mesmo tempo em que foi a ação mais audaciosa e bem-sucedida das
organizações guerrilheiras, ela teria enfurecido a repressão.347
No entanto, a explicação de como a repressão conseguiu liquidar com as organizações
de luta armada é uma das frentes explicativas do trabalho de frei Betto. Ao longo do texto, ele
também procura desenvolver uma autocrítica sobre quais teriam sido os erros fatais desses
grupos que facilitaram o trabalho dos homens da repressão. Assim, a luta armada foi
derrotada graças à capacidade dos órgãos de repressão e aos erros de suas próprias
organizações.
Em relação à repressão, o dominicano procura mapear os elementos que teriam
tornado órgãos como os DOPS e a OBAN ainda mais eficazes na perseguição aos opositores
do regime. Assim, o primeiro e mais insistentemente citado deles, corroborando uma das teses

345
Ibid, p. 48.
346
Frase do Ministro do Trabalho e da Previdência Social Jarbas Passarinho durante a reunião de formulação do
Ato Institucional nº5, em 1968.
347
BETTO, 1982, p. 69.
125

centrais do livro (a participação da CIA no episódio da morte de Carlos Marighella), é o


treinamento que os agentes brasileiros teriam recebido das forças armadas e agências de
inteligência norte-americanas. Frei Betto busca deixar patente a afirmação de que os métodos
de interrogatórios, as torturas, e até os, aparentemente, despretensiosos gestos durante os
depoimentos dos presos faziam parte de uma bem arquitetada cartilha que fora aprendida na
interação com os EUA, especialmente através dos cursos desenvolvidos na Escola das
Américas no Panamá.

Na Academia Internacional de Polícia, em Washington, nos quartéis norte-


americanos da Zona do Canal do Panamá ou com os instrutores da CIA ou do SSP
enviados ao Brasil, como Dan Mitrione, a repressão brasileira aprendera esta
Primeira lição: separar os comparsas, a fim de debilitá-los e jogar um contra o
outro.348

O autor ainda faz questão de mencionar outros potencializadores da repressão. Entre


eles figuram a “cumplicidade técnica”, ou seja, a certeza de contar com o trabalho de
funcionários públicos que procuravam rechaçar a imagem de “homens do regime”,
salientando a tecnicidade de suas funções, mas que no fundo prestavam um precioso serviço
para aqueles que se dedicavam ao trabalho sujo dos órgãos operacionais.

Um jovem delegado, filho de um dos mais renomados juristas do país e autor de


leis de exceção, iniciou o seu trabalho como se fosse um catedrático em aula
inaugural. Tinha o aspecto limpo de quem passou um fim de semana repousante. O
rosto bem barbeado, os cabelos lisos em perfeito alinho, brilhantes, como se
estivessem ainda umedecidos, os óculos de lentes brancas, acentuavam a sua
performance de intelectual. — Frei Betto, comigo você pode ficar à vontade. Aceita
um cigarro? Um café? Farei um interrogatório ideológico. Não me interessam os
fatos ou as pessoas. Quero conhecer melhor as suas idéias. Talvez ele esperasse que
eu fosse absolvê-lo de sua cumplicidade com o aparelho repressivo, por julgar-se
mais inteligente, mais culto e, certamente, mais bem-nascido que seus colegas de
serviço público. Pensei nos arquitetos e engenheiros alemães que projetaram os
fornos crematórios do regime nazista: devem ter-se indignado quando os tribunais os
colocaram no mesmo nível dos oficiais e dos guardas encarregados de conduzir os
judeus à morte.349

Outro fator potencializador sugerido foi a própria justiça. A inação diante dos abusos
dos agentes do Estado seria uma forma de dar o aval sem necessariamente ter que sujar as
mãos e entrar para a história como artífice do regime:

Luiz Eurico Tejera Lisboa veio a ter um destino trágico, semelhante ao de


inúmeros brasileiros perseguidos pelo terror policial. [...] Sua família repetiu a

348
Ibid, p. 144.
349
Ibid, p. 118.
126

mesma via crucis percorrida por tantas outras ainda hoje: procurou órgãos de
segurança, visitou autoridades, falou com políticos, foi a presídios e quartéis, fez
apelos e denúncias. O Governo, como um assassino de costas largas, manteve-se
calado; nada vira, nada soubera, nada a informar. Em alguma esquina do Brasil,
Luiz Enrico "evaporara". O terror do Estado agia sob a complacência da Justiça. Em
nome da segurança nacional, um jovem brasileiro fora seqüestrado e morto.
Nenhuma notícia a seu respeito. Os jornais, com a boca tapada pela censura e
intimidados, nada diziam a respeito. Contudo, uma pessoa não pode deixar de existir
nas entranhas de sua mãe, no coração de sua esposa, no afeto de seus parentes e
amigos, na admiração de seus companheiros, na memória dos que sobrevivem e
alimentam-se de seu sacrifício e exemplo. Um revolucionário é um ser social, como
uma árvore cujas raízes se espalham à sua volta, cravadas no chão da história, e
cujos frutos vão muito além de seus galhos e nutrem o esforço de libertação.350

Dessa forma, a abordagem que frei Betto desenvolve sobre a repressão ajuda a
sedimentar a ideia dos “porões”. Como já foi mencionado, segundo essa visão, os abusos
aconteciam longe dos olhos da sociedade. O autor insiste e reforça essa imagem nas diversas
vezes em que se questiona sobre como era possível que aqueles que agiam como monstros na
penumbra dos prédios do DOPS e da OBAN se mostrassem homens de educação esmerada e
dedicados à família quando à luz do dia:

Acompanhado do delegado "Pudim" e de um investigador, ele embarcou numa


perua veraneio. Sob o banco do motorista, levavam um imponente rifle. Mas a
viatura não tomou diretamente o caminho da estrada. Embrenhou-se pelas ruas da
capital paulista até parar defronte de uma confortável casa, em bairro de classe
média. Retiraram as algemas do prisioneiro, convidado a descer. Monsenhor
imaginou o pior: um local secreto de torturas. Entrou desconfiado e, muito confuso,
viu-se recebido por uma atenciosa senhora rodeada por três crianças. Eram a esposa
e os filhos do homem do Esquadrão da Morte. O ambiente revestia o delegado de
uma auréola de pureza. A família esperava o prisioneiro com a mesa posta para o
lanche, no qual não faltava o bolo feito pela dona da casa. Padre Marcelo tentava
compreender como o marido carinhoso e o pai atencioso podiam coexistir no
torturador frio e implacável. Misteriosa a natureza humana! O homem que se
deliciava em maltratar mulheres, pelo perverso prazer de vê-las nuas, gemendo
indefesas em suas mãos, agora ajudava a esposa a servir o café e brincava com o
filho menor no colo. O poder é capaz de dividir assim as pessoas? Deus e o diabo
disputam um mesmo ser?351

Porém, como já foi dito, frei Betto afirma em sua narrativa que a luta armada não teria
morrido apenas pela ação da repressão, somam-se a ela os próprios erros das organizações que
teriam sido mortais para o seu futuro. Um detalhe importante, é que esse esforço do autor em
apresentar uma autocrítica nunca é feita de maneira individual. Em todas as vezes em que
Batismo de Sangue apresenta uma avaliação dos erros das esquerdas armadas, o frade faz
questão de salientar que essa foi uma conclusão conjunta dos companheiros da organização ou
do cárcere. Isso claramente se deve ao clima de desconfiança que existia em relação aos

350
Ibid, p. 139.
351
Ibid, p. 218.
127

dominicanos após o episódio que os levou para a prisão. Para que essa avaliação tivesse
legitimidade perante as esquerdas, era necessário mais do que a palavra do escritor, conforme
as quais:

[...] do que ouvi dos antigos militantes da ALN, ficou-me a impressão de que, da
estrutura burocratizada e inoperante do PCB, Marighella passara a um movimento
de forma indefinida, na qual predomina o ativismo militarista. [...] a prática
revolucionária restringia-se quase que exclusivamente às ações armadas que, sem
apoio popular, tornavam-se cada vez mais vulneráveis a ofensiva da repressão. Não
se fazia trabalho político de massa, nem se sabia exatamente como incorporar os
trabalhadores à luta política. A guerrilha, praticamente restrita às cidades, colocava-
se como alternativa ao trabalho de base, à organização popular, com se ela fosse
capaz de, por si só, deflagrar o descontentamento latente no povo, materializando-o
no efetivo apoio ou participação na luta.
Carlos Eduardo Pires Fleury, militante da ALN, meu companheiro no Presídio
Tiradentes, disse-me um dia, num banho de sol, quando conversávamos sobre a
proposta de Marighella: — Veja, ele teve o mérito de desatrelar a esquerda brasileira
da burguesia e de passar da teoria à prática revolucionária. Mas a gente quis ir
depressa demais, superestimou a própria capacidade e subestimou as forças do
sistema. Sobretudo, não acreditamos que "o segredo da vitória é o povo", como dizia
o comandante.352

Dessa forma, o autor elenca como os principais erros das organizações de luta armada:
o impacto considerável que as prisões causavam e suas consequências, como a perda de
comunicação com pessoas, a diminuição dos quadros – sem meios para arregimentar novos
adeptos –, a inutilização de “aparelhos”; além é claro, das informações que, possivelmente,
seriam arrancadas por meio da tortura.
Outro erro seria o aumento das ações armadas em detrimento do trabalho político. Isso
teria provocado um isolamento letal para as organizações, o que agravava a falta de quadros e
levava a um outro problema: a ausência de apoio popular às ações. Por fim, ele ressalta os
erros logísticos e estratégicos:

Outras quedas se sucediam, estourando aparelhos (casas ou apartamentos alugados


pelos guerrilheiros), descobrindo listas de nomes e endereços, levantando o
organograma das organizações. Sem suficiente apoio popular, os perseguidos
valiam-se da infra-estrutura artificialmente montada. A falta de recursos financeiros
multiplicava as ações armadas para buscar o dinheiro nos bancos, em detrimento do
trabalho político, da inserção na massa, da implantação de bases sólidas. Num
mesmo aparelho reuniam-se diversos militantes, facilitando o conhecimento
recíproco e a posterior identificação policial.
A urgência de atividades de manutenção e sobrevivência impedia que, nos
refúgios, houvesse uma fachada de vida regular, metódica, incapaz de despertar nos
vizinhos a curiosidade pelos hábitos estranhos daqueles jovens de rostos tensos, sem
filhos, empregada, flores e pássaros, habitando casas sem móveis, dormindo sobre
colchões espalhados pelo chão.

352
Ibid, p. 42.
128

As investidas da repressão muitas vezes cortavam o contato entre os membros de


uma mesma organização, deixando-os inseguros, perdidos. Bastava o atraso ao
cobrir um ponto para ficar sem contatos e informações. Sucessivas quedas em
pontos tornava-os sempre mais vulneráveis: nunca se sabia se aqueles homens eram
de fato varredores da Prefeitura e se o casal de namorados estava ali por acaso ou se
eram policiais disfarçados... Nesses momentos de inquietação e desamparo é que
militantes clandestinos recorriam também aos dominicanos como a uma tábua de
salvação. 353

A derrota da luta armada marca o fim das considerações do frade sobre esse processo
histórico em Batismo de Sangue. Contudo, ele retoma o tema em O dia de Ângelo. Nessa
segunda obra, o autor expressa toda a sua frustração com os caminhos que a política nacional
toma no contexto de abertura política.
Fazendo referência à estrutura de uma ópera, a obra se divide em três movimentos,
sendo o primeiro dedicado ao universo mental do protagonista Ângelo P. no cárcere; o
segundo, ao rearranjo político que se desenhava no país – nele, o personagem principal é o
Movimento Democrático Brasileiro (MDB) – e, a seção final, ao registro da memória em um
processo judicial sobre a morte do protagonista.354
Em O dia de Ângelo, frei Betto expressa uma desilusão maior. Em sua narrativa,
apesar de relatar a existência um grande movimento civil contra os militares, ele ressalta que
não foi essa mobilização que pôs fim à ditadura. O regime autoritário brasileiro teria entrado
em declínio graças ao descrédito que seus próprios problemas lhe renderam, principalmente o
fracasso econômico:

O fracasso econômico da administração castrense e seu desgaste político devido às


negociatas e às atividades repressivas – das cassações às torturas, dos banimentos
aos assassinatos, dos Esquadrões da Morte ao desaparecimento de prisioneiros –
levou a falência o regime que, aos 21 anos, ao contrário das pessoas que, nessa
idade, são consideradas responsáveis, atingira seu ponto crítico de descrédito.355

O final da ditadura só teria sido possível graças ao surgimento de um novo arranjo


político, o qual é personificado pelo MDB. Sem citar o nome do partido, o autor o descreve
como uma “grande arca de Noé” receptora de todo tipo de políticos em nome da formação de
uma nova república, que em suas palavras, já nascia viciada e melancólica. Ele seria um
partido corrupto, oportunista, adepto de um populismo barato que dava continuidade a tudo o
que já existia no país.

353
Ibid, p. 71.
354
BETTO, 1987, p. 115-133.
355
Ibid, p. 102.
129

Tratava-se de uma salada partidária com todos os ingredientes possíveis:


latifundiários e comunistas, empresários e anarquistas, banqueiros e jornalistas,
padres e profissionais liberais, sindicalistas e feministas. O tempero advinha desta
preciosa artimanha da mais tradicional escola política do país, a mineira: ficar em
cima do muro para ver melhor os dois lados... no parlamento ou na imprensa,
deputado do partido não poupavam críticas a ditadura, denunciavam as atividades
repressivas e as torturas, defendiam os direitos humanos, atacam as empresas
transnacionais e os credores internacionais, falavam contra a censura e a favor da
reforma agraria, do direito de greve e do aumento real dos salários. Sobretudo,
exigiam o fim do regime de exceção e a volta do estado de direito. Contudo, não
passavam das palavras aos atos. Preferiam abster-se das manifestações em defesa
daquelas bandeiras, a menos que fosse véspera de eleições ou viessem respaldadas
por grande contingente popular e cobertura da TV. Uma retorica para agradar aos
próprios ouvidos, por não se empenhavam em agilizar a aprovação de leis que
pudessem arranhar os interesses de quem detinha o poder ou apurar s escândalos
financeiros que envolviam ministros. E quase sempre acatavam, resignados, o solene
desprezo do executivo e do legislativo.356

Certamente, a comparação entre esses dois autores não é suficiente para rastrear todas
as imagens que se cristalizaram na memória coletiva da sociedade brasileira sobre o período
da ditadura militar. Tampouco para esgotar a complexidade da ação de seus agentes e as
razões que permearam o processo de seu engendramento. Entretanto, ela é uma amostra
bastante eficaz para se demonstrar que a construção de uma narrativa memorialística
hegemônica sobre qualquer período histórico é moldada por intensas disputas, além de
evidenciar a impossibilidade de cindi-la de sua funcionalidade política, sua característica
intrínseca.
O cotejo entre a obra memorialística de Fernando Gabeira e a de frei Betto clarifica
que aquela narrativa, que vulgarmente se convencionou chamar de “memória dos vencidos”,
não se forjou através de uma ação coordenada, coesa e harmônica para se contrapor à versão
defendida pela direita civil-militar. Sua edificação foi o resultado de um processo complexo
envolvendo as disputas entre diversos agentes que, apesar de serem agrupados em uma
mesma corrente ideológica, apresentavam profundas divergências – seja no passado, no qual
se deram os acontecimentos, ou no presente da narrativa, quanto à postura que deveriam
assumir no contexto de redemocratização e em relação aos seus projetos políticos para o
futuro.
No entanto, ao se considerar apenas a ação de seus agentes, ainda que atentando-se
para o seu caráter conflituoso, a compreensão das razões que levaram à consagração de
determinadas versões dessas narrativas memorialísticas – e a própria decisão de empreendê-
las – fica comprometida ou, ao menos, incompleta. O contexto em que a memória é expressa é
um elemento imprescindível para a sua análise. Assim sendo, são as aspirações da opinião

356
Ibid, loc. cit.
130

pública, as disputas em meio à democratização e o conteúdo publicado nos jornais sobre os


vinte e um anos do regime, os aspectos que balizaram tanto a escrita de frei Betto quanto a de
Fernando Gabeira, explicando, inclusive, a diferença de aderência alcançada por elas na
memória coletiva.
O fim trágico da ópera emulada pela narrativa de O dia de Ângelo é a transcrição de
dois depoimentos prestados em uma investigação sobre a morte do protagonista. Neles, um
ex-companheiro de militância, que se tornou “cachorro da polícia”, e o carcereiro, que
participou de seu assassinato e da tentativa de construir uma cena falsa de suicídio por
enforcamento, mesmo que involuntariamente, produzem uma narrativa memorialística sobre
esses acontecimentos.357 Assim, a história contada chega ao seus telos, prenunciado pelo
espectro de Juana Inéz de la Cruz em seu início.
A freira poetisa advertiu Ângelo P. que a possibilidade de ser transformado, no futuro,
em personagem de uma narrativa criada por terceiros, sem que existisse a sua própria versão
dos fatos, representava o risco de experimentar dois tipos de morte.358 O primeiro seria,
inevitavelmente o biológico, mas o segundo seria político. Portanto, escrever era uma
necessidade para a sobrevivência diante da ameaça constante que pairava sobre aquele.
Ângelo P. assume esse empreendimento através de cartas que envia para o exterior
denunciando as torturas que eram praticadas pelos agentes do Estado brasileiro. Registrar suas
memórias representava o abandono da “passividade das vacas” mediante a atitude de tomar
para si o “agressivo instinto de defesa dos tigres”.359
Por meio de O dia de Ângelo, frei Betto apresenta a reflexão que o moveu para a
escrita memorialística. A sensação de ser acossado pela “opinião publicada” o faz pôr em
prática o projeto construído em suas cartas: justificar e recuperar a imagem dos dominicanos e
da luta armada. Essa opção explica suas discordâncias com Gabeira, mas também as
convergências.360
Frei Betto não só discorda das interpretações de Gabeira em O que é isso
companheiro? como também critica diretamente sua maneira de lembrar o passado da luta
armada. Ao mencionar, em Batismo de Sangue, o período durante o qual o jornalista mineiro
foi vizinho de cela do confrade Tito na OBAN, o dominicano afirma:

357
Ibid, p. 115-133.
358
Ibid, p. 17.
359
Ibid, p. 66.
360
Há um verdadeiro trabalho sistemático para, através da escrita, reforçar algumas interpretações sobre esse
processo histórico.
131

Outro companheiro soube o que é isso e estendeu-te a mão, a paz, o pão: Fernando
Gabeira. Ave insolente, um tiro atravessou-lhe o vôo para a liberdade, devolvendo-a
à gaiola de ferros. Não lhe cortaram as asas impetuosas, o amor à vida e o fascínio
pela utopia. Contudo ao retornar do exílio diria adeus às armas e, por cima de
abnegados sacrifícios, faria entender que o circo não passou de uma grande
aventura, como se o sonho fosse fruto e não matriz da realidade.361

Duas expressões representam o cerne da crítica de frei Betto ao livro de Gabeira. A


primeira é “o que é isso” – assim como em O que é isso, companheiro? –, a qual continua a
referenciar uma daquelas reações de espanto que qualquer pessoa tem quando é surpreendida
por um acontecimento incomum. No entanto, na menção feita pelo dominicano, a causa do
assombro não é mais a radicalidade política dos militantes, como na obra de seu ex-
companheiro de luta armada362; mas, sim, a barbárie da repressão. Assim, por meio dessa
mudança de sentido, o autor procura destacar que Gabeira, não só, “soube” o que foi a
repressão, como também sentiu na pele a sua mão cruel, já que foi alvejado por um tiro e
experimentou o gosto amargo da vida no cárcere, e ainda assim preferiu construir sua
narrativa em tom de farsa, negando, dessa maneira, o devido respeito aos mortos.
Já a segunda expressão, o “circo”, é uma metáfora que designa a militância política.
Frei Betto a utiliza como forma de ironizar a descrição que Gabeira fez das lutas das
esquerdas, segundo a qual, elas foram uma teatralização repleta de aventuras transloucadas
empreendidas por jovens fantasiados como os símbolos de seus idealismos. Deixando clara a
sua insatisfação, o dominicano ressalta que esse “circo” “[...] não era feito de palhaços, seus
números arriscados dispensavam redes, a arte era toda audácia”.363 Para ele, ainda que o
isolamento social e a clandestinidade (que fizeram com que “os atores” acabassem por se
apresentarem “para si próprios”) demonstrassem o equívoco da luta armada, essas
consequências compõem a mesma história da qual fazem parte aqueles que foram torturados,
mortos ou permanecem desaparecidos. Portanto, o tom jocoso de O que é isso companheiro?
seria, absolutamente, desrespeitoso.
Entretanto, apesar da sutileza, a crítica mais profunda de frei Betto à obra de Gabeira
se direciona às suas conclusões sobre a relação entre idealismo e realidade. Basicamente, o

361
BETTO, 1982, p. 234.
362
Gabeira utiliza essa expressão como símbolo da desconfiança que sua visão de mundo teria causado em seus
companheiros de luta armada. Na perspectiva do autor, a rigidez de pensamento e a atitude dominavam as
organizações de esquerda naquele contexto e seriam os verdadeiros causadores dessa incompreensão. O autor
narra por exemplo que, espantado com a precocidade e o radicalismo da militância de Dominguinhos, sugeriu ao
colega que fosse “colecionar figurinhas” ou arrumar uma “namoradinha”. Ao apresentar a pergunta “o que é
isso, companheiro?” como a réplica espantada proferida pelo jovem militante, Gabeira sugere que ela expressa,
na verdade, a intolerância que a intransigência política causava quando confrontada por um pensamento
heterodoxo. GABEIRA, 2009, p.49.
363
BETTO, 1982, p. 234.
132

dominicano recusa a tese de que as utopias, que em sua perspectiva nutriram e motivaram a
luta armada, eram apenas um conjunto de ilusões produzido pelo contexto histórico tanto
nacional, quanto internacional. Do seu ponto de vista, essa inversão narrativa da ordem dos
fatores altera tragicamente o produto final.
Para frei Betto, é a história concreta que deve ser explicada através das utopias que
motivaram os agentes sociais, e não o contrário. Isso fica bastante evidente através da análise
de Batismo de Sangue. Observa-se que essa ordenação dos fatores na construção da narrativa
é uma das maneiras pelas quais o autor busca demonstrar que as atitudes das esquerdas
naquela conjuntura – especialmente daqueles militantes que escolheram o caminho
revolucionário –, apesar de equivocadas, se justificam, pois se embasavam no apego a valores
legítimos.
Dessa forma, ao criticar Gabeira por tratar a utopia como se “fosse fruto e não matriz
da realidade”, frei Betto oferece um indício significativo de que interpreta essa inversão
explicativa como uma forma de instrumentalizar o passado para desqualificar a luta armada, e
não para apontar os equívocos cometidos durante aquela experiência. Em sua visão, O que é
isso, companheiro? estabelece como as causadoras das ilusões revolucionários dos jovens
guerrilheiros a polarização política vivida pelo Brasil nas décadas de 1960-1970 e as vitórias
dos partidos comunistas em outros países. Assim, ao focalizar a suposta “cegueira” militante,
a obra conseguiria dissipar qualquer validade moral daquelas ações, assim como, a
culpabilidade dos que as praticaram, dentre os quais se situa a figura seu próprio autor.
O fato de frei Betto utilizar a palavra “sonho” ao invés de “utopia” em sua crítica a
Gabeira não é fortuito. Ele indica uma referência à única passagem na qual o jornalista
aborda diretamente o assunto. É, justamente, através da análise desse trecho da obra que se
pode compreender porque frei Betto utiliza a metáfora do “circo” para ironizar a maneira
como Gabeira descreve as organizações armadas.
Em sua reflexão sobre a participação dos operários na luta armada, Gabeira faz
questão de salientar o contraste entre sua visão e a dos membros mais jovens da organização.
Segundo sua narrativa, enquanto sua maneira de enxergar o contato dos militantes com os
trabalhadores era caracterizada pela sobriedade; o olhar de seus companheiros é marcado pelo
caráter fantasioso, profícuo de idealização – o que ele denomina como “realidade mental”.364
O autor constrói uma explicação para essa distinção logo no início do livro ao enfatizar que:

364
GABEIRA, 2009, p. 142.
133

Aquela geração de jovens políticos tinha uns dez anos menos que eu. Minha
revolta se curtiu no triângulo familiar, nas lutas para ter os amigos que quisesse,
escolher a carreira que me parecesse melhor, chegar em casa mais tarde. Esses
jovens se chocam na adolescência com um problema inédito para nós: a ditadura
militar. nos tempos de secundarista, combatíamos uma política educacional elitista,
mas num quadro de um governo democrático.
Essas diferenças foram pesando muito nas formações que se defrontavam ali, diante
de uma atividade comum. Para eles tudo era política partidária. Alguns não tinham
tido nem sua primeira namoradinha e já estavam inscritos numa organização. [...]
Até hoje tento explicar a causa de nossas desconfianças mútuas. Os de minha idade
já estavam colocados, já tinham empregos bem remunerados e gastaram grande
parte de sua vida tentando entender as relações interpessoais.365

Gabeira atribui essa limitação de perspectiva que caracterizaria os companheiros mais


jovens à rigidez das referências marxistas que eram apregoadas pelas organizações de
esquerda. No seu caso específico, justamente por ter se envolvido com esse universo militante
quando já era um homem adulto, sua formação teórica “decadente” lhe teria salvo da
intransigência que dominava o meio militante. Assim, seu olhar complexo e sóbrio, em
contraste com o dos jovens guerrilheiros, lhe permitiu “colocar um dedo na engrenagem”.
Sobre essas restrições nos debates das organizações, ele ressalta que o quadro teórico “[...]
permitia apenas explicar as determinações sociais que operavam no indivíduo. Mas não
tínhamos a mínima ideia das múltiplas mediações que são colocadas pela vida pessoal de cada
um ao recebe essas influências sociais”.366
Dessa forma, a narrativa de Gabeira descreve as atividades políticas desses jovens
militantes como uma teatralização de uma “revolução” cujo roteiro há muito tempo era
abastecido pelos modelos teóricos e práticos. Sua reflexão sobre o contato das organizações
com o operariado se constitui na passagem do livro na qual mais claramente ele ilustra como
essa “farsa” teria se tornado concreta. Nela, o autor apresenta os dois lados dessa interação, ou
seja, operários e estudantes de classe média, como os principais exemplos de como os
personagens buscavam se transvestir em tipos ideais.
No caso dos operários, Gabeira narra que o golpe de 1964 causou uma grande
desilusão com o PCB, não só porque o “Partidão” foi incapaz de esboçar uma reação; mas,
principalmente, por ter abandonado a assistência a seus setores de base. Assim, não demorou
para que as organizações dissidentes buscassem cooptar esses trabalhadores que se
encontravam politicamente desorientados. Entretanto, a iniciativa desses grupos de integrar
paulatinamente seus militantes operários às ações armadas, afastando-os, consequentemente,

365
Ibid, p. 49.
366
Ibid, p. 50.
134

do “chão da fábrica”, teria feito surgir um tipo artificial. Esse trabalhador não seria mais, de
fato, um “operário”; mas, sim, um representante “profissionalizado” dessa categoria.367
Gabeira ironiza a legitimidade dessa “representação” ao afirmar que um desses
profissionais que ele conheceu, “inclusive, tinha tido tempo para desenvolver suas habilidades
no violão e dava algumas aulas particulares”368; ao contrário dos “verdadeiros” proletários
que, obviamente, tinham todo o seu tempo consumido pelo trabalho nas fábricas. O tom de
galhofa utilizado em O que é isso, companheiro? para abordar esse tema fica ainda mais
evidente quando o autor contrasta a reverência com que as esquerdas evocariam seus “setores
operários” para resolver determinadas discordâncias como o número real de trabalhadores que
compunham seus quadros. Em suas palavras, “nem sempre as bases operárias podiam somar
mais do que cinco pessoas”.369
Em relação aos estudantes da organização, Gabeira descreve o processo de
“proletarização” como o maior exemplo dessa teatralização do engajamento político. Segundo
o jornalista, nos anos 1970, boa parte dos jovens militantes teria se esforçado para mudar sua
aparência e, assim, adequar sua imagem àquela que acreditava ser a de um trabalhador
comum. Através dessa transformação, eles ensaiavam uma maior aproximação com a classe
operária. Entretanto, ao invés de ficarem parecidos com os “proletários” reais, aqueles que se
submetiam a essa caracterização acabavam, segundo o autor, assumindo as feições que, na
verdade, “as pessoas da classe média” achavam serem as de um operário: “pobre, mas
limpinho”.370 Como forma de ridicularizar esses métodos, Gabeira afirma que os próprios
operários compreendiam sua artificialidade. Em suas palavras:

[...] Os operários conheciam de sobra os grupos que falavam em proletarização, os


jovens da classe média que cortavam o cabelo curto, botavam uma calça mais larga,
deixavam crescer uma costeleta, um bigode fino e se declaravam também
proletários. Quase todas as organizações se lançaram nessa aventura chamada
proletarização, que era a tentativa de transformar seus intelectuais em proletários,
sem tirar nem pôr, incapazes de serem distinguidos no meio dos outros.371

Gabeira se esforça para demonstrar que o operário da “realidade mental” das


organizações de esquerda só existiria nos “cartazes maoístas” e nos “documentários do
realismo socialista”.372 Ele salienta que o fetiche cultivado por essa idealização seria tão

367
Ibid, p. 140.
368
Ibid, loc. Cit.
369
Ibid, loc. Cit.
370
Ibid, p. 85.
371
Ibid, p. 139.
372
Ibid, p. 142.
135

grande que se expressaria até nas relações amorosas. Em suas palavras, “surgiam pessoas que
queriam transar com um operário ou uma operária, porque afinal queriam ligar suas
convicções à sua prática amorosa. Nada de pessoal nisso: queriam um operário como se quer
um louro, um moreno ou um asiático.”373
Entremeado nessa reflexão, Gabeira se apresenta como personagem dotado de uma
visão sóbria. Ele ressalta que não se deixou seduzir pela “proletarização”, chegando até
mesmo a se posicionar dentro da organização contra esse processo, e que tinha consciência de
que era um intelectual “[...] e que estava ali para dar uma colaboração, aprendendo muitas
coisas com eles, pois em quase tudo que íamos nos meter, de agora em diante, eles sabiam
mais do que eu”.374 Segundo o autor:

Nasci e me criei num bairro operário, de trabalhadores da indústria têxtil. Vi


processos históricos como a desapropriação dos seus teares e sua absorção nas
grandes fábricas. Exatamente como no primeiro tomo do Capital, só que diante do
meu nariz e com os teares sendo puxados pelas janelas e metidos nos caminhões da
Meurer, Moraes Sarmento e outras. Conheci operários simpáticos, operários
insuportáveis, e não tinha muita razão para idealizá-los. Mas, ainda assim, uma certa
insegurança pairava no ar, um medo de me meter nos descaminhos, em
encruzilhadas que, mais tarde, cinquenta anos depois, mostrariam que neguei a
perspectiva operária.375

Entretanto, a inexorabilidade (ou não) da sonhada revolução para resolver os


problemas concretos dos operários é a questão através da qual Gabeira procura marcar, de
maneira definitiva, a distinção entre suas concepções e as das organizações de esquerda. Em o
que é isso, companheiro? o autor narra que, depois do episódio do sequestro do embaixador
americano, passou algumas semanas hospedado na casa de uma família de operários na cidade
de São Paulo. Dessa experiência, que ele qualificou como reveladora de “outras realidades”, o
papel da televisão na rotina dos trabalhadores foi o aspecto que lhe pareceu mais adequado
para demonstrar a incompatibilidade de sua visão em relação à rigidez de pensamento das
esquerdas.
No trecho em questão, Gabeira defende que a aquisição de uma televisão significava
“um avanço do nível de vida material” das camadas mais pobres, pois, possibilitava que elas
tivessem a chance de consumir “mercadorias culturais extremamente sofisticadas”. Segundo o
autor, os operários “necessitavam do feijão e também do sonho” para atenuar os “cansaços da
fábrica”, ou seja, para a “reprodução da força de trabalho”. Por isso, o eletrodoméstico com

373
Ibid, p. 141.
374
Ibid, p. 139.
375
Ibid, p. 141.
136

sua capacidade de fazer com que as pessoas – inclusive ele – esquecessem, por algumas horas,
suas “vidas pequenas” e “problemas prosaicos” possibilitaria aos trabalhadores a
oportunidade de alcançarem uma “melhoria real da vida” através do consumo.376
Embora não questione diretamente a necessidade de se promover a revolução para se
alcançar a emancipação do proletariado, a ressalva que Gabeira tece, segundo a qual essas
suas considerações sobre o papel da televisão na vida dos operários seriam “execradas pela
esquerda de Neanderthal”377, sugere que a rigidez de pensamento que dominava esse espectro
político era tão grande que chegava a impedir que seus adeptos enxergassem as necessidades
mais corriqueiras dos trabalhadores; assim como, os fazia acreditar que a opção pelas armas
era um caminho inexorável para os militantes.
De acordo com a crítica de frei Betto, O que é isso, companheiro? narra a trajetória da
luta armada no Brasil como a história de um processo através do qual a polarização extrema
dos anos 1960-1970 provocou em parte das esquerdas um “delírio” revolucionário que, de tão
descolado da realidade, fez com que seus adeptos aceitassem lutar e morrer por uma aventura
idealizada em suas mentes e teatralizada por seus corpos. Apesar de absolutamente contrário à
essa visão, o dominicano também reconhece os equívocos das organizações revolucionárias
em suas obras dos anos 1980. Entretanto, diferente de Gabeira, ele procura fazer de sua
memória uma ponte para que as lições históricas extraídas daquele passado traumático
pudessem contribuir para a consolidação da “nova esquerda” que estava surgindo naquele
período.
As críticas de frei Betto ao caminho das armas dialogam, diretamente, com sua aposta
na perspectiva de que as esquerdas só chegariam ao poder, em um futuro próximo, através de
um partido de massa, no caso, o recém-fundado PT. Sua narrativa do fim trágico dos
companheiros de militância, longe de querer desqualificar a luta armada, definindo-a como
uma aventura transloucada, busca demonstrar que, assim como nessa experiência pregressa,
não haveria possibilidade de êxito para as esquerdas se não fossem capazes de sustentar a
proximidade e o protagonismo de suas bases populares. Logo, por essa aspiração funcional,
suas memórias podem ser classificadas como sendo de reconstrução política.
A versão compartilhada e robustecida por ambos é a de que a imposição do AI-5, um
golpe dentro do golpe, foi o estopim para que a sociedade civil tomasse consciência do
autoritarismo vigente e rumasse para a oposição e resistência ao regime. Já a luta armada
alcançou seu momento de glória no episódio do sequestro do embaixador americano. Mas,

376
Ibid, p. 143.
377
Ibid, loc. Cit.
137

esse também foi o motivo para um acirramento da repressão que, somado aos muitos erros
táticos – especialmente o isolamento da sociedade, causado pela valorização extremada da
ação em detrimento de outras atividades políticas –, em pouco tempo levou as organizações
guerrilheiras à derrota definitiva.
Essencialmente, frei Betto e Fernando Gabeira discordam sobre a gênese da ditadura
militar e da luta armada. Enquanto jornalistas e escritores profissionais, ambos estruturaram
suas narrativas, tacitamente, sobre os antônimos culpa/inocência.
Segundo Gabeira, a ditadura foi uma imposição dos militares, e a luta armada, produto
das muitas ilusões daquela juventude, somada a um total despreparo teórico e prático para
compreender a vida e a política. Sua narrativa sugere que apesar de suas responsabilidades, a
sociedade e as esquerdas são inocentes. A primeira por ter sido ludibriada e não compreender
a gravidade do contexto; a segunda por ter sido movida por um romantismo imaturo.
Já segundo frei Betto, o golpe de 1964 e o regime que ele inaugurou foi o resultado de
uma ação coordenada e coesa de parte da sociedade (a elite econômica) junto aos militares. A
luta armada, apesar de ter sido uma ação longamente incentivada e teorizada por diversas
vertentes dentro do campo da Esquerda, as quais apregoavam projetos revolucionários
distintos, teria sido uma reação à barbárie promovida pela ditadura e ao fechamento de todas
as vias democráticas que ela estabelecera.
Desse modo, a escrita de frei Betto esforça-se em denunciar a cumplicidade dos
setores civis no estabelecimento do regime autoritário, ao mesmo tempo em que procura,
através da descrição da barbárie, legitimar o passado daqueles que escolheram o caminho das
armas. Ela se coloca na contramão das aspirações de parte da opinião púbica e do próprio
governo, na década de 1980, de promover um esquecimento que pudesse apagar o apoio que o
golpe recebeu de alguns segmentos para que, assim, permanecesse na memória a certeza de
que toda a sociedade esteve coesa dividindo a mesma trincheira de resistência no regime
imposto ao país pelas forças armadas.
138

3 SÉCULO XXI: genealogia dos valores

Nas narrativas biográficas e autobiográficas é natural, e quase obrigatório, que o


protagonismo seja reservado ao biografado. Entretanto, alguns momentos raros e inusitados
permitem que esse indivíduo não ocupe o posto de personagem principal da própria história.
No caso específico de frei Betto, o início do século XXI representou exatamente esse
interlúdio que possibilita enxergar a si mesmo na posição de coadjuvante. Por mais
inacreditável que possa parecer – por se tratar de um autor dedicado à escrita autobiográfica –,
nas narrativas sobre esse período da vida do dominicano, inclusive nas que ele próprio
escreveu, a jornada de Lula rumo à vitória na corrida presidencial de 2002 prepondera a tal
ponto que não deixa margem para que acontecimentos estritamente pessoais de sua trajetória
sejam abordados.
Intensamente empolgado com a possibilidade real de êxito eleitoral do partido que vira
nascer em meio aos trabalhadores, enquanto assessorava a Pastoral Operaria no ABC paulista,
o frade sequer vacilou em reconhecer que o candidato do PT foi a figura mais importante de
sua caminhada no advento do novo milênio.
Para frei Betto, essa euforia com a eleição de Lula em 2002 se nutria da visão idílica
de ter na presidência uma figura que encarnasse, simultaneamente, o que ele acreditava ser a
tradição de luta contra a opressão no Brasil – repleta de mártires e heróis – e o futuro glorioso
que o país merecia, um “dom Sebastião” que fizesse correr “leite e mel” nos subúrbios. 378
Entretanto, esse entusiasmo também fincaria raízes em uma leitura, por assim dizer,
mais realista do contexto que não deixa, no entanto, de entrelaçar essas referências ao passado
e ao porvir. Se por um lado, o frade, de fato, acreditava que a posse de um “ex-retirante, ex-
379
engraxate, ex-tintureiro, ex-metalúrgico, ex-preso político” pudesse irromper uma
“revolução social” no país; por outro, ele a encarava como a “coroa da justiça” para
companheiros que por sua militância na esquerda, sobretudo durante a ditadura militar,
perderam suas carreiras, empregos, a juventude e até a própria vida.
Ao exaltar a “vitória pacificamente esculpida” 380
, frei Betto sugere que esta foi
alcançada graças à capacidade de parte das esquerdas de reconhecer os erros da luta armada e
não os repetir. A subida da rampa do Palácio do Planalto pelo PT representaria a reconciliação
com o triunfo político para aqueles que, através da via revolucionária, só tinham

378
BETTO, frei. A mosca azul – Reflexão sobre o poder. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2006. l. 218.
379
Ibid, l. 231.
380
Ibid, l. 214.
139

experimentado derrotas. Esse reencontro só foi possível graças ao caminho da “[...]


legitimidade sacramentada pela legalidade inconteste das urnas” 381.
Certamente, a escrita memorialística do dominicano não passaria incólume por esse
fato, aparentemente irônico, de que, dezessete anos depois do fim da ditadura militar,
perseguidos e desafetos do regime passavam a ocupar cargos nas instituições governamentais
– inclusive o próprio dominicano, que se tornou assessor especial da presidência da república
–, as quais eram acusados de querer destruir por meio de suas “atividades subversivas”.
Alfabetto, o primeiro livro memorialístico de frei Betto nesse novo contexto, foi
lançado no mesmo ano em que Lula foi eleito; portanto, concomitante à chegada desses ex-
militantes ao governo e durante a plena vigência da hegemonia da memória liberal-
conservadora382 da ditadura militar. Embora a ênfase que essa versão deu à condenação do
terror praticado por agentes do Estado tenham minimizado as referências a atos violentos
praticados pelas organizações de luta armada naquele período, certamente, esse passado
permaneceria como um “fantasma”, pronto para ser evocado nos momentos de crise e adensar
as críticas.
O lançamento de Alfabetto e Diário de Fernando na primeira década do século XXI
coincide, não por acaso, com o período (1995-2014) no qual outras memórias da ditadura
militar, que até então se mantinham vivas em círculos ideologicamente mais restritos,
começam a romper essas fronteiras e adquirem visibilidade pública através de manifestações
na imprensa, na internet, nos protestos de rua etc. Essas narrativas passam a tensionar o
debate, empunhando a bandeira do revisionismo, ao vislumbrarem a entrada do Estado
brasileiro no antagonismo de ideias sobre o regime, principalmente, através de ações
concretas como a reparação das vítimas da violência promovida pelos agentes da ditadura –
383
ainda que sem qualquer pretensão de puni-los. Dessa forma, começaram a aparecer os
primeiros sinais de declínio da funcionalidade política que, outrora, a versão liberal-
conservadora apresentou.
Entre o início da era FHC (1995) e o terceiro mandato presidencial do PT (2015), à
medida que a política de memória do Estado brasileiro se tornou mais abrangente e complexa,
o revisionismo ganhou espaço no debate público. As insatisfações civis e militares, que já se
acumulavam desde as primeiras versões do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) e
que alcançaram seu auge com a instalação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), foram

381
Ibid, l. 184.
382
NAPOLITANO, 2015, p. 19.
383
Ibid, p. 34.
140

potencializadas pela reabilitação de lideranças da direita conservadora – estratégia adotada


pelo PSDB para fazer frente ao sucesso eleitoral do PT, seu maior rival naquele contexto –;
pelas denúncias de corrupção nos governos de Lula e Dilma e pela crise econômica
desencadeada mundialmente em 2008384.
Assim, a brecha aberta na hegemonia da memória liberal-conservadora pelo
revisionismo385 do início do século XXI possibilitou que, em pouco mais de uma década, a
memória de extrema direita rompesse os interditos de fala e se posicionasse no debate
público.
A elaboração de uma “versão brasileira da ‘teoria dos dois demônios’”, “por volta de
2002-2004”386, segundo a qual a violência de ambos os lados é igualmente responsável pelo
golpe e pela ditadura, foi o primeiro sinal de que as transformações históricas no campo
político estavam fragilizando as bases de sustentação da narrativa dominante.387 Logo,
emergiram do silêncio autoimposto às vozes que lembram com nostalgia do período,
descrevendo-o como tempo de ordem (política e social) e progresso, ideia sustentada pela
afirmação por parte das instituições do conservadorismo no exercício da autoridade – ainda

384
NAPOLITANO, 2020, p. 36.
385
Um dos exemplos é o afamado editorial da Folha de S. Paulo no qual ela relativizava a violência do regime ao
utilizar o neologismo “Ditabranda”. Cf. FOLHA DE S. PAULO. Limites a Chávez. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 17 de fev. 2009. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm>.
Acesso em 14 de mar. de 2019.
386
Os artigos do ex-ministro Jarbas Passarinho no jornal O Estado de S. Paulo, nesse período, são emblemáticos
do esforço para “denunciar” o que ele qualificou como a deformação da história. De maneira geral, o militar
defende que a expressão mais clara dessa desfiguração da verdade seria a intepretação da violência praticada por
ambos os lados de maneira desigual. Assim, no caso dos agentes do Estado, ela foi condenada, mas, em se
tratando dos militantes da luta armada, ela teria sido legitimada pela política de reparação das vítimas.
Passarinho também estabelece, implicitamente, uma paridade entre a violência do Estado e da Luta Armada, ao
atribuir a derrota dos “comunistas” ao isolamento social que seus métodos causavam em detrimento das
explicações que a conferiam ao “terrorismo de Estado”. Toda a sua argumentação reforça uma visão de belicosa,
segundo a qual, a violência, como instrumento, iguala os dois lados moralmente (não que ele não defendesse a
superioridade moral das ações do Estado, mas o contexto já não era propício a uma defesa explícita dessa visão).
Por isso, seria justo que os vencedores recebessem os “louros da vitória” e os vencidos o consolo do
esquecimento. É justamente, contra a “história reescrita pelos vencidos” – essa suposta injustiça – que se
estabeleceu no período pós-ditadura, sobre o qual o ex-ministro insurgira-se. Cf. PASSARINHO, 2002, p. A2.
______. Terroristas, torturadores e aproveitadores. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 124, n. 40222, 02 de
dez. de 2003. Espaço Aberto, p. A2. Disponível em: <https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20031202-40222-
spo-2-opi-a2-not>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
387
Segundo análise de Fernando Seliprandy, o conjunto de obras sobre a ditadura militar publicadas pelo jornalista
Elio Gaspari no início dos anos 2000 “é hoje a manifestação mais estabelecida da versão da equivalência de
tortura e luta armada [...]”. SELIPRANDY, Fernando. Imagens divergentes, “conciliação” histórica: memória,
melodrama e documentário nos filmes O que é isso companheiro? e Hércules 56. 2012. 230 f. Dissertação
(Mestrado em História social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. p. 57. Disponível em:
<https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-30082012-115331/pt-br.php>. Acesso em: 25 de Set,
2019.
A narrativa de Gaspari defende essa interpretação ao construir uma concomitância entre dois supostas processos.
De um lado, a autonomização da “tigrada” em relação a seus superiores hierárquicos e, do outro, a degradação
das organizações da esquerda armada rumo à violência indiscriminada da “pistolagem”. GASPARI, Elio. A
Ditadura escancarada. 2. Ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 407-473.
141

que isso signifique a rejeição de valores liberais – e na preservação de “valores morais” no


campo dos costumes. Mas, sem dúvida, sua expressão mais radical é a negação de que as
sessões de tortura aconteceram e que houvesse presos políticos388. Segundo Napolitano:

O fato que nos importa é que esta nova conjuntura político-ideológica-partidária


abalou um espaço sócio-político (institucional e simbólico) que sustentava a
memória hegemônica do regime militar, espaço este que sempre foi conflitivo, mas
que não hesitava em defender o aprofundamento da democracia, o protagonismo da
sociedade civil e a condenação do autoritarismo da direita. Ao que parece, a
memória hegemônica ancorada neste espaço não se diluiu totalmente, mas tem
enfrentado questionamentos, tendo que dividir espaço público com memórias
inorgânicas e difusas, claramente de extrema direita, que chegaram a esboçar
reedições patéticas da “marcha da Família” e de passeatas pela “volta dos militares”,
eventos impensáveis antes de 2014/2015.389

Assim, diante desse novo contexto, as obras memorialísticas de frei Betto


apresentaram-se como uma tentativa de demonstrar que a justificativa para a opção pela luta
armada e outras formas extremas de oposição à ditadura militar, tanto no seu caso como no de
outros ex-militantes, se encontrava nos valores dos quais ela era expressão. Destarte, o autor
busca construir uma genealogia desses princípios, de maneira que fique claro que eles foram
assimilados graças ao processo educacional ao qual foi submetido durante sua infância e
adolescência através dos sucessivos “espaços de formação” pelos quais passou como, por
exemplo, a família, os grupos escolares e os movimentos pastorais da Igreja Católica.
Entretanto, pouco mais de um ano e nove meses após ser nomeado assessor especial
da presidência e de assistir, dia a dia, a frustração suplantar sua euforia com a eleição do
amigo Lula, frei Betto deixou seu cargo. Embora acumulasse uma série de queixas
específicas390, em sentido amplo, a razão para o dominicano ter abandonado seu posto foi a
sua impressão de que o PT não resistiu aos vícios do poder. Ou seja, na visão do autor, o
partido e, em especial, o presidente, sucumbiram à lógica da máquina governamental391, o que
significava, na prática, abandonar gradativamente as utopias, em função das quais, a
agremiação política foi fundada na década de 1980 e desistir de dar protagonismo às bases
populares que a levaram à vitória no pleito de 2002, em nome de uma atuação institucional
mais incisiva e centralizada392.
Da mesma forma que o entusiasmo de frei Betto com a eleição de Lula teve efeitos em
sua escrita memorialística, a decepção subsequente com o governo do PT também deixou sua

388
NAPOLITANO, op. cit., p. 41.
389
Ibid, p. 33.
390
FREIRE; SYDOW, 2016, p. 333.
391
BETTO, 2006, l. 837.
392
FREIRE; SYDOW, op. cit., p. 335.
142

marca na obra do frade. A análise do livro Diário de Fernando demonstra que, em meio a um
contexto de questionamento quanto à resistência dos idealismos frente às necessidades
práticas do exercício do poder, ele é uma tentativa de reafirmar a dignidade do
posicionamento ideológico e de comprovar que as utopias estão mais vivas do que nunca, o
que se expressaria, inclusive, nas disputas da memória.
Essa percepção de que o partido não suportou as pressões do dia a dia do poder,
desistindo, assim, de buscar a realização de suas utopias originais, ao contrário de provocar
em frei Betto uma desilusão quanto à validade das filiações ideológicas – o que seria
presumível – inusitadamente o instigou a, através de seus livros (ou seja, publicamente),
renovar seu compromisso com a militância política e reafirmar a radicalidade como atributo
imprescindível para aqueles que escolham seguir o mesmo caminho.
O livro A mosca azul é o melhor exemplo do quanto o desapontamento de frei Betto
com o governo do PT fez com que ele reavaliasse e reafirmasse seus posicionamentos
políticos. Embora as críticas diretas e contundentes ao partido e ao presidente Lula deem a
impressão de que a obra é apenas uma manifestação de ressentimento de quem há pouco tinha
deixado seu cargo decepcionado ao perceber que a realidade não estava à altura de suas
expectativas, uma leitura atenta evidencia que, por trás de cada observação sobre as mudanças
de rota do partido existe uma convocação para o “retorno às utopias” e a manutenção do
combate ao neoliberalismo, à concentração fundiária no Brasil etc393.
Assim sendo, Diário de Fernando, que foi lançado posteriormente, mas ainda na Era
Lula, guarda as marcas dessas inquietações. Através de sua narrativa, o autor defende a tese
de que a fidelidade aos valores que aprenderam desde a infância foi o verdadeiro motivo das
ações pelas quais os que se levantaram contra a ditadura militar foram mandados para a prisão
e entregues aos torturadores. Sua ênfase em demonstrar que os presos políticos sustentaram
esses princípios mesmo enquanto eram submetidos a sofrimentos indizíveis é uma tentativa de
provar que eles são dignos de serem retomados no presente.

3.1 Memória: tempo e paradigma

Os livros publicados por frei Betto na primeira década do século XXI, Alfabetto e
Diário de Fernando, foram os primeiros em sua obra memorialística que apresentam uma
reflexão explícita sobre o ato de narrar o passado. Entretanto, ao serem comparadas,
evidenciam que o curto período de sete anos que separa essas publicações foi capaz de

393
BETTO, op. cit., l. 258.
143

provocar uma alteração significativa no que seu autor considerava ser o conjunto de
propriedades e funções da memória.
Ao se observar que duas mudanças no contexto no qual os livros foram lançados
atingiam o dominicano pessoalmente, esse contraste entre suas ponderações sobre a atitude de
expressar o que se rememora se torna um forte indício de que a maleabilidade na maneira de
se conceber o ato de lembrar é uma postura estratégica – ainda que de maneira inconsciente –
frente à constância com que se dão as reconfigurações dos cenários político-culturais.
No caso específico de frei Betto, os acontecimentos da primeira década do novo
milênio provocaram uma transformação em sua maneira de compreender a memória. Sua
interpretação do ato de narrar o passado como um exercício de catarse para curar as feridas e,
assim, abrir novas perspectivas para o porvir, defendida em Alfabetto, deu lugar a uma
concepção mais combativa e política.
De acordo com essa nova perspectiva – apresentada sete anos depois do lançamento de
sua autobiografia, em Diário de Fernando – contar a história, ainda que ela esteja repleta de
episódios traumáticos, é a única forma de fazer com que as lutas pretéritas contribuam para as
disputas do presente; por isso, essas lembranças, ainda que dolorosas, devem se manter vivas
e constantemente atualizadas.
Embora o objeto da memória seja o passado, são as variações na maneira como frei
Betto encara sua realidade contemporânea que provocam essa alteração na sua perspectiva
acerca dos acontecimentos pretéritos. A concepção do presente como uma janela aberta para
um futuro promissor, que o entusiasmo com a eleição de Lula, em 2002, suscitou no
dominicano, gradativamente cedeu seu espaço para que ele voltasse a ser visto como uma
arena de disputas, na qual até mesmo as utopias estavam em risco.
Certamente, essa mudança se deveu à frustração que a adoção, por parte do PT, da
moderação na agenda de políticas econômicas e sociais em nome da “governabilidade”
significou para o autor. Sua expectativa era a de que um governo conduzido por um partido de
esquerda que, ainda por cima, era liderado por um ex-operário, se mantivesse fiel às pautas
históricas (como, por exemplo, a reforma agrária) e fosse mais incisivo em suas iniciativas.
Assim como a consolidação dessa nova visão sobre seu hic et nunc foi catalisada pela
emergência das memórias nostálgicas da ditadura militar no debate público; algumas dessas
versões, inclusive, adotam o negacionismo em relação à prática de tortura e de prisões
políticas durante a vigência do regime.
A primeira reflexão de frei Betto sobre a memória, nesse novo contexto, surge em
Alfabetto. Apesar de apresentá-la como um projeto despretensioso, quase uma transcrição de
144

singelas histórias evocadas em meio a uma conversa informal, em sua autobiografia escolar, o
dominicano desenvolve uma reflexão bastante significativa acerca das funções da narrativa do
passado, ainda que modesta e sucinta.
As primeiras páginas de Alfabetto revelam a preocupação de frei Betto com possíveis
questionamentos sobre o nível de correspondência entre os fatos e suas respectivas narrativas.
O excerto da obra do escritor Monteiro Lobato Memórias de Emília, que introduz o livro,
denota que o autor almejava deixar claro que aquela era uma peça literária e, portanto, as
lacunas, tão comuns nas narrativas memorialísticas, foram subjetivamente suprimidas através
de seu talento de escritor.
No trecho citado, a personagem Dona Benta repreende Emília por incluir na redação
de suas reminiscências episódios que nunca aconteceram; assim ela exclama: “você quer nos
tapear. Em memórias a gente só conta a verdade, o que houve, o que se passou. Você nunca
esteve em Hollywood, nem conhece a Shirley. Como então se põe a inventar tudo isso?”. A
resposta da boneca de pano parece sintetizar o que frei Betto queria dizer sobre sua própria
escrita: “Minhas memórias – explicou Emília – são diferentes de todas as outras. Eu conto o
que houve e o que devia haver. [...]. São memórias fantásticas”394.
A tensão entre objetividade e subjetividade que a atitude de expressar as próprias
memórias evoca fica evidente quando se compara a introdução do livro e o seu epílogo. Se no
prefácio da obra, frei Betto parece querer conquistar a complacência do leitor, permitindo,
assim, que sua leitura seja menos exigente quanto ao nível de veracidade e mais atento ao
afeto que permeia a lembrança dos fatos; no desfecho, ele defende o distanciamento
emocional e temporal como o meio mais seguro para se compreender o passado.
No epílogo, frei Betto sugere, metaforicamente, que a narrativa da memória é uma
forma de racionalizar o passado. Ao empreendê-la, o principal objetivo seria exorcizar seus
demônios, ou seja, livrar-se de todo o sofrimento que, porventura, as lembranças possam
causar para, assim, iniciar uma trajetória renovada. O autor exemplifica esse processo
explicando como as águias, a certa altura da vida, desvencilham-se do bico, das unhas e das
penas para “nascer de novo”. Em suas palavras:

No noviciado, aprendi que, ao longo da existência, a possibilidade de nossa


sobrevida depende, muitas vezes, de seguir o exemplo da águia. Quem se entrega,
abatido, ao peso do sofrimento e das dificuldades, tende a abreviar seus dias. Deixar
de viver como quem voa e passa a sobreviver como um réptil que rasteja.
Reaprender a voar é ousar recolher-se para começar de novo [...].

394
BETTO, 2002, p. 9.
145

Mas é preciso voar até a montanha. De cima, vê-se melhor [...]. Ver com as
emoções é correr o risco de desfigurar os desenhos. Os contornos mostram-se muito
mais nítidos quando observados com serenidade.
E saber esperar. Primeiro, ousar perder o que envelheceu [...]. despojar-se do que
atravanca os nossos passos. Segundo, aguardar pacientemente o tempo da
maturação. Enfim, dar o salto pascal, abrir as asas para a vida e, sem medo,
empreender o voo rumo a novos horizontes.395

Dessa forma, fica bastante claro que as funções que frei Betto propalava serem
próprias da narrativa do passado acabaram, consequentemente, por influir na maneira como
ele enxergava a objetividade e a subjetividade, categorias que provocam tensão nesse tipo de
escrita. Em relação à primeira, o autor defende que a representação fiel de um objeto, nesse
caso, os episódios pretéritos, apenas seria possível mediante o distanciamento temporal dos
fatos que lhe deram origem. Ele não encara a passagem do tempo como um fator nocivo à
memória por produzir o esquecimento, mas como um potencializador de sua capacidade
compreensiva por possibilitar o arrefecimento das emoções e, consequentemente, a maturação
das ideias. Já a segunda se manifestaria na licença poética, através da qual, o escritor, ao
preencher as lacunas de suas lembranças, conseguiria reconstituir as emoções e os sofrimentos
que permearam os acontecimentos por ele vividos.
Em Diário de Fernando, por sua vez, Frei Betto defende que insistir na reedição
periódica através de diferentes suportes das narrativas sobre o passado seria uma forma de
garantir aos que sofreram, especialmente com a violência praticada por agentes do Estado,
que suas reminiscências não fossem silenciadas pelas versões oficiais ou pela história
acadêmica.
No epílogo do livro, ao comparar o anseio de Jesus de que sua memória fosse
preservada pelos apóstolos na partilha do pão e do vinho com o desejo – dividido com outros
ex-militantes das esquerdas – de que suas histórias se mantivessem vivas, frei Betto define
esse potencial silenciador que as narrativas oficiais têm como uma forma de novamente atacar
aqueles que já tiveram seus corpos violentados. Em suas palavras:

Esquecer a morte, pretender matá-la, desprezá-la como um cadáver retido sob


pedras no fundo mais escuro dos oceanos, é adicionar ao crime físico o crime
hermenêutico. As abominações não prescrevem e, ainda que todos os arquivos
tenham sido incinerados, a injustiça cometida exige reparação. Não é esta uma das
leituras dogmáticas do próprio sacrifício de Cristo?396

395
Ibid, p. 241.
396
BETTO, frei. Diário de Fernando: nos cárceres da ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. p.
278.
146

Entretanto, essa crítica não se restringe apenas aos poderes constituídos e àquelas
pessoas capazes de influir na constituição de narrativas oficiais sobre a ditadura militar
brasileira; ela se direciona também às esquerdas. No caso destas, Frei Betto denuncia o que
acreditava ser uma postura negligente com a memória; atitude que, para ele, não só as tornaria
coniventes com um novo crime contra as vítimas como, também, inviabilizaria seus projetos
para o futuro.
A veemência com que o dominicano aponta essa suposta displicência da “esquerda”
como a causadora de sua desvantagem na disputa com a “direita” – pelo poder de definir se o
passado deveria ser lembrado, esquecido ou silenciado – revela que, nesse novo contexto, ele
passou a enfatizar a funcionalidade estratégica da memória para se enfrentar as batalhas
políticas do presente. Nas palavras do autor:

A esquerda tão obcecada pela terra das promissões, pelo futuro messiânico, nem
sempre se dá conta de que a direita funda seu poder também na apropriação do
passado. A direita, na contramão de Hegel, volta atrás para pisar nas pequenas flores
que restaram no caminho, abrigadas sob majestosas copas de grandes árvores que
lhes dão sombra. Os mortos, a religião, a tradição... eis o que a esquerda por vezes
despreza e a direita apodera-se, açambarca.397

Para frei Betto, essa ameaça do esquecimento provocada pelas narrativas oficiais e
pela negligência das esquerdas, somada ao esforço histórico dos atingidos pela ditadura
militar brasileira para rechaçá-la, reforça o caráter subversivo da memória. Utilizando as
palavras de frei Fernando, ele ressalta:

O torturado jamais esquece. Sua resistência reside na memória. Esta não se pode
apagar. Não se trata de reter a lembrança da dor guardada no pote e mágoa. Nesse
caso, a vingança é inútil, pode-se punir um torturador, jamais a tortura e os
torturadores. Por isso a memória da dor é subversiva. Cria o desconforto,
desmascara o cínico, mantém acesa a tocha da Justiça. É o grito permanentemente
parado no ar. Não o grito da vítima espancada, mas da indignação, da reafirmação
do humano, da negação do terror. Grito que silencia o horror.398

Ele defende a manutenção de suas formas de expressão como uma maneira das vítimas
defenderem seu direito à identidade. Citando o cineasta espanhol Luis Buñuel na abertura de
Diário de Fernando, ele proclama que “nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nosso
sentimento. Sem ela, não somos nada”399.

397
Ibid, p. 13.
398
Ibid, p. 18.
399
Ibid, p. 7.
147

Também em Diário de Fernando, a definição das funções da memória que frei Betto
desenvolve influencia sua reflexão sobre a objetividade e a subjetividade. Entretanto, da
mesma forma que a emergência de um novo contexto modificou a maneira como o autor
enxergava a narrativa do passado, essa nova conjuntura histórica também alterou sua
percepção sobre as duas categorias.
Frei Betto defende, nessa nova obra memorialística, que a subjetividade se expressaria
na maneira como uma pessoa instrumentaliza suas reminiscências para exercer o poder ou
resistir a ele; logo, o dominicano acentua o caráter político da narrativa do passado. Já a
objetividade se assentaria na proximidade entre o registro e os acontecimentos. O autor insiste
em qualificar como “documento” o material que deu origem à publicação, como forma de
destacar que seu valor histórico resulta do fato de não ter sido corroído pelo acúmulo dos
anos, visto que os bilhetes que compuseram o conteúdo do livro foram escritos pelo confrade
Fernando concomitantemente ao decorrer de sua história.
Em Diário de Fernando, frei Betto demonstra ter a certeza de que as dificuldades que
o confrade enfrentou para produzir e manter seus escritos – tendo que queimá-los muitas
vezes por conta das constantes fiscalizações, somadas ao fato de serem o registro imediato de
uma testemunha ocular – assegurariam que sua narrativa passasse ilesa pelos questionamentos
sobre o quanto ela correspondia ao passado histórico. Assim, na introdução do livro, o autor
ressalta:

O material bruto é bem mais extenso do que o conteúdo deste livro, no qual
algumas notas explicativas figuram no pé de páginas. Estou seguro, entretanto, de
que nada que mereça interesse histórico foi omitido.
O leitor e a leitora têm agora em mãos um documento que não foi redigido pela
ótica acadêmica de um historiador, nem pelo esforço de investigação de um
memorialista ou por um jornalista motivado pelo faro do noticiável. Trata-se de um
testemunho de um preso político, de uma vítima da ditadura, de um observador
atento que não ergueu barreiras entre o que presenciou e sentiu, sofreu, ansiou e
comemorou. [...] 400

As convicções demonstradas por frei Betto, aparentemente contraditórias – de que era


fundamental convencer o leitor de que as palavras do confrade Fernando eram um retrato
objetivo do passado ao mesmo tempo em que defende a necessidade tática de instrumentalizar
a memória –, são apresentadas conjuntamente sem o menor sinal de que ele as considere
conflitantes. Para o autor, longe de anular ambas, essa concomitância tem, na verdade, valor
estratégico. O que revela a complexidade das funções da memória.

400
Ibid, p. 13.
148

A primeira impressão que a obra memorialística de frei Betto parece provocar é a de


que seu envolvimento com a luta armada e o tempo de prisão acarretado por esse engajamento
foram os fatores responsáveis por dar protagonismo ao fenômeno do autoritarismo, como
sistema político, em sua história de vida. Assim, de acordo com essa percepção, foram esses
fatores que tornaram impossível mencionar seu nome e sua obra sem falar da importância que
a ditadura militar teve para a sua consolidação como escritor, como religioso e como militante
político. Entretanto, o autor se esforça para dissipar essa impressão, especialmente através da
narrativa que construiu para Alfabetto.
Frei Betto rechaça a ideia de que a ditadura militar foi a responsável por apresentar-lhe
o autoritarismo. Tampouco admite o juízo de que conhecera o que é a resistência através da
experiência da luta armada no Brasil. Em sua narrativa, ele sustenta que foram, na verdade, as
concepções acerca de ambas, que trazia desde o tempo da infância, que o fizeram reconhecer
o caráter pernicioso daquele regime e enxergar na guerrilha clandestina uma alternativa de
ação política.
Essa percepção de que havia uma divergência entre a versão de sua trajetória
conhecida pelo público em geral e aquela que, para frei Betto, é a verdadeira está
subentendida no próprio desenvolvimento da narrativa. Assim, o autor procura sustentar,
através de um diálogo tácito entre ambas, a tese de que, paulatinamente, o autoritarismo foi se
tornando uma referência importante em sua vida, graças à influência familiar e geracional.
Dessa forma, em sua autobiografia, frei Betto busca construir uma genealogia que
identifique os modelos que moldaram sua leitura da realidade e, consequentemente, a
produção de suas memórias. Sua narrativa localiza na infância, por exemplo, a figura de
Getúlio Vargas. Obstinadamente execrado pelo pai do dominicano, o presidente gaúcho
aparece em suas reminiscências como o “cartão de vista” e a personificação do autoritarismo;
também teria sido nessa fase da vida que aqueles que, como o autor, nasceram na década de
1940 herdaram os paradigmas da Resistência Francesa à ocupação nazista e do Holocausto,
como advertência sobre nível de barbárie que as ditaduras são capazes de promover.
Algumas passagens de Alfabetto são exemplares de como frei Betto busca reproduzir
em sua narrativa a importância que atribui a essas referências no processo de solidificação de
sua visão de mundo. Quando reconstrói, por exemplo, um diálogo com o amigo Lauro
Cordeiro sobre o golpe militar de 1964, logo nos seus primeiros dias, ele afirma: “Papai
jurava que o suicídio de Vargas matara também a possibilidade de o Brasil retornar a uma
149

ditadura”401 e emenda, “O que é uma ditadura? Quantas vezes fiz essa pergunta a meu pai”402.
Claramente, o autor filia sua concepção prévia sobre o caráter autoritário do regime que o
golpe inaugurava à influência paterna, recordando as denúncias que ouvia em sua casa sobre
os abusos de poder do líder do Estado Novo.
Nesse mesmo diálogo, por estar longe do epicentro dos acontecimentos de abril de
1964 e, por isso, impedido de participar de qualquer reação articulada, frei Betto busca
dimensionar a angústia que essa circunstância lhe causou. O frade, que estava participando de
um congresso de estudantes em Belém do Pará, enquanto era executado o golpe civil-militar,
também evoca o paradigma da memória coletiva para refletir sobre sua própria atitude. Dessa
forma, ele questiona, “E eu, que nasci no ano, no mês, no dia e na hora em que a resistência
francesa comemorou sua vitória sobre a ocupação nazista de Paris, o que faço aqui tomando
sorvete de cupuaçu?”403.
Uma das sutilezas que reforçam o papel dos dois paradigmas supracitados são os
artigos que frei Betto escolhe para anteceder o substantivo “ditadura”. A indefinição que os
caracteriza equipara o regime que suplantou o governo Jango a qualquer outro tipo de
autoritarismo, seja o do Estado Novo ou do Nazifascismo. Ao elidir as peculiaridades do
modelo militar, o autor defende a existência de uma tradição de prática do terrorismo estatal, à
qual a ditadura brasileira se filia e não se distingue por limites temporais ou espaciais, da
mesma forma, essa indiferenciação se estenderia aos movimentos de resistência. Assim,
aqueles que lutaram no Brasil no pós-1964 estariam dando continuidade ao movimento
francês desencadeado pela ocupação nazista na década de 1940.
Na perspectiva de Napolitano, a valorização do testemunho é uma característica
fundamental dos “Regimes de memória” que se estabeleceram na contemporaneidade; estes
seriam estruturas que constituíram “as experiências e debates em torno do Holocausto/Shoah”
e das “resistências antifascistas” como paradigmas que enquadram os limites e possibilidades
éticos e epistemológicos da memória404. Nas palavras do historiador, isso significa que:

A tradição crítica dominante nos estudos sobre o Holocausto e sobre as ditaduras


latino-americanas defende que o testemunho traz em si a possibilidade de
assimilação crítica daquele passado de violência extrema, pacificando as sociedades
a partir da imposição da “verdade” e da “justiça”. No limite, trata-se de uma utopia
de refundação política, cultural e social. A psicanálise viria em socorro da história,
supostamente impotente diante da fragilidade dos métodos objetivistas que estão no
DNA da história-disciplina. Nesta perspectiva, a emergência da era do testemunho,

401
Id, 2002, p. 212.
402
Ibid, p. 213.
403
Ibid, p. 214.
404
NAPOLITANO, 2018, p. 209.
150

impõe o olhar subjetivo da vítima como reconstrução dos elos sociais, a partir de um
trabalho de luto e do movimento institucionalizado de “rememoração, repetição,
perlaboração”.405

Segundo Napolitano, essas hipervalorizações do relato testemunhal como único


caminho digno e possível para se abordar o passado é o reflexo de um longo processo,
desencadeado pela Segunda Guerra Mundial, que “consagrou o tema dos crimes contra a
humanidade” e a demanda das vítimas pelo “direito à memória”406. A historiadora Régine
Robin destaca que o julgamento de Adolf Eichmann407, em 1961, foi o marco temporal que
inaugurou o período de “visibilidade positiva” e de legitimação da testemunha. Como
exemplos que demonstrariam a emergência dessa nova fase, ela apresenta o livro É isto um
homem?408 do escritor italiano e sobrevivente do Holocausto, Primo Levi, que depois de ter
“obtido pouco sucesso em seu lançamento, em 1947” se tornou um best-seller e a mudança de
status de “Elie Wiesel, uma espécie de porta-voz universal da comunidade judaica, uma
autoridade incontestável” que foi “laureado por seu estatuto não somente de escritor, mas
também de testemunha”409.
Segundo Bruno Groppo, na prática, isso significou que “conceitos elaborados para dar
conta do extermínio de judeus na Europa, como genocídio e crimes contra a humanidade,
começaram a ser aplicados às ditaduras do Cone Sul e às ditaduras comunistas da ex-União
Soviética e da Europa oriental”410. Nas palavras de Robin:

Durante os anos 1980, a sobrevivência, a subsistência, se metamorfoseia, de tabu e


vergonha, em algo “glorioso”. A memória do holocausto, que tinha sido um fardo
reservado aos judeus sobreviventes e suas famílias, torna-se algo comum,
disseminado em todos os lugares no discurso social, torna-se banal, um emblema da
cultura ocidental, que até mesmo se mundializa.411

Napolitano argumenta que o caráter genocida e extremado da violência experimentada


no século XX abalou “as relações e interações tradicionais entre a história e a memória no
campo teórico, acadêmico e político”412.

405
Ibid, p. 211.
406
Ibid, p. 207.
407
O oficial nazista Adolf Eichmann foi julgado e condenado à morte em 11 de abril de 1961, em Jerusalém.
Durante a Segunda Guerra Mundial, ele foi responsável pela deportação de judeus para campos de concentração.
408
LEVI, Primo. É isto um homem? Tradução Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
409
ROBIN, 2016, p. 242.
410
GROPPO, Bruno. O mito da sociedade como vítima: as sociedades pós-ditatoriais em face de seu passado na
Europa e na América Latina. QUADRAT, Samantha Viz; ROLLEMBERG, Denise. (Orgs.). História e
memória das ditaduras do século XX. Vol 1. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. p. 40.
411
ROBIN, op. cit., p. 234.
412
NAPOLITANO, 2018, p. 207.
151

Estabelecido pela sociologia de Maurice Halbwachs, o enquadramento da memória


sofreu um processo de redefinição após as experiências-limite do século XX, o que sinalizou a
sua invasão ao campo historiográfico. Ou seja, a definição do “recordar” como a construção
coletiva de uma relação subjetiva com o passado que exerceria funções positivas – por
exemplo, a promoção da coesão social – foi paulatinamente suplantada por uma acepção
desenvolvida, especialmente, pelas sociedades ocidentais, segundo a qual, o discurso
memorialístico teria a capacidade de saciar a “ilusão da objetividade”, dar voz aos
marginalizados/silenciados e revelar o aspecto artificial das “memórias implantadas”413.
O robustecimento dessa visão foi inversamente proporcional ao adensamento das
dúvidas sobre os limites da narrativa historiográfica que a emergência de um passado
traumático teria revelado. O métier do historiador passou a ser questionado tanto acerca da
conveniência de sua linguagem “científica e objetiva” – confundida, muitas vezes, com os
sinais da indiferença diante do sofrimento das vítimas – para tratar de temas sensíveis e
dolorosos, quanto a respeito de sua capacidade de alcançar a verdade sobre as experiências-
limites pretéritas. Já o discurso da memória, por sua sensibilidade e pessoalidade,
gradativamente se consagrou como a forma digna de costear um passado traumático. Também
a sua capacidade de provocar a empatia nos seus ouvintes e leitores tornou-se um argumento
para justificar sua preponderância em relação à História414.
Também as reflexões que o confrade Fernando desenvolvia, através dos bilhetes que
transformaram seu diário em livro, acerca de como experienciava a dor da tortura, da prisão e
de todas as outras formas de manifestações do autoritarismo que dominava o país naquele
período são, para frei Betto, exemplos preciosos para demonstrar o quanto foi importante o
paradigma da memória do holocausto para que eles suportassem seus sofrimentos e
edificassem suas próprias reminiscências.
Nas diversas passagens que frei Betto escolheu para compor Diário de Fernando, seu
confrade demonstra claramente que a memória do holocausto enredou sua maneira de
interpretar as dores de seu presente e delimitou que tipo de esperança ele desenvolveu sobre o
futuro. Através dessas reflexões, reafirmando uma opção peculiar da sua escrita
memorialística na primeira década do século XXI, o autor desenvolve uma narrativa que
procura definir as atitudes que levaram os dominicanos e tantos outros militantes ao cárcere, à
morte, ao desaparecimento ou ao exílio como a continuação de um movimento atemporal e
supranacional contra as expressões do autoritarismo.

413
Ibid, p. 208.
414
Ibid, p. 212.
152

Um exemplo dessa iniciativa é o episódio no qual frei Fernando compara a situação


dos presos políticos àquela vivida pelos judeus encarcerados em campos de concentração
durante a Segunda Guerra Mundial. O dominicano narra que em um dia de chuva, descrito
como especialmente triste, cinza e silencioso, a melancolia e a apreensão tomavam conta dos
detentos do Tiradentes, pois o confrade Tito tinha sido levado do presídio por uma equipe do
DOI-CODI sem justificativa ou aviso prévio. Diante dessa situação angustiante, ele se
questiona:

Em que pensavam os judeus trancados em campos de concentração, cientes de que


a qualquer momento seriam asfixiados na câmara de gás? Talvez em nada, como
muitos aqui agora. Quem sabe permaneciam calados e surdos, à espera, não da
morte ou do milagre de escapar, só à espera, incapazes de raciocinar sobre o
irracional ou sentir medo perante o inevitável.415

Por meio dessa comparação entre ambas as sensações de impotência, em


circunstâncias distintas perante a iminência do mal, que no caso dos judeus era a morte na
câmara de gás e no dos presos políticos eram as torturas realizadas pelas mãos dos agentes do
Estado, a narrativa de frei Fernando procura estabelecer uma comunhão entre esses dois
grupos de vítimas do autoritarismo. Já do ponto de vista de frei Betto, como autor do livro,
elas demonstram a importância do paradigma de memória.
Também as iniciativas de resistência, como a greve de fome iniciada em maio de 1972
por conta da transferência de parte dos presos políticos para a Penitenciária do Estado, são
vinculadas a essa memória do holocausto. Refletindo sobre os efeitos físicos do protesto, frei
Fernando destaca que se mira “no exemplo do franciscano polonês padre Maximiliano
Kolbe”416. Por meio de uma nota, frei Betto destaca que o santo católico foi executado no
campo de concentração de Auschwitz, com uma injeção letal, em agosto de 1941; ele se
ofereceu para morrer no lugar de um judeu que seria punido por conta da fuga de outro
prisioneiro.
A necessidade de desenvolver estratégias para suportar o desespero de estar à mercê
da violência do Estado é outra razão para que o diário de frei Fernando referencie a memória
do holocausto. Registrar o próprio sofrimento através da escrita, por exemplo, é um desses
imperativos que fizeram com que o dominicano evocasse essa herança sobre a perseguição
nazista. Forçado a destruir, por segurança, grande parte do diário, ao ser transferido de
pavilhão, o frade lamenta: “Queimei-as com dor, raiva, num esforço supremo de desapego,

415
BETTO, 2009, p. 78.
416
Ibid, p. 188.
153

consciente de que ali a história se fazia cinzas. Pensei em Walter Benjamin agarrado a seus
escritos ao fugir da Gestapo e tentar atravessar os Pirineus.”417 Também o hábito da oração,
que sempre acompanhou os dominicanos no cárcere, faz o religioso se lembrar que
“Bonhöeffer, pastor e teólogo protestante alemão – morto em campo de concentração em
1944 – também encontrou nos salmos alento à vida de oração”418.
Outras estratégias, como as pequenas espertezas, fundamentais para amenizar as
dificuldades do cárcere – por exemplo, calçar dois pares de meias ao mesmo tempo ao ser
transferido –, ganham um sentido especial ao serem ancoradas nesse paradigma de memória.
Frei Fernando narra que, ao chegar à penitenciária do Carandiru e ser informado de que o
único pertence que poderia manter era aquele que trazia em dobro enfiado nos pés, se lembrou
de que antes de deixar o presídio Tiradentes pensou no “conselho do pai de Anne Frank à
família prestes a atravessar Amsterdã para se esconder: ‘vistam no corpo o que puderem. Se
nos virem pelas ruas com malas, desconfiarão’”419.
Entretanto, não só as dores e necessidades daquele presente vivido por frei Fernando
na prisão foram enredadas pela memória do holocausto. Também sua relação com o futuro
sofreu essa influência. Ao refletir sobre a “insaciável liberdade” que os presos guardam dentro
de si, apesar dos riscos de se acostumarem com a barbárie que caracteriza a vida no cárcere, o
frade emenda: “No Gueto de Varsóvia, findos os bombardeios, uma sobrevivente recolocou
em seu lugar um vaso de flores, como primeiro gesto de que a vida continua”420.
Na construção da obra, frei Betto destaca dois trechos que ressaltam a esperança
coletiva dos presos políticos de que o futuro lhes reservaria a reparação pelas injustiças
sofridas e o reconhecimento da legitimidade de sua luta. No primeiro, ele narra a história do
companheiro de prisão Jacques Breyton que através de sua memória, evocada em sua preleção
noturna sobre a “luta da Resistência Francesa aos nazistas”, teria avivado a certeza de que os
riscos presentes seriam honrados na posteridade. Segundo frei Fernando:

Breyton ostentava a patente de capitão quando seu país se libertou do nazismo.


Recebeu a Cruz de Guerra, a Medalha da Resistência e a Legião de Honra – tudo aos
23 anos. Veio para o Brasil em 1958; investiu no ramo de telecomunicações e
eletricidade. O sucesso empresarial não lhe arrefeceu o entusiasmo revolucionário.
Tornou-se um fenômeno anômalo – um capitalista anticapitalista. Foi preso por
abrigar Marighella em sua casa. Quem desconfiaria de que uma bela mansão
ajardinada da Vila Mariana, cuja piscina parece um lago, servia de esconderijo para
o homem mais procurado do Brasil?421

417
Ibid, p. 63.
418
Ibid, p. 87.
419
Ibid, p. 183.
420
Ibid, p. 66.
421
Ibid, p. 55.
154

No segundo, ele registra a prisão de Apolônio de Carvalho no Rio de Janeiro, em


1970. Frei Fernando destaca que o membro do PCBR:

[...] participou no Brasil, em 1935, da chamada “intentona comunista” e, na


Europa, durante a Segunda Guerra Mundial, das resistências espanhola e francesa.
Preso pela Gestapo, manteve-se calado. É herói das três nações. Recebeu a Legião
de Honra da França. Agora, ao ser levado à sala de torturas, advertiu: “vão perder
tempo torturando-me, porque não conseguirão fazer nada melhor que a Gestapo.”
Nada mais disse.422

Segundo Napolitano, o louvor à resistência também é um paradigma estabelecido pelo


“Regime de memória” contemporâneo. A revelação, no pós-guerra, do nível da barbárie
promovido pelo nazifascismo através de suas ações bélicas e de seus campos de extermínio
consagrou não só a imagem desses movimentos como a encarnação do “mal absoluto” como,
também, aclamou a interpretação das experiências de resistência como modelo de postura
diante de crimes contra a humanidade.423 Ou seja, não se render ao poder, a estética ou a
moral do opressor – mesmo assistindo à escalada de sua violência desmedida contra a
sociedade ou grupos étnicos – faria com que essa atitude deixasse de representar um combate
ideológico, e passasse a simbolizar uma resposta heroica à exortação veemente da
humanidade pela sua defesa contra seus agressores em qualquer contexto. Dessa forma,
resistir à opressão tornou-se um “imperativo ético” e a narrativa das experiências que, durante
a Segunda Guerra Mundial, encarnavam essa violência se tornou um modelo para todos
aqueles que propalavam suas memórias de enfrentamento a sistemas de sujeição, como o
“totalitarismo, colonialismo, extermínio e escravidão” 424.
Denise Rollemberg salienta que “o mito nasce [...] de uma necessidade social” 425. No
caso específico da resistência, essa operação memorialística foi uma resposta à demanda da
sociedade francesa, após se libertar da ocupação nazista, em 1944. Esse discurso que
consagrou como tradição práticas como o culto àqueles que, diante da tirania, resolvem agir –
qualificando-os como verdadeiros “salvadores da pátria” – emergiu do trauma causado pela
violência da guerra e do desejo de silenciar qualquer referência ao colaboracionismo do

422
Ibid, p. 103.
423
NAPOLITANO, 2018, p. 212.
424
Ibid, loc. cit.
425
ROLLEMBERG, Denise. Definir o conceito de resistência: dilemas, reflexões, possibilidades. QUADRAT,
Samantha Viz; ______., 2015, p. 88.
É necessário ressaltar que a presente reflexão aborda o processo de construção da resistência enquanto mito, no
entanto, há um trabalho intenso empreendido por historiadores como Denise Rollemberg para conceituar o
fenômeno, tornando assim essa categoria útil à História. Para isso, é fundamental compreender como ele foi
instrumentalizado no campo da memória.
155

Regime de Vichy. Referenciando o historiador francês Jacques Sémelin, a autora ainda


destaca – como formas pelas quais a atitude de resistir foi transformada em um mito – a
glorificação de feitos militares como demonstrações de bravura e coragem que, apesar de
violentas, se justificam por sua aspiração libertadora e a sacralização das vítimas como forma
de promover o respeito aos mortos e dar legitimidade aos que reivindicam para si o direito de
falar em seus nomes426.
No caso do Brasil pós-ditadura militar, sob o amparo da memória da resistência427, a
construção de uma narrativa que elidisse os sonhos revolucionários da esquerda armada e o
apoio que setores liberais, como a grande imprensa, deram ao golpe e ao regime subsequente
foram instrumentos preciosos e necessários para que a conciliação que era negociada pelos
vários agentes – sob a batuta dos militares do governo – pudesse ser concretizada.
Essa instrumentalização política é de tal maneira decisiva na construção da memória
hegemônica que a consolidação da narrativa liberal-conservadora nessa posição se deu graças
à sua capacidade de suprir as demandas dos opositores por um discurso crítico ao regime e o
desejo de antigos apoiadores pela elisão de sua atuação histórica428.
Segundo Napolitano, “uma série de tabus (portanto, de interditos à narrativa e à
perlaboração crítica e expiativa) deram o tom da “conciliação política” e encontrou na
narrativa liberal sobre a ditadura o seu ponto de equilíbrio” 429
. Dessa forma, a versão do
passado que afirma que “todos resistiram” nega que muitos consentiam e colaboravam e, ao
destacar que a ditadura foi imposta, camufla o seu sustentáculo civil: ao se dizer que o golpe
foi exclusivamente militar, oculta-se que ele contou com o apoio de instituições como a
imprensa e a Igreja; ao revelar que as torturas eram praticadas nos “porões”, esconde-se que a
sociedade e a alta cúpula do governo tinham consciência do que se passava dentro deles; por
fim, ao salientar que a luta armada integrava o bastião da democracia, desfocam-se seus
projetos revolucionários.
São esses os aspectos que Groppo destaca ao descrever o mito da sociedade resistente.
Segundo o historiador, sua afirmação resultaria de uma espécie de “apropriação simbólica” da
postura resistente sustentada apenas por uma parcela da sociedade em questão. Em suas
palavras:

426
Ibid, p. 87.
427
Id, 2006, p. 85.
428
Ibid, loc. cit.
429
NAPOLITANO, 2020, p. 40.
156

O passado recente é interpretado [...] como se a ditadura tivesse sido imposta e


mantida no poder exclusivamente pela violência e pelo terror, e como se houvesse
enfrentado constantemente a resistência, aberta ou subterrânea, da grande maioria,
quando não do conjunto, da sociedade. Essa visão de uma sociedade hostil desde o
início à ditadura conduz a ignorar ou subestimar a amplidão dos fenômenos de
colaboração, de consentimento e de adesão (voluntária ou oportunista), e apresenta o
comportamento de minorias de dissidente e de resistentes como se ele houvesse sido
aquele da sociedade inteira. Os episódios de resistência são então retrospectivamente
amplificados por narrativas de caráter épico-patriótico. Os resistentes teriam agido,
pars pro toto, como os representantes de uma sociedade inteira, por uma espécie de
delegação tácita que esta última lhes teria concedido. Essa narrativa, todavia,
pressupõe que a sociedade pós-ditadura possa se reconhecer nesses resistentes e
transformá-los em símbolos, o que nem sempre é o caso.430

A consolidação dessa narrativa da resistência como mobilização popular traz em seu


bojo o reforço de outro mito. Se o conjunto da sociedade brasileira, quase unanimemente,
resistiu ao autoritarismo dos militares, isso significa que, acima de tudo, ele foi vítima dessa
imposição. Groppo ressalta que a adoção dessas teses é uma estratégia, independentemente da
consciência, para contornar traumas psicológicos e alcançar objetivos políticos. Em suas
palavras, esse mito:

[...] consiste em apresentar a sociedade como um todo exclusivamente como uma


vítima impotente de eventos e de forças sobre os quais ela não tinha nenhum
controle e, portanto, pelos quais ela não tem nenhuma responsabilidade. Em vez de
se questionar sobre a parte da responsabilidade dos diferentes segmentos e setores da
sociedade, constrói uma memória coletiva muito simplificada, mais ou menos
distante da realidade histórica, e que termina por essa via por transmitir uma imagem
deformada do passado. O mito da sociedade inocente responde a necessidades tanto
psicológicas quanto políticas e é um elemento constitutivo fundamental das políticas
da memória ou do esquecimento empregadas após uma ditadura para fazer aceitar
certa interpretação do passado.431

Assim, a memória hegemônica da ditadura militar no Brasil é fruto de um processo


longo, complexo e inconcluso bastante incompatível com a impressão simplista segundo a
qual ela foi produzida pela “história reescrita pelos vencidos”, descrita pelo ex-ministro Jarbas
Passarinho como uma “deformação” imóvel, pelo menos, até que “[...] historiadores não
escravos da ideologia possam ser fidedignos”432.
Apesar da importante participação de intelectuais e militantes de esquerda –
especialmente os que eram ligados ao PCB – os verdadeiros protagonistas na edificação dessa

430
GROPPO, op. cit., p. 42.
431
Ibid, loc. cit.
432
PASSARINHO, 2002, p. A2.
157

narrativa foram os setores liberais, sobretudo aqueles que outrora apoiaram o golpe e, até
certo momento, deram sustentação ao regime autoritário433.
Dessa forma, pode-se observar que, no caso da reflexão de frei Betto, as mudanças na
sua maneira de conceber a memória e, consequentemente, as categorias implicadas nessa
representação do passado, como o binômio objetividade/subjetividade, acompanham as
transformações no cenário político. Essas readaptações que o frade promove em suas obras,
buscando evidenciar portos de aderência entre suas reminiscências do período de ditadura
militar e a versão hegemônica sobre o regime – como a valorização do testemunho das
vítimas e da resistência como atitude moral e, não política, através de sua filiação aos
paradigmas do Holocausto e da Resistência – demonstram que ele não só procura renovar a
legitimidade de suas escolhas pregressas como almeja assegurar que sua obra mantenha a
capacidade de operar pequenas alterações na narrativa dominante sem, necessariamente,
destruí-la. Essas constatações ficam ainda mais claras através da análise de sua escrita
autobiográfica.

3.2 Caminho de Damasco

Embora a leveza da leitura de Alfabetto provoque a impressão de que se trata de um


livro despretensioso, não há dúvidas de que ele desempenhou um papel fundamental na obra
memorialística que seu autor construiu nesse novo contexto. Sua publicação em 2002 foi a
primeira iniciativa de frei Betto para, através da construção de uma genealogia dos valores,
legitimar as escolhas de um conjunto de jovens que durante as décadas de 1960 e 1970
abraçaram diversas formas de oposição.
Por algum tempo, essas atitudes, principalmente o engajamento na luta armada, foram,
em algum nível, justificadas em nome da necessidade de condenar veementemente o terror do
Estado. Entretanto, o esquecimento da repressão (pela população em geral) provocado pelo
passar dos anos, as transformações no debate público acerca da memória do período e a
nomeação de ex-militantes para cargos no mais alto escalão do governo federal fizeram com
que essas opções voltassem a ser questionadas.
Dessa forma, o dominicano adota o modelo adaptado pela Teologia da Libertação da
conversão cristã para narrar a própria vida e, assim, demonstrar que as ações que o levaram
para a prisão se filiavam a valores assimilados desde a infância. O próprio título da
autobiografia oferece uma pista para se encontrar o sentido da obra. O neologismo criado a

433
NAPOLITANO, op. cit., p. 35.
158

partir da junção do nome do dominicano com a palavra “alfabeto” sugere que a narrativa
almeja reconstituir o itinerário que deu ao autor cada uma das “letras” que ele utiliza em sua
produção intelectual. Elas seriam os elementos que, em conjunto, compõem sua visão de
mundo, ou seja, os valores e princípios aprendidos em diversos “espaços de formação” ao
longo dos anos434.
Ainda que frei Betto já fosse um articulista conhecido da imprensa escrita e contasse
com um número considerável de obras publicadas, os aspectos mais conhecidos de sua
biografia continuavam a ser sua prática militante, como o apoio ao grupo de Marighella, o
auxílio ao movimento sindical no ABC e a intermediação das relações entre o Estado e a
Igreja em Cuba435. Tomar tais atitudes, naturalmente, provocaria contestações no caso de
qualquer pessoa, entretanto, o que as tornam ainda mais inquietantes, nesse caso específico, é
o fato do autor pertencer a uma ordem religiosa.
Embora não faça parte da hierarquia da Igreja, frei Betto também não é um leigo no
sentido estrito da palavra. Dessa forma, a vida pregressa do frade assessor especial da
Presidência da República evocava, certamente, muitas dúvidas sobre como seria possível
conciliar o catolicismo – histórico adversário do comunismo – com a colaboração com a luta
armada, com o movimento sindical e com o governo de Fidel Castro. Esses fatos continuaram
a suscitar, nos anos 2000, a incompreensão que a trajetória do dominicano provocava, na
década de 1970.
Essa necessidade de atestar a coerência da própria identidade indica a existência de
uma estrutura normativa que condiciona as narrativas que construímos sobre nós mesmos.
Segundo Eakin, essa prática é de tal forma subjugada por regras sociais e modelos identitários
que a sua inobservância leva, necessariamente, a um questionamento da sanidade do “eu”
podendo acarretar, até mesmo, formas de confinamento institucional. Assim, de modo a
prever um possível questionamento sobre a validade dessas considerações, o autor defende:

[...] Nós não inventamos nossas identidades a partir do nada. Em vez disso, nós as
moldamos a partir dos recursos da cultura em que vivemos, recursos que
especificam o que significa ser homem, ser mulher, ser trabalhador, ser uma pessoa
dentro de circunstancias em que vivemos nossas vidas. É muito fácil afirmar que nós

434
Refletindo sobre a pertinência do conceito de “cultura política” desenvolvida por Serge Bernstein para
compreender o processo de formação da visão de mundo que frei Betto apresenta em suas cartas da prisão, nossa
dissertação de mestrado demonstra que a “chave de leitura do real” do escritor foi engendrada ao longo dos anos
1960, por meio de “espaços de formação” como a família, a JEC e o movimento estudantil. Cf. SANTOS, Bruno
Dias. De uma cultura política à Teologia da Liberação: as cartas do cárcere de Frei Betto e a ditadura civil-
militar no Brasil. Assis, 2015. 107 f. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Ciências e Letras,
Universidade Estadual Paulista.
435
FREIRE; SYDOW, 2016, p. 233-253.
159

nos baseamos em modelos de identidade à medida que vamos construindo nossos


eus, seja em nossas vidas ou ao escrever sobre elas; é bem mais desafiador, porém,
especificar como esse processo funciona, especialmente porque eu acredito que
nossa prática de autoconstrução seja amplamente inconsciente.
Se mesmos as conversas casuais sobre nós mesmos são reguladas pelas
convenções, por que é que nós não somos mais conscientes e explicitamente
informados sobre elas? Para começar, a performance de narração de si habitual,
cotidiana, tende a mascarar o fato de que nós participamos de um sistema regido por
regras; depois de anos de prática, nós operamos no piloto automático, sabendo os
protocolos identitários de cor. O trabalho do sistema torna-se visível, porém, quando
a memória falha e a competência narrativa colapsa, ou quando a narração de si é
deliberadamente rejeitada. É aí que a conexão entre identidade narrativa e
normalidade torna-se evidente.436

Dessa forma, Eakin defende a existência de um código regulatório do “eu”, próprio de


cada sociedade. O autor afirma que “nossos arranjos sociais [...] pressupõe que todos nós
possuímos identidades narrativas e que podemos exibi-las conforme solicitado. [...] queiramos
ou não, somos personagens de um sistema de identidade narrativa”437. O caráter normativo
dessa estrutura fica explícito quando suas regras são quebradas. Como exemplos, o autor
apresenta transgressões tanto dos autobiógrafos quanto dos “narradores de si” do cotidiano.
No caso daqueles que publicaram sobre a própria história de vida, não contar a verdade ou
não respeitar o direito à privacidade das pessoas com as quais convivem pode acarretar em
processos judiciais e no descrédito social438; quanto aos que constroem diariamente seu “eu”

436
EAKIN, Paul John. Vivendo autobiograficamente: a construção da identidade na narrativa. Tradução Ricardo
Santhiago. São Paulo: Letra e Voz, 2019. p. 37.
437
Ibid, p. 31.
438
Para exemplificar as consequências sociais acarretadas pela quebra dessas regras, Eakin apresenta as
polêmicas desencadeadas por três livros. A primeira refere-se à autobiografia de James Frey, A Million Little
Pieces (2003). Após a narrativa passar pelo escrutínio da imprensa norte-americana e ter sua veracidade
questionada, o autor foi constrangido a reconhecer que “havia inventado alguns detalhes” e a indenizar leitores
que o processaram judicialmente por fraude. Em função disso, o livro de Frey perdeu o status de obra
memorialística – o que colocou em risco seus contratos editoriais e cinematográficos.
A segunda obra causou uma polêmica muito maior. Após publicar o livro Fragments: Memories of a Wartime
Childhood (1995), como a narrativa autobiográfica de sua experiência enquanto criança que sobreviveu ao
Holocausto, Binjamin Wilkomirski teve sua trajetória investigada pelo escritor suíço Daniel Ganzfied que, não
só contestou a veracidade da obra, como também revelou a verdadeira identidade do autor. Segundo a pesquisa
de Ganzfied, Wilkomirski não era um judeu letão, mas um suíço – chamado Bruno Grosjean – que passou os
anos da Segunda Guerra Mundial em um orfanato de seu país de origem até ser adotado por um casal rico em
1947, do qual recebeu o sobrenome. Após ser publicamente desmentido, Wilkomirski perdeu prêmios e
honrarias, além de ter sido “processado por fraude em Zurique em uma ação coletiva representando cerca de
12.000 leitores”.
Sobre os dois casos, Eakin conclui: “[...] Em ambas as controvérsias em que houve quebra de regras, a
personagem do autobiógrafo suplantou a preocupação principal com a acurácia do texto, de modo que a função
identitária da regra de falar a verdade superou sua função literária, de gênero. Isso fica especialmente claro no
caso de Fragments: se o livro não conseguia passar por autobiografia, por que não o repaginar como romance?
Porque não é o seu status de gênero que está em questão; não é o gênero literário, mas a pessoa e a credibilidade
de Bruno Grosjean-Dössekker-Wilkomirski que parecem ter sido destruídas”.
A terceira obra utilizada como exemplo de transgressão das regras narrativas é The Kiss (1997), de Kathryn
Harrison. Diferente dos outros casos, o que se questionou não foi a veracidade do relato, mas a legitimidade da
iniciativa da autora em revelar que teve um romance com seu próprio pai, a qual foi encarada como desrespeito
ao direito de seus filhos à privacidade. Ibid, p. 53.
160

através da fala, ao não apresentarem um padrão de normalidade, correm o risco de serem


confinados em hospitais ou prisões. Em suas palavras:

[...] a obrigação de exibir um modelo normativo de pessoalidade – podem acarretar


a consequência mais séria entre todas as outras: confinamento institucional. [...] Esta
última regra não trata tanto do que uma pessoa fez, mas do que uma pessoa é: ela é
julgada pelos outros como alguém que não possui a natureza do próprio ser, de
maneira profunda e incapacitante. [...] é aqui que a dimensão ética de um sistema de
identidade narrativa é evidenciada de maneira mais notável; é aqui que o potencial
que a regulação da identidade narrativa tem de escorregar para a regulação da
identidade se realiza plenamente. [...]
A responsabilização social nos condiciona, desde a mais tenra infância, a acreditar
que nosso reconhecimento enquanto pessoas deve ser negociado através da troca de
narrativas identitárias. O veredito das pessoas para quem nós nos apresentamos é
praticamente axiomático: não havendo narrativa satisfatória (ou narrativa nenhuma),
não há um eu.439
[...] Existe sem dúvida um apelo implícito a um modelo do que seria uma
individualidade normal. [...] a estrutura dele é a do eu alargado, que se amplia ao
longo do tempo, e aparentemente é esta estrutura temporal, sustentada pela memória,
que dá forma ao significado da experiencia, ao conteúdo de uma “vida”, de uma
“existência” [...]. como a performance da narração de si serve para confirmar que a
identidade está funcionando, ela facilmente se torna um critério primordial para
aferir normalidade.440

439
Ibid, p. 56-57. Segundo o autor, “o treinamento para a narração de si começa cedo, o que confirma nossa
cumplicidade tácita com o funcionamento do sistema. Nós introduzimos nossos filhos à prática da construção da
identidade narrativa durante uma fase especialmente rica do desenvolvimento na primeira infância, na qual a
linguagem e as habilidades narrativas há pouco adquiridas são combinadas com a consciência temporal e com
um entendimento florescente da responsabilidade social em relação aos fundamentos da memória autobiográfica.
Esse treinamento toma a forma daquilo que os psicólogos chamam de “falar sobre lembranças” [memory talk],
que não é nada mais do que aquelas historinhas que pais e cuidados nos preparam para contar a nosso respeito.
Os primeiros resultados materiais desse esforço coletivo de construir uma história de vida são, sem dúvida,
triviais – uma volta no quarteirão, atividades na creche, uma visita ao zoológico –, mas elas são uma prática para
os vindouros voos, mais longos, de narração de si. Nessas conversas entre pais e filhos, ‘as crianças aprendem as
formas narrativas convencionalizadas que em algum momento oferecem uma estrutura para as memórias
internamente representadas’ [...]. descrevendo esse processo de socialização, Robyn Fivush [...] oferece essa
formulação memorável do intercâmbio entre consciência de si e memoria autobiográfica: ‘o conceito de si e as
memórias de experiencias passadas desenvolvem-se dialeticamente e começam a formar uma história de vida. A
história de vida, por sua vez, ajuda a organizar tanto as memórias de experiências passadas quanto o conceito de
si” [...] as crianças não aprendem apenas que se espera que elas sejam capazes de mostrar aos outros memórias
autobiográficas organizadas em forma de narrativa; elas também aprendem o que é contável.” Ibid, p. 40.
440
Ibid, p. 60.
Nas palavras de Eakin, “o termo eu alargado vem do psicólogo Ulric Naisser [...], que identificou a existência de
pelo menos cinco tipos de individualidade, envolvendo contextos físicos, sociais e mentais. O eu alargado de
Naisser – o eu da memória e da expectativa, o eu que existe continuamente ao longo do tempo – é o sujeito
primordial do discurso autobiográfico. De acordo com Naisser, por volta dos três anos de idade as crianças têm
consciência de si mesmas ‘como alguém que existe fora do momento presente, e, por conseguinte, do eu
alargado’ [...]. Essa dimensão temporal da individualidade alargada se presta à expressão na forma narrativa do
tipo que Sacks considera o âmago da identidade. Isso porque a narrativa é especialmente adequada para registrar
os efeitos do tempo e da mudança que são centrais para esse modo de experiência de si. Como resultado, o eu
alargado assume a forma de uma identidade narrativa, e as identidades narrativas servem como o meio para
expor esse eu em encontros interpessoais. Para os outros, nós somos versões do eu alargado e de sua história
identitária; quando entramos em cena com essas histórias, nos apresentamos para os outros como indivíduos
normais [...].” Ibid, p. 19.
161

Na perspectiva de Bourdieu441, esse esforço para a produção de si – que se manifesta


cotidianamente, mas que só é possível vislumbrar com clareza na “unidade de uma narrativa
totalizante” como, por exemplo, em uma autobiografia – resulta do processo de internalização
de um conjunto de disposições que, apesar de não ser racionalmente calculado, situa e orienta
estrategicamente as ações do indivíduo no espaço social442 (assumindo a premissa de que os
diversos campos443 são tomados por uma luta entre dominantes que buscam conservar a sua
posição e dominados que almejam subverter a ordem ou galgar os degraus da dominação444).
Portanto, segundo o sociólogo:

As leis que regem a produção de discursos na relação entre um habitus e um


mercado aplicam-se a esta forma particular de expressão que é o discurso sobre si; e
a narrativa de vida vai variar, tanto em sua forma quanta em seu conteúdo, conforme
a qualidade social do mercado no qual será apresentada.445

441
É importante ressaltar que a referência à reflexão de Bourdieu sobre o gênero biográfico não significa uma
adesão total às suas conclusões. Ou seja, o reconhecimento da importância de suas ressalvas acerca dos riscos e
das ilusões que permeiam esse tipo de escrita não se traduz em uma presumida concordância com sua tese acerca
da impertinência do uso da biografia como método para as ciências sociais. Embora o presente trabalho não se
proponha a empreender essa discussão teórica.
Mesmo François Dosse que, em sua obra O desafio biográfico, criticou de maneira contundente as conclusões de
Bourdieu sobre a biografia, reconhece que, de fato, existem ilusões que permeiam esse gênero literário e que a
reflexão do sociólogo francês tem méritos como o de “[...] suscitar a interrogação sobre esse liame tantas vezes
postulado de transparência entre o biógrafo e o biografado”. DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever
uma vida. Ed. 2. Tradução Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2015. p. 210.
O autor, inclusive, cita o trabalho de Olivier Schwartz como um exemplo que demonstraria que é possível
apropriar-se das críticas de Bourdieu sem, necessariamente, aderir totalmente à sua perspectiva, apesar de defini-
la como uma “generalização abusiva e desqualificadora”. Dessa forma, perscrutar os “efeitos” produzidos pela
escrita biográfica não significa aceitar que essa seja a sua única finalidade. Ibid, p. 211.
442
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Tradução Mariza Corrêa. Campinas: Papirus,
1996. p. 78.
443
Segundo Bourdieu, “os campos apresentam-se à apresentação sincrônica como espaços estruturados de posições
(ou de postos) cujas propriedades dependem da sua posição nesses espaços e que podem ser analisadas
independentemente das características dos seus ocupantes (em parte determinadas por elas).” BOURDIEU,
Pierre. Questões de sociologia. Tradução Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de século edições, 2003. p. 119.
444
Nas palavras de Bourdieu, “a estrutura do campo é um estado da relação de força entre os agentes ou as
instituições envolvidas na luta ou, se se preferir, da distribuição do capital específico que, acumulado no decorrer
das lutas anteriores, orienta as estratégias posteriores. Esta estrutura, que está no princípio das estratégias
destinadas a transformá-la, está ela própria sempre em jogo: as lutas cujo lugar é o campo têm por parada em
jogo o monopólio da violência legitima (autoridade específica) que é característica do campo considerado, quer
dizer, em última análise, a conservação ou a subversão da estrutura da distribuição do capital específico. (Falar
em capital específico é dizer que o capital vale em relação com um certo campo, portanto nos limites desse
campo, e que não é convertível numa outra espécie de capital a não ser em certas condições [...]).” Ibid, p. 120.
445
Id, 1996, p. 80.
162

O discurso sobre si é de tal forma uma construção social que não apenas é
influenciado pelos parâmetros coletivos com vistas ao acúmulo de capital simbólico446, como
também se modela por regras que, caso sejam desrespeitadas podem, inclusive, acarretar
sansões jurídicas. Segundo Bourdieu, “o mundo [...] tende a identificar a normalidade com a
identidade entendida como constância de si”447. Para alcançar esse status, é preciso observar
tanto normas leves, como o estabelecimento de uma ordem cronológica baseada na relação de
causa e efeito, quanto outras mais austeras, por exemplo, falar a verdade448.
Nesse sentido, para o bom encaminhamento da reflexão acerca da construção da
memória de frei Betto sobre a ditadura militar brasileira, é mais importante analisar sua
autobiografia como um meio através do qual se pode compreender a “narração de si” como
uma prática social mais ampla – da qual, inclusive, ela é uma das formas de expressão – do
que se ater às suas peculiaridades e limitações enquanto gênero literário; tendo em vista que o
maior interesse do autor com a publicação de suas obras, ainda que inconscientemente, é o
impacto social; ou seja, influir na memória hegemônica sobre o período, através da
apropriação e reprodução de sua versão pelos seus leitores.
Apesar de mencionar algumas datas importantes e usar os ciclos escolares como o
“jardim da infância”, o “ginásio” e o “colegial” para dividir os capítulos do livro, frei Betto
não dá ênfase à estrutura cronológica, tampouco explora o passar do tempo como processo
cumulativo de formação, como seria de se esperar em uma autobiografia escolar. O único
marco temporal destacado pelo autor, e não por acaso o mais importante, é a sua entrada na
JEC, narrada sob o título “Caminho de Damasco”.
Sua descoberta, aos treze anos, do grupo especializado da Ação Católica, que em sua
visão encarnava um cristianismo renovado e mais humano, é comparada à conversão de Paulo

446
Bourdieu chama “de capital simbólico qualquer tipo de capital (econômico, cultural, escolar ou social) percebido
de acordo com as categorias de percepção, os princípios de visão e de divisão, os sistemas de classificação, os
esquemas classificatórios, os esquemas cognitivos, que são, em parte, produto da incorporação das estruturas
objetivas do campo considerado, isto é, da estrutura de distribuição do capital no campo considerado. [...] o
capital simbólico é um capital com base cognitiva, apoiado sobre o conhecimento e o reconhecimento.” Ibid, p.
149.
De acordo com a perspectiva de Bourdieu, ao se reconhecer que frei Betto está posicionado tanto no campo
político quanto no religioso, se compreende que todos os seus atos – na maior parte das vezes, inconscientemente
– são motivados pelo “interesse”. Este se define, segundo o sociólogo, como “"estar em", participar, admitir,
portanto, que o jogo merece ser jogado e que os alvos engendrados no e pelo fato de jogar merecem ser
perseguidos; é reconhecer o jogo e reconhecer os alvos.” Ibid, loc. cit.
447
Ibid, p. 77.
448
Segundo Bourdieu, “o objeto próprio desses discursos, isto é, a apresentação pública, logo, a oficialização, de
uma representação privada de sua própria vida, implica um acréscimo de limitações e de censuras específicas
(cujo limite e representado pelas sanções jurídicas contra as falsificações de identidade ou o uso ilegal de
comendas).” Ibid, p. 80.
163

de Tarso que, de acordo com o Novo Testamento, durante uma viagem à capital da Síria, teve
sua forma de enxergar o mundo literalmente alterada449.
Ao narrar esse episódio, frei Betto destaca a maneira como foi recebido pelos frades
dominicanos que assessoravam a JEC em Belo Horizonte. O sorriso “complacente” de frei
Chico e o semblante “fraternal” de frei Marcolino são apresentados em contraste com a
austeridade do cristianismo que o autor aprendeu nas aulas de catequese e missas, assim
como, diante do autoritarismo dos religiosos e professores nas igrejas e nos colégios pelos
quais passou450.
Frei Betto descreve as reuniões da JEC como momentos de companheirismo e
liberdade. Nelas, os membros encarariam o cristianismo como uma missão assumida
voluntariamente, e não como um fardo imposto pela tradição e pela autoridade. Assim, ele
ressalta que, em seu primeiro contato com o grupo, estranhou que o coordenador “não falasse
em sexo, nem atirasse sobre nossos ímpetos juvenis a água fria do moralismo ortodoxo. [...] o
Evangelho não me parecera rançoso”451.
Embora a narrativa de frei Betto sobre essa descoberta de um “novo cristianismo” em
plena adolescência se caracterize pela leveza e pelo bom humor, de maneira nenhuma, pode-
se considerá-la algo trivial. A análise da obra deixa evidente sua relevância ao demonstrar que
é através dela que o autor dota os vários episódios de seus primeiros treze anos de vida de um
significado maior. Portanto, ela é o ponto fulcral do livro, do qual depende a interpretação
tanto do conjunto dos acontecimentos que a precedem quanto dos que a sucedem.
Até frei Betto começar a contar como foi seu “Caminho de Damasco”, suas menções a
ocorrências cotidianas de sua vida escolar como a discriminação de alunos negros, as
manifestações humilhantes do autoritarismo que caracterizava os padres e professores e as
demonstrações do elitismo cultivado nos colégios parecem não ter uma função clara em sua
autobiografia. No entanto, ao utilizar o exemplo da conversão de Paulo ao cristianismo para
dimensionar o quanto sua integração à JEC significou o impacto de um abrir de olhos para
quem está momentaneamente cego, o autor sugere que a abordagem desses episódios busca
exemplificar quão cruel e injusta era a realidade que até então ele não era capaz de enxergar.
Ou seja, o dominicano ordena sua narrativa de maneira a emular a cronologia que ele acredita
ter balizado a sua vida; logo, as memórias sobre seus treze primeiros anos só adquirem um

449
BETTO, 2002, p. 132. Cf. BÍBLIA. Língua Portuguesa. Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. Tradução Ivo
Storniolo e Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulus, 1990, p. 1402.
450
Ibid, p. 134.
451
Ibid, p. 139.
164

significado na estrutura textual após a abordagem de seu contato com o grupo especializado
da Ação Católica. Em Diário de Fernando, frei Betto destaca essa mesma estrutura narrativa.
Assim como o confrade Betto, frei Fernando também define seu encontro com a JEC
como “Caminho de Damasco”. A narrativa que ele criou para sua própria trajetória tem como
baliza temporal exatamente esse episódio. Dessa forma, ela estabelece que a compreensão das
motivações que levaram o dominicano a se envolver com o movimento estudantil da USP e
com a luta armada está condicionada ao entendimento do impacto que esse novo modelo de
cristianismo causou em sua visão de mundo.
Frei Fernando descreve o catolicismo que aprendeu desde a infância como uma
“religiosidade rançosa”. Para o dominicano, as práticas cotidianas da Igreja naquele tempo
impingiam nos fiéis um sentimento desproporcional de culpa. Graças aos ensinamentos das
missas e aulas de catequese, os jovens aprendiam desde cedo a ter um medo profundo de seus
próprios corpos e, por consequência, também desenvolviam pavor do inferno, já que sucumbir
aos prazeres da carne, conforme lhes asseguravam, era o caminho mais rápido para a ruína da
alma. Assim, a puberdade era vivida como uma fase de tormento e a religiosidade, em suas
palavras, “cheirava a incenso mofado”452.
Através do contato que teve com os frades dominicanos que coordenavam a JEC em
Belo Horizonte, frei Fernando afirma ter conhecido um tipo de cristianismo que, de tão
inédito em sua experiência, nunca foi possível nem cogitar que existisse. Em suas palavras,
durante as peregrinações e encontros “o padre ria, fumava, contava piadas picantes,
esculhambava um e outro. A turma reagia, dizia palavrões, escondia a boina azul que lhe
encobria a careca. Fiquei intrigado; jamais imaginara um ministro de Deus capaz de aceitar
tantas molecagens”453. Tamanha é a importância que o autor atribui àquelas reuniões de
jovens que, ao construir a narrativa sobre sua trajetória, ele confere a elas o papel de
desencadeadoras de sua vocação religiosa.
Na narrativa de Diário de Fernando, essa espécie de iluminação, que abriu os olhos do
protagonista para a própria vocação, também foi o fator que o fez enxergar o Concílio
Vaticano II como uma inédita e preciosa janela aberta para o mundo dos homens454, no sólido
edifício da Igreja. Segundo o autor:

452
BETTO, 2009, p. 24.
453
Ibid, p. 26.
454
Nas palavras de frei Fernando, “[...] a vida religiosa sofreu mudanças substanciais. Já não queríamos viver
segregados em conventos. A inserção ‘na cidade secular’, segundo expressão de Harvey Cox, se nos impunha
habitar em pequenas comunidades abrigadas em apartamentos.” Ibid, p. 30.
165

O pontificado de João XXIII e o Concílio Vaticano II vieram sacramentar o


pioneirismo dos dominicanos, cuja evangelização descartava o moralismo e
valorizava a luta por justiça social. [...] Foram imediatos seus reflexos entre os
dominicanos brasileiros. Em 1966, passamos a usar o hábito apenas em cerimonias
litúrgicas; [...] a vida religiosa sofreu mudanças substanciais. Já não queríamos viver
segregados em conventos. A inserção “na cidade secular”, segundo expressão de
Harvey Cox, se nos impunha habitar em pequenas comunidades abrigadas em
apartamentos. Chegou a hora de colocar o fermento na massa, o sal na comida, a luz
no teto da sala.455

A conversão a esse cristianismo descontraído e despojado também teria aberto os


olhos de frei Fernando e de seus confrades dominicanos para o potencial que significava a
efervescência político-cultural experimentada pelo Brasil nos anos 1960. A utopia da
“Revolução Brasileira”, cultivada nos meios estudantis, passou a ser vista pelos dominicanos
como uma porta para a realização do “Reino de Deus” na terra. Nas palavras do autor:

[...] O contato direto com o movimento estudantil provocaria em nós o mesmo


impacto progressista que, no pós-guerra na França, causou a aproximação de parte
do clero com o movimento sindical. Nosso ardor apostólico ganhou conotação
nitidamente militante; e a pregação do Reino de Deus, uma consistência imediata: a
revolução brasileira. [...]
O ano de 1967 marca o divisor de águas. Nossa presença na USP propiciou a
oportunidade de nos embebermos da convicção de que a revolução brasileira era
iminente. Todos os ventos pareciam soprar a favor. Os EUA sofriam humilhantes
derrotas no Vietña. Cuba conclamava-nos a ‘criar um, dois, três... Vietñas!’. Camilo
Torres, sacerdote colombiano, morreria em combate guerrilheiro nas selvas do país,
comprovando que a luta por libertação era, na América Latina, uma experiencia de
fé cristã. [...]456

Essa tendência de enxergar na própria vida uma relação inteligível entre todos os
acontecimentos e uma lógica na sua sucessão temporal que os torna impreteríveis no caminho
rumo a um telos – uma finalidade previamente determinada – é definida por Bourdieu como
uma predisposição coletiva que resulta da ação de mecanismos sociais que promovem a
constituição histórica de um habitus457 e a sua internalização através da socialização dos
corpos458.
Bourdieu destaca que é justamente dessa determinação social que resulta o
desenvolvimento de uma representação do “eu” como unidade permanente e invariável e, por

455
Ibid, p. 30.
456
Ibid, loc. cit.
457
Para Bourdieu, “essas antecipações pré-perceptivas, espécies de induções práticas fundadas na experiência
anterior, não são dadas a um sujeito puro, a uma consciência transcendental universal. Elas são criadas pelo
habitus do sentido do jogo. Ter o sentido do jogo é ter o jogo na pele; é perceber no estado prático o futuro do
jogo; é ter o senso histórico do jogo. Enquanto o mau jogador está sempre fora do tempo, sempre muito
adiantado ou muito atrasado, o bom jogador é aquele que antecipa, que está adiante do jogo. Como pode ele
antecipar o decorrer do jogo? Ele tem as tendências imanentes do jogo no corpo, incorporadas: ele se incorpora
ao jogo.” BOURDIEU, 1996, p. 144.
458
Ibid, p. 77.
166

consequência, da vida como trajeto linear, coerente e no qual cada acontecimento (por mais
banal que seja) é parte fundamental de uma totalidade459.
O nome próprio seria a ferramenta, por excelência, que as instituições como o Estado,
a família ou a Igreja utilizam em seus ritos para consumar essa “imposição arbitrária”.460 Ou
seja, estabelecer uma palavra ou um conjunto de palavras (nome e sobrenome) para designar
permanentemente um indivíduo seria uma forma de fazê-lo, inconscientemente, construir uma
imagem de si que ignore as transformações objetivas e subjetivas de comportamentos que lhe
foram demandados para que pudesse agir e existir em diferentes espaços sociais e contextos
históricos.
Nas palavras do autor:

O nome próprio é, assim, o suporte (teríamos a tentação de dizer, a substância) do


que chamamos o estado civil, ou seja, do conjunto de propriedades (nacionalidade,
sexo, idade etc.) vinculadas a uma pessoa e às quais a lei civil associa efeitos
jurídicos que instituem, sob a aparência de constatá-los, os atos do estado civil.
Produto do rito de instituição inaugural que marca o acesso a existência social, ele é
o verdadeiro objeto de todos os ritos de instituição ou de nominação sucessivos
pelos quais se constrói a identidade social: esses atos (frequentemente públicos e
solenes) de atribuição, operados sob o controle e com a garantia do Estado, são
também designações rígidas, isto é, validas para todos os mundos possíveis, e são
uma perfeita descrição oficial dessa espécie de essência social, que transcende as
flutuações históricas, que a ordem social institui através do nome próprio; de fato,
eles se apóiam no postulado da constância do pressuposto nominal de todos os atos
de nominação e, também, de maneira mais geral, de todos os atos jurídicos que
envolvem um futuro a longo prazo, quer se trate de atestados que garantam de modo
irreversível uma capacidade (ou incapacidade), de contratos a longo prazo, quer se
trate de contratos de credito ou de seguro, ou de sanções penais – qualquer
condenação pressupondo a afirmação de identidade atemporal daquele que cometeu
o crime e daquele que sofreu o castigo.461

No caso de frei Betto, ele mesmo deixa explícito que, ao construir uma narrativa para
sua vida, seu nome desempenhou o papel de “atestado visível da identidade [...] através dos
tempos e dos espaços sociais” 462
. O autor interpreta seu nome próprio como o símbolo de
uma identidade, concomitantemente coletiva, por representar a tradição familiar, e individual,
por demarcar a singularidade de sua personalidade (especialmente, através da dupla grafia da
letra “t”). Em suas palavras:

Carlos, meu prenome, tem característica de sobrenome, marca registrada de


família, reproduzida na estirpe paterna. Meu bisavô chamava-se Carlos Augusto.
Meu pai, Antônio Carlos, nome que se repete em meu irmão caçula. Zina, minha avó
paterna, deu à luz vinte filhos, dos quais sobreviveram, aos primeiros dias de vida,

459
Ibid, p. 78.
460
Ibid, p. 79.
461
Ibid, loc. cit.
462
Ibid, p. 78.
167

seis mulheres e seus irmãos Antônio Carlos, Carlos Augusto, José Carlos, Antônio
Carlos e Paulo Carlos. O primeiro Antônio Carlos faleceu criança, mordido por
escorpião, antes do parto daquele que viria a seu meu pai. Daí a duplicidade de
nomes e a diferença no sobrenome: todos os irmãos de meu pai assinavam Campo
Christo. Meu pai, Vieira Christo.
Como ocorreu a meu irmão Luiz Fernando, abreviado desde cedo Nando, passei de
Carlos Alberto a Beto. No bairro a meninada gravava no cimento fresco o próprio
nome, movida por essa humana necessidade de reconhecimento que, na idade adulta,
corre o risco de derivar para a ambição de fama. Adotei o duplo “t” para diferençar-
me de meus xarás na turma da rua. E ao duplicá-lo pela primeira vez, aos 11 anos,
quando tratei de o assinalar a carvão no muro de um vizinho, veio-me à mente a
piedosa lembrança de que eu acrescia ao apelido a marca da cruz de Jesus.463

Na autobiografia de frei Betto, a narrativa dos episódios de discriminação social, de


racismo, de antissemitismo, de machismo, de autoritarismo, de elitismo e de moralismo
anteriores a sua entrada na JEC, não por acaso, não apresentam uma reprovação explícita e
enérgica a essas atitudes das personagens mencionadas. O frade só descreve esse ímpeto por
mudar o “mundo” – palavra que passa a ser utilizada como aquela que sintetiza essa
multiplicidade de situações injustas e cruéis – e denunciar o que há de errado nele após seu
ingresso no grupo. Certamente, essa ordem dos fatores almeja ressaltar a importância da JEC
em sua trajetória como aquele que foi decisivo para que pudesse enxergar a realidade.
Assim sendo, o autor destaca:

A JEC imprimia-me a mística da salvação do mundo, o senso de militância, esse


mesmo espírito que nos faz esquecer de nós mesmos para nos preocuparmos com os
outros, e que mais tarde estimularia Betinho, já contaminado pelo vírus HIV, a
erguer a bandeira da luta contra a fome e a miséria.
Esse espírito fez com que eu descobrisse em mim energias tão poderosas quanto as
que moveram santos e revolucionários. Confesso que cheguei a temê-las. Meus
sonhos de futuro já não convergiam para um diploma de faculdade, títulos
acadêmicos, viagens ao exterior. Deixei de almejar tornar-me um advogado mais
prospero do que meu pai, casado com uma daquelas meninas ricas com quem eu
dançava nas festas de debutantes, morando numa mansão no bairro da cidade jardim,
o mais abastado da cidade. Eu queria muito mais; queria mudar o Brasil e o mundo,
criar uma sociedade sem injustiças, bafejada pelos valores evangélicos, livre de
opressão e desigualdades sociais. [...] acreditava-me participando de um processo
coletivo sinalizado no testemunho de homens como Gandhi, nas obras de autores
como o padre Lebret, e no êxito de recentes eventos históricos como a Revolução
Cubana e a vitória vietnamita sobre o poderio bélico dos Estados Unidos[...] meu
tempo pessoal haveria de coincidir com o meu tempo histórico.464

A importância que esse processo de “passar a enxergar a realidade” tem na narrativa


que frei Betto constrói sobre a sua própria vida é comparável à estrutura das histórias de

463
BETTO, 2002, p. 64.
464
Ibid, p. 146.
168

conversão que os adeptos da Teologia da Libertação465 construíram sobre seus representantes


mais afamados.
Nessas narrativas da literatura militante, a conversão a essa nova vertente do
cristianismo não se dá pela manifestação milagrosa da divindade, mas pelo choque que a
realidade social injusta causa no protagonista. Frei Betto reproduz essa estrutura não só ao
construir sua autobiografia, como também quando apresenta a história dos confrades
dominicanos, como já foi mencionado nos casos de frei Fernando e frei Ivo.
Esse novo sentido da conversão deriva de uma também inovadora concepção sobre a
santidade, já que se deve à literatura hagiográfica a solidificação do ato de narrar essa
transformação pessoal como uma tradição. Se, historicamente, ela era definida como a
proximidade do sagrado que teria transformado as vidas de determinados homens e mulheres
em canais para a manifestação do poder de Deus, ou seja, do milagre, somada à eleição dessas
trajetórias pela Igreja Católica como exemplos de retidão moral e fidelidade à ortodoxia
institucional, com a emergência do progressismo católico e o surgimento da Teologia da
Libertação, os anos 1960 marcaram o desenvolvimento de uma concepção nova e alternativa
sobre o tema.
Segundo Mairon Escorsi Valério, a santidade nesse tipo de “hagiografia
contemporânea”, produzida pela literatura militante, é atribuída à radicalidade do
compromisso ético assumido para com os mais pobres. Dessa forma, os adeptos da Teologia
da Libertação, ao construírem suas narrativas, especialmente sobre padres e bispos que
encarnaram em vida os princípios dessa nova vertente ou que morreram em nome deles,
transferem o foco do sobrenatural para o engajamento social levado às últimas consequências,
sem necessariamente negarem a visão tradicional sobre o tema466.
Nesse tipo de narrativa é fundamental, para salientar a radicalidade da opção do
biografado, compor a introdução com a descrição dos aspectos de um determinado contexto
histórico-social que atestam seu caráter injusto e desigual. Assim sendo, a gravidade dessa
realidade é proporcional à grandeza dessa atitude e condição sine qua non para a sua

465
A Teologia da Libertação é um movimento intelectual latino-americano que surgiu no final dos anos 1960 com
lançamento de três obras: Theology of Human Hope (1969) de Rubem Alves, Teologia de la Liberación. Uma
evaluación prospectiva (1970) de Hugo Assmann e Teologia de la liberación: perspectivas (1971) Gustavo
Gutierrez. VALÉRIO, Mairon Escorsi. O Continente Pobre e Católico: o discurso da teologia da libertação e a
reinvenção religiosa da América Latina (1969-1992). Campinas, 2012. 354 f. Tese (Doutorado em História
Cultural) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. p. 125.
Entre os vários princípios que caracterizam esse movimento, o mais importante é, sem dúvida, a afirmação da
justiça social como parte fundamental do processo soteriológico anunciado pelas religiões cristãs. Cf. LÖWY,
Michael. A guerra dos deuses: religião e política na América latina. Tradução de Vera Lúcia Mello Joscelyne.
Petrópolis: Vozes, 2000. p. 61.
466
VALÉRIO, 2012, p. 52.
169

conversão467. No caso de frei Betto, essa é uma estratégia para construir sua própria história.
Dessa forma, para descrever esse “mundo” que o rodeava e que tornou sua entrada para a JEC
um divisor na sua vida, o autor escolhe como eixos de sua história pessoal a exclusão sócio-
racial, a austeridade do catolicismo tradicional e as ameaças de retorno do autoritarismo
governamental.
Sintomaticamente, a autobiografia de frei Betto começa pela descrição da babá que o
buscava diariamente no jardim de infância. O detalhamento abundante, entremeado por
relatos sobre a comportamento de Geralda, sugere que esse artifício foi utilizado pelo autor
para, simbolicamente, retratar a experiência da exclusão social e da discriminação vivida por
negros e trabalhadores no Brasil, especialmente as empregadas domésticas.
A pobreza de Geralda é simbolizada pelas “chinelas de corda” e pelo vestido de
“fustão”. Sua postura revelaria uma profunda subserviência representada no texto pelo olhar
alternadamente descrito como vago, “pra baixo” ou vazado. Também sua inexpressividade era
traduzida pelo constante silêncio em que se mantinha, raramente quebrado por um sussurro.
Dessa forma, segundo frei Betto, ela “pouco falava” e “nunca sorria”468.
Sua condição de mulher negra e trabalhadora braçal é projetada na descrição de seu
corpo. Seus “dedos fortes”, “ventre duro” e “braço redondo de veias salientes” traduziriam o
vigor físico imprescindível para o serviço pesado. Já as suas “ancas dilatadas” e “pernas
grossas” seriam próprias de uma “neta de escravos”, alvos históricos do abuso sexual.
No episódio do qual é personagem, a babá, ao buscar o pequeno Carlos Alberto no
jardim de infância, se depara com um acidente; o vendedor de gelo fora atropelado e
agonizava no asfalto. Frei Betto salienta que, enquanto sua curiosidade infantil o incitava a
correr em direção à cena para ver o que havia acontecido, a empregada mantinha a mesma
apatia rotineira. O autor interpreta esse comportamento como expressão de sua realidade de
exclusão social. Sua “tristeza inaudita” revelaria que ela era uma “exilada do mundo” ou uma
“esquecida do mundo dos vivos, no qual seu fantasma perambulava travestida de gente”. Ao
indagar Geralda sobre o que aconteceu, o dominicano ainda criança teria experimentado uma
revelação sobre o mundo do trabalho: “descansou; este não sofre mais”469.
Essa referência ao impacto que o convívio com negros e pobres causou na sua infância
é retomada na história de Renato, outro personagem de sua época de jardim da infância.
Assim como no caso da babá, a descrição atribui a suas características físicas o caráter de

467
Id. Entre a cruz e a foice: Dom Pedro Casaldáliga e a significação religiosa do Araguaia. Jundiaí: Paco
Editorial, 2012. p. 38.
468
BETTO, op. cit., p. 14.
469
Ibid, p. 16.
170

símbolos de sua condição social. Seu “rosto anguloso” e “olhos a saltar das órbitas”
denunciavam a “penúria” na qual vivia470.
As menções que frei Betto faz ao colega de classe sugerem sempre que a
discriminação daqueles que não se encaixavam nos padrões convencionalmente considerados
normais era um hábito cultivado até mesmo nas escolas. O autor conta que a professora,
“Dona Celeste”, ao escalar as crianças para encenarem a história infantil “O patinho feio”,
reservou ao aluno que destoava do resto da turma pela altura elevada o papel da personagem
que dá nome ao conto; e a Renato deu o papel do gato mau. Dessa forma, sua narrativa aventa
que essas escolhas se guiaram pelo preconceito que associava tacitamente os atributos dos
animais da história à condição social do aluno471.
Renato figura ainda em dois episódios importantes para a construção da memória de
frei Betto. A pretexto de terem o mesmo protagonista, eles são narrados conjuntamente.
Entretanto, esse não é o real motivo de sua união simbólica, mas sim, o escândalo da pobreza.
Na primeira parte do capítulo “Vísceras”, o autor narra que ao ser constrangido pelo
olhar ávido de Renato pelo seu lanche, compartilhou o alimento com ele. No dia seguinte,
munido pela mãe com o dobro da quantidade habitual de merenda para poder dividi-la com o
amigo, ficou surpreso ao vê-lo acompanhado por mais dois meninos de igual condição. O
episódio lhe teria revelado que “a porta do refeitório demarcava dois universos distintos”.
Mais do que separar espaços físicos, ela balizava a desigualdade social. Comer no interior
daquele local, do qual os privilegiados com suas lancheiras “mantinham distância”,
significava pertencer ao grupo daqueles aos quais tudo faltava e que dependiam do “erário
público” para amenizar a fome472.
Na segunda parte, frei Betto narra que na semana seguinte Renato levantou a mão,
aflito para pedir a palavra, durante uma das aulas. Ignorado pela professora, que teria
continuado a leitura de Alice no país das maravilhas, ele defecou em meio à sala. Sentindo-se
constrangido pela zombaria dos colegas, o menino foi arrastado grosseiramente por dona Rute
para fora do local e, pouco tempo depois, retornou para limpar o chão e a cadeira na qual
estava sentado. O frade afirma que teve “ânsias de gritar por ele” ao vislumbrar que o choro
compulsivo o impedia de dizer algo frente às humilhações proferidas pela professora e o
sofrimento do castigo lhe foi imposto473.

470
Ibid, p. 27.
471
Ibid, p. 30-33.
472
Ibid, p. 34.
473
Ibid, p. 36.
171

A junção que frei Betto estabeleceu entre esses dois episódios procura atestar que a
pobreza “visceral” de Renato não lhe vitimava apenas através da fome. Ela também era razão
para humilhações, como, por exemplo, o descaso da professora que motivou o episódio
vergonhoso e, por consequência, a privação do seu direito à educação. O autor narra que “a
partir daquele dia, tornaram-se frequentes as faltas de Renato. Até que sumiu de vez”474.
A narrativa de frei Betto salienta o contraste entre sua infância e a de Renato como
forma de demonstrar o potencial transformador que aquele, por assim dizer, “encontro de dois
mundos”475 teve na sua trajetória. Quando o colega lhe confessou que ansiava por uma festa
de aniversário que nunca tivera, o autor contrapõe esse desejo à lembrança das suas
comemorações “coloridas de balões, fartas de presentes, e salgadinhos e doces afetuosamente
preparados pelo mutirão de empregados e tias [...]”476. Também é visível o contraste entre sua
condição de criança bem cuidada com a carência do menino na estrutura da narrativa da
última vez que os dois teriam se encontrado. O dominicano conta que enquanto andava pela
feira ao lado de sua babá, extensão da proteção familiar, a mãe do amigo pediu uma ajuda em
dinheiro por conta das dificuldades que a ausência do marido, que se encontrava preso,
causava aos dois.
Não só o escândalo da pobreza, representado pelo convívio com Geralda e Renato, é
elencado para demonstrar o quão grave era a realidade que assolava algumas das pessoas com
as quais frei Betto conviveu na mais tenra idade, como também o racismo e o elitismo que
caracterizavam alguns dos colégios que ele frequentou são destacados como exemplos da
perversidade desse contexto social.
Disposto a demonstrar a precocidade com que se viu diante do caráter discriminatório
do “mundo” no qual estava inserido, frei Betto retoma um episódio dos anos iniciais da
alfabetização. Ele narra que certo dia, no chamado “grupo escolar”, escutou sem querer uma
discussão. Indagada por uma professora sobre quando os “alunos de cor” poderiam participar
da coroação anual da imagem de Nossa Senhora; dona Filomena, a diretora, teria afirmado
que não combinava. Diante da réplica de que a escola poderia ser acusada de racismo, foi
autorizada a participação de uma aluna negra na cerimônia daquele ano. Entretanto, enquanto
os outros alunos que representariam os anjos vestiam branco, ela estaria totalmente de preto; o
que, segundo o autor, causou “desconforto geral”. Essa teria sido a primeira vez, de muitas,

474
Ibid, p. 37.
475
Ibid, p. 34.
476
Ibid, p. 35.
172

que o autor vislumbrou a discriminação racial477. Contudo, sua autobiografia destaca que, com
o passar dos anos, demonstrações como essa se tornaram mais veladas.
Já o elitismo cultivado nos colégios pelos quais frei Betto passou é descrito como uma
prática mais recorrente e muito menos preocupada com a discrição. Em sua vida escolar, teria
sido essa a injustiça que com mais proximidade ele experimentou. O autor ressalta que, na
fase do “ginásio”, as altas mensalidades da escola católica na qual dividia a classe com “o
filho do prefeito e de Tancredo Neves” serviam de filtro para aglutinar apenas os rebentos da
elite, afastando, assim, pobres e negros. Também a presença feminina não era permitida478.
Frei Betto procura relacionar a obsessão pela disciplina e etiqueta que os padres que
dirigiam a escola cultivavam à tentativa de forjar uma casta para a cidade de Belo Horizonte,
que naquela época contabilizava pouco mais de meio século de fundação. A educação baseada
em hábitos franceses teria, em sua visão, como objetivo desenvolver uma “finesse d’esprit”479,
por isso, segundo o dominicano:

[...] exigiam dos alunos hábitos principescos, disciplina férrea, uniforme de gala,
passos aveludados pelos corredores, voz contida, unhas limpas, cabelos aparados e
material escolar em estado de perfeito asseio. Tudo isso reforçado pela formação do
caráter, respaldada no esporte e na religião, esta entendida como freio aos ímpetos
juvenis e castigo aos pecados da carne e, aquele, como preparo ao competitivo
alpinismo profissional e social.480

Frei Betto faz questão de ressaltar que esse apego pela disciplina e pelos mecanismos
de exclusão social, além de promover o que ele chama de “darwinismo de salão”, responsável
por manter negros, protestantes e judeus bem distantes do colégio, também dava margem a
episódios de humilhação contra aqueles alunos que, mesmo pertencendo ao seleto grupo dos
abastados que podiam estudar no colégio, não se enquadravam no padrão de comportamento
estabelecido pelos padres481.
O primeiro exemplo elencado por frei Betto é o de Virgílio. O autor narra que, durante
uma inspeção nas primeiras semanas do ano letivo, o padre Graziel, reitor do colégio,
repreendeu de maneira ofensiva o colega por trazer sua caderneta pessoal assinada apenas
pelo pai. Exaltado, ele teria perguntado se o menino sabia ler, se era surdo, cego ou analfabeto
por não ter seguido as orientações e preenchido completamente a ficha de identificação. O
autor aventa que essa atitude descomedida do clérigo se deveu a “sua contrariedade por ver de

477
Ibid, p. 85-87.
478
Ibid, p. 102.
479
Ibid, p. 103.
480
Ibid, p. 104.
481
Ibid, p. 103.
173

volta ao colégio um aluno considerado rebelde” 482. Ele avalia que a opção de impedir essa
rematrícula pareceria certamente mais fácil, entretanto, o elitismo que caracterizava a
instituição era um obstáculo intransponível para que seus dirigentes se indispusessem com as
famílias abastadas.
Em outro exemplo, frei Betto narra que, passados três meses, a direção do colégio
reteve todas as turmas no pátio do colégio para inquiri-las sobre quem era o responsável pelas
pichações na parede de um banheiro que contestavam a heterossexualidade daqueles que
abraçavam o sacerdócio. Diante do silêncio dos suspeitos, padre Graziel acusou Ricardo
Gontijo que imediatamente negou a autoria. Segundo o autor, o colega seria incapaz de
protagonizar tal ato. Em suas palavras, “O reitor perdeu a compostura. Irado, agarrou o
menino pelos ombros, sacudindo-o e gritando: foi você sim! Reconheça que foi você!”483
A explicação de frei Betto para o fato do padre Graziel ter eleito como culpado um dos
alunos mais educados e que, ainda por cima, era filho de “um dos mais prósperos hoteleiros
da cidade” procura, mais uma vez, salientar o elitismo da escola. O dominicano sugere que o
reitor enxergou naquela ocorrência mais uma oportunidade para punir aqueles que não se
enquadravam em seu padrão. Dessa forma, seria a amizade que Gontijo mantinha com
“colegas tidos como incorrigíveis” a mácula que fizera com que sua disciplina e aplicação aos
estudos fossem ignoradas e ele fosse acusado de um ato que não cometeu484.
A austeridade do catolicismo tradicional é o segundo eixo que frei Betto estabelece
para demonstrar quão absurda era a realidade que o circundava durante sua jornada formativa.
A importância que o autor atribui a essa religiosidade balizada pelo medo do inferno e pelo
sentimento de culpa em relação à própria sexualidade se deve ao fato de ter sido ela o pano de
fundo que potencializou o caráter revolucionário do discurso da JEC, o que,
consequentemente, precipitou seu “Caminho de Damasco” e por suas concepções equivocadas
terem contribuído para legitimar as posições daqueles que combatiam nas fileiras pelo retorno
do Brasil a um regime autoritário.
A narrativa de frei Betto estabelece uma oposição entre a visão religiosa que aprendia
em casa com o ensinamento e o exemplo dos pais e aquela que constantemente padres e
freiras tentavam lhe impor nas igrejas. Frei Inocêncio e a mère Ascensão do colégio Sacré-
Coeur de Marie são os primeiros personagens elencados para representar a instituição. De sua
iniciação cristã com o sacerdote holandês, o autor salienta a ira com que o frade vociferava a

482
Ibid, p. 107.
483
Ibid, p. 110.
484
Ibid, loc. cit.
174

moral sexual durante as missas485. Já das aulas de catequese, apesar da doçura e juventude da
freira, ele recorda que elas lhe impingiam uma aflitiva culpa pelo pecado original e um medo
terrível do inferno. Nas palavras do autor:

Sentada ao meu lado, à sombra de uma castanheira, ela trazia em mãos um estojo
de madeira envidraçado na face, no interior do qual havia um rolo de papel em volta
de uma bobina. Com uma manivela, rodava a bobina e, aos poucos, passava o
“filme” das várias fases da alma. Primeiro, um enorme coração preto – retrato da
alma das crianças pagãs, dos pecadores inveterados, dos hereges protestantes e dos
judeus que mataram jesus... em seguida, discursava sobre a misericórdia de Deus, o
arrependimento, o sangue redentor de Cristo e, aos poucos, o rolo mostrava corações
com espaços em branco entremeados de manchas pretas. Era a alma em processo de
conversão ou sendo limpa pela água purificadora do batismo.
O inferno causava-me aterradora impressão. A religiosa enfatizava de tal modo o
poder de Lúcifer que, ao lado de Super-Homem, Batman e Zorro, passou a figurar
na minha galeria de heróis, embora me inquietasse o medo de morrer e ir para aquele
lugar de torturas e fogo, onde pecadores que não se arrependeram e hereges que não
se converteram penam por toda a eternidade, sem uma gota de alívio. O inferno
dominou-me de tal forma o imaginário que, em meus desenhos, só usava lápis
vermelho.486

Frei Betto ressalta que esse catolicismo que aprendia quando estava distante dos pais,
além de ser aferrado ao moralismo sexual e inclinado à discriminação de judeus e
protestantes, também era profundamente anticomunista. Ele relembra que na igreja da Boa
Viagem, após a benção final, era costume se rezar “três ave-marias em prol da conversão da
Rússia comunista”487. Em outro episódio, o autor narra que durante uma visita escolar à
Lagoa da Pampulha, a professora informou os alunos de que as missas eram proibidas na
igreja de São Francisco de Assis porque “a sineira, vista à distância, e em contraste com o
desenho ondulado do templo, lembra o símbolo comunista da foice e do martelo...”488. O
dominicano ainda ressalta que, curiosamente, dona Derci Passos, antes mesmo de ser
questionada sobre as celebrações naquele local, fez questão de informar-lhes que tanto o seu
projetista, Oscar Niemayer, quanto Cândido Portinari, que o decorou, eram comunistas489.
Em sua narrativa, o advento da puberdade só tornava o discurso religioso cada vez
mais obcecado pelas questões da sexualidade. No colégio católico no qual estudava nesse
período “a fatídica advertência: ‘Deus me vê’” simbolizaria o projeto de moldar os costumes
pelo medo do fogo do inferno. O autor conta que, nas missas compulsórias, o desejo sexual
era apresentado como ardis do demônio que provocava a ira de Deus. Nas palavras do autor:

485
Ibid, p. 73-74.
486
Ibid, p. 76.
487
Ibid, p. 89.
488
Ibid, p. 84.
489
Ibid, p. 83.
175

[...] Tal a entonação do pregador que se chegava a sentir o calor das chamas, o
cheiro do enxofre, as pontas dos garfos a nos espetar a carne. As palavras do
celebrante nos oprimiam com um deus iracundo, que se impunha como eterno
inimigo do desabrochar de nossa adolescência, da fascinante descoberta da
sexualidade e, em especial, de nosso despertar para a beleza feminina.490

Para evidenciar a intransigência dessas concepções, frei Betto estabelece um contraste


entre elas e a maneira como seu pai e sua mãe encaravam a religião. Através dessa estratégia,
ele não só busca explicar a razão para não ter aderido a elas, como também, procura
demonstrar a legitimidade de sua visão alternativa do cristianismo.
A religião é introduzida na narrativa de frei Betto justamente através das referências
ao ambiente familiar. Na primeira menção ao tema, os elementos principais e iniciais são a
“imensa fé” da mãe, que o colocou no curso de catequese aos sete anos de idade para que
pudesse fazer a primeira comunhão; e o anticlericalismo do pai, que o autor faz questão de
afirmar, não poupou críticas à iniciativa por considerar os padres bajuladores dos ricos e
poderosos491. Dessa forma, o dominicano busca construir uma genealogia que encontre na
junção dessa herança paterna e materna a explicação para suas concepções sobre a fé e suas
posições sobre as Igrejas, especialmente a católica.
Na construção de sua narrativa, frei Betto sugere que o que tornava sua visão religiosa
sólida e justificável era a longevidade de sua raiz paterna. As insatisfações que o autor
manifestou ao longo da vida com certas posturas históricas dos clérigos teriam sido produto
da influência de Antônio Carlos que, desde a infância, nutria uma desconfiança para com os
homens de batina. Para sublinhar a importância dessa herança, ele se apropria e reproduz uma
lembrança do pai sobre a origem de seu anticlericalismo.
Em suas palavras, nas conversas familiares, o pai posicionava-se contra o clero se
lembrando das:
[...] noites mal dormidas de minha avó, a aquecer bacias de água no fogão de lenha
para o banho de cônegos e monsenhores que, despejados na praça da estação, altas
horas da madrugada, batiam à porta de meu avô, que trabalhava no gabinete do
governador. Além das benesses do poder, o clero ia em busca de passes para viajar
de graça nos vagões da Rede Mineira de Viação.492

Já ao ensinamento materno, o autor atribui sua predileção por uma religiosidade


menos ritualizada e, inversamente, mais íntima com o divino. O hábito aprendido com Maria
Stella de “conversar com Deus” ao acordar e antes de ir dormir teria sido a semente que

490
Ibid, p. 102.
491
Ibid, p. 72.
492
Ibid, loc. cit.
176

produziu sua rejeição pelas “fórmulas e formalidades” ensinadas na catequese. Também sua
antipatia pela rigidez da ortodoxia católica teria brotado da recomendação de sua mãe para
não “absolutizar” o que aprendia na igreja e não discriminar os praticantes de outras religiões
como os “vizinhos protestantes” e a “tia Gláucia, da Igreja Batista”493.
Para evidenciar que na sua adolescência experimentou uma realidade escandalosa, frei
Betto estabelece como terceiro eixo a ameaça do reestabelecimento de um regime autoritário
no Brasil. Certamente, a pouca idade do autor nos episódios narrados suscita questionamentos
sobre seu real interesse, àquela altura, pela crônica política. Entretanto, sua narrativa ressalta
que essa intuição, por assim dizer, sobre os abusos e injustiças que uma nova ditadura poderia
acarretar derivava muito mais da convivência com seu pai, visto que ele era atormentado pela
preocupação com esse risco.
Frei Betto procura deixar claro que, por influência paterna, a figura mais importante de
seus primeiros contatos com o universo político foi Getúlio Vargas. Membro da UDN, seu
Antônio Carlos assinou em outubro de 1943 o Manifesto dos Mineiros que exigia o fim da
ditadura do Estado Novo e a redemocratização do país. A presença e relevância dessa
oposição seria tão grande na intimidade familiar que, segundo o autor, o anúncio do
licenciamento do presidente em agosto de 1954, após o atentado a Carlos Lacerda na rua
Tonelero, deixou seu pai tão extasiado que ele decidiu transformar seu aniversário de dez anos
“numa grande comemoração do fim do autoritarismo no Brasil”494. No entanto, seus planos
foram frustrados pela perplexidade geral causada pela notícia do suicídio de Vargas, um dia
antes da festa.
Até mesmo a antipatia que Antônio Carlos nutria por Juscelino Kubitschek tinha sua
explicação na oposição ferrenha ao varguismo, pois, segundo frei Betto, foi graças ao
interventor de Minas Gerais, nomeado pelo presidente gaúcho em 1933, que o médico mineiro
ascendeu na vida política. De acordo com seu pai, JK “viajava demais e administrava de
menos” e devia seu sucesso à “mão protetora de Benedito Valadares”495.
Ao introduzir a política em sua autobiografia, frei Betto, não por acaso, une em um
mesmo capítulo dois episódios de sua infância que aparentemente não têm nenhuma ligação
cronológica. No primeiro, ele narra o dia no qual o pai de uma colega judia do Jardim da
Infância foi reclamar com a diretora porque o conto “João e Maria” dos irmãos Grimm foi
lido durante uma aula. Ao questionar Raquel sobre o que havia incomodado o homem, a

493
Ibid, p. 77.
494
Ibid, p. 93.
495
Ibid, p. 67.
177

menina respondeu que ele não achava apropriado “essa coisa de falar que a velha ficou
trancada no forno até morrer queimada. Na guerra, meus avós e dois tios morreram também
no forno”496. Esse teria sido o ensejo para que o autor, através de uma conversa com seu pai,
passasse a conhecer a história de Hitler, Mussolini e da “matança de judeus e outros
prisioneiros em campos de concentração”497. O dominicano ainda ressalta que, curiosamente,
apesar do horror causado pela descrição dos crimes do Nazifascismo, a informação que o
surpreendeu foi a da origem judaica de Cristo. Assim, no dia seguinte, ele teria procurado a
colega para falar: “meu pai disse que jesus era judeu. Como lá em casa todos adoram Jesus,
acho que nós também somos judeus”498.
Embora o desfecho da história enfatize a comicidade que a inocência de criança dá à
conclusão aparentemente lógica, através dessa construção, frei Betto indica almejar que sua
narrativa estabeleça uma trincheira simbólica que oponha de forma radical o cristianismo e
qualquer tipo de ditadura e que seja, acima de tudo, intransponível. Em sua autobiografia, o
autor dá a esse episódio da infância o papel de fundador da rejeição indissolúvel ao
autoritarismo que justificaria todas as escolhas feitas ao longo de sua trajetória de vida.
Para introduzir o segundo episódio que compõe o capítulo, frei Betto conta que,
durante as brincadeiras de criança com o amigo Celsinho, tempos depois de ouvir a história
dos parentes de Raquel, enforcou e queimou um boneco de pano, com um bigode desenhado
com carvão, que representava Hitler499.
A partir desse ponto, ele passa a narrar o dia no qual seu companheiro de passatempo
lhe informou que tinha sido proibido de frequentar sua casa. Curioso sobre qual seria o
motivo para uma decisão tão radical, o pequeno Carlos Alberto perguntou e o amigo
respondeu que fora a oposição que seu pai fazia a Vargas a razão para a interdição. Segundo
frei Betto, ele teria dito: “seu pai tirou do Brasil o presidente da República. Papai gostava do
presidente, e garante que ele vai voltar para governar o país”500. O autor afirma que, após seu
Antônio Carlos confirmar que de certa forma havia contribuído para a deposição do ditador
em 1945 e explicar os motivos pelos quais ele merecia essa alcunha, teve vontade de dar a
“Getúlio” o mesmo fim que dera a “Hitler”, assim, se ambos se uniam nos crimes, também se
uniriam na punição.

496
Ibid, p. 52.
497
Ibid, loc. cit.
498
Ibid, loc. cit.
499
Ibid, p. 55.
500
Ibid, p. 54.
178

Embora frei Betto reconheça que Vargas e Hitler se distinguiram em vários aspectos e
que o Nazismo promoveu uma barbárie sem precedentes, ele faz questão de mencionar que o
líder do Estado Novo “também mandou prender gente inocente e deu ordens para bater e
matar quem discordava dele. Proibiu eleições, censurou a imprensa e ficou quinze anos no
poder”501. Sua narrativa sugere que o autoritarismo que caracterizou a maneira como ambos
exerceram o poder os aproxima, ainda que a proporção de suas consequências seja
profundamente desigual.
Dessa forma, a narrativa de frei Betto estabelece que sua profunda aversão pelo
autoritarismo nasceu do entrecruzamento de duas heranças. De um lado, a individual; através
da obsessiva oposição a Vargas, a influência paterna lhe teria legado a certeza de que os
direitos democráticos estão constantemente em risco por conta das ambições daqueles que
exercem o poder, portanto a eterna vigilância é imprescindível. Do outro, a coletiva; a
memória do Holocausto lhe deu a convicção de que combater esse tipo de ideologia não era
uma responsabilidade particular da nação na qual ela se desenvolve, tampouco representa
exclusivamente a luta de suas vítimas diretas por justiça. A barbárie que o Nazifascismo
promoveu deveria colocar toda a humanidade na trincheira inimiga a qualquer regime que
apresentasse a mais remota semelhança com seus métodos e objetivos.
Concluída a construção da narrativa inicial de Alfabetto que, na visão do autor,
demonstra o quanto a realidade que contextualizou seus treze primeiros anos de vida era
injusta e nociva e destaca o efeito revolucionário que sua descoberta do catolicismo
progressista, através da importância que a JEC teve em sua trajetória, frei Betto passa, então, a
contar como essa conversão fez com que ele enxergasse o que antes não conseguia.
Embora possa parecer um ato motivado, exclusivamente, pela vontade individual,
narrar a própria vida é uma prática socialmente aprendida. Segundo Eakin, a narração de si
não é uma atividade exclusiva daquelas pessoas que, por sua notoriedade ou pelo caráter
incomum das experiências que vivenciaram, decidiram transformar suas memórias em livros
publicados. Na perspectiva do autor, todas as vezes que alguém se lembra, comunica o que
aconteceu no seu dia anterior ou planeja os seus afazeres cotidianos está praticando o mesmo
exercício do qual nascem as autobiografias.
Em sua obra Vivendo autobiograficamente: a construção da identidade na narrativa,
Paul John Eakin afirma:

501
Ibid, p. 56.
179

[...] Autobiografias escritas representam uma parte pequena, embora reveladora, de


um fenômeno muito maior: a narração de si que praticamos todos os dias. Então, a
questão relativa a regras que quero examinar não é apenas o que se espera de um
texto para que ele “seja considerado” uma autobiografia, mas também que se espera
de um indivíduo, manifestado em uma narração de si, para que ele ou ela “sejam
considerados” uma pessoa.502

Entretanto, para Eakin, ao contrário do que geralmente se pensa, o exercício de falar


de si não está baseado em uma separação entre o discurso e o objeto que se aborda – no caso,
a identidade. Partindo do pressuposto de que esta se define como a “[...] versão de nós
mesmos que exibimos não apenas para os outros, mas também para nós mesmos sempre que
temos a oportunidade de refletir sobre ela ou de nos envolver com a nossa transformação em
personagem”503, o autor defende a tese de que sua construção é produto do próprio processo
de narração de si. Em suas palavras:

[...] falar sobre nós mesmos é muito mais do que autoindulgência; quando nós
fazemos isso, efetuamos um trabalho de autoconstrução. A própria frase “falar
sobre/nós mesmos” tende a separar a individualidade do ato de expressá-la, a
atribuir uma existência independente ao “nós mesmos”, que seria o “sobre o que
estamos falando”, quando o “falar”, como defendo, na realidade convoca nossas
identidades narrativas à existência; existe uma interação entre o que somos e o que
dizemos que somos, coisas que se reforçam mutuamente. Ao falar em identidade
narrativa [...] eu proponho [...] uma relação extremamente próxima e dinâmica entre
narrativa e identidade, pois a narrativa não é apenas uma forma literária, mas parte
do tecido de nossa experiência vivida. Quando se trata de nossas identidades, a
narrativa não é simplesmente sobre o eu, mas sim, de maneira profunda, parte
constituinte do eu.504

Embora continue apresentando acontecimentos bastante semelhantes aos já citados, a


postura de frei Betto, como personagem da sua própria história, passa a ser muito mais ativa.
Ele adota essa estratégia de contrastar suas atitudes em situações muito parecidas como forma
de ressaltar a radicalidade da conversão que a JEC provocou em sua maneira de enxergar a
realidade, ainda que houvesse o risco de que essa nova maneira de se relacionar com as
figuras de poder do seu cotidiano fosse interpretada como o resultado natural do transcorrer
do tempo que, geralmente, faz emergir na vida dos adolescentes os arroubos da rebeldia.
Assim, a narrativa de Alfabetto passa a salientar, por exemplo, inciativas como a de
criar um grêmio estudantil, apesar da relutância dos padres que dirigiam o colégio, como
forma de questionar a imobilidade daquela estrutura de poder que se tornou intolerável após
sua entrada na JEC. Frei Betto também destaca que se engajou no combate ao elitismo que

502
EAKIN, op. cit., p. 48.
503
Ibid, p. 13.
504
Ibid, p. 18.
180

caracterizava o colégio, através de pequenas ações. Ele narra, por exemplo, que um curso
noturno para adultos foi instalado depois que o jornal do grêmio revelou que “um dos
melhores colégios de Minas abrigava funcionários analfabetos”505.
A discriminação racial também passa a ter uma explicação mais complexa na narrativa
de frei Betto. Se até iniciar seu “Caminho de Damasco” ele conta que apenas percebia a
ausência de alunos negros em seu colégio e considerava esse fenômeno somente resultado do
elitismo dos padres que aspiravam criar uma elite para a capital mineira, depois desse
episódio, ele teria passado a enxergar a relação íntima existente entre os mecanismos de
exclusão e a manutenção de uma ideologia que defende a superioridade de brancos sobre
negros, calcada em uma presunção intelectual. Assim sendo, as práticas e os discursos se
alimentariam mutuamente para preservar uma edificação de poder que historicamente
privilegia uma parcela da população.
Frei Betto narra em um dos capítulos que o padre Cajetano, depois de retornar de uma
missão em Angola, diante da curiosidade dos alunos, afirmava que os negros da África eram
“incapacitados para as ciências”, pela sua inferioridade intelectual, “desprovidos de pudores”,
por andarem nus e por suas danças sensuais e que era impossível catequizá-los, pois
“idolatravam a natureza, davam-se ao animismo e praticavam a bigamia”506. Sugerindo que
chegou a essa conclusão ainda naquele período, o autor destaca que o discurso racista do
professor de latim era aceito justamente por que ia de encontro à estrutura ideológica do
colégio, no qual “exceto as batinas dos padres, não havia nada negro”507.
Alfabetto também sugere que a visão do jovem Betto sobre o elitismo cultivado no
colégio sofreu uma transformação. Ao narrar a história de Pedro Bullamarte, o autor ressalta
que a curiosidade da turma, ansiosa por saber o que havia acontecido com o colega que há
dias não comparecia às aulas, foi suplantada pelo espanto causado pela descoberta de que seu
pai era açougueiro. Supondo que seus leitores talvez não compreenderiam porque essa
informação causou tamanho sobressalto, frei Betto explica:

[...] Fosse dono de frigorífico, como os Perrella, estariam salvas a fachada do


colégio e a classe social que confiava seus herdeiros à boa educação dos padres, para
orgulho pouco cristão daqueles professores. Mas... açougueiro! Nunca se ouvira
falar que houvesse ali um aluno originário das classes subalternas. Os menos
afortunados buscavam estudos em escolas públicas, como o colégio estadual; ou no
Marconi e no Afonso Celso, mais ecléticos. À semelhança do Loyola, dos jesuítas, o
nosso colégio recendia a elite. Essa dupla de educandários rezava pelo credo que

505
BETTO, 2002, p. 142.
506
Ibid, p. 150.
507
Ibid, p. 151.
181

professa que, bem educados hoje os poderosos de amanhã, a todos concederá a


posteridade dádivas de justiça.508

Se na primeira parte do livro, frei Betto interpreta o elitismo apenas como um


mecanismo de exclusão, ou seja, pelo valor das mensalidades se impedia a presença de negros
e pobres, a partir de sua “conversão” se soma à explicação econômica uma explicação
política. Não bastaria as famílias arcarem com as despesas escolares sem que a origem do
dinheiro tivesse qualquer importância. Para o colégio católico, a educação era um privilégio e
oferecê-la àqueles que pertenciam às classes populares colocaria em risco o prestígio da
instituição e a manutenção do poder nas mãos dos bem-nascidos.
A religião é outro tema que sofre uma releitura nas memórias do dominicano. Se o
autor sugere que até os treze anos ele intuía, por influência familiar, que havia algo de errado
naquele cristianismo edificado sobre os sentimentos de medo e culpa – causados por um Deus
irado que condenava o corpo e a alma –, passada essa fase, sua narrativa apresenta o “Betto”
adolescente como sujeito ativo que, aos poucos, busca compreender os interesses que
permeavam essa interpretação do texto bíblico.
A narrativa dos embates que frei Betto travou com o professor de religião de uma das
escolas que frequentou demonstra claramente como sua construção pontua essa mudança de
postura. O autor salienta que nessas oportunidades não só retorquia, com as ideias que
aprendia com os dominicanos que assessoravam a JEC, as advertências sobre o inferno e as
tentações que levavam até ele, como também questionava “em plena aula, a teologia
tridentina do velho sacerdote”509. Assim, ele busca demarcar uma atitude ativa de quem não
mais aceitava o catolicismo que o ensinaram e suas contradições.
Um dos exemplos dessa mudança é o capítulo sobre a expulsão do colega Lúcio. Frei
Betto narra que, após algumas faltas do menino e das interrogações dos alunos sobre a razão
para tantas ausências, os padres do colégio informaram que sua família o havia transferido.
Passado um mês, o dominicano o encontrou em um baile e perguntou por que resolveram
trocar de escola no meio do ano letivo. Surpreendentemente, apesar de ser disciplinado e tirar
boas notas, Lúcio fora expulso porque seus pais se separaram e o “colégio, por ser católico,
não aceita filhos de casais desquitados”510.
Frei Betto afirma que “a notícia provocou revolta na classe” e que o sacerdote
responsável por ela tentou justificar a decisão do colégio explicando os princípios da moral

508
Ibid, p. 157.
509
Ibid, p. 178.
510
Ibid, p. 155.
182

católica. Sua narrativa associa a indignação dos alunos à consciência adquirida da contradição
existente entre o discurso religioso e os interesses que, verdadeiramente, guiaram as práticas
de suas instituições. Assim sendo, ele teria compreendido imediatamente que o moralismo ao
qual padre Prudêncio lançou mão para legitimar a expulsão de Lúcio serviu, na verdade, como
instrumento para manter o prestígio social e o poder da Igreja.
Em outras palavras, a preocupação daqueles que reproduziam esse discurso estaria
mais próxima dos interesses terrenos do que da preocupação com a salvação celestial. Para
que não restassem dúvidas acerca dessa incoerência, o dominicano encerra o capítulo
destacando que “dois anos depois, padre Prudêncio largou a batina e deixou a cidade em
companha da mãe de um aluno que, apaixonada, não relutou em virar as costas para o marido
e os dois filhos”511.
Frei Betto busca reafirmar esse processo de tomada de consciência ao narrar como a
notícia da morte do Papa Pio XII, em 04 de maio de 1959, fez com que os alunos do colégio
fossem castigados. O frade conta que, por comemorarem a suspensão das aulas em virtude do
luto, todos foram obrigados a permanecer por duas horas em pé, no pátio, rezando o terço.
Mais uma vez, segundo Alfabetto, o jovem Betto teria compreendido rapidamente que a
atitude autoritária do reitor, longe de ser uma forma de corrigir uma atitude coletiva insensível
e incentivar a devoção, representou, na verdade, uma pura exibição de seu poder. Em suas
palavras “foram não sei quantos terços ali de pé, até que o período das aulas se esgotasse. E
também um pouco de nossa religiosidade...”512.
Dessa forma, fica claro que o grande objetivo de frei Betto ao contar a própria história
nesses moldes é defender a legitimidade de determinados valores. Ao enfatizar o escândalo
que o racismo, o elitismo e o autoritarismo passaram a significar em sua vida, depois de
trilhar seu “Caminho de Damasco”, o dominicano almeja atestar a superioridade moral da
democracia e da igualdade no convívio social.
Segundo Eaikin, o que faz com que as pessoas desenvolvam a habilidade da narrativa
autobiográfica é, justamente, a sua funcionalidade na negociação dos valores socioculturais e
não, apenas, o temor causado pelos constrangimentos sociais que a incapacidade de apresentar
uma narração de si satisfatória poderia causar. Nas palavras do autor, “[...] os valores
abrangem os materiais necessários para a construção da identidade e da história de vida”513.

511
Ibid, loc. cit.
512
Ibid, p. 161.
513
EAKIN, op. cit., p. 115.
183

Mesmo destacando a existência desse sistema de identidade – ao qual todas as pessoas


estão submetidas – e o poder que suas regras e modelos têm de conformar a narrativa que elas
constroem para si e para os outros sobre suas próprias vidas, Eakin rejeita qualquer conclusão
que indique um nível de determinação tal que anule absolutamente a liberdade individual
nesse processo514.
Através da história que constrói para si mesmo, o indivíduo pode reafirmar os valores
culturais ou ainda negá-los, apontando a sua inadequação a eles. No primeiro caso, essa
atitude pode se tornar concreta através de uma narrativa que expresse uma trajetória de
alinhamento do sujeito aos padrões sociais. Seu mote principal, por exemplo, poderia ser o
desejo do indivíduo de evidenciar que o passar dos anos fez com que se robustecessem em sua
personalidade as características eleitas pela sociedade à qual ele pertence para definir “o que
significa ser homem”. Já no segundo, o caminho seria deixar claro que, ao longo de sua vida,
ele não conseguiu corresponder a esses arquétipos ou, mesmo, se rebelou contra eles. Nesta
hipótese, o que se busca é poder falar de “experiência que os discursos usuais da cultura e das
instituições ajudam a silenciar” 515. Dessa forma, Eakin conclui que essa “mensuração do eu e
da trajetória de vida nessas histórias envolve expectativas sociais e culturais”.
A análise do caso específico da obra memorialística de frei Betto no século XXI deixa
evidente essa tentativa de lutar, através da escrita autobiográfica – no campo de batalha que se
tornou a memória da ditadura militar brasileira –, para estabelecer a hegemonia de
determinados valores no processo de construção da narrativa dominante acerca daquela época.
Esse anseio se torna, especialmente, claro ao se abordar as referências diretas que o
dominicano faz a esse período em Alfabetto e Diário de Fernando. Dessa maneira, pode-se
compreender o quanto as tensões do contexto de produção influenciaram seu trabalho de
reedição das próprias memórias e a versão que ele apresenta nos dois livros a respeito do que
do que foi o regime autoritário e os equívocos nas tentativas de confrontá-lo.

3.3 Ditadura: tradição autoritária

Como se pode constatar, os primeiros anos do novo milênio provocaram uma


transformação na maneira como frei Betto encarava o seu presente. Se em 2002, quando
lançou Alfabetto, ele ainda vivia a euforia com a eleição de Lula, em 2009, data da publicação
de Diário de Fernando, as frustrações que ele trazia dos tempos em que foi assessor especial

514
Ibid, p. 114.
515
Ibid, p. 124.
184

da Presidência da República se somavam à apreensão com as denúncias de corrupção no


governo e a aparição pública de memórias nostálgicas, relativistas, ou até mesmo
negacionistas da ditadura militar. Essa transformação de humor, por assim dizer, teve grande
influência na produção dos dois livros. Entretanto, foi na abordagem que frei Betto fez da
ditadura militar em ambos que, mais especificamente, essa mudança teve um papel decisivo.
O tom melancólico que o dominicano adota para falar do período em Alfabetto indica
um desejo de curar as feridas do passado para melhor desfrutar de um futuro promissor. Já a
tensão e dramaticidade de sua escrita em Diário de Fernando parece apontar para sua
convicção de que, diante de um presente ameaçador, é necessário manter a memória da dor da
violência sofrida sempre viva, para afugentar as falsificações e o esquecimento.
Apesar de contrastarem na maneira como releem o passado, Alfabetto e Diário de
Fernando fazem parte de um mesmo anseio de frei Betto de atualizar sua narrativa sobre a
ditadura militar no Brasil e, por isso, podem ser analisadas conjuntamente. Conforme se
observou, os dois livros colaboram com o projeto do autor, no novo contexto, de construir
uma genealogia dos valores que, segundo ele, levaram jovens de esquerda a se engajaram no
combate ao regime. Suas abordagens sobre o período procuram evidenciar que a opção
daqueles que abraçaram a luta armada, ainda que fosse equivocada do ponto de vista tático,
foi digna, pois teria se baseado em princípios nobres. Entretanto, elas também se empenham
em atestar que o terror perpetrado por agentes do Estado era apenas uma demonstração de
poder encerrada em si mesma e, portanto, abjeta. Dessa forma, pode-se afirmar que a
violência praticada, naqueles anos, por ambos os lados é o tema principal da obra
memorialística do dominicano na primeira década do século XXI sobre o regime autoritário.
Se em suas obras dos anos 1980, especialmente em Batismo de Sangue, frei Betto
define a ditadura militar como o resultado de um pacto entre as elites político-econômicas
para barrar a extensão da cidadania às classes populares, em seus livros da primeira década do
século XXI, ele inaugurou uma nova perspectiva. Através de Alfabetto e Diário de Fernando,
o dominicano atenua a relevância das peculiaridades desse processo histórico como forma de
evidenciar que ele em nada se distinguia de outros regimes dessa natureza.
Por meio dessa generalização, frei Betto defende que, assim como em todas as outras
expressões do autoritarismo na história, a ânsia dos artífices da ditadura, militares e civis, por
expurgar a nação de seus “inimigos internos” não constituía, em si mesma, um fim; mas um
meio. Ou seja, os discursos alarmistas sobre a temida “ameaça comunista”, o golpe e a
185

perseguição às dissidências políticas teriam sido, apenas, as ferramentas para saciar a ambição
pelo exercício do poder, nutrida historicamente por aqueles que os empreenderam516.
A maneira genérica como frei Betto define a ditadura militar brasileira se deve ao
desejo de potencializar, em sua narrativa, a capacidade explicativa de seus paradigmas de
memória. Graças a eles, como já foi dito, o dominicano acredita poder, no seu presente,
estabelecer uma explicação mais abrangente e satisfatória sobre esse fenômeno; já em relação
ao passado, mais precisamente no momento em que os acontecimentos se davam, essa
herança lhe teria dado a capacidade de intuir sobre quais tipos de prática se tornariam comuns
em um futuro próximo.
Para frei Betto, por ter sido o único objetivo daqueles que engendram um regime
autoritário nutrir e aumentar o próprio poder, não existiam limites éticos ou morais que
pudessem deter seu arbítrio, nem mesmo dispensar práticas abjetas como a tortura. Por isso, o
que caracterizaria a ditadura brasileira, assim como todas as outras, seria o sistemático
desrespeito aos direitos humanos; a suspensão de garantias constitucionais; a constante
perseguição à oposição; a censura das vozes dissonantes; e a desconfiança obsessiva e
generalizada, segundo a qual “todos eram suspeitos até prova em contrário”517. Nas palavras
do dominicano:

[...] vejo uma ditadura é esse silêncio fúnebre que retira as pessoas das ruas, tranca-
as em casa, faz com que fechem as janelas cerrem as cortinas, falem entre si por
meio de gestos e sussurros. Uma ditadura é essa cidade, em pleno dia útil, com
aspecto de domingo chuvoso; esse arrepio que me tensiona ao passar ao lado de um
homem fardado; essa incerteza, esse vazio, essa abissal dúvida em relação ao futuro
pessoal e coletivo.518

Entretanto, não seria razoável ignorar as peculiaridades que marcaram a implantação


da ditadura militar no Brasil. Por isso, frei Betto destaca pontualmente algumas delas como as
mais relevantes. Diferentemente de suas considerações em Batismo de Sangue, pelas quais,
em tom de denúncia, ele destacava a participação das elites político-econômicas como
fundamental para a vitória do movimento golpista; em Alfabetto, a responsabilidade pela
manobra é atribuída exclusivamente aos militares que, em suas palavras, “derrubaram o
presidente João Goulart, pisotearam a democracia e assumiram o poder, colocando na
presidência o marechal Castelo Branco [...]”519.

516
BETTO, op. cit., p. 211.
517
Ibid, p. 212.
518
Ibid, p. 213.
519
Ibid, p. 207.
186

Embora as primeiras menções que frei Betto fez apresentem o presidente João Goulart
como vítima por excelência do movimento militar, Alfabetto, sutilmente, o elenca como um
dos culpados pelo êxito da implantação do regime ao destacar sua “fuga consentida” como
síntese simbólica de sua incapacidade política para arquitetar uma reação520.
Outra particularidade que frei Betto considerou importante salientar no processo do
golpe de 1964 foi sua rede de apoiadores. Embora não afirme que eles tenham participado
ativamente da conspiração que derrubou Goulart, o autor apresenta suas manifestações ou
omissões como fatores importantes para o êxito do movimento. Assim, ele destaca o papel da
Igreja Católica que, em suas palavras, “incensara os preparativos [...], promovendo grandes
concentrações populares em torno da figura discutível de um sacerdote estadunidense que
liderara, nas grandes cidades, a ‘marcha da família com Deus pela liberdade’”521; e sugere que
a reprodução do “eufemismo ‘revolução’, para uma típica quartelada imposta na véspera, data
da mentira e, por isso, recuada um dia no calendário”522 era uma demonstração da
benevolência da imprensa para com o regime.
Frei Betto faz questão de destacar que a ajuda de parte do clero católico à perseguição
de opositores do movimento golpista foi importante para a ascensão e permanência dos
militares no poder. Ele narra que não só houve manifestações de apoio, como por exemplo o
documento que os bispos lançaram “apoiando os militares por salvarem o Brasil da ameaça
comunista”523, como também que havia aqueles que se engajavam na delação dos opositores
do regime. O autor narra que em Belém do Pará viu “perplexo, o arcebispo, dom Alberto
Gaudêncio Ramos, denunciar em programa de TV seus “padres subversivos”524.
Entretanto, nas obras de frei Betto dessa nova fase, sem dúvida, a tortura é a
peculiaridade da experiência autoritária no Brasil mais intensivamente explorada. Certamente,
isso se deve ao fato de que suas considerações sobre ela corroboram sua tese sobre a
finalidade da implantação da ditadura. Mesmo admitindo que, por vezes, ela era usada como
forma de subtrair informações, o dominicano se esforça para demonstrar que essa prática, na
verdade, é um instrumento de demonstração de poder utilizado tanto contra militantes
políticos, quanto para castigar criminosos comuns. Dessa forma, seu objetivo é desqualificar a
ideia de que ela seria um artifício tático empregado por agentes de segurança para enfrentar

520
Ibid, p. 210.
521
Ibid, p. 215.
522
Ibid, p. 210.
523
Ibid, loc. cit.
524
Ibid, p. 215.
187

um tipo de inimigo interno que se distingue por não adotar estratégias convencionais de
combate.
Diferentemente da maneira como o tema foi apresentado em Batismo de Sangue,
especialmente, no relato da passagem de frei Tito pela OBAN, nas obras do século XXI, frei
Betto abandona a abordagem da tortura como estigma do martírio e passa a desenvolver
estratégias para demonstrar qual seria a sua verdadeira função. Dessa forma, sua narrativa não
só demonstra uma preocupação com a proliferação dos discursos que negam que esses
métodos foram utilizados durante a ditadura militar no Brasil, como ainda contesta a
interpretação segundo a qual a tortura seria uma ferramenta legitimada pelas circunstâncias
para fazer criminosos confessarem seus delitos e delatarem companheiros. Ou seja, para os
propagadores dessa perspectiva, muitos deles artífices e simpatizantes do regime, ela seria um
“mal necessário”, uma tática de guerra contra a violência do inimigo interno e sua adoção
resultaria da imprevisibilidade das ações da guerrilha urbana.
Para afastar qualquer possibilidade de se negar que o uso da tortura existiu no Brasil
daquele período, frei Betto incluiu em seu texto todas as menções que o confrade Fernando
fez, em seu diário, sobre as personalidades e instituições que denunciaram direta ou
indiretamente essas práticas no exterior. Entre eles estão Dom Helder Câmara525, o cardeal
Bernard Alfrink526, a Conferência Católica dos Estados Unidos527, L’obsservatore Romano528
e o jornal Le Monde529. Ele também faz questão de mencionar as reações contrárias aos
pronunciamentos daqueles que se propunham a negá-las como os ministros Alfredo Buzaid530
e Delfim Neto531, os bispos Geraldo Proença Sigaud532 e Agnelo Rossi533, e o diretor do
Jornal do Brasil, Francisco Manuel do Nascimento534. Para afastar qualquer dúvida, ele
destaca:

A tortura no regime militar brasileiro é sistêmica; suas diretrizes foram definidas


pelo conselho de segurança nacional. Portanto, não deriva de abusos. Os agentes do
DOI-CODI usam codinomes, trajes civis e são impedidos de corte militar dos
cabelos. Atuam em grupos de três e cinco, e seus endereços são preservados. As
atitudes de todos os investigados constam de uma ficha sintética de múltipla escolha
que lhes define o perfil ideológico: simpatizante, esquerdista, comunista etc. Na

525
Id, 2009, p. 102.
526
Ibid, p. 131.
527
Ibid, p. 103.
528
Ibid, p. 131.
529
Ibid, p. 239.
530
Ibid, p. 103.
531
Ibid, p. 125.
532
Ibid, p. 126.
533
Ibid, p. 132.
534
Ibid, p. 126.
188

ficha há avaliações de caráter, capacidade profissional e inteligência. Pratica de


homossexualismo é considerada “desvio sexual” e forte indício de ser comunista.535

Já no caso dos que consideram a prática da tortura um método informativo, a


estratégia de frei Betto é narrar a história dos companheiros que foram submetidos a ela,
tenham sido presos políticos ou não, como forma de demonstrar o quanto a violência que
sofreram não produziu resultados significantes para os agentes da repressão, além de atestar
que há razões suficientes para crer que nem mesmo eles confiavam nessa possibilidade.
O primeiro exemplo de tortura sem uma finalidade prática seriam as sofridas pelos
frades Fernando e Ivo em novembro de 1969. Segundo frei Betto, os dados que o delegado
Fleury extirpou dos dominicanos têm sua importância anulada se comparados ao fato de que
ele sabia de antemão o momento exato no qual o encontro com Marighella seria marcado,
dado que os religiosos presos ignoravam completamente536.
Implicitamente, a narrativa aventa a possibilidade de que algum membro da
organização, por sevícias ou vontade própria, estivesse fornecendo informações para os
agentes da repressão. A ideia de que havia alguém infiltrado entre os militantes ganha força
quando frei Fernando afirma que “não era admissível que o líder da ALN, tão experiente e
bem informado, no dia 4 já não estivesse a par de nossa prisão no dia 2 e da invasão policial,
dia seguinte, ao convento das Perdizes”537. Portanto, somente o empenho de um companheiro
para convencer o revolucionário baiano de que era seguro marcar um encontro com os
dominicanos explicaria sua presença na alameda Casa Branca naquela noite de novembro.
Segundo frei Betto:

A tortura tem por objetivos obter informações e degradar o prisioneiro. Encerra


métodos eficazes: humilha a vítima, antagoniza o corpo e o espirito, opõe-se lhe em
campos opostos à sua dor e o seu ideal. Obriga-a a ser testemunha de seu próprio
opróbrio. Reduz o humano à abjeta condição de verme. Mergulha-o num oceano de
terror cujas margens ignora. Não há boia de salvação nem se consegue nadar. O
naufrágio é inevitável. A diferença é que, em vez de água, há sangue, fezes, urina.
Virado ao avesso, o organismo exibe as vísceras.538

Frei Betto apresenta o caso de frei Tito como outro exemplo que demonstraria o quão
insipientes são as explicações sobre a finalidade da tortura. Sem que houvesse qualquer
justificativa plausível, o religioso foi levado ao DOI-CODI três meses e quatorze dias após
sua prisão. Depois de tanto tempo, seu cárcere já era conhecido pelos companheiros de ALN

535
Ibid, p. 86.
536
Ibid, p. 38-39.
537
Ibid, p. 40.
538
Ibid, p. 17.
189

e, provavelmente, nenhuma informação que lhe fosse arrancada através da violência teria
alguma utilidade. O autor chega a afirmar que “A queda do dono do sítio serve de pretexto
para Tito ser o primeiro frade a ser levado à ‘sucursal do inferno’, como os próprios
torturadores designam aquele local”539. Sua transferência seria apenas uma represália por
conta da “repercussão de nosso caso na opinião pública internacional, especialmente na
europeia”.
Os requintes de crueldade que caracterizavam as sessões de tortura e a destruição que
elas deixavam em suas vítimas são detalhados por frei Betto como prova da desproporção
entre o suposto anseio dos agentes da repressão por informações e o nível de violência
empregado. Além das sevícias sofridas por frei Fernando540 e Ivo, o autor destaca a passagem
da dentista Marlene de Souza Soccas pelo DOI-CODI. Assim, ele narra:

Uma companheira trouxe de lá a denúncia escrita por ela: “despida brutalmente


pelos policiais, fui sentada na cadeira do dragão sobre uma placa metálica, pés e
mão amarrados, fios elétricos ligados ao corpo e tocando língua, ouvidos, olhos,
pulsos, seios e órgão genitais. Em seguida, fui dependurada no pau de arara, uma
barra de ferro atravessada entro dois cavaletes que passa sob os joelhos, amarrados
os pulsos e tornozelos, ficando todo o corpo pendendo para baixo, completamente
indefeso aos golpes. Recebi novos choques elétricos, queimaduras com pontas de
cigarro, pancada nos rins e na coluna vertebral.541

Justamente por defender que a tortura é uma demonstração de poder criminosa sem
função tática, frei Betto desqualifica a ideia de que as vítimas que não suportaram a dor e
revelaram alguma informação têm, nesse ato, um motivo para se sentirem culpadas ou
traidoras. Para isso, ele usa o exemplo do próprio confrade Fernando. Três motivos são
apresentados para explicar porque o dominicano envolvido na morte de Marighella não
sucumbiu diante desse sentimento e nem aceitou as acusações dos policiais de que teria agido
como Judas. O primeiro e mais importante, é que ele foi submetido a uma dor sobre-humana,
portanto, ninguém teria o direito de exigir que ele a resistisse; em segundo, sua atitude não foi
uma negação de seus princípios, visto que ela não foi tomada por vontade própria, mas, sim,

539
Ibid, p. 76.
540
Frei Fernando afirma: “Arrancaram-me as roupas, dependuraram-me no pau de arara, ligaram os eletrodos em
minhas orelhas e nos órgãos genitais; armaram-se de porretes, rodaram a manivela, fizeram-me estrebuchar sob a
virulência das descargas elétricas. Não sei quantos cavalos do apocalipse coicearam o meu corpo, sei apenas que
mergulhei num profundo e pavoroso vazio; meu ser havia se descolado do corpo que, lá em cima, do lado de
fora, ardia em dores, berrava ansioso pela morte, atirava-se num macabro balé ritmado por mancadas, chutes e
cargas elétricas, enquanto no amago daquele vazio minha identidade, volatilizada, estilhaçava-se em mil
pedaços.” Ibid, p. 38.
541
Ibid, p. 99.
190

resultou de uma coação violenta; e em terceiro, ele só falou por acreditar que não prejudicaria
ninguém, pois tinha certeza de que Marighella já sabia de sua prisão542.
Entretanto, a principal estratégia de frei Betto para desqualificar a tortura como
artifício tático é a narrativa daquelas que foram praticadas contra os “corrós”, presos comuns.
O uso recorrente desse tipo de método para castigar homens encarcerados há anos,
independentemente do tipo de comportamento que apresentavam no cárcere, deslegitimaria
totalmente a ideia de que eram as peculiaridades do inimigo que obrigavam a repressão a se
embrenhar em uma guerra suja.
Frei Betto narra que, após serem transferidos da carceragem do DOPS para os
presídios estaduais, se tornou uma rotina na vida dos presos políticos testemunhar as
crueldades às quais os “corrós” eram submetidos por carcereiros, policiais e militares. Em
Diário de Fernando, ele salienta que os abusos cometidos iam desde sutis humilhações
diárias, como lustrar os sapatos do diretor543, até crimes graves como sequestro, tortura e
assassinato. Em maio de 1970, frei Fernando registra que:

Na madrugada fria de sábado, 16, gritos lancinantes quebraram o silêncio


impregnado de nostalgias deixadas pelas visitas. Sobressaltados, nos colocamos
todos nas grades: no pátio, carcereiros e soldados torturavam meia dúzia de corrós.
A tampa de madeira do poço sanitário havia sido retirada, e um por um era ali
mergulhado à força. Enquanto se afogava em merda e mijo, debatendo-se como
lagarta chamuscada pelo fogo, os demais se dobravam ao espancamento com
porretes e cassetetes.544

Frei Betto também narra que não eram incomuns os sequestros de detentos de dentro
do presídio. Em duas oportunidades, ele registra esse tipo de ocorrência. Em julho de 1970,
ele menciona que oito presos comuns “foram retirados do presídio pelo Esquadrão da Morte e
assassinados na periferia da Grande São Paulo545. Posteriormente, em maio de 1972, já na
penitenciária do Carandiru, ele afirma que “o diretor do Tiradentes figura como réu no
processo que investiga o assassinato de sete corrós que se encontravam sob sua guarda, e o
sequestro de um oitavo, que está desaparecido”546. Se somam a esses crimes graves, outros
abusos e omissões que eram corriqueiros como não prestar socorro aos que passavam mal, aos
que eram acometidos por surtos psicóticos, ou mesmo aos que eram agredidos ou violentados
por outros presos. O autor destaca:
542
Ibid, p. 40.
543
Segundo frei Fernando, o “diretor do presídio – doutor Olintho Denardi – gosta tanto de dar brilho às
extremidades do corpo que, ao chegar ao presídio, sua primeira providência é soltar o corró encarregado de
engraxar-lhe os sapatos”. Ibid, p. 58.
544
Ibid, p. 99.
545
Ibid, p. 114
546
Ibid, p.181
191

Às 3h da madrugada fomos despertados pelo berreiro dos corrós. À gritaria


somava-se o ruído de latas e objetos metálicos batidos contra as grades de ferro. Um
“cacique” de cela estuprava um menor. Este clamou por socorro, os guardas
intervieram e espancaram todos, inclusive a vítima.547

Em outra passagem, ele narra:

[...] Há noites em que o silêncio é rompido por berros terríveis. [...] A hipótese
mais provável é que um preso esteja sendo estuprado por companheiros. Os casos de
enlouquecimento são frequentes. Mês passado houve mais um suicídio. O preso
amarrou a perna da calça na grade, enrolou em volta do pescoço, puxou o corpo para
baixo e asfixiou-se. E, como sempre, tudo permanece envolto em mistério. Ninguém
viu nada, ninguém diz nada.548

Diferente da imagem difundida acerca dos presídios como espaços nos quais, através
da aplicação rigorosa da legislação, se convence homens e mulheres de que a vida dedicada
aos delitos não compensa, frei Betto os descreve como lugares onde o crime viceja e o fato de
ele ser praticado por aqueles que deveriam combatê-lo faz com que qualquer discurso sobre o
objetivo de sua existência caia no descrédito. Portanto, contrariando a versão oficial de que
nas cadeias o Estado estava apenas punindo terroristas e delinquentes, o autor afirma que elas
eram instrumentos de poder, nos quais se ignorava por completo a lei549.
Frei Betto faz questão de salientar que os homens que, cotidianamente, submetiam os
presos às sessões de sevícias nos presídios pelos quais passou, longe de serem profissionais
altamente versados na desarticulação de guerrilhas urbanas550, eram, na verdade, sujeitos de
moral duvidosa, acostumados a praticar todo tipo de crime dentro e fora dos presídios. Como
exemplo dessa falta de caráter, ele destaca: “Ontem, Brandão brigou com o carcereiro bigode,
e este teve de ficar calado. Brandão ameaçou contar a proposta que ele lhe fizera: três pacotes
de cigarro para estuprar um de nós”551. Dessa forma, ele busca rechaçar qualquer possível

547
Ibid, p. 65.
548
Ibid, p. 128.
549
Ibid, p. 100.
550
A adaptação homônima do livro O que é isso companheiro? para o cinema em 1997, dirigida por Bruno
Barreto, é um dos mais emblemáticos exemplos dessa tentativa de consolidar a imagem dos torturadores como
profissionais que praticavam esse tipo de violência de maneira altamente técnica e especializada no cumprimento
das ordens de seus superiores hierárquicos. Segundo Fernando Seliprandy, a construção do personagem
Henrique, o agente da repressão interpretado pelo ator Marco Ricca, sintetizaria uma releitura da “teoria dos dois
demônios”, segundo a qual a tortura seria um “mal menor” se comparada aos efeitos deletérios de uma vitória da
esquerda armada representaria. De acordo com a análise do pesquisador, o torturador apresentado na película
“[...] é profissional e cumpre seu ‘trabalho’ sem qualquer prazer; muito pelo contrário, ele é tocado pela dor
infligida às ‘crianças inocentes’ e vive assolado pela insônia; as sevícias que perpetra contrariado são cautelosas
e assépticas. Nesse sutil desvio em relação aos cânones do gênero, a construção nuançada do personagem
Henrique institui a imagem matizada do mal da tortura.” SELIPRANDY, 2012, p. 64.
551
Ibid, p. 232.
192

tentativa de definir a tortura como uma técnica cirurgicamente executada como parte de uma
tática para enfrentar inimigos internos, além, é claro, de demonstrar o quanto seu uso é
desumano e inadmissível em qualquer circunstância.
Os absurdos praticados pelos carcereiros, narrados por frei Betto, iam de pequenos
abusos de poder, como o caso do diretor que, segundo o autor, “comprou leitões para o natal
de sua família; para engordá-los com restos de comida, enfiou-os numa cela vazia na ala dos
correcionais”552, até crimes graves como o tráfico de drogas. Em suas palavras:

Temos novos carcereiros. Os antigos, acostumados à corrupção desenfreada,


pediram transferência para a penitenciária do estado, onde faturam mais com os
presos comuns, sobretudo via tráfico de drogas e favorecimento de encontros entre
adeptos do homossexualismo.553

Em outro episódio, frei Betto sugere que o interessado em oferecer seus serviços como
fornecedor de entorpecentes aos presos políticos fez um dos carcereiros perguntar aos
dominicanos: “vocês puxam?”. Não entendendo imediatamente o teor da conversa, frei Ivo
teria retrucado “puxam o quê?”. O autor destaca que a incompreensão dos religiosos dissuadiu
o agente de completar a proposta, afirmando: “Esqueçam, já vi que não puxam”554.
Outra prática narrada como extensamente difundida entre os carcereiros era a venda
para os presidiários dos produtos alimentícios que eram fornecidos gratuitamente pelo Estado,
o que frei Fernando define como “corrupção”. Assim, o dominicano registra: “Os ovos
cozidos, vindos no cadeião de hoje, não nos chegaram. Os carcereiros levaram para casa”555.
Em outra oportunidade, ele afirma: “Doces, queijos, bananas e laranjas vemos chegar nos
caminhões que trazem os latões de comida, porém nunca repassados às celas”556. Frei Betto
destaca um episódio em especial:

[...] ao pressentir nossa fome noturna, o carcereiro nos ofereceu mozarela. Pediu
uma pequena fortuna pelo queijo. Oferecemos 5% do valor. Após esgrímicas
negociações, compramos por 15%. Ao entregar a mercadoria, advertiu-nos: “joguem
fora a embalagem.” Nela constava impresso: Doação do Estado de São Paulo. O
produto, destinado aos presos, é comercializado pelos carcereiros dentro e fora do
presídio.557

552
Ibid, p. 157.
553
Ibid, p. 71.
554
Ibid, p. 49.
555
Ibid, p. 166
556
Ibid, p. 176.
557
Ibid, p. 48.
193

Sendo assim, para frei Betto, se a prática da tortura era uma demonstração de poder
daqueles que através da força submeteram as instituições do Estado ao seu arbítrio, manter
viva a memória das sevícias sofridas é uma forma de desafiar essa estrutura opressiva que as
alimenta. Pelas palavras do confrade Fernando, ele afirma:

O torturador esquece facilmente. Embotado pelo oficio, é como o carrasco que,


inseparável, apaga da memória o número e o semblante de suas vítimas. O torturado
jamais esquece. Sua resistência reside na memória. Esta não se pode apagar. Não se
trata de reter a lembrança da dor guardada no pote e magoa. Nesse caso, a vingança
é inútil, pode-se punir um torturador, jamais a tortura e os torturadores. Por isso a
memória da dor é subversiva. Cria o desconforto, desmascara o cínico, mantem
acesa a tocha da Justiça. É o grito permanentemente parado no ar. Não o grito da
vítima espancada, mas da indignação, da reafirmação do humano, da negação do
terror. Grito que silencia o horror.558

A emergência de um novo contexto também provoca uma transformação na maneira


como frei Betto aborda as atitudes das esquerdas naquele período. As narrativas de Batismo
de Sangue e O dia de Ângelo buscaram demonstrar que, apesar de seus erros, a luta armada
foi legitimada pelo nível de violência empregada pelo Estado na sua repressão. Com o passar
de mais de duas décadas, esse propósito perde seu protagonismo nos livros do dominicano,
dando lugar a um aprofundamento na análise dos equívocos que inviabilizaram a reação
imediata ao golpe e a revolução que tantos queriam. Possivelmente, a chegada de ex-
militantes a postos de governo e a profusão de suas autobiografias no mercado editorial
tenham provocado a sensação de que a dignidade dessas atitudes no passado já estava
demonstrada.
O tom melancólico que frei Betto adota ao abordar a luta armada em Diário de
Fernando e Alfabetto revela sua decepção com as esquerdas. Embora nessa nova fase, sua
autobiografia sugira que – logo nos dias subsequentes à destituição de Goulart – ele tivesse a
certeza de poder antecipar, em linhas gerais, o que viria pela frente, isso não significa que ela
apresente o desenrolar dos fatos como algo inexorável. Logo, o autor mantém a interpretação
da derrota representada pelo golpe e a vigência do regime militar como algo contingencial e
que, portanto, só pode ser explicado através de um exame minucioso de suas causas.
Nas duas obras, frei Betto procura deixar claro que apesar de acreditar piamente que
os paradigmas que trazia da infância tinham a capacidade de prenunciar, através do exemplo,
as manobras que seriam utilizadas por aqueles que deram o golpe – através do qual teriam
garantido a execução de seu projeto de poder – ele mantinha a convicção de que o futuro

558
Ibid, p. 18.
194

nunca esteve pré-determinado, portanto, o desfecho da história da ditadura militar brasileira


poderia ter sido diferente, se as atitudes assumidas pelos companheiros de militância,
especialmente pelos que abraçaram o caminho das armas, tivessem sido mais acuradas. Por
isso, ele faz um balanço dos equívocos da militância, pelos quais, em sua visão, os
dominicanos foram, ao mesmo tempo, corresponsáveis e vítimas. Em suas palavras:

A notícia do golpe fez desabar todo o meu castelo de sonhos libertários. Anos de
trabalho e esperança – ligas camponesas, UNE, UBES, ISEB, MEB, CPC e tantas
outras siglas que sinalizavam um futuro abortado. Tudo reduzido a caso de polícia.
E o pior: sem que houvesse a menor reação popular. Onde os camponeses
mobilizados por Francisco Julião? O proletariado do partido comunista? os
militantes da ação católica e da ação popular? Os alfabetizados pelo método Paulo
Freire?559

Em Alfabetto, enquanto reflete sobre o rumo dos acontecimentos de abril de 1964 e


seus prováveis desdobramentos, frei Betto define, de maneira indireta, a falta de reação das
esquerdas e dos movimentos sociais como uma das principais razões para o êxito dos
militares. Assim, a narrativa indica que o autor, ao explicar as causas dessa inércia, acreditava
estar fazendo o mesmo com os efeitos; no caso, a vitória do golpe e a consolidação da
ditadura.
Frei Betto considera que a prática de uma retórica vazia, o entusiasmo exagerado e as
insuficiências das teorias foram as raízes da imobilidade dos estudantes, camponeses e
operários. Dessa forma, o sucesso do movimento inaugurado pela coluna do general Mourão
só foi possível graças às inadequações que teriam impedido que as esquerdas e os
movimentos sociais enxergassem suas deficiências e subestimassem o poderio do inimigo560.
Alguns trechos do capítulo “Quartelada”, pelos quais o autor afirma reproduzir a conversa que
teve com Lauro Cordeiro no dia seguinte ao golpe, sintetizam a sua interpretação sobre o fato.
Aflito ao ler nos jornais as notícias acerca do que se passava na capital da república,
frei Betto teria revelado seu desapontamento com o descompasso entre os discursos
inflamados e as ações, ao afirmar: “nunca pensei que numa hora dessas, esses companheiros
que enchiam a boca de revolução fossem cada um para o seu lado, na base do salve-se quem
puder!”561 A explicação para essa atitude hesitante dos colegas de militância é apresentada
pela “boca” de Lauro, que teria respondido: “Quando estamos engajados numa causa
pontuada de sinais de avanço, somos tomados por um sentimento coletivo, uma euforia

559
Id, 2002, p. 211.
560
Ibid, p. 210-216.
561
Ibid, p. 210.
195

grupal, que parece obscurecer o nosso raciocínio. Na hora do pega-pra-capar, a gente se pela
de medo”562. Entretanto, o dominicano não atribui apenas aos erros das esquerdas a
responsabilidade pela vitória golpista. Ele também a considera fruto da imobilidade das
massas e do próprio presidente João Goulart. Dessa forma, ele questiona:

[...] Em que ponto de encaixe se rompeu a irreversibilidade da história? e as


massas, aquelas massas que incendiavam os canaviais do nordeste com o estopim da
reforma agraria, as massas reunidas em jubilo, dias antes, no megacomício da
central do Brasil, no Rio, convocado para manifestar apoio ao governo de Jango?563

Entretanto, no caso específico da autobiografia de frei Betto, nenhum suposto


equívoco das esquerdas recebeu tanta importância quanto o seu dogmatismo. Se em Batismo
de Sangue, ele apenas servia como pano de fundo para salientar ainda mais o heroísmo que o
autor atribuía à dissidência, seja na política ou na religião, na narrativa Alfabetto, ele se
transforma em um dos principais fatores para se entender o ocaso da luta armada. Também é
através dele que o autor explica a desconfiança prévia que parte dos militantes nutriam pelos
dominicanos e sua tendência para considerá-los como traidores depois do assassinato de
Marighella.
Em sua autobiografia, frei Betto defende que essa rigidez de ideias de parte das
esquerdas foi um dos principais aspectos que inviabilizou uma reação ao golpe de 1964. Sob
essa ótica, exemplos como o do educador Paulo Freire e a trajetória do próprio autor são
utilizados como forma de demonstrar os efeitos deletérios dessa intransigência no debate de
questões práticas e teóricas, especialmente daquelas sobre como deveria ser o processo
revolucionário. Nessa nova fase de sua produção memorialística, o dominicano deixa de
focalizar a dissidência política como símbolo de coragem e passa a destacar que as atitudes
que levaram a ela produziram, na verdade, uma divisão de forças, o que, consequentemente,
levou ao subaproveitamento das contribuições e talentos da militância e dos simpatizantes.
A antipatia de parte das esquerdas por Paulo Freire é o primeiro exemplo que frei
Betto apresenta para demonstrar como esse dogmatismo foi nocivo aos projetos
revolucionários. Ao narrar sua participação no Movimento de Educação de Base (MEB) junto
aos operários da Fábrica Nacional de Motores, na cidade de Petrópolis-RJ, o autor destaca
que, embora muitos militantes tenham ficado entusiasmados com o método do pensador
pernambucano por ser “capaz de, simultaneamente, alfabetizar e conscientizar” 564
, a ala

562
Ibid, p. 211.
563
Ibid, p. 212.
564
Ibid, p. 197.
196

comunista, graças à sua rigidez de visão, não soube reconhecer e valer-se de todo o seu
potencial. Nas palavras do autor:

Os comunistas torceram o nariz a Paulo Freire, acusando-o de idealista, neo-


hegeliano. Partiam do princípio dogmático sem dúvida, de que um cristão jamais
poderia ser revolucionário, a menos que abdicasse de sua fé. Como esperar de Paulo
freire, cristão venerado pelos militantes da Ação Popular, uma ação político-
ideológica consequente, se ele se deixava cercar por discípulos do padre Henrique
Vaz, o mais hegeliano dos filósofos brasileiros? Segundo a cartilha comunista, Max
virara Hegel, seu mestre, de cabeça para baixo, arrancando a consciência das nuvens
idealistas para trazê-las ao realismo da luta de classes.
Aos olhos de quem considerava o ateísmo como atributo intrínseco ao
esquerdismo, a fé cristã de Paulo Freire aparecia como um paradoxo, pois alhos não
nascem de bugalhos.565

Através desse exemplo, frei Betto busca demonstrar que o cultivo de concepções
intransigentes fez com que as esquerdas perdessem a chance de aproveitar contribuições
valiosíssimas para seus projetos em diferentes contextos. No caso de Paulo freire, ele sugere
que, se seu método tivesse recebido a atenção que merecia, talvez a mobilização das massas
não teria se diluído com o advento do golpe. Ou, ao menos, ele não voltaria a ver “em
sindicatos e movimentos populares, educadores escolarizados darem aulas ‘bancarias’ para
operários”566.
Frei Betto relaciona o caso de Paulo Freire à sua trajetória individual através do
cristianismo, principal característica que os unia. A narrativa sobre como seus companheiros
se insurgiram contra sua decisão de entrar para a ordem dos dominicanos, acusando-o de
“trair a revolução”567, demonstra que na sua experiência, assim como no exemplo do educador
pernambucano, a desconfiança que as esquerdas nutriam de que a fé era o principal sinal de
fraqueza naqueles cristãos que decidiam se engajar na luta revolucionária já era palpável
muito antes dele se envolver com Marighella.
Frei Betto narra que, mesmo durante as visitas que recebia, após estar vivendo no
convento dos dominicanos na capital mineira, o amigo Conrad Detraz o censurava dizendo
“Você está nos traindo”, segundo ele “Conrad expressava a queixa de muitos
companheiros”568. Em sua visão, essa aparente incongruência entre a militância política e a
crença religiosa era o resultado de uma concepção bastante restrita e inflexível acerca do
engajamento político, muito difundida naquele período. Apesar de se mostrar compreensivo
quanto aos motivos que faziam com que sua escolha gerasse tantas reprovações, o autor não

565
Ibid, p. 199.
566
Ibid, p. 200.
567
Ibid, p. 223.
568
Ibid, p. 230.
197

deixa de mencionar o quanto elas o atormentavam ao imputar-lhe o sentimento de culpa. Em


suas palavras, a constatação que o afligia era a de que:

[...] Enquanto meus companheiros eram jogados nos cárceres ou pulavam muros de
embaixadas para escapar da repressão, e outros submergiam na clandestinidade, ali
estava eu, trancado num convento, alheio ao noticiário, entregue à brisa angélica de
uma rotina medieval [...].569

Aparentemente, não fica clara qual é a relação que a autobiografia de frei Betto
estabelece entre esses pequenos episódios de sua vida pessoal e a história coletiva marcada
pelo golpe e pela consolidação da ditadura. Entretanto, uma análise pormenorizada revela que
o autor apresenta o dogmatismo de parte das esquerdas como o problema que conecta esses
dois campos.
Especificamente no caso da luta armada, frei Betto apresenta a intransigência de ideias
como a causadora do desconhecimento das verdadeiras circunstâncias da morte de
Marighella. O dogmatismo, descrito como um vício que obscurece a razão e leva a erros
graves, seria o motivo da desconfiança histórica para com os religiosos engajados; por isso,
mal o revolucionário baiano havia “tombado”, imediatamente, teria se consagrado a versão,
segundo a qual, a tragédia da alameda Casa Branca resultou diretamente da traição ou da
fraqueza dos dominicanos. Segundo a perspectiva do autor, na hipótese dessa emboscada ter
sido arquitetada pela polícia com a ajuda de um agente infiltrado na ALN, as vidas de muitos
militantes poderiam ter sido poupadas se as esquerdas tivessem mantido a paciência para
desvendar o caso e identificar o delator, ao contrário de antecipar uma explicação calcada em
ideias pré-concebidas.
Assim, embora seja um admirador confesso de Marighella, frei Betto, especialmente
em Diário de Fernando, apresenta a falta de rigor na observação dos protocolos de segurança
como fator determinante para que a emboscada que lhe haviam preparado desse certo. Esse
seria o outro erro capital da luta armada que comprometeu sua capacidade de combater a
ditadura militar.
A análise do conteúdo de Diário de Fernando e de sua ordem de exposição deixa
evidente que um dos objetivos principais de frei Betto era demonstrar que o Marighella não
caiu na armadilha do delegado Fleury por conta de qualquer informação que, através do uso
da tortura, porventura, ele tenha conseguido arrancar dos frades Fernando e Ivo. Embora não
tivesse documentos que permitissem desvendar o passo a passo da verdadeira dinâmica do

569
Ibid, p. 234.
198

acontecimento, o autor defende que, ao menos, pode comprovar a falta de fundamento dessa
versão dos fatos.
O incômodo causado pelas ilações de que, por fraqueza física ou moral, os
dominicanos levaram os agentes da repressão a rastrear o líder da ALN uniu, simbolicamente,
o jovem Fernando, que escrevia seus bilhetes em 1969, em meio às acusações dos jornais e à
desconfiança de parte das esquerdas, e o experiente frei Betto que debruçava-se sobre eles em
2009, acreditando ser essa a versão que havia se sedimentado na memória coletiva.
Dessa forma, a narrativa que frei Betto construiu com as palavras do confrade
Fernando corrobora a tese, já defendida em obras anteriores, de que o sequestro do
embaixador americano Charles Burke Elbrick selou o destino da luta armada. Em Diário de
Fernando, ela tem a sua importância redobrada; pois, na visão do autor, a partir desse
acontecimento, a repressão se tornou implacável e desvelou os erros da guerrilha urbana,
estes, sim, os verdadeiros responsáveis pela queda do principal inimigo da ditadura militar570.
Frei Betto narra que a polícia começou a farejar o envolvimento dos dominicanos com
a luta armada ao acossar os responsáveis pelo sequestro do embaixador em setembro de 1969.
Assim, através de um paletó esquecido no cativeiro, ela chegou a um alfaiate que identificou o
proprietário da peça de vestuário e “logo as quedas tiveram início”. A ligação de Marighella
com os frades teria sido revelada graças a uma caderneta de endereços encontrada na casa de
Paulo de Tarso Venceslau, militante da ALN e um dos sequestradores que acabou
capturado571.
A tese central de frei Betto, segundo a qual não foi a prisão dos confrades que levou a
polícia a rastrear o revolucionário baiano, se baseia em duas certezas compartilhadas com o
autor dos bilhetes. A primeira é a de que Marighella, ao marcar um encontro com os
dominicanos, estava ciente de que o convento havia sido revistado e teve seu telefone
grampeado pelos agentes do DOPS; a segunda é a de que a polícia sabia previamente dia e
hora nos quais seria marcado o encontro do líder da ALN com os dominicanos572.
Se esta segunda ideia se fundava apenas na crença de que era absolutamente ilógico
atribuir apenas à sorte o fato de a polícia ter levado frei Fernando à livraria Duas Cidades,
onde trabalhava e se comunicava com a ALN, precisamente na tarde da terça-feira, dia 04 de
novembro, data e período nos quais o contato foi feito pela última vez, em relação à primeira,
o autor faz questão de mencionar que o confrade testemunhou a reunião na qual Marighella

570
Id, 2009, p. 33.
571
Ibid, loc. cit.
572
Ibid, p. 39.
199

foi informado de que a polícia conhecia sua ligação com os dominicanos. Nas palavras de frei
Fernando:

Informei a Marighella que o pai do doutor Madeira estava hospitalizado, acometido


de um derrame, e o DEOPS autorizara o filho preso a visita-lo no hospital. Madeira
contara a frei Guilherme que, com a queda de Paulo de Tarso Venceslau, a repressão
descobrira o telefone do convento na caderneta de endereços dele.
Marighella ouviu atentamente. O grupo fez uma avaliação do trabalho de apoio
logístico e de como se tornara conhecido por militantes da ALN e de outras
Organizações revolucionárias, rompendo os limites da segurança. Com a queda dos
GTAs (grupos táticos armados), a maioria dos quadros paulistas nos procurava para
atendê-los em quase tudo. Explicamos a Marighella que o fato de a militância dos
frades ser conhecida pela repressão implicava o risco de cair colégios e conventos de
freiras que guardavam material de apoio e serviam de locais de reunião, e até de
hospital improvisado. Sem contar a dezena de carros e casas de amigos fieis aos
dominicanos.573

Embora essa seja a primeira impressão que Diário de Fernando provoca, frei Betto
não reescreve a história da tocaia que vitimou Marighella apenas para defender a honra de
seus confrades. De acordo com o que já foi mencionado, para o autor, os acontecimentos da
alameda Casa Branca ocorridos em novembro de 1969 ilustram, tragicamente, os efeitos
provocados por essa falta de rigor no cumprimento das regras de segurança. Muitas vezes
descrito como resultado da escassez de militantes, esse erro teria sido um dos mais fatais para
as organizações, pois lhes tirava o pouco que tinham, fazendo com que sua luta, ao contrário
de ser para combater o regime, fosse para sobreviver. Para demonstrar como esse tipo de
inobservância era corriqueira ele apresenta o exemplo do jornalista Carlos Guilherme de
Mendonça Penafiel.
Frei Betto conta que o editor de arte da Folha da Tarde era responsável por produzir
as fotografias dos passaportes que a ALN fornecia a seus militantes que precisavam deixar o
país, seja para fugirem da repressão, receberem treinamento militar ou levar mensagens a
lideranças no exterior. Entretanto, como o número de membros era insuficiente para a
quantidade de tarefas da organização, foi solicitado que Penafiel, improvisando uma função
distinta daquela que era originalmente sua, abrigasse em sua casa um procurado pela
polícia574. Segundo o autor, esse foi o erro que desencadeou os outros que, por sua vez,
levaram o fotógrafo e a esposa a serem presos e torturados. Em suas palavras:

A carência de militantes frente à afluência de tarefas, quase todas urgentes, induziu


a ALN a cometer, com frequência, um dos erros mais graves em matéria de
segurança: desrespeitar a especificidade de um revolucionário. Quando se exige de

573
Ibid, p. 34.
574
Ibid, p. 52.
200

um engenheiro que se improvise em distribuidor de panfletos ou de um jornalista –


coletor de informações – empunhar armas, é sinal de que a Organização tornou-se
vulnerável por cedes a improvisação. Nenhuma pessoa é multifuncional. A
sabedoria de qualquer instituição consiste em valorizar os talentos inerentes a cada
um de seus adeptos. Não se solicita de um músico que abandone a sua arte para
transportar malas de dinheiro entre uma região e outra. Quando a urgência das
tarefas supera o número de tarefeiros é sinônimo de que a organização está febril,
comprometida pela exaustão.575

Dessa forma, os erros da organização se somaram aos dos indivíduos e ampliaram,


gradativamente, os riscos para todos, além de inviabilizarem a sonhada revolução
brasileira576. Frei Betto ressalta que naquele episódio, ao sair da casa, o hóspede não “cumpriu
uma das normas elementares: avisar quando estaria de volta”577. Penafiel e sua esposa, por sua
vez, não observaram o protocolo de segurança que estabelecia que deveriam deixar
imediatamente o local após o vencimento de um determinado prazo sem notícias do militante
alojado. Por fim, o derradeiro equívoco do casal foi abrir a mala que o visitante deixou em um
canto do quarto vendo, dessa forma, as armas que ele transportava. O autor ressalta que “a
curiosidade é pecado mortal entre revolucionários. Sob tortura, a língua jamais delata o que
ignora”578.
No entanto, de maneira geral, Diário de Fernando estabelece o furor revolucionário
como o maior equívoco das esquerdas. O entusiasmo indomável que tomou conta dos
militantes teria obscurecido momentaneamente a racionalidade que permite vislumbrar os
riscos e a disparidade de forças perante o inimigo. Assim, frei Betto destaca:

[...] Após anos de militância ancorada na utopia revolucionária, iluminada pela fé,
respaldada por antecedentes históricos – como a Revolução Cubana e o testemunho,
na Colômbia, do padre guerrilheiro Camilo Torres –, nos deparamos com a violência
implacável da ditadura militar. Nossos sonhos não incluíam a possibilidade de
derrotas. A linearidade dos livros não espelhava os sinuosos e acidentados caminhos
do real. Súbito, a casa edificada sobre a areia, sem alicerce popular, ruiu sob o
impacto do aparelho repressivo.579

Apesar de reconhecer, melancolicamente, os equívocos da luta armada, a iniciativa de


frei Betto de reafirmar a dignidade de suas motivações é uma resposta às manifestações
575
Ibid, loc. cit.
576
Em Diário de Fernando, frei Betto também destaca a rigidez de ideias de parte das esquerdas como um dos
erros que levaram o projeto revolucionário ao ocaso. Nas palavras de frei Fernando: “nos ocupamos em debater
acertos e erros de nossa resistência à ditadura militar, mais erros do que acertos, do contrário não estaríamos
aqui. E paira certa tensão entre os que propõem fazermos autocritica, a maioria, e aqueles que insistem em que a
luta revolucionária se encontra em ascensão, há acumulação de forças, o capitalismo demonstra sinais evidentes
de debilidade etc. estes últimos se parecem aos videntes especializados em ler bolas de cristal, só eles enxergam
o que os demais não veem...” Ibid, p. 91.
577
Ibid, p. 53.
578
Ibid, p. 52.
579
Ibid, p. 20.
201

públicas que – no contexto de produção de Alfabetto e Diário de Fernando – procuravam


culpar a violência de parte das esquerdas pelo recrudescimento do regime e até mesmo
equiparar as responsabilidades de ambas pelos acontecimentos que permearam duas décadas
de regime autoritário no Brasil, em uma reedição da “teoria dos dois demônios”.
Assim sendo, fica claro que a abordagem da ditadura militar empreendida pelo
dominicano em seus livros, mais do que uma simples contextualização da narrativa de sua
trajetória e de seus confrades, é o ponto central de uma argumentação da qual sua reflexão
sobre a memória e sua escrita autobiográfica são elementos complementares.
Certamente, a frustração que frei Betto sentiu por conta do golpe militar de 1964, da
falta de uma reação organizada contra ele e da longa vigência da ditadura militar foi enorme.
Entretanto, a análise de seus livros do século XXI não permite distinguir com certeza quais
considerações sobre esses acontecimentos são reminiscências e quais brotaram no momento
em que ele as produziu. No entanto, essa peculiaridade, longe de desqualificar o trabalho do
autor, torna sua obra um documento precioso para se investigar a relação íntima que nela se
estabelece entre a memória e seu contexto de articulação.
202

CONCLUSÃO

A análise histórica da edificação e revisão empreendida por frei Betto ao longo de


quatro décadas de publicações de suas reminiscências da ditadura militar demonstra que,
longe de serem o resultado de uma batalha narrativa entre militares e militantes opositores que
reeditaria a diametral oposição entre Direita e Esquerda, as memórias do regime de exceção –
quaisquer que sejam os seus níveis de aderência social (hegemônicas, subterrâneas etc.) –
derivam, na verdade, de um processo de construção complexo e sinuoso marcado pela
pluralidade de agentes e de disputas políticas.
A rara oportunidade de se comparar as versões da memória produzidas por uma
mesma pessoa ao longo de um período de média duração permite compreender de que
maneira o processo de construção de um discurso reminiscente – consciente e
inconscientemente – estabelece um diálogo tácito entre seu autor e o contexto de sua
articulação.
Assim, o propósito de se fazer uma história da memória, mais do que uma simples
reconstituição de um suposto itinerário trilhado pelos memorialistas para vencerem a
“batalha” contra seus adversários políticos e conquistarem seu espaço de escuta, significa
perscrutar os critérios consagrados pelos grupos sociais em uma determinada conjuntura para
que a memória sirva à realização de suas agendas políticas.
A história da memória da ditadura militar brasileira demonstra que essas imagens do
passado são construídas coletivamente e enredadas pelas disputas políticas de seu contexto de
edificação, e não produtos exclusivos da psique de cada indivíduo. Nos dois períodos nos
quais frei Betto publicou suas reminiscências e que, não por acaso, balizaram os tempos fortes
no processo de edificação dessa memória do regime de exceção (os anos 1980 e a primeira
década do século XXI) fica evidente que as agendas políticas dos grupos sociais exerceram
um papel decisivo para que as versões das reminiscências alcançassem diferentes níveis de
aderência social.
A investigação para se entender a construção do discurso memorialístico de frei Betto
na década de 1980 e, consequentemente, os motivos que fizeram com que, naquele período, a
versão liberal-conservadora se tornasse hegemônica – por ela ser a interlocutora tácita da
escrita do dominicano –, sobretudo, revela que esse posicionamento dominante (que influiu na
constituição de outras memórias) é a marca da confluência das demandas de grupos sociais
pela diluição do caráter traumático daquela experiência ditatorial em nome de suas agendas
203

políticas em uma conjuntura de valorização do testemunho e atribuição de autoridade às


vítimas para abordarem um passado violento.
Assim, o critério que definiu o nível de “escuta” oferecido a cada uma dessas
representações do passado foi a sua maior ou menor potencialidade para promover uma
conciliação política; apresentar o regime de exceção como uma imposição da qual a sociedade
foi apenas vítima; e isolar em grupos privados os saudosismos em relação a atitudes extremas
como as ações armadas da esquerda e as iniciativas autoritárias dos militares. Se essa
constatação já é corrente para explicar o sucesso de O que é isso, companheiro?, da mesma
forma, é preciso que se reconheça que ela é fundamental para compreender o processo de
produção das outras versões da memória da ditadura, pois, estas nasceram, em grande parte,
como instrumentos para combater ou tentar, ao menos, alterar essa visão do passado e, assim,
viabilizar agendas políticas alternativas. Portanto, elas também são documentos que registram
esse momento histórico.
Da mesma forma, o estudo da revisão que frei Betto empreendeu em suas memórias
em um momento marcado pelo aumento significativo do questionamento das bases da
memória liberal-conservadora (primeira década do século XXI), o que possibilitou a abertura
de brechas no debate público para a manifestação pública de memórias saudosistas que, até
então, permaneciam restritas a espaços privativos – embora não tenha sido suficiente para
desbancá-la de sua posição hegemônica – revela que o desencadeamento desse processo de
transformações no campo da memória resultou da emergência de novas agendas políticas, em
grande parte, assumidas em razão da insatisfação para com os governos do PT, seja por parte
daqueles que, como frei Betto, se decepcionaram com sua morosidade para pôr em prática
pautas históricas da esquerda, ou de pessoas que por razões ideológicas se viam contrariadas
com as sucessivas vitórias eleitorais de um partido de esquerda, seus programas sociais ou
mesmo sua política de memória para o Estado brasileiro.
Observa-se que a historicidade de memórias como as de frei Betto é demonstrada não
só por serem manifestações de um insatisfação ou, mesmo, recusa pelos usos do passado
demandados para a viabilização da agenda política do país em determinada conjuntura, como,
por exemplo, a conciliação aspirada no período de abertura, mas, também pela iniciativa,
ainda que inconsciente, de empreender uma escrita compatível com os princípios que
caracterizam o regime de memória contemporâneo, para que, assim, suas lembranças sejam
críveis e possam ensejar agendas alternativas.
As estratégias de convencimento desenvolvidas por frei Betto no processo de
construção e revisão de sua obra memorialística, como a humanização das personagens –
204

especialmente pela utilização da tipologia hagiográfica do martírio cristão para contar a


história trágica de frei Tito –; a narrativa teleológica e fundada em um princípio explicativo; a
apresentação abundante de detalhes para reformar o caráter testemunhal da escrita; o
estabelecimento de uma genealogia dos valores; a adoção do modelo de conversão cristã; e a
filiação a padrão de memória fundado em razão das experiências estremas do século XX,
sobretudo em relação ao holocausto e à ocupação nazista demonstram que seu discurso
reminiscente, em grande parte, foi produzido a partir de uma série de disposições
internalizadas pelo autor para atender aos critérios de credibilidade adotados pela sociedade
em determinadas conjunturas. Dessa forma, fica evidente que até mesmo as estratégias para se
satisfazer o desejo mais básico que permeia a articulação de um discurso, ou seja, fazer o
interlocutor acreditar na veracidade do que se diz, registra seu contexto histórico e interesses
políticos.
A própria iniciativa de frei Betto de construir uma narrativa que atestasse a coerência
de sua identidade diante da incompreensão que sua trajetória causava e, sobretudo, das
acusações que, desde o tempo de prisão, como um espectro, rondavam sua imagem –
terrorista, herege e traidor – é um aspecto que demonstra que suas memórias são tributárias de
sua conjuntura de produção; pois, ao mesmo tempo em que a análise de sua autobiografia
revela que essa foi a tentativa do autor de oferecer resposta a uma demanda social que fincava
raízes no estranhamento historicamente construído pela versão liberal-conservadora, ao isolar
a memória da luta armada, por considerá-la uma das faces do extremismo que deveria ser
afastado, ela também revela que foram os valores que o dominicano acreditava serem
socialmente preponderantes naquele período que serviram da base para a execução desse
projeto.
No que concerne mais especificamente à memória de frei Betto, a análise de suas
obras demonstrou que o contexto dos anos 1980, marcado pela extrema valorização do
testemunho das vítimas de tempos violentos, transformou essa representação do passado em
um importante instrumento de intervenção na discussão sobre os caminhos para a
reconstrução da esquerda. Essa convicção de que o espectro político precisava passar por uma
renovação se difundiu, em grande parte, por conta do processo de abertura desencadeado
pelos militares, pois ele significava não só o seu retorno à caserna, como também uma
reconfiguração do campo político brasileiro.
A análise das obras de frei Betto evidencia que sua confiança na potencialidade
política da memória era tamanha que o autor manteve por quase trinta anos – a partir do
lançamento de Batismo de Sangue – a convicção de que sua escrita reminiscente tinha
205

legitimidade e capacidade didática suficiente para demonstrar que a perspectiva de um partido


operário de massa era a opção mais viável para que, em um futuro não tão distante, a esquerda
pudesse governar o país e dar início à execução da agenda de “democratização da cidadania e
da propriedade”, o que há algumas décadas, só por ser considerada por João Goulart para a
condução do país, aglutinou golpistas “históricos” e “eventuais” para apeá-lo do poder.
No caso específico das obras de frei Betto da década de 1980, fica bastante claro que
sua iniciativa de construir uma forma alternativa de lembrar a luta armada diante da
hegemonia da versão liberal-conservadora sintetizada no livro de Fernando Gabeira O que é
isso, companheiro?, além de buscar combater esta imagem do passado que, em sua visão,
usou a tragédia vivida pelas organizações revolucionárias de maneira desrespeitosa à história
dos que morreram, entre outras coisas, por seu tom irônico, para desqualificar integralmente
suas atitudes, também procura defender a dignidade daquela experiência por conta dos valores
nos quais acreditava que ela esteve embasada e dos ensinamentos que teria legado aos seus
“herdeiros ideológicos”.
A análise da narrativa de frei Betto demonstra que ele aspirava poder edificar uma
memória que reconhecesse os erros da luta armada não simplesmente para desvendar as
causas de seu ocaso, mas para fazer deles fontes de uma lição histórica para a esquerda,
sobretudo para o nascente Partido dos Trabalhadores.
Apesar de não ter se omitido em admitir que muitos foram os equívocos das
organizações revolucionárias, frei Betto deixa clara sua convicção de que todos eles
derivaram de um pecado maior: o isolamento das bases populares. Assim, as obras dedicadas
a relembrar a dramática derrota da luta armada evidenciam o desejo do dominicano de que
elas desempenhassem uma função didática. A missão delas seria demonstrar que a
proximidade e o protagonismo da massa é condição sine qua non para que qualquer
movimento que aspire um transformação político-social, seja reformista ou revolucionário,
possa alcançar êxito.
A memória da ditadura militar que frei Betto apresenta nos livros desse período
corroboram essa tese, segundo a qual, ele aspirava que seu discurso reminiscente cumprisse a
função de auxiliar a reconstrução da esquerda e evidenciar o quanto era promissora e
necessária a perspectiva de um partido operário de massa. A descrição do engendramento do
regime de exceção como o resultado de um pacto das elites para frear a mobilização popular
em torno de um projeto nacional de extensão da cidadania, de sua dissolução como o produto
da negociação entre os poderosos de um novo arranjo estratégico que garantisse a manutenção
de um ordem político-social excludente, assim como, daqueles que pegaram em armas para
206

combater a ditadura como heróis por suas vidas e mártires por suas mortes deixam clara a
concepção do autor de que, apesar de dignas, as iniciativas da luta armada serviram, acima de
tudo, para ensinar que o extenso concerto de forças conservadoras que historicamente subjuga
o Estado brasileiro só poderia ser derrotado por uma grande e articulada coadunação da classe
trabalhadora.
Mesmo em Diário de Fernando, que foi lançado posteriormente à chegada do PT ao
poder, é perceptível a manutenção do uso político que frei Betto faz de suas memórias.
Entretanto, se a iniciativa do dominicano nos anos 1980 utilizar-se das reminiscências da
ditadura militar e dos erros da luta armada como instrumentos de demonstração da
imprescindibilidade da mobilização popular para que a esquerda pudesse ser exitosa
significou um investimento de capital simbólico – a autoridade do discurso testemunhal – na
viabilização de um projeto político para o futuro, ou seja, uma demonstração de confiança na
perspectiva de formação de um grande partido operário de massa. Na primeira década do
século XXI, essa mesma atitude passou a cumprir uma nova função.
A análise da obra memorialística de frei Betto no século XXI demonstra que sua
construção foi influenciada decisivamente por duas questões. A primeira diz respeito à
percepção do autor de que o PT, depois de anos de muito trabalho para chegar ao poder, se
mostrava vacilante na tarefa de pôr em prática as reformas estruturais que historicamente
compunham a agenda da Esquerda. Já a segunda se refere à emergência, no debate público, de
versões que buscavam equiparar os atos violentos da luta armada e do governo militar e
daquelas que lembravam o período de maneira saudosa.
A insatisfação com a postura assumida pelo PT após ter chegado ao poder fez com que
frei Betto utilizasse a revisão de suas lembranças da luta armada como uma oportunidade
para, através do discurso reminiscente, advertir o partido de que distanciar-se das bases
populares e de suas demandas significava incidir em um grande risco. Neste caso, o de perder
sua identidade e, por consequência, seu capital político.
Mas, acima de tudo, a análise das obras demonstra que o autor defendeu assiduamente
a existência de uma dívida histórica com aqueles que morreram nas mãos dos agentes da
repressão. Assim, executar essa agenda histórica, como a reforma agrária, seria um imperativo
da memória, do qual o PT não poderia se furtar.
Já no que concerne à segunda questão, o empenho de frei Betto para que a revisão de
suas memórias nesse novo contexto pudesse combater os discursos nostálgicos e as tentativas
de criar uma versão brasileira da “teoria dos dois demônios” fica bastante evidente ao se
observar que sua narrativa buscou desfocar as particularidades da ditadura militar para que,
207

dessa forma, pudesse dar maior ênfase a aspectos generalizantes. A análise das obras
demonstra que o autor confiava na perspectiva de que essa estratégia seria suficientemente
capaz de desnudar uma relação de continuidade e paridade entre os regimes ditatoriais do
século XX. Assim, ele pretendia comprovar que o Estado de exceção imposto ao Brasil
naquele período constituía a encarnação de uma verdadeira tradição autoritária. Outra tática
fundamental foi construir uma genealogia dos valores que teriam movido parte da Esquerda
para a luta armada.
A versão segundo a qual, diante da gravidade do contexto, o controverso caminho da
violência revolucionária se apresentou como legítimo devido aos princípios nos quais se
embasava – fixados desde a infância, por meio de espaços legítimos de formação como a
família, a Igreja e a escola – foi apresentada por frei Betto em contraste com sua abordagem
da tortura, por considerar essa prática o exemplo máximo da torpeza dos reais objetivos da
ditadura militar. Assim, ao insistir que, ao contrário de serem instrumentalizadas por peritos
das forças de segurança para desbaratar organizações terroristas, as sevícias serviam apenas
como exibição hedonista de poder. O dominicano buscou deixar clara, segundo sua visão, a
superioridade moral da luta armada em relação às ações repressivas dos agentes do governo,
além de desmentir a existência de qualquer motivação nobre que pudesse justificar a menção
honrosa e saudosa dessas atividades.
Dessa forma, se conclui que a obra memorialística de frei Betto, acima de tudo, é uma
fonte valorosa para se perscrutar as disputas e funcionalidades que permearam a história da
memória da ditadura militar brasileira durante as décadas de sua produção e revisão. O
resultado de sua análise revela, mormente, que essas imagens do passado marcam somente
uma parte de um processo longo, complexo e contínuo e que, de maneira nenhuma, elas
podem ser reduzidas à condição de produtos acabados e perenes que teriam nascido de uma
batalha entre dois polos políticos.
208

FONTES

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