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ASSIS
2021
BRUNO DIAS SANTOS
ASSIS
2021
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Laura Akie Saito Inafuko - CRB 8/9116
CDD 981.06
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
Câmpus de Assis
CERTIFICADO DE APROVAÇÃO
TÍTULO DA TESE: SOB O ESPECTRO DA TRAIÇÃO: frei Betto e a construção social da memória da
ditadura militar brasileira
Aprovado como parte das exigências para obtenção do Título de Doutor em HISTÓRIA, área: História
e Sociedade pela Comissão Examinadora:
RESUMO
Desde o golpe que depôs o presidente João Goulart, em 1964, as subsequentes transformações
históricas pelas quais o Brasil passou têm acirrado as disputas em torno da hegemonia e, até
mesmo, da influência no processo de construção da memória da ditadura militar. Nesse
sentido, memorialistas dedicados ao tema foram impelidos a revisar suas narrativas sobre o
regime autoritário, perante o risco de que seus discursos, com o passar do tempo, perdessem a
funcionalidade política. Dessa forma, o estudo da obra memorialística de frei Betto apresenta-
se como valiosa contribuição no perscrutar a historicidade e o caráter político dessa
representação do passado. O religioso é um dos autores que persiste em reeditar suas
lembranças do Estado de exceção e seu livro mais conhecido, Batismo de Sangue, ascende
como referência para o debate acerca da memória dominante do período. Assim, por meio da
análise das estratégias de convencimento e da comparação entre as intepretações da ditadura
militar que o dominicano desenvolveu em seus cinco livros dedicados ao registro de suas
reminiscências (publicados ao longo de quase quarenta anos), este trabalho buscou
compreender de que maneira as variações conjunturais – especialmente aquelas que reportam
ao processo de Abertura durante os anos 1980 até a Era Lula (2002-2010) – promoveram a
emergência de novos projetos políticos que ensejaram uma luta pela remodelagem da
memória do regime autoritário. Esse embate não se restringe ao tradicional eixo Direita-
Esquerda e, estendendo-se também a memorialistas pertencentes ao mesmo espectro
ideológico, apresenta-se como fundamental na demonstração do predomínio que o contexto
da articulação discursiva exerce sobre a narrativa do passado, o que, portanto, corrobora a tese
acerca do caráter histórico e dos usos políticos desse tipo de construção.
ABSTRACT
Since the 1964 coup d’état that deposed President Joao Goulart, the ensuing historical
transformations that Brazil has undergone have deepen disputes over hegemony and even the
influence over the process of building the memory of the military dictatorship. In this sense,
memorialists dedicated to this issue were compelled to revise their narratives about the
authoritarian regimen, due to the risk of their speeches, over time, would end up losing their
political functionality. Thus, the study of frei Betto’s memorialistic work presents itself as a
valuable contribution in exploiting the historicity and the political character of that
representation of the past. The religious is one of the authors who is persistent in reissuing his
memories about the state of exception and his most well-known book, Batismo de Sangue,
rises as a reference on the debate around the dominant memory of the period. Therefore, by
analyzing the strategies of convincement and comparing the interpretations of the military
dictatorship developed by the Dominican in his five books (issued over almost forty years),
that were dedicated to register his reminiscences, this work has sought to understand how the
juncture variations – mainly those referring to the Opening Process during from the 1980’s to
the Lula era (2002-2010) – promoted the emergency of new political projects that led to a
fight in order to reshape the memory of the authoritarian regimen. That struggle is not
restricted to the conventional left-right axis and, extending to memorialists belonging to the
same ideological spectrum as well, it is fundamental in demonstrating the predominance that
the context of discursive articulation exerts over the narrative of the past, which, accordingly,
corroborates the thesis about the political character and the political uses of this type of
construction.
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 10
CONCLUSÃO................................................................................................................. 202
INTRODUÇÃO
1
BARROS, Otávio Rêgo. Declaração à imprensa do senhor Porta-Voz, general Otávio Rêgo Barros -
Brasília-DF. [entrevista coletiva] Brasília, 2019. Disponível em: <http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-o-
planalto/porta-voz/2019/declaracao-a-imprensa-do-senhor-porta-voz-general-otavio-rego-barros-brasilia-df-25-
de-marco-de-2019-brasilia-df>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
2
BRASIL. Defensoria pública da união. Processo de Assistência Jurídica (PAJ) nº 2019/001-3517. Ação Civil
Pública com pedido de tutela provisória de urgência. Brasília, DF, 26 de mar. de 2019. 19 p. Disponível em:
<https://www.revistaforum.com.br/wp-content/uploads/2019/03/1-inicial-acp-impedir-comemoracxxaxxo-
ditadura.pdf>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
3
TASSY, Luiz Philippe. Juíza proíbe governo Bolsonaro de comemorar golpe de 1964. Correio Braziliense,
Brasília, 29 de mar. de 2019. Disponível em:
<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/03/29/interna_politica,746271/juiza-proibe-
governo-bolsonaro-de-comemorar-golpe-de-1964.shtml>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
4
ROSSI, Marina. Justiça suspende decisão que proibia Forças Armadas de celebrarem golpe de 1964. El País,
Madri, 30 de mar. de 2019. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/30/politica/1553963400_195148.html>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
11
No mesmo dia, a nota publicada pelo Instituto Vladimir Herzog, defendia que:
5
FERNANDES, Talita; URIBE, Gustavo. Bolsonaro determinou 'comemorações devidas' do golpe de 1964, diz
porta-voz. Folha de S. Paulo (Online), São Paulo, 25 de mar. de 2019. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/bolsonaro-determinou-comemoracoes-devidas-do-golpe-de-
1964-diz-porta-voz.shtml>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
SANTA RITA, Bruno; KAFRUNI, Simone; SOUZA, Renato. Bolsonaro recomendou 'devidas comemorações'
do golpe de 1964, diz Porta-Voz. Correio Braziliense, Brasília, 25 de mar. de 2019. Disponível em:
<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/03/25/interna_politica,745271/bolsonaro-
recomendou-devidas-comemoracoes-do-golpe-de-1964-diz-port.shtml>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
6
ANPUH-BRASIL. Nota da ANPUH-BRASIL contra a orientação da Presidência da República a respeito
das “comemorações” do golpe de 1964. São Paulo, 1 de abr. de 2019. Disponível em:
<https://anpuh.org.br/index.php/2015-01-20-00-01-55/noticias2/noticias-destaque/item/5141-nota-da-anpuh-
brasil-contra-a-orientacao-da-presidencia-da-republica-a-respeito-das-comemoracoes-do-golpe-de-1964>.
Acesso em: 7 de abr. de 2019.
7
OAB-SP. OAB SP repudia comemoração do golpe de 1964. São Paulo, 28 de mar. de 2019. Disponível em:
<http://www.oabsp.org.br/noticias/2019/03/oab-sp-repudia-comemoracao-do-golpe-de-1964.12881>. Acesso
em: 1 de abr. de 2019.
8
INSTITUTO VLADIMIR HERZOG. Instituto Vladimir Herzog repudia comemorações ao golpe de 64. São
Paulo, 28 de mar. de 2019. Disponível em: <https://vladimirherzog.org/nota-oficial-instituto-vladimir-herzog-
repudia-comemoracoes-ao-golpe-de-64/>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
12
No dia seguinte, o jornalista Jamil Chade noticiou que, por meio de um documento
“enviado em caráter confidencial”, a OAB e o Instituto Vladimir Herzog denunciaram o
presidente Bolsonaro junto à Organização das Nações Unidas (ONU) por incitar a
comemoração do golpe de 1964. Chade destaca:
9
CHADE, Jamil. OAB denuncia Bolsonaro na ONU por recomendação sobre 1964. Genebra, 29 de mar. de
2019. Disponível em: <https://jamilchade.blogosfera.uol.com.br/2019/03/29/oab-denuncia-bolsonaro-na-onu-
por-recomendacao-sobre-64/?utm_source=facebook&utm_medium=social-
media&utm_campaign=noticias&utm_content=geral>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
10
PASSARINHO, Jarbas. Réquiem em vez de ação de graças. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 123, n.
39858, 03 de dez. de 2002. Espaço Aberto, p. A2. Disponível em:
<https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20021203-39858-spo-2-opi-a2-not>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
13
[...] cujo objetivo foi proporcionar ao nosso país um ambiente pacífico e ordeiro,
propício para a consolidação da democracia e ao nosso desenvolvimento, livre de
ressentimentos e capaz de inibir a reabertura de feridas que precisam ser,
definitivamente, cicatrizadas. Por esse motivo considera os fatos como parte da
história do Brasil.
Mesmo sem qualquer mudança de posicionamento e de convicções em relação ao
que aconteceu naquele período histórico, considera ação pequena reavivar
revanchismos ou estimular discussões estéreis sobre conjunturas passadas, que a
nada conduzem.12
11
NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014. p. 328.
12
CENTRO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DO EXÉRCITO. Nota oficial. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano 84,
n.27593, 19 de out. de 2004. p. A8. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=16234&keyword=centro&anchor=5191621&origem=busca&pd=
097eccc5c5398d0456bdff5ae51599d8>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
14
Apesar do tom apaziguador, observa-se que a mensagem almeja uma retratação por
considerar inadequada a forma – não o conteúdo – como o assunto foi abordado na nota do
Centro de Comunicação Social do Exército; em nenhum momento ela se contrapõe às
afirmações tecidas. O mais importante é notar que em ambas as manifestações se reconhece
que a expressão da memória, seu esquecimento, ou mesmo, seu silenciamento, cumprem uma
função política. Nesse caso, se expressa explicitamente que a consolidação da democracia
como projeto político depende, sine qua non, da decisão firme dos “dois lados” dessa
“batalha”, de não se reabrir “feridas que precisam ser, definitivamente, cicatrizadas”,
evitando-se para isso que se reavivem “fatos de um passado trágico”.
O outro episódio exemplar desse reconhecimento da memória como instrumento
político foi a reação militar à instauração da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em
novembro de 2011, conforme instituído pela lei 12.528.14 Em 12 de maio de 2012, o jornal O
Estado de São Paulo publicou o artigo “Lei do silêncio”, do general de Exército Rômulo Bini
Pereira.
De maneira áspera, o general afirma que a instalação da CNV representava a quebra
do pacto político pela “reconstrução democrática no Brasil”, selado pela lei da Anistia em
1979, após “muitos debates em amplos segmentos de nossa sociedade”. Segundo o militar, as
forças armadas, desde então, cumpriram o acordo e “mantiveram-se em silêncio”. Mas diante
da “tentativa de criar uma nova história” sobre o período, seria urgente que os chefes militares
13
ALBUQUERQUE, Francisco Roberto. Nota oficial. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano 84, n.27594, 20 de out.
de 2004. p. A6. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=16235&keyword=centro&anchor=5191676&origem=busca&pd=
2cd48f674a0818d87039acd77837197b>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
14
BRASIL. Decreto-lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011. Cria a Comissão Nacional da Verdade no âmbito
da Casa Civil da Presidência da República. Brasília, DF: Presidência da República, [2011]. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12528.htm>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
15
abandonassem o laconismo, ou seja, adotassem uma nova estratégia para prosseguir com a
“batalha”. Nas palavras de Pereira:
Não se admite mais este silêncio reinante. Nas redes virtuais, pela simples leitura
de manifestos e artigos oriundos da reserva de nossas forças singulares se percebe
que estamos num ponto crítico. A nossa autoestima está em visível declínio,
agravada por outros fatores, entre eles os baixos salários de nossos subordinados.
Dissensões poderão surgir, por a reserva expressa um muito o pensamento dos
soldados da ativa. [...] não é possível mais calar. A lei do silêncio deve ser
quebrada!15
15
PEREIRA, Rômulo Bini. Lei do silêncio. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 133, n. 43306, 12 de mai. de
2012. Espaço aberto, p. A2. Disponível em: <https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20120512-43306-spo-2-
opi-a2not/busca/lei+sil%C3%AAncio>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
16
A pertinência dos conceitos sociológicos desenvolvidos por Pierre Bourdieu, para se refletir acerca dos discursos
memorialísticos, é discutida no terceiro capítulo desta tese.
16
17
ROBIN, Régine. A memória saturada. Tradução Cristiane Dias, Greciely Costa. Campinas: Editora da
Unicamp, 2016. p. 31.
18
Ibid, p. 37.
19
Ibid, p. 36.
20
Segundo Foucault, existe um combate pela verdade: “[...] A verdade não existe fora do poder ou sem poder [...].
A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados
de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso
que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os
enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e procedimentos que
são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como
verdadeiro.” Cf. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Ed. 2. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2015. p.49.
17
21
Esse aspecto recebe uma abordagem aprofundada no segundo capítulo deste trabalho através da comparação
entre as obras de frei Betto nos anos 1980 e o livro O que é isso, companheiro? do jornalista Fernando Gabeira.
18
A segunda seção versa sobre a inaugural e mais importante iniciativa de frei Betto
para executar seu projeto memorialístico. Através da análise de Batismo de Sangue (1982), O
dia de Ângelo (1985) e da comparação de sua interpretação da ditadura militar com a de
Fernando Gabeira em O que é isso, companheiro? (1979), busca-se demonstrar como o
contexto de hegemonia da memória liberal-conservadora e de extrema valorização do discurso
testemunhal influenciou o autor nas escolhas das estratégias que deveriam ganhar maior
destaque ou serem arrefecidas em função da construção das teses empreendidas pela sua
versão. Sobretudo, se destaca a edificação de uma narrativa que estabeleça uma
correspondência entre a reminiscência da morte de seu confrade Tito de Alencar Lima e os
modelos hagiográficos do martírio cristão.
O terceiro e último capítulo aborda a revisão que frei Betto promove em sua memória
da ditadura militar na primeira década do século XXI através de seus livros Alfabetto:
autobiografia escolar e Diário de Fernando: Nos cárceres da ditadura militar brasileira. O
período que marcou trajetória do dominicano pela passagem do estado de euforia ao de
frustração com a tão sonhada ascensão de um partido operário de massa ao poder – com a
eleição de Lula em 2002 – e pela emergência dos primeiros sinais de enfraquecimento da
memória liberal-conservadora também registrou uma mudança significativa nas táticas
adotadas pelo dominicano para que sua escrita memorialística preservasse sua funcionalidade
política. Por meio da análise das estratégias de convencimento utilizadas e do cotejo das
obras, procura-se compreender de que maneira o autor construiu uma verdadeira genealogia
dos valores que advoga serem capazes de legitimar as atitudes que ele e seus confrades
tomaram no passado. A narrativa do itinerário que teria dotado os dominicanos de seus
princípios e paradigmas, não só justificaria seu apoio à luta armada, como também lhes teria
dado a clarividência para enxergar que a ditadura instaurada em 1964 e sua prática mais
abjeta, a tortura, não serviam a qualquer agenda política, exceto à retroalimentação do poder
de seus artífices e a sua exibição hedonista perante seus opositores.
20
22
MARIGHELA morre metralhado em São Paulo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 181, 5 de
nov. de 1969. 1º Caderno p.14. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691105&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 1 de set. de 2018.
MORTO o chefe terrorista Marighela. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.752, 5 de nov. de 1969.
p.1. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3468&keyword=Marighela&anchor=5172343&origem=busca>.
Acesso em: 22 de set. de 2018.
PADRES levam Marighella à morte. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 90, n. 29.012, 5 de nov. de 1969.
p.14. Disponível em: <https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19691105-29012-nac-0014-999-14-
not/busca/Marighella>. Acesso em: 10 de nov. de 2018.
23
O TERROR acaba ou vai se unir? O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 90, n. 29.013, 6 de nov. de 1969. p. 24.
Disponível em: <https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19691106-29013-nac-0024-999-24-
not/busca/Marighela>. Acesso em: 11 de nov. de 2018.
REVELAÇÕES sobre as investigações. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.754, 7 de nov. de 1969.
p. 8. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3470&keyword=Frei&anchor=5172414&origem=busca&pd=cea
c1211ad69369e2a12d504a55e1fba>. Acesso em: 24 de set. de 2018.
21
Frei Ivo e Frei Fernando foram no Volks azul para o encontro com Marighela.
Quando veio a ordem de prisão, êles saíram do carro com as mãos sobre a cabeça,
mas ainda tentaram fugir. Só não o conseguiram porque foram atacados por dois
cães pastores alemães que os imobilizaram contra uma parede.
Detidos, os freis voltaram ao DOPS, de onde saiam para levar a Polícia ao encontro
de Marighela.24
O Jornal do Brasil afirmava de maneira ainda mais direta que: “A polícia descobriu a
maneira de encontrar Carlos Marighela há dias, quando prendeu 11 padres num convento do
bairro do Paraíso”.25 Na notícia completa, o jornal afirmava que “dois dos padres presos
ajudaram a arquitetar um plano para a captura de Carlos Marighela, marcando com ele um
encontro para tratar de uma programação subversiva”.26
24
PADRES levam Marighella à morte. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 90, n. 29.012, 5 de nov. de 1969.
p.14. Disponível em: <https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19691105-29012-nac-0014-999-14-
not/busca/Marighella>. Acesso em: 10 de nov. de 2018.
25
MARIGHELA morre metralhado em São Paulo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 181, 5 de
nov. de 1969. 1º Caderno p.1. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691105&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 1 de set. de 2018.
26
Ibid, p. 14.
22
Após confessarem que pertenciam ao grupo Marighela, frei Ivo e frei Fernando
concordaram em marcar um encontro com o ex-deputado na Alameda Casa Branca.
O telefonema foi gravado; a senha era “vou à tipografia às 20h30m”.
Os policiais cercaram o local, inclusive com a ajuda de cães pastores, que durante o
tiroteio evitaram a fuga dos dois frades, frei Fernando foi mordido na perna quando
tentava escapar aproveitando a confusão.27
Frei Ivo e Frei Fernando já haviam traído a Igreja e a Ordem a que pertencem
quando, renegando os votos de amor e caridade impostos pelo Evangelho cristão,
abraçaram a filosofia de ódio ensinada por Lenine APUD Marx.
Essa traição foi o primeiro beijo de Judas que deram. Todo o resto decorreu desta
apostasia – ainda mais grave que o usual, pois fingiram que ainda continuavam
dentro da Igreja, quando apenas dela se utilizavam para servir ao terror. [...]
Frei Ivo e Frei Fernando, que rasgaram os votos que livremente firmaram diante de
Deus, perderam a resistência moral e traíram os votos de fidelidade à própria
doutrina da violência. Entregaram Marighella à polícia com meticulosa
proficiência.28
Apesar da curiosa ênfase que os jornais deram às atitudes dos frades dominicanos, seja
por terem apoiado as organizações de luta armada ou pela suposta “colaboração”29 que teria
levado a polícia ao paradeiro do guerrilheiro baiano, Carlos Marighella era, sem sombra de
dúvida, o personagem mais importante daquele episódio.
Enquanto frei Ives do Amaral Lesbaupin (1946), Frei Fernando de Brito (1936), frei
Tito de Alencar Lima (1945) e Frei Betto (1944) eram apenas jovens desconhecidos que há
poucos anos haviam assumido o hábito branco dos frades pregadores e que há menos tempo
ainda haviam se envolvido com as organizações de luta armada, o líder da ALN, aos
cinquenta e oito anos de idade, contabilizando quase quatro décadas deles em militância
comunista, a maior parte delas fiel ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), era uma figura
27
POLICIAIS procuram ex-deputado. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 182, 6 de nov. de 1969. 1º
Caderno p.15. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691106&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 10 de set. de 2018.
28
O BEIJO de Judas. O Globo. Rio de Janeiro, 6 de nov. de 1969. Ano XLV, n13.345. p.1. Disponível em:
<https://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=pagina&ordenacaoData=relevancia&allwords=o+beijo+
de+judas&anyword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=1960&anoSelecionado=1969&mesSeleciona
do=11>. Acesso em: 8 de abr. de 2019.
29
MARIGHELA morre metralhado em São Paulo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 181, 5 de
nov. de 1969. 1º Caderno p.1. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691105&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 1 de set. de 2018.
23
imponente entre os oposicionistas mais famigerados do Brasil, além de ser o principal inimigo
da ditadura militar.
Membro do PCB desde o início da chamada “era Vargas”, na década de 1930, quando
ainda cursava engenharia na Escola Politécnica da Bahia30, Marighella foi preso durante o
Estado Novo (1937-1945) e barbaramente torturado. Sua resistência às sevícias a que foi
submetido para não entregar qualquer informação que pudesse prejudicar seus companheiros
e comprometer sua luta lhe rendeu o respeito até mesmo de alguns de seus torturadores.
Somada à sua sensibilidade artística e habilidade social, ela se transformou em sua aura
mítica. Segundo frei Betto, um delegado teria afirmado: “só existe um macho no Partido
Comunista: é esse baiano Marighella.31
Após o golpe civil-militar de 1964, suas críticas à imobilidade do “partidão” soavam
como música para ouvidos jovens, mas já cansados de “esperar acontecer”. O gesto inaugural
desta rota de colisão com o PCB foi sua resistência à ordem de prisão no Cine Eskye-Tijuca
no dia 9 de maio de 1964.
Pouco mais de um mês após o golpe civil-militar, ao receber voz de prisão, Marighella
se levantou aos gritos de “abaixo a ditadura militar fascista! Viva a democracia! Viva o
Partido Comunista!”.32 Essa atitude contrariava a orientação do partido que, segundo frei
Betto, era “evitar provocações”.
O significado político da resistência à prisão e de bradar palavras de ordem diante da
polícia naquele momento fica comprovado pelas reações que essa atitude provocou. De um
lado, Marighella escreveu o livro Por que resisti à prisão explicando os motivos que o
levaram a desafiar as recomendações do partido; do outro, a direção do PCB não só reprovou
seu conteúdo como tentou censurá-lo. Segundo Magalhães: “Parte da executiva se enfureceu
porque o texto não lhe foi submetido para o imprimátur. Não houve ‘permissão’, enfatizou
Zuleika Alambert, em conversa de março de 1966 com Vladímir N. Kazimirov, funcionário
da embaixada soviética no Rio de Janeiro”.33 O autor ressalta que era a primeira vez que o
30
MAGALHÃES, Mario. Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo. 6. ed. São Paulo: Companhia das
letras, 2012. p. 42-77.
31
MARIGHELA morre metralhado em São Paulo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 181, 5 de
nov. de 1969. 1º Caderno p.12. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691105&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 1 de set. de 2018.
32
BETTO, Frei. Batismo de sangue: Os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1982. p. 16.
33
MAGALHÃES, 2012. p. 333.
24
34
Ibid, p. 332.
35
MARIGHELLA, Carlos. A crise brasileira. In MARIGHELLA, Carlos. Escritos de Carlos Marighella. São
Paulo: Livramento, 1979. p. 50.
36
As questões referentes ao “reboquismo” e à “derrota sem resistência” em 1964 são aqui citadas como forma de
elucidar as reflexões de Marighella que o levaram a romper com o PCB e que influenciaram pessoas que, como
frei Betto, decidiram militar na organização criada pelo ex-deputado. Entretanto, é preciso salientar que existe
um debate em aberto na historiografia brasileira sobre esses temas, nos quais não nos propomos a adentrar neste
trabalho específico.
37
Ibid, p. 50.
38
Ibid, loc. Cit.
25
as outras pelas quais o país já passara em sua história republicana, o que significava que não
duraria muito tempo. Atento aos acontecimentos dos dois primeiros anos do regime,
Marighella apregoava que os golpistas não hesitavam em utilizar a violência para combater
seus opositores. Assim sendo, a via pacífica não teria mais eficácia e apenas a luta armada
poderia dar início a um processo revolucionário que, primeiramente, devia destituir os
militares do poder.
Diante de críticas tão contundentes e perspectivas absolutamente distintas, não
demorou muito para que a relação entre o dirigente baiano e o partido se extinguisse de vez. O
marco definitivo desse rompimento foi o encontro da Organização Latino-Americana de
Solidariedade (OLAS), ocorrido em Havana em 1967.
Apesar de ter sido convidado a enviar representantes, o PCB preteriu ao encontro da
OLAS por não comungar das teses revolucionárias defendidas pelo Partido Comunista local.
Contrariando o comitê central, Marighella compareceu ao evento e reafirmou a admiração que
nutria pela revolução cubana e sua inspiração foquista39, o que foi considerado uma afronta
pelos dirigentes brasileiros.40
A partir desse episódio, enquanto o comitê central do partido no Brasil se preparava
para protocolar sua expulsão definitiva, em Cuba, Marighella redigia uma carta por meio da
qual comunicava o seu desligamento partidário. A mensagem foi lida por seu próprio autor e
transmitida via rádio intercontinental de Havana no dia 17 de agosto de 1967. Nela, o ex-
deputado reafirmava sua opção de:
[...] lutar revolucionariamente junto com as massas e jamais ficar a espera das
regras do jogo político, burocrático e convencional que impera na liderança. [...]
Prosseguirei pelo caminho da luta armada reafirmando minha atitude revolucionária
e rompendo em definitivo com vocês.41
39
O Foquismo é uma teoria revolucionária desenvolvida por Régis Debray. A teoria do Foco afirma que a
revolução não necessita de um partido político para liderá-la, e a ideia de que um pequeno núcleo guerrilheiro
agindo no campo, por ser o local ideal, daria início a uma mobilização da massa, que tomaria o poder.
Inspirados na ação de Fidel Castro e Che Guevara em Cuba, grupos guerrilheiros do Brasil também assumiram
esse projeto revolucionário; temos como exemplo a ALN de Carlos Marighella.
40
O SUBVERSIVO, dos versos ao terror. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 181, 5 de nov. de
1969. 1º Caderno p.14. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691105&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 1 de set. de 2018.
41
MARIGHELLA, 1979, p. 89-97.
26
Alguns meses depois, sua expulsão foi oficializada durante o VI congresso partidário
que ocorreu em dezembro de 1967.42 Assim encerravam-se 37 anos de militância no PCB.
Nesse mesmo ano, juntamente com outras dissidências do partido, Marighella criou o
Agrupamento Comunista de São Paulo, um embrião do que viria a ser, um ano mais tarde, a
Ação Libertadora Nacional. Para que essa nova organização não incidisse nos mesmos erros
do partidão, sua estratégia foi abandonar a aspiração partidária e estabelecer uma estrutura
horizontal43 composta por pequenos subgrupos de três integrantes. Porquanto, para os jovens
comunistas dos anos 1960, o grande feito de Marighella foi desafiar ao mesmo tempo o
autoritarismo da ditadura e o imobilismo do PCB.
Marighella considerava que a burocracia de um partido político inviabilizava a luta
revolucionária. Dessa forma, a ALN deveria se dedicar exclusivamente à ação. Por meio de
suas atividades urbanas, uma de suas maiores aspirações era levantar fundos para implementar
a guerrilha rural e, assim, formar de um exército revolucionário no Brasil.
Segundo o pronunciamento do Agrupamento Comunista de São Paulo, de fevereiro de
1968:
Os princípios pelos quais se rege essa instituição são três: o primeiro é que o dever
de todo revolucionário é fazer a revolução; o segundo é que não pedimos licença
para praticar atos revolucionários e o terceiro é que só temos compromissos com a
revolução.44
42
RIDENTI. Marcelo. Esquerdas Armadas Urbanas: 1964-1974. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI,
Marcelo. História do marxismo no Brasil: Partidos e Movimentos após os anos 1960. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1991. v. 6. p. 110.
43
A maneira como ALN se estruturou expressava claramente a crítica à burocracia e teorizações do PCB. A
organização era formada por pequenos grupos que se dividiam em: “Grupo de Trabalho Estratégico (GTE),
responsável pelo planejamento e implantação da guerrilha rural; o Grupo de Tático Armada (GTA), voltado para
as ações armadas; e o Grupo de Ação (GA), que deveria estar ligado ao trabalho de massa. Havia ainda os
Grupos Independentes (GI’s), setores de apoio, simpatizantes, sem uma ligação orgânica com a organização”.
Cf. SALES, Jean Rodrigues. A Ação Libertadora Nacional, a Revolução Cubana e a luta armada no Brasil.
Revista Tempo, Niterói, v. 14, n. 27, p. 199-217, 2009.
44
MARIGHELLA, 1979, p. 134.
27
que se conclua que eles assumiram a versão criada pela polícia para o ocorrido na Alameda
Casa Branca em novembro de 1969.45
Segundo Motter, a recorrente utilização de palavras que fazem parte do jargão policial,
a ausência de outros depoimentos e a incongruência semântica das notícias evidenciam que
sua redação não era fruto do trabalho de jornalistas, habituados a observar esse tipo de
precaução, mas uma transcrição, quase literal, do enredo transmitido pelos órgãos de
segurança.46 Assim, as culpas imputadas ou reforçadas pela imprensa diária podem ser
consideradas pistas preciosas de quais eram as representações que as autoridades desejavam
que se inculcasse na opinião pública.
Assim sendo, o que se queria fazer crer com a veiculação dessas publicações e
manchetes era que os dominicanos, como legítimos representantes da ala progressista da
Igreja Católica, nesse fatídico episódio, teriam dado provas da vileza moral intrínseca a todos
aqueles que professavam ideias que, falsamente ornadas de boas intensões e transvestidas de
verdades evangélicas, buscavam minar as bases da “civilização cristã ocidental” utilizando a
religião como instrumento de propagação do comunismo.
Distante 1.144 km da capital paulista, outro personagem fundamental nessa história
acompanhava pelos jornais o que se dizia dos frades dominicanos e a entrada de seu próprio
nome nas especulações sobre a organização liderada por Carlos Marighella.47
Não é preciso dizer que sobravam razões pessoais para que frei Betto se ressentisse e
fosse refratário à versão apresentada pela imprensa diária. No entanto, a experiência de
repórter da Folha da Tarde e de ex-estudante de jornalismo na extinta Universidade do Brasil
lhe garantiam a habilidade necessária para identificar a farsa apresentada pelos jornais e suas
intenções.48
Mais importante do que desmentir a versão midiática, o que já foi feito de maneira
peremptória pela pesquisa histórica, é observar que a percepção implícita nas cartas de frei
Betto de que existia uma verdadeira campanha difamatória contra os dominicanos e a ala mais
progressista da Igreja Católica é perfeitamente justificável. Posteriormente, esse desejo das
45
MOTTER, Maria Lourdes. Ficção e História. Imprensa e construção da Realidade. São Paulo: Arte & Ciência,
2001. p. 93-100.
46
Ibid, p. 95.
47
COMO a operação Bandeirante chegou a Marighela. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.753, 6 de
nov. de 1969. p. 12. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3469&keyword=Marighelas&anchor=5172384&origem=busca&
pd=0b8e8ee87e4708173f00d9048c309301>. Acesso em: 23 de set. de 2018.
48
FREIRE, Américo; SYDOW, Evanize. Frei Betto: biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. p. 67-
77.
28
49
SERBIN, Kenneth P. Diálogo nas sombras: Bispos militares, tortura e justiça social na Ditadura. Tradução
Carlos Eduardo Lins da Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 109.
50
Ibid, p. 108.
51
GOMES, Paulo César. Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira: a visão da espionagem. Rio de
Janeiro: Record, 2014. p. 113-193.
52
Ibid, p.191.
29
ainda mais severa quando essa tentativa de tonar a Igreja mais próxima dos problemas do
mundo moderno erigiu como uma de suas bandeiras a ênfase na busca por justiça social.53
Esse descontentamento fica bastante claro ao se observar que até as mudanças mais
insignificantes nos hábitos dos clérigos eram merecedoras de reprovação nos relatórios
militares. Serbin observa que:
53
SERBIN, 2001, p. 117.
54
Ibid, p. 118.
55
Ibid, p. 213-217.
56
Ibid, p. 205.
30
comissão “bipartite” como uma amostra perfeita de como funcionaria a cultura política da
elite nacional, da qual faziam parte clérigos e militares.57
Caracterizada pelo seu paternalismo, clientelismo, mas, principalmente por seu desejo
de conciliação a fim de promover reformas sociais e políticas sem a participação das massas,
a cultura política da elite seria o que produzia entre bispos e militares um esprit de corp.
O ressentimento da elite conservadora pela hierarquia Católica teria sua raiz na
abertura que a instituição promoveu ao laicato na década de 1960. Ao exortar o povo a
participar e tomar consciência dos problemas sociais, de certa forma, a Igreja rompia com o
pacto que tradicionalmente caracterizava os laços entre o Estado e a ideologia cristã.
No dia em que Marighella foi morto, frei Betto se encontrava no Rio Grande do Sul.
O frade dominicano havia se transferido para o seminário Cristo Rei na cidade de São
Leopoldo em maio de 1969, portanto cinco meses antes do ocorrido.
Em seu novo endereço, ele desejava preparar-se para deixar o país rumo à Alemanha.
O objetivo era despistar a repressão que acreditava estar em seu encalço desde o início do ano.
Em seu livro Batismo de sangue, o frade narra o episódio em que supostos vendedores de
produtos farmacêuticos estiveram a sua procura no prédio em que então residia no centro de
São Paulo. O porteiro, desconfiando de que eram policiais, o teria alertado sobre a visita
suspeita, o que o levou a passar alguns meses vivendo na clandestinidade até que pudesse
abandonar a capital paulista.58
A transferência para o sul do Brasil foi vista pelo frade dominicano e pelo líder da
ALN como a oportunidade perfeita para estabelecer um sistema que possibilitasse a fuga de
perseguidos políticos para o Uruguai e para a Argentina através das fronteiras brasileiras.
Assim, em novembro de 1969, frei Betto estava encarregado de garantir o funcionamento
logístico do esquema, quando foi surpreendido pelo aviso de que em pouco tempo a polícia
estaria no Cristo Rei a sua procura.
O frade recolheu alguns pertences e antes de pegar um ônibus para Porto Alegre, para
atrasar a perseguição policial, anotou no livro de saídas que retornaria às dezenove horas. Ele
57
Ibid, p. 47.
58
BETTO, 1982, p. 50.
31
permaneceu escondido na capital gaúcha até a manhã do dia 09 de novembro, quando foi
preso em um apartamento no centro da cidade.59
Curiosamente, apesar de estar a mais de mil quilômetros de distância do número 800
da Alameda Casa Branca, onde fora assassinado Marighella, frei Betto passou a figurar entre
os nomes mais citados das notícias subsequentes. Como, por exemplo, na edição do Jornal do
Brasil do dia 06 de novembro. Para explicar como a polícia havia chegado ao encalço do
líder da ALN, a matéria apresentava uma lista de pessoas que estariam presas no
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo por envolvimento com o
caso. Entre eles estava:
Carlos Alberto Cristo, mais conhecido como Frei Beto, que morava em São
Leopoldo, Rio Grande do Sul, e era encarregado de fazer os homens da Ala
Marighela transpor a fronteira para o Uruguai, partindo do convento Cristo Rei,
naquela cidade da fronteira. Lá ele fornecia outra documentação falsa aos foragidos,
além daquela que eles tinham conseguido em São Paulo. Com Joaquim Câmara
Ferreira foi assim.60
O frade afirma que na mesma data se encontrava escondido na casa das Irmãs de Jesus
Crucificado na Rua Castro Alves, centro de Porto Alegre. Poucos dias depois, ele foi preso
nas imediações, cerca de um quilômetro, na Avenida Independência.61
Nas primeiras notícias, frei Betto era apenas um religioso ligado a “ala Marighella”
que ajudava foragidos a atravessar a fronteira.62 Com poucos dias, a nova informação
vinculada pela imprensa foi a suposta apreensão em seu quarto, no seminário, de um vasto
material “subversivo”. Nele se destacariam livros de Lênin, Che Guevara e um grande pôster
59
Ibid, p. 89-105.
60
TERRORISTA prêso por acaso deu la. pista de Marighela. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N.
182, 6 de nov. de 1969. 1º Caderno p.15. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691106&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 1 de set. de 2018.
61
BETTO, 1982, p. 94.
62
POLÍCIA diz que frade ajudava subversivos. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 184, 8 de nov. de
1969. 1º Caderno, p.13. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691108&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 3 de set. de 2018.
32
de Mao Tsé-tung que o religioso alega desconhecer, tendo visto pela primeira vez através dos
jornais.63
Com notícias sobre prisões e solturas de supostos integrantes do “grupo de frei Betto”,
em uma semana, o frade passa a ser tratado como líder de uma guerrilha urbana, ou seja, um
grupo próprio aliado, mas autônomo em relação à Marighella.64 Com grande alarde, os jornais
noticiavam que o religioso teria pedido armas e dinheiro ao líder da ALN que só não pode
atender ao “homem da fronteira” por que foi morto pela polícia.65
Com aspas na palavra “frei”, O Estado de São Paulo do dia 13 de novembro de 1969
claramente questionava a condição de religioso do dominicano, e até mesmo de cristão, ao
mesmo tempo em que descrevia quais seriam as supostas atividades de frei Betto no Rio
Grande do Sul:
Frei Betto afirma que a iniciativa dos jornais de potencializar sua importância era
resultado de um esforço das autoridades gaúchas:
63
SECRETARIO fala no RGS. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.755, 8 de nov. de 1969. p. 9.
Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3471&keyword=Beto%2Cfrei&anchor=5172450&origem=busca
&pd=70e207d65352e61d1d34f31c85e8257a>. Acesso em: 25 de set. de 2018.
DOMINICANO terrorista foi preso no Rio Grande do Sul. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.758,
11 de nov. de 1969. p.5. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3474&keyword=Beto%2CFrei&anchor=5172576&origem=busc
a&pd=abc19a93bfaa2c9facdcd60b2136b673>. Acesso em: 14 de set. de 2018.
POLÍCIA diz que frade ajudava subversivos. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 184, 8 de nov. de
1969. 1º Caderno, p.13. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691108&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 3 de set. de 2018.
64
POLÍCIA gaúcha vai soltar 3 padres do grupo de frei Beto. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N.
191, 19 de nov. de 1969. 1º Caderno, p.13. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691119&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 10 de set. de 2018.
65
POLÍCIA gaúcha afirma que frei Beto pediu até armas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 188,
13 de nov. de 1969. 1º Caderno, p.16. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691113&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 7 de set. de 2018.
APREENDIDAS armas no RGS. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.765, 18 de nov. de 1969. p. 5.
Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3481&keyword=Beto&anchor=5172846&origem=busca&pd=17
d2e53f4817916b2c83e7f46bd2b0f3>. Acesso em: 21 de set. de 2018.
66
“FREI” ajudava terroristas a fugir. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 90, n. 29.019, 13 de nov. de 1969. p.
7. Disponível em: <https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19691113-29019-nac-0007-999-7-
not/busca/Frei+Beto>. Acesso em: 1 de nov. de 2018.
33
67
BETTO, 1982, p. 95.
34
68
AUTORIDADES esperam que Igreja condene frades. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 183, 7
de nov. de 1969. 1º Caderno, p.13. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691107&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 2 de set. de 2018.
69
D. AGNELO pronuncia-se contra o terrorismo. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.758, 11 de nov.
de 1969. p.5. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3474&keyword=Beto%2CFrei&anchor=5172576&origem=busc
a&pd=abc19a93bfaa2c9facdcd60b2136b673>. Acesso em: 14 de set. de 2018.
35
DIFICIL FREI BETO PROVAR INOCÊNCIA”70; em O Estado de São Paulo o título era:
“SCHERER VERBERA A CUMPLICIDADE”71.
Segundo o Jornal do Brasil do dia 18 de novembro de 1969:
O cardeal dom Vicente Scherer afirmou ontem que será difícil para frei Carlos
Alberto Cristo –frei Beto- “desfazer as provas acumuladas contra ele e mostrar sua
inocência” A voz do pastor, programa radiofônico semanal do arcebispado, foi
dedicado à prisão de religiosos e suas ligações com grupos subversivos.
Dom Vicente Scherer classificou como “baixeza” a atitude dos dominicanos
paulistas que “depois de colaborarem com criminosos os entregaram à prisão e à
morte” (Carlos Marighela), porque “quem participa de esquema comum com os
terroristas torna-se conivente com tais crimes e participa de sua responsabilidade”.
[...]
Em sua palestra, sob o título o veredito da justiça, o cardeal-arcebispo de Porto
Alegre negou-se a proferir um julgamento sobre os fatos que envolveram sacerdotes
e seminaristas, porque “diversos aspectos parecem claros e outros se apresentam
ainda confusos”. [...]
O arcebispo de Porto Alegre condenou todos os processos de violência e terrorismo
para a solução dos conflitos e questões políticas e sociais, porque “nesse estágio de
civilização penosamente alcançado não podemos regredir para a lei das selvas, que é
a negação de toda lei, é regime de tirania e opressão do mais forte, do mais astuto,
do mais feroz, do mais maquiavélico, que explora e aniquila os mais débeis e
desprotegidos”.
- só por total inversão de critérios e valores tentaria alguém justificar colaboração
em qualquer esfera com terroristas que assaltam, roubam e matam
desapiedadamente. Quem lhes desse cobertura ou auxílio se tornaria co-responsável
em suas culpas e delitos. Não se entende como se defenderia a singular declaração
de que os dominicanos poder ser condenados pela lei civil, mas não infringiram
nenhum dispositivo da lei canônica. [...]
O cardeal finalizou seu programa radiofônico dizendo que “o terrorismo e os
métodos da violência não tem a ver com esforções infatigáveis e urgentes pelo
estabelecimento da justiça social. Pela implantação de uma organização jurídica,
econômica e social, em que todos se abram caminhos de acesso aos bens da
civilização”.
- quanto mais formal e enérgica nossa repulsa aos processos violentos, mais
decidido nosso apoio e nossa participação nas atividades em prol de uma ordem
social que, mais justa e humana, assegura paz, desenvolvimento e bem-estar –
conclui dom Vicente Scherer.72
70
CARDEAL afirma que é difícil frei Beto provar inocência. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N.
192, 18 de nov. de 1969. 1º Caderno, p.16. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691118&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 11 de set. de 2018.
71
SCHERER verbera a cumplicidade. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 90, n. 29.023, 18 de nov. de 1969.
p.52. Disponível em: <https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19691118-29023-nac-0052-999-52-
not/busca/Scherer>. Acesso em: 9 de nov. de 2018.
72
CARDEAL afirma que é difícil frei Beto provar inocência. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N.
192, 18 de nov. de 1969. 1º Caderno, p.16. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691118&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 11 de set. de 2018.
36
73
FREIRE; SYDOW, 2016, p. 45-83.
74
Ibid, p. 319-341.
75
Ibid, p. 235-254.
37
cópias daquelas que enviam. Assim, deve-se observar que, ao escreverem sobre os aspectos
mais banais do seu cotidiano ou discorrerem sobre temas complexos, elas estão estabelecendo
um pensamento prospectivo. Conscientemente ou não, os correspondentes que guardam seus
registros estão contribuindo para a construção de uma memória que, como nos casos em
questão, servem à compreensão de sua época em suas especificidades factuais e históricas.
Dessa forma, fica evidente que uma das possibilidades do trabalho de utilização de
missivas como fonte/objeto para a pesquisa histórica é a abordagem da sua relação com a
memória. As prováveis dificuldades em se enxergar o aspecto potencial desses registros
residem no fato de que, em alguns casos e diferentemente de outras fontes, eles podem
tangenciar o tema da memória não recordando o passado, mas vislumbrando o que se vai
rememorar no futuro.
Nas mais de 200 cartas que frei Betto escreveu para seus familiares e amigos ao longo
de quatro anos, algumas peculiaridades são evidentes e atestam a sua potencialidade como
objeto/fonte para a pesquisa histórica em função da maneira pela qual o autor estabelece uma
projeção para a memória que iria se construir. A primeira delas é a sua publicidade.
Embora frei Betto afirme recorrentemente que suas cartas não foram escritas com a
intenção de serem publicadas,76 existem indícios suficientes para se afirmar que ele tinha
consciência de que elas, de maneira nenhuma, eram privadas. O próprio autor, em algumas
delas, recomenda a seus interlocutores que as mostrem a terceiros.77 Entretanto, são dois os
fatos que atestam a publicidade de sua correspondência.
O primeiro é o fato de terem sido remetidas do interior de presídios no período em que
se vivia sob um regime autoritário. Em diversas missivas, frei Betto registra ter consciência de
que elas eram lidas e censuradas pelos diretores dessas instituições, podendo ser, até mesmo,
encaminhadas para os órgãos governamentais de segurança e informação.
Outro indício de que o autor tinha consciência de que não existia qualquer garantia de
que a correspondência dos presos, sobretudo dos que tinham envolvimentos políticos,
chegaria às mãos de seus familiares e amigos após a censura do presídio é o caráter
longamente dissertativo acerca dos temas discutidos em suas cartas sem que fizesse
questionamentos aos seus correspondentes. Portanto, não valia a pena investir na construção
de diálogos assíduos. Até porque, também não se sabia se receberia a resposta.
76
Em sua correspondência, frei Betto afirma: “não escrevi essas cartas no intuito de publicá-las nem cuidei de tirar
cópia”. Cf. BETTO, 2008, p.12.
77
Ibid, p. 125.
38
Até semana passada, em sete meses que estamos aqui, era o diretor que censurava
nossas cartas, e podíamos remetê-las duas vezes por semana. Agora transferiu esse
encargo para o serviço de censura da penitenciaria, que cuida da correspondência de
todos os presos. Isso significa algumas restrições. A partir do dia 22 só poderemos
enviar cartas uma vez por semana, e os envelopes de quem nos escreve devem ser
devolvidos para o arquivo. Antes assinávamos recibo num livro e os envelopes
ficavam em nosso poder. A correspondência que nos chega do exterior é enviada a
S. Paulo, a 700 Km daqui, para ser traduzida. Uma carta que recebi das monjas
contemplativas de Blagnac, na França, deu entrada aqui em 25 de novembro; até
agora não chegou as minhas mãos.78
O segundo e mais importante é o fato de suas cartas terem sido publicadas enquanto o
frade ainda se encontrava preso. Aquelas que haviam sido redigidas nos dois primeiros anos
de cárcere foram lançadas na Itália como livro sob o título Dai Soterranei Della Storia, em
dezembro de 1971. Dessa forma, a partir desta data, o dominicano passa a escrever consciente
de que, assim como o primeiro, o segundo conjunto de suas missivas seria publicado.79
Não bastasse saber que suas reflexões não ficariam restritas aos seus pais, irmãos e
amigos, frei Betto ainda tem mostras de que elas poderiam alcançar as mais importantes
autoridades da Igreja e da sociedade. Assim, através delas, ele poderia defender sua visão de
mundo e justificar suas opções político-religiosas. Isso se deu, especialmente, quando o
dominicano foi informado de que o papa havia lido suas cartas:
“Não há dúvida de que Paulo VI está muito atento ao que vocês dizem. Há três
semanas fui chamado a Secretaria de Estado. O adjunto mostrou-me duas folhas
escritas pelo próprio papa: suas reflexões sobre as cartas do Betto. Ele as leu para
mim. Muito edificante; apesar de todo seu trabalho, ele se debruçou longamente
sobre estes textos”. [...]
Isso não chega a me envaidecer, embora me sinta feliz por ver que essa provação
não é inútil. Imagino o papa lendo as cartas, sinto a impressão de um diálogo íntimo
com ele. Vivendo na prisão, tenho certeza de um diálogo íntimo com a Igreja. 80
Assim, tendo provas de sua publicidade e de seu alcance, frei Betto faz das suas cartas
um manifesto por meio do qual defende as ideias que estruturariam sua obra memorialística.
Observa-se que ao escrever para a família e amigos, o autor dirige-se a três grupos
implicitamente: a Igreja, a sociedade e a esquerda.
Curiosamente, apesar de não desenvolver uma reflexão explícita sobre a memória,
através do pensamento prospectivo apresentado em suas cartas da prisão, frei Betto
empreende sua tentativa inaugural de sistematizar um discurso sobre a experiência traumática
78
Ibid, p. 205.
79
Ibid, p. 115.
80
Ibid, p. 150.
39
que vivenciava e, assim, preparar o caminho para um futuro trabalho de enquadramento nos
moldes do roteiro identificado por Michael Pollak81.
Ao tornar públicas as cartas que escrevia relatando o dia a dia na prisão, frei Betto se
apresenta como candidato a porta-voz da narrativa que desejava que se consolidasse
(selecionando quais temas relativos à situação dos dominicanos, entre tantos possíveis, seriam
constantemente abordados). Assim como, através do registro e quantificação constante dos
cárceres pelos quais passou, ele sugere que, na posteridade, esses espaços poderiam cumprir a
função de “lugares da memória”. Por fim, a inclinação que àquela altura o dominicano já
demonstrava para se enveredar pela escrita reminiscente denota sua crença de que no futuro
caberia a ela cumprir a tarefa de produzir novas representações dessa versão do passado.
Ainda que a escrita reminiscente do dominicano não possa ser considerada
propriamente a realização do trabalho da memória descrito pelo sociólogo austríaco, a adoção
por parte do autor de alguns dos procedimentos delineados por Pollak potencializa a
legitimidade da mobilização de suas cartas como fontes para o estudo e a compreensão do
processo de edificação da memória especialmente voltada à ditadura militar no Brasil.
Ao discorrer sobre diversos temas de maneira quase despretensiosa, frei Betto revela
um profundo desconforto com o modo como a participação dos dominicanos presos na luta
armada era tratada na contemporaneidade por jornais e formadores de opinião, manifestando
uma preocupação com o que provavelmente seria a sua representação no futuro. Diante dessa
“ameaça”, o autor faz do conjunto de suas cartas uma exortação para que aqueles
acontecimentos se tornassem, com urgência, objetos de um “trabalho da memória”.
Independentemente de ter consciência quanto a esse processo, ele produz uma seleção de
81
Crítico à conotação exclusivamente positiva atribuída à “memória coletiva” pelo sociólogo francês Maurice
Halbwachs em seu livro homônimo (HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução Beatriz Sidou.
São Paulo: Centauro, 2003.), Pollak propõe a substituição dessa noção pela de “memória enquadrada”, a qual
considerava mais apropriada por explicitar, também, suas consequências negativas, como a condenação de
alguns grupos ao silêncio e de muitos fatos ao esquecimento.
Com essa nova nomenclatura, Pollak pretendeu identificar e esquadrinhar o processo de engendramento de uma
versão dominante sobre o passado. Entretanto, o autor faz questão de salientar que isso não se dá de maneira
natural. Seria necessário um deliberado e árduo trabalho de construção, que exige a realização de procedimentos
determinados e a utilização de alguns instrumentos específicos, para que essa memória cumpra satisfatoriamente
as funções políticas desejadas. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio
de Janeiro: vol. 2, n.3, 1989. p. 9.
O sociólogo austríaco afirma que a memória dominante é um produto do trabalho de enquadramento. Este se dá
através de três procedimentos: Selecionar o que deve ser lembrado, Reinterpretar constantemente o passado à luz
do presente e Reforçar pontos de identificação do grupo para que, assim, mantenham a sua aderência social. Ibid,
p. 9-11.
Para a realização dos procedimentos, ou seja, selecionar, reinterpretar e reforçar seria necessário a utilização de
alguns instrumentos. Pollack elenca entre eles, os historiadores oficiais (vozes da memória), os espaços da
memória (como monumentos, bibliotecas etc) e, por fim, as produções culturais (representantes da memória).
Ibid, p. 10.
40
temas e estratégias que buscam legitimar as opções dos confrades e reafirmar a identidade do
grupo, marcando sua posição na disputa pela construção da versão dominante sobre os fatos.
Percebendo que ganhava força, principalmente na imprensa, a imagem dos religiosos como
hereges para a Igreja, terroristas para a sociedade e traidores para a esquerda, o escritor
dirige-se a cada um desses grupos e procura, estrategicamente, afirmar suas posições.
Frei Betto sabia que era enorme a desconfiança de parte da Igreja em relação aos
dominicanos e severas as acusações de sua ala mais conservadora, que fazia coro àquelas
promovidas pela imprensa diária. Dessa forma, em suas missivas, ele procura rebater os
questionamentos sobre a legitimidade de sua condição de religioso e, até mesmo, de cristão,
além de afirmar sua opção radical pelos mais pobres.
Ontem dom Agnelo Rossi deu entrevista ao Estadão, na qual afirma que a nossa
atitude nada teve a ver com o cristianismo. Disse que não fomos presos nem
confessando, nem comungando... como se o cristianismo fosse apenas confessar e
comungar – coisa, aliás, que Jesus não fez, e ainda acrescentou que “nem todo
aquele que diz ‘senhor, senhor’ entrará no reino dos céus”. 82
Assim, em muitas cartas o autor transfere o foco da preocupação com a memória que
se teria dos dominicanos para contrapor as atitudes destes às consequências de uma postura
omissa, isto é, acerca das atitudes da instituição diante das arbitrariedades do regime. Ou seja,
ele salienta que em um futuro próximo, a passividade dos bispos perante as prisões, mortes,
torturas e desaparecimentos poderia ser alvo de muitos mais questionamentos do que as ações
de jovens religiosos que colaboraram com uma organização de luta armada.
Quando tudo isso for contado no futuro, uma pergunta ficará: e a Igreja, não disse
nada? Digo isso não para que venham em nossa defesa, mas porque é sua obrigação
defender os direitos da pessoa humana, promover os pobres, combater as (riscado
pela censura do presídio). Esta pergunta paira sobre a Alemanha, onde 6 milhões de
judeus foram dizimados sem que “ninguém visse”.83
“do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa.”85 Essa característica é
reforçada por Pierre Nora ao afirmar que ela, por ser viva e dinâmica:
Para enfrentar as acusações da ala conservadora da Igreja e dos jornais que afirmavam
que eles não eram verdadeiramente cristãos, frei Betto adota uma segunda estratégia de
defesa: a desqualificação da denúncia. O que, para ele, distinguia os dominicanos daqueles
católicos que os acusavam não eram as suas ações práticas, mas seus pressupostos teóricos.
Assim, as denúncias das quais eram alvo não passavam de uma profunda incompatibilidade
de princípios que gerava uma também profunda incompreensão.
Buscando legitimar as opções dos dominicanos de se envolverem diretamente com a
política nacional, chegando a apoiar a violência revolucionária, frei Betto procura atribui-las a
uma nova concepção sobre qual deveria ser o papel da Igreja na sociedade e sobre a
importância da promoção da justiça social na história da salvação.
Em suas cartas, o dominicano defende a tese de que a Igreja Católica passava por um
processo de transformação que, embora lento, já dava seus frutos e era irreversível. Desse
modo, ele filia a visão que professa sobre as responsabilidades da instituição com a promoção
da justiça e o processo soteriológico à essa nova visão do cristianismo que teria surgido com o
Concílio Vaticano II, em 1962.
A renovação pela qual a Igreja passava não deixava, em sua perspectiva, de gerar o
embate entre visões distintas do cristianismo. Para o autor, aquela, anterior ao concílio e
marcada pelo triunfalismo clerical, seria incapaz de compreender esse novo entendimento do
papel da instituição na sociedade, ao qual os dominicanos se perfilhavam.
Assim, a demonstração da existência desse embate deixaria claro o quanto a
incompreensão e a ignorância seriam as verdadeiras razões das acusações explícitas ou
veladas de que os dominicanos presos não passavam de comunistas que se infiltraram na
Igreja para arregimentar os quadros religiosos. Para o autor, a gravidade dessas denúncias era
reforçada pelos jornais e agentes da ditadura que não cessavam de questionar se as atitudes do
grupo permitiriam que ainda fossem considerados cristãos e, principalmente, membros da
Igreja Católica.
85
Ibid, p. 204.
86
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: PUC-SP. n.
10, 1993. p. 9.
42
A visão religiosa de jovens como frei Betto e seus confrades centrada nas ideias de
que a justiça social é a antecipação do estabelecimento do Reino de Deus e de que a história
humana é parte fundamental do processo de salvação – negando, assim, a proeminência da
alma em relação ao corpo –88 foi, sem dúvida, profundamente influenciada por esse
movimento de renovação da Igreja e reconciliação com o presente. Por isso, seu envolvimento
com as esquerdas e a luta armada foi visto pelos setores conservadores, civis, militares e
eclesiásticos, como um sinal claro de que as mudanças promovidas pela Igreja no século XX
eram um equívoco temerário para ela e para a sociedade como um todo, pois, sem perceber,
estaria oferecendo quadros e legitimidade para o “comunista internacional” subverter as
hierarquias naturais e a ordem social.
Analisando com cuidado as palavras introdutórias das encíclicas sociais da Igreja,
partindo da Rerum Novarum até a Populorum Progressio, é evidente que essas mudanças nos
ritos, no léxico e nos temas do universo católico nasceram da preocupação dos pontífices com
a percepção de que as estruturas tradicionais já não atendiam às demandas de um presente
que, conforme se passava o tempo, com mais velocidade se transformariam o que,
consequentemente, tornava o povir mais ameaçador. Dessa forma, para os papas, o passado e
o futuro se tencionavam de tal maneira, no final do século XIX e primeira metade do XX, que
87
BETTO, 2008, p. 44.
88
Ibid, p. 90.
43
89
Convencionalmente, tomou-se a publicação da encíclica Rerum Novarum, em 1891, pelo papa Leão XIII (1878-
1903), como ato inaugural de uma nova postura da Igreja Católica perante o universo temporal. O documento é
enfático na condenação da luta de classes, de certas práticas liberais e em defender o caráter natural do direito à
propriedade privada. Interpretado como uma tentativa da Igreja, por fim, romper o distanciamento que desde o
século XV havia se estabelecido entre ela e a sociedade civil, e reconciliar-se, dessa maneira, com a
modernidade, o documento, a despeito da inovação de sua temática, ainda conserva a concepção de que, mesmo
revestida de toda a legitimidade, apenas contingencialmente a instituição deveria pronunciar-se sobre os
conflitos na esfera temporal. IGREJA CATÓLICA. Papa (1958-1963: Leão XIII). Carta Encíclica Rerum
Novarum. In. SANCTIS, Frei Antônio de. Encíclicas e documentos sociais: da “Rerum Novarum” a
“Octogesima Adveniens”. São Paulo: LTR, 1972. p. 13-14. Segundo Leão XIII, não havia dúvidas de que a
Igreja deveria se importar com a vida material de seus seguidores. Entretanto, como a raiz de todos os conflitos
humanos era o abandono de ensinamento evangélico (Ibid, p. 28) ela continuaria a centrar seus esforços na
propagação da doutrina cristã. Ou seja, quando necessário, ela abordaria os problemas temporais para anunciar o
Cristo como sua única solução e denunciar as doutrinas “errôneas e falazes” (Ibid, p. 13): “É com toda confiança
que Nós abordamos êste assunto, e em tôda a plenitude do Nosso direito; porque a questão de que se trata é de tal
natureza, que, a não se apelar a religião e para a Igreja, é impossível encontrar-lhe uma solução eficaz. [...]
certamente uma questão dessa gravidade demanda ainda de outros a sua parte de atividade e de esforços: isto é,
dos governantes, dos senhores e dos ricos, e dos próprios operários, de cuja sorte se trata. Mas, o que Nós
afirmamos sem hesitação, é a inanidade da sua ação fora da Igreja. É a Igreja, efetivamente, que haure no
Evangelho doutrinas capazes ou de pôr termo ao conflito ou ao menos de o suavizar, expurgando-o de tudo o que
êle tenha de severo e áspero [...].” Ibid, p. 20. Entretanto, a Igreja não se contenta com indicar o caminho que
leva à salvação; ela conduz a esta e aplica por sua própria mão ao mal o conveniente remédio. [...] Nem se pense
que a Igreja se deixou absorver de tal modo pelo cuidado das almas, que põe de parte o que se relaciona com a
vida terrestre e mortal. [...] os costumes cristãos desde que entram em ação, exercem naturalmente sôbre a
prosperidade temporal a sua parte de benéfica influência. Ibid, p. 27. Foi apenas em 1961, por meio da encíclica
Mater et Magistra, escrita pelo papa João XXIII, que de maneira mais incisiva a Igreja afirmou como sua missão
– dada por Jesus Cristo – ser mãe e mestra das nações para que os homens encontrem salvação plena. Ou seja,
deixar patente que comprometer-se com a promoção do homem materialmente, assim como já se fazia em
relação à vida espiritual, era uma obrigação evangélica e não uma benevolência. Retomando os preceitos da
encíclica leonina de anunciar os ensinamentos evangélicos como o único caminho para a salvação da alma, e
enunciar as injustiças e falsas doutrinas sociais como empecilhos para que o homem viva de maneira
completamente digna, João XXIII aspirou transformar a contingência em atitude sistemática: “A doutrina de
Cristo, com efeito, une, por assim dizer, a terra ao céu, pois assume o homem na sua totalidade, alma e corpo,
intelecto e vontade, ao mesmo tempo em que o impele a elevar a mente das mutáveis condições de vida presente
às alturas da vida eterna, onde lhe será dado gozar um dia de uma felicidade e de uma paz que não terá fim.”
IGREJA CATÓLICA. Papa (1958-1963: João XXIII). Carta Encíclica Mater et Magistra. In. SANCTIS,
1972, p. 225. O papa justificava a exortação para que os católicos agissem na esfera temporal para promover a
justiça social através da afirmação atribuída à Jesus de que ele era “o caminho, a verdade e a vida”; ou seja, de
que ao se referir à salvação da alma, ele não deixa de considerar as necessidades do corpo:
“Essa a razão pela qual, ainda que a Igreja caiba santificar as almas e faze-las participantes dos bens eternos. Ela
se preocupa, entretanto com as necessidades cotidianas dos homens, não só as que dizem respeito à subsistência
e às condições de vida, como as que se referem ao seu bem-estar e à sua prosperidade, sob todas as formas que
possam assumir com o progresso dos tempos.” Ibid, p. 225. Portanto, a Igreja, tendo como essência de sua
doutrina a tomada do homem como “o fundamento, a causa e o fim de todas as instituições sociais” (Ibid, p.
282), deveria empenhar-se para que se somasse a salvação da alma à dignidade do corpo para que, assim, o ser
humano encontrasse a sua integralidade. O convite ao abandono da exclusividade do espírito, característica do
período tridentino, em favor da promoção do homem em sua totalidade, como queria João XXIII, foi retomado
pelo papa Paulo VI na encíclica Populorum Progressio, seis anos após a publicação da Mater et Magistra. O
pontífice afirma a necessidade de que a Igreja assuma uma nova postura perante o mundo moderno, mostrando-
se atenta aos “sinais dos tempos”: “Fundada para estabelecer já neste mundo o reino do céu e não para conquistar
um poder terrestre, a Igreja afirma claramente que os dois domínios são distintos, como são soberanos os dois
poderes, eclesiástico e civil, cada um na sua ordem. Porém, vivendo na história, deve ‘estar atenta aos sinais dos
tempos e interpretá-los à luz do Evangelho’. Comungando nas melhores aspirações dos homens e sofrendo de os
ver insatisfeitos, deseja ajudá-los a alcançar o pleno desenvolvimento e por isso, propõe-lhes o que possui como
próprio: uma visão global do homem e da humanidade”. IGREJA CATÓLICA. Papa (1963-1978: Paulo VI).
Carta Encíclica Populorum Progressio. In. SANCTIS, 1972, p. 397.
44
Nenhuma ambição terrena move a Igreja, mas unicamente esse objetivo: continuar
sob a direção do espírito paraclito, a obra de cristo, que veio ao mundo para dar
testemunho da verdade, não para jugar mas para salvar, não para ser servido mas
para servir. Para levar a cabo essa missão, é dever da Igreja investigar a todo o
momento os sinais dos tempos, e interpretá-los a luz do Evangelho; para que assim
possa responder, de modo adaptado a cada geração, as eternas perguntas dos homens
acêrca do sentido da vida presente e futura, e da relação entre ambas. É, por isso,
necessário conhecer e compreender o mundo em que vivemos, as suas esperanças e
aspirações, e o seu caráter tantas vezes dramático.92
90
João XXIII faleceu em 3 de junho de 1963, em meio ao Concílio. Após dezoito dias, seu sucessor, Paulo VI, foi
eleito o novo pontífice.
91
BEOZZO, 2001, p. 27.
92
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição pastoral Gaudium et Spes In. SANCTIS, 1972, p. 299.
93
BEOZZO, 2001, p. 391.
45
94
Ibid, p. 32.
95
BETTO, 1982, p.61.
96
CELAM. Conclusões de Medellín. 5ª edição. São Paulo: Edições Paulinas, 1984. p. 5.
97
Ibid, loc. Cit.
98
SERBIN, 2008, p. 164.
46
historicamente ela já havia alcançado. Afirmavam ser aquele o momento de agir para
promover o desenvolvimento humano:
O mandato particular do Senhor, que prevê a evangelização dos pobres, deve levar-
nos a uma distribuição tal de esforços e de pessoal apostólico, que deve visar,
preferencialmente, os setores mais pobres e necessitados e os povos segregados por
uma causa ou outra, estimulando e acelerando as iniciativas e estudos que com esse
fim se realizem.101
Desse modo, fica evidente que a década 1960 trouxe consigo uma verdadeira
revolução para o mundo católico ocidental. As mudanças na concepção da Igreja sobre sua
missão no mundo provocaram uma transformação significativa, também, nos hábitos,
linguagens e preocupações de seus membros ordenados. A concomitância entre essa
“gestação” de um novo sacerdócio e o recrudescimento dos segmentos conservadores no
Brasil foi o processo histórico que colocou o clero progressista brasileiro em rota de colisão
com Doutrina de Segurança Nacional102 adotada pelos governos militares, após o golpe de
1964.
Apesar da veemência com que o dominicano defendia as causas que o levaram à
prisão, e de sua professada certeza quanto à nobreza delas, em sentido prático era necessário
deixar evidente para as alas conservadoras da Igreja, para a sociedade e, mais do que tudo,
para a posteridade, que os frades presos eram apoiados por importantes membros da
99
CELAM. op. cit., p. 5.
100
Ibid, p. 8.
101
Ibid, p. 146.
102
BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Orgs.). O Brasil Republicano: O Tempo da Ditadura. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003. p. 15-42.
47
hierarquia Católica. Isso fica claro ao se observar o registro de todos os bispos, padres e
membros de ordens religiosas que os visitaram na prisão. Aqueles que lá estiveram mais de
uma vez têm seus nomes repetidos por completo. Entre eles, se destacam os nomes de: Dom
Vicente Scherer103, Dom Agnelo Rossi104, Dom Umberto Mazzoni105, Dom Avelar
Brandão106, Dom Tomás Bauduíno107, Dom Paulo Evaristo Arns108, Dom José Gonçalves da
Costa109, Dom Lucas Moreira Neves110; também pelos representantes da Ordem dos Frades
Pregadores: padre Vincent de Couesnongle111, padre Aniceto Fernandez112 e frei Domingos
Maia Leite113.
O autor também faz questão de registrar o gesto de apoio que recebeu do Vaticano por
meio dos representantes da ordem religiosa que transmitiram aos prisioneiros, em suas visitas
e pelas correspondências, a certeza de que Paulo VI tinha ciência da situação em que se
encontravam os dominicanos brasileiros, de que recebera a carta enviada pelos prisioneiros, e
ainda, que escreveu uma reflexão acerca das cartas de frei Betto.114 Para ele, esse era o mais
importante atestado de legitimidade de suas opções.
Embora o envolvimento de leigos e religiosos com a oposição ao regime – como por
exemplo o engajamento de frei Betto e seus confrades no auxílio à luta armada – salte aos
olhos como a razão maior dos atritos pontuais entre os artífices da ditadura militar brasileira e
da Igreja, esses conflitos não foram causados apenas por essas atitudes individuais.
O acossamento de católicos como no caso dos dominicanos que colaboravam com a
ALN foi, na verdade, a manifestação mais visível de uma insatisfação tácita que o alto escalão
do governo nutria por conta das mudanças pelas quais a instituição115 passou a partir do
advento da década de 1960. Essa determinação acentuada dos órgãos de repressão para deter
esses quadros hierarquicamente inferiores era, inclusive, uma forma de atingir os bispos, já
que por suas posições proeminentes e prestígio social não era conveniente punir diretamente
membros do episcopado. Ou seja, já que eles gozavam de imunidade diante da repressão,
103
Cardeal, Arcebispo de Porto Alegre, RS (1947-1981).
104
Cardeal, Arcebispo de São Paulo, SP (1965-1970).
105
Núncio apostólico (1969- 1973).
106
Cardeal, Arcebispo de Salvador, BA (1971-1986).
107
Bispo de Goiás (1967-1998).
108
Arcebispo metropolitano de São Paulo, SP (1970-1998).
109
Bispo da diocese de Presidente Prudente, SP (1969-75); a qual pertence à cidade de Presidente Venceslau-SP,
onde frei Betto cumpriu a última parte de sua pena.
110
Bispo-auxiliar de São Paulo, SP (1967-1974).
111
Representante do mestre da Ordem dos Frades Pregadores.
112
Mestre Geral da Ordem dos Frades Pregadores
113
Superior dos Dominicanos no Brasil.
114
BETTO, 2008, p. 150.
115
MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e a política no Brasil, (1916-1985). Tradução Heloisa Braz de
Oliveira Prieto. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 101-165.
48
Não esqueçamos que os padres tem muito mais contato com o povo,
particularmente com o povo pobre [...]. Eles podem fazer muito mal. Para mim,
prezados camaradas, mesmo católicos, esses indivíduos traíram a Revolução, e estão
traindo. Eles hoje estão trabalhando para a oposição, não tanto para essa que fala no
congresso e na imprensa, mas para os que queriam em 64 comunizar o Brasil, para
os cassados, os corruptos e os revanchistas [...] Os mandões comunistas, russos,
chineses ou cubanos estão batendo palmas porque a Igreja, no Brasil, trabalhou para
eles.118
116
A morte do padre Antônio Henrique Pereira Neto em 25 de março de 1969 e a expulsão do teólogo belga José
Comblin em março de 1972 podem ser citadas entre os exemplos da utilização dessa tática. Ambos eram muito
próximos a Dom Helder Câmara, grande desafeto da Ditadura militar. Ibid, p. 120.
117
SERBIN, 2001, p. 133.
118
Ibid, p. 107.
49
insubordinação de seus quadros e a brecha pela qual o ideário comunista seria introjetado no
léxico de padres e freiras.
Um bom exemplo de que a Igreja vivia um momento de questionamento da sua
hierarquização foi o surgimento de um movimento de seminaristas pedindo mudanças
drásticas na vida sacerdotal e o elevado número de padres que deixaram a batina após o
Concílio Vaticano II.
Motivado pela abertura do Concílio, um grupo de seminaristas do Rio Grande do Sul
fundou no dia 11 de outubro de 1962 a União dos Seminaristas Maiores do Sul (USMAS),
tomando como sua porta-voz a revista O seminário.119
Em seus primeiros anos, a USMAS buscou estabelecer contato com os seminaristas de
outros estados promovendo reuniões em todo o território nacional. Desse modo, em 1967, a
associação já contava com subdivisões em outras regiões do Brasil denominadas USMAS-1,
USMAS-2 e USMAS-3. A partir desse período, a sua maior aspiração era a criação de uma
organização que representasse todos os seminaristas do país, além da participação de alguns
de seus membros das reuniões da CNBB.120
No entanto, o que realmente desafiava a visão hierárquica de bispos e militares eram
suas reivindicações. Segundo Serbin, as mudanças sociais e políticas dos anos 1960 levaram a
um questionamento do papel tradicional do padre. O mundo estava se transformando depressa
e esse processo deixava evidente, para uma ala da Igreja, que o sacerdócio de molde tridentino
não se adequava aos novos tempos. O autor qualifica esse período como de “mal-estar” para
os que já eram ordenados ou desejavam abraçar a vocação. Assim, o concílio convocado pelo
papa João XXIII era visto como a oportunidade perfeita para que se gestasse um novo tipo de
clérigo.121
Para os seminaristas somente mudanças significativas poderiam transportar os padres
do século XVI para o século XX. Entre elas, a mais radical era sem dúvida a liberação da
obrigatoriedade do celibato pela sua adoção opcional; outro desejo era o abandono da
formação enclausurada nos seminários em função de uma maior inserção na realidade dos
leigos por meio da criação de pequenas comunidades em casas e apartamentos nos bairros
residenciais e da possibilidade de que os futuros padres se profissionalizassem nas mesmas
atividades que qualquer homem comum; também era uma aspiração a atualização dos
119
SERBIN, Kenneth P. Padres, Celibato e conflito social: uma história da Igreja Católica no Brasil. Tradução
Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 171.
120
Ibid, p. 172.
121
Ibid, p. 196.
50
currículos, possibilitando assim o estudo das ciências sociais no lugar da filosofia; por fim, se
buscava o fim do autoritarismo dentro da Igreja.122
Não demorou muito tempo para que as reinvindicações dos seminaristas motivassem a
tomada de uma atitude enérgica por parte dos bispos. Assim, a USMAS foi fechada em 1968.
No ano seguinte foi a vez da revista O seminário, que continuava a ser a voz do movimento,
embora tivesse mudado de nome e abandonado as pretensões eclesiásticas para assumir um
tom mais radical.123
Apesar do movimento dos seminaristas ter sido controlado pela mão forte da
hierarquia, a crise de identidade continuou a assolar os clérigos no mundo todo.124
Especificamente no Brasil, aquilo que era um mal-estar pré-conciliar se transformou em
confusão depois do Vaticano II e, para muitos, em frustração por não promover a revolução
desejada125, o que levou um número considerável de padres a abandonar o sacerdócio na
primeira década depois do sínodo. Segundo Serbin, “Somente no Brasil, quase 2 mil padres
deixaram a batina entre 1967 e 1976, fazendo com que o total de padres em 1977 caísse para
abaixo dos costumeiros 13 mil.”126
122
Ibid, p. 175-186.
123
Ibid, p. 185-193.
124
BEOZZO, José Oscar. Padres conciliares brasileiros no Vaticano II: participação e prosopografia - 1959-
1965. 2001. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Carlos, 2001. p. 36.
125
SERBIN, 2008, p. 195.
126
Id, 2001, p. 102.
127
SERBIN, op. cit., p. 195.
51
oportunidade para que a “subversão” se alastrasse pela instituição e utilizasse sua inserção
social para alcançar a população mais pobre.
Kenneth Serbin, em Diálogos na sombra, detalha as teses defendidas pelo general
Adolpho João de Paula Couto, integrante da seção de guerra psicológica do Estado-Maior do
Exército, no documento A guerra revolucionária e a Igreja, à luz de Medellín, apresentado
em janeiro de 1971, durante o segundo encontro da comissão “bipartite” que aconteceu no
colégio “Sagrado Coração de Jesus”.128
O desejo do general era atestar o quanto os bispos eram ingênuos e mal informados
diante das táticas do movimento comunista internacional. Dessa maneira, sem
intencionalidade, a nova Doutrina Social da Igreja ajudava os subversivos. O exemplo
utilizado pelo militar foi o documento final da Conferência Geral do Episcopado Latino
Americano (CELAM) que ocorrera em 1968 na cidade colombiana de Medellín.
Segundo Serbin, Paula Couto procurava demonstrar as proximidades existentes no
documento da Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano entre as suas temáticas e
os jargões do movimento comunista. Assim, para a intelligence do regime era quase
impossível distinguir onde terminava a aspiração por “justiça social” e onde começava a
“subversão”.
Na visão do general Paula Couto, ao falarem em “opressão”, “burguesia” e
“imperialismo”, os bispos teriam exagerado quanto à desigualdade social, o que incentivava a
luta de classes, de acordo com o ideal comunista, além de produzirem uma rejeição pelos
Estado Unidas da América (EUA), considerada injusta por não reconhecer que o país seria o
líder e defensor da civilização cristã ocidental contra a expansão comunista.129
Almejando abandonar o caminho teórico e intelectualizado pelo qual a discussão
estava se enveredando, outra voz do regime se levantou. O assessor do Ministro da Justiça
Alfredo Buzaid, Dantas Barreto, fez colocações ríspidas para uma reunião de conciliação e
causou desconforto entre os participantes ao “pôr as cartas na mesa”.
Sua missão era deixar claro que não era desejo do regime entrar em conflito com a
Igreja Católica. No entanto, isso só seria possível se a instituição se concentrasse estritamente
no campo que lhe correspondia, ou seja, o espiritual. Em suas palavras, “religião e política são
esferas distintas [...] Não compete à Igreja promover o bem comum temporal.”130
128
Id, 2001, p. 249.
129
Ibid, p. 250.
130
Ibid, p. 254.
52
131
D. CASTRO Pinto explica as crises na Igreja. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.753, 6 de nov. de
1969. p. 4. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3469&keyword=Marighelas&anchor=5172384&origem=busca&
pd=0b8e8ee87e4708173f00d9048c309301>. Acesso em: 23 de set. de 2018.
AS ALTERAÇÕES principais. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.774, 27 de nov. de 1969. P. 15.
Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3490&keyword=Beto&anchor=5173207&origem=busca&pd=40
9140dfcbdb8dfb8868029227d11d65>. Acesso em: 13 de set. de 2018.
132
A PARTIR do próximo domingo começam as mudanças na missa. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n.
14.774, 27 de nov. de 1969. p. 15. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3490&keyword=Beto&anchor=5173207&origem=busca&pd=40
9140dfcbdb8dfb8868029227d11d65>. Acesso em: 13 de set. de 2018.
CHARBONNEAU, Paul-Eugéne. A Igreja: renovada ou acabada. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n.
14.770, 23 de nov. de 1969. 8º Caderno folha ilustrada, p.73. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3486&keyword=igreja%2CIgreja&anchor=5173095&origem=bu
sca&pd=a81bc03c8547da2a2688164b9113fb0d>. Acesso em: 13 de set. de 2018.
53
na Igreja, não se pode ignorar que de alguma forma os jornais relacionavam os dois
fenômenos.133
A imprensa, como em outras oportunidades, fez às vezes de porta-voz das autoridades
e, assim, sutilmente se empenhava em estabelecer uma distinção entre aqueles que deveriam
ser considerados falsos ou verdadeiros cristãos.134 Pode-se tomar como exemplo a notícia, já
citada, de O Estado de São Paulo, em que se contesta a autenticidade do status religioso de
frei Betto utilizando as aspas na designação que antecede seu nome. Se ela for comparada
com uma matéria do mesmo jornal do dia 20 de novembro, essa, por assim dizer, curiosa
“preocupação religiosa” fica ainda mais evidente.
Naquela manhã, O Estado de São Paulo informava que vinte delegados assinaram
uma moção de apoio aos três companheiros de profissão que haviam sido excomungados pelo
bispo da cidade de Ribeirão Preto, no interior paulista, dom Felício César da Cunha
Vasconcelos, por conta da prisão e tortura da irmã franciscana Maurina Borges, em outubro
de 1969.135
O aspecto curioso da notícia reside nos termos pelos quais o jornal qualifica os
delegados excomungados: “Católicos Apostólicos Romanos”, tratamento respeitoso que nem
mesmo os clérigos mais admirados pelo regime recebiam. Ao passo que o bispo responsável
pela excomunhão nem mesmo tem seu nome mencionado.
133
Na mesma página que apresentava a reportagem em que o bispo auxiliar do Rio de Janeiro Dom José de Castro
Pinto falava sobre as crises na Igreja Católica, a Folha de S. Paulo publicou uma matéria em que o general Paula
Couto alertava sobre o “perigo da guerra revolucionária”. Cf. O GEN. Paula Couto, na formatura do ECEME,
adverte para o perigo da guerra revolucionária. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano XLIX, n. 14.753, 6 de nov. de
1969. p. 4. Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3469&keyword=Marighelas&anchor=5172384&origem=busca&
pd=0b8e8ee87e4708173f00d9048c309301>. Acesso em: 23 de set. de 2018.
134
FREI SECONDI em conferência cita como é o cristão ideal. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N.
189, 14 de nov. de 1969. 1º Caderno, p.7. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691114&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 8 de set. de 2018.
PADRE Bezerra condena frades e livra a Igreja. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXIX, N. 190, 15 de
nov. de 1969. 1º Caderno, p.15. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19691115&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 9 de set. de 2018.
135
DELEGADOS apoiam excomungados. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 90, n. 29.025, 20 de nov. de
1969. p.9. Disponível em: <https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19691120-29025-nac-0009-999-9-
not/busca/excomungados>. Acesso em: 7 de nov. de 2018.
54
Dessa maneira, fica evidente que esses religiosos presos foram tomados pelas
autoridades e pela imprensa como perfeitos representantes da ala eclesiástica entusiasmada
com o seu papel relacionado à mudança social. Essa “subversão da ordem” seria introduzida
em pequenas doses; a começar pela mudança nos temas dos documentos oficiais, na
linguagem dos fiéis, na liturgia secular da missa e até mesmo nos hábitos dos clérigos.
Outra preocupação manifesta pelo frade em sua correspondência era com a opinião
pública sobre os dominicanos, visto que ela era profundamente influenciada pela imprensa
que os qualificava como terroristas. Assim como em relação à Igreja, o autor procura
denunciar a omissão da sociedade civil, questionando como essa atitude seria lembrada no
futuro.
Nesse sentido, diversas vezes o autor compara a indiferença da sociedade brasileira
diante das arbitrariedades do regime, que se instaurou com o golpe de 1964, com a postura da
sociedade alemã diante dos crimes do regime nazista. Com essa analogia, ele procura deixar
patente a afirmação de que os dominicanos são vítimas do regime autoritário, e não inimigos
do país, como queriam fazer crer as autoridades que os mantinha presos137.
136
DELEGADOS apoiam excomungados. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 90, n. 29.025, 20 de nov. de
1969. p.9. Disponível em: <https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19691120-29025-nac-0009-999-9-
not/busca/excomungados>. Acesso em: 7 de nov. de 2018.
137
O exemplo da memória do Holocausto foi, sem dúvida, uma referência fundamental para a edificação do
discurso reminiscente de frei Betto. A análise aprofundada de seu papel nesse processo está exposta no terceiro
capítulo deste trabalho.
55
Ontem os jornais publicaram nota oficial do governo; afirma que no Brasil não
existem presos políticos, só bandidos. Veja a que fui promovido! Bandido para o
Estado e frade para a Igreja. Mas Cristo não foi crucificado como marginal ao lado
de dois ladrões? Portanto, para nós a piada não é nova.139
138
BETTO, 2008, p. 48.
139
Ibid, p. 43.
140
POLLAK, 1992, p. 205.
56
Também o historiador francês Jacques Le Goff em sua clássica obra História e Memória
reafirma essa observação:
A memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças
sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das
grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e
dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são
reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva.141
141
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução Bernardo Leitão. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.
p. 426.
57
forma de punir os indivíduos, mas, principalmente, como uma maneira de evidenciar o quanto
o novo posicionamento da instituição estava equivocado.
Fica claro, que para uma parcela dos artífices do regime esta era uma preocupação
autêntica desde o fim dos anos 1950. Dada a importância e influência da Igreja Católica no
Brasil, se nenhuma providência fosse tomada, não tardaria para que esse “mal” que acometia
a instituição se alastrasse pela sociedade brasileira; o que para alguns já era visível.
O suposto abandono do respeito intransigente às hierarquias na Igreja daria contornos
reais à percepção que as elites tinham da política nacional, cada vez mais enquadrada pelas
exigências da mobilização dos de baixo, como os estudantes da União Nacional dos
Estudantes (UNE), os camponeses das ligas de Francisco Julião e os operários dos sindicatos
reunidos no Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). Para parcelas da conspiração e da
coalizão anti-Goulart, a preservação da ordem “natural” da sociedade era uma premissa
fundamental para o desenvolvimento do Brasil como nação. Ou seja, permitir que figuras do
“baixo clero” como frei Betto abraçassem o ativismo político das esquerdas sem que houvesse
uma reprovação categórica por parte dos bispos significaria permitir a corrosão da ordem, o
que seria sucumbir à anarquia que destruiria não só a Igreja como também o próprio país.
No entanto, é imprescindível que se advogue uma visão complexa e nuançada da
realidade, de maneira a evitar reducionismos teóricos e determinismos. Como foi
demonstrado, parte da elite civil e militar autenticamente enxergava as mudanças na Igreja
Católica como um problema digno de preocupação para o país; constatação esta que, de
maneira nenhuma, deve anular a certeza de que tantos outros, ardilosamente,
instrumentalizaram essa preocupação para, transvestidos com boas intenções, pudessem
defender a preservação de seus privilégios e provocar um clima de instabilidade política. Da
mesma forma que no caso específico dos membros politicamente engajados da instituição,
como frei Betto, havia quem de fato enxergasse seu ativismo como uma ameaça real e aqueles
que apenas se valeram do medo da anarquia e do comunismo para manterem seus próprios
poderes e vantagens.
Não por acaso, essas mesmas observações se aplicam às insatisfações com o governo
de João Goulart, o que evidencia que as razões para os conflitos com a Igreja ligam-se
intimamente a algumas das próprias razões do golpe de 1964.
A partir de 1963, a conspiração que se tramava desde a crise da posse do João Goulart
em 1961, entre uma pequena parcela das forças armadas e do empresariado brasileiro, tendo
como centros iniciais de articulação o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e o
58
Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD)142, começou a ser reforçada por civis e
militares que, movidos por distintas motivações, a transformariam no início de 1964 em uma
coalizão anti-Goulart.143
Segundo Argelina Cheibub Figueiredo:
O golpe contra o governo, em 1964, foi saudado com satisfação por grupos cuja
oposição à intervenção militar havia sido crucial em 1961. Isso significa que a
conspiração foi uma condição necessária, mas não suficiente para o sucesso do
golpe de 1964. Muitos outros fatores contribuíram para fortalecer a conspiração e
para converter um grupo golpista minoritário em uma ampla coalizão de apoio a
derrubada do governo constitucional.144
142
DREYFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado – ação política, poder e golpe de classe. Rio de
Janeiro: Vozes, 1981. p. 155.
143
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “Perigo Vermelho”: o anticomunismo no Brasil (1917-
1964). São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 264.
144
FIGUEIREDO, Argelina Cheibub. Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política: 1961-
1964. São Paulo: Paz e Terra, 1993. p. 171.
145
Ibid, p. 171-185.
146
BANDEIRA, Muniz. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil (1961- 1964). 4. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1978. p. 75-80.
147
MOTTA, 2002, p. 259.
59
148
Ibid, p. 9-10.
149
Ibid, p. XXII.
150
Ibid, p. XXIV.
151
Ibid, loc. Cit.
60
152
Ibid, p. XX.
153
Ibid, p. 234-276.
154
Ibid, p. 276.
155
Ibid, loc. Cit.
61
sociais contra um determinado inimigo, nesse caso, o presidente João Goulart. Para parte
daqueles que apoiaram a quartelada e a ditadura subsequente, figuras como frei Betto
representavam, de fato, a infiltração comunista na Igreja. Por isso, tornar pública suas
atividades “subversivas” era uma forma de pressionar a instituição para que repensasse seu
posicionamento acerca da realidade social, deslegitimando, assim, seus membros que,
porventura, tenham se aventurado na oposição ao regime.
A segunda motivação para que a coalizão anti-Goulart arregimentasse integrantes foi a
crença de que o governo estava atacando as hierarquias; o que, para muitos, se somava à
primeira. Esse elemento foi especialmente importante para a adesão de parte da ala legalista
das forças armadas. Para a maioria da oficialidade, a articulação política de militares de baixa
patente e as decisões do presidente em relação a alguns episódios de insubordinação foram o
“fiel da balança” para que se considerasse a situação insustentável e decidisse apoiar uma
ação para deter a “anarquia” que teria se instalado nos quartéis e na própria sociedade.
Tal percepção das forças armadas foi instigada, sobretudo, por dois episódios. O
primeiro foi a insurreição de sargentos em Brasília nos dias 11 e 12 de setembro de 1963; e o
segundo foi a comemoração do biênio da fundação da Associação dos Marinheiros e
Fuzileiros Navais do Brasil no sindicato dos metalúrgicos do Rio de Janeiro que ocorreu no
dia 25 de março de 1964.
No primeiro, reagindo à decisão do Supremo Tribunal Federal de considerar
inelegíveis os sargentos eleitos no pleito de 1962, o que acarretou a perda dos mandatos, um
grupo de subtenentes e sargentos das forças armadas e auxiliares do Brasil, por meio de uma
assembleia convocada às pressas, decidiu tomar o poder pelas armas.
A ação dos revoltosos logo levou à reação das autoridades. Com a participação do
comando das três forças armadas, concentrados no prédio do Ministério da Guerra, e a
chegada de reforços no final da tarde do dia 12, o movimento foi derrotado e mais de 500
militares foram presos.157
156
FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2011. p. 361.
157
Ibid, p.352.
62
158
Ibid, p.363.
159
MOTTA, 2002. p. 269.
160
FERREIRA, 2011, p. 446.
63
substituição pelo almirante Paulo Márcio Rodrigues, por influência do CGT. Por fim – e a
mais grave de todas as medidas –, concedeu anistia161 aos amotinados presos que, depois de
libertos, desfilaram pela Avenida Rio Branco em clara provocação aos superiores que estavam
no clube naval.162
O atestado mais significativo da importância da questão disciplinar para a
arregimentação de parte do setor militar em função da coalizão é o fato de que, justamente, a
atuação de João Goulart em dois eventos promovidos por subalternos se constituiu no
pretexto, para alguns, e no estopim, para outros, para que se deflagrasse o golpe. A anistia aos
marinheiros e, depois de cinco dias, a presença e o discurso do presidente no Automóvel
Clube do Rio de Janeiro, durante a festa de posse da nova diretoria da Associação dos
Sargentos, serviram de “sinal verde” para que um dos centros conspiratórios (Minas Gerais)
precipitasse os planos golpistas e iniciasse as ações para a deposição de Jango.163
A iniciativa do general Olímpio Mourão Filho de acionar a Operação Popeye no dia
31 de março de 1964, liderando a marcha de suas tropas de Juiz de Fora rumo à capital
fluminense, valeu-se da certeza de que os setores legalistas estavam convencidos de que
Jango estava atacando a hierarquia militar.164 O clima de animosidade nas forças armadas era
tão grave que muitos segmentos, sobretudo aqueles que se integraram tardiamente à coalizão,
passaram a acreditar que eram as próprias atitudes do presidente que davam legitimidade às
ações em prol de sua deposição. Com a propagação dessa visão, o argumento passou a ser o
161
“A anistia aos marinheiros e ao almirante Aragão atingiu profundamente a integridade profissional das Forças
Armadas. Todo o conjunto de ideias, crenças, valores, códigos comportamentais e a maneira como eles davam
significado às suas instituições encontrava-se subvertidas. A disciplina e a hierarquia, os fundamentos básicos
que exprimiam o que era ‘ser militar’ se esfacelaram.” Cf. Ibid, p. 452.
162
“Até fins de 1963, segundo rodrigo Patto Sá Motta, a conspiração contra o governo Jango era confabulações de
grupos radicais marginalizados do processo político, mas em meados de março de 1964 movimento golpista
forma um amplo leque de alianças. Ao final do mês, as condições para a deposição do presidente estavam dadas:
‘faltava apenas a fagulha, o elemento para detonar o mecanismo golpista e empurrar à ação os que ainda
hesitavam ante a hipótese de rompimento institucional’. O elemento detonador foi a rebelião dos marinheiros.”
Cf. Ibid, p. 454.
163
Segundo Ferreira, “O importante era que a revolta dos marinheiros e a ida de Jango à solenidade do Automóvel
clube desestabilizaram as forças armadas. Como afirma Elio Gaspari, ‘a organização militar, baseada em
princípios simples, claros e antigos, estava em processo de dissolução. Haviam sido abaladas a disciplina e a
hierarquia’. Desde 1961, algumas unidades militares viviam sob uma espécie de duplo comando, entre oficiais e
sargentos. Marinheiros utilizavam a rede de transmissão dos navios para divulgar palavras de ordem. Oficiais
simpáticos ao governo, sem contar os ‘generais do povo’, protegiam os diversos atentados à disciplina, enquanto
outros, com receio de enfrentar o ‘dispositivo militar’ e sofrer punições, toleravam tudo aquilo. No entanto, ‘a
revolta dos marujos ofendeu a grande massa politicamente amorfa. O levante de mourão sugeriu-lhes a
possibilidade do desafio. A inercia do governo incentivou-a a mover-se ou, pelo menos, a não fazer nada’.” Cf.
Ibid, p. 488.
164
Ibid, p. 453-462.
64
de que não havia um golpe de Estado por parte de seus opositores políticos, mas uma atitude
em defesa da ordem geral. E esse foi o raciocínio que serviu à adesão dos setores civis.165
A terceira motivação que endossou as fileiras da coalizão anti-Goulart foi a mesma
que animava a conspiração, ou seja, o desejo de impedir a desarticulação das estruturas de
privilégios que existiam no país; o que se daria através da mobilização popular para a
realização das Reformas de Base.166
Segundo Napolitano:
165
“O comício de 13 de março unificou os conspiradores de direita, civis e militares, em suas ações para depor o
presidente, e também atuou entre os liberais, lançando entre eles sérias desconfianças sobre as reais intenções de
Goulart. As direitas, portanto, passaram a ter os liberais como fortes e importantes aliados no processo de
desestabilização do governo.” Ibid, p. 429.
166
Ibid, loc. Cit.
BANDEIRA, 1978. p. 186.
167
Cf. NAPOLITANO, 2014. p.17.
168
Segundo Napolitano, “as classes médias bombardeadas pelos discursos anticomunistas da imprensa e de várias
entidades civis e religiosas reacionárias acreditaram piamente que Moscou tramava para conquistar o Brasil,
ameaçando a civilização cristã, as hierarquias ‘naturais’ da sociedade e a liberdade individual.” Cf. Ibid, p.48.
65
169
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro:
Record, 2000. p. 34.
170
FERREIRA, Jorge. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964, in: ______.; DELGADO, Lucília de
Almeida, 2003, p. 355.
BANDEIRA, 1978. p. 67.
NAPOLITANO, 2014, p. 56-57.
171
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe de 1964 e a ditadura nas pesquisas de opinião. Tempo, 2014, v. 10.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/tem/v20/pt_1413-7704-tem-1980-542X-2014203627.pdf>. Acesso em
21 de set. de 2017. p. 7.
66
Entretanto, o ponto mais sensível das preocupações de frei Betto era a desconfiança e,
em alguns casos, a difamação que se produziu acerca da participação dos dominicanos na
trágica emboscada que resultou no assassinato de Carlos Marighella. Essa inquietação se
172
Segundo Ferreira, “a atuação de Goulart no ministério chocou amplos setores conservadores da sociedade
brasileira – civis e militares. Afinal, um homem nascido entre as elites sociais do país, rico e empresário rural e
exercendo um cargo ministerial estava recebendo, em seu próprio gabinete, trabalhadores, sindicalistas e pessoas
comuns – a maioria de origem social humilde. Muitas vezes o preconceito de classe se confundia com o da cor
da pele, uma vez que vários daqueles indivíduos eram negros. Goulart fugia completamente aos padrões e aos
costumes dominantes, longamente aceitos e partilhados. Motivos, portanto, não faltavam para os rancores e os
ódios que as elites do país passaram a dedicar ao ministro do Trabalho.” FERREIRA, 2011, p. 98.
MOTTA, 2002, p. 234.
173
NAPOLITANO, 2014, p. 60-62.
Cf. FICO, Carlos. O grande irmão: da operação Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados
Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
67
justifica pelo fato de ter sido, justamente, a narrativa desse acontecimento produzida pelos
jornais a porta de entrada daquele grupo de frades na vida pública.
Desse modo, apesar da legitimidade perante a Igreja ser algo importantíssimo para os
dominicanos por serem seus membros ativos e, mais ainda, por participarem de uma ordem
religiosa, o fator que mais instiga a reflexão de frei Betto em sua correspondência é a
desconfiança que as esquerdas nutriam por eles. Pois, se seria insatisfatório serem lembrados
como “padres terroristas” pela sociedade, muito pior seria carregarem para a posteridade a
mesma pecha do apóstolo Judas diante daqueles que se opuseram ao regime e dos grupos
revolucionários.
Não se pode deixar de mencionar que essa desconfiança já se alimentava pela
tradicional postura da Igreja Católica no Brasil de legitimadora do status quo. Assim, a
participação de seus membros em movimentos contestatórios era vista com apreensão por
muitos militantes. Mas, certamente, nada aguçou mais essa visão do que a morte de
Marighella. Prova disso é a discussão entre frei Betto e o historiador Jacob Gorender sobre os
meios que teriam levado o DOPS de São Paulo a rastrear o guerrilheiro baiano.
Frei Betto em Batismo de sangue defende a tese de que a Agência Central de
Inteligência (CIA) dos Estados Unidos, por meio de agentes infiltrados na ALN e grampos
telefônicos instalados nos locais ligados aos dominicanos, foi a responsável por rastrear o
paradeiro de Carlos Marighella e entregar à ditadura brasileira as informações necessárias
para que preparassem a cilada na qual o líder comunista seria assassinado.174 Já Gorender, em
sua obra célebre Combate nas Trevas, atribui a obtenção dessas informações às sessões de
tortura a que frei Fernando de Brito e Ivo Lesbaupin foram submetidos pelo DOPS de São
Paulo.175
As próprias considerações de Marighella revelam a carga moral sob a qual se
sustentava o silêncio daqueles submetidos à repressão e tortura. Mário Magalhães, na
biografia que escreveu sobre o revolucionário baiano – Marighella: o guerrilheiro que
incendiou o mundo –, afirma que uma das “ilusões capitais” alimentadas pelo líder comunista
em seus escritos foi “associar a resistência à tortura meramente a uma escolha. Como se fosse
possível isolar a mente sã do corpo flagelado.”176
174
Id, 1982, p. 141-186.
175
GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. 5. ed. São Paulo: Editora Ática, 1998. p. 171-179.
176
MAGALHÃES, 2012, p. 536.
68
Na última quinta, nos mandaram pra cá, próximo 30 km do Mato Grosso, distante
640 Km de São Paulo – onde temos família e advogado. Parece pesadelo tudo isso;
177
Ibid, p. 536.
178
BETTO, 2008, p. 127.
69
Ontem, às 18 horas, terminou a nossa greve de fome, que durou 33 dias nessa
segunda fase, e seis na primeira, um total de 39 dias – provavelmente a mais longa
de que se tem notícia no Brasil. Entre os 36 presos políticos que participaram não
houve nenhuma defecção, todos firmes até o fim.180
Apesar da importância que frei Betto atribuiu aos exemplos supracitados, dois são
tomados como os mais emblemáticos do sofrimento dos religiosos presos. Em primeiro lugar,
as torturas sofridas pelo seu confrade Tito de Alencar Lima, na Operação Bandeirante
(OBAN):
Em carta a uma amiga, o frade afirma:
Ele estava bem, alegre, tranquilo, recuperado do que havia sofrido no DEOPS.
Bem como todos nós, livres da fase de interrogatórios. Pouco implicado, aguardava
o momento de o colocarem em liberdade. Mas veio o DOI-CODI e o levou. Isso há
pouco mais de uma semana [...]. Hoje, soubemos que frei Tito de Alencar Lima
“tentou suicídio” no DOI-CODI... Levado ao Hospital Militar, recebeu transfusões
de sangue, mas continua incomunicável.182
O autor faz questão de ressaltar o orgulho com que frei Tito narrava o fato de ter
resistido à tortura, não entregando, assim, qualquer informação aos agentes da repressão:
179
Ibid, p. 142.
180
Ibid, p. 153.
181
Ibid, p. 139.
182
Ibid, p. 22.
70
caixa. Agora Tito está bem, com o moral altíssimo. Todos que resistem ficam com o
moral bem alto.183
183
Ibid, p. 25.
184
Ibid, p. 161.
185
Ibid, p. 159.
186
Ibid, p. 9.
71
caracterizava coletivamente, seja, pela tortura e perda dos direitos políticos mediante a prisão
ou pela campanha difamatória que sofreram na imprensa por estarem em posição contrária ao
regime que os ameaçava.
Diante do exposto, fica bastante claro que ocorreu um verdadeiro processo de
transformação na relação de frei Betto com a memória. Através da análise de suas cartas,
percebe-se que de uma simples preocupação natural de pessoas que têm suas vidas
esquadrinhadas por matérias jornalísticas surge seu receio para com a projeção das
lembranças das atividades do grupo ao qual pertenceu, transformando-a em uma poderosa
arma no combate às versões oficiais dos discursos do regime.
Ainda que inconsciente, a preocupação do dominicano era de que, se os dominicanos
não se pronunciassem, figurariam na memória da Igreja, da sociedade e da esquerda,
respectivamente, como comunistas que se infiltraram nos grupos de jovens para conquistar
corações e mentes; como terroristas punidos com justiça por seus atentados à ordem
estabelecida; e traidores por não resistirem às sevícias a que foram submetidos. Os religiosos
ficariam, dessa forma, estigmatizados como a ala mais fraca da luta armada que, desprovida
da resiliência necessária para assumir o compromisso com a revolução brasileira, levou o
mais admirado líder da guerrilha urbana no Brasil ao fatídico encontro com a repressão e,
consequentemente, com a morte.
A análise das fontes permite observar que a relação que o indivíduo que narra o
passado estabelece com o tempo não se restringe a uma visão retrospectiva. Nesse caso
específico, evidencia-se um verdadeiro trabalho de projeção da memória que se guia pelas
tensões e disputas do presente. No entanto, ele não almeja o estabelecimento de uma narrativa
definitiva, imutável. O próprio ato de precaver-se contra possíveis versões insatisfatórias dos
fatos indica a consciência de que novos contextos históricos levarão a novos questionamentos
e, justamente por isso, é preciso estar atento e munido de um projeto memorialístico. Assim,
se o passar do tempo trouxe consigo novas contestações para a narrativa memorial de frei
Betto, esta foi sendo reeditada para que assim, continue servindo para resguardar o cerne de
sua versão.
72
Depois de ter passado quatro anos no cárcere, Frei Betto e seus companheiros
dominicanos foram libertos no dia 04 de outubro de 1973. Com quase 30 anos de idade, o
frade tinha a opção de deixar o Brasil por um tempo para concluir seus estudos em teologia,
saindo assim do radar da repressão, ao menos, momentaneamente. Entretanto, o exílio não
passava pela sua cabeça. Desse modo, ele buscou a alternativa que melhor atendia as suas
aspirações religiosas, voltando suas pretensões para o trabalho em meio à população mais
pobre. Esse desejo, somado a necessidade de sair dos holofotes da política, fez com que o
dominicano se mudasse para a cidade de Vitória, no Espírito Santo, a fim de assessorar as
CEBs.
Entre 1974 e 1979, frei Betto viveu em um barraco no morro Santa Maria, na periferia
da capital capixaba. Fora do eixo Rio de Janeiro/São Paulo/Belo Horizonte, o frade teve a
tranquilidade que precisava para desenvolver suas atividades pastorais – com a anuência do
arcebispo Dom João Batista da Mota e Albuquerque e do bispo auxiliar Dom Luis Fernandes
– e continuar a carreira de escritor, nesse período, voltada especialmente para temas
religiosos.187
Com o advento da década de 1980 e a consolidação de um clima de distensão política,
frei Betto voltou a morar no convento dos dominicanos, situado no bairro de perdizes, na
capital paulista; sem, no entanto, abrir mão de seu trabalho pastoral. Impressionado com a
efervescência política vivida pelo movimento sindical da região do ABC paulista, o frade se
colocou à disposição de Dom Cláudio Hummes para assessorar a Pastoral Operária nas
cidades de São Bernardo e Diadema. O bispo recebeu a oferta de bom grado, visto que o seu
rebanho na enorme diocese de Santo André chegava a quase 1,5 milhão de pessoas.
Assim, de 1979 até 2002, frei Betto se dedicou a assessorar a Pastoral Operária na
região do ABC paulista.188 Nos anos 1980, o frade se tornou amigo pessoal de Luiz Inácio
Lula da Silva, o então presidente do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo e
Diadema, chegando a morar em sua casa no período em que o líder operário esteve preso.189
A atividade pastoral e a amizade com Lula lhe permitiram estar no epicentro das grandes
greves que ocorreram naquele período e conhecer de perto os representantes do “novo
sindicalismo”.
187
FREIRE; SYDOW, 2016, p. 159.
188
Região metropolitana de São Paulo-SP, na qual se situam as cidades de Santo André, São Bernardo do Campo e
São Caetano do Sul. Ibid, p.183.
189
Ibid, p. 206.
73
Presumivelmente, sua presença no ABC paulista naquele exato momento não passaria
despercebida, nem deixaria de produzir ilações sobre a importância de sua influência política
nas greves operárias. Em pouco tempo, a atividade pastoral de frei Betto lhe rendeu a imagem
de mentor de Lula e, por consequência, a evocação do fatídico episódio da morte de Carlos
Marighella.
No dia 21 de abril de 1980, o Jornal do Brasil apresentava uma matéria sobre o apoio
que os grevistas recebiam da Igreja Católica. O jornalista José Neumanne Pinto, que assinava
a matéria, ressaltava que, apesar do envolvimento do bispo diocesano, o representante mais
emblemático da Igreja em meio aos grevistas era um antigo conhecido da justiça:
No dia seguinte, em entrevista ao mesmo jornal, frei Betto deu uma demonstração
clara do incômodo gerado pela especulação sobre sua ascendência sobre Lula. Esse
desconforto era ainda maior quando o que se propagava era a tese de que Carlos Marighella
morreu graças à traição dos frades dominicanos.
O irmão leigo Carlos Alberto Libânio Cristo, Frei Beto, disse ontem que jamais
interferiu na campanha salarial dos metalúrgicos do ABC ou participou de reunião
sobre o assunto. “Minha presença é pastoral e de amizade pessoal a Lula e sua
família.” [...].
O irmão leigo Carlos Alberto Libânio de Cristo classificou a reportagem do
JORNAL DO BRASIL de ontem de “muito infeliz”. Afirmou que “o episódio da
Alameda Casa Branca foi montado pela polícia. Eu não estava na Alameda Casa
Branca na noite da morte de Carlos Marighela, simplesmente porque estava no Rio
190
POLÍCIA muda de tática e greve se apoia na Igreja. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano XC, N. 13, 21 de abr.
de 1980. 1º Caderno p.4. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19800421&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 22 de set. de 2018.
74
Grande do Sul, onde fui preso uma semana depois. A acusação que se faz aos
dominicanos é uma acusação policial e sem fundamento”.
Ele negou que também ter saído do Brasil e voltado semiclandestinamente, como
disse o JB: “Cumpri pena. Aliás, fui condenado a dois anos de prisão e passei quatro
atrás das grades. Depois fui morar numa Igreja, em Vitória, no Espirito Santo,
fazendo trabalho pastoral e em pleno gozo de meus direitos legais, com exceção aos
direitos políticos, que foram cassados. Então, jamais regressei semiclandestinamente
ao país, porque dele nunca sai”. 191
Foi nesse contexto que frei Betto desenvolveu a redação de Batismo de Sangue. Ao
mesmo tempo em que se via novamente no centro das agitações políticas do país, por conta de
suas atividades junto ao meio sindical, ele estreitava seus vínculos com os revolucionários na
Nicarágua e em Cuba, onde se tornou um interlocutor importantíssimo para que se tentasse
reestabelecer o diálogo entre o governo e a Igreja Católica da Ilha. Como se não bastassem
todas essas atividades e lutas políticas, o escritor ainda teve que assistir à evocação de “velhos
fantasmas” do período da prisão como instrumento especulativo para se questionar sua
atuação.192
Com Batismo de Sangue e O dia de Ângelo, frei Betto procura não só reafirmar a
dignidade daqueles que optaram pela luta armada; mas, acima de tudo, transformar sua
memória – através do mapeamento de seus erros - em uma arma para as pelejas de seu
presente.
A emergência de um novo sindicalismo e a fundação de um partido que fundamentava
seu capital político junto às massas fez com que o dominicano acreditasse que relembrar o
papel trágico que o isolamento do povo teve na derrota dos revolucionários do seu passado
recente poderia garantir que o Partido dos Trabalhadores não só cultivasse o apego pelas
organizações populares, como também desse protagonismo à elas. Para o frade, a figura de
Lula encarnava esse projeto. Não por acaso, pouco mais de duas décadas depois, ao se
desligar do governo do ex-metalúrgico, a principal crítica de frei Betto ao amigo presidente
era a supressão dos canais de protagonismo popular.
Esse entusiasmo de frei Betto com a perspectiva da constituição de uma agenda
política para o país legitimamente fundada pelo povo, e não apenas em nome do povo, foi
certamente provocado pela percepção de que haviam brechas que tornavam real a
possibilidade de interferência popular no processo de transição, apesar de seu trajeto ter sido
inteiramente tutelado pelos governos militares.
191
FREI BETTO diz que é só amigo de Lula. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano XC, N. 14, 21 de abr. de 1980.
1º Caderno p.12. Disponível em:
<https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19800422&printsec=frontpage&hl=pt-BR>.
Acesso em: 22 de set. de 2018.
192
FREIRE; SYDOW, 2016, p. 233-253.
75
193
Segundo Napolitano, “[...] o trabalho de massas, como se dizia, ao fim e ao cabo, tangenciava o problema da
democracia. As autocríticas ocorriam em um momento em que algumas lentes mais sensíveis já captavam o
crescimento dos movimentos sociais de novo tipo, formado por vizinhos, abrigados em comunidades religiosas,
e avessos ao vanguardismo dirigista e instrumental da tradição leninista.” NAPOLITANO, 2014, p. 242.
194
BETTO, frei. O dia de Ângelo. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 95-114.
195
Ibid, p. 102.
196
CODATO, Adriano Nervo. Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia.
Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 25, p. 165-188, jul./dez. 2005. Disponível em:
<https://revistas.ufpr.br/rsp/article/view/7074/5046>. p. 183.
197
Ibid, p. 181.
76
Embora esse ideal de uma, por assim dizer, “modernização conservadora” tenha se
mantido intacto durante o percurso de execução do projeto de mudança política elaborado
pelo governo de Ernesto Geisel, as alterações conjunturais que sua implementação
desencadeou fizeram com que seu resultado final se tornasse distinto de sua concepção
original.
A distensão proposta pelo grupo que chegou ao poder com o general em 1974
almejava promover um “relaxamento dos controles políticos impostos à sociedade” e o
retorno dos militares à caserna, ou seja, um “desengajamento gradual das Forças Armadas da
condução cotidiana dos negócios de Estado”198, sem necessariamente democratizar o sistema
político,199 ou seja, se projetava a institucionalização do regime.
Entretanto, conforme gradualmente essa “liberalização” do regime foi implementada,
mais brechas se abriam para que os diversos grupos sociais interviessem no processo político.
Os êxitos eleitorais da oposição e a emergência de um novo sindicalismo são algumas dessas
consequências iniciais. À medida que essas interferências civis se tornaram realidade, elas
também se transformaram em catalisadores da “política de abertura” do governo militar sem
que tivessem, no entanto, o poder de desviar a sua “direção conservadora”. Segundo
Napolitano:
[...] Havia uma pressão cada vez maior dos movimentos sociais unidos, ocupando
de forma crescente a praça pública em tono da democracia, o que sem dúvida era um
fator de pressão a mais sobre as políticas de distensão e abertura no caso brasileiro.
Eram fatos novos, imprevistos, que colocavam novas demandas políticas, sociais e
econômicas, para os quais a estratégia do governo oferecia pouca resposta além da
repressão. A pressão das ruas talvez tenha sido o elo perdido e esquecido entre a
tímida distensão de 1974 e a efetiva agenda de abertura em 1978.200
198
Ibid, p. 175.
199
Nas palavras de Napolitano, “como estadista de visão estratégica, Geisel sabia que o aparato policialesco de
repressão era insuficiente e arriscado para tutelar o sistema político, sob risco do governo isolar-se dele.
Efetivamente, há uma agenda de abertura, quando muito, só após 1977. Até então “abertura”, dentro da
concepção palaciana, era sinônimo de institucionalização da exceção, descompressão pontual, restrita e tática e
projeto estratégico de retirada para os quartéis sine die.” NAPOLITANO, 2014, p. 234.
200
NAPOLITANO, loc. Cit.
201
CODATO, 2005, p. 170.
77
a esperança por uma revolução política e social. Entretanto, foi a atuação dos setores liberais,
aglutinados na grande imprensa e no MDB, nas negociações com os militares202 que, no
campo da oposição, mais decisivamente influiu no destino do país demonstrando, assim, o
papel premente que esse grupo teve no processo de transição.
Uma das expressões da preponderância dos liberais nesse processo foi a hegemonia
alcançada por sua memória da ditadura militar antes mesmo do início efetivo do processo de
transição do regime e que vigorou soberana até a virada do século, quando surgiram os
primeiros sinais de desgaste da sua funcionalidade política.
Entre a posse de Ernesto Geisel (1974) e a eleição de Fernando Henrique Cardoso
(1994), as linhas mestras da memória liberal-conservadora que, em pouco tempo, ocuparia
uma posição hegemônica, começaram a ser delineadas, principalmente, na imprensa e na
literatura memorialística. A primeira afirma que os militares usurparam o Estado brasileiro.
Dela deriva a ideia segundo a qual a sociedade, alheia a essa ação, foi a sua principal vítima.
Já a segunda celebra a resistência civil pacífica como “verdadeiro caminho que isolou e
‘derrotou’ o regime”.203 Consequentemente, essa interpretação implica a condenação do
autoritarismo militar e da luta armada como faces de uma mesma moeda, o extremismo.
No caso da esquerda revolucionária, apresentada como um conjunto de jovens
idealistas e inconsequentes204, sua opção pelo caminho da guerrilha seria condenável por
alimentar a “espiral de violência”, além de não ter chances de vitória, graças ao isolamento
social no qual se colocavam seus militantes.
202
Napolitano destaca que, através dessas negociações, militares e liberais puderam garantir “uma retirada sem
punição às violações aos direitos humanos e sem mudanças abruptas do modelo econômico fundamental,
sancionado pelas elites, ao mesmo tempo em que retornavam, de maneira gradual, as liberdades civis e o jogo
eleitoral. NAPOLITANO, 2014, p. 235.
Segundo Oliveira, a anistia – maior exemplo desse poder de influência da oposição liberal – “[...] teria sido então
um ponto de inflexão na dinâmica de liberalização do regime, ao mesmo tempo que se apresentou como uma
concessão às mobilizações socias e contemplou uma parte restrita dos militares. Ao ser aprovada, junto à
pluralidade partidária, colocou uma agenda de participação institucional de acordo com as demandas opositoras,
que centraram suas forças na formalização de novos partidos políticos.”. OLIVEIRA, Lucas Monteiro. As
dinâmicas da luta pela anistia na transição política. São Paulo, 2014. 174 f. Dissertação (Mestrado em
História). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. p. 98.
Codato afirma que as reformas econômicas implementadas nos anos 1990, especificamente pelo governo
Fernando Henrique Cardoso, “tiveram como precondição o arranjo autoritário dos processos de governo e a
ausência de responsabilidade dos governantes. Daí que sua implementação não combinou com as exigências de
ampliação da cidadania e controle social sobre o Estado, sua burocracia e aparelho de poder.” CODATO, 2005,
p. 183.
203
NAPOLITANO, Marcos. Recordar é vencer: as dinâmicas e vicissitudes da construção da memória sobre o
regime militar brasileiro. Antítese, Londrina, v. 8, n. 15, p. 09-44, nov. 2015. Disponível em:
<http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/23617/17356>. Acesso em: 19 de abr. 2019.
p.23.
204
NAPOLITANO, Marcos. Desafios para a História nas encruzilhadas da memória: entre traumas e tabus.
História: questões e debates, Curitiba, v. 68, p. 18-56, jan./jun. 2020. Disponível em:
<https://revistas.ufpr.br/historia/article/view/67794>. Acesso em: 13 de abr. p. 35.
78
[...] não se trata de mero cinismo dos atores políticos diante das verdadeiras posições
do passado, mas um processo intrínseco à construção de qualquer memória social,
marcada pelo jogo entre esquecimento e rememoração seletivos para justificar
posições no passado e identidades no presente.207
205
NAPOLITANO, 2015, p. 22.
206
Id, 2014, p. 317.
207
Id, 2015, p. 20.
79
história, as classes populares seguirão sempre como o fiel da balança, pendendo para um dos
lados e confirmando as teorias que o inclinam na direção do futuro”.
Nessa obra, ele também condena veementemente as acusações e críticas feitas pela
imprensa aos que colaboraram na luta armada: “É cômodo julgar, do alto de nossas ideias tão
arrumadas, impecavelmente imaculadas, a prática de quem ousou sujar as mãos quando o
regime militar já não admitia nenhuma forma de luta legal”. Portanto, se os jornais assumiam
de bom grado o papel de acusador, cabia aos acusados lutar pela publicidade de suas
memórias, afinal essas seriam as únicas armas das quais dispunham para se defender.
A constatação de que essa conjuntura de luta sindical e de contestação da legitimidade
de sua atuação política exerceram uma influência decisiva sobre a escrita de frei Betto pode
parecer ser uma simples dedução construída a partir da concomitância entre seu trabalho no
ABC e a redação/lançamento de Batismo de Sangue. Entretanto, o próprio autor oferece
amostras dessa relação. Nas primeiras páginas da obra, ele a dedica “aos trabalhadores
brasileiros que, com suas lutas, restauram esperanças”.
Desse modo, Batismo de Sangue foi lançado em 1982 como uma tentativa de elucidar
os questionamentos sobre a participação dos dominicanos na morte de Carlos Marighella.
Entretanto, o autor usa essa oportunidade para dizer muito mais do que o estritamente
necessário para convencer o público sobre o que aconteceu na Alameda Casa Branca. A obra
é o ensejo por meio do qual ele justifica suas opções pessoais e a escolha de publicar sua
versão sobre o que teria sido o regime militar no Brasil.208
80
Após um período traumático para alguns, por conta de como o rumo de suas vidas foi
alterado pelo golpe de 1964 – seja pelo exílio, voluntário ou obrigatório, pela militância
armada, pela tortura ou pela prisão – os anos 1980 eram o momento de fazer a catarse, de
exorcizar os demônios que depois de terem flagelado a carne, atormentavam o espírito. Para a
população em geral, os problemas econômicos começavam a dar à política repressiva e ao
discurso anticomunista do governo o aspecto de paranoia em descompasso com o tempo
presente, que apresentava desafios novos.
A iniciativa de narrar as violências perpetradas pelos agentes da ditadura militar foi
assumida por memorialistas como frei Betto com mais urgência à medida que a consolidação
da memória liberal-conservadora sinalizava o “isolamento do trauma em bolsões sociais
muito específicos”.209
208
Entre as peculiaridades da escrita memorialística de frei Betto, é importante ressaltar o fato de que as
identidades de seus biografados foram utilizadas como um dispositivo auxiliar na tarefa de se tentar explicar
atitudes pontuais e extremas que marcaram decisivamente suas trajetórias (nesse caso específico, a opção pela
luta armada). Assim, se nas biografias e autobiografias as atitudes controversas de seus protagonistas são
comumente abordadas para reafirmar as especialidades de suas identidades ou atestar sua complexidade, nos
livros do dominicano, elas são apresentadas tacitamente como o tema principal.
Segundo Philipe Lejaune, sobretudo no caso das autobiografias, a identidade é o cerne do pacto que define o
pertencimento de uma obra a esse gênero. Esse acordo firmado implicitamente entre escritor e leitor estabelece
que nesse tipo de narrativa deve haver uma correspondência entre a identidade do autor e a do protagonista, a
qual pode ser estendida, eventualmente, também ao narrador. Cf. LEJAUNE, Philippe. O Pacto
Autobiográfico: de Rousseau à internet. Ed. 2. Tradução Jovita Maria Gerheim Noronha; Maria Inês Coimbra
Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. p. 30.
Outras particularidades que corroboram a constatação de que a obra do dominicano não se adéqua aos modelos
clássicos desse gênero são: a mistura da escrita biográfica e autobiográfica em uma mesma publicação, assim
como a narrativa da trajetória de mais de um personagem e o lançamento de suas memórias em momentos que
não marcavam o encerramento de algum ciclo, que nem mesmo sinalizavam o final da vida do autor. O
exemplo mais emblemático é Alfabetto (2002) – único livro exclusiva e assumidamente autobiográfico do
religioso –, pois se propõe a narrar os 25 primeiros anos da formação escolar do autor que, na data de sua
publicação, contabilizava 58 de idade.
Logo, pode-se considerar que, através desse conjunto de peculiaridades, frei Betto buscou construir um tipo de
biografia/autobiografia contextual. Segundo Giovanni Levi, o contexto – muito valorizado nesse “uso” da
biografia – é entendido como um fator da compreensão de um acontecimento que “à primeira vista parece
inexplicável e desconcertante”. LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: AMADO, Janaína; FERREIRA,
Marieta de Moraes (Orgs). Usos & abusos da história oral. Ed. 8. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 175.
De acordo com a definição de Levi: “Essa utilização repousa sobre uma hipótese implícita que pode ser assim
formulada: qualquer que seja a originalidade aparente, uma vida não pode ser compreendida unicamente
através de seus desvios ou singularidades, mas, ao contrário, mostrando-se que cada desvio aparente em
relação às normas ocorre em um contexto histórico que o justifica.” Ibid, p. 176.
Dessa forma, fica evidente que as biografias/autobiografias de frei Betto não assumem a expressão de uma
identidade ou a narrativa de sua trajetória como sua finalidade. Na verdade, ele utiliza esse gênero de escrita
como um instrumento para que sua memória cumpra uma função política, ou seja, sirva de “ponte” entre uma
experiência do passado e seus projetos no presente. De maneira mais específica, a análise de seus livros de
memória demonstra que o dominicano busca extrair lições da experiência de fracasso da luta armada para
instruir as esquerdas – especialmente, a ala que escolheu a via do partido operário de massa – no contexto dos
anos 1980 e, posteriormente, na primeira década do século XXI. Sua principal conclusão é de que não haveria
possibilidade de vitória no afastamento das forças populares.
81
Esse processo foi potencializado pelo controle que os militares exerceram sobre o
movimento de retorno à caserna e pela escolha de parte das esquerdas, naquele contexto, de
privilegiar outros projetos em detrimento dessa questão210, dificultando, por consequência, o
estabelecimento de um debate nacional sobre quais seriam os caminhos a seguir para superar
esse trauma211 com vistas a um “[...] pacto social para a reconstrução da normalidade”.212
O desejo de conciliação que consagrou essa versão do passado, através de um longo e
negociado processo de Abertura, afastou progressivamente a possibilidade do reconhecimento
coletivo de que a violência perpetrada pelo regime provocou uma “marca patológica” na
história da sociedade como um todo e, não apenas na trajetória de suas vítimas diretas; pois, a
versão liberal-conservadora ao tomar distância das rememorações nostálgicas das “ações
extremas” – ou seja, a ditadura “imposta” pelos militares e a luta armada empreendida por
parte das esquerdas –, transformou a lembrança dessa violência (tanto da sofrida quanto da
perpetrada) em um aspecto particular ao passado dos integrantes desses dois “polos”.213
Dessa forma, frei Betto procura fazer de sua escrita uma reação a esse processo não só
para combater as três teses sobre os dominicanos (hereges, terroristas e traidores) como
também para impedir a restrição progressiva dos canais de escuta das vítimas.214 Por isso, a
autorreflexão e reafirmação acerca da filiação de suas memórias aos paradigmas do
209
NAPOLITANO, 2020, p. 36.
210
Ibid, p. 34.
211
Ao refletir sobre as possibilidades da edificação de testemunhos de catástrofes históricas, como o holocausto
judeu e o genocídio armênio, Seligmann-Silva afirma que “o trauma é caracterizado por ser uma memória de um
passado que não passa”. Ou seja, ele é uma imagem produzida por uma experiência, de tal forma impactante, que
impede a sua representação simbólica, por exemplo através da linguagem, e suspende seu fluxo temporal.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma: a questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psicol.
clin. Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p.65-82, 2008. p. 69.
212
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Direito pós-fáustico: por um novo tribunal como espaço de rememoração e
elaboração dos traumas sociais. In: FICO, Carlos; ARAUJO, Maria Paula; GRIN, Monica (orgs.). Violência na
história: memória, trauma e reparação. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012.p. 111.
213
NAPOLITANO, 2020, p. 35.
214
O itinerário político para se lidar com a memória de experiências-limite idealizado e consagrado no pós-guerra
se projetou no sentido de superar o trauma. Dessa forma, os Estados deveriam promover uma justiça de transição
que assegurasse o reestabelecimento da verdade histórica sobre os fatos e oferecesse uma digna reparação às
vítimas e suas famílias; responsabilizando e punindo os perpetradores da violência, a despeito dos descaminhos
observados nos processos históricos concretos. NAPOLITANO, Marcos. Aporias de uma dupla crise: história e
memória diante de novos enquadramentos teóricos. Sæculum: Revista de História, João Pessoa, v. 39, p. 205-
218, jul./dez. 2018. p. 209.
Entretanto, continuam os debates acerca das políticas de memória para enfrentar passados traumáticos e os
discursos negacionistas. Em meio a uma pluralidade de questões e posicionamentos, o embate mais visível opõe
os agentes sociais que defendem a impossibilidade da representação de tais acontecimentos, com o argumento de
que a tentativa de a empreender implica no risco de produzir sua banalização – kitschização da memória ROBIN,
2016, p. 331. – e aqueles que advogam a necessidade do estabelecimento de canais institucionais de escuta para
que as vítimas possam narrar, elaborar e esquecer esse passado. NAPOLITANO, 2020, p. 31-32. Assim, tanto o
indivíduo quanto a sociedade poderiam se libertar do sofrimento causado por essa memória estática.
SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 69.
82
215
A expressão “paradigma” não é utilizada neste trabalho como uma adaptação direta do conceito desenvolvido
por Thomas Kuhn em sua obra A estrutura das revoluções científicas. Mas, sim, como sinônimo de modelo,
padrão. Seu emprego em referência à memória do Holocausto e dos movimentos de resistência à ocupação
nazista busca afirmar que as características do tratamento que se deu às lembranças desses acontecimentos –
como a hipervalorização do relato das vítimas de períodos violentos – serviram como exemplos para os discursos
reminiscentes produzidos depois do outros eventos-limite ao longo do século XX.
216
Em Batismo de Sangue, essa filiação à memória do holocausto como paradigma (abordada de maneira mais
pormenorizada no capítulo subsequente), para reivindicar a centralidade do testemunho das vítimas na
constituição da memória de tempos traumáticos, é desenvolvida através dos personagens e episódios da história
do nazifascismo que o autor referencia para descrever o terror e a crueldade experimentados por aqueles que
foram acossados pela ditadura militar. Assim, os agentes dos órgãos de repressão são comparados aos oficiais do
regime totalitário – “O delegado "Pudim" era o braço direito do Dr. Fleury. Alto, aloirado, lembrava a figura de
um oficial nazista, embora lhe faltasse o porte marcial” Cf. BETTO, 1982, p. 217. Já os presos e perseguidos
brasileiros são comparados às vítimas dos campos de concentração e da Gestapo – “[...] Um dos frades recordou-
lhe Dietrich Bonhõeffer, teólogo protestante alemão assassinado no cárcere pelos nazistas, em 1944, após dois
anos de prisão, onde escrevera eruditos textos de Teologia, mas nada teve tanto peso e influência quanto a obra
Resistência e Submissão, que reúne as cartas que ele redigiu na cela”. Cf. Ibid, p. 202.
217
HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiencia do tempo. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2014. p. 24.
83
Para reforçar essa interpretação, Hartog também menciona livros e filmes que foram
lançados na França nesse período. No entanto, o fenômeno não se limitou ao país. Segundo o
autor, a onda de memória que nasceu na Europa ocidental atingiria todo o mundo. Nas
décadas de 1980 e 1990, ela viveu seu apogeu nos países que acabavam de sair de conjunturas
traumáticas, como “a América do Sul após as ditaduras, a Rússia da glasnost e os ex-países de
Leste europeu, a África do Sul após o Apartheid.”218 Ele, inclusive, aponta esses contextos
como os epicentros desse fenômeno: “não há dúvida de que os crimes do século XX, seus
assassinatos em massa e sua monstruosa indústria da morte são as tempestades de onde
partiram essas ondas memoriais.”219
Assim sendo, diante de tamanha violência, foi atribuída à memória a obrigação moral
de perpetuar a sua denúncia, que “interrogou-se sobre o esquecimento, fez-se valer e invocou-
se o “dever de memória.” 220
o que também, segundo o autor, corroborou para dar
centralidade, no espaço público, um importante figura representante da memória: a
testemunha.
Hartog toma esse momento de extrema valorização da memória como um sintoma da
relação que a sociedade contemporânea estabelece com o tempo. Sua conclusão é de que esse
fenômeno sinaliza a existência de uma brecha no tempo histórico, o que ele qualifica como
“crise”.
Esse seria, justamente, um daqueles momentos em que as “articulações do passado, do
presente e do futuro” parecem perder sua clareza. Essa definição se ajusta perfeitamente,
segundo o autor, à percepção do homem contemporâneo diante dos acontecimentos que
marcaram o século XX.
As duas guerras mundiais; os conflitos em meio à Guerra Fria; as revoluções na Ásia;
os protestos estudantis em 1968; a crise do petróleo nos anos 1970, que encerraram os 30
gloriosos; o processo de globalização; o fim do Socialismo Real e a queda do muro de Berlim
teriam provocado um rompimento na articulação entre o passado, o presente e o futuro, “de
modo que a produção do tempo histórico parece suspensa.” 221
Partindo das considerações de Reinhard Koselleck de que o tempo histórico é o
produto da distância e da tensão entre o “campo da experiência” e o “horizonte de
expectativa”, Hartog desenvolve, como ferramenta destinada a auxiliar a compreensão dessas
218
Ibid, p.25.
219
Ibid, loc. cit.
220
Ibid, loc. cit.
221
Ibid, p.39.
84
Referenciado por Hartog, Pierre Nora é outro historiador que analisa o espocar do
fenômeno memorialístico dos anos 1980. Na introdução de sua obra clássica, Les Lieux de
Mémoire, ele afirma:
Nenhuma época foi tão voluntariamente produtora de arquivos como a nossa, não
somente pelo volume que a sociedade moderna espontaneamente produz, não
somente pelos meios técnicos de reprodução e de conservação que dispõe, mas pela
superstição e pelo respeito ao vestígio. À medida em que desaparece a memória
tradicional, nós nos sentimos obrigados a acumular religiosamente vestígios,
testemunhos, documentos, imagens, discursos, sinais visíveis do que foi, como se
esse dossiê cada vez mais prolífero devesse se tornar prova em não se sabe que
tribunal da história. O sagrado investiu-se no vestígio [...].226
Nora atribui esse boom do interesse pela preservação e cultivo dos lugares de memória
a um processo de “aceleração da história”, ou seja, uma progressiva tomada de consciência de
que teria se produzido, na contemporaneidade, uma ruptura profunda entre o passado e o
222
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2006.
223
HARTOG, 2014, p.14.
224
Ibid, p.39.
225
Ibid, p. 15.
226
NORA, 1993, p. 15.
85
presente.227 Assim, os saberes e os valores transmitidos por grupos sociais como a família, a
escola e a Igreja não seriam mais capazes de orientar as decisões de hoje, nem de preparar o
amanhã.228
A ascensão dos “lugares” seria um fenômeno inversamente proporcional ao declínio
da verdadeira memória,229 isto é, a própria antítese da exteriorização que a cultura dos lugares
representa. Por pertencer a grupos vivos, ela seria vivida no interior de cada integrante, por
isso, enquanto eles a cultivavam, ela se manteve viva, atualizada, afetiva e mágica. Além de
garantir sua coesão e identidade. Vivenciar esse tipo memória, transformaria o dia-a-dia em
um constante ritual que sacraliza e atualiza o passado, assegurando, assim, que o ato de
lembrar não se torne, simplesmente, expressão de uma relação sentimental com algo que
esteja ausente.
O declínio dessa maneira ritualizada de se relacionar com o passado teria produzido na
sociedade contemporânea uma patológica necessidade de exteriorizar a memória, dada a
consciência de que ela estaria se esvaindo; o que explicaria a ascensão de uma “memória-
registradora”. Segundo Nora, quanto:
Outra mudança importante que Nora atribui a essa mudança de “regime de memória” é
a sua conversão de uma prática coletiva em um exercício individual. “A psicologização
integral da memória contemporânea leva a uma economia singularmente nova da identidade
do eu, dos mecanismos da memória e da relação com o passado.”231
Assim, se a memória deixa de ser a repetição cotidiana do passado, encarnada no
hábito, para reafirmar os valores e visões de mundo de uma determinada coletividade, e é
substituída por uma prática que objetiva materializar/monumentalizar aquilo que o homem
contemporâneo não mais se dispõe a cultivar na sua vida diária, abre-se espaço, segundo o
autor, para que surjam “homens-memória”, ou seja, “consciências solitárias” que decidiram se
encarregar da memória. O que explicaria outras duas peculiaridades da contemporaneidade: a
227
Ibid, p. 7.
228
Ibid, p. 8.
229
Ibid, p. 12.
230
Ibid, p. 14-15.
231
Ibid, p. 18.
86
232
Ibid, p. 15-16.
233
SARLO, Beatriz. Tempo Passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução Rose Freire d’Aguiar.
São Paulo: Companhia das letras, 2007. p. 45.
234
Ibid, p. 48.
235
Ibid, p. 21.
87
estabelecer, naquele momento, uma avaliação crítica pareceria uma imensa insensibilidade
diante do “dever de memória”.
Embora reconheça o valor e a necessidade desses discursos testemunhais, Sarlo afirma
o caráter problemático desses impeditivos morais e afetivos. Em sua visão, eles estendem a
todos os aspectos do relato em primeira pessoa, e não só aos traumáticos, o status de verdade
inquestionável e de única fonte fidedigna. Segundo a autora, essas memórias são, antes de
tudo, discursos e “não deveriam ficar confinados numa cristalização inabordável.”236 Ela
defende que:
Essa crítica se justificaria pelo fato de que os aspectos não-traumáticos como, por
exemplo, o contexto sócio-político das ditaduras ou a ação política de um determinado grupo,
nesses períodos, no Cone Sul, foram registrados em outras fontes, o que permitiria a sua
confrontação com a versão testemunhal, e principalmente, por não haver razão moral para não
se examinar metodicamente esses discursos.238
Tendo em vista o caso específico da América Latina, sobretudo no contexto de
abertura política pós-ditaduras militares, e em comparação à historiografia acadêmica, Sarlo
apresenta a hipótese de que a explicação para a popularidade alcançada pela narrativa
testemunhal nos anos 1980 pode ser construída a partir da análise de distintas mediações
discursivas.
Se por um lado, o labor acadêmico exige que as teses sobre o passado sejam mediadas
pelas regras metodológicas e pela avaliação constante por seus pares, as memórias são
construídas “em função de necessidades presentes, intelectuais, afetivas, morais ou
políticas.”239 No entanto, a autora ressalta que essa constatação científica longe de atestar a
falsidade desse tipo de discurso deve nos atentar para sua íntima ligação com o imaginário
contemporâneo.240
236
Ibid, p. 47.
237
Ibid, p. 44.
238
Ibid, p. 47.
239
Ibid, p. 14.
240
Ibid, p. 13.
88
241
Ibid, p. 15.
242
Ibid, p. 37.
243
Ibid, p. 14.
244
Ibid, p. 50.
245
Ibid, p. 55.
246
Ibid, p. 52.
90
Nos anos 1980, através das obras Batismo de Sangue e O dia de Ângelo, Frei Betto
inicia o processo de concretização do projeto memorialístico que havia formulado em sua
escrita epistolar, dez anos antes. Como foi demonstrado no capítulo anterior, ele estava
baseado no propósito de comprovar que as ações dos dominicanos presos, e também de todos
os que optaram pela luta armada, não eram o simples resultado de um romantismo
irresponsável, típico aos jovens; mas sim, a expressão legítima de uma profunda reflexão que
os havia levado ao dissenso com as convenções políticas e religiosas.
Assim sendo, sua aspiração era comprovar que os dominicanos não eram hereges que
distorceram os dogmas da fé, mas portadores de uma visão renovada e dinâmica do
Cristianismo. Da mesma forma, era preciso deixar claro que aqueles que apoiaram ou
abraçaram a luta armada não eram simples terroristas assassinos, mas sujeitos que, sedentos
de justiça e acossados pela repressão militar, encontraram nessa opção a única forma de
vencer a desigualdade social e a ditadura.
A palavra que o autor consagra para nomear esse movimento que afastou os
dominicanos da postura tradicional da Igreja e os revolucionários da estrutura partidária é
“dissidência”. Assim, nos dois livros mencionados há uma clara disposição em valorizá-la
como fenômeno.
247
Ibid, p. 55-56.
248
Ibid, p. 21.
249
Ibid, p. 14-15.
91
As primeiras páginas de O dia de Ângelo são uma amostra da importância que autor
atribui à “dissidência” na construção de sua escrita memorialística. A narrativa se inicia com a
aparição, em sonho, do espectro da freira e poetisa Juana Inés de la Cruz ao protagonista.250
Em sua longa fala, ao clamar ao jornalista Ângelo P. que não abandonasse a prática da
escrita, o fantasma da religiosa, que viveu no vice-reino da Nova Espanha no século XVII, lhe
pede que “não permitas que acorrentem o Deus que te habita. Cria.”251 E, assim, lamenta:
Tive medo dos horrores da Inquisição [...] censurei o que de melhor havia em
minha criatividade, e afinal, renunciei as letras em nome de preceitos e de abnegada
submissão que – agora sei – nada tinham de evangélicos. Meros caprichos da razão
do poder.252
Através da fala da poetisa, frei Betto defende a ideia de que as raízes desse poder que
a obrigou a disfarçar os impulsos que alimentavam sua criatividade artística – como a
sensualidade – se encontram nas ortodoxias. Entretanto, o autor faz questão de, sutilmente,
afirmar que essa intransigência doutrinária não era defendida com unhas e dentes apenas por
aqueles que abraçam a missão de vigiar e condenar os que ousam questionar as hierarquias e
os valores do status quo, ela também seria peculiar àqueles que, alimentando o sonho de uma
revolução, seja política ou em relação aos costumes, exigem que a arte seja impreterivelmente
portadora de uma mensagem política. Dessa forma, a freira continua:
250
BETTO, 1987, p. 15-17.
251
Ibid, p. 17.
252
Ibid, loc. cit.
253
Ibid, p. 15.
92
escolha pode ser interpretada como uma tentativa, por parte do autor, de construir uma visão
da dissidência como algo necessário, imperioso, e não apenas como simples rebeldia ou
insubmissão. Dessa perspectiva, enquanto preso político, resistir seria uma obrigação moral, a
única maneira de sobreviver à barbárie à qual era submetido. Subentendendo-se que se a vida
não puder ser resguardada em seu aspecto físico, ela permanecerá presente na obra do artista.
Misturando elementos de um passado real com a construção de uma narrativa
ficcional, O dia de Ângelo é em si uma reflexão sobre os questionamentos que surgem
mediante o encontro entre a liberdade criativa do artista e os fatos da realidade que são
evocados pela sua memória.
Sendo a escrita a arte pela qual frei Betto expressa sua memória, o livro questiona se o
desejo de conhecer a realidade imporia limites à atividade. Ou, sendo a liberdade condição
sine qua non para o trabalho do artista, ele poderia compor a memória ao seu bel-prazer?
Em um trecho em que se refere à memória, frei Betto desenvolve essa reflexão:
Assim, o autor defende a ideia de que a “arte da memória” é, antes de tudo, uma
necessidade e uma escolha. Lembrar é escolher agir, meter-se em uma peleja. No entanto,
essa memória não é um produto da natureza; mas, sim, da criatividade humana que, de
maneira decidida e livre das amarras da “ortodoxia panfletária”255, precisa enredá-la,
construindo-lhe um sentido.
Frei Betto também inicia Batismo de Sangue propondo uma reflexão sobre a
dissidência, de modo a assegurar sua dignidade e importância. Em um longo texto que
compõe o primeiro capítulo da obra, o autor a apresenta como o elemento que faz com que a
cultura humana “acerte o passo” como as transformações históricas mais amplas.256
Interpretando a história humana como um movimento dialético e teleológico, o autor
apresenta Jesus, o apóstolo Paulo, Francisco de Assis e Martinho Lutero como exemplos de
254
Ibid, p. 66.
255
Ibid, p. 16.
256
BETTO, 1982, p. 28.
93
homens que por assumirem uma visão religiosa heterodoxa, dissidente, fizeram com que a
Igreja se renovasse e se fortalecesse ao longo dos séculos. Também o itinerário da Esquerda,
como corrente política, é interpretado sob essa ótica. Ela teria sido marcada pela ação de
homens como Lênin e Marighella que “apostataram aos olhos de seus antigos camaradas”257,
mas contribuíram para que sua luta se revitalizasse.
Batismo de Sangue apregoa que, por ser típica na trajetória das correntes políticas e
das matrizes religiosas, essa insurgência de alguns de seus membros ante o poder da ortodoxia
seria a característica análoga às duas esferas. Tanto na primeira quanto na segunda, as
dissidências emergem como um sinal de liberdade para os mais jovens e, por isso, elas os
seduzem. No entanto, nessa disputa intestina cabe à história exercer o papel de juiz:
“indiferentes ao nosso maniqueísmo, é possível que a prática e o tempo sejam menos
intolerantes e apontem os erros e os acertos de ambos os pratos da balança.”259 Dessa forma,
frei Betto demonstra acreditar que a narrativa é, antes de tudo, um dispositivo de poder ao
sublinhar que, se o dissidente vence, ele é “remido pela vitória”; se ele perde, sua morte é o
atestado de que os defensores da ortodoxia tinham razão. Logo, seria a memória que
expressaria ou falsearia a legitimidade da causa pela qual alguém lutou.
257
Ibid, p. 30.
258
Ibid, p. 28.
259
Ibid, p. 30.
94
que, naquela noite, impediu a festa do alvinegro praiano. A segunda, descreve a origem dos
progenitores do protagonista, Augusto Marighella e Maria Rita. Seu intento é descrever não
só o seu nascimento biológico, mas acima de tudo, o político. Ao se referir ao pai, frei Betto
faz questão de ressaltar que ele: “mecânico de profissão, socialista de ideias, trazia consigo a
experiência emergente do sindicalismo europeu”; quanto à mãe, o autor salienta: “descendia
ela dos negros haussás, escravos africanos trazidos do Sudão, sempre rebeldes à privação da
liberdade.”260
Nas seções seguintes do capítulo - visando empreender uma escrita dinâmica e não-
linear – frei Betto transcreve a famosa prova de química em versos que Marighella redigiu
quando frequentava o Ginásio da Bahia; narra a sua entrada para o PCB; explica o conflito
que a morte de Lênin gerou entre Stálin e Trotsky; e, por fim, relata a visita que fez à casa na
qual o criador do Exército Vermelho foi assassinado, situada na cidade de Coyoacán, no
México.261
Embora os temas escolhidos para iniciar o livro e, até mesmo, sua ordenação pareçam
incongruentes entre si, eles constituem uma preciosa amostra das intenções do autor e das
estratégias adotadas para alcançar esses objetivos.
O desejo mais elementar de qualquer escritor é convencer o leitor de que a versão que
ele construiu sobre o passado é a verdadeira. Assim sendo, a primeira estratégia de frei Betto
para alcançar essa meta é alicerçar a sua obra sobre um princípio explicativo, que nos casos de
Batismo de Sangue e O dia de Ângelo consistem no fenômeno da dissidência. Essa opção,
como apontou Sarlo, age como força organizadora do discurso, dotando-o de nitidez
argumentativa ao estabelecer “origem e causalidade”. 262
As dez primeiras páginas de Batismo de Sangue, que misturam as histórias de
Marighella, Trotsky e do próprio frei Betto, sugerem que a dissidência foi o catalizador que
conduziu, de maneira mais rápida, esses personagens ao encontro de seus destinos. Assim
sendo, a obra apresenta uma interpretação teleológica de todas as trajetórias mencionadas; a
heterodoxia teria sido uma opção consciente, diante dos dogmatismos políticos e religiosos,
para manterem-se fiéis aos valores que lhes foram legados e cultivados desde a infância.
Ao iniciar sua narrativa pela morte do revolucionário baiano, e logo em seguida
evocar suas origens, frei Betto procura construir um cerne discursivo para a sua biografia;
opção que justifica a menção às ideias socialistas do pai e à sede por liberdade dos
260
Ibid, p. 4.
261
Ibid, p. 8-10.
262
SARLO, 2007, p. 14.
95
A estratégia utilizada pelo autor para expor o caso dos dominicanos que se envolveram
com a ALN é a mesma utilizada em Batismo de sangue. A dissidência exerce, assim, um
papel de princípio explicativo tanto para a trajetória de Carlos Marighella, quanto para a dos
dominicanos.
Por meio desse recurso, frei Betto procura estabelecer uma espécie de biografia
coletiva dos religiosos com o objetivo de comprovar que os quatro frades abraçaram a
dissidência política movidos pelos mesmos valores e princípios. As trajetórias de Fernando,
Ivo, Tito e do próprio autor são narradas como pequenas amostras que relatam a importância e
o caráter revolucionário que o processo histórico de transformação do catolicismo na década
de 1960 teve na história da Ordem Dominicana, mas especialmente, na vida de cada um
desses personagens.
Frei Betto busca, de maneira constante, sedimentar a tese de que o único caminho
possível para se compreender as opções políticas do grupo de dominicanos presos é
considerar a emergência de uma nova visão do cristianismo no pós-guerra. A defesa
intransigente dessa interpretação não se deve apenas ao fato de oferecer uma explicação para
esse passado; mas também, e sobretudo, por vislumbrá-la como um meio de legitimá-lo,
especialmente, diante da Igreja Católica. Assim, em sua narrativa, essa dissidência religiosa
seria o elemento que dá sentido às suas histórias de vida, e, por sua vez, ao apoio à luta
armada.
O desencanto com o conservadorismo e a austeridade da Igreja Católica pré-Concílio
Vaticano II teria levado uma geração de jovens nascidos, especialmente, na década de 1940 a
enxergar os grupos especializados da Ação Católica como a vanguarda de um cristianismo
revitalizado, humanizado e crítico.
263
BETTO, 1982, p. 6.
96
Como exemplos dessa construção narrativa, podem ser tomados dois pequenos textos
nos quais frei Betto se dedica a biografar de maneira bastante resumida as experiências de Ivo
e Fernando, os frades que foram usados como iscas para que a polícia pudesse rastrear
Marighella.
Nos dois textos, frei Betto, com tom emotivo, se dirige diretamente aos confrades,
como se redigisse uma carta. Logo em seguida, ele narra as sessões de tortura das quais foram
vítimas. Através desses artifícios o autor proporciona a quem lê Batismo de Sangue a
impressão de estar penetrando a intimidade do diálogo privado entre dois amigos; o que, por
consequência, potencializa o status de verdade da narrativa.
Ao se dirigir ao frei Fernando, como se procurasse fazê-lo lembrar dos episódios mais
importantes de sua vida, mais uma vez, frei Betto apresenta o fenômeno da dissidência como
o princípio explicativo da narrativa. Assim, as raízes desse princípio estariam fincadas em
uma inquietação desenvolvida na infância do religioso, ou seja, na indignação com a
desigualdade social.
Frei Betto sugere que a visão renovada e desafiadora do cristianismo, descrita como
uma “proposta que inclui ascetismo, perseguições, difamações, prisões, torturas e morte”264,
teria dado ao confrade a compreensão da relação de causa e consequência existente entre sua
origem e o sofrimento vivido nas dependências do DOPS. Exatamente a noção de que ele
almeja incutir no leitor de Batismo de Sangue. Assim, segundo o autor, no espírito de frei
Fernando “prenunciava-se a estrada que, mais tarde, o conduziria ao calvário.”265
A infância de frei Fernando o teria conduzido a produzir um importante contraste
entre, de um lado, a vida de estudante junto aos tios abastados em um sítio de Visconde de
Rio Branco, em Minas Gerias; e o prazer que ele demonstrava em estar entre os empregados
da propriedade.
Assim, a narrativa de frei Betto insinua que foi a simplicidade do confrade, atestada
pelo seu apreço pelo convívio com os vaqueiros e seus filhos, o valor moral que o levou a
inquietar-se com uma realidade social que muitos vislumbravam – inclusive a Igreja,
representada pela figura do “velho vigário [...] que só falava em dinheiro”266 e se preocupava
apenas em aliviar a consciência dos ricos por meio da caridade – sem, no entanto, ao menos
comover-se com ela:
264
Ibid, p. 195.
265
Ibid, loc. cit.
266
Ibid, p. 193.
97
De noite, encolhido sob o lampião no chão rústico da casa dos vaqueiros e dos
peões, você ouvia os casos antigos, aprendia benditas curas vegetais e era
introduzido, assustado, no misterioso mundo dos lobisomens, das mulas-sem-
cabeça, dos sacis-pererês. Café ralo e pipoca distraiam o apetite e, neles, enganava a
fome que você não conhecia. 267
Essa simplicidade, típica de quem não faz distinção entre as pessoas por sua condição
social, somada ao convívio com os vaqueiros e peões, teria revelado ao jovem Fernando o
quão vergonhosa era a diferença entre a vida na casa dos tios e a sobrevivência na “choça”
dos mais pobres, associada, pelo autor, à distinção entre a casa-grande e a senzala dos tempos
da escravidão:
A casa da fazenda era solene, quartos recortados em janelas, comida farta, pomar
abundante e variado, contrastando com as choças dos empregados, o telhado vazado
na chuva, a família apertada no mesmo cômodo, dormindo em colchões de palha de
milho, as crianças misturadas aos porcos e às galinhas, pisando o mundo, o cuspe
dos homens com a boca desdentada atravessada pelo cigarro de palha e das mulheres
pensativas com seus cachimbos de barro.268
Esse tipo de estrutura narrativa produz uma série de características que, como apontou
Sarlo, tornam sua argumentação nítida e sua leitura bastante atrativa. Entre elas, se destacam:
o caráter teleológico e a linearidade. Até mesmo os mais ínfimos detalhes da narração se
tornam repletos de significado impreteríveis para se compreender os caminhos que teriam
levado o protagonista ao encontro de seu destino.
Ao narrar as sevícias de frei Fernando pelas mãos dos torturadores do DOPS, frei
Betto constrói um fio condutor que, ao ser observado retrospectivamente, sugere que elas
foram o resultado de sua postura dissente em relação ao conservadorismo da Igreja – o que a
tornava pactuante das elites – que lhe parecia “ainda fechada ao mundo”, o que, por sua vez,
teria decorrido necessariamente de sua inquietação com a injustiça social vivenciada durante a
sua infância:
Em 1954, você chega a Belo Horizonte para estudar com os franciscanos. Esses
holandeses eram expansivos, liberais, misturavam-se aos alunos e gostavam de boa
cerveja. Mas também não responderam às suas indagações. No ano seguinte, colegas
o convidaram à romaria dos estudantes da JEC, rumo à serra da Piedade, onde o
dominicano Frei Rosário Joffily já tinha plantado sua tenda de eremita, revestido de
sabedoria, fazendo da mística um explosivo desafio à vida e, especialmente, à
soberana arte da política. No caminho, você conheceu jovens diferentes que
contavam piadas entre reflexões cristãs, partilhavam suas angústias e descobertas
sexuais com a mesma seriedade com que falavam de seus estudos e dos problemas
sociais. A surpresa maior, entretanto, foi ver aquele homem de hábito branco metido
267
Ibid, loc. cit.
268
Ibid, loc. cit.
98
nas conversas sem inibir os jovens, irradiando simpatia, confiança e argúcia: Frei
Mateus Rocha, que se tornaria pai de uma geração mineira, inspirada em seu
exemplo e estímulo. Na mesma noite, os ventos frios da serra, assobiando entre as
pedras, protegeram seu longo papo com Frei Mateus. Toda a sua vida aflorou
naquela noite. Se o frade não lhe deu respostas, ao menos abriu pistas a serem
seguidas e alargadas. E plantou em você um hábito: a leitura cotidiana do Novo
Testamento.
Na JEC, o estudo das encíclicas sociais e a atividade apostólica o fizeram percorrer
o caminho que, logo, o levaria ao convento da Serra, onde você assumiu o hábito
dominicano. São Tomás de Aquino e os místicos tornaram-se seus companheiros
diletos, embora a Igreja lhe parecesse uma casa ainda fechada ao mundo. A janela
foi aberta pela encíclica Mater et Magistra do velho e bom Papa João que, logo em
seguida, escancarou as portas convocando a Igreja para o Concilio Vaticano II. Você
descobria que o fermento não pode ficar fora da massa, a luz não deve ser escondida
debaixo da mesa e nem o sal separado da comida. A inserção no social foi
consagrada pela encíclica de Paulo VI, a Populorum Progressio, em 1967, na qual se
assegura aos oprimidos até mesmo o direito de se defenderem da violência dos
opressores. No ano seguinte, a versão latino-americana do Concilio aconteceria na
conferência episcopal de Medellín, conclamando todos os cristãos a passarem das
palavras à ação.269
No caso de Frei Ivo, a estrutura se repete. Frei Betto evoca a infância do confrade para
estabelecer um fio condutor que explique o abandono da vida tranquila na cidade do Rio de
Janeiro, repleta de “mar e areia e sol”, para sentir na pele “as pedras, os espinhos e a noite” da
capital paulista.
Assim como no caso de frei Fernando, frei Betto elenca a simplicidade como o
elemento que deu ao jovem Ivo um espírito crítico ante as desigualdades sociais, o que, por
conseguinte, o entusiasmou para a militância política. Essa construção é bastante evidente no
trecho em que ele ressalta que o confrade, mesmo após ter se mudado para o glamuroso bairro
de Copacabana, não se “afastou das peladas na praia, do basquete e da dança”, nem se
“impregnou do elitismo que inebriava, por condição social, seus colegas de classe.”270
De maneira linear, e estabelecendo uma relação de causa e consequência, frei Betto
apresenta essa simplicidade pueril como o valor moral que fez com que o confrade carioca, de
ascendência francesa, se encantasse na adolescência pelo cristianismo rejuvenescido e
descontraído da JEC e dos frades dominicanos do Leme.
Em sua narrativa, mais uma vez, frei Betto procura contrastar a concepção do grupo
religioso que integrava sobre a verdadeira vida cristã, com a visão professada pelo catolicismo
tradicional. Ele afirma que a fé que despertou a vocação religiosa em Ivo, e que seria
compartilhada por seus confrades, era “menos centrada nos ritos porque mais voltada para os
outros”, justamente, porque baseava-se na articulação de uma “opção cristã com o interesse
pelas questões sociais”. Dessa forma, seria o compromisso radical com a justiça social, como
269
Ibid, p. 194.
270
Ibid, p. 200.
99
A segunda estratégia para dar veracidade às narrativas que compõem às obras de frei
Betto é o uso copioso de detalhes. Através da leitura de Batismo de Sangue observa-se que
essas minúcias referem-se tanto a detalhes físicos dos locais e das pessoas mencionadas como
a traços de personalidade e estados emocionais.
Quando o frade narra, por exemplo, o episódio de sua prisão em um apartamento no
centro de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, não só detalha as características físicas dos
militares que o apreenderam, como também, o local e a tensão que a situação provocara nos
presentes.
O coronel Moreira é descrito como “de meia-idade, magro, cabelos encardidos, rosto
estreito, esforçava-se por demonstrar simpatia.”271 Já o major Áttila, que o acompanhava, era
“mais jovem, cerca de quarenta anos, cabelo à príncipe Danilo bem-aparado dos lados, rosto
redondo, a gordura bem-disfarçada sob a roupa.”272 Ao receber voz de prisão dos militares à
paisana, o dominicano solicitou permissão para ir ao banheiro. Ao explicitar esse detalhe, o
autor revela a atitude como um pretexto para se livrar de qualquer objeto que pudesse levantar
maiores suspeitas.
A composição narrativa desse episódio é marcada por sequências descritivas, com
riqueza de detalhes, acerca do espaço, das pessoas e, até mesmo, e, curiosamente, da urina:
271
Ibid, p. 104.
272
Ibid, p. 105.
273
Ibid, loc. cit.
100
Gravou-se em minha memória este diálogo entre os dois, através das grades
solitárias:
– Jeová, você foi torturado horas seguidas. Desmaiou várias vezes. Fizeram com
você o que não fizeram com o Cristo. Quebraram seus brações e pernas. Você podia
ter morrido. Não passou por sua cabeça que a morte seria o encontro com o
Absoluto, com Alguém? Você se sente realizado? E se tivesse morrido?
– Padre, agora me sinto feliz porque conheço o gosto da morte. Sei, por
experiência, que sou capaz de dar a minha vida pela causa revolucionária. Minha
vida foi entregue aos oprimidos.
– Quem ama passa da morte para a vida. Nenhuma leitura cristã, de fé, quem faz a
experiência do dom total, do amor, está salvo e se encontra com Deus. A Bíblia não
diz que serão salvos os que tem fé e celebram o culto, mas sim os que são capazes
de amar. Para estar aqui nesse calabouço, eu arrisquei muito pouca coisa. Mas você
arriscou sua juventude, a carreira universitária, a formação de uma família e a
própria vida, por amor. Você faz a experiência do dom total. Isso, numa leitura
cristã, vale mais que proclamar a fé.
Jeová retrucou enfático:
– Como o senhor arriscou pouco!? O senhor é monsenhor!
– Sou merda e você é Cristo. O capítulo 25 do evangelho de São Mateus mostra
claramente quais são os critérios de salvação: são as respostas eficazes que damos às
necessidades econômicas, sociais e espirituais do próximo. Jesus se identifica com
quem tem fome, sede, vive abandonado ou aprisionado. O que fazemos ao oprimido
para libertá-lo é ao próprio Cristo que o fazemos. Portanto, Jeová, o que você faz
pela humanidade, pelo amor dos homens, é por Ele que você o faz.274
274
Ibid, p. 208.
101
275
“Heleny, formada em Filosofia pela USP, especializou-se em cultura grega. Paralelamente, estudou teatro.
Trabalhou como professora na Faculdade de Filosofia da USP e na Escola de Arte Dramática de São Paulo
(EAD). [...]
Com a edição do AI-5, seu trabalho foi interrompido. Em março de 1970, foi presa em Poços de Caldas (MG).
[...] foi localizada no DOPS/SP [...]. Tinha marcas roxas nas mãos e nos braços, provocadas por choques
elétricos. Na Oban (DOI-Codi/SP), foi torturada pelos capitães Benoni de Arruda Albernaz e Homero César
Machado, tendo sido internada no Hospital Militar durante dois dias em função de hemorragia provocada pelas
torturas. Foi transferida para o Presídio Tiradentes, onde cumpriu pena durante um ano [...]. Em abril de 1971,
conseguiu a liberdade [...].
Heleny foi presa junto a Paulo de Tarso Celestino da Silva (dirigente da Ação Libertadora Nacional) por agentes
do DOI-CODI/RJ em 12 de julho de 1971, no Rio de Janeiro, e nunca mais foram vistos.
Seus nomes constam da lista de desaparecidos políticos do anexo I, da lei 9.140/95.” Cf. COMISSÃO DA
VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO. Mortos e Desaparecidos/ Heleny Ferreira Telles Guariba.
Disponível em: <http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/heleny-ferreira-telles-guariba>.
Acesso em 18 de abr. de 2019.
102
276
“José Roberto Arantes de Almeida [...] com Carlos Marighella e outros descontentes com a direção nacional do
PCB em São Paulo, funda a Dissidência Comunista de São Paulo, cuja maior parte dos membros mais tarde
integraria a Ação Libertadora Nacional (ALN). José Arantes transformou-se rapidamente em importante e
conhecida liderança estudantil, ocupando a vice-presidência da UNE na gestão de 1967-1968. Preso em outubro
de 1968, na ocasião do XXX Congresso da UNE, em Ibiúna/SP, consegue fugir das dependências do DOPS/SP e
assume a presidência da entidade. [...] Em 1969, deixa o país pela fronteira sul com destino a Cuba para
realização de cursos políticos e militares na preparação para a guerrilha. [...]. Depois de retornar
clandestinamente ao Brasil em 1971, José Roberto Arantes – assim como outros militantes com curso de
guerrilha em Cuba – passou a ser vigiado e perseguido pelos órgãos de repressão do estado. [...] José Roberto
Arantes foi preso em 4 de novembro de 1971, na Rua Cervantes, nº7, Vila Prudente em São Paulo, no mesmo
local e data do desaparecido político Aylton Mortati. Preso, foi levado vivo à sede do DOI-CODI II Exército,
onde morreu depois de intensas sessões de tortura. Enterrado como indigente no cemitério D. Bosco, em Perus,
seu corpo só foi entregue à família depois que o delegado do DEOPS/SP, Emiliano Cardoso de Mello, – amigo
da família – informou, uma semana depois dos fatos, familiares sobre a prisão e morte de Arantes. [...] O nome
de José Roberto Arantes consta no Dossiê ditadura: Mortos e Desaparecidos no Brasil (1964-1985) organizado
pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, nas páginas 286 e 287.” Cf. COMISSÃO DA
VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO. Mortos e Desaparecidos/ José Roberto Arantes de Almeida.
Disponível em: < http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/jose-roberto-arantes-de-almeida
>. Acesso em 18 de abr. de 2019.
277
“Clara Charf [...] filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), aos 21 anos, onde conheceu Carlos
Marighella, seu futuro companheiro de vida e militância. Ao lado dele, viveu na clandestinidade e militou pelo
comunismo durante os anos pós-Segunda Guerra Mundial e contra a ditadura civil-militar que se instaurou em
1964.
Integrou a Ação Libertadora Nacional (ALN), fundada em 1967 por Marighella, militante que chegou a ser
considerado o inimigo número um do regime. O relacionamento dos dois durou de 1948 a 1969, até o assassinato
dele por agentes da ditadura, em ação comandada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury.
Logo após a morte do companheiro, Clara se exilou em Cuba, onde viveu por dez anos com identidade falsa,
trabalhando como tradutora. Com a promulgação da Lei da Anistia em 1979, voltou ao Brasil, e se filiou ao
recém fundado Partido dos Trabalhadores (PT), pelo qual saiu candidata a deputada federal em 1982.” Cf.
INSTITUTO VLADIMIR HERZOG. Clara Charf. Projeto Memórias da Ditadura. Disponível em:
<http://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/clara-charf/>. Acesso em 18 de abr. 2019.
278
“Nasceu em 17 de junho de 1946, em São Paulo (SP) [...]
Estudante de Psicologia na Universidade de São Paulo era a responsável pela imprensa da UEE/SP. Manteve
ativa presença no movimento estudantil nos anos 1967 e 1968; conhecida como Lola, foi namorada de José
Roberto Arantes de Almeida (assassinado em 1971).
[...] após o AI-5, passou a atuar politicamente na clandestinidade. Integrou-se à ALN, atuando no Rio de Janeiro
(RJ), onde foi responsável pela imprensa, publicando o jornal da organização chamado Ação.
Foi presa em 9 de novembro de 1972, no bairro de Parada de Lucas, Rio de Janeiro, durante uma batida policial
realizada por uma patrulha do 2º Setor de Vigilância Norte, após rápido tiroteio, em que matou um policial. [...]
Foi torturada desde o momento de sua prisão na presença de vários populares que se aglomeravam ao redor da
cena. Aurora foi conduzida para a Invernada de Olaria, onde continuou sendo torturada por policiais do DOI-
CODI/RJ e integrantes do Esquadrão da Morte.
Aurora viveu os mais terríveis tormentos nas mãos dos torturadores que, além de utilizarem os tradicionais pau-
de-arara, sessões de choques elétricos, espancamentos, afogamentos e queimaduras, aplicaram-lhe a ‘coroa de
Cristo’, ou torniquete, uma fita de aço que vai sendo gradativamente apertada, esmagando aos poucos o crânio
da vítima.
Em 10 de novembro, morreu em conseqüência das torturas, quando jogaram seu corpo crivado de balas na
esquina das ruas Adriano com Magalhães Couto, no bairro do Méier, no Rio de Janeiro. Seu corpo chegou ao
IML/RJ classificado como o de “desconhecida”, pela guia 43 da 26ª DP. [...].
Conclusão: Aurora Maria Nascimento Furtado foi morta sob tortura pelos agentes do DOI-Codi do I Exército do
Rio de Janeiro.” Cf. COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO. Mortos e Desaparecidos/
Aurora Maria Nascimento Furtado. Disponível em: <http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-
desaparecidos/aurora-maria-nascimento-furtado>. Acesso em 18 de abr. de 2019.
103
Gostei muito de vê-la, Aninha. Sua casa cor-de-rosa, o marido afável, as crianças
lindas e saudáveis. Na sala, o casal de operários, seus amigos. [...] decifrei em sua
face que a vida lhe foi pródiga; provei na sua comida o sabor da amizade que se faz
mais responsável na sobrevivência; contemplei em sua família que os frutos do
parto, gerados no amor, igualam-se à tomada do poder pelos famintos de justiça e
sedentos de liberdade.279
Sofrida esperança de famílias à porta da mesma casa de onde saíram seus filhos, a
aguardar-lhes a silhueta na curva da esquina, a estremecer de saudades o coração de
um pai a cada toque estridente do telefone, a tremer as mãos sôfregas da mãe
querendo adivinhar a letra da filha no papel de carta.280
No texto destinado a outra amiga, o frade ressalta o alento que a presença da família
significava na vida daqueles que estavam sofrendo as agruras da tortura e da prisão. Assim,
ele descreve a comemoração do aniversário de Heleny Guariba no presídio Tiradentes:
Guardo de você o retrato da última vez que nos vimos: era seu aniversário e seus
filhos levaram um bolo com velinhas e um presente. Ao desfazer a fita de cetim rosa
e o papel colorido, você viu o que era e começou a achar muita graça, a mostrar pra
todo mundo, a beijar as crianças que, como você, riam das calcinhas em suas
mãos.281
Outra característica dos militantes que frei Betto procura registrar é o carinho para
com seus parceiros amorosos. Ao se dirigir à Clara Charf, viúva de Marighella, o escritor
salienta a cumplicidade e o ardor de uma relação que foi vivida, quase que o tempo todo, em
meio aos perigos da clandestinidade:
279
O uso do nome no diminutivo também é uma forma de humanizar a personagem. Cf. BETTO, 1982, p. 126.
280
Ibid, p. 125.
281
Ibid, p. 52.
104
A busca de palavras adequadas para exprimir o amor que os uniu seria tão precária
como o esforço dos poetas para traduzir, nos limites do código alfabético, os
eflúvios de uma sensibilidade apaixonada. Os mistérios do amor transbordam as
palavras. [...] para nós Marighella foi o revolucionário cujas ideias e ações podemos
recuperar pela memória. Para ti, foi também o companheiro que deu vida a tua vida,
numa fusão única e rara: o caso de amor transubstanciado em causa de amor. 282
“Lola” foi o grande amor da sua vida. [...] Não foi preciso manter à mão a arma
que lhe dava segurança. O local era quase deserto e você e “Lola” passaram horas
brincando no mar, o sol aquecendo seus braços, as ondas embalando seus sonhos, a
areia fina impregnada na pele banhada de suor, saciada de amor. Foram dias de
muita descontração e alegria.283
Também fui escoteiro na infância, Zé. Só que não deixei a tropa pelo piano, como
você fez. [...] Sua aprovação no vestibular do Instituto Tecnológico da Aeronáutica
de São José dos Campos, em 1961, foi comemorada com muita alegria. Você tinha
apenas dezesseis anos e entrar no ITA, àquela época, era prova de superior
capacidade intelectual, mormente na sua idade. Muitos tentavam, poucos
conseguiam. 284
282
Ibid, p. 184.
283
Ibid, p. 62.
284
Ibid, loc. cit.
285
Ibid, p. 51.
286
Ibid, p. 49.
105
Mas, sem dúvida, o perfil que recebeu uma atenção especial quanto a essa
característica é o de Marighella. Frei Betto se esforça em demonstrar o caráter multifacetado
da personalidade do revolucionário baiano. Pode-se deduzir que isso se deve ao fato de que os
meios de comunicação construíram uma reputação caluniosa do líder da ALN, a qual
inspirava entre os seus amigos, companheiros e admiradores um sentimento de injustiça. A
sua posição de proeminência no universo da luta armada fazia com que o seu nome fosse
frequentemente veiculado.
Por isso, ao tratar de sua trajetória, Frei Betto conjuga a tenacidade de um
revolucionário forjado no sofrimento com a sensibilidade de um homem espirituoso. Assim,
logo no primeiro capítulo, ele descreve sua resistência hercúlea às seções de tortura a que foi
submetido, contrastadas ao seu espírito de poeta:
Queimam-lhe as solas dos pés com maçarico, enfiam-lhe estiletes sob as unhas,
arrancam-lhe alguns dentes. Mas não conseguem fazê-lo falar. Seu mutismo é o selo
da fidelidade. Conseguem apenas deixar em sua testa larga a pequena cicatriz que
restou da coronhada recebida ao dar uma risada na cara de um policial, em plena
tortura. Seu comportamento levaria um delegado a afirmar que “só existe um macho
no partido comunista: é esse baiano Marighella”.287
Outro episódio que frei Betto mobiliza em seu texto com o intuito de atestar a
complexidade da personalidade de Marighella é o lançamento, em 1966, de dois livros com
poemas do militante. Para isso, o autor associa ao fato de que essa iniciativa se dá no mesmo
ano em que se exasperam as suas discussões com o comitê central do PCB sobre qual seria a
melhor tática para vencer a ditadura. A gravidade dessas divergências, levou-o a romper com
a direção do partido em agosto do ano seguinte.
Dessa forma, frei Betto destaca:
287
Ibid, p. 11.
288
Ibid, p. 10.
289
Ibid, p. 26.
106
Na cadeia, tenho descoberto o Evangelho de S. Mateus. O troço tem que ser ou pão
ou pedra. Noutras palavras, acho que ele nos convida a sermos simplesmente
homens. É impressionante como tantos não-cristãos aqui vivem isso até as últimas
conseqüências. Outro dia dizia-me um jovem: "Não falei nada porque fiz uma opção
e diante dela morrer ou não é secundário".292
Assim, frei Betto procura demonstrar que poucos dias antes de ser levado pelos
agentes do DOI-CODI e submetido às mais bárbaras sevícias, o confrade refletia sobre o
significado de resistir à tortura e sobre como o compromisso com os seus companheiros e
com os seus ideais tornava o risco de morte algo menos importante.
Isso ressignificaria o fato, recorrentemente mencionado pelo autor, de que frei Tito
manteve o silêncio, não sucumbindo, dessa forma, aos maus-tratos dos quais foi alvo, apesar
do nível extremo de violência. Segundo a narrativa, o dominicano já havia experimentado a
dor e tinha plena consciência do perigo, mas, ainda assim, escolheu se calar e assumir os
290
SARLO, 2007, p. 52-56.
291
BETTO, 1982, p. 227.
292
Ibid, p. 227.
107
riscos desse ato. Ou seja, sua atitude revelaria uma indiferença diante da morte e uma aposta
na “vitória do espírito sobre a carne”.293
Na narrativa de frei Betto não há distinção entre a postura do confrade diante das
torturas reais ou daquelas que sofria nas alucinações que experimentou depois de ser expulso
do Brasil. Mesmo delirando, a primazia de seus valores deslocaria o medo de morrer para um
segundo plano:
O silêncio de sua quietude mística, povoada pela presença inefável do Pai, rompe-se
por efeito de um pavoroso delírio: ele ouve continuamente a voz rouca e autoritária
do delegado Fleury, hóspede intruso do cérebro, do medo e dos porões da
consciência de Frei Tito. Quer que ele confesse e diga todas as coisas que sabe e
invente o que puder e dê vivas aos generais brasileiros e delate todos os seus amigos
e acuse os dominicanos, a Igreja, o Papa, e assine depoimentos falsos. Tito resiste,
não fala, suporta estoicamente todos os sofrimentos experimentados na Oban, agora
introjetados em seu espírito. Fleury ameaça torturar cada um dos membros de sua
família: o velho pai, a mãe, as irmãs, os irmãos. Tito prefere morrer do que ceder.
Ainda que sua família padeça, há nele uma força descomunal que o impede de trair
seus ideais. O chefe do Esquadrão da Morte cumpre a promessa: em seu estreito
quarto no convento de L'Arbresle — que visitei no outono de 1980 —, Frei Tito
estremece aos gritos do pai espancado no DOPS, geme aos berros da mãe
dependurada no pau-de-arara, arrepia-se de pavor aos espasmos de seus irmãos
eletrocutados, contorce-se em calafrios ao ver as irmãs despidas pelos homens do
Esquadrão. Todavia, a dor, o pânico, a subjetividade como palco de intenso conflito
entre o Absoluto e o absurdo não quebram a sua fidelidade.294
Entretanto, frei Betto, ao descrever em Tito essa atitude de quase desprezo pela
ameaça física, busca ressaltar e justificar o fato de que, ao não dizer nada aos seus algozes, o
confrade aceitou o suplício e a morte voluntariamente, a exemplo de Jesus. Segundo Carlota
Miranda Urbano, essa é a principal característica do mártir nas tipologias da hagiografia: a
emulação do sacrifício de Cristo ao “abraçar livremente a paixão”.295
Urbano afirma que a solidez e longevidade da herança literária que as tipologias do
martírio na hagiográfica representam pode ser demonstrada pela presença, já no Antigo
Testamento, desse modelo de narrativa, através do qual, se deseja abordar o sofrimento
daqueles que aceitaram enfrentar a rejeição, as perseguições e até o risco de serem mortos em
nome de suas convicções religiosas. Nas histórias de profetas como Isaias, Elias e Jeremias,
por exemplo, já se ensaiam algumas peculiaridades que, posteriormente, nos textos bíblicos
sobre a paixão de Jesus, formariam o protótipo do martírio cristão.296
293
URBANO, Carlota Miranda. Tipologias literárias do martírio na hagiografia. As origens. Theologica. Braga.
ISSN 0872-234X. Nº 41. 2ª série – Fasc. 2 p. 331-358, 2006. p. 343.
294
BETTO, 1982, p. 245.
295
URBANO, 2006, p. 343.
296
Ibid, p. 332.
108
297
Ibid, p. 335-336.
298
Ibid, p. 354.
299
BETTO, 1982, p. 253.
300
Ibid, loc. cit.
109
Oblativa, emergiu em ti, irmão, a sombra da morte, Recolhias em teu dom o risco
que sobre nós pairava. Resgatava-nos das florestas do medo pela tua coragem de
abrir as portas dos jardins do Éden, anjo sentinela à entrada proibida das moradas
inferiores. Apossaste-te sozinho do cálice que te foi dado beber no Horto das
Oliveiras, sorvendo-o sofregamente, até a última gota. Clamaste ao Pai para afastá-
lo de nós, entregando-te a copa na qual nos deste teu corpo e teu sangue.
— Na cela cheia de lixo encontrei uma lata vazia. Comecei a amolar sua ponta no
cimento. [...] tratava-se desimpedir que outros viessem a ser torturados e de
denunciar à opinião pública e à Igreja o que se passa nos cárceres brasileiros. Só
com o sacrifício de minha vida isso seria possível, pensei. Como havia um Novo
Testamento na cela, li a Paixão segundo São Mateus. O Pai havia exigido o
sacrifício do Filho como prova de amor aos homens. Desmaiei envolto em dor e
febre.301
[...] O capitão Albernaz queria que eu dissesse onde estava o Frei Ratton.
Como não soubesse, levei choques durante quarenta minutos. Queria os
nomes de outros padres de São Paulo, Rio e Belo Horizonte "metidos na
subversão". Partiu para a ofensa moral: "quais os padres que têm amantes?",
"porque a Igreja não expulsou vocês?", "quem são os outros padres
terroristas?" Declarou que o interrogatório dos dominicanos feito pelo DOPS
tinha sido "a toque de caixa" e que todos os religiosos presos iriam à Oban
prestar novos depoimentos. Receberiam também o mesmo "tratamento".
Disse que "a Igreja é corrupta, pratica agiotagem, o Vaticano è dono das
maiores empresas do mundo". Diante de minhas negativas, aplicavam-me
choques, davam-me socos, pontapés e pauladas nas costas. Revestidos de
paramentos litúrgicos, os policiais me fizeram abrir a boca "para receber a
hóstia sagrada". Introduziram um fio elétrico. Fiquei com a boca toda
inchada, sem poder falar direito. Gritavam difamações contra a Igreja,
berravam que os padres são homossexuais porque não se casam. Às 14
horas, encerraram a sessão. Carregado, voltei à cela, onde fiquei estirado no
301
Ibid, p. 234.
302
URBANO, 2006, p. 345.
110
chão.303
Simbolicamente, frei Betto constrói a história desse confronto de frei Tito com as
autoridades que o atacavam em dois episódios descontínuos. No primeiro, ele narra a
renovação dos votos do religioso em 1970, contrariando a proibição imposta pela Auditoria
militar. Nas palavras do autor:
303
BETTO, 1982, p. 232.
304
Ibid, p. 241.
305
Ibid, p. 243.
306
URBANO, 2006, p. 345.
111
Entretanto, por unir em uma mesma narrativa o sofrimento físico, típico das
Passiones, e o confronto verbal, próprio dos Acta, o dossiê que frei Betto construiu sobre o
amigo Tito se aproxima mais das Legendas. Segundo Urbano, esse modelo de hagiografia do
martírio, além de promover a junção dessas duas modalidades de escrita, que lhe garante
como resultado um texto mais elaborado, apresenta como característica fundamental a
celebração da grandeza do mártir que seria “proporcional à força do mal e das trevas”.307
Segundo a autora:
Esta idealização do mártir não nos apresenta o homem limitado pela natureza
humana, sujeito à sua fragilidade, resignado ao sofrimento que lhe é
infligido, sustentado pela força da sua fé, mas uma figura quase sobre-
humana, inteiramente favorecida por Deus, seu aliado. Mesmo antes da
prova suprema do martírio, o mártir surge como vencedor, participando já da
glória que posteriormente vai receber na apoteose final.308
Michel de Certeau denomina essa grandeza como “virtude”. Mas adverte que o termo
“se aproxima mais do extraordinário e do maravilhoso”309, deixando para segundo plano o seu
frequente significado moral. Ou seja, a capacidade do mártir em persistir na profissão de fé,
mesmo sendo submetido a violências lancinantes, seria a manifestação de um poder
inteiramente baseado no apoio divino.
Facilmente se percebe a influência da tradição das Legendas na narrativa de frei Betto.
A constância com que ele salienta a resistência de frei Tito às dores indizíveis da tortura, sua
tenacidade ao manter-se calado e sua coragem/generosidade de oferecer/tirar a própria vida
como forma de salvar os companheiros e de fazer com que o bem triunfasse sobre o mal
(representado pela figura dos torturadores que se apossaram da sua mente) revela que esses
são os fundamentos para que sua escrita celebre a grandeza/virtude de seu companheiro.
Esses elementos são apresentados pelo autor como símbolos de momentos específicos
na trajetória do amigo, nos quais ele ultrapassou os limites da humanidade e, no mínimo,
tocou o campo do divino. Isso não significa dizer que frei Betto os interpreta como produtos
de milagres sobrenaturais, o que não é do seu feitio; mas, que considera que o caráter sobre-
humano das atitudes do confrade nessas situações-limite só pode ser compreendido mediante
o reconhecimento de que sua base foi o apoio irrestrito e constante de Deus. Dessa forma, frei
Betto procura demonstrar que a narrativa do destino trágico de frei Tito é, na verdade, a de um
307
Ibid, p. 346.
308
Ibid, loc. cit.
309
CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1982. p. 273.
112
“martírio contemporâneo”, pois, ao contrário do herói que conquista seu lugar na memória
graças à sua trajetória de vida, é através de sua morte que um mártir alcança seu assento na
história.
Ao abrir espaço em uma narrativa tão trágica como a do assassinato de Marighella e
do suplício de frei Tito para ressaltar que – para além da firmeza ideológica que dava aos seus
amigos disposição para morrer por um projeto de revolução ou pela derrubada de uma
ditadura – existia o apego à família, o carinho pelos parceiros amorosos, a fidelidade às
amizades e a sensibilidade intelectual/artística, frei Betto promove uma valorização da
subjetividade, o que, segundo Sarlo, constitui o caráter romântico da escrita memorialística.
310
ROLLEMBERG, Denise. Esquecimento das memórias. In: MARTINS FILHO, João Roberto (org.). O golpe de
1964 e o regime militar. São Carlos: EDUFSCar, 2006. p. 84.
113
silêncio, o jornalista conseguiu não só contribuir para uma aparente “vitória” da esquerda no
campo da memória, como também conseguiu sobrepor sua versão sobre as muitas outras que,
apesar de publicadas, não conseguem, ainda hoje, alcançar a mesma aderência.
Segundo a historiadora, essa dupla vitória foi o resultado da capacidade de Gabeira de
atender às demandas do contexto de Abertura. Diante do processo de distensão, promovido e
controlado pelos militares, cujo marco cronológico mais emblemático é a volta dos exilados
em 1979 – processo no qual se inclui o autor –, era preciso falar do passado sem, no entanto,
tocar a ferida, de maneira que se promovesse uma conciliação. Por outro lado, para a
sociedade e até mesmo para grupos de esquerda, a tese de que haviam lutado para reaver a
democracia perdida era altamente desejável por seu potencial legitimador. Dessa forma, a
versão de Gabeira teria sido produzida sob a “égide da resistência”.311
Em O que é isso companheiro? se reforça a ideia de que a sociedade não tinha
consciência do que acontecia com os presos políticos e, nem mesmo, com os comuns. Dessa
forma, se dissipa qualquer referência ao apoio que vários setores deram ao golpe e ao regime
que se inaugurou com a derrubada de Goulart. Essa constatação exemplificaria o seu esforço
para esquecer certos aspectos daquele período; o que, segundo Rollemberg, não é
exclusividade do trabalho de Gabeira uma vez que: “Nas próprias autobiografias, a reflexão
sobre as relações da sociedade com o regime é muito fragilizada.”312
Através do livro de Fernando Gabeira, Rollemberg procura salientar as funções da
memória. Embora reconheça o papel silenciador que O que é isso companheiro? exerce sobre
as outras autobiografias de ex-militantes da luta armada, ela resiste a atribuir-lhe os mesmos
adjetivos elencados por Michel Pollack para caracterizar a chamada “memória englobante”.313
Considerando que o livro se destaca muito mais por dar coesão aos grupos em que o
autor estava inserido (em relação à sociedade e à esquerda armada), a historiadora prefere
qualificá-lo como “marginalizador”.314 Sua proposta é que a reflexão sobre a construção da
memória em relação ao período assuma como referências imprescindíveis tanto as funções
positivas (formação de uma comunidade afetiva) quanto as negativas, sem que com isso se
desconsidere a discordância assimétrica que existe entre as posições de Pollack e Halbwachs.
311
Ibid, p. 85.
312
Ibid, p. 88.
313
Ibid, p. 86.
314
Segundo Rollemberg, “[...] será preciso pensar a memória coletiva nessas duas abordagens, simultaneamente,
como coesiva e marginalizadora, embora mais aquela do que esta, mas sempre expressão da sociedade que se
queria renovada para os novos tempos, lembrando para esquecer. Nesse processo mais uma vez, a luta armada –
agora a sua memória ou parte substantiva dela – passava ao largo da sociedade, reafirmando-se, no presente, sua
vocação no passado.” Cf. Ibid, loc. cit.
114
As críticas de Daniel Aarão Reis ao livro de Gabeira vão nesse mesmo sentido e são
referências para o trabalho de Rollemberg. O autor também considera que a versão de Gabeira
prevaleceu graças a sua capacidade de atender às demandas do contexto.
Reis deixa claro que, como em qualquer obra memorialística, a narrativa é muito mais
testemunha do contexto em que é empreendida, do que fonte reveladora de aspectos do
período que aborda. Assim, o autor considera que em O que é isso companheiro? a autocrítica
de Gabeira e a maneira como ele conduz o leitor através do desenrolar da história tirariam o
foco de questões sensíveis do período. Ao produzir a memória, por consequência, também se
estabelece o esquecimento. E assim, se crê ser possível reconciliar a sociedade com o passado,
evitando os revanchismos.
315
AARÃO REIS, Daniel (Org.). Versões e Ficções: O seqüestro da História. São Paulo: Editora fundação Perceu
Abramo, 1997. p. 36.
316
Ibid, p. 37.
317
ROLLEMBERG, Denise. As Trincheiras da Memória. A Associação Brasileira de Imprensa e a ditadura (1964-
1974). In: QUADRAT, Samantha Viz; ______ (Orgs.). A construção social dos regimes autoritários:
legitimidade, consenso e consentimento no Século XX. Vol. 2: Brasil e América Latina. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010. p. 99.
115
Em O que é isso companheiro?, Gabeira anuncia que sua narrativa é uma tentativa de
compreender os acontecimentos das décadas de 1960 e 1970 que o havia levado para o
exílio.318 Dessa forma, do começo ao fim, o livro é um grande julgamento das ações das
esquerdas. Ao narrar, o autor alterna a utilização da primeira pessoa do singular e do plural,
construindo uma oscilação entre a sua perspectiva pessoal e a do grupo ao qual pertencia,
buscando, com isso, fazer uma crítica contundente ao universo ideológico por meio da ironia
de suas próprias ilusões.
Embora, comumente, acredite-se que o objetivo principal do livro era narrar o
sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, ocorrido em setembro de 1969,
em uma ação conjunta pelo Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e a ALN – que
de longe foi a ação mais conhecida e simbólica das organizações de luta armada no Brasil –
esse acontecimento é apresentado, na verdade, como um exemplo que revelaria uma série de
erros conceituais e práticos que teria sido responsável pela tragédia que se abateu sobre as
organizações de esquerda no Brasil. Referindo-se ao livro, Reis afirma:
318
“Este portanto é o livro de um homem correndo da polícia, tentando compreender como é que se meteu, de
repente, no meio da Irarrazabal, se havia apenas cinco anos estava correndo da Ouvidor para a Rio Branco, num
dos grupos que fariam mais uma demonstração contra a ditadura militar que tomara o poder em 1964. Onde é
mesmo que estávamos quando tudo começou?” Cf. GABEIRA, Fernando. O que é isso companheiro? São
Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 10.
319
AARÃO REIS, 1997, p. 102.
116
radicalização das esquerdas e da repressão; além, é claro, de apresentar uma vasta lista de
erros que explicariam a derrota da luta armada. Logo no início do livro, ele afirma que os
períodos na clandestinidade, na cadeia e de contato com outros militantes acossados pela
repressão permitiram que ele compusesse um quadro explicativo mais claro sobre o que teria
sido o golpe.
Sintomaticamente, as primeiras questões que Gabeira afirma ter respondido para
alcançar esse discernimento do processo histórico eram: “Onde é que estavam os estudantes?
Por que é que não vieram as armas do Aragão?”320 Dessa forma, sua interpretação toma como
ponto de partida o imobilismo das esquerdas e não as motivações que impulsionaram civis e
militares a empreenderam a tomada do poder. Ou seja, para o jornalista, a falta de reação
daqueles que rechaçavam o novo regime explicaria a vitória do golpe. Para que não se diga
que não há qualquer menção às razões dos golpistas, o autor elenca a quebra da hierarquia
pelos subalternos das forças armadas como o ponto final na paciência dos militares para com
o presidente João Goulart.
O Presidente da República é outro personagem que tem enorme destaque na
interpretação de Gabeira. Em todas as menções ao seu nome há um tom de reprovação em
relação às suas decisões. Goulart é apresentado como um homem fraco e hesitante que tinha,
no entanto, todas as condições de vencer a oposição que queria derrubá-lo, mas, “preferiu o
Uruguai”.321
Mesmo quando o autor reconhece sua mágoa e se dispõe a ser mais complacente com
Jango, sua escrita revela que em nenhum momento ele deixou de considerar o presidente
deposto como um caudilho preocupado, sobretudo, com seus interesses pessoais:
Em minas se diz: cão danado, todos dão nele. Era assim com o governo Goulart.
Da minha parte havia uma certa inconsciência, uma certa vontade de brilhar como
redator, mas havia também uma certa mágoa. Goulart caíra sem resistir; Getúlio se
matou; Allende, mais tarde, se mataria também. Getúlio escreveu uma carta onde
dizia que saiu da vida para entrar na história. Goulart parecia sair da história para
entrar na vida: ia cuidar de seus rebanhos no Uruguai. Tudo era mágoa com quem
não se conformava com o desfecho. O melhor talvez fosse tentar entender o que se
passava. Goulart compreendeu que estava perdido e resolveu ir para o Uruguai, certo
de que o golpe era temporário, que, mais tarde, seria chamado para ocupar seu papel
na vida política do país.322
Também o PCB é apontado como um dos responsáveis pela imobilidade das esquerdas
e por não conseguir conscientizar a população da gravidade do momento político do país.
320
GABEIRA, 2009, p. 15.
321
Ibid, p. 20.
322
Ibid, p. 23.
117
Nesse sentido, O que é isso companheiro? apresenta-o como um partido anacrônico. Essa
característica o teria impedido de se aproximar da população e estabelecer um diálogo com
ela. Mais importante que isso, ela teria gerado diversas discordâncias no cerne da militância.
Assim, sua incapacidade de resistir teria resultado, para Gabeira, do cultivo de concepções
retrógradas, de seu isolamento em relação à sociedade e do fato de suas fileiras estarem
cindidas pelas discussões teóricas, o que impedia uma ação coesa e coordenada.323
Gabeira faz questão de ressaltar que essa cisão entre as pessoas que permaneceram
militando no “partidão” e aquelas que abraçaram a dissidência se estendeu até mesmo ao pós-
ditadura. Ou seja, a tentativa de se construir uma explicação para a derrota das esquerdas – ou
seja, para a letargia da resistência –, na redemocratização, foi marcada pela mesma divisão
política. Assim:
As grandes derrotas que vimos no continente ensinaram muita coisa. Uma delas é
que o vencido não tem apenas de se por em retirada o mais rápido possível. Na
primeira esquina ele precisa parar para fazer sua luta interna, rediscutir seus
métodos, definir de quem foi a culpa. Esse processo chega às vezes a um resultado
curioso. A ala moderada do movimento de esquerda acusa a ala mais radical de ser a
responsável pela derrota e o setor mais radical acusa a ala moderada. E esse pingue-
pongue toma às vezes muito tempo, até que se perceba sua inutilidade. [...] Enquanto
a luta interna se desenrolava, aqui fora, na vida real, tocava-se o barco lentamente.324
O livro de Fernando Gabeira também defende a ideia de que a ditadura militar foi
imposta à sociedade. Segundo Rollemberg, “As esquerdas, na política, na academia, na vida
pública, construíram a memória baseada na idéia de que os militares só se impuseram
naqueles anos pela força, pela manipulação dos meios de comunicação, da censura etc”.325
Três exemplos são apresentados em O que é isso companheiro? para comprovar essa
afirmação: a perseguição aos opositores políticos, a repressão aos órgãos de imprensa que
denunciassem as arbitrariedades do governo e a política de arrocho salarial para controlar a
inflação. Com eles, ficaria claro o desejo de se comprovar que, por meio da força, os militares
sobrepuseram seu projeto político à sociedade, seja quando acossaram os segmentos da classe
média que rumaram para a oposição política – armada ou não –, ou quando fixaram a redução
salarial aos grupos populares, sem que esses dispusessem de canais para reclamar a usurpação
323
Ibid, p. 25.
324
Ibid, p. 28.
325
ROLLEMBERG, 2006, p. 89.
118
de seus direitos. Logo, o clima seria de uma “asfixia geral que a ditadura militar tinha imposto
ao país.”326
Gabeira ainda afirma, em relação à política de arrocho salarial, a importância da
manipulação para arregimentar apoio ao regime. Logo, teria se explorado “o pavor da
dissolução das diferenças entre o trabalho intelectual e o trabalho manual. Diziam: os
estivadores estão querendo ganhar tanto quanto um médico. É um absurdo, uma república
sindicalista”. Rollemberg também aponta essa como uma das teses mais comuns nas
memórias de ex-militantes da luta armada para explicar a vitória do golpe de 1964.
Embora mencione o clima de perseguições e até o caso de tortura de Gregório Bezerra
logo nos primeiros dias após o golpe, o livro também apresenta a ideia de que o Ato
Institucional nº 5 (AI-5) foi um golpe dentro do golpe. Certamente, essa é a seção de sua
narrativa na qual fica mais clara a aspiração conciliatória que a obra carrega, pois ele
apresenta esse ato como aquele que selou a tomada de consciência por parte da sociedade
quanto ao caráter ditatorial do regime. Esse processo teria se iniciado a propósito do enterro
do estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto, no dia 29 de março de 1968.
Segundo o autor, o assassinato do jovem de 18 anos em meio ao protesto estudantil no
restaurante Calabouço, no dia anterior, teria potencializado a acessão de um movimento de
massa contra a ditadura. O fato teria chocado a classe média e os protestos estudantis
ensejaram a expressão de todas as insatisfações, mesmo que sem nenhum projeto político
consistente. “Nascia, progressivamente, um movimento das camadas médias que tinha como
vanguarda o setor estudantil.”327 Teria sido esse o momento do encontro de dois grupos
diferentes: os engajados politicamente e a sociedade civil. Eles falariam línguas distintas, mas,
ali, teriam selado um pacto de resistência ao autoritarismo imposto ao país.
Esse foi o ensejo para que, mais uma vez, os líderes estudantis evocassem o
compromisso com a luta pela revolução socialista. Mas, também, a oportunidade para que o
homem comum protestasse contra os problemas do cotidiano. Ao se referir à “língua” falada
por essas pessoas, Gabeira afirma:
A outra, das pessoas que iam passando, que não dispunham de nenhum programa
global para salvar nenhum país mas que se sentiam sufocadas por mil problemas
cotidianos, pelo medo, pela pobreza. Uma gente cheia de vida, capaz de subir as
escadas da câmara e dizer que assim não dava mais, que o preço dos aluguéis estava
muito alto, que o custo de vida tinha que parar de subir. 328
326
GABEIRA, 2009, p. 35.
327
Ibid, p. 57.
328
Ibid, p. 56.
119
Dominguinhos estava eufórico no dia dos Cem Mil. Subia em todos os postes, em
todos os caixotes e conseguia também subir em algumas bancas de jornal que
estavam fechadas naquele dia. Fazia discursos inflamados, prometia apocalipses,
329
Ibid, p. 84.
330
Ibid, p. 44.
120
um, dois, três Vietnãs. E piscava o olho pra mim, ao cabo de cada uma daquelas
revoluções sangrentas que ele descrevia. Creio que as pessoas se perguntavam, com
razão, que país era aquele. Um garoto de pouco mais de quinze anos e já tão
radicalizado...331
Ninguém poderia prever, com exatidão, o que estava se passando dentro das
prisões brasileiras. Todos nós, em diferentes níveis, estávamos estupefatos. Por mais
que nós enviássemos bilhetes da cadeia, por mais que colecionássemos histórias
escabrosas, não conseguiríamos aprender aquele processo em sua complexidade,
antes de vivê-lo na carne. [...] no fundo, fomos surpreendidos com o que vimos no
interior dos quarteis.333
Um dos aspectos que Gabeira mais critica e aponta como um equívoco grave é a
inadequação dos militantes para aquele empreendimento. Quando menciona as discussões
sobre qual seria a melhor tática a ser empregada, o autor afirma: “tudo se passava como se
houvesse especialistas em luta contra o governo, especialistas que iam cuidar de tudo e, num
determinado momento, quando não se sentissem mais ameaçados, chamariam o povo para
participar daquela luta.”334 Outros trechos demonstram, através de um tom irônico, a aspereza
dessa crítica:
331
Ibid, p. 68.
332
Ibid, p. 192.
333
Ibid, p. 180.
334
Ibid, p. 44.
121
Gabeira também atribui outros erros capitais à esquerda que teriam inviabilizado
qualquer chance de sucesso da luta armada. Entre eles estão: a fragmentação; a ineficiência
das ações nas cidades que só acumulariam “rabos”337 ao invés de força; a megalomania dos
discursos que falavam em enfrentar a polícia (quando na realidade, o “máximo de
ofensividade possível era devolver com um pontapé as bombas de gás que caiam”338), e que
asseguravam a existência de um esquema de segurança (“que quase sempre consistia em
avisar a família e o advogado, publicar uma notinha nos jornais”339); e, por fim, as
improvisações como, por exemplo, comprar uns poucos móveis para dar aos aparelhos uma
aparência de que recebia moradores “normais”.
Apesar de fazer questão de apresentar suas fontes e descrever a pesquisa realizada para
que pudesse escrever sua mais importante obra, frei Betto claramente não almejava que
Batismo de Sangue fosse um livro de História. Não só por não ser um historiador profissional,
mas, principalmente porque o que fortalecia sua argumentação e lhe dava prestígio era o
caráter memorialístico de sua narrativa, ou seja, poder afirmar-se como testemunha ocular dos
fatos; em outras palavras, perante o público em geral, a narrativa se dota de maior, ainda que
aparente, confiabilidade. Portanto, longe de querer esconder o caráter memorialístico e
pessoal de sua narrativa, o autor percebeu, justamente nele, um potencial para o seu êxito e
utilizou-o conscientemente.
335
Ibid, p. 107.
336
Ibid, p. 133.
337
Ibid, p. 44.
338
Ibid, p. 45.
339
Ibid, p. 46.
122
340
BETTO, 1982, p. 46.
123
as relações. Consequentemente, no início dos anos 1960 surgiu um novo conflito, no qual a
população assumiu seu protagonismo, o que atiçou a reação da elite. 341
Entretanto, o pacto não teve vida longa. Segundo o frade, o ano de 1968 marcou o seu
rompimento.342 Esse teria sido o ponto fulcral que colocou em polos opostos os militares e a
sociedade civil. De um lado, a ala militar do golpe estaria marginalizando seus aliados civis;
do outro, a burguesia, a classe média e setores populares se articulariam através de
manifestações de insatisfação com o regime.
Frei Betto faz questão de eleger símbolos fortes para esse divórcio. Assim como no
livro de Gabeira, os protestos pelo assassinato de um estudante no restaurante Calabouço em
28 de março de 1968 constituem o primeiro indício desse posicionamento. Esse episódio é
apresentado como aquele que foi capaz de colocar toda a sociedade em uma mesma trincheira,
enfrentando um inimigo comum: “O tiro mortal que atinge o estudante Edson Luís, nas ruas
do Rio, fere o coração de toda a sociedade civil.”343
Em outro trecho, o frade utiliza o fato histórico de ter-se produzido um cordão de
isolamento humano para impedir a intervenção da polícia militar durante a missa de sétimo
dia de Edson Luís. Esse fato produziu uma alusão da ligação física entre os presentes através
da materialização de uma união política no campo democrático contra o Estado de exceção:
“À frente da igreja da candelária, no centro carioca, sacerdotes paramentados e intelectuais
marxistas dão-se as mãos para erguer uma barreira humana entre o povo e os batalhões de
choque da polícia militar.”344
O segundo símbolo, não menos importante, é o Ato institucional nº 5. Ao longo de seu
livro, frei Betto afirma que este foi o golpe dentro do golpe. No entanto, ao contrário da
opinião dominante entre aqueles que defendem essa perspectiva, ele não acredita que os
primeiros anos do regime tenham sido menos violentos e voltados para uma ordenação
institucional que apenas, eventualmente, deu margem a abusos de autoridade. A descrição que
o autor faz dos primeiros anos deixa clara essa perspectiva:
A partir, porém, de 13 de dezembro de 1968, não foi mais preciso a direita apelar
aos grupos paramilitares para que tentassem parar a Roda Viva de Chico Buarque de
Hollanda no Teatro Ruth Escobar ou fornecessem fuzis automáticos para os grupos
radicais da Universidade Mackenzie atirarem nos estudantes da Faculdade de
Filosofia da USP, transformando a Rua Maria Antônia numa praça de guerra. Foi
decretado o Ato Institucional n.°5, o golpe no golpe. O Congresso entrou em recesso
por tempo indeterminado e ao Presidente da República foram facultadas sanções
341
Ibid, p. 46-47.
342
Ibid, p. 47.
343
Ibid, loc. cit.
344
Ibid, p. 47-48.
124
Entretanto, ele utiliza a ideia de um “golpe dentro do golpe” como forma de sinalizar o
rompimento que os militares estabeleceram em sua relação com os setores civis. Ou seja, o
AI-5 seria a institucionalização dessa separação. A partir desse ponto, frei Betto passa a
trabalhar o segundo eixo temático: a formação da luta armada e a sua derrocada.
Citando escritos de Marighella, frei Betto procura vincular a opção pela luta armada
ao recrudescimento do regime. Assim, a partir do momento em que os militares mandaram
“às favas [...] todos os escrúpulos de consciência”346 e abandonaram qualquer
contemporização com os civis, uma parte importante dos setores mais politizados do meio
popular, mas principalmente da classe média letrada, teria sido “empurrada” para as armas.
Ou seja, fechados todos os canais democráticos, só restava o caminho revolucionário. E o seu
objetivo principal era derrubar a ditadura.
Mesmo citando escritos do próprio líder da ALN que discriminava alguns anseios que
iam muito além do simples reestabelecimento do regime democrático, frei Betto evita inserir
outras qualificações para a revolução almejada que não seja “popular” e “nacionalista”. No
entanto, assim como o pacto das elites com a ditadura, a reação mais radical a ela também não
teve vida longa.
Frei Betto demarca o sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick em
1969, como o “início do fim” da luta armada, corroborando a tese defendida em O que é isso
companheiro?. Ao mesmo tempo em que foi a ação mais audaciosa e bem-sucedida das
organizações guerrilheiras, ela teria enfurecido a repressão.347
No entanto, a explicação de como a repressão conseguiu liquidar com as organizações
de luta armada é uma das frentes explicativas do trabalho de frei Betto. Ao longo do texto, ele
também procura desenvolver uma autocrítica sobre quais teriam sido os erros fatais desses
grupos que facilitaram o trabalho dos homens da repressão. Assim, a luta armada foi
derrotada graças à capacidade dos órgãos de repressão e aos erros de suas próprias
organizações.
Em relação à repressão, o dominicano procura mapear os elementos que teriam
tornado órgãos como os DOPS e a OBAN ainda mais eficazes na perseguição aos opositores
do regime. Assim, o primeiro e mais insistentemente citado deles, corroborando uma das teses
345
Ibid, p. 48.
346
Frase do Ministro do Trabalho e da Previdência Social Jarbas Passarinho durante a reunião de formulação do
Ato Institucional nº5, em 1968.
347
BETTO, 1982, p. 69.
125
Outro fator potencializador sugerido foi a própria justiça. A inação diante dos abusos
dos agentes do Estado seria uma forma de dar o aval sem necessariamente ter que sujar as
mãos e entrar para a história como artífice do regime:
348
Ibid, p. 144.
349
Ibid, p. 118.
126
mesma via crucis percorrida por tantas outras ainda hoje: procurou órgãos de
segurança, visitou autoridades, falou com políticos, foi a presídios e quartéis, fez
apelos e denúncias. O Governo, como um assassino de costas largas, manteve-se
calado; nada vira, nada soubera, nada a informar. Em alguma esquina do Brasil,
Luiz Enrico "evaporara". O terror do Estado agia sob a complacência da Justiça. Em
nome da segurança nacional, um jovem brasileiro fora seqüestrado e morto.
Nenhuma notícia a seu respeito. Os jornais, com a boca tapada pela censura e
intimidados, nada diziam a respeito. Contudo, uma pessoa não pode deixar de existir
nas entranhas de sua mãe, no coração de sua esposa, no afeto de seus parentes e
amigos, na admiração de seus companheiros, na memória dos que sobrevivem e
alimentam-se de seu sacrifício e exemplo. Um revolucionário é um ser social, como
uma árvore cujas raízes se espalham à sua volta, cravadas no chão da história, e
cujos frutos vão muito além de seus galhos e nutrem o esforço de libertação.350
Dessa forma, a abordagem que frei Betto desenvolve sobre a repressão ajuda a
sedimentar a ideia dos “porões”. Como já foi mencionado, segundo essa visão, os abusos
aconteciam longe dos olhos da sociedade. O autor insiste e reforça essa imagem nas diversas
vezes em que se questiona sobre como era possível que aqueles que agiam como monstros na
penumbra dos prédios do DOPS e da OBAN se mostrassem homens de educação esmerada e
dedicados à família quando à luz do dia:
Porém, como já foi dito, frei Betto afirma em sua narrativa que a luta armada não teria
morrido apenas pela ação da repressão, somam-se a ela os próprios erros das organizações que
teriam sido mortais para o seu futuro. Um detalhe importante, é que esse esforço do autor em
apresentar uma autocrítica nunca é feita de maneira individual. Em todas as vezes em que
Batismo de Sangue apresenta uma avaliação dos erros das esquerdas armadas, o frade faz
questão de salientar que essa foi uma conclusão conjunta dos companheiros da organização ou
do cárcere. Isso claramente se deve ao clima de desconfiança que existia em relação aos
350
Ibid, p. 139.
351
Ibid, p. 218.
127
dominicanos após o episódio que os levou para a prisão. Para que essa avaliação tivesse
legitimidade perante as esquerdas, era necessário mais do que a palavra do escritor, conforme
as quais:
[...] do que ouvi dos antigos militantes da ALN, ficou-me a impressão de que, da
estrutura burocratizada e inoperante do PCB, Marighella passara a um movimento
de forma indefinida, na qual predomina o ativismo militarista. [...] a prática
revolucionária restringia-se quase que exclusivamente às ações armadas que, sem
apoio popular, tornavam-se cada vez mais vulneráveis a ofensiva da repressão. Não
se fazia trabalho político de massa, nem se sabia exatamente como incorporar os
trabalhadores à luta política. A guerrilha, praticamente restrita às cidades, colocava-
se como alternativa ao trabalho de base, à organização popular, com se ela fosse
capaz de, por si só, deflagrar o descontentamento latente no povo, materializando-o
no efetivo apoio ou participação na luta.
Carlos Eduardo Pires Fleury, militante da ALN, meu companheiro no Presídio
Tiradentes, disse-me um dia, num banho de sol, quando conversávamos sobre a
proposta de Marighella: — Veja, ele teve o mérito de desatrelar a esquerda brasileira
da burguesia e de passar da teoria à prática revolucionária. Mas a gente quis ir
depressa demais, superestimou a própria capacidade e subestimou as forças do
sistema. Sobretudo, não acreditamos que "o segredo da vitória é o povo", como dizia
o comandante.352
Dessa forma, o autor elenca como os principais erros das organizações de luta armada:
o impacto considerável que as prisões causavam e suas consequências, como a perda de
comunicação com pessoas, a diminuição dos quadros – sem meios para arregimentar novos
adeptos –, a inutilização de “aparelhos”; além é claro, das informações que, possivelmente,
seriam arrancadas por meio da tortura.
Outro erro seria o aumento das ações armadas em detrimento do trabalho político. Isso
teria provocado um isolamento letal para as organizações, o que agravava a falta de quadros e
levava a um outro problema: a ausência de apoio popular às ações. Por fim, ele ressalta os
erros logísticos e estratégicos:
352
Ibid, p. 42.
128
A derrota da luta armada marca o fim das considerações do frade sobre esse processo
histórico em Batismo de Sangue. Contudo, ele retoma o tema em O dia de Ângelo. Nessa
segunda obra, o autor expressa toda a sua frustração com os caminhos que a política nacional
toma no contexto de abertura política.
Fazendo referência à estrutura de uma ópera, a obra se divide em três movimentos,
sendo o primeiro dedicado ao universo mental do protagonista Ângelo P. no cárcere; o
segundo, ao rearranjo político que se desenhava no país – nele, o personagem principal é o
Movimento Democrático Brasileiro (MDB) – e, a seção final, ao registro da memória em um
processo judicial sobre a morte do protagonista.354
Em O dia de Ângelo, frei Betto expressa uma desilusão maior. Em sua narrativa,
apesar de relatar a existência um grande movimento civil contra os militares, ele ressalta que
não foi essa mobilização que pôs fim à ditadura. O regime autoritário brasileiro teria entrado
em declínio graças ao descrédito que seus próprios problemas lhe renderam, principalmente o
fracasso econômico:
353
Ibid, p. 71.
354
BETTO, 1987, p. 115-133.
355
Ibid, p. 102.
129
Certamente, a comparação entre esses dois autores não é suficiente para rastrear todas
as imagens que se cristalizaram na memória coletiva da sociedade brasileira sobre o período
da ditadura militar. Tampouco para esgotar a complexidade da ação de seus agentes e as
razões que permearam o processo de seu engendramento. Entretanto, ela é uma amostra
bastante eficaz para se demonstrar que a construção de uma narrativa memorialística
hegemônica sobre qualquer período histórico é moldada por intensas disputas, além de
evidenciar a impossibilidade de cindi-la de sua funcionalidade política, sua característica
intrínseca.
O cotejo entre a obra memorialística de Fernando Gabeira e a de frei Betto clarifica
que aquela narrativa, que vulgarmente se convencionou chamar de “memória dos vencidos”,
não se forjou através de uma ação coordenada, coesa e harmônica para se contrapor à versão
defendida pela direita civil-militar. Sua edificação foi o resultado de um processo complexo
envolvendo as disputas entre diversos agentes que, apesar de serem agrupados em uma
mesma corrente ideológica, apresentavam profundas divergências – seja no passado, no qual
se deram os acontecimentos, ou no presente da narrativa, quanto à postura que deveriam
assumir no contexto de redemocratização e em relação aos seus projetos políticos para o
futuro.
No entanto, ao se considerar apenas a ação de seus agentes, ainda que atentando-se
para o seu caráter conflituoso, a compreensão das razões que levaram à consagração de
determinadas versões dessas narrativas memorialísticas – e a própria decisão de empreendê-
las – fica comprometida ou, ao menos, incompleta. O contexto em que a memória é expressa é
um elemento imprescindível para a sua análise. Assim sendo, são as aspirações da opinião
356
Ibid, loc. cit.
130
357
Ibid, p. 115-133.
358
Ibid, p. 17.
359
Ibid, p. 66.
360
Há um verdadeiro trabalho sistemático para, através da escrita, reforçar algumas interpretações sobre esse
processo histórico.
131
Outro companheiro soube o que é isso e estendeu-te a mão, a paz, o pão: Fernando
Gabeira. Ave insolente, um tiro atravessou-lhe o vôo para a liberdade, devolvendo-a
à gaiola de ferros. Não lhe cortaram as asas impetuosas, o amor à vida e o fascínio
pela utopia. Contudo ao retornar do exílio diria adeus às armas e, por cima de
abnegados sacrifícios, faria entender que o circo não passou de uma grande
aventura, como se o sonho fosse fruto e não matriz da realidade.361
361
BETTO, 1982, p. 234.
362
Gabeira utiliza essa expressão como símbolo da desconfiança que sua visão de mundo teria causado em seus
companheiros de luta armada. Na perspectiva do autor, a rigidez de pensamento e a atitude dominavam as
organizações de esquerda naquele contexto e seriam os verdadeiros causadores dessa incompreensão. O autor
narra por exemplo que, espantado com a precocidade e o radicalismo da militância de Dominguinhos, sugeriu ao
colega que fosse “colecionar figurinhas” ou arrumar uma “namoradinha”. Ao apresentar a pergunta “o que é
isso, companheiro?” como a réplica espantada proferida pelo jovem militante, Gabeira sugere que ela expressa,
na verdade, a intolerância que a intransigência política causava quando confrontada por um pensamento
heterodoxo. GABEIRA, 2009, p.49.
363
BETTO, 1982, p. 234.
132
dominicano recusa a tese de que as utopias, que em sua perspectiva nutriram e motivaram a
luta armada, eram apenas um conjunto de ilusões produzido pelo contexto histórico tanto
nacional, quanto internacional. Do seu ponto de vista, essa inversão narrativa da ordem dos
fatores altera tragicamente o produto final.
Para frei Betto, é a história concreta que deve ser explicada através das utopias que
motivaram os agentes sociais, e não o contrário. Isso fica bastante evidente através da análise
de Batismo de Sangue. Observa-se que essa ordenação dos fatores na construção da narrativa
é uma das maneiras pelas quais o autor busca demonstrar que as atitudes das esquerdas
naquela conjuntura – especialmente daqueles militantes que escolheram o caminho
revolucionário –, apesar de equivocadas, se justificam, pois se embasavam no apego a valores
legítimos.
Dessa forma, ao criticar Gabeira por tratar a utopia como se “fosse fruto e não matriz
da realidade”, frei Betto oferece um indício significativo de que interpreta essa inversão
explicativa como uma forma de instrumentalizar o passado para desqualificar a luta armada, e
não para apontar os equívocos cometidos durante aquela experiência. Em sua visão, O que é
isso, companheiro? estabelece como as causadoras das ilusões revolucionários dos jovens
guerrilheiros a polarização política vivida pelo Brasil nas décadas de 1960-1970 e as vitórias
dos partidos comunistas em outros países. Assim, ao focalizar a suposta “cegueira” militante,
a obra conseguiria dissipar qualquer validade moral daquelas ações, assim como, a
culpabilidade dos que as praticaram, dentre os quais se situa a figura seu próprio autor.
O fato de frei Betto utilizar a palavra “sonho” ao invés de “utopia” em sua crítica a
Gabeira não é fortuito. Ele indica uma referência à única passagem na qual o jornalista
aborda diretamente o assunto. É, justamente, através da análise desse trecho da obra que se
pode compreender porque frei Betto utiliza a metáfora do “circo” para ironizar a maneira
como Gabeira descreve as organizações armadas.
Em sua reflexão sobre a participação dos operários na luta armada, Gabeira faz
questão de salientar o contraste entre sua visão e a dos membros mais jovens da organização.
Segundo sua narrativa, enquanto sua maneira de enxergar o contato dos militantes com os
trabalhadores era caracterizada pela sobriedade; o olhar de seus companheiros é marcado pelo
caráter fantasioso, profícuo de idealização – o que ele denomina como “realidade mental”.364
O autor constrói uma explicação para essa distinção logo no início do livro ao enfatizar que:
364
GABEIRA, 2009, p. 142.
133
Aquela geração de jovens políticos tinha uns dez anos menos que eu. Minha
revolta se curtiu no triângulo familiar, nas lutas para ter os amigos que quisesse,
escolher a carreira que me parecesse melhor, chegar em casa mais tarde. Esses
jovens se chocam na adolescência com um problema inédito para nós: a ditadura
militar. nos tempos de secundarista, combatíamos uma política educacional elitista,
mas num quadro de um governo democrático.
Essas diferenças foram pesando muito nas formações que se defrontavam ali, diante
de uma atividade comum. Para eles tudo era política partidária. Alguns não tinham
tido nem sua primeira namoradinha e já estavam inscritos numa organização. [...]
Até hoje tento explicar a causa de nossas desconfianças mútuas. Os de minha idade
já estavam colocados, já tinham empregos bem remunerados e gastaram grande
parte de sua vida tentando entender as relações interpessoais.365
365
Ibid, p. 49.
366
Ibid, p. 50.
134
do “chão da fábrica”, teria feito surgir um tipo artificial. Esse trabalhador não seria mais, de
fato, um “operário”; mas, sim, um representante “profissionalizado” dessa categoria.367
Gabeira ironiza a legitimidade dessa “representação” ao afirmar que um desses
profissionais que ele conheceu, “inclusive, tinha tido tempo para desenvolver suas habilidades
no violão e dava algumas aulas particulares”368; ao contrário dos “verdadeiros” proletários
que, obviamente, tinham todo o seu tempo consumido pelo trabalho nas fábricas. O tom de
galhofa utilizado em O que é isso, companheiro? para abordar esse tema fica ainda mais
evidente quando o autor contrasta a reverência com que as esquerdas evocariam seus “setores
operários” para resolver determinadas discordâncias como o número real de trabalhadores que
compunham seus quadros. Em suas palavras, “nem sempre as bases operárias podiam somar
mais do que cinco pessoas”.369
Em relação aos estudantes da organização, Gabeira descreve o processo de
“proletarização” como o maior exemplo dessa teatralização do engajamento político. Segundo
o jornalista, nos anos 1970, boa parte dos jovens militantes teria se esforçado para mudar sua
aparência e, assim, adequar sua imagem àquela que acreditava ser a de um trabalhador
comum. Através dessa transformação, eles ensaiavam uma maior aproximação com a classe
operária. Entretanto, ao invés de ficarem parecidos com os “proletários” reais, aqueles que se
submetiam a essa caracterização acabavam, segundo o autor, assumindo as feições que, na
verdade, “as pessoas da classe média” achavam serem as de um operário: “pobre, mas
limpinho”.370 Como forma de ridicularizar esses métodos, Gabeira afirma que os próprios
operários compreendiam sua artificialidade. Em suas palavras:
367
Ibid, p. 140.
368
Ibid, loc. Cit.
369
Ibid, loc. Cit.
370
Ibid, p. 85.
371
Ibid, p. 139.
372
Ibid, p. 142.
135
grande que se expressaria até nas relações amorosas. Em suas palavras, “surgiam pessoas que
queriam transar com um operário ou uma operária, porque afinal queriam ligar suas
convicções à sua prática amorosa. Nada de pessoal nisso: queriam um operário como se quer
um louro, um moreno ou um asiático.”373
Entremeado nessa reflexão, Gabeira se apresenta como personagem dotado de uma
visão sóbria. Ele ressalta que não se deixou seduzir pela “proletarização”, chegando até
mesmo a se posicionar dentro da organização contra esse processo, e que tinha consciência de
que era um intelectual “[...] e que estava ali para dar uma colaboração, aprendendo muitas
coisas com eles, pois em quase tudo que íamos nos meter, de agora em diante, eles sabiam
mais do que eu”.374 Segundo o autor:
373
Ibid, p. 141.
374
Ibid, p. 139.
375
Ibid, p. 141.
136
sua capacidade de fazer com que as pessoas – inclusive ele – esquecessem, por algumas horas,
suas “vidas pequenas” e “problemas prosaicos” possibilitaria aos trabalhadores a
oportunidade de alcançarem uma “melhoria real da vida” através do consumo.376
Embora não questione diretamente a necessidade de se promover a revolução para se
alcançar a emancipação do proletariado, a ressalva que Gabeira tece, segundo a qual essas
suas considerações sobre o papel da televisão na vida dos operários seriam “execradas pela
esquerda de Neanderthal”377, sugere que a rigidez de pensamento que dominava esse espectro
político era tão grande que chegava a impedir que seus adeptos enxergassem as necessidades
mais corriqueiras dos trabalhadores; assim como, os fazia acreditar que a opção pelas armas
era um caminho inexorável para os militantes.
De acordo com a crítica de frei Betto, O que é isso, companheiro? narra a trajetória da
luta armada no Brasil como a história de um processo através do qual a polarização extrema
dos anos 1960-1970 provocou em parte das esquerdas um “delírio” revolucionário que, de tão
descolado da realidade, fez com que seus adeptos aceitassem lutar e morrer por uma aventura
idealizada em suas mentes e teatralizada por seus corpos. Apesar de absolutamente contrário à
essa visão, o dominicano também reconhece os equívocos das organizações revolucionárias
em suas obras dos anos 1980. Entretanto, diferente de Gabeira, ele procura fazer de sua
memória uma ponte para que as lições históricas extraídas daquele passado traumático
pudessem contribuir para a consolidação da “nova esquerda” que estava surgindo naquele
período.
As críticas de frei Betto ao caminho das armas dialogam, diretamente, com sua aposta
na perspectiva de que as esquerdas só chegariam ao poder, em um futuro próximo, através de
um partido de massa, no caso, o recém-fundado PT. Sua narrativa do fim trágico dos
companheiros de militância, longe de querer desqualificar a luta armada, definindo-a como
uma aventura transloucada, busca demonstrar que, assim como nessa experiência pregressa,
não haveria possibilidade de êxito para as esquerdas se não fossem capazes de sustentar a
proximidade e o protagonismo de suas bases populares. Logo, por essa aspiração funcional,
suas memórias podem ser classificadas como sendo de reconstrução política.
A versão compartilhada e robustecida por ambos é a de que a imposição do AI-5, um
golpe dentro do golpe, foi o estopim para que a sociedade civil tomasse consciência do
autoritarismo vigente e rumasse para a oposição e resistência ao regime. Já a luta armada
alcançou seu momento de glória no episódio do sequestro do embaixador americano. Mas,
376
Ibid, p. 143.
377
Ibid, loc. Cit.
137
esse também foi o motivo para um acirramento da repressão que, somado aos muitos erros
táticos – especialmente o isolamento da sociedade, causado pela valorização extremada da
ação em detrimento de outras atividades políticas –, em pouco tempo levou as organizações
guerrilheiras à derrota definitiva.
Essencialmente, frei Betto e Fernando Gabeira discordam sobre a gênese da ditadura
militar e da luta armada. Enquanto jornalistas e escritores profissionais, ambos estruturaram
suas narrativas, tacitamente, sobre os antônimos culpa/inocência.
Segundo Gabeira, a ditadura foi uma imposição dos militares, e a luta armada, produto
das muitas ilusões daquela juventude, somada a um total despreparo teórico e prático para
compreender a vida e a política. Sua narrativa sugere que apesar de suas responsabilidades, a
sociedade e as esquerdas são inocentes. A primeira por ter sido ludibriada e não compreender
a gravidade do contexto; a segunda por ter sido movida por um romantismo imaturo.
Já segundo frei Betto, o golpe de 1964 e o regime que ele inaugurou foi o resultado de
uma ação coordenada e coesa de parte da sociedade (a elite econômica) junto aos militares. A
luta armada, apesar de ter sido uma ação longamente incentivada e teorizada por diversas
vertentes dentro do campo da Esquerda, as quais apregoavam projetos revolucionários
distintos, teria sido uma reação à barbárie promovida pela ditadura e ao fechamento de todas
as vias democráticas que ela estabelecera.
Desse modo, a escrita de frei Betto esforça-se em denunciar a cumplicidade dos
setores civis no estabelecimento do regime autoritário, ao mesmo tempo em que procura,
através da descrição da barbárie, legitimar o passado daqueles que escolheram o caminho das
armas. Ela se coloca na contramão das aspirações de parte da opinião púbica e do próprio
governo, na década de 1980, de promover um esquecimento que pudesse apagar o apoio que o
golpe recebeu de alguns segmentos para que, assim, permanecesse na memória a certeza de
que toda a sociedade esteve coesa dividindo a mesma trincheira de resistência no regime
imposto ao país pelas forças armadas.
138
378
BETTO, frei. A mosca azul – Reflexão sobre o poder. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2006. l. 218.
379
Ibid, l. 231.
380
Ibid, l. 214.
139
381
Ibid, l. 184.
382
NAPOLITANO, 2015, p. 19.
383
Ibid, p. 34.
140
384
NAPOLITANO, 2020, p. 36.
385
Um dos exemplos é o afamado editorial da Folha de S. Paulo no qual ela relativizava a violência do regime ao
utilizar o neologismo “Ditabranda”. Cf. FOLHA DE S. PAULO. Limites a Chávez. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 17 de fev. 2009. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm>.
Acesso em 14 de mar. de 2019.
386
Os artigos do ex-ministro Jarbas Passarinho no jornal O Estado de S. Paulo, nesse período, são emblemáticos
do esforço para “denunciar” o que ele qualificou como a deformação da história. De maneira geral, o militar
defende que a expressão mais clara dessa desfiguração da verdade seria a intepretação da violência praticada por
ambos os lados de maneira desigual. Assim, no caso dos agentes do Estado, ela foi condenada, mas, em se
tratando dos militantes da luta armada, ela teria sido legitimada pela política de reparação das vítimas.
Passarinho também estabelece, implicitamente, uma paridade entre a violência do Estado e da Luta Armada, ao
atribuir a derrota dos “comunistas” ao isolamento social que seus métodos causavam em detrimento das
explicações que a conferiam ao “terrorismo de Estado”. Toda a sua argumentação reforça uma visão de belicosa,
segundo a qual, a violência, como instrumento, iguala os dois lados moralmente (não que ele não defendesse a
superioridade moral das ações do Estado, mas o contexto já não era propício a uma defesa explícita dessa visão).
Por isso, seria justo que os vencedores recebessem os “louros da vitória” e os vencidos o consolo do
esquecimento. É justamente, contra a “história reescrita pelos vencidos” – essa suposta injustiça – que se
estabeleceu no período pós-ditadura, sobre o qual o ex-ministro insurgira-se. Cf. PASSARINHO, 2002, p. A2.
______. Terroristas, torturadores e aproveitadores. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 124, n. 40222, 02 de
dez. de 2003. Espaço Aberto, p. A2. Disponível em: <https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20031202-40222-
spo-2-opi-a2-not>. Acesso em: 1 de abr. de 2019.
387
Segundo análise de Fernando Seliprandy, o conjunto de obras sobre a ditadura militar publicadas pelo jornalista
Elio Gaspari no início dos anos 2000 “é hoje a manifestação mais estabelecida da versão da equivalência de
tortura e luta armada [...]”. SELIPRANDY, Fernando. Imagens divergentes, “conciliação” histórica: memória,
melodrama e documentário nos filmes O que é isso companheiro? e Hércules 56. 2012. 230 f. Dissertação
(Mestrado em História social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. p. 57. Disponível em:
<https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-30082012-115331/pt-br.php>. Acesso em: 25 de Set,
2019.
A narrativa de Gaspari defende essa interpretação ao construir uma concomitância entre dois supostas processos.
De um lado, a autonomização da “tigrada” em relação a seus superiores hierárquicos e, do outro, a degradação
das organizações da esquerda armada rumo à violência indiscriminada da “pistolagem”. GASPARI, Elio. A
Ditadura escancarada. 2. Ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 407-473.
141
388
NAPOLITANO, op. cit., p. 41.
389
Ibid, p. 33.
390
FREIRE; SYDOW, 2016, p. 333.
391
BETTO, 2006, l. 837.
392
FREIRE; SYDOW, op. cit., p. 335.
142
marca na obra do frade. A análise do livro Diário de Fernando demonstra que, em meio a um
contexto de questionamento quanto à resistência dos idealismos frente às necessidades
práticas do exercício do poder, ele é uma tentativa de reafirmar a dignidade do
posicionamento ideológico e de comprovar que as utopias estão mais vivas do que nunca, o
que se expressaria, inclusive, nas disputas da memória.
Essa percepção de que o partido não suportou as pressões do dia a dia do poder,
desistindo, assim, de buscar a realização de suas utopias originais, ao contrário de provocar
em frei Betto uma desilusão quanto à validade das filiações ideológicas – o que seria
presumível – inusitadamente o instigou a, através de seus livros (ou seja, publicamente),
renovar seu compromisso com a militância política e reafirmar a radicalidade como atributo
imprescindível para aqueles que escolham seguir o mesmo caminho.
O livro A mosca azul é o melhor exemplo do quanto o desapontamento de frei Betto
com o governo do PT fez com que ele reavaliasse e reafirmasse seus posicionamentos
políticos. Embora as críticas diretas e contundentes ao partido e ao presidente Lula deem a
impressão de que a obra é apenas uma manifestação de ressentimento de quem há pouco tinha
deixado seu cargo decepcionado ao perceber que a realidade não estava à altura de suas
expectativas, uma leitura atenta evidencia que, por trás de cada observação sobre as mudanças
de rota do partido existe uma convocação para o “retorno às utopias” e a manutenção do
combate ao neoliberalismo, à concentração fundiária no Brasil etc393.
Assim sendo, Diário de Fernando, que foi lançado posteriormente, mas ainda na Era
Lula, guarda as marcas dessas inquietações. Através de sua narrativa, o autor defende a tese
de que a fidelidade aos valores que aprenderam desde a infância foi o verdadeiro motivo das
ações pelas quais os que se levantaram contra a ditadura militar foram mandados para a prisão
e entregues aos torturadores. Sua ênfase em demonstrar que os presos políticos sustentaram
esses princípios mesmo enquanto eram submetidos a sofrimentos indizíveis é uma tentativa de
provar que eles são dignos de serem retomados no presente.
Os livros publicados por frei Betto na primeira década do século XXI, Alfabetto e
Diário de Fernando, foram os primeiros em sua obra memorialística que apresentam uma
reflexão explícita sobre o ato de narrar o passado. Entretanto, ao serem comparadas,
evidenciam que o curto período de sete anos que separa essas publicações foi capaz de
393
BETTO, op. cit., l. 258.
143
provocar uma alteração significativa no que seu autor considerava ser o conjunto de
propriedades e funções da memória.
Ao se observar que duas mudanças no contexto no qual os livros foram lançados
atingiam o dominicano pessoalmente, esse contraste entre suas ponderações sobre a atitude de
expressar o que se rememora se torna um forte indício de que a maleabilidade na maneira de
se conceber o ato de lembrar é uma postura estratégica – ainda que de maneira inconsciente –
frente à constância com que se dão as reconfigurações dos cenários político-culturais.
No caso específico de frei Betto, os acontecimentos da primeira década do novo
milênio provocaram uma transformação em sua maneira de compreender a memória. Sua
interpretação do ato de narrar o passado como um exercício de catarse para curar as feridas e,
assim, abrir novas perspectivas para o porvir, defendida em Alfabetto, deu lugar a uma
concepção mais combativa e política.
De acordo com essa nova perspectiva – apresentada sete anos depois do lançamento de
sua autobiografia, em Diário de Fernando – contar a história, ainda que ela esteja repleta de
episódios traumáticos, é a única forma de fazer com que as lutas pretéritas contribuam para as
disputas do presente; por isso, essas lembranças, ainda que dolorosas, devem se manter vivas
e constantemente atualizadas.
Embora o objeto da memória seja o passado, são as variações na maneira como frei
Betto encara sua realidade contemporânea que provocam essa alteração na sua perspectiva
acerca dos acontecimentos pretéritos. A concepção do presente como uma janela aberta para
um futuro promissor, que o entusiasmo com a eleição de Lula, em 2002, suscitou no
dominicano, gradativamente cedeu seu espaço para que ele voltasse a ser visto como uma
arena de disputas, na qual até mesmo as utopias estavam em risco.
Certamente, essa mudança se deveu à frustração que a adoção, por parte do PT, da
moderação na agenda de políticas econômicas e sociais em nome da “governabilidade”
significou para o autor. Sua expectativa era a de que um governo conduzido por um partido de
esquerda que, ainda por cima, era liderado por um ex-operário, se mantivesse fiel às pautas
históricas (como, por exemplo, a reforma agrária) e fosse mais incisivo em suas iniciativas.
Assim como a consolidação dessa nova visão sobre seu hic et nunc foi catalisada pela
emergência das memórias nostálgicas da ditadura militar no debate público; algumas dessas
versões, inclusive, adotam o negacionismo em relação à prática de tortura e de prisões
políticas durante a vigência do regime.
A primeira reflexão de frei Betto sobre a memória, nesse novo contexto, surge em
Alfabetto. Apesar de apresentá-la como um projeto despretensioso, quase uma transcrição de
144
singelas histórias evocadas em meio a uma conversa informal, em sua autobiografia escolar, o
dominicano desenvolve uma reflexão bastante significativa acerca das funções da narrativa do
passado, ainda que modesta e sucinta.
As primeiras páginas de Alfabetto revelam a preocupação de frei Betto com possíveis
questionamentos sobre o nível de correspondência entre os fatos e suas respectivas narrativas.
O excerto da obra do escritor Monteiro Lobato Memórias de Emília, que introduz o livro,
denota que o autor almejava deixar claro que aquela era uma peça literária e, portanto, as
lacunas, tão comuns nas narrativas memorialísticas, foram subjetivamente suprimidas através
de seu talento de escritor.
No trecho citado, a personagem Dona Benta repreende Emília por incluir na redação
de suas reminiscências episódios que nunca aconteceram; assim ela exclama: “você quer nos
tapear. Em memórias a gente só conta a verdade, o que houve, o que se passou. Você nunca
esteve em Hollywood, nem conhece a Shirley. Como então se põe a inventar tudo isso?”. A
resposta da boneca de pano parece sintetizar o que frei Betto queria dizer sobre sua própria
escrita: “Minhas memórias – explicou Emília – são diferentes de todas as outras. Eu conto o
que houve e o que devia haver. [...]. São memórias fantásticas”394.
A tensão entre objetividade e subjetividade que a atitude de expressar as próprias
memórias evoca fica evidente quando se compara a introdução do livro e o seu epílogo. Se no
prefácio da obra, frei Betto parece querer conquistar a complacência do leitor, permitindo,
assim, que sua leitura seja menos exigente quanto ao nível de veracidade e mais atento ao
afeto que permeia a lembrança dos fatos; no desfecho, ele defende o distanciamento
emocional e temporal como o meio mais seguro para se compreender o passado.
No epílogo, frei Betto sugere, metaforicamente, que a narrativa da memória é uma
forma de racionalizar o passado. Ao empreendê-la, o principal objetivo seria exorcizar seus
demônios, ou seja, livrar-se de todo o sofrimento que, porventura, as lembranças possam
causar para, assim, iniciar uma trajetória renovada. O autor exemplifica esse processo
explicando como as águias, a certa altura da vida, desvencilham-se do bico, das unhas e das
penas para “nascer de novo”. Em suas palavras:
394
BETTO, 2002, p. 9.
145
Mas é preciso voar até a montanha. De cima, vê-se melhor [...]. Ver com as
emoções é correr o risco de desfigurar os desenhos. Os contornos mostram-se muito
mais nítidos quando observados com serenidade.
E saber esperar. Primeiro, ousar perder o que envelheceu [...]. despojar-se do que
atravanca os nossos passos. Segundo, aguardar pacientemente o tempo da
maturação. Enfim, dar o salto pascal, abrir as asas para a vida e, sem medo,
empreender o voo rumo a novos horizontes.395
Dessa forma, fica bastante claro que as funções que frei Betto propalava serem
próprias da narrativa do passado acabaram, consequentemente, por influir na maneira como
ele enxergava a objetividade e a subjetividade, categorias que provocam tensão nesse tipo de
escrita. Em relação à primeira, o autor defende que a representação fiel de um objeto, nesse
caso, os episódios pretéritos, apenas seria possível mediante o distanciamento temporal dos
fatos que lhe deram origem. Ele não encara a passagem do tempo como um fator nocivo à
memória por produzir o esquecimento, mas como um potencializador de sua capacidade
compreensiva por possibilitar o arrefecimento das emoções e, consequentemente, a maturação
das ideias. Já a segunda se manifestaria na licença poética, através da qual, o escritor, ao
preencher as lacunas de suas lembranças, conseguiria reconstituir as emoções e os sofrimentos
que permearam os acontecimentos por ele vividos.
Em Diário de Fernando, por sua vez, Frei Betto defende que insistir na reedição
periódica através de diferentes suportes das narrativas sobre o passado seria uma forma de
garantir aos que sofreram, especialmente com a violência praticada por agentes do Estado,
que suas reminiscências não fossem silenciadas pelas versões oficiais ou pela história
acadêmica.
No epílogo do livro, ao comparar o anseio de Jesus de que sua memória fosse
preservada pelos apóstolos na partilha do pão e do vinho com o desejo – dividido com outros
ex-militantes das esquerdas – de que suas histórias se mantivessem vivas, frei Betto define
esse potencial silenciador que as narrativas oficiais têm como uma forma de novamente atacar
aqueles que já tiveram seus corpos violentados. Em suas palavras:
395
Ibid, p. 241.
396
BETTO, frei. Diário de Fernando: nos cárceres da ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. p.
278.
146
Entretanto, essa crítica não se restringe apenas aos poderes constituídos e àquelas
pessoas capazes de influir na constituição de narrativas oficiais sobre a ditadura militar
brasileira; ela se direciona também às esquerdas. No caso destas, Frei Betto denuncia o que
acreditava ser uma postura negligente com a memória; atitude que, para ele, não só as tornaria
coniventes com um novo crime contra as vítimas como, também, inviabilizaria seus projetos
para o futuro.
A veemência com que o dominicano aponta essa suposta displicência da “esquerda”
como a causadora de sua desvantagem na disputa com a “direita” – pelo poder de definir se o
passado deveria ser lembrado, esquecido ou silenciado – revela que, nesse novo contexto, ele
passou a enfatizar a funcionalidade estratégica da memória para se enfrentar as batalhas
políticas do presente. Nas palavras do autor:
A esquerda tão obcecada pela terra das promissões, pelo futuro messiânico, nem
sempre se dá conta de que a direita funda seu poder também na apropriação do
passado. A direita, na contramão de Hegel, volta atrás para pisar nas pequenas flores
que restaram no caminho, abrigadas sob majestosas copas de grandes árvores que
lhes dão sombra. Os mortos, a religião, a tradição... eis o que a esquerda por vezes
despreza e a direita apodera-se, açambarca.397
Para frei Betto, essa ameaça do esquecimento provocada pelas narrativas oficiais e
pela negligência das esquerdas, somada ao esforço histórico dos atingidos pela ditadura
militar brasileira para rechaçá-la, reforça o caráter subversivo da memória. Utilizando as
palavras de frei Fernando, ele ressalta:
O torturado jamais esquece. Sua resistência reside na memória. Esta não se pode
apagar. Não se trata de reter a lembrança da dor guardada no pote e mágoa. Nesse
caso, a vingança é inútil, pode-se punir um torturador, jamais a tortura e os
torturadores. Por isso a memória da dor é subversiva. Cria o desconforto,
desmascara o cínico, mantém acesa a tocha da Justiça. É o grito permanentemente
parado no ar. Não o grito da vítima espancada, mas da indignação, da reafirmação
do humano, da negação do terror. Grito que silencia o horror.398
Ele defende a manutenção de suas formas de expressão como uma maneira das vítimas
defenderem seu direito à identidade. Citando o cineasta espanhol Luis Buñuel na abertura de
Diário de Fernando, ele proclama que “nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nosso
sentimento. Sem ela, não somos nada”399.
397
Ibid, p. 13.
398
Ibid, p. 18.
399
Ibid, p. 7.
147
Também em Diário de Fernando, a definição das funções da memória que frei Betto
desenvolve influencia sua reflexão sobre a objetividade e a subjetividade. Entretanto, da
mesma forma que a emergência de um novo contexto modificou a maneira como o autor
enxergava a narrativa do passado, essa nova conjuntura histórica também alterou sua
percepção sobre as duas categorias.
Frei Betto defende, nessa nova obra memorialística, que a subjetividade se expressaria
na maneira como uma pessoa instrumentaliza suas reminiscências para exercer o poder ou
resistir a ele; logo, o dominicano acentua o caráter político da narrativa do passado. Já a
objetividade se assentaria na proximidade entre o registro e os acontecimentos. O autor insiste
em qualificar como “documento” o material que deu origem à publicação, como forma de
destacar que seu valor histórico resulta do fato de não ter sido corroído pelo acúmulo dos
anos, visto que os bilhetes que compuseram o conteúdo do livro foram escritos pelo confrade
Fernando concomitantemente ao decorrer de sua história.
Em Diário de Fernando, frei Betto demonstra ter a certeza de que as dificuldades que
o confrade enfrentou para produzir e manter seus escritos – tendo que queimá-los muitas
vezes por conta das constantes fiscalizações, somadas ao fato de serem o registro imediato de
uma testemunha ocular – assegurariam que sua narrativa passasse ilesa pelos questionamentos
sobre o quanto ela correspondia ao passado histórico. Assim, na introdução do livro, o autor
ressalta:
O material bruto é bem mais extenso do que o conteúdo deste livro, no qual
algumas notas explicativas figuram no pé de páginas. Estou seguro, entretanto, de
que nada que mereça interesse histórico foi omitido.
O leitor e a leitora têm agora em mãos um documento que não foi redigido pela
ótica acadêmica de um historiador, nem pelo esforço de investigação de um
memorialista ou por um jornalista motivado pelo faro do noticiável. Trata-se de um
testemunho de um preso político, de uma vítima da ditadura, de um observador
atento que não ergueu barreiras entre o que presenciou e sentiu, sofreu, ansiou e
comemorou. [...] 400
400
Ibid, p. 13.
148
ditadura”401 e emenda, “O que é uma ditadura? Quantas vezes fiz essa pergunta a meu pai”402.
Claramente, o autor filia sua concepção prévia sobre o caráter autoritário do regime que o
golpe inaugurava à influência paterna, recordando as denúncias que ouvia em sua casa sobre
os abusos de poder do líder do Estado Novo.
Nesse mesmo diálogo, por estar longe do epicentro dos acontecimentos de abril de
1964 e, por isso, impedido de participar de qualquer reação articulada, frei Betto busca
dimensionar a angústia que essa circunstância lhe causou. O frade, que estava participando de
um congresso de estudantes em Belém do Pará, enquanto era executado o golpe civil-militar,
também evoca o paradigma da memória coletiva para refletir sobre sua própria atitude. Dessa
forma, ele questiona, “E eu, que nasci no ano, no mês, no dia e na hora em que a resistência
francesa comemorou sua vitória sobre a ocupação nazista de Paris, o que faço aqui tomando
sorvete de cupuaçu?”403.
Uma das sutilezas que reforçam o papel dos dois paradigmas supracitados são os
artigos que frei Betto escolhe para anteceder o substantivo “ditadura”. A indefinição que os
caracteriza equipara o regime que suplantou o governo Jango a qualquer outro tipo de
autoritarismo, seja o do Estado Novo ou do Nazifascismo. Ao elidir as peculiaridades do
modelo militar, o autor defende a existência de uma tradição de prática do terrorismo estatal, à
qual a ditadura brasileira se filia e não se distingue por limites temporais ou espaciais, da
mesma forma, essa indiferenciação se estenderia aos movimentos de resistência. Assim,
aqueles que lutaram no Brasil no pós-1964 estariam dando continuidade ao movimento
francês desencadeado pela ocupação nazista na década de 1940.
Na perspectiva de Napolitano, a valorização do testemunho é uma característica
fundamental dos “Regimes de memória” que se estabeleceram na contemporaneidade; estes
seriam estruturas que constituíram “as experiências e debates em torno do Holocausto/Shoah”
e das “resistências antifascistas” como paradigmas que enquadram os limites e possibilidades
éticos e epistemológicos da memória404. Nas palavras do historiador, isso significa que:
401
Id, 2002, p. 212.
402
Ibid, p. 213.
403
Ibid, p. 214.
404
NAPOLITANO, 2018, p. 209.
150
impõe o olhar subjetivo da vítima como reconstrução dos elos sociais, a partir de um
trabalho de luto e do movimento institucionalizado de “rememoração, repetição,
perlaboração”.405
405
Ibid, p. 211.
406
Ibid, p. 207.
407
O oficial nazista Adolf Eichmann foi julgado e condenado à morte em 11 de abril de 1961, em Jerusalém.
Durante a Segunda Guerra Mundial, ele foi responsável pela deportação de judeus para campos de concentração.
408
LEVI, Primo. É isto um homem? Tradução Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
409
ROBIN, 2016, p. 242.
410
GROPPO, Bruno. O mito da sociedade como vítima: as sociedades pós-ditatoriais em face de seu passado na
Europa e na América Latina. QUADRAT, Samantha Viz; ROLLEMBERG, Denise. (Orgs.). História e
memória das ditaduras do século XX. Vol 1. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. p. 40.
411
ROBIN, op. cit., p. 234.
412
NAPOLITANO, 2018, p. 207.
151
413
Ibid, p. 208.
414
Ibid, p. 212.
152
415
BETTO, 2009, p. 78.
416
Ibid, p. 188.
153
consciente de que ali a história se fazia cinzas. Pensei em Walter Benjamin agarrado a seus
escritos ao fugir da Gestapo e tentar atravessar os Pirineus.”417 Também o hábito da oração,
que sempre acompanhou os dominicanos no cárcere, faz o religioso se lembrar que
“Bonhöeffer, pastor e teólogo protestante alemão – morto em campo de concentração em
1944 – também encontrou nos salmos alento à vida de oração”418.
Outras estratégias, como as pequenas espertezas, fundamentais para amenizar as
dificuldades do cárcere – por exemplo, calçar dois pares de meias ao mesmo tempo ao ser
transferido –, ganham um sentido especial ao serem ancoradas nesse paradigma de memória.
Frei Fernando narra que, ao chegar à penitenciária do Carandiru e ser informado de que o
único pertence que poderia manter era aquele que trazia em dobro enfiado nos pés, se lembrou
de que antes de deixar o presídio Tiradentes pensou no “conselho do pai de Anne Frank à
família prestes a atravessar Amsterdã para se esconder: ‘vistam no corpo o que puderem. Se
nos virem pelas ruas com malas, desconfiarão’”419.
Entretanto, não só as dores e necessidades daquele presente vivido por frei Fernando
na prisão foram enredadas pela memória do holocausto. Também sua relação com o futuro
sofreu essa influência. Ao refletir sobre a “insaciável liberdade” que os presos guardam dentro
de si, apesar dos riscos de se acostumarem com a barbárie que caracteriza a vida no cárcere, o
frade emenda: “No Gueto de Varsóvia, findos os bombardeios, uma sobrevivente recolocou
em seu lugar um vaso de flores, como primeiro gesto de que a vida continua”420.
Na construção da obra, frei Betto destaca dois trechos que ressaltam a esperança
coletiva dos presos políticos de que o futuro lhes reservaria a reparação pelas injustiças
sofridas e o reconhecimento da legitimidade de sua luta. No primeiro, ele narra a história do
companheiro de prisão Jacques Breyton que através de sua memória, evocada em sua preleção
noturna sobre a “luta da Resistência Francesa aos nazistas”, teria avivado a certeza de que os
riscos presentes seriam honrados na posteridade. Segundo frei Fernando:
417
Ibid, p. 63.
418
Ibid, p. 87.
419
Ibid, p. 183.
420
Ibid, p. 66.
421
Ibid, p. 55.
154
422
Ibid, p. 103.
423
NAPOLITANO, 2018, p. 212.
424
Ibid, loc. cit.
425
ROLLEMBERG, Denise. Definir o conceito de resistência: dilemas, reflexões, possibilidades. QUADRAT,
Samantha Viz; ______., 2015, p. 88.
É necessário ressaltar que a presente reflexão aborda o processo de construção da resistência enquanto mito, no
entanto, há um trabalho intenso empreendido por historiadores como Denise Rollemberg para conceituar o
fenômeno, tornando assim essa categoria útil à História. Para isso, é fundamental compreender como ele foi
instrumentalizado no campo da memória.
155
426
Ibid, p. 87.
427
Id, 2006, p. 85.
428
Ibid, loc. cit.
429
NAPOLITANO, 2020, p. 40.
156
430
GROPPO, op. cit., p. 42.
431
Ibid, loc. cit.
432
PASSARINHO, 2002, p. A2.
157
narrativa foram os setores liberais, sobretudo aqueles que outrora apoiaram o golpe e, até
certo momento, deram sustentação ao regime autoritário433.
Dessa forma, pode-se observar que, no caso da reflexão de frei Betto, as mudanças na
sua maneira de conceber a memória e, consequentemente, as categorias implicadas nessa
representação do passado, como o binômio objetividade/subjetividade, acompanham as
transformações no cenário político. Essas readaptações que o frade promove em suas obras,
buscando evidenciar portos de aderência entre suas reminiscências do período de ditadura
militar e a versão hegemônica sobre o regime – como a valorização do testemunho das
vítimas e da resistência como atitude moral e, não política, através de sua filiação aos
paradigmas do Holocausto e da Resistência – demonstram que ele não só procura renovar a
legitimidade de suas escolhas pregressas como almeja assegurar que sua obra mantenha a
capacidade de operar pequenas alterações na narrativa dominante sem, necessariamente,
destruí-la. Essas constatações ficam ainda mais claras através da análise de sua escrita
autobiográfica.
433
NAPOLITANO, op. cit., p. 35.
158
partir da junção do nome do dominicano com a palavra “alfabeto” sugere que a narrativa
almeja reconstituir o itinerário que deu ao autor cada uma das “letras” que ele utiliza em sua
produção intelectual. Elas seriam os elementos que, em conjunto, compõem sua visão de
mundo, ou seja, os valores e princípios aprendidos em diversos “espaços de formação” ao
longo dos anos434.
Ainda que frei Betto já fosse um articulista conhecido da imprensa escrita e contasse
com um número considerável de obras publicadas, os aspectos mais conhecidos de sua
biografia continuavam a ser sua prática militante, como o apoio ao grupo de Marighella, o
auxílio ao movimento sindical no ABC e a intermediação das relações entre o Estado e a
Igreja em Cuba435. Tomar tais atitudes, naturalmente, provocaria contestações no caso de
qualquer pessoa, entretanto, o que as tornam ainda mais inquietantes, nesse caso específico, é
o fato do autor pertencer a uma ordem religiosa.
Embora não faça parte da hierarquia da Igreja, frei Betto também não é um leigo no
sentido estrito da palavra. Dessa forma, a vida pregressa do frade assessor especial da
Presidência da República evocava, certamente, muitas dúvidas sobre como seria possível
conciliar o catolicismo – histórico adversário do comunismo – com a colaboração com a luta
armada, com o movimento sindical e com o governo de Fidel Castro. Esses fatos continuaram
a suscitar, nos anos 2000, a incompreensão que a trajetória do dominicano provocava, na
década de 1970.
Essa necessidade de atestar a coerência da própria identidade indica a existência de
uma estrutura normativa que condiciona as narrativas que construímos sobre nós mesmos.
Segundo Eakin, essa prática é de tal forma subjugada por regras sociais e modelos identitários
que a sua inobservância leva, necessariamente, a um questionamento da sanidade do “eu”
podendo acarretar, até mesmo, formas de confinamento institucional. Assim, de modo a
prever um possível questionamento sobre a validade dessas considerações, o autor defende:
[...] Nós não inventamos nossas identidades a partir do nada. Em vez disso, nós as
moldamos a partir dos recursos da cultura em que vivemos, recursos que
especificam o que significa ser homem, ser mulher, ser trabalhador, ser uma pessoa
dentro de circunstancias em que vivemos nossas vidas. É muito fácil afirmar que nós
434
Refletindo sobre a pertinência do conceito de “cultura política” desenvolvida por Serge Bernstein para
compreender o processo de formação da visão de mundo que frei Betto apresenta em suas cartas da prisão, nossa
dissertação de mestrado demonstra que a “chave de leitura do real” do escritor foi engendrada ao longo dos anos
1960, por meio de “espaços de formação” como a família, a JEC e o movimento estudantil. Cf. SANTOS, Bruno
Dias. De uma cultura política à Teologia da Liberação: as cartas do cárcere de Frei Betto e a ditadura civil-
militar no Brasil. Assis, 2015. 107 f. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Ciências e Letras,
Universidade Estadual Paulista.
435
FREIRE; SYDOW, 2016, p. 233-253.
159
436
EAKIN, Paul John. Vivendo autobiograficamente: a construção da identidade na narrativa. Tradução Ricardo
Santhiago. São Paulo: Letra e Voz, 2019. p. 37.
437
Ibid, p. 31.
438
Para exemplificar as consequências sociais acarretadas pela quebra dessas regras, Eakin apresenta as
polêmicas desencadeadas por três livros. A primeira refere-se à autobiografia de James Frey, A Million Little
Pieces (2003). Após a narrativa passar pelo escrutínio da imprensa norte-americana e ter sua veracidade
questionada, o autor foi constrangido a reconhecer que “havia inventado alguns detalhes” e a indenizar leitores
que o processaram judicialmente por fraude. Em função disso, o livro de Frey perdeu o status de obra
memorialística – o que colocou em risco seus contratos editoriais e cinematográficos.
A segunda obra causou uma polêmica muito maior. Após publicar o livro Fragments: Memories of a Wartime
Childhood (1995), como a narrativa autobiográfica de sua experiência enquanto criança que sobreviveu ao
Holocausto, Binjamin Wilkomirski teve sua trajetória investigada pelo escritor suíço Daniel Ganzfied que, não
só contestou a veracidade da obra, como também revelou a verdadeira identidade do autor. Segundo a pesquisa
de Ganzfied, Wilkomirski não era um judeu letão, mas um suíço – chamado Bruno Grosjean – que passou os
anos da Segunda Guerra Mundial em um orfanato de seu país de origem até ser adotado por um casal rico em
1947, do qual recebeu o sobrenome. Após ser publicamente desmentido, Wilkomirski perdeu prêmios e
honrarias, além de ter sido “processado por fraude em Zurique em uma ação coletiva representando cerca de
12.000 leitores”.
Sobre os dois casos, Eakin conclui: “[...] Em ambas as controvérsias em que houve quebra de regras, a
personagem do autobiógrafo suplantou a preocupação principal com a acurácia do texto, de modo que a função
identitária da regra de falar a verdade superou sua função literária, de gênero. Isso fica especialmente claro no
caso de Fragments: se o livro não conseguia passar por autobiografia, por que não o repaginar como romance?
Porque não é o seu status de gênero que está em questão; não é o gênero literário, mas a pessoa e a credibilidade
de Bruno Grosjean-Dössekker-Wilkomirski que parecem ter sido destruídas”.
A terceira obra utilizada como exemplo de transgressão das regras narrativas é The Kiss (1997), de Kathryn
Harrison. Diferente dos outros casos, o que se questionou não foi a veracidade do relato, mas a legitimidade da
iniciativa da autora em revelar que teve um romance com seu próprio pai, a qual foi encarada como desrespeito
ao direito de seus filhos à privacidade. Ibid, p. 53.
160
439
Ibid, p. 56-57. Segundo o autor, “o treinamento para a narração de si começa cedo, o que confirma nossa
cumplicidade tácita com o funcionamento do sistema. Nós introduzimos nossos filhos à prática da construção da
identidade narrativa durante uma fase especialmente rica do desenvolvimento na primeira infância, na qual a
linguagem e as habilidades narrativas há pouco adquiridas são combinadas com a consciência temporal e com
um entendimento florescente da responsabilidade social em relação aos fundamentos da memória autobiográfica.
Esse treinamento toma a forma daquilo que os psicólogos chamam de “falar sobre lembranças” [memory talk],
que não é nada mais do que aquelas historinhas que pais e cuidados nos preparam para contar a nosso respeito.
Os primeiros resultados materiais desse esforço coletivo de construir uma história de vida são, sem dúvida,
triviais – uma volta no quarteirão, atividades na creche, uma visita ao zoológico –, mas elas são uma prática para
os vindouros voos, mais longos, de narração de si. Nessas conversas entre pais e filhos, ‘as crianças aprendem as
formas narrativas convencionalizadas que em algum momento oferecem uma estrutura para as memórias
internamente representadas’ [...]. descrevendo esse processo de socialização, Robyn Fivush [...] oferece essa
formulação memorável do intercâmbio entre consciência de si e memoria autobiográfica: ‘o conceito de si e as
memórias de experiencias passadas desenvolvem-se dialeticamente e começam a formar uma história de vida. A
história de vida, por sua vez, ajuda a organizar tanto as memórias de experiências passadas quanto o conceito de
si” [...] as crianças não aprendem apenas que se espera que elas sejam capazes de mostrar aos outros memórias
autobiográficas organizadas em forma de narrativa; elas também aprendem o que é contável.” Ibid, p. 40.
440
Ibid, p. 60.
Nas palavras de Eakin, “o termo eu alargado vem do psicólogo Ulric Naisser [...], que identificou a existência de
pelo menos cinco tipos de individualidade, envolvendo contextos físicos, sociais e mentais. O eu alargado de
Naisser – o eu da memória e da expectativa, o eu que existe continuamente ao longo do tempo – é o sujeito
primordial do discurso autobiográfico. De acordo com Naisser, por volta dos três anos de idade as crianças têm
consciência de si mesmas ‘como alguém que existe fora do momento presente, e, por conseguinte, do eu
alargado’ [...]. Essa dimensão temporal da individualidade alargada se presta à expressão na forma narrativa do
tipo que Sacks considera o âmago da identidade. Isso porque a narrativa é especialmente adequada para registrar
os efeitos do tempo e da mudança que são centrais para esse modo de experiência de si. Como resultado, o eu
alargado assume a forma de uma identidade narrativa, e as identidades narrativas servem como o meio para
expor esse eu em encontros interpessoais. Para os outros, nós somos versões do eu alargado e de sua história
identitária; quando entramos em cena com essas histórias, nos apresentamos para os outros como indivíduos
normais [...].” Ibid, p. 19.
161
441
É importante ressaltar que a referência à reflexão de Bourdieu sobre o gênero biográfico não significa uma
adesão total às suas conclusões. Ou seja, o reconhecimento da importância de suas ressalvas acerca dos riscos e
das ilusões que permeiam esse tipo de escrita não se traduz em uma presumida concordância com sua tese acerca
da impertinência do uso da biografia como método para as ciências sociais. Embora o presente trabalho não se
proponha a empreender essa discussão teórica.
Mesmo François Dosse que, em sua obra O desafio biográfico, criticou de maneira contundente as conclusões de
Bourdieu sobre a biografia, reconhece que, de fato, existem ilusões que permeiam esse gênero literário e que a
reflexão do sociólogo francês tem méritos como o de “[...] suscitar a interrogação sobre esse liame tantas vezes
postulado de transparência entre o biógrafo e o biografado”. DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever
uma vida. Ed. 2. Tradução Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2015. p. 210.
O autor, inclusive, cita o trabalho de Olivier Schwartz como um exemplo que demonstraria que é possível
apropriar-se das críticas de Bourdieu sem, necessariamente, aderir totalmente à sua perspectiva, apesar de defini-
la como uma “generalização abusiva e desqualificadora”. Dessa forma, perscrutar os “efeitos” produzidos pela
escrita biográfica não significa aceitar que essa seja a sua única finalidade. Ibid, p. 211.
442
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Tradução Mariza Corrêa. Campinas: Papirus,
1996. p. 78.
443
Segundo Bourdieu, “os campos apresentam-se à apresentação sincrônica como espaços estruturados de posições
(ou de postos) cujas propriedades dependem da sua posição nesses espaços e que podem ser analisadas
independentemente das características dos seus ocupantes (em parte determinadas por elas).” BOURDIEU,
Pierre. Questões de sociologia. Tradução Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de século edições, 2003. p. 119.
444
Nas palavras de Bourdieu, “a estrutura do campo é um estado da relação de força entre os agentes ou as
instituições envolvidas na luta ou, se se preferir, da distribuição do capital específico que, acumulado no decorrer
das lutas anteriores, orienta as estratégias posteriores. Esta estrutura, que está no princípio das estratégias
destinadas a transformá-la, está ela própria sempre em jogo: as lutas cujo lugar é o campo têm por parada em
jogo o monopólio da violência legitima (autoridade específica) que é característica do campo considerado, quer
dizer, em última análise, a conservação ou a subversão da estrutura da distribuição do capital específico. (Falar
em capital específico é dizer que o capital vale em relação com um certo campo, portanto nos limites desse
campo, e que não é convertível numa outra espécie de capital a não ser em certas condições [...]).” Ibid, p. 120.
445
Id, 1996, p. 80.
162
O discurso sobre si é de tal forma uma construção social que não apenas é
influenciado pelos parâmetros coletivos com vistas ao acúmulo de capital simbólico446, como
também se modela por regras que, caso sejam desrespeitadas podem, inclusive, acarretar
sansões jurídicas. Segundo Bourdieu, “o mundo [...] tende a identificar a normalidade com a
identidade entendida como constância de si”447. Para alcançar esse status, é preciso observar
tanto normas leves, como o estabelecimento de uma ordem cronológica baseada na relação de
causa e efeito, quanto outras mais austeras, por exemplo, falar a verdade448.
Nesse sentido, para o bom encaminhamento da reflexão acerca da construção da
memória de frei Betto sobre a ditadura militar brasileira, é mais importante analisar sua
autobiografia como um meio através do qual se pode compreender a “narração de si” como
uma prática social mais ampla – da qual, inclusive, ela é uma das formas de expressão – do
que se ater às suas peculiaridades e limitações enquanto gênero literário; tendo em vista que o
maior interesse do autor com a publicação de suas obras, ainda que inconscientemente, é o
impacto social; ou seja, influir na memória hegemônica sobre o período, através da
apropriação e reprodução de sua versão pelos seus leitores.
Apesar de mencionar algumas datas importantes e usar os ciclos escolares como o
“jardim da infância”, o “ginásio” e o “colegial” para dividir os capítulos do livro, frei Betto
não dá ênfase à estrutura cronológica, tampouco explora o passar do tempo como processo
cumulativo de formação, como seria de se esperar em uma autobiografia escolar. O único
marco temporal destacado pelo autor, e não por acaso o mais importante, é a sua entrada na
JEC, narrada sob o título “Caminho de Damasco”.
Sua descoberta, aos treze anos, do grupo especializado da Ação Católica, que em sua
visão encarnava um cristianismo renovado e mais humano, é comparada à conversão de Paulo
446
Bourdieu chama “de capital simbólico qualquer tipo de capital (econômico, cultural, escolar ou social) percebido
de acordo com as categorias de percepção, os princípios de visão e de divisão, os sistemas de classificação, os
esquemas classificatórios, os esquemas cognitivos, que são, em parte, produto da incorporação das estruturas
objetivas do campo considerado, isto é, da estrutura de distribuição do capital no campo considerado. [...] o
capital simbólico é um capital com base cognitiva, apoiado sobre o conhecimento e o reconhecimento.” Ibid, p.
149.
De acordo com a perspectiva de Bourdieu, ao se reconhecer que frei Betto está posicionado tanto no campo
político quanto no religioso, se compreende que todos os seus atos – na maior parte das vezes, inconscientemente
– são motivados pelo “interesse”. Este se define, segundo o sociólogo, como “"estar em", participar, admitir,
portanto, que o jogo merece ser jogado e que os alvos engendrados no e pelo fato de jogar merecem ser
perseguidos; é reconhecer o jogo e reconhecer os alvos.” Ibid, loc. cit.
447
Ibid, p. 77.
448
Segundo Bourdieu, “o objeto próprio desses discursos, isto é, a apresentação pública, logo, a oficialização, de
uma representação privada de sua própria vida, implica um acréscimo de limitações e de censuras específicas
(cujo limite e representado pelas sanções jurídicas contra as falsificações de identidade ou o uso ilegal de
comendas).” Ibid, p. 80.
163
de Tarso que, de acordo com o Novo Testamento, durante uma viagem à capital da Síria, teve
sua forma de enxergar o mundo literalmente alterada449.
Ao narrar esse episódio, frei Betto destaca a maneira como foi recebido pelos frades
dominicanos que assessoravam a JEC em Belo Horizonte. O sorriso “complacente” de frei
Chico e o semblante “fraternal” de frei Marcolino são apresentados em contraste com a
austeridade do cristianismo que o autor aprendeu nas aulas de catequese e missas, assim
como, diante do autoritarismo dos religiosos e professores nas igrejas e nos colégios pelos
quais passou450.
Frei Betto descreve as reuniões da JEC como momentos de companheirismo e
liberdade. Nelas, os membros encarariam o cristianismo como uma missão assumida
voluntariamente, e não como um fardo imposto pela tradição e pela autoridade. Assim, ele
ressalta que, em seu primeiro contato com o grupo, estranhou que o coordenador “não falasse
em sexo, nem atirasse sobre nossos ímpetos juvenis a água fria do moralismo ortodoxo. [...] o
Evangelho não me parecera rançoso”451.
Embora a narrativa de frei Betto sobre essa descoberta de um “novo cristianismo” em
plena adolescência se caracterize pela leveza e pelo bom humor, de maneira nenhuma, pode-
se considerá-la algo trivial. A análise da obra deixa evidente sua relevância ao demonstrar que
é através dela que o autor dota os vários episódios de seus primeiros treze anos de vida de um
significado maior. Portanto, ela é o ponto fulcral do livro, do qual depende a interpretação
tanto do conjunto dos acontecimentos que a precedem quanto dos que a sucedem.
Até frei Betto começar a contar como foi seu “Caminho de Damasco”, suas menções a
ocorrências cotidianas de sua vida escolar como a discriminação de alunos negros, as
manifestações humilhantes do autoritarismo que caracterizava os padres e professores e as
demonstrações do elitismo cultivado nos colégios parecem não ter uma função clara em sua
autobiografia. No entanto, ao utilizar o exemplo da conversão de Paulo ao cristianismo para
dimensionar o quanto sua integração à JEC significou o impacto de um abrir de olhos para
quem está momentaneamente cego, o autor sugere que a abordagem desses episódios busca
exemplificar quão cruel e injusta era a realidade que até então ele não era capaz de enxergar.
Ou seja, o dominicano ordena sua narrativa de maneira a emular a cronologia que ele acredita
ter balizado a sua vida; logo, as memórias sobre seus treze primeiros anos só adquirem um
449
BETTO, 2002, p. 132. Cf. BÍBLIA. Língua Portuguesa. Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. Tradução Ivo
Storniolo e Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulus, 1990, p. 1402.
450
Ibid, p. 134.
451
Ibid, p. 139.
164
significado na estrutura textual após a abordagem de seu contato com o grupo especializado
da Ação Católica. Em Diário de Fernando, frei Betto destaca essa mesma estrutura narrativa.
Assim como o confrade Betto, frei Fernando também define seu encontro com a JEC
como “Caminho de Damasco”. A narrativa que ele criou para sua própria trajetória tem como
baliza temporal exatamente esse episódio. Dessa forma, ela estabelece que a compreensão das
motivações que levaram o dominicano a se envolver com o movimento estudantil da USP e
com a luta armada está condicionada ao entendimento do impacto que esse novo modelo de
cristianismo causou em sua visão de mundo.
Frei Fernando descreve o catolicismo que aprendeu desde a infância como uma
“religiosidade rançosa”. Para o dominicano, as práticas cotidianas da Igreja naquele tempo
impingiam nos fiéis um sentimento desproporcional de culpa. Graças aos ensinamentos das
missas e aulas de catequese, os jovens aprendiam desde cedo a ter um medo profundo de seus
próprios corpos e, por consequência, também desenvolviam pavor do inferno, já que sucumbir
aos prazeres da carne, conforme lhes asseguravam, era o caminho mais rápido para a ruína da
alma. Assim, a puberdade era vivida como uma fase de tormento e a religiosidade, em suas
palavras, “cheirava a incenso mofado”452.
Através do contato que teve com os frades dominicanos que coordenavam a JEC em
Belo Horizonte, frei Fernando afirma ter conhecido um tipo de cristianismo que, de tão
inédito em sua experiência, nunca foi possível nem cogitar que existisse. Em suas palavras,
durante as peregrinações e encontros “o padre ria, fumava, contava piadas picantes,
esculhambava um e outro. A turma reagia, dizia palavrões, escondia a boina azul que lhe
encobria a careca. Fiquei intrigado; jamais imaginara um ministro de Deus capaz de aceitar
tantas molecagens”453. Tamanha é a importância que o autor atribui àquelas reuniões de
jovens que, ao construir a narrativa sobre sua trajetória, ele confere a elas o papel de
desencadeadoras de sua vocação religiosa.
Na narrativa de Diário de Fernando, essa espécie de iluminação, que abriu os olhos do
protagonista para a própria vocação, também foi o fator que o fez enxergar o Concílio
Vaticano II como uma inédita e preciosa janela aberta para o mundo dos homens454, no sólido
edifício da Igreja. Segundo o autor:
452
BETTO, 2009, p. 24.
453
Ibid, p. 26.
454
Nas palavras de frei Fernando, “[...] a vida religiosa sofreu mudanças substanciais. Já não queríamos viver
segregados em conventos. A inserção ‘na cidade secular’, segundo expressão de Harvey Cox, se nos impunha
habitar em pequenas comunidades abrigadas em apartamentos.” Ibid, p. 30.
165
Essa tendência de enxergar na própria vida uma relação inteligível entre todos os
acontecimentos e uma lógica na sua sucessão temporal que os torna impreteríveis no caminho
rumo a um telos – uma finalidade previamente determinada – é definida por Bourdieu como
uma predisposição coletiva que resulta da ação de mecanismos sociais que promovem a
constituição histórica de um habitus457 e a sua internalização através da socialização dos
corpos458.
Bourdieu destaca que é justamente dessa determinação social que resulta o
desenvolvimento de uma representação do “eu” como unidade permanente e invariável e, por
455
Ibid, p. 30.
456
Ibid, loc. cit.
457
Para Bourdieu, “essas antecipações pré-perceptivas, espécies de induções práticas fundadas na experiência
anterior, não são dadas a um sujeito puro, a uma consciência transcendental universal. Elas são criadas pelo
habitus do sentido do jogo. Ter o sentido do jogo é ter o jogo na pele; é perceber no estado prático o futuro do
jogo; é ter o senso histórico do jogo. Enquanto o mau jogador está sempre fora do tempo, sempre muito
adiantado ou muito atrasado, o bom jogador é aquele que antecipa, que está adiante do jogo. Como pode ele
antecipar o decorrer do jogo? Ele tem as tendências imanentes do jogo no corpo, incorporadas: ele se incorpora
ao jogo.” BOURDIEU, 1996, p. 144.
458
Ibid, p. 77.
166
consequência, da vida como trajeto linear, coerente e no qual cada acontecimento (por mais
banal que seja) é parte fundamental de uma totalidade459.
O nome próprio seria a ferramenta, por excelência, que as instituições como o Estado,
a família ou a Igreja utilizam em seus ritos para consumar essa “imposição arbitrária”.460 Ou
seja, estabelecer uma palavra ou um conjunto de palavras (nome e sobrenome) para designar
permanentemente um indivíduo seria uma forma de fazê-lo, inconscientemente, construir uma
imagem de si que ignore as transformações objetivas e subjetivas de comportamentos que lhe
foram demandados para que pudesse agir e existir em diferentes espaços sociais e contextos
históricos.
Nas palavras do autor:
No caso de frei Betto, ele mesmo deixa explícito que, ao construir uma narrativa para
sua vida, seu nome desempenhou o papel de “atestado visível da identidade [...] através dos
tempos e dos espaços sociais” 462
. O autor interpreta seu nome próprio como o símbolo de
uma identidade, concomitantemente coletiva, por representar a tradição familiar, e individual,
por demarcar a singularidade de sua personalidade (especialmente, através da dupla grafia da
letra “t”). Em suas palavras:
459
Ibid, p. 78.
460
Ibid, p. 79.
461
Ibid, loc. cit.
462
Ibid, p. 78.
167
seis mulheres e seus irmãos Antônio Carlos, Carlos Augusto, José Carlos, Antônio
Carlos e Paulo Carlos. O primeiro Antônio Carlos faleceu criança, mordido por
escorpião, antes do parto daquele que viria a seu meu pai. Daí a duplicidade de
nomes e a diferença no sobrenome: todos os irmãos de meu pai assinavam Campo
Christo. Meu pai, Vieira Christo.
Como ocorreu a meu irmão Luiz Fernando, abreviado desde cedo Nando, passei de
Carlos Alberto a Beto. No bairro a meninada gravava no cimento fresco o próprio
nome, movida por essa humana necessidade de reconhecimento que, na idade adulta,
corre o risco de derivar para a ambição de fama. Adotei o duplo “t” para diferençar-
me de meus xarás na turma da rua. E ao duplicá-lo pela primeira vez, aos 11 anos,
quando tratei de o assinalar a carvão no muro de um vizinho, veio-me à mente a
piedosa lembrança de que eu acrescia ao apelido a marca da cruz de Jesus.463
463
BETTO, 2002, p. 64.
464
Ibid, p. 146.
168
465
A Teologia da Libertação é um movimento intelectual latino-americano que surgiu no final dos anos 1960 com
lançamento de três obras: Theology of Human Hope (1969) de Rubem Alves, Teologia de la Liberación. Uma
evaluación prospectiva (1970) de Hugo Assmann e Teologia de la liberación: perspectivas (1971) Gustavo
Gutierrez. VALÉRIO, Mairon Escorsi. O Continente Pobre e Católico: o discurso da teologia da libertação e a
reinvenção religiosa da América Latina (1969-1992). Campinas, 2012. 354 f. Tese (Doutorado em História
Cultural) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. p. 125.
Entre os vários princípios que caracterizam esse movimento, o mais importante é, sem dúvida, a afirmação da
justiça social como parte fundamental do processo soteriológico anunciado pelas religiões cristãs. Cf. LÖWY,
Michael. A guerra dos deuses: religião e política na América latina. Tradução de Vera Lúcia Mello Joscelyne.
Petrópolis: Vozes, 2000. p. 61.
466
VALÉRIO, 2012, p. 52.
169
conversão467. No caso de frei Betto, essa é uma estratégia para construir sua própria história.
Dessa forma, para descrever esse “mundo” que o rodeava e que tornou sua entrada para a JEC
um divisor na sua vida, o autor escolhe como eixos de sua história pessoal a exclusão sócio-
racial, a austeridade do catolicismo tradicional e as ameaças de retorno do autoritarismo
governamental.
Sintomaticamente, a autobiografia de frei Betto começa pela descrição da babá que o
buscava diariamente no jardim de infância. O detalhamento abundante, entremeado por
relatos sobre a comportamento de Geralda, sugere que esse artifício foi utilizado pelo autor
para, simbolicamente, retratar a experiência da exclusão social e da discriminação vivida por
negros e trabalhadores no Brasil, especialmente as empregadas domésticas.
A pobreza de Geralda é simbolizada pelas “chinelas de corda” e pelo vestido de
“fustão”. Sua postura revelaria uma profunda subserviência representada no texto pelo olhar
alternadamente descrito como vago, “pra baixo” ou vazado. Também sua inexpressividade era
traduzida pelo constante silêncio em que se mantinha, raramente quebrado por um sussurro.
Dessa forma, segundo frei Betto, ela “pouco falava” e “nunca sorria”468.
Sua condição de mulher negra e trabalhadora braçal é projetada na descrição de seu
corpo. Seus “dedos fortes”, “ventre duro” e “braço redondo de veias salientes” traduziriam o
vigor físico imprescindível para o serviço pesado. Já as suas “ancas dilatadas” e “pernas
grossas” seriam próprias de uma “neta de escravos”, alvos históricos do abuso sexual.
No episódio do qual é personagem, a babá, ao buscar o pequeno Carlos Alberto no
jardim de infância, se depara com um acidente; o vendedor de gelo fora atropelado e
agonizava no asfalto. Frei Betto salienta que, enquanto sua curiosidade infantil o incitava a
correr em direção à cena para ver o que havia acontecido, a empregada mantinha a mesma
apatia rotineira. O autor interpreta esse comportamento como expressão de sua realidade de
exclusão social. Sua “tristeza inaudita” revelaria que ela era uma “exilada do mundo” ou uma
“esquecida do mundo dos vivos, no qual seu fantasma perambulava travestida de gente”. Ao
indagar Geralda sobre o que aconteceu, o dominicano ainda criança teria experimentado uma
revelação sobre o mundo do trabalho: “descansou; este não sofre mais”469.
Essa referência ao impacto que o convívio com negros e pobres causou na sua infância
é retomada na história de Renato, outro personagem de sua época de jardim da infância.
Assim como no caso da babá, a descrição atribui a suas características físicas o caráter de
467
Id. Entre a cruz e a foice: Dom Pedro Casaldáliga e a significação religiosa do Araguaia. Jundiaí: Paco
Editorial, 2012. p. 38.
468
BETTO, op. cit., p. 14.
469
Ibid, p. 16.
170
símbolos de sua condição social. Seu “rosto anguloso” e “olhos a saltar das órbitas”
denunciavam a “penúria” na qual vivia470.
As menções que frei Betto faz ao colega de classe sugerem sempre que a
discriminação daqueles que não se encaixavam nos padrões convencionalmente considerados
normais era um hábito cultivado até mesmo nas escolas. O autor conta que a professora,
“Dona Celeste”, ao escalar as crianças para encenarem a história infantil “O patinho feio”,
reservou ao aluno que destoava do resto da turma pela altura elevada o papel da personagem
que dá nome ao conto; e a Renato deu o papel do gato mau. Dessa forma, sua narrativa aventa
que essas escolhas se guiaram pelo preconceito que associava tacitamente os atributos dos
animais da história à condição social do aluno471.
Renato figura ainda em dois episódios importantes para a construção da memória de
frei Betto. A pretexto de terem o mesmo protagonista, eles são narrados conjuntamente.
Entretanto, esse não é o real motivo de sua união simbólica, mas sim, o escândalo da pobreza.
Na primeira parte do capítulo “Vísceras”, o autor narra que ao ser constrangido pelo
olhar ávido de Renato pelo seu lanche, compartilhou o alimento com ele. No dia seguinte,
munido pela mãe com o dobro da quantidade habitual de merenda para poder dividi-la com o
amigo, ficou surpreso ao vê-lo acompanhado por mais dois meninos de igual condição. O
episódio lhe teria revelado que “a porta do refeitório demarcava dois universos distintos”.
Mais do que separar espaços físicos, ela balizava a desigualdade social. Comer no interior
daquele local, do qual os privilegiados com suas lancheiras “mantinham distância”,
significava pertencer ao grupo daqueles aos quais tudo faltava e que dependiam do “erário
público” para amenizar a fome472.
Na segunda parte, frei Betto narra que na semana seguinte Renato levantou a mão,
aflito para pedir a palavra, durante uma das aulas. Ignorado pela professora, que teria
continuado a leitura de Alice no país das maravilhas, ele defecou em meio à sala. Sentindo-se
constrangido pela zombaria dos colegas, o menino foi arrastado grosseiramente por dona Rute
para fora do local e, pouco tempo depois, retornou para limpar o chão e a cadeira na qual
estava sentado. O frade afirma que teve “ânsias de gritar por ele” ao vislumbrar que o choro
compulsivo o impedia de dizer algo frente às humilhações proferidas pela professora e o
sofrimento do castigo lhe foi imposto473.
470
Ibid, p. 27.
471
Ibid, p. 30-33.
472
Ibid, p. 34.
473
Ibid, p. 36.
171
A junção que frei Betto estabeleceu entre esses dois episódios procura atestar que a
pobreza “visceral” de Renato não lhe vitimava apenas através da fome. Ela também era razão
para humilhações, como, por exemplo, o descaso da professora que motivou o episódio
vergonhoso e, por consequência, a privação do seu direito à educação. O autor narra que “a
partir daquele dia, tornaram-se frequentes as faltas de Renato. Até que sumiu de vez”474.
A narrativa de frei Betto salienta o contraste entre sua infância e a de Renato como
forma de demonstrar o potencial transformador que aquele, por assim dizer, “encontro de dois
mundos”475 teve na sua trajetória. Quando o colega lhe confessou que ansiava por uma festa
de aniversário que nunca tivera, o autor contrapõe esse desejo à lembrança das suas
comemorações “coloridas de balões, fartas de presentes, e salgadinhos e doces afetuosamente
preparados pelo mutirão de empregados e tias [...]”476. Também é visível o contraste entre sua
condição de criança bem cuidada com a carência do menino na estrutura da narrativa da
última vez que os dois teriam se encontrado. O dominicano conta que enquanto andava pela
feira ao lado de sua babá, extensão da proteção familiar, a mãe do amigo pediu uma ajuda em
dinheiro por conta das dificuldades que a ausência do marido, que se encontrava preso,
causava aos dois.
Não só o escândalo da pobreza, representado pelo convívio com Geralda e Renato, é
elencado para demonstrar o quão grave era a realidade que assolava algumas das pessoas com
as quais frei Betto conviveu na mais tenra idade, como também o racismo e o elitismo que
caracterizavam alguns dos colégios que ele frequentou são destacados como exemplos da
perversidade desse contexto social.
Disposto a demonstrar a precocidade com que se viu diante do caráter discriminatório
do “mundo” no qual estava inserido, frei Betto retoma um episódio dos anos iniciais da
alfabetização. Ele narra que certo dia, no chamado “grupo escolar”, escutou sem querer uma
discussão. Indagada por uma professora sobre quando os “alunos de cor” poderiam participar
da coroação anual da imagem de Nossa Senhora; dona Filomena, a diretora, teria afirmado
que não combinava. Diante da réplica de que a escola poderia ser acusada de racismo, foi
autorizada a participação de uma aluna negra na cerimônia daquele ano. Entretanto, enquanto
os outros alunos que representariam os anjos vestiam branco, ela estaria totalmente de preto; o
que, segundo o autor, causou “desconforto geral”. Essa teria sido a primeira vez, de muitas,
474
Ibid, p. 37.
475
Ibid, p. 34.
476
Ibid, p. 35.
172
que o autor vislumbrou a discriminação racial477. Contudo, sua autobiografia destaca que, com
o passar dos anos, demonstrações como essa se tornaram mais veladas.
Já o elitismo cultivado nos colégios pelos quais frei Betto passou é descrito como uma
prática mais recorrente e muito menos preocupada com a discrição. Em sua vida escolar, teria
sido essa a injustiça que com mais proximidade ele experimentou. O autor ressalta que, na
fase do “ginásio”, as altas mensalidades da escola católica na qual dividia a classe com “o
filho do prefeito e de Tancredo Neves” serviam de filtro para aglutinar apenas os rebentos da
elite, afastando, assim, pobres e negros. Também a presença feminina não era permitida478.
Frei Betto procura relacionar a obsessão pela disciplina e etiqueta que os padres que
dirigiam a escola cultivavam à tentativa de forjar uma casta para a cidade de Belo Horizonte,
que naquela época contabilizava pouco mais de meio século de fundação. A educação baseada
em hábitos franceses teria, em sua visão, como objetivo desenvolver uma “finesse d’esprit”479,
por isso, segundo o dominicano:
[...] exigiam dos alunos hábitos principescos, disciplina férrea, uniforme de gala,
passos aveludados pelos corredores, voz contida, unhas limpas, cabelos aparados e
material escolar em estado de perfeito asseio. Tudo isso reforçado pela formação do
caráter, respaldada no esporte e na religião, esta entendida como freio aos ímpetos
juvenis e castigo aos pecados da carne e, aquele, como preparo ao competitivo
alpinismo profissional e social.480
Frei Betto faz questão de ressaltar que esse apego pela disciplina e pelos mecanismos
de exclusão social, além de promover o que ele chama de “darwinismo de salão”, responsável
por manter negros, protestantes e judeus bem distantes do colégio, também dava margem a
episódios de humilhação contra aqueles alunos que, mesmo pertencendo ao seleto grupo dos
abastados que podiam estudar no colégio, não se enquadravam no padrão de comportamento
estabelecido pelos padres481.
O primeiro exemplo elencado por frei Betto é o de Virgílio. O autor narra que, durante
uma inspeção nas primeiras semanas do ano letivo, o padre Graziel, reitor do colégio,
repreendeu de maneira ofensiva o colega por trazer sua caderneta pessoal assinada apenas
pelo pai. Exaltado, ele teria perguntado se o menino sabia ler, se era surdo, cego ou analfabeto
por não ter seguido as orientações e preenchido completamente a ficha de identificação. O
autor aventa que essa atitude descomedida do clérigo se deveu a “sua contrariedade por ver de
477
Ibid, p. 85-87.
478
Ibid, p. 102.
479
Ibid, p. 103.
480
Ibid, p. 104.
481
Ibid, p. 103.
173
volta ao colégio um aluno considerado rebelde” 482. Ele avalia que a opção de impedir essa
rematrícula pareceria certamente mais fácil, entretanto, o elitismo que caracterizava a
instituição era um obstáculo intransponível para que seus dirigentes se indispusessem com as
famílias abastadas.
Em outro exemplo, frei Betto narra que, passados três meses, a direção do colégio
reteve todas as turmas no pátio do colégio para inquiri-las sobre quem era o responsável pelas
pichações na parede de um banheiro que contestavam a heterossexualidade daqueles que
abraçavam o sacerdócio. Diante do silêncio dos suspeitos, padre Graziel acusou Ricardo
Gontijo que imediatamente negou a autoria. Segundo o autor, o colega seria incapaz de
protagonizar tal ato. Em suas palavras, “O reitor perdeu a compostura. Irado, agarrou o
menino pelos ombros, sacudindo-o e gritando: foi você sim! Reconheça que foi você!”483
A explicação de frei Betto para o fato do padre Graziel ter eleito como culpado um dos
alunos mais educados e que, ainda por cima, era filho de “um dos mais prósperos hoteleiros
da cidade” procura, mais uma vez, salientar o elitismo da escola. O dominicano sugere que o
reitor enxergou naquela ocorrência mais uma oportunidade para punir aqueles que não se
enquadravam em seu padrão. Dessa forma, seria a amizade que Gontijo mantinha com
“colegas tidos como incorrigíveis” a mácula que fizera com que sua disciplina e aplicação aos
estudos fossem ignoradas e ele fosse acusado de um ato que não cometeu484.
A austeridade do catolicismo tradicional é o segundo eixo que frei Betto estabelece
para demonstrar quão absurda era a realidade que o circundava durante sua jornada formativa.
A importância que o autor atribui a essa religiosidade balizada pelo medo do inferno e pelo
sentimento de culpa em relação à própria sexualidade se deve ao fato de ter sido ela o pano de
fundo que potencializou o caráter revolucionário do discurso da JEC, o que,
consequentemente, precipitou seu “Caminho de Damasco” e por suas concepções equivocadas
terem contribuído para legitimar as posições daqueles que combatiam nas fileiras pelo retorno
do Brasil a um regime autoritário.
A narrativa de frei Betto estabelece uma oposição entre a visão religiosa que aprendia
em casa com o ensinamento e o exemplo dos pais e aquela que constantemente padres e
freiras tentavam lhe impor nas igrejas. Frei Inocêncio e a mère Ascensão do colégio Sacré-
Coeur de Marie são os primeiros personagens elencados para representar a instituição. De sua
iniciação cristã com o sacerdote holandês, o autor salienta a ira com que o frade vociferava a
482
Ibid, p. 107.
483
Ibid, p. 110.
484
Ibid, loc. cit.
174
moral sexual durante as missas485. Já das aulas de catequese, apesar da doçura e juventude da
freira, ele recorda que elas lhe impingiam uma aflitiva culpa pelo pecado original e um medo
terrível do inferno. Nas palavras do autor:
Sentada ao meu lado, à sombra de uma castanheira, ela trazia em mãos um estojo
de madeira envidraçado na face, no interior do qual havia um rolo de papel em volta
de uma bobina. Com uma manivela, rodava a bobina e, aos poucos, passava o
“filme” das várias fases da alma. Primeiro, um enorme coração preto – retrato da
alma das crianças pagãs, dos pecadores inveterados, dos hereges protestantes e dos
judeus que mataram jesus... em seguida, discursava sobre a misericórdia de Deus, o
arrependimento, o sangue redentor de Cristo e, aos poucos, o rolo mostrava corações
com espaços em branco entremeados de manchas pretas. Era a alma em processo de
conversão ou sendo limpa pela água purificadora do batismo.
O inferno causava-me aterradora impressão. A religiosa enfatizava de tal modo o
poder de Lúcifer que, ao lado de Super-Homem, Batman e Zorro, passou a figurar
na minha galeria de heróis, embora me inquietasse o medo de morrer e ir para aquele
lugar de torturas e fogo, onde pecadores que não se arrependeram e hereges que não
se converteram penam por toda a eternidade, sem uma gota de alívio. O inferno
dominou-me de tal forma o imaginário que, em meus desenhos, só usava lápis
vermelho.486
Frei Betto ressalta que esse catolicismo que aprendia quando estava distante dos pais,
além de ser aferrado ao moralismo sexual e inclinado à discriminação de judeus e
protestantes, também era profundamente anticomunista. Ele relembra que na igreja da Boa
Viagem, após a benção final, era costume se rezar “três ave-marias em prol da conversão da
Rússia comunista”487. Em outro episódio, o autor narra que durante uma visita escolar à
Lagoa da Pampulha, a professora informou os alunos de que as missas eram proibidas na
igreja de São Francisco de Assis porque “a sineira, vista à distância, e em contraste com o
desenho ondulado do templo, lembra o símbolo comunista da foice e do martelo...”488. O
dominicano ainda ressalta que, curiosamente, dona Derci Passos, antes mesmo de ser
questionada sobre as celebrações naquele local, fez questão de informar-lhes que tanto o seu
projetista, Oscar Niemayer, quanto Cândido Portinari, que o decorou, eram comunistas489.
Em sua narrativa, o advento da puberdade só tornava o discurso religioso cada vez
mais obcecado pelas questões da sexualidade. No colégio católico no qual estudava nesse
período “a fatídica advertência: ‘Deus me vê’” simbolizaria o projeto de moldar os costumes
pelo medo do fogo do inferno. O autor conta que, nas missas compulsórias, o desejo sexual
era apresentado como ardis do demônio que provocava a ira de Deus. Nas palavras do autor:
485
Ibid, p. 73-74.
486
Ibid, p. 76.
487
Ibid, p. 89.
488
Ibid, p. 84.
489
Ibid, p. 83.
175
[...] Tal a entonação do pregador que se chegava a sentir o calor das chamas, o
cheiro do enxofre, as pontas dos garfos a nos espetar a carne. As palavras do
celebrante nos oprimiam com um deus iracundo, que se impunha como eterno
inimigo do desabrochar de nossa adolescência, da fascinante descoberta da
sexualidade e, em especial, de nosso despertar para a beleza feminina.490
490
Ibid, p. 102.
491
Ibid, p. 72.
492
Ibid, loc. cit.
176
produziu sua rejeição pelas “fórmulas e formalidades” ensinadas na catequese. Também sua
antipatia pela rigidez da ortodoxia católica teria brotado da recomendação de sua mãe para
não “absolutizar” o que aprendia na igreja e não discriminar os praticantes de outras religiões
como os “vizinhos protestantes” e a “tia Gláucia, da Igreja Batista”493.
Para evidenciar que na sua adolescência experimentou uma realidade escandalosa, frei
Betto estabelece como terceiro eixo a ameaça do reestabelecimento de um regime autoritário
no Brasil. Certamente, a pouca idade do autor nos episódios narrados suscita questionamentos
sobre seu real interesse, àquela altura, pela crônica política. Entretanto, sua narrativa ressalta
que essa intuição, por assim dizer, sobre os abusos e injustiças que uma nova ditadura poderia
acarretar derivava muito mais da convivência com seu pai, visto que ele era atormentado pela
preocupação com esse risco.
Frei Betto procura deixar claro que, por influência paterna, a figura mais importante de
seus primeiros contatos com o universo político foi Getúlio Vargas. Membro da UDN, seu
Antônio Carlos assinou em outubro de 1943 o Manifesto dos Mineiros que exigia o fim da
ditadura do Estado Novo e a redemocratização do país. A presença e relevância dessa
oposição seria tão grande na intimidade familiar que, segundo o autor, o anúncio do
licenciamento do presidente em agosto de 1954, após o atentado a Carlos Lacerda na rua
Tonelero, deixou seu pai tão extasiado que ele decidiu transformar seu aniversário de dez anos
“numa grande comemoração do fim do autoritarismo no Brasil”494. No entanto, seus planos
foram frustrados pela perplexidade geral causada pela notícia do suicídio de Vargas, um dia
antes da festa.
Até mesmo a antipatia que Antônio Carlos nutria por Juscelino Kubitschek tinha sua
explicação na oposição ferrenha ao varguismo, pois, segundo frei Betto, foi graças ao
interventor de Minas Gerais, nomeado pelo presidente gaúcho em 1933, que o médico mineiro
ascendeu na vida política. De acordo com seu pai, JK “viajava demais e administrava de
menos” e devia seu sucesso à “mão protetora de Benedito Valadares”495.
Ao introduzir a política em sua autobiografia, frei Betto, não por acaso, une em um
mesmo capítulo dois episódios de sua infância que aparentemente não têm nenhuma ligação
cronológica. No primeiro, ele narra o dia no qual o pai de uma colega judia do Jardim da
Infância foi reclamar com a diretora porque o conto “João e Maria” dos irmãos Grimm foi
lido durante uma aula. Ao questionar Raquel sobre o que havia incomodado o homem, a
493
Ibid, p. 77.
494
Ibid, p. 93.
495
Ibid, p. 67.
177
menina respondeu que ele não achava apropriado “essa coisa de falar que a velha ficou
trancada no forno até morrer queimada. Na guerra, meus avós e dois tios morreram também
no forno”496. Esse teria sido o ensejo para que o autor, através de uma conversa com seu pai,
passasse a conhecer a história de Hitler, Mussolini e da “matança de judeus e outros
prisioneiros em campos de concentração”497. O dominicano ainda ressalta que, curiosamente,
apesar do horror causado pela descrição dos crimes do Nazifascismo, a informação que o
surpreendeu foi a da origem judaica de Cristo. Assim, no dia seguinte, ele teria procurado a
colega para falar: “meu pai disse que jesus era judeu. Como lá em casa todos adoram Jesus,
acho que nós também somos judeus”498.
Embora o desfecho da história enfatize a comicidade que a inocência de criança dá à
conclusão aparentemente lógica, através dessa construção, frei Betto indica almejar que sua
narrativa estabeleça uma trincheira simbólica que oponha de forma radical o cristianismo e
qualquer tipo de ditadura e que seja, acima de tudo, intransponível. Em sua autobiografia, o
autor dá a esse episódio da infância o papel de fundador da rejeição indissolúvel ao
autoritarismo que justificaria todas as escolhas feitas ao longo de sua trajetória de vida.
Para introduzir o segundo episódio que compõe o capítulo, frei Betto conta que,
durante as brincadeiras de criança com o amigo Celsinho, tempos depois de ouvir a história
dos parentes de Raquel, enforcou e queimou um boneco de pano, com um bigode desenhado
com carvão, que representava Hitler499.
A partir desse ponto, ele passa a narrar o dia no qual seu companheiro de passatempo
lhe informou que tinha sido proibido de frequentar sua casa. Curioso sobre qual seria o
motivo para uma decisão tão radical, o pequeno Carlos Alberto perguntou e o amigo
respondeu que fora a oposição que seu pai fazia a Vargas a razão para a interdição. Segundo
frei Betto, ele teria dito: “seu pai tirou do Brasil o presidente da República. Papai gostava do
presidente, e garante que ele vai voltar para governar o país”500. O autor afirma que, após seu
Antônio Carlos confirmar que de certa forma havia contribuído para a deposição do ditador
em 1945 e explicar os motivos pelos quais ele merecia essa alcunha, teve vontade de dar a
“Getúlio” o mesmo fim que dera a “Hitler”, assim, se ambos se uniam nos crimes, também se
uniriam na punição.
496
Ibid, p. 52.
497
Ibid, loc. cit.
498
Ibid, loc. cit.
499
Ibid, p. 55.
500
Ibid, p. 54.
178
Embora frei Betto reconheça que Vargas e Hitler se distinguiram em vários aspectos e
que o Nazismo promoveu uma barbárie sem precedentes, ele faz questão de mencionar que o
líder do Estado Novo “também mandou prender gente inocente e deu ordens para bater e
matar quem discordava dele. Proibiu eleições, censurou a imprensa e ficou quinze anos no
poder”501. Sua narrativa sugere que o autoritarismo que caracterizou a maneira como ambos
exerceram o poder os aproxima, ainda que a proporção de suas consequências seja
profundamente desigual.
Dessa forma, a narrativa de frei Betto estabelece que sua profunda aversão pelo
autoritarismo nasceu do entrecruzamento de duas heranças. De um lado, a individual; através
da obsessiva oposição a Vargas, a influência paterna lhe teria legado a certeza de que os
direitos democráticos estão constantemente em risco por conta das ambições daqueles que
exercem o poder, portanto a eterna vigilância é imprescindível. Do outro, a coletiva; a
memória do Holocausto lhe deu a convicção de que combater esse tipo de ideologia não era
uma responsabilidade particular da nação na qual ela se desenvolve, tampouco representa
exclusivamente a luta de suas vítimas diretas por justiça. A barbárie que o Nazifascismo
promoveu deveria colocar toda a humanidade na trincheira inimiga a qualquer regime que
apresentasse a mais remota semelhança com seus métodos e objetivos.
Concluída a construção da narrativa inicial de Alfabetto que, na visão do autor,
demonstra o quanto a realidade que contextualizou seus treze primeiros anos de vida era
injusta e nociva e destaca o efeito revolucionário que sua descoberta do catolicismo
progressista, através da importância que a JEC teve em sua trajetória, frei Betto passa, então, a
contar como essa conversão fez com que ele enxergasse o que antes não conseguia.
Embora possa parecer um ato motivado, exclusivamente, pela vontade individual,
narrar a própria vida é uma prática socialmente aprendida. Segundo Eakin, a narração de si
não é uma atividade exclusiva daquelas pessoas que, por sua notoriedade ou pelo caráter
incomum das experiências que vivenciaram, decidiram transformar suas memórias em livros
publicados. Na perspectiva do autor, todas as vezes que alguém se lembra, comunica o que
aconteceu no seu dia anterior ou planeja os seus afazeres cotidianos está praticando o mesmo
exercício do qual nascem as autobiografias.
Em sua obra Vivendo autobiograficamente: a construção da identidade na narrativa,
Paul John Eakin afirma:
501
Ibid, p. 56.
179
[...] falar sobre nós mesmos é muito mais do que autoindulgência; quando nós
fazemos isso, efetuamos um trabalho de autoconstrução. A própria frase “falar
sobre/nós mesmos” tende a separar a individualidade do ato de expressá-la, a
atribuir uma existência independente ao “nós mesmos”, que seria o “sobre o que
estamos falando”, quando o “falar”, como defendo, na realidade convoca nossas
identidades narrativas à existência; existe uma interação entre o que somos e o que
dizemos que somos, coisas que se reforçam mutuamente. Ao falar em identidade
narrativa [...] eu proponho [...] uma relação extremamente próxima e dinâmica entre
narrativa e identidade, pois a narrativa não é apenas uma forma literária, mas parte
do tecido de nossa experiência vivida. Quando se trata de nossas identidades, a
narrativa não é simplesmente sobre o eu, mas sim, de maneira profunda, parte
constituinte do eu.504
502
EAKIN, op. cit., p. 48.
503
Ibid, p. 13.
504
Ibid, p. 18.
180
caracterizava o colégio, através de pequenas ações. Ele narra, por exemplo, que um curso
noturno para adultos foi instalado depois que o jornal do grêmio revelou que “um dos
melhores colégios de Minas abrigava funcionários analfabetos”505.
A discriminação racial também passa a ter uma explicação mais complexa na narrativa
de frei Betto. Se até iniciar seu “Caminho de Damasco” ele conta que apenas percebia a
ausência de alunos negros em seu colégio e considerava esse fenômeno somente resultado do
elitismo dos padres que aspiravam criar uma elite para a capital mineira, depois desse
episódio, ele teria passado a enxergar a relação íntima existente entre os mecanismos de
exclusão e a manutenção de uma ideologia que defende a superioridade de brancos sobre
negros, calcada em uma presunção intelectual. Assim sendo, as práticas e os discursos se
alimentariam mutuamente para preservar uma edificação de poder que historicamente
privilegia uma parcela da população.
Frei Betto narra em um dos capítulos que o padre Cajetano, depois de retornar de uma
missão em Angola, diante da curiosidade dos alunos, afirmava que os negros da África eram
“incapacitados para as ciências”, pela sua inferioridade intelectual, “desprovidos de pudores”,
por andarem nus e por suas danças sensuais e que era impossível catequizá-los, pois
“idolatravam a natureza, davam-se ao animismo e praticavam a bigamia”506. Sugerindo que
chegou a essa conclusão ainda naquele período, o autor destaca que o discurso racista do
professor de latim era aceito justamente por que ia de encontro à estrutura ideológica do
colégio, no qual “exceto as batinas dos padres, não havia nada negro”507.
Alfabetto também sugere que a visão do jovem Betto sobre o elitismo cultivado no
colégio sofreu uma transformação. Ao narrar a história de Pedro Bullamarte, o autor ressalta
que a curiosidade da turma, ansiosa por saber o que havia acontecido com o colega que há
dias não comparecia às aulas, foi suplantada pelo espanto causado pela descoberta de que seu
pai era açougueiro. Supondo que seus leitores talvez não compreenderiam porque essa
informação causou tamanho sobressalto, frei Betto explica:
505
BETTO, 2002, p. 142.
506
Ibid, p. 150.
507
Ibid, p. 151.
181
508
Ibid, p. 157.
509
Ibid, p. 178.
510
Ibid, p. 155.
182
católica. Sua narrativa associa a indignação dos alunos à consciência adquirida da contradição
existente entre o discurso religioso e os interesses que, verdadeiramente, guiaram as práticas
de suas instituições. Assim sendo, ele teria compreendido imediatamente que o moralismo ao
qual padre Prudêncio lançou mão para legitimar a expulsão de Lúcio serviu, na verdade, como
instrumento para manter o prestígio social e o poder da Igreja.
Em outras palavras, a preocupação daqueles que reproduziam esse discurso estaria
mais próxima dos interesses terrenos do que da preocupação com a salvação celestial. Para
que não restassem dúvidas acerca dessa incoerência, o dominicano encerra o capítulo
destacando que “dois anos depois, padre Prudêncio largou a batina e deixou a cidade em
companha da mãe de um aluno que, apaixonada, não relutou em virar as costas para o marido
e os dois filhos”511.
Frei Betto busca reafirmar esse processo de tomada de consciência ao narrar como a
notícia da morte do Papa Pio XII, em 04 de maio de 1959, fez com que os alunos do colégio
fossem castigados. O frade conta que, por comemorarem a suspensão das aulas em virtude do
luto, todos foram obrigados a permanecer por duas horas em pé, no pátio, rezando o terço.
Mais uma vez, segundo Alfabetto, o jovem Betto teria compreendido rapidamente que a
atitude autoritária do reitor, longe de ser uma forma de corrigir uma atitude coletiva insensível
e incentivar a devoção, representou, na verdade, uma pura exibição de seu poder. Em suas
palavras “foram não sei quantos terços ali de pé, até que o período das aulas se esgotasse. E
também um pouco de nossa religiosidade...”512.
Dessa forma, fica claro que o grande objetivo de frei Betto ao contar a própria história
nesses moldes é defender a legitimidade de determinados valores. Ao enfatizar o escândalo
que o racismo, o elitismo e o autoritarismo passaram a significar em sua vida, depois de
trilhar seu “Caminho de Damasco”, o dominicano almeja atestar a superioridade moral da
democracia e da igualdade no convívio social.
Segundo Eaikin, o que faz com que as pessoas desenvolvam a habilidade da narrativa
autobiográfica é, justamente, a sua funcionalidade na negociação dos valores socioculturais e
não, apenas, o temor causado pelos constrangimentos sociais que a incapacidade de apresentar
uma narração de si satisfatória poderia causar. Nas palavras do autor, “[...] os valores
abrangem os materiais necessários para a construção da identidade e da história de vida”513.
511
Ibid, loc. cit.
512
Ibid, p. 161.
513
EAKIN, op. cit., p. 115.
183
514
Ibid, p. 114.
515
Ibid, p. 124.
184
perseguição às dissidências políticas teriam sido, apenas, as ferramentas para saciar a ambição
pelo exercício do poder, nutrida historicamente por aqueles que os empreenderam516.
A maneira genérica como frei Betto define a ditadura militar brasileira se deve ao
desejo de potencializar, em sua narrativa, a capacidade explicativa de seus paradigmas de
memória. Graças a eles, como já foi dito, o dominicano acredita poder, no seu presente,
estabelecer uma explicação mais abrangente e satisfatória sobre esse fenômeno; já em relação
ao passado, mais precisamente no momento em que os acontecimentos se davam, essa
herança lhe teria dado a capacidade de intuir sobre quais tipos de prática se tornariam comuns
em um futuro próximo.
Para frei Betto, por ter sido o único objetivo daqueles que engendram um regime
autoritário nutrir e aumentar o próprio poder, não existiam limites éticos ou morais que
pudessem deter seu arbítrio, nem mesmo dispensar práticas abjetas como a tortura. Por isso, o
que caracterizaria a ditadura brasileira, assim como todas as outras, seria o sistemático
desrespeito aos direitos humanos; a suspensão de garantias constitucionais; a constante
perseguição à oposição; a censura das vozes dissonantes; e a desconfiança obsessiva e
generalizada, segundo a qual “todos eram suspeitos até prova em contrário”517. Nas palavras
do dominicano:
[...] vejo uma ditadura é esse silêncio fúnebre que retira as pessoas das ruas, tranca-
as em casa, faz com que fechem as janelas cerrem as cortinas, falem entre si por
meio de gestos e sussurros. Uma ditadura é essa cidade, em pleno dia útil, com
aspecto de domingo chuvoso; esse arrepio que me tensiona ao passar ao lado de um
homem fardado; essa incerteza, esse vazio, essa abissal dúvida em relação ao futuro
pessoal e coletivo.518
516
BETTO, op. cit., p. 211.
517
Ibid, p. 212.
518
Ibid, p. 213.
519
Ibid, p. 207.
186
Embora as primeiras menções que frei Betto fez apresentem o presidente João Goulart
como vítima por excelência do movimento militar, Alfabetto, sutilmente, o elenca como um
dos culpados pelo êxito da implantação do regime ao destacar sua “fuga consentida” como
síntese simbólica de sua incapacidade política para arquitetar uma reação520.
Outra particularidade que frei Betto considerou importante salientar no processo do
golpe de 1964 foi sua rede de apoiadores. Embora não afirme que eles tenham participado
ativamente da conspiração que derrubou Goulart, o autor apresenta suas manifestações ou
omissões como fatores importantes para o êxito do movimento. Assim, ele destaca o papel da
Igreja Católica que, em suas palavras, “incensara os preparativos [...], promovendo grandes
concentrações populares em torno da figura discutível de um sacerdote estadunidense que
liderara, nas grandes cidades, a ‘marcha da família com Deus pela liberdade’”521; e sugere que
a reprodução do “eufemismo ‘revolução’, para uma típica quartelada imposta na véspera, data
da mentira e, por isso, recuada um dia no calendário”522 era uma demonstração da
benevolência da imprensa para com o regime.
Frei Betto faz questão de destacar que a ajuda de parte do clero católico à perseguição
de opositores do movimento golpista foi importante para a ascensão e permanência dos
militares no poder. Ele narra que não só houve manifestações de apoio, como por exemplo o
documento que os bispos lançaram “apoiando os militares por salvarem o Brasil da ameaça
comunista”523, como também que havia aqueles que se engajavam na delação dos opositores
do regime. O autor narra que em Belém do Pará viu “perplexo, o arcebispo, dom Alberto
Gaudêncio Ramos, denunciar em programa de TV seus “padres subversivos”524.
Entretanto, nas obras de frei Betto dessa nova fase, sem dúvida, a tortura é a
peculiaridade da experiência autoritária no Brasil mais intensivamente explorada. Certamente,
isso se deve ao fato de que suas considerações sobre ela corroboram sua tese sobre a
finalidade da implantação da ditadura. Mesmo admitindo que, por vezes, ela era usada como
forma de subtrair informações, o dominicano se esforça para demonstrar que essa prática, na
verdade, é um instrumento de demonstração de poder utilizado tanto contra militantes
políticos, quanto para castigar criminosos comuns. Dessa forma, seu objetivo é desqualificar a
ideia de que ela seria um artifício tático empregado por agentes de segurança para enfrentar
520
Ibid, p. 210.
521
Ibid, p. 215.
522
Ibid, p. 210.
523
Ibid, loc. cit.
524
Ibid, p. 215.
187
um tipo de inimigo interno que se distingue por não adotar estratégias convencionais de
combate.
Diferentemente da maneira como o tema foi apresentado em Batismo de Sangue,
especialmente, no relato da passagem de frei Tito pela OBAN, nas obras do século XXI, frei
Betto abandona a abordagem da tortura como estigma do martírio e passa a desenvolver
estratégias para demonstrar qual seria a sua verdadeira função. Dessa forma, sua narrativa não
só demonstra uma preocupação com a proliferação dos discursos que negam que esses
métodos foram utilizados durante a ditadura militar no Brasil, como ainda contesta a
interpretação segundo a qual a tortura seria uma ferramenta legitimada pelas circunstâncias
para fazer criminosos confessarem seus delitos e delatarem companheiros. Ou seja, para os
propagadores dessa perspectiva, muitos deles artífices e simpatizantes do regime, ela seria um
“mal necessário”, uma tática de guerra contra a violência do inimigo interno e sua adoção
resultaria da imprevisibilidade das ações da guerrilha urbana.
Para afastar qualquer possibilidade de se negar que o uso da tortura existiu no Brasil
daquele período, frei Betto incluiu em seu texto todas as menções que o confrade Fernando
fez, em seu diário, sobre as personalidades e instituições que denunciaram direta ou
indiretamente essas práticas no exterior. Entre eles estão Dom Helder Câmara525, o cardeal
Bernard Alfrink526, a Conferência Católica dos Estados Unidos527, L’obsservatore Romano528
e o jornal Le Monde529. Ele também faz questão de mencionar as reações contrárias aos
pronunciamentos daqueles que se propunham a negá-las como os ministros Alfredo Buzaid530
e Delfim Neto531, os bispos Geraldo Proença Sigaud532 e Agnelo Rossi533, e o diretor do
Jornal do Brasil, Francisco Manuel do Nascimento534. Para afastar qualquer dúvida, ele
destaca:
525
Id, 2009, p. 102.
526
Ibid, p. 131.
527
Ibid, p. 103.
528
Ibid, p. 131.
529
Ibid, p. 239.
530
Ibid, p. 103.
531
Ibid, p. 125.
532
Ibid, p. 126.
533
Ibid, p. 132.
534
Ibid, p. 126.
188
Frei Betto apresenta o caso de frei Tito como outro exemplo que demonstraria o quão
insipientes são as explicações sobre a finalidade da tortura. Sem que houvesse qualquer
justificativa plausível, o religioso foi levado ao DOI-CODI três meses e quatorze dias após
sua prisão. Depois de tanto tempo, seu cárcere já era conhecido pelos companheiros de ALN
535
Ibid, p. 86.
536
Ibid, p. 38-39.
537
Ibid, p. 40.
538
Ibid, p. 17.
189
e, provavelmente, nenhuma informação que lhe fosse arrancada através da violência teria
alguma utilidade. O autor chega a afirmar que “A queda do dono do sítio serve de pretexto
para Tito ser o primeiro frade a ser levado à ‘sucursal do inferno’, como os próprios
torturadores designam aquele local”539. Sua transferência seria apenas uma represália por
conta da “repercussão de nosso caso na opinião pública internacional, especialmente na
europeia”.
Os requintes de crueldade que caracterizavam as sessões de tortura e a destruição que
elas deixavam em suas vítimas são detalhados por frei Betto como prova da desproporção
entre o suposto anseio dos agentes da repressão por informações e o nível de violência
empregado. Além das sevícias sofridas por frei Fernando540 e Ivo, o autor destaca a passagem
da dentista Marlene de Souza Soccas pelo DOI-CODI. Assim, ele narra:
Justamente por defender que a tortura é uma demonstração de poder criminosa sem
função tática, frei Betto desqualifica a ideia de que as vítimas que não suportaram a dor e
revelaram alguma informação têm, nesse ato, um motivo para se sentirem culpadas ou
traidoras. Para isso, ele usa o exemplo do próprio confrade Fernando. Três motivos são
apresentados para explicar porque o dominicano envolvido na morte de Marighella não
sucumbiu diante desse sentimento e nem aceitou as acusações dos policiais de que teria agido
como Judas. O primeiro e mais importante, é que ele foi submetido a uma dor sobre-humana,
portanto, ninguém teria o direito de exigir que ele a resistisse; em segundo, sua atitude não foi
uma negação de seus princípios, visto que ela não foi tomada por vontade própria, mas, sim,
539
Ibid, p. 76.
540
Frei Fernando afirma: “Arrancaram-me as roupas, dependuraram-me no pau de arara, ligaram os eletrodos em
minhas orelhas e nos órgãos genitais; armaram-se de porretes, rodaram a manivela, fizeram-me estrebuchar sob a
virulência das descargas elétricas. Não sei quantos cavalos do apocalipse coicearam o meu corpo, sei apenas que
mergulhei num profundo e pavoroso vazio; meu ser havia se descolado do corpo que, lá em cima, do lado de
fora, ardia em dores, berrava ansioso pela morte, atirava-se num macabro balé ritmado por mancadas, chutes e
cargas elétricas, enquanto no amago daquele vazio minha identidade, volatilizada, estilhaçava-se em mil
pedaços.” Ibid, p. 38.
541
Ibid, p. 99.
190
resultou de uma coação violenta; e em terceiro, ele só falou por acreditar que não prejudicaria
ninguém, pois tinha certeza de que Marighella já sabia de sua prisão542.
Entretanto, a principal estratégia de frei Betto para desqualificar a tortura como
artifício tático é a narrativa daquelas que foram praticadas contra os “corrós”, presos comuns.
O uso recorrente desse tipo de método para castigar homens encarcerados há anos,
independentemente do tipo de comportamento que apresentavam no cárcere, deslegitimaria
totalmente a ideia de que eram as peculiaridades do inimigo que obrigavam a repressão a se
embrenhar em uma guerra suja.
Frei Betto narra que, após serem transferidos da carceragem do DOPS para os
presídios estaduais, se tornou uma rotina na vida dos presos políticos testemunhar as
crueldades às quais os “corrós” eram submetidos por carcereiros, policiais e militares. Em
Diário de Fernando, ele salienta que os abusos cometidos iam desde sutis humilhações
diárias, como lustrar os sapatos do diretor543, até crimes graves como sequestro, tortura e
assassinato. Em maio de 1970, frei Fernando registra que:
Frei Betto também narra que não eram incomuns os sequestros de detentos de dentro
do presídio. Em duas oportunidades, ele registra esse tipo de ocorrência. Em julho de 1970,
ele menciona que oito presos comuns “foram retirados do presídio pelo Esquadrão da Morte e
assassinados na periferia da Grande São Paulo545. Posteriormente, em maio de 1972, já na
penitenciária do Carandiru, ele afirma que “o diretor do Tiradentes figura como réu no
processo que investiga o assassinato de sete corrós que se encontravam sob sua guarda, e o
sequestro de um oitavo, que está desaparecido”546. Se somam a esses crimes graves, outros
abusos e omissões que eram corriqueiros como não prestar socorro aos que passavam mal, aos
que eram acometidos por surtos psicóticos, ou mesmo aos que eram agredidos ou violentados
por outros presos. O autor destaca:
542
Ibid, p. 40.
543
Segundo frei Fernando, o “diretor do presídio – doutor Olintho Denardi – gosta tanto de dar brilho às
extremidades do corpo que, ao chegar ao presídio, sua primeira providência é soltar o corró encarregado de
engraxar-lhe os sapatos”. Ibid, p. 58.
544
Ibid, p. 99.
545
Ibid, p. 114
546
Ibid, p.181
191
[...] Há noites em que o silêncio é rompido por berros terríveis. [...] A hipótese
mais provável é que um preso esteja sendo estuprado por companheiros. Os casos de
enlouquecimento são frequentes. Mês passado houve mais um suicídio. O preso
amarrou a perna da calça na grade, enrolou em volta do pescoço, puxou o corpo para
baixo e asfixiou-se. E, como sempre, tudo permanece envolto em mistério. Ninguém
viu nada, ninguém diz nada.548
Diferente da imagem difundida acerca dos presídios como espaços nos quais, através
da aplicação rigorosa da legislação, se convence homens e mulheres de que a vida dedicada
aos delitos não compensa, frei Betto os descreve como lugares onde o crime viceja e o fato de
ele ser praticado por aqueles que deveriam combatê-lo faz com que qualquer discurso sobre o
objetivo de sua existência caia no descrédito. Portanto, contrariando a versão oficial de que
nas cadeias o Estado estava apenas punindo terroristas e delinquentes, o autor afirma que elas
eram instrumentos de poder, nos quais se ignorava por completo a lei549.
Frei Betto faz questão de salientar que os homens que, cotidianamente, submetiam os
presos às sessões de sevícias nos presídios pelos quais passou, longe de serem profissionais
altamente versados na desarticulação de guerrilhas urbanas550, eram, na verdade, sujeitos de
moral duvidosa, acostumados a praticar todo tipo de crime dentro e fora dos presídios. Como
exemplo dessa falta de caráter, ele destaca: “Ontem, Brandão brigou com o carcereiro bigode,
e este teve de ficar calado. Brandão ameaçou contar a proposta que ele lhe fizera: três pacotes
de cigarro para estuprar um de nós”551. Dessa forma, ele busca rechaçar qualquer possível
547
Ibid, p. 65.
548
Ibid, p. 128.
549
Ibid, p. 100.
550
A adaptação homônima do livro O que é isso companheiro? para o cinema em 1997, dirigida por Bruno
Barreto, é um dos mais emblemáticos exemplos dessa tentativa de consolidar a imagem dos torturadores como
profissionais que praticavam esse tipo de violência de maneira altamente técnica e especializada no cumprimento
das ordens de seus superiores hierárquicos. Segundo Fernando Seliprandy, a construção do personagem
Henrique, o agente da repressão interpretado pelo ator Marco Ricca, sintetizaria uma releitura da “teoria dos dois
demônios”, segundo a qual a tortura seria um “mal menor” se comparada aos efeitos deletérios de uma vitória da
esquerda armada representaria. De acordo com a análise do pesquisador, o torturador apresentado na película
“[...] é profissional e cumpre seu ‘trabalho’ sem qualquer prazer; muito pelo contrário, ele é tocado pela dor
infligida às ‘crianças inocentes’ e vive assolado pela insônia; as sevícias que perpetra contrariado são cautelosas
e assépticas. Nesse sutil desvio em relação aos cânones do gênero, a construção nuançada do personagem
Henrique institui a imagem matizada do mal da tortura.” SELIPRANDY, 2012, p. 64.
551
Ibid, p. 232.
192
tentativa de definir a tortura como uma técnica cirurgicamente executada como parte de uma
tática para enfrentar inimigos internos, além, é claro, de demonstrar o quanto seu uso é
desumano e inadmissível em qualquer circunstância.
Os absurdos praticados pelos carcereiros, narrados por frei Betto, iam de pequenos
abusos de poder, como o caso do diretor que, segundo o autor, “comprou leitões para o natal
de sua família; para engordá-los com restos de comida, enfiou-os numa cela vazia na ala dos
correcionais”552, até crimes graves como o tráfico de drogas. Em suas palavras:
Em outro episódio, frei Betto sugere que o interessado em oferecer seus serviços como
fornecedor de entorpecentes aos presos políticos fez um dos carcereiros perguntar aos
dominicanos: “vocês puxam?”. Não entendendo imediatamente o teor da conversa, frei Ivo
teria retrucado “puxam o quê?”. O autor destaca que a incompreensão dos religiosos dissuadiu
o agente de completar a proposta, afirmando: “Esqueçam, já vi que não puxam”554.
Outra prática narrada como extensamente difundida entre os carcereiros era a venda
para os presidiários dos produtos alimentícios que eram fornecidos gratuitamente pelo Estado,
o que frei Fernando define como “corrupção”. Assim, o dominicano registra: “Os ovos
cozidos, vindos no cadeião de hoje, não nos chegaram. Os carcereiros levaram para casa”555.
Em outra oportunidade, ele afirma: “Doces, queijos, bananas e laranjas vemos chegar nos
caminhões que trazem os latões de comida, porém nunca repassados às celas”556. Frei Betto
destaca um episódio em especial:
[...] ao pressentir nossa fome noturna, o carcereiro nos ofereceu mozarela. Pediu
uma pequena fortuna pelo queijo. Oferecemos 5% do valor. Após esgrímicas
negociações, compramos por 15%. Ao entregar a mercadoria, advertiu-nos: “joguem
fora a embalagem.” Nela constava impresso: Doação do Estado de São Paulo. O
produto, destinado aos presos, é comercializado pelos carcereiros dentro e fora do
presídio.557
552
Ibid, p. 157.
553
Ibid, p. 71.
554
Ibid, p. 49.
555
Ibid, p. 166
556
Ibid, p. 176.
557
Ibid, p. 48.
193
Sendo assim, para frei Betto, se a prática da tortura era uma demonstração de poder
daqueles que através da força submeteram as instituições do Estado ao seu arbítrio, manter
viva a memória das sevícias sofridas é uma forma de desafiar essa estrutura opressiva que as
alimenta. Pelas palavras do confrade Fernando, ele afirma:
558
Ibid, p. 18.
194
A notícia do golpe fez desabar todo o meu castelo de sonhos libertários. Anos de
trabalho e esperança – ligas camponesas, UNE, UBES, ISEB, MEB, CPC e tantas
outras siglas que sinalizavam um futuro abortado. Tudo reduzido a caso de polícia.
E o pior: sem que houvesse a menor reação popular. Onde os camponeses
mobilizados por Francisco Julião? O proletariado do partido comunista? os
militantes da ação católica e da ação popular? Os alfabetizados pelo método Paulo
Freire?559
559
Id, 2002, p. 211.
560
Ibid, p. 210-216.
561
Ibid, p. 210.
195
grupal, que parece obscurecer o nosso raciocínio. Na hora do pega-pra-capar, a gente se pela
de medo”562. Entretanto, o dominicano não atribui apenas aos erros das esquerdas a
responsabilidade pela vitória golpista. Ele também a considera fruto da imobilidade das
massas e do próprio presidente João Goulart. Dessa forma, ele questiona:
562
Ibid, p. 211.
563
Ibid, p. 212.
564
Ibid, p. 197.
196
comunista, graças à sua rigidez de visão, não soube reconhecer e valer-se de todo o seu
potencial. Nas palavras do autor:
Através desse exemplo, frei Betto busca demonstrar que o cultivo de concepções
intransigentes fez com que as esquerdas perdessem a chance de aproveitar contribuições
valiosíssimas para seus projetos em diferentes contextos. No caso de Paulo freire, ele sugere
que, se seu método tivesse recebido a atenção que merecia, talvez a mobilização das massas
não teria se diluído com o advento do golpe. Ou, ao menos, ele não voltaria a ver “em
sindicatos e movimentos populares, educadores escolarizados darem aulas ‘bancarias’ para
operários”566.
Frei Betto relaciona o caso de Paulo Freire à sua trajetória individual através do
cristianismo, principal característica que os unia. A narrativa sobre como seus companheiros
se insurgiram contra sua decisão de entrar para a ordem dos dominicanos, acusando-o de
“trair a revolução”567, demonstra que na sua experiência, assim como no exemplo do educador
pernambucano, a desconfiança que as esquerdas nutriam de que a fé era o principal sinal de
fraqueza naqueles cristãos que decidiam se engajar na luta revolucionária já era palpável
muito antes dele se envolver com Marighella.
Frei Betto narra que, mesmo durante as visitas que recebia, após estar vivendo no
convento dos dominicanos na capital mineira, o amigo Conrad Detraz o censurava dizendo
“Você está nos traindo”, segundo ele “Conrad expressava a queixa de muitos
companheiros”568. Em sua visão, essa aparente incongruência entre a militância política e a
crença religiosa era o resultado de uma concepção bastante restrita e inflexível acerca do
engajamento político, muito difundida naquele período. Apesar de se mostrar compreensivo
quanto aos motivos que faziam com que sua escolha gerasse tantas reprovações, o autor não
565
Ibid, p. 199.
566
Ibid, p. 200.
567
Ibid, p. 223.
568
Ibid, p. 230.
197
[...] Enquanto meus companheiros eram jogados nos cárceres ou pulavam muros de
embaixadas para escapar da repressão, e outros submergiam na clandestinidade, ali
estava eu, trancado num convento, alheio ao noticiário, entregue à brisa angélica de
uma rotina medieval [...].569
Aparentemente, não fica clara qual é a relação que a autobiografia de frei Betto
estabelece entre esses pequenos episódios de sua vida pessoal e a história coletiva marcada
pelo golpe e pela consolidação da ditadura. Entretanto, uma análise pormenorizada revela que
o autor apresenta o dogmatismo de parte das esquerdas como o problema que conecta esses
dois campos.
Especificamente no caso da luta armada, frei Betto apresenta a intransigência de ideias
como a causadora do desconhecimento das verdadeiras circunstâncias da morte de
Marighella. O dogmatismo, descrito como um vício que obscurece a razão e leva a erros
graves, seria o motivo da desconfiança histórica para com os religiosos engajados; por isso,
mal o revolucionário baiano havia “tombado”, imediatamente, teria se consagrado a versão,
segundo a qual, a tragédia da alameda Casa Branca resultou diretamente da traição ou da
fraqueza dos dominicanos. Segundo a perspectiva do autor, na hipótese dessa emboscada ter
sido arquitetada pela polícia com a ajuda de um agente infiltrado na ALN, as vidas de muitos
militantes poderiam ter sido poupadas se as esquerdas tivessem mantido a paciência para
desvendar o caso e identificar o delator, ao contrário de antecipar uma explicação calcada em
ideias pré-concebidas.
Assim, embora seja um admirador confesso de Marighella, frei Betto, especialmente
em Diário de Fernando, apresenta a falta de rigor na observação dos protocolos de segurança
como fator determinante para que a emboscada que lhe haviam preparado desse certo. Esse
seria o outro erro capital da luta armada que comprometeu sua capacidade de combater a
ditadura militar.
A análise do conteúdo de Diário de Fernando e de sua ordem de exposição deixa
evidente que um dos objetivos principais de frei Betto era demonstrar que o Marighella não
caiu na armadilha do delegado Fleury por conta de qualquer informação que, através do uso
da tortura, porventura, ele tenha conseguido arrancar dos frades Fernando e Ivo. Embora não
tivesse documentos que permitissem desvendar o passo a passo da verdadeira dinâmica do
569
Ibid, p. 234.
198
acontecimento, o autor defende que, ao menos, pode comprovar a falta de fundamento dessa
versão dos fatos.
O incômodo causado pelas ilações de que, por fraqueza física ou moral, os
dominicanos levaram os agentes da repressão a rastrear o líder da ALN uniu, simbolicamente,
o jovem Fernando, que escrevia seus bilhetes em 1969, em meio às acusações dos jornais e à
desconfiança de parte das esquerdas, e o experiente frei Betto que debruçava-se sobre eles em
2009, acreditando ser essa a versão que havia se sedimentado na memória coletiva.
Dessa forma, a narrativa que frei Betto construiu com as palavras do confrade
Fernando corrobora a tese, já defendida em obras anteriores, de que o sequestro do
embaixador americano Charles Burke Elbrick selou o destino da luta armada. Em Diário de
Fernando, ela tem a sua importância redobrada; pois, na visão do autor, a partir desse
acontecimento, a repressão se tornou implacável e desvelou os erros da guerrilha urbana,
estes, sim, os verdadeiros responsáveis pela queda do principal inimigo da ditadura militar570.
Frei Betto narra que a polícia começou a farejar o envolvimento dos dominicanos com
a luta armada ao acossar os responsáveis pelo sequestro do embaixador em setembro de 1969.
Assim, através de um paletó esquecido no cativeiro, ela chegou a um alfaiate que identificou o
proprietário da peça de vestuário e “logo as quedas tiveram início”. A ligação de Marighella
com os frades teria sido revelada graças a uma caderneta de endereços encontrada na casa de
Paulo de Tarso Venceslau, militante da ALN e um dos sequestradores que acabou
capturado571.
A tese central de frei Betto, segundo a qual não foi a prisão dos confrades que levou a
polícia a rastrear o revolucionário baiano, se baseia em duas certezas compartilhadas com o
autor dos bilhetes. A primeira é a de que Marighella, ao marcar um encontro com os
dominicanos, estava ciente de que o convento havia sido revistado e teve seu telefone
grampeado pelos agentes do DOPS; a segunda é a de que a polícia sabia previamente dia e
hora nos quais seria marcado o encontro do líder da ALN com os dominicanos572.
Se esta segunda ideia se fundava apenas na crença de que era absolutamente ilógico
atribuir apenas à sorte o fato de a polícia ter levado frei Fernando à livraria Duas Cidades,
onde trabalhava e se comunicava com a ALN, precisamente na tarde da terça-feira, dia 04 de
novembro, data e período nos quais o contato foi feito pela última vez, em relação à primeira,
o autor faz questão de mencionar que o confrade testemunhou a reunião na qual Marighella
570
Id, 2009, p. 33.
571
Ibid, loc. cit.
572
Ibid, p. 39.
199
foi informado de que a polícia conhecia sua ligação com os dominicanos. Nas palavras de frei
Fernando:
Embora essa seja a primeira impressão que Diário de Fernando provoca, frei Betto
não reescreve a história da tocaia que vitimou Marighella apenas para defender a honra de
seus confrades. De acordo com o que já foi mencionado, para o autor, os acontecimentos da
alameda Casa Branca ocorridos em novembro de 1969 ilustram, tragicamente, os efeitos
provocados por essa falta de rigor no cumprimento das regras de segurança. Muitas vezes
descrito como resultado da escassez de militantes, esse erro teria sido um dos mais fatais para
as organizações, pois lhes tirava o pouco que tinham, fazendo com que sua luta, ao contrário
de ser para combater o regime, fosse para sobreviver. Para demonstrar como esse tipo de
inobservância era corriqueira ele apresenta o exemplo do jornalista Carlos Guilherme de
Mendonça Penafiel.
Frei Betto conta que o editor de arte da Folha da Tarde era responsável por produzir
as fotografias dos passaportes que a ALN fornecia a seus militantes que precisavam deixar o
país, seja para fugirem da repressão, receberem treinamento militar ou levar mensagens a
lideranças no exterior. Entretanto, como o número de membros era insuficiente para a
quantidade de tarefas da organização, foi solicitado que Penafiel, improvisando uma função
distinta daquela que era originalmente sua, abrigasse em sua casa um procurado pela
polícia574. Segundo o autor, esse foi o erro que desencadeou os outros que, por sua vez,
levaram o fotógrafo e a esposa a serem presos e torturados. Em suas palavras:
573
Ibid, p. 34.
574
Ibid, p. 52.
200
[...] Após anos de militância ancorada na utopia revolucionária, iluminada pela fé,
respaldada por antecedentes históricos – como a Revolução Cubana e o testemunho,
na Colômbia, do padre guerrilheiro Camilo Torres –, nos deparamos com a violência
implacável da ditadura militar. Nossos sonhos não incluíam a possibilidade de
derrotas. A linearidade dos livros não espelhava os sinuosos e acidentados caminhos
do real. Súbito, a casa edificada sobre a areia, sem alicerce popular, ruiu sob o
impacto do aparelho repressivo.579
CONCLUSÃO
combater a ditadura como heróis por suas vidas e mártires por suas mortes deixam clara a
concepção do autor de que, apesar de dignas, as iniciativas da luta armada serviram, acima de
tudo, para ensinar que o extenso concerto de forças conservadoras que historicamente subjuga
o Estado brasileiro só poderia ser derrotado por uma grande e articulada coadunação da classe
trabalhadora.
Mesmo em Diário de Fernando, que foi lançado posteriormente à chegada do PT ao
poder, é perceptível a manutenção do uso político que frei Betto faz de suas memórias.
Entretanto, se a iniciativa do dominicano nos anos 1980 utilizar-se das reminiscências da
ditadura militar e dos erros da luta armada como instrumentos de demonstração da
imprescindibilidade da mobilização popular para que a esquerda pudesse ser exitosa
significou um investimento de capital simbólico – a autoridade do discurso testemunhal – na
viabilização de um projeto político para o futuro, ou seja, uma demonstração de confiança na
perspectiva de formação de um grande partido operário de massa. Na primeira década do
século XXI, essa mesma atitude passou a cumprir uma nova função.
A análise da obra memorialística de frei Betto no século XXI demonstra que sua
construção foi influenciada decisivamente por duas questões. A primeira diz respeito à
percepção do autor de que o PT, depois de anos de muito trabalho para chegar ao poder, se
mostrava vacilante na tarefa de pôr em prática as reformas estruturais que historicamente
compunham a agenda da Esquerda. Já a segunda se refere à emergência, no debate público, de
versões que buscavam equiparar os atos violentos da luta armada e do governo militar e
daquelas que lembravam o período de maneira saudosa.
A insatisfação com a postura assumida pelo PT após ter chegado ao poder fez com que
frei Betto utilizasse a revisão de suas lembranças da luta armada como uma oportunidade
para, através do discurso reminiscente, advertir o partido de que distanciar-se das bases
populares e de suas demandas significava incidir em um grande risco. Neste caso, o de perder
sua identidade e, por consequência, seu capital político.
Mas, acima de tudo, a análise das obras demonstra que o autor defendeu assiduamente
a existência de uma dívida histórica com aqueles que morreram nas mãos dos agentes da
repressão. Assim, executar essa agenda histórica, como a reforma agrária, seria um imperativo
da memória, do qual o PT não poderia se furtar.
Já no que concerne à segunda questão, o empenho de frei Betto para que a revisão de
suas memórias nesse novo contexto pudesse combater os discursos nostálgicos e as tentativas
de criar uma versão brasileira da “teoria dos dois demônios” fica bastante evidente ao se
observar que sua narrativa buscou desfocar as particularidades da ditadura militar para que,
207
dessa forma, pudesse dar maior ênfase a aspectos generalizantes. A análise das obras
demonstra que o autor confiava na perspectiva de que essa estratégia seria suficientemente
capaz de desnudar uma relação de continuidade e paridade entre os regimes ditatoriais do
século XX. Assim, ele pretendia comprovar que o Estado de exceção imposto ao Brasil
naquele período constituía a encarnação de uma verdadeira tradição autoritária. Outra tática
fundamental foi construir uma genealogia dos valores que teriam movido parte da Esquerda
para a luta armada.
A versão segundo a qual, diante da gravidade do contexto, o controverso caminho da
violência revolucionária se apresentou como legítimo devido aos princípios nos quais se
embasava – fixados desde a infância, por meio de espaços legítimos de formação como a
família, a Igreja e a escola – foi apresentada por frei Betto em contraste com sua abordagem
da tortura, por considerar essa prática o exemplo máximo da torpeza dos reais objetivos da
ditadura militar. Assim, ao insistir que, ao contrário de serem instrumentalizadas por peritos
das forças de segurança para desbaratar organizações terroristas, as sevícias serviam apenas
como exibição hedonista de poder. O dominicano buscou deixar clara, segundo sua visão, a
superioridade moral da luta armada em relação às ações repressivas dos agentes do governo,
além de desmentir a existência de qualquer motivação nobre que pudesse justificar a menção
honrosa e saudosa dessas atividades.
Dessa forma, se conclui que a obra memorialística de frei Betto, acima de tudo, é uma
fonte valorosa para se perscrutar as disputas e funcionalidades que permearam a história da
memória da ditadura militar brasileira durante as décadas de sua produção e revisão. O
resultado de sua análise revela, mormente, que essas imagens do passado marcam somente
uma parte de um processo longo, complexo e contínuo e que, de maneira nenhuma, elas
podem ser reduzidas à condição de produtos acabados e perenes que teriam nascido de uma
batalha entre dois polos políticos.
208
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