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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI


CAMPUS SENADOR HELVÍDIO NUNES DE BARROS – CSHNB
LICENCIATURA PLENA EM HISTÓRIA

IAGO TALLYS SILVA LUZ

ESCREVIVENDO O CORPO NOS ARRECIFES DO DESEJO:


questões de gênero nos filmes em Super-8 de Jomard Muniz de Britto
(Pernambuco, 1974-1982)

PICOS-PI
2021
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IAGO TALLYS SILVA LUZ

ESCREVIVENDO O CORPO NOS ARRECIFES DO DESEJO:


questões de gênero nos filmes em Super-8 de Jomard Muniz de Britto
(Pernambuco, 1974-1982)

Monografia apresentada ao Curso de Licenciatura Plena em


História, da Universidade Federal do Piauí, Campus
Senador Helvídio Nunes de Barros, como requisito final
para obtenção do grau de Licenciado em História.

Orientador: Prof. Dr. Fábio Leonardo Castelo Branco Brito

PICOS-PI
2021
2

IAGO TALLYS SILVA LUZ

ESCREVIVENDO O CORPO NOS ARRECIFES DO DESEJO:


questões de gênero nos filmes em Super-8 de Jomard Muniz de Britto
(Pernambuco, 1974-1982)

Monografia apresentada ao Curso de Licenciatura


Plena em História, da Universidade Federal do Piauí,
Campus Senador Helvídio Nunes de Barros, como
requisito final para obtenção do grau de Licenciado
em História.

Orientador: Prof. Dr. Fábio Leonardo Castelo Branco


Brito

Aprovado em: ____/____/2021

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________
Prof. Dr. Fábio Leonardo Castelo Branco Brito – Orientador
Universidade Federal do Piauí – UFPI

__________________________________________________________
Prof. Me. Francisco Rafael Lima Farias
Doutorando – PPGHB/Universidade Federal do Piauí – UFPI
Examinador Interno

__________________________________________________________
Prof. Me. Heitor Matos da Silva
Doutorando – PPGHB/Universidade Federal do Piauí – UFPI
Examinador Externo

PICOS-PI
2021
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AGRADECIMENTOS

Ao longo da minha formação eu me vi dividido entre diversas leituras, li teóricos como


Deleuze, Foucault, li literatura, Machado e seus contos, romances e seus finais de “tirar o
fôlego”, como parte do curso e da vida, sempre li também livros antigos, lendas e mitos, Aquiles
com sua armadura de ouro, Hércules e seus dons, mas também como parte da juventude, via o
Homem-Aranha com suas teias, o Batman com seus punhos e dores, claramente não me vejo
encaixar em nenhum desses nessa lista, o sonho de ser um super-herói se perde pelos anos, mas
a vida, a vida pergunta: “aonde você quer ir? Quanto pretende arriscar? Não procuro por alguém
com dons sobre-humanos, um super-herói” e são à todas as pessoas que me lembraram que que
não precisa ser mais do que eu mesmo que dedico este trabalho, pessoas que não se vestem ou
se dizem super, mas que me resgatam e me deram força a cada dia dessa jornada, deixo nessas
breves linhas, aos que serão aqui gravados e aos que ficaram nas minhas memórias, os meus
mais sinceros agradecimentos, vocês são os “super-heróis” da vida real.
Dentre estes, destaco em especial primeiramente a minha família, na qual pessoas como
minha mãe Carcilânia Silva Araújo, minha vó Helena Maria da Silva Araújo, minha tia Cesea
Silva Araújo e meu primo Samairkon Silva de Oliveira Alves me deram o suporte não só
econômico, mas afetivo, são em si a base que fez possível a conclusão deste trabalho, não sei
como colocar em palavras a dimensão da minha dívida com vocês. Em seguida, não poderia
esquecer dos meus professores e amigos que tiveram muita, muita paciência mesmo, para ouvir
minhas queixas, ansiedades, mas também para indicar caminhos e dar uma palavra de consolo
quando as quedas vieram, pessoas como meu professor e orientador Fábio Leonardo Castelo
Branco Brito, o Everton de Sousa minha eterna duplinha, o Elias Antônio da Rocha que entre
brigas e zoações foi muito importante ao longo deste curso e por fim, as professoras Dr(a)s
Érica Lôpo de Araújo e Olívia Candeia Lima Rocha, sendo a primeira de suma importância no
meu amadurecimento ao longo do curso e a segunda contribuindo diretamente na construção
desta monografia.
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RESUMO

O trabalho tem por objetivo estudar historicamente as questões relativas a corpo, gênero e
sexualidade na produção cultural do professor, filósofo, poeta e filmaker pernambucano Jomard
Muniz de Britto. Observando sua vivência intelectual e cultural no espaço pernambucano,
especialmente entre meados dos anos 1970 e 1980, o trabalho propõe, inicialmente, atravessar
sua experiência cultural a fim de analisar sua inserção no teatro recifense, nos manifestos
tropicalistas e, posteriormente, na produção de filmes experimentais, em formato de super-8.
Em seguida, dedica-se aos filmes produzidos pelo personagem central da pesquisa entre o final
da década de 1970 e o início da seguinte, dando ênfase àqueles onde as questões de gênero e os
usos do corpo apareciam como dimensão central, possibilitando um debate sobre as
demarcações e borrões nas fronteiras de gênero. Empiricamente, o trabalho se vale de
memórias, entrevistas, ensaios culturais, produções literárias e filmes produzidos por Jomard
Muniz de Britto, biografia construída a respeito do mesmo e, finalmente, material
hemerográfico do período em estudo. Em termos historiográfico, embasa-se, especialmente,
nos trabalhos de Edwar de Alencar Castelo Branco, Fábio Leonardo Castelo Branco Brito,
Francisco Aristides Oliveira dos Santos Filho e Moisés Monteiro de Melo Neto. Em termos
teóricos, o trabalho se ampara nas discussões do campo da história cultural e do pós-
estruturalismo, enfatizando conceitos ligados a literatura, cinema, corpo, gênero e sexualidades,
através de autores como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Roger Chartier e
Judith Butler.

PALAVRAS-CHAVE: História. Cultura. Super-8. Gênero.


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ABSTRACT

The objective of this work is to historically study the issues related to the body, gender and
sexuality in the cultural production of the Pernambuco teacher, philosopher, poet and filmaker
Jomard Muniz de Britto. Observing his intellectual and cultural experience in Pernambuco,
especially between the mid-1970s and 1980s, the work initially proposes to go through his
cultural experience in order to analyze his insertion in Recife theater, in tropicalist manifests
and, later, in film production experimental, in super-8 format. Then, it is dedicated to the films
produced by the main character of the research between the end of the 1970s and the beginning
of the following decade, emphasizing those where gender issues and the uses of the body
appeared as a central dimension, enabling a debate on the demarcations and blurring of gender
boundaries. Empirically, the work uses memories, interviews, cultural essays, literary
productions and films produced by Jomard Muniz de Britto, a biography built about him and,
finally, hemerographic material from the period under study. In historiographic terms, it is
based, especially, on the works of Edwar de Alencar Castelo Branco, Fábio Leonardo Castelo
Branco Brito, Francisco Aristides Oliveira dos Santos Filho and Moisés Monteiro de Melo
Neto. In theoretical terms, the work is supported by discussions in the field of cultural history
and post-structuralism, emphasizing concepts related to literature, cinema, body, gender and
sexualities, through authors such as Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Roger
Chartier and Judith Butler.

KEYWORDS: History. Culture. Super-8. Gender.


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LISTA DE FIGURAS

Figura 01: Provocação escrita em quadro negro.......................................................................53

Figuras 02, 03, 04 e 05: Close-ups de partes do corpo humano...............................................55

Figuras 06, 07, 08, 09 e 10: As 5 sequências principais observadas na primeira parte do filme
Vivencial I.................................................................................................................................60

Figura 11: Sequência de declamação de Poema em linha reta de Fernando Pessoa................63

Figuras 12, 13, 14: Sequência de performance do manifesto de Guilherme Coelho...............64

Figuras 15, 16, 17, 18 e 19: Sequência final do filme Vivencial I.............................................68

Figuras 20, 21, 22, 23 e 24: Sequência de corpos nus do filme Toques...................................72

Figuras 25 e 26: Em sequência a capa censurada e a capa oficialmente lançada do álbum Jóia
de Caetano Veloso em 1975......................................................................................................75

Figura 27: Corpo em meio a vegetação, filme Folionas ou paixão de carnaval, ou?...............78

Figura 28: Transformação do corpo que saí da vegetação.......................................................79

Figuras 29, 30, 31, 32, 33 e 34: Os corpos sendo per-formados em meio ao carnaval de Olinda-
PE..............................................................................................................................................82
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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO – Sob(re) o verso do estandarte: os (des)caminhos da


fabric(ação)............................................................................................................................. 09

2 Replicantes mitologias em Oração pagã: Jomard Muniz de Britto e o cenário cultural do


Recife dos anos 1970 e 1980 .................................................................................................... 29

2.1 A formação do professor Jomard Muniz de Britto......................................32


2.2 De professor a tropicalista: Jomard Muniz de Britto agita o feudalismo
cultural...........................................................................................................................41
2.3 Escreviver com a câmera: O Palhaço Degolado e a resposta "definitiva ao
debate cultural"..............................................................................................................46
3 Artevida Atrevida: o “outro” nas produções em super-8 de Jomard Muniz de Britto, dos
anos 70 ...................................................................................................................................... 50

3.1 (Contra)dições do corpo humano: uma experiência vivencial didática.........51


3.2 Entre Toques e Folionas: formas de visualidades do corpo............................70
4 Revolver Tudo: Da voz na pró-cura dos corpos................................................................84
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 86
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1. INTRODUÇÃO – Sob(re) o verso do estandarte: os (des)caminhos da fabric(ação)

[...], nem vem que não tem. eis a cartilha do recomeço: liberações.
com a letra a: atuar ou atirar?
abafar ou agitar?
abolir ou abalar?
alisar ou arriscar?
anoitecer ou acontecer?
abater ou arrebentar?
com a letra b: bajular ou bagunçar?
bancar ou brincar?
bobear ou brilhar?
beber ou botar (pra quebrar)?
brechar ou beijar?
brindar ou blasfemar?
com a letra c: calar ou compartilhar?
comover ou constranger?
conversar ou conspirar?
curtir ou contrastar?
conceder ou contradizer?
chutar ou chupar?1

A fonte retratada acima trata-se de um trecho entrecortado do poema intitulado Do abc


de Castro Alves ao abecedário alternativo, parte do livro Terceira Aquarela do Brasil, de
Jomard Muniz de Britto. Lançado em 1982, o livro faz um compilado de poemas, ideias,
imagens, que reverberam entre uma poesia que parece promover uma bricolagem de palavras.
Aparenta ser uma “poesia de embate”, cujos questionamentos propõem brincadeiras com as
fronteiras dos possíveis e do bem quisto para sua época, expressando uma dimensão de sua
potência/vivência.
De maneira mais direta, nosso poema se entrelaça com os desígnios apontados acima,
sobre a escrita ou sobre a própria construção da obra a qual o mesmo se vincula, como também,
ao escopo, ao cerne da nossa produção, ao passo que elabora um caminho, uma “cartilha para
o recomeço”. Um recomeço pautado em “liberações”, liberação e vivência, liberdade e
experiência, dos corpos, sexualidades, identidades, da imaginação pro-vocativa. Ou seja,
procuramos nesta escrita apreender, entre o “abater ou arrebentar?”, “o beber ou botar (pra
quebrar)?” e o “chutar ou chupar?”, como compreendido em nossa fonte acima, os des-
caminhos da fabric(ação), de uma “guerrilha semântica”,2 não como “militante, partidário,” mas

1
BRITTO, Jomard Muniz de. Terceira aquarela do Brasil: textos de humor e horror com acessos líricos sob o
trópico de pernambucâncer. Recife: Ed. do Autor, 1982, p. 16, grifo nosso.
2
CASTRO, Ernesto Manuel de Melo. A revolução da linguagem e a linguagem da revolução. Revista Vozes, Rio
de Janeiro, ano 68, n. 06, ago. 1974.
2

especialmente, como “corpo libertário, corpo transbunde”, corpo na pró-cura de revolver, re-
compreender “todos os seus possíveis”.3
Jomard Muniz de Britto, nascido na rua Imperial, bairro de São José, na cidade de
Recife-PE, teve sua formação acadêmica marcada à princípio pelos estudos no Grupo Escolar
João Barbalho, no Ginásio Pernambucano e na Faculdade de Filosofia da Universidade do
Recife, atual Universidade Federal do Recife-UFPE. Apesar de nascido em Recife, nosso
personagem é filho de um Paraibano, José Muniz de Britto e de mãe pernambucana, Maria
Celeste Amorim Muniz de Britto, sendo que o próprio ao longo de sua trajetória permanece em
trânsito durante o nosso recorte temporal, especialmente entre as cidades de João Pessoa-PB e
a sua cidade natal, performando o que o mesmo identifica como uma “identidade geográfica
nômade”, por “essência e experiência”.4 A questão de como definir, ou como é visto ou será
visto, parece ser uma preocupação constante em suas manifestações culturais e se isto lhe é tão
caro, por que não nos darmos um pouco mais de espaço para que o próprio apresente um pouco
mais sobre sua trajetória cultural? Vejamos um excerto que nos concede mais “pistas” sobre
seu discurso autobiográfico:

Todo o meu esforço sempre foi e continua sendo o de estar sintonizado com as
linguagens contemporâneas. Luto pela contemporaneidade desde os tempos de bossa
nova, atravessando as múltiplas tendências do cinema novo, da pedagogia
paulofreireana, da arte neo-concreto, do poema-processo, dos tropicalismos, da
guerrilha artística, da “vanguarda permanente” (segundo Décio Pignatari), das
experiências com super 8 e vídeoarte aos experimentos conceituais, minimalistas,
performáticos, etc. Tanta coisa, tantos desejos. Sempre em busca da mais crítica e
poética MODERNIDADE. Com e sem vaidades. Com e sem apelo às modas.
Astuciosamente. Até quando? – perguntaria “O Palhaço Degolado”.5

O fragmento acima é retirado de uma entrevista concedida ao jornal Correio das Artes,
em agosto de 1997, a qual chega até nós através de um livro do próprio Jomard, que transcreve
na íntegra tal entrevista, de cunho autobiográfico e “enciclopedístico” – haja visto que sua
proposta, tanto no material em destaque quanto no livro como um todo, tem como objetivo
elaborar uma grande síntese das principais influências, obras e “momentos” sob o olhar do
próprio Jomard M. de Britto sobre sua trajetória cultural – o intitulado Atentados Poéticos,6
acaba por transparecer de forma mais ampla o desejo do nosso sujeito de construir uma imagem,

3
CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e uma contra-história da
Tropicália. 2004. 289 p. Tese (Doutorado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal de Pernambuco, Recife.
4
BRITTO, Jomard Muniz de. Atentados poéticos. Recife: Bagaço, 2002a, p. 07.
5
Id, Entrevista ao Correio das Artes. In: Ibid, p. 309.
6
Ibid.
2

um “discurso sobre si”,7 imagem esta que podemos ter uma certo vislumbre através do excerto
acima; nos voltemos à este de vez então.
O mesmo se apresenta como um sujeito onde, de fato, a ideia de “pan”, se faz efetiva,
no sentido de atravessar diversos campos de atuação, nos defrontamos com uma percepção
sobre sua personalidade que em vários sentidos nos remete a compreensão de tal ser como uma
figura multifacetada, que flana sobre diversas áreas, diversas esferas da cultura e da
contracultura social. Abrangendo, ou, atravessando assim inúmeros contextos como desde os
tempos de parceria com Paulo Freire, perpassando cenários como a emergência, consolidação
e vitrinização do movimento do Cinema Novo, encabeçado por Glauber Rocha, como “a forma
profícua de se fazer filmes no Brasil” e indo até mesmo as lutas enquanto “tropicalista
pernambucano” e filmaker superoitista, questionando o que seriam os “cânones da cultura
brasileira” e os modelos de comportamento social.
Um ponto interessante nesse discurso autobiográfico sobre Jomard M. de Britto e é
justamente no que “ele não fala”, ou, no que é deixado, um tanto que a margem nos seus
discursos e representações de si, ou seja, para além da autoafirmação de uma imagem, nosso
personagem relega, escolhe também, por seguinte, o que lhe é “mal-quisto”, por assim dizer.
Tal ponto se relaciona a nossa análise, ao passo que se pegarmos textos biográficos como a
produção de Fabiana Moraes e Aristides Oliveira,8 notamos uma tendência dos autores, em dar
visibilidade/visibilização à condição de “oprimido/revolucionário/ativista” contra à Ditadura
Militar que permeia sua trajetória – com os casos de perseguição, prisão e aposentadorias
compulsórias na Universidade Federal de Pernambuco em 1964 e da Universidade Federal da
Paraíba em 1968 –,9 ou seja, procuram capturar ou “prender”, nosso sujeito na representação
do que Edwar de Alencar Castelo Branco,10 acabou por nomear enquanto um “corpo-militante-
partidário”.
Representação esta, que parece fugidia, margeada, travestida ao leitor apenas em dados
poemas, principalmente, aqueles legados à relação com Gilberto Freyre – visto como grande
algoz ante os acontecimentos que reverberam mediante o contexto ditatorial. A entrevista
supracitada é um bom exemplo de sua auto imagem, uma imagem que se encaixaria muito mais
em sua própria visão autobiográfica e em nossa discussão, a roubar outras ideias de Edwar

7
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In: ______.
(Org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 07-23.
8
MORAES, Fabiana; OLIVEIRA, Aristides. Jomard Muniz de Britto: um professor em transe. Recife: Cepe, 2017
9
Ibid., p. 14.
10
CASTELO BRANCO, 2004, p. 78.
2

Castelo Branco,11 na figura do “corpo-transbunde-libertário”. Corpo este, que como


percebemos na fonte que abre nossa produção, possui sua própria “cartilha” para um
“recomeço”, um recomeço pautado essencialmente nas “liberações”, seja, em “a, b ou c”, como
elenca nossa fonte inicial.
Desse modo, procuramos não seguir a lógica de “heroicização”, pelo caminho do
“corpo-militante-partidário”, mas sim, observando através de entrevistas, poemas e de suas
produções experimentais em Super-8, uma espécie, de “arte-vida atrevida”,12 ou, dito com
nossas palavras, observamos um processo de “r-existência”, ou seja, tanto é potência, embate,
haja visto que “incomoda”, que foge ao “modelo”, como também forma de “existência”, de dar
vazão ao seu corpo/mente performático(a) sob os mais diversos meios, formas e “dialetos”.
Nesse sentido, reverberam pelos des-caminhos dessa produção, indagações tais como: De que
forma se deu a atuação de Jomard Muniz de Britto no espaço cultural que permeia a cidade de
Recife-PE? De que maneira Jomard M. de Britto relacionou a produção artística como forma
de pensar questões a respeito do corpo, gênero e sexualidades? Como sua poesia e produção de
filmes experimentais em Super-8 se relacionavam com suas próprias vivências e com questões
relativas à identidade de gênero? Sobre que arquétipos, podemos enxergar tais produções
enquanto forma resistência e liberdade à um modelo de sexualidade que emerge com a própria
ideia de “espaço nordestino”?
Partindo de tal princípio, cabe observar que a presente proposta de estudo, começa a ser
gestada no ano de 2017, na qual ainda calouro do curso de Licenciatura em História de uma
cidade do interior do Piauí, no auge dos 17 anos de idade do autor que vos fala, fui apresentado
pela primeira vez a figura de Jomard Muniz de Britto e me deparei com um universo de
possibilidades. O contato se deu a partir do professor Dr. Fábio Leonardo Castelo Branco Brito,
na época recém titulado doutor, com uma tese sobre tal sujeito e que se transformaria no ano
seguinte, no livro: Visionários de um Brasil Profundo.13 O mesmo me faz um convite, de
participar ainda de forma informal de um projeto de pesquisa, que a princípio se encaminhava
em um sentido muito diverso do atual; assim sentamos em uma sala vazia, enchemos um quadro
de possibilidades e fomos afunilando as mesmas, nossas curiosidades de estudo e conversando
sobre produções já realizadas sobre dados campos de estudos que se “abriam” em meio ao
debate – aqui confesso que muito mais escutei e coloquei minhas vontades na mesa, como todo

11
CASTELO BRANCO, 2004, p. 78.
12
BRITTO, 1982, p. 06.
13
BRITO, Fábio Leonardo Castelo Branco. Visionários de um Brasil profundo: Invenções da Cultura Brasileira
em Jomard Muniz de Britto e seus contemporâneos. Teresina: Edufpi, 2018.
2

jovem cheio de suas (in)certezas, batia o pé e queria fazer valer as mesmas, claro. Assim, um
projeto sobre filmes marginais em Teresina-PI, se transforma em uma pesquisa que se volta ao
espaço cultural de Recife-PE, principal local de atuação do nosso sujeito.
Tal mudança gestada na reunião, se finda meses – com um exercício de paciência
impressionante cabe destacar, do nosso espelho de Caronte,14 vulgo orientador de pesquisa –
depois conforme a pesquisa bibliográfica se aprofunda, atravessando estudos sobre o mesmo,
como o do próprio Fábio Brito,15 mas também de nomes como: Aristides Oliveira,16 a tese de
doutorado produzida por Moisés Monteiro de Melo Neto,17 na área de teoria da literatura e a
dissertação de mestrado de Ricardo César Campos Maia Júnior, 18 elaborada na área de
comunicação. Sob a qual constatamos que mesmo trabalhos de história que se voltam a
produção cultural do nosso personagem, como é o caso dos primeiros citados, concedem a
penumbra, tratam com “sub-objetos”, as piruetas, os rodopios, as vestimentas, os movimentos
de câmera sobre estes. Pensam um Jomard M. de Britto desvinculado da sua estética, da sua
performance corporal, assim como comentado brevemente anteriormente, na qual figura-se
uma espécie de “sujeito sem corpo”, reverbera-se a lacuna de análise da potência subversiva do
seu corpo, ante não só ao cenário cultural pernambucano em si, mas do próprio Frankestein,19
a qual comumente chamamos de Nordeste.
Deste modo, a originalidade acadêmica deste objeto de pesquisa, move-se em torno do
reconhecimento desta ausência, desta lacuna, ante a inserção de suas peripécias, do seu corpo
performático, em um movimento de contracultura que se move no Brasil da época, ante as
discussões de gênero. Destacando assim seu papel de agitador cultural nos espaços que o

14
Conforme os fragmentos que o presente autor conhece da mitologia grega, adquirida, de variadas formas, seja
por desenhos animados, como o Cavaleiros do Zodíado, como por textos propriamente acadêmicos, Caronte,
refere-se a figura de um dado ser que transportaria, atravessaria, almas no rio em direção ao Inferno”. Aqui cabe
ressaltar o tom de humor, característico da relação pessoal estabelecida entre a pessoa do autor que vos escreve
e seu amigo/orientador, que a muito devo e que a muito “dou trabalho”, nestas notas, deixo novamente meus
profundos agradecimentos.
15
BRITO, 2018.
16
OLIVEIRA, Aristides. Jomard Muniz de Britto e o Palhaço Degolado. Apresentação Amilcar Almeida Bezerra.
Teresina: Edufpi, 2016.
17
MELO NETO, Moisés Monteiro de. Os abismos da Poeticidade em Jomard Muniz de Britto do Escrevivento
aos Atentados Poéticos. 2011. 330 p. – Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Pernambuco, Programa de
Pós-Graduação em Letras, Recife (PE), 2011.
18
MAIA Júnior, Ricardo César Campos. Uma poética audiovisual da transgressão em Jomard Muniz de Britto.
2009. 147 p. – Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-graduação em
Comunicação, Recife (PE), 2009.
19
A expressão se apropria do personagem principal do romance de ares “gótico”, por assim dizer, Frankestein, da
britânica Mary Shelley, lançado em 1818, na qual, em suma, seu personagem seria criado pela junção de várias
partes, na qual em um processo científico/mítico, dá-se vida à Frankestein, logo, fazemos aqui a analogia a tal
processo, em relação a própria conformação do que seria o “Nordeste brasileiro”.
2

mesmo nomeia, como: o “Arrecife do desejo”20 e “paraibarroca”21 através essencialmente da


análise de parte da sua produção poética e de filmes em Super-8, entrecruzados com
trechos/matérias de jornais da época, para discutir de forma mais ampla as questões que
envolvem corpo, gênero e sexualidades, no espaço cultural de transe/transa do Recife em
meados da década de 1970 e 1980. Tal dimensão se mostra bastante relevante, tanto na obra
cultural quanto mesmo na trajetória de vida do personagem quando tomamos o fragmento
autobiográfico de João Silvério Trevisan, um dos editores do jornal homossexual Lampião da
Esquina, em que cita uma das passagens do extenso anedotário de Jomard:

Foi em 1982, um dos anos mais difíceis da minha vida. [...] Para variar estava
completamente sem grana. Jomard e Antônio Cadengue generosamente me
arranjaram um emprego, incluindo-me num projeto deles. Assim, fomos os
três a uma cidadezinha no interior dar um curso de treinamento para rapazes
de uma faculdade de Agronomia, por vários dias de trabalho nem sempre
agradável. No encerramento do curso, nós nos dispusemos a fazer uma sessão
tira-dúvidas. Tudo corria bem até que um gaiato levantou-se e, dirigindo-se a
nós três indiscriminadamente, fez uma pergunta que tinha o som de uma
acusação: “Vocês são homossexuais?” Olhei para a cara de Cadengue, que
olhou para a cara de Jomard, ambos sem saber responder à evidente
provocação. O máximo de jogo de cintura a que eu poderia chegar remeteria
à pergunta retrucada por Truman Capote, numa situação semelhante: “Isto é
uma cantada?” Mas não ousei, já que conhecia mal aquele terreno de rapazes
machões acostumados a meter a mão em xoxota de vaca. De modo que
olhávamos ambos aflitos para Jomard que se manteve por alguns segundos
com aquele seu enigmático sorriso no rosto. Instantes depois, presenciei uma
das cenas pedagogicamente mais provocadoras de toda minha vida. Jomard
Muniz de Britto levantou-se, dirigiu-se para o público e pôs-se a percorrer
todo o auditório, devolvendo a pergunta. Corria para um lado, parava diante
de um estudante, indiscriminadamente e perguntava com o dedo apontado
para seu rosto: “Você é homossexual?” A seguir, corria até outro, repetia o
gesto e a pergunta: “Você é homossexual?” Ele simplesmente colocou um
espelho diante do rosto de cada estudante. [...] No final, não foi preciso debate
algum. O que vi, com olhos estatelados de prazer, foi o público começar
lentamente a rir de si mesmo, até explodir em palmas, com o sorriso de quem
diz: “E quem não é?” [...]22

A provocação de Jomard Muniz de Britto a respeito da homossexualidade – questão que


o próprio personagem deixou, por diversas vezes, bastante suspensa e indefinida em suas obras
e entrevistas, lança uma problematização fundamental para esse trabalho: De que maneira, em
uma época marcada pelas relações entre autoritarismos e práticas de liberdade, o corpo e as
relações de gênero se mostraram questões centrais na produção cultural de Jomard Muniz de
Britto realizadas na cidade do Recife? Tal questionamento traz à tona, portanto, a relevância

20
BRITTO, Jomard Muniz de. Arrecife de Desejo. Rio de Janeiro: Leviatã, 1994.
21
Ibid, p. 73.
22
TREVISAN, João Silvério. Jomard Barreto, filho de Tobias Muniz de Britto. São Paulo: Impresso, 1997.
2

social do trabalho, a pretexto da qual cabe pegarmos emprestado um fragmento da obra, Kafka:
para uma literatura menor, de Deleuze e Guatarri23 – ou, como Suely Rolnik chama em tom
de humor, pelo uso constante em sua obra, o “desodorante D&G” –24 para assim,
exemplificarmos de forma mais clara sua importância:

A fragmentação do espaço, típico na obra de Kafka, esclarece o movimento interno


do romance e a assimilação que Orson Welles fez desse movimento. A modernidade
que o cineasta vem legitimar com O Processo (filme) repete a acepção moderna da
obra de arte em que esta surge destituída de centro ou de convergência, seja, a
estrutura que O Processo (romance) instala. A característica imediata do processo
revela uma correnteza que conflui na personagem de José K.. O Processo surge de
todos os lados. Todas as personagens, - os polícias, o estudante, os colegas de K., a
hospedeira, o advogado, as meninas, o padre, o pintor, – todas parecem projectar-
se sobre a figura de José K., sobre o ponto de confluência em que ele se tornou.
[...]. A pressão esmagadora que envolve vai gerar uma linha de fuga, << a ideia
constante de Kafka: mesmo com um mecânico solitário, a máquina literária
expressiva é capaz de antecipar e precipitar os conteúdos que, apesar de tudo,
dizem respeito a uma colectividade inteira>>.25

O trecho acima, retirado do prefácio da obra, escrito por Rafael Godinho, se insere na
procura do autor de explicar a forma como Deleuze e Guatarri, enxergam ou empregam sua
análise sobre a produção de Kafka. Quanto a nosso estudo, cabe observar que em tal recorte,
Godinho, da ênfase a ideia que Kafka, tal qual o cineasta Orson Welles, constrói suas narrativas
de modo que o “espaço” seja fragmentado e se desenvolva, se torne visível, seja construído,
surgindo “por todos os lados”, tendo o personagem, no caso do trecho José K., como ponto de
partida/convergência/expressão, o que seria espelho da própria forma como Deleuze e Guatarri
enxergam à produção de Kafka, na qual, como no fim do nosso fragmento, “mesmo com um
mecânico solitário, a máquina literária expressiva é capaz de antecipar e precipitar os conteúdos
que, apesar de tudo, dizem respeito a uma colectividade inteira”.26
Recordamos tal análise, por duas situações, primeiro, porque demonstra ou se
assemelha, ao modo como observamos e construímos nossa produção, ou seja, tomando parte
da trajetória cultural de Jomard Muniz de Britto e suas produções, como ponto de partida e
confluência, para compreendermos tanto as forças que projetam sobre os corpos um dado
modelo, como e principalmente, o processo de r-existência que encontra múltiplas formas de
fazer presente na década de 1970 e 1980 de maneira especial, o que explica o ponto da
relevância social do nosso estudo. Segundo, pois nos abre margem a falar sobre a nossa própria

23
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Tradução: Luiz B. L. Orlandi. Belo
Horizonte: Autêntica, 2017.
24
ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. 2. Ed. São Paulo: n-1 edições,
2018, p. 14.
25
DELEUZE; GUATTARI, 2017, p. 14, grifo nosso.
26
Ibid.
2

metodologia pensada/empregada em nossa pesquisa, que como vimos, parte do


reconhecimento, ou da visão, de um personagem enquanto “sujeito plural”, de múltiplas
perambulações, trabalhos e visões de outros sobre o próprio, como também, diversos discursos
sobre si mesmo, como já mencionado. Desse modo, nossa metodologia, não poderia ser “se não
espelho de tal pluralidade”, ou seja, procura-se conforme a fonte empregada, em um exercício
de paciência tal qual um “tecelão em seu ofício”, para roubar a metáfora de Durval Albuquerque
Júnior,27 organizar ou adaptar-se à discussão que se procura estabelecer nos diversos momentos
da produção.
Dito de outro modo, a presente produção se estrutura em torno de dois pontos centrais,
no tocante à nossa metodologia, o primeiro, refere-se à própria inserção do nosso personagem
enquanto sujeito histórico e atuante em seu espaço cultural, centrado essencialmente na cidade
de Recife-PE. Neste primeiro momento, nossa análise é pautada na ideia de “uma escrita de si”,
proposta na obra de Ângela de Castro Gomes,28 enquanto categoria de análise, que será movida
sobre o reconhecimento de uma bibliografia já existente, tanto do próprio personagem, com
livros como: Do modernismo à Bossa Nova,29 Terceira Aquarela do Brasil,30 Bordel Brasilírico
Bordel: antropologia ficcional de nós mesmos,31 Arrecife do Desejo,32 Outros Orf’eus33 e
Atentados Poéticos.34 Tal material também será utilizado enquanto artefatos literários,
colocando o texto, também, na fronteira relacional entre história e literatura, percebendo,
portanto, a literatura tanto enquanto instrumento inspirador do personagem para sua própria
escrita de si quanto como uma fonte35 para a percepção das questões relacionadas a corpo e
gênero, pontos centrais do trabalho.
Como de outros autores, como o já mencionado trabalho de Fabiana Moraes e Aristides
Oliveira,36 mas também, com a obra de organização de Sérgio Cohn,37 na qual o mesmo elabora
um compilado de entrevistas concedidas pelo próprio Jomard M. de Britto à jornais desde à

27
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da história. São
Paulo: Intermeios, 2019.
28
GOMES, 2004. p. 07-23.
29
BRITTO, Jomard Muniz de. Do Modernismo à Bossa Nova. Apresentação por Glauber Rocha. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1966.
30
Id, 1982.
31
BRITTO, Jomard Muniz de. “Bordel Brasilírico Bordel: antropologia ficcional de nós mesmos”. Recife:
Comunicarte, 1992.
32
Id, 1994.
33
BRITTO, Jomard Muniz de. Outros Orf’eus. Rio de Janeiro: Blocos, 1995.
34
Id, 2002a.
35
As diferentes dimensões dos usos da literatura em sua aproximação com a história são objetos de análise de
Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz. Ver: QUEIROZ, Teresinha de Jesus Mesquita. História e literatura. In:
______. Do singular ao plural. Recife: Bagaço, 2006. p. 81-93.
36
MORAES; OLIVEIRA, 2017.
37
COHN, Sergio. Jomard Muniz de Brito. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013.
2

década de 1960 até o início do século seguinte, contemplando diversas fazes da vida do mesmo.
Juntando-se à tal construção de uma possibilidade de identidade e operação cultural legada aqui
à Jomard Muniz de Britto, dialogamos ainda com recortes especialmente de jornais tais como:
o Diário de Pernambuco e Do Commercio, não só referentes ao nosso lapso temporal basilar,
1970 e 1980, mas fazendo um exercício de “vai e vem” historiográfico, no sentido de observar
os discursos que margeiam sua relação com a cidade, fazendo assim contraponto às fontes
principais centradas no recorte principal.
Como segundo ponto, o trabalho se vale também da análise de filmes experimentais, em
formato super-8, compreendidos especialmente na década de 1970 – recorte que compreende a
fase mais produtiva de trajetória enquanto cineasta – na qual o mesmo produz filmes, tais como:
Uma experiência didática: o corpo humano,38 Vivencial I,39 em um primeiro momento,
Toques40 e Folionas ou paixão de carnaval41 em um segundo na qual o corpo e a performance
de gênero aparecem de maneira recorrente. É salutar ainda ressaltar que tais filmes possuem
curta metragem, entre 04 minutos à 18 minutos, sendo possível analisá-los, bem como produzir
analogias entre eles e outras fontes sem maiores prejuízos no tocante à fluidez do cerne temático
da discussão. Cabe destacar que o super-8 é percebido, para efeito desse trabalho, suportado no
conceito de experimentalismo fílmico, noção proposta por Rubens Machado Júnior, na medida
em que esse compreende tal tecnologia como externa à lógica de produção e circulação que,
notadamente, caracteriza o cinema, e sim como algo que “aproximava-se [...] do happening
teatral, da pichação e da momentaneidade da poesia marginal, que se propunham transitórias,
imediatas, mais ativas que representativas”42.
Nessa perspectiva, corrobora, enquanto suportes metodológicos, especialmente, as
obras de Deleuze e Guatarri, em especial a já citada Kafka: por uma literatura menor43 que nos
concerne uma visão de que a “máquina literária menor”, não reproduziria em si os modelos
vigentes, ou seja, estas transpareceriam algo do “real” através de si, não como reprodução, mas
como possibilidade de transformação, a arte, a literatura, como potência tanto de se vivência

38
UMA EXPERIÊNCIA DIDÁTICA: O CORPO HUMANO, Direção: Jomard Muniz de Britto e Carlos Cordeiro.
Produção: ______. [S. I.]: [S. N.], 1974, Ficção/experimental, 8mm (04 min), son., color.
39
VIVENCIAL I, Direção: Jomard Muniz de Britto e Carlos Cordeiro. Produção: Jomard Muniz de Britto.
Imagens: Carlos Cordeiro. [S. I.]: [S. N.], 1974. Ficção/experimental, 8mm (12min), son., color.
40
TOQUES, Direção: Jomard Muniz de Britto. Produção: ______. Olinda: [S. N.], 1975, Ficção/experimental,
8mm (07 min), son., color.
41
FOLIONAS OU PAIXÃO DE CARNAVAL, OU?, Direção: Jomard Muniz de Britto. Produção: ______.
Imagens: Carlos Cordeiro. Olinda-PE: [S. N.], 1975, Ficção/experimental, 8mm (18 min), son., color.
42
MACHADO JÚNIOR, Rubens. O Pátio e o cinema experimental no Brasil: apontamentos para uma história das
vanguardas cinematográficas. In: CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar (Org.). História, cinema e outras
imagens juvenis. Teresina: EDUFPI, 2009. p. 23.
43
DELEUZE; GUATTARI, 2017.
2

liberdades, sua própria subjetividade, como de embate, de resistência. O que encontra uma
espécie de semelhante na proposta de análise, concebida por Marc Ferro, 44 no que concerne a
percepção do filme, do cinema, enquanto “acontecimento”, “testemunha”:

Aliás, o que é um filme senão um acontecimento, uma anedota, uma ficção,


informações censuradas, um noticiário que coloca no mesmo nível a moda do
inverno e os mortos do último verão? A direita tem medo, a esquerda desconfia:
a ideologia dominante não fez do cinema uma “fábrica de sonhos”. [...]. Na verdade,
de que realidade o cinema seria a imagem? [...], a censura está sempre lá, vigilante,
ela se deslocou do trabalho escrito para o filme e, no filme, do texto para a imagem.
[...], mesmo controlado, um filme testemunha.45

Logo, partimos, sob tais pretextos metodológicos de uma análise sobre a poesia e o
cinema experimental de Jomard M. de Britto, supracitados, figurados enquanto “testemunhas”,
que como dirá Marc Ferro, acima, que “coloca(m) no mesmo nível a moda do inverno e os
mortos do último verão”, testemunha enquanto “acontecimento inscrito no tempo”, mas que
como dirá Deleuze e Guatarri, não se finda em sua reprodução, também guarda seu carácter de
potência estético-existencial. Ainda sobre as fontes, cabe mencionar sobre a questão de
disponibilidade de acesso as mesmas, na qual podemos destacar a presença de sua filmografia
convertida em formato digital, previamente organizada em acervo pessoal, além de estarem
presentes em sites de busca de vídeos, como o YouTube.com; frente as fontes hemerográficas,
estas podem ser consultadas tanto por meio de portais digitais, como o acervo do Instituto
Joaquim Nabuco e a Biblioteca Nacional Digital, como também através obras supracitadas, a
qual podemos citar de maneira especial as obras de Fabiana Moraes e Aristides Oliveira46 e de
Sergio Cohn47, nas quais exemplares de tais fontes figuram em sua íntegra. Por fim, seus livros
supracitados foram adquiridos previamente através de livrarias e sebos.
Tal arcabouço metodológico será cruzado com um certo compilado de reflexões
teóricas, ou, como exercício de “bricolagem teórico-metodológica”, cabe pensarmos certas
noções e conceitos que nos amparam/conformam na análise e discussão aqui proposta. Deste
modo, é importante observarmos, de partida, que esta proposta de pesquisa se encaminha na
esteira de transformações iniciadas com a chamada Nouvelle Histoire, em referência aos novos
paradigmas destacados pela 3° geração da Escola dos Annales, que abre margem a ideias que
revolucionariam o campo dos estudos históricos, mas que se localiza essencialmente na margem
do que seria um debate pós-estruturalista, tomando o desejo como um de seus elementos

44
FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
45
FERRO, 1992, p. 85, grifo nosso.
46
MORAES; OLIVEIRA, 2017.
47
COHN, 2013.
2

principais de análise e discussão, dentre as quais, podemos nos situar em função de tal debate
ao recordarmos da aula inaugural no Collège de France, ministrada por Foucault em 1970,
transformada em livro no ano seguinte, com o nome de A Ordem do Discurso, enquanto uma
maneira de inserção aos elementos que são caros à nossa produção, especialmente sob o grifo:

O desejo diz: ‘Eu não queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; não
queria ter de me haver com o que tem de categórico e decisivo; (...). E a instituição
responde: "Você não tem por que temer começar; estamos todos aí para lhe mostrar
que o discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição;
que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter
algum poder, é de nós, só de nós, que ele lhe advém’.48

A metáfora do “desejo interditado pela instituição”, observada no fragmento, pode ser


compreendida como uma metáfora à própria ideação foucaultiana, presente em tal obra, ao
passo que o mesmo compreende a vigência em toda a sociedade, de instrumentos de exclusão,
de silenciamentos. Nesse sentido, a produção de discursos para Foucault estaria condicionada
em função de “conjurar poderes e perigos”, estando assim “controlada, selecionada, organizada
e redistribuída” pelas instituições, pela vigília especialmente do que chamaria em seguida como
“micropoderes”. Sandra Jatahy Pesavento, completa a análise apreendendo que para Foucault,
o que se cabia a ser estudado pela História seria justamente o campo da elaboração dos
discursos, deduzindo “que aquilo que chamava de real era dado por objetos discursivos, fixados
historicamente pelos homens”.49
Logo, sob o lastro de se desenvolver um estudo ante ao campo da História Cultural e do
diálogo com certos traços do debate pós-estruturalista, a teoria foucaltiana é basilar ao nosso
intento ao passo que compreende o real como junção entre “texto e contexto”, como produto de
um “jogo de discursos”, sendo tal compreensão uma espécie de anteparo a operacionalização
dos conceitos subsequentes do nosso estudo. Sendo o primeiro destes, a noção de
“representação”, vista aqui enquanto elemento fulcral a nossa proposta. A dedução de tal
importância, se ampara na reflexão de Sandra J. Pesavento, na medida em que compreende tal
noção, expressa por “normas, instituições, discursos, imagens e ritos” enquanto meio sob a qual
os sujeitos constroem, percebem, a realidade; sendo assim, como diria a mesma: “matizes
geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de uma força integradora e coesiva, bem como
explicativa do real”.50

48
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, proferida em 2 de dezembro
de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 2014, p. 07, grifo nosso.
49
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 32-33.
50
Ibid, p. 39.
2

Tal acepção, encontra ainda consonância nas postulações de Roger Chartier,51 ante a sua
definição de representação, o que nas palavras do mesmo é “entendida como relação entre uma
imagem presente e um objeto ausente, uma valendo pelo outro”.52 Todavia, o mesmo nos chama
atenção, justamente, para a interseção, o “espaço de manobra”, entre a imagem e o objeto,
destacando a factibilidade das possíveis “incompreensões da representação”,53 o que nos
encaminha a adoção de certos cuidados, à procura de uma outra margem, ou como diria Durval
Muniz de Albuquerque Júnior, de uma “terceira margem”.54 Dessa forma, nos aliamos as
ideações de Durval de Albuquerque Júnior, no sentido de pensar que à História não se passa
apenas no campo da materialidade, da realidade, da “natureza da coisa em si”, muito menos
apenas do lado da representação, da subjetividade, dos discursos, mas sim, nesta “interseção”
apontada por Chartier, na mediação entre estas, “no lugar onde as divisões ainda são
indiscerníveis”. 55 A História se efetivaria dessa maneira, justamente, nesta “terceira margem
do rio”, espaço na qual o “devir é rei e a invenção à lei”. 56
Nesse sentido, nos defrontamos com outro conceito substancial a nossa proposta, sendo
este, a ideia de “invenção”. Ao passo que compreendemos até aqui, a potência da linguagem,
dos discursos, da representação, enquanto elementos participantes da conformação do que seria
a “realidade vivente/aparente”, podemos concluir que “a História possui objetos e sujeitos
porque os fabrica, inventa-os”.57 Tal postulado, torna-se mais claro em nossa proposta, ao passo
recordamos Reinhart Koselleck e entendemos o “tempo histórico” enquanto uma construção
“tripartite”, enquanto entre-lugar das “nostalgias do passado, das manobras do presente e das
projeções de futuro”, ou como chamaria o próprio: uma “brecha”, onde podemos dizer que se
matizam “as origens, as re-fundições e as metas da História”. 58
“Brecha” esta, que encontra outra nomenclatura em François Hartog,59 ao passo que este
a entende sob a forma de “regimes de historicidade”, nos possibilitando assim enxergar o

51
CHARTIER, R. O mundo como representação. Estudos Avançados, 11 (5), 1991, p. 173-191.
52
Ibid, p. 184.
53
Ibid, p. 185.
54
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da
história. Bauru: EDUSC, 2007, p. 28.
55
CHARTIER, 1991, p. 185.
56
ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.
57
Ibid, p. 29.
58
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução: Wilma
Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; PUCRio, 2006.
59
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Tradução: Andréa Souza
de Menezes, Bruna Beffart, Camila Rocha de Moraes, Maria Cristina de Alencar Silva e Maria Helena Martins.
Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
2

presente enquanto fruto da oscilação, do balanço, entre temporalidades. 60 Logo, através de


Koselleck61 e Hartog,62 podemos entender quando Homi K. Bhabha,63 escreve que “esse entre-
tempo mantém viva a feitura do passado, enquanto negocia os níveis e liminaridades daquele
tempo espacial”,64 que esses entre-lugares fornecem o que seria a base, o “terreno”, para a
construção do que o mesmo concebe como “estratégias de subjetivação – singular e coletiva –
que dão início a novos signos de identidade”.65 Ou seja, Bhabha, irá entender que a própria
“cultura” seria produzida, inventada, nesta mediação de temporalidades, que perfaz-se em
“presente”. Mas do que isso, podemos aferir a existência/convivência, de “tempos culturais”
distintos, figurados em uma mesma ordem cronológica e espacial.66
“Tempos culturais” que se efetivam através de Jean-François Sirinelli,67 na ideia de
“geração”. Observando assim, que através de um dado ponto/evento desta “negociação entre
temporalidades”, podem efetivar-se processos de subjetivação distintos e, por conseguinte, a
efervescência de gerações distintas de sujeitos a conviver em mesmo espaço físico e temporal.
Dessa forma, podemos concluir que a História, “assim como o rio que inventa seu curso” –
pegando de empréstimo novamente a metáfora de Durval de Albuquerque Júnior –,68 inventa
seus sujeitos e estes próprios, também inventam à História, ao passo que a “realidade” seria em
si, uma “paisagem negociada”.
Tais postulados, mostram-se úteis à nossa análise no sentido de que, a partir destes,
podemos enxergar os sujeitos enquanto “fabricação histórica”. Ao passo que podemos tomar as
vivências, as experiências, de Jomard Muniz de Britto, especialmente aqui figuradas em sua
produção fílmica, enquanto significante, enquanto “representações” de uma “geração” própria,
de um “tempo histórico e cultural” próprio, em diálogo/confronto, com outras ordens
temporais/culturais/geracionais, que conformam sua época. E, assim, abrindo a possibilidade
da apreensão das “ordens discursivas” que atravessam/interditam/moldam os viventes do
“Arrecife dos desejos”69.

60
A ideação aqui vista sobre o tempo histórico, nos possibilita, nos ampara por exemplo no tocante ao exercício
descrito anteriormente enquanto um “vai e vem” na análise de jornais, proporcionando assim uma análise crítica
sobre o cenário cultural e os próprios discursos sobre e do próprio Jomard Muniz de Britto.
61
KOSELLECK, op. cit.
62
HARTOG, op. cit.
63
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução: Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia
Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2014.
64
Ibid, p. 350.
65
Ibid, p. 20.
66
BHABHA, 2014.
67
SIRINELLI, Jean-François. A geração. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). Usos
e abusos da história oral. São Paulo: FGV, 2006. p. 131-137.
68
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 29.
69
BRITTO, 1994.
2

Com base em tais discussões, movemos nossa determinação do próprio conceito de


gênero, sob o qual, nos embasamos essencialmente nas proposições de Judith Butler.70 Para
além, do entendimento da realidade enquanto resultante da disputa de discursos e a
representação enquanto forma explicativa de tal real, precisamos inserir ainda a ideia de
“identidade” nesta “fórmula”, para então compreendermos a noção de gênero posta por Butler.
Para tanto, recorremos as ideias de Stuart Hall,71 compreendendo a mesma enquanto elemento
“construído historicamente e não definido biologicamente”, isso implica na percepção que os
sujeitos, através dos sistemas de significação e representação cultural, assumem identidades
diferentes, cambiantes, ao longo do percurso de sua vida.72 Tal sentido de “identidades
cambiantes”, encontra consonância na discussão de Butler, sob a margem à crítica ao que esta
chamará como “identidade substantiva”.73
Butler compreende a noção de “identidade”, centrada na noção “prática significante”,
interpretando assim o substantivo “eu” como resultante de um discurso amarrado por regras,
por práticas culturalmente inteligíveis. O que, segundo a mesma; “procuram ocultar seu
funcionamento e naturalizar seus efeitos”,74 conformando assim a ideia da existência de
modelos epistemológicos, sob as quais os sujeitos “naturalmente” se alocariam e sob a qual se
desenvolveria à própria noção de gênero. Entretanto, assim como vimos ante as próprias ideais
de Hall,75 na visão de Butler, os sujeitos não assimilam ou são definidos estritamente por tais
discursos, estes, “negociam suas construções”, o que implica frente a noção de gênero, em
sujeitos que “nunca se encontrariam plenamente identificáveis com seu gênero”.76
Ao passo que entendemos a ideia de “identidade” enquanto elemento construído e não
algo que pré-existe, algo dado a instância da natureza humana, não haveria na mesma medida
uma “identidade de gênero verdadeira”, mas sim um discurso, uma “ficção reguladora”. Nesse
sentido, Butler compreende a noção de Gênero, como algo a ser combatido, como um
instrumento inteligível de perpetuação, de manutenção de práticas, de uma dominação; deste
modo, a noção de masculinidade, feminilidade e as expressões que conformariam tais

70
BUTLER, Judith P. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Tradução: Renato Aguiar.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
71
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes
Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2014.
72
HALL, 2014, p. 07-10.
73
BUTLER, 2015, p. 249.
74
Ibid.
75
HALL, op. cit.
76
BUTLER, op. cit.
2

instâncias, seriam como diria a mesma: “parte da estratégia que ocultar o caráter performativo
do gênero” e suas possibilidades de extravasar o modelo binário existente.77
A premissa da realidade gênero ser criada em função das performances sociais é
assimilada no nosso objeto de estudo em diálogo com as ideais de Suely Rolnik.78
Especialmente sob a noção de “colonialismo capitalista”, sob a qual traduz-se a observação da
prática da “cafetinagem”, enquanto expressão não só da exploração e extração da “mais-valia”,
mas, principalmente, do que a mesma identifica por “a frequência de vibração de seus efeitos
em nossos corpos”.79 Nesse ínterim, com o diálogo com Rolnik, observamos de maneira geral,
a prática coercitiva, excludente, sob a qual o maquinário social, capitaneado pela lógica
capitalista empurra para as periferias, para as “sombras”, tudo aquilo que vaza seus conceitos,
seus “modelos naturais”, tudo que lhe é estranho, o que reverbera não só em uma violência
simbólica, mas também física, enquanto forma de manutenção de tal status quo.
Logo, se Butler irá defender a quebra, a derrocada, do conceito de gênero enquanto
forma para uma “vivência efetiva da liberdade dos sujeitos”, será através da ideia de
“microresistências” ou, de “esferas da insurreição”, pensada por Rolnik, terminologia inclusive
que dá nome ao livro aqui usado como base de suas teorizações, que compreendemos os
caminhos adotados pela figura de Jomard Muniz de Britto, como forma de resistir e transgredir
tais “discursos normatizadores de gênero”.80 Em nossa proposta de pesquisa, tais caminhos de
se fazer r-ex(s)istência, se darão ou serão vislumbrados efetivamente em função dos filmes e
poemas produzidos pelo mesmo, no decorrer da década de 1970 e 1980, especialmente sob o
cenário cultural da capital pernambucana.
Após entendermos um pouco mais sobre anteparo teórico-metodológico que nos permite
analisar, enxergar nas produções de Jomard Muniz de Britto, tais formas de existir e resistir ao
as forças coercivas que se efetivam no espaço, cabe nos determos um pouco mais justamente
nessa ligação entre tal discussão e a nossa própria ideia de “espaço” aqui em voga. Esta segue
a mesma linha de argumentação que vínhamos traçando, sendo entendida aqui não só como
algo ligado à práxis, um espaço enquanto “terreno”, palco apenas, mas também como
fabricação, lócus inventado, transformado pelo jogo de discursos e aqui recorremos em
especial, novamente, as ideias de Michel Foucault.81

77
Ibid, p. 244.
78
ROLNIK, 2018.
79
Ibid, p. 32.
80
ROLNIK, 2018.
81
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução: Maria Thereza da Costa
Albuquerque e José Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020.
2

Neste caso nos voltamos a ideação presente em sua obra, intitulada: A vontade de
saber.82 Com base nesta, observamos, que ao contrário do que comumente possa-se pensar, a
sociedade Capitalista a qual nos conformamos, especialmente, na parte que chamamos de
ocidental do globo, não “reprimiu”, não forçou o sexo a calar-se ou esconder-se, em essência
ou por completo. Em seus estudos, conseguimos diferenciar o que seria uma sexualidade
voltada à uma estetização da existência, a uma postura, ou regime dietético, como bem chamas,
em oposição a uma moral cristã e em seguida capitalista, que se conforma uma hermenêutica
do sujeito, muito baseada inclusive em heranças de tal período precedente, mas que se distingue,
principalmente, pela tendência à patologização dos corpos, do sexo, da sexualidade.
E é aí que mora o “ponto de confusão”, apontado pelo mesmo, pois, sim à toda a
construção de um discurso, de instituições, de práticas, voltadas, à pedagogização, à
regulamentação, à prescrição das práticas sexuais. Todavia, Foucault observa que tamanha
preocupação não fez com que não se falasse em “sexo”, pelo contrário, nunca na história se
falou tanto nos corpos, nas práticas, nunca na história houve tamanha “vontade de saber”, sobre
si e sobre os outros, “confessar-se” torna-se à regra, à lei, o sexo é incitado/indiciado a
manifestar-se. Ou como o mesmo bem pondera:

É preciso, portanto, abandonar a hipótese de que as sociedades industriais


modernas inauguraram um período de repressão mais intensa do sexo. Não
somente assistimos a uma explosão visível das sexualidades heréticas, mas, sobretudo
– e é esse o ponto importante –, a um dispositivo bem diferente da lei: mesmo que
se apoie localmente em procedimentos de interdição, ele assegura, através de
uma rede de mecanismos entrecruzados, a proliferação de prazeres específicos e
a multiplicação de sexualidades disparatadas. [...], nunca tantos centros de poder,
jamais tanta atenção manifesta e prolixa nem tantos contatos e vínculos circulares,
nunca tantos focos onde estimular a intensidade dos prazeres e a obstinação dos
prazeres para se disseminarem mais além.83

À luz das questões levantadas por Foucault, é possível conectá-la com as análises da
filósofa estadunidense Judith Butler, cujo debate sobre os “problemas de gênero” possibilita
pensar a produção de identidades relacionadas ao corpo extrapolam a dimensão da natureza e
ampliam-se, também, para o campo da cultura.84 E, assim recordarmos que nesse processo, de
falar, de confessar-se, nesse “palco onde os holofotes” estão voltados na verdade aos corpos,
podemos enxergar, que se constitui, se escolhe, (pré)define-se assim, “os corpos que importam”
e, por conseguinte o seu inverso.85 E isso nos é importante, justamente, ao passo que
entrecruzamos com os estudos de outro supracitado, no caso Durval Muniz de Albuquerque

82
Ibid.
83
FOUCAULT, 2020, p. 54-55, grifo nosso.
84
BUTLER, 2015.
85
BUTLER, 2015.
2

Júnior, que não pensa especificamente os espaços práticos aqui levantados, mas pensa o “nascer
de uma região”, de um discurso, uma ideia de pertencimento, uma identidade, em torno do que
seria o Nordeste.86
Durval Muniz de Albuquerque Júnior move tais ideais sobre a fabricação histórica de
tal espaço e dos seus viventes, os nordestinos, através da análise da trajetória cultural e dos
discursos imersos nestas, de diversos intelectuais, folcloristas, regionalistas, atuantes desde o
final do século XIX e, principalmente, no início do XX. Durval de Albuquerque Júnior, percebe
uma polarização muito forte estabelecendo no que até então era chamado por diversos nomes,
como Norte, Sertão, entre outros, polarização esta movida pela chegada dos ideais da chamada
modernidade, tão estranhos aos senhores de engenho, aos sertanejos, colocando a vida no que
podemos entender como um “jogo de dicotomias”, entre a tradição senhorial e os ideais
modernos. Com tal embate, o movimento senhorial, ou regionalista, por assim dizer, procura se
unir, afirmar-se enquanto unidade, sob o emblema de Nordeste, fabricando, entre diversos
meios, folhetos, músicas, cantigas, peças, filmes, textos, entrevistas, os diversos modos do que
seria o “sujeito nordestino”.87
Invenção de um espaço e de uma cultura, “cultura popular” em especial, Durval de
Albuquerque Júnior, em sua obra A feira dos mitos,88 adentra ao campo cultural e define através
do estudo de figuras como Câmara Cascudo e Gilberto Freyre, que nesse processo de
fabricação, conforma-se um ideal do que seria “a identidade e a cultura popular do povo
nordestino”, ideal este que procura manter vivo, ou meio-vivo, o espectro da exploração, da
vida de mimos, dos “anos de ouro” de uma elite senhorial ou descendente desta, que não
encontraria lugar, com muita facilidade, nas premissas modernas que invadem à região. Mas
nosso autor irá além, o mesmo chegará a tratar dos próprios corpos de tais sujeitos agora
vislumbrados sobre um modelo cultural, em outra de suas obras, esta chamada: Nordestino:
invenção do ‘falo’.89
Tal obra, nos fala sobre os chamados “corpos nordestinados”, todavia, aqui cabe
novamente nossas ressalvas, pois nosso autor recai-se novamente a um mundo dual, ao mundo
das dualidades, da dicotomia. Seu objetivo de fato é observar os modelos de homem e mulher,
que se fabrica neste processo de invenção do Nordeste. E isso na sua obra não é um problema

86
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5 ed. São Paulo: Cortez,
2011.
87
Ibid.
88
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: a fabricação do folclore da cultura popular
(Nordeste 1920-1950), São Paulo: Intermeios, 2013a.
89
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nordestino: invenção do falo. Uma história do gênero masculino.
São Paulo: Intermeios, 2013b.
2

em si, mas de fato, nos abre uma lacuna, na qual tratamos neste trabalho. Ou seja, através da
discussão proposta acerca da análise de obras e parte da trajetória cultural de Jomard Muniz de
Britto, tomamos seu principal espaço de performance e vivência cultural, o Recife, como ponto
de partida, assim como o próprio em si, para pensarmos “estratégias de subjetivação – singular
e coletiva – que dão início a novos signos de identidade”.90 Ou seja, a partir de tais objetos
podemos enxergar, discutir, o “Outro”, observar tanto a funcionalidade do “dispositivo de
sexualidade” construído junto da ideia de “Nordeste”,91 como do seu avesso, dos seus horrores,
do que lhe é dado como exemplo de mal-dito/quisto/visto.
As identidades aqui analisadas não se limitam à dualidade masculino/feminino, estas
são múltiplas e que apesar que relegadas a condição de “fora dos padrões, “estranho”, queer,
resistem e existem através de produções/manobras/rotas de fuga, como as vislumbradas através
de Jomard Muniz de Britto. Cabe, nesse sentido, observar que o trabalho também se localiza
em uma historiografia onde as conexões entre arte, corpo e gênero aparecem como questões
centrais, buscando ocupar um espaço onde também aparecem pesquisadores/as brasileiro/as tais
como Edwar de Alencar Castelo Branco, Fábio Leonardo Castelo Branco Brito, Jaislan Honório
Monteiro, Laércio Teodoro da Silva, Paula Poliana Olímpio de Melo Sousa, Stéfany Marquis
de Barros Silva e Talitta Tatiane Martins Freitas92.
Logo, ao contemplarmos, de maneira sintetizada, os (des)caminhos da fabric(ação) desta
produção, podemos, por fim, observar como tal discussão é estruturada, subdividida ao longo
da nossa produção. Nesse ínterim, o Capítulo 1, intitulado Replicantes mitologias em Oração
pagã: Jomard Muniz de Britto e o cenário cultural do Recife dos anos 1970 e 1980, mostra-se
centrado sob dois nortes, o primeiro é operar no campo das “contextualizações”, identificando,
apresentando, explicando, compreendendo as peripécias, aproximações e distanciamentos, ou

90
BABHA, 2014, p. 20.
91
FOUCAULT, 2020.
92
CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Ele é o homem, eu sou apenas uma mulher: corpo, gênero e
sexualidades entre as vanguardas tropicalistas. Anais do VII Seminário Fazendo Gênero, Florianópolis, 28, 29 e
30 de agosto de 2006; BRITO, Fábio Leonardo Castelo Branco. O corpo em transe: descentramentos de gênero
no filme Esperando João, de Jomard Muniz de Britto (João Pessoa, 1981). Outros Tempos, São Luís, n. 17, v.
29, p. 355-372, 2020; MONTEIRO, Jaislan Honório. Arte como experiência: cinema, intertextualidade e
produção de sentido. Teresina: EDUFPI, 2017; SILVA, Laércio Teodoro da. Parahyba masculina feminina
neutra: cinema (in) direto, super 8, gênero e sexualidade (Paraíba, 1979-1986). 2012. 227p. Dissertação
(Mestrado em História do Brasil) – Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza; SOUSA,
Paula Poliana Olímpio de Melo. Masculinidades descentradas: confusão de gênero nas práticas juvenis
teresinenses na década de 1970. 2015. 127 p. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – Centro de Ciências
Humanas e Letras, Universidade Federal do Piauí, Teresina; SILVA, Stéfany Marquis de Barros. Venha pra
curtir: aventuras da Curtinália e uso dos corpos nos experimentalismos artísticos de Teresina na década de 1970.
2019. 160 p. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade
Federal do Piauí, Teresina; FREITAS, Talitta Tatiane Martins. Life is a cabaret: a obra dos Dzi para além das
lentes do cinema. 2016. 251 p. Tese (Doutorado em História Social) – Instituto de História, Universidade Federal
de Uberlândia, Uberlândia.
2

seja, procuramos apresentar e situar nosso personagem central ante ao espaço e movimentos de
sua época. O que nos leva ao segundo norte, que é justamente para dar conta de tal empreitada,
que recorremos a ideia de “uma escrita de si” e do outro,93 fazendo assim o reconhecimento e
contraponto, entre uma bibliografia existente, feita pelo próprio e por outros sujeitos, sobre a
figura de Jomard Muniz de Britto e suas operações. E, assim, nos entremeios dessas
contextualizações e confrontos de discursos, vemos a emersão não só do nosso contexto
temporal, espacial, mas também, já conseguiremos situar semideuses dessa cultura regional,
trabalhada por Durval Muniz de Albuquerque Júnior,94 em especial Gilberto e Freyre e Ariano
Suassuna, que guardam relações próximas com nosso autor, como também, surgem como
representação da normatividade que demarca o espaço nordestino.
A partir dessa contextualização, o capitulo 3, nomeado como Artevida Atrevida: o
“outro” nas produções em super-8 de Jomard Muniz de Britto, dos anos 70, que centra-se
essencialmente em um sobrevoo sobre as produções fílmicas do nosso personagem, observando
os modos como os quais as questões do corpo aparecem nos filmes, bem como as relações de
gênero aparecem em suas fronteiras identitárias em espaços bastante tradicionais tais como
aqueles retratados. A figura do “outro”, representado aqui tanto na forma com a qual o
personagem comunica ao seu público – a produção superoitista, externa aos módulos mais
tradicionais de produção e circulação fílmica – quanto nos sujeitos apresentados, significa
justamente a dimensão da androginia e dos descentramentos de masculinidades aparente nos
filmes. Enfatiza-se que, nesse capítulo, o foco não será o debate cultural – presente e
atravessado em toda a produção jomardiana – mas sim os modos como as questões de gênero e
de corpo ganham destaque, relacionando-se intimamente com a própria vivência e as condições
históricas nas quais Jomard se encontra inserido.
Nesse intento, ao passo que observamos nossas fontes base, como diria Georges Didi-
Huberman, enquanto “objetos conscientes”, 95 representações conscientes, podemos entende-
las enquanto instrumentos de embate, de tensão, como dirá Ernesto Manuel de Melo Castro,
enquanto forma de “guerrilha semântica”,96 ou mesmo, segundo apontamentos do próprio
Jomard M. de Britto, como meio para o escreviver e o cineviver.97 Dando assim vazão e
pulsação a parte dos devires de uma geração de cabeludos, transviados e sapatões, ante aos

93
GOMES, 2004.
94
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011.
95
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte. Tradução:
Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 153.
96
CASTRO, 1974.
97
BRITTO, Jomard Muniz de. Um novo cinema pernambucano? Diário de Pernambuco, 14 jan. 1974. Caderno
de Diversões, p. 07.
2

modelos pré-estabelecidos de pensamento, as hierarquias e violências de gênero, armadas sob


o ideal de manutenção da “ordem natural do mundo”. Cabe notar, que no último capítulo citado,
as discussões acerca de corpo, gênero e sexualidades se aprofundam, sendo intrínsecos a tais
objetivações mencionadas, a operação com autores basilares neste intento, como Michel
Foucault e Judith Butler.98
Ao final deste translado encontramos o tópico de conclusão, que contempla em essência
a ideia de “revolver tudo”, ou seja, contextualizar, sintetizar e fechar a ideação transposta ao
longo do trabalho e que pode encontrar um spoiler, um breve adiantamento de tais conclusões,
do resultado esperado, na ideia de se entender o mundo vivente, enquanto essencialmente uma
“construção humana”, movida pelo intercurso entre interesses e discursos e, assim,
compreender que como “feito humano”, o mesmo também é efetivamente mutável. Sendo nossa
saída, nosso meio defendido, de como se pode “mudar as coisas”, compreendido através do ato
de estranhar a realidade, duvidar do que é natural, ou, dito de uma forma “mais pessoal”,
investindo na potência do “‘re’: re-pensar, re-volver, re-fazer”, a realidade que nos envolve.

98
FOUCAULT, 2020; BUTLER, 2015; LOURO, 1997; ______. O corpo educado: pedagogias da sexualidade.
Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
2

2. Replicantes mitologias em Oração pagã: Jomard Muniz de Britto e o cenário cultural do


Recife dos anos 1970 e 1980

Perguntar pode não ser preciso, quando navegamos em


clima de tantas louvações e rememorações. Indagar pode
ser ainda uma pedra no descaminho das estórias. Atiremos
no Sol.
(Jomard Muniz de Britto – Relendo o Recife de Nassau, grifo
nosso).

Não adianta desenhar o meu rosto; ele se mostra diferente


a cada dia. O espelho não reproduz o que sinto, mas o que
parece que sinto. Driblo a figuração do que é projetado: ora
de um jeito; ora de outro. Dessemelhante ao que sou. O
tempo interfere na exterioridade. Mas não só; o essencial é
interior e nem sempre muda na mesma equivalência
epidérmica. A depender do dia, sou uma; a depender da
noite, sou outra. Impossível identificar a cronologia da
identidade. Não receio as rugas. Receio o que elas podem
significar na aparência. Há traços ocultos em um rosto visto
a olho nu! Por trás do que se capta, habitam os segredos de
cada um. E, de repente, o perfil se perde, as linhas se
confundem no emaranhado de “eus”. O rosto se multiplica
em diversas feições.
(Fátima Quintas. Qual o rosto de hoje? – Jornal do
Commercio/Recife, grifo nosso).

Soltou-se a Onça-negra da estrelada


e o meu Recife, ali na escuridão
era agora o Fortim-Iluminado
o baluarte, a Nau, o bastião,
colocado entre o Reino-azul do Mar
e o meu Reino-castanho do Sertão!
(Ariano Suassuna – Canto Armorial do Recife, Capital do
Reino do Nordeste, grifo nosso).

A proposta do capítulo é centrada no que podemos chamar de “reino das


contextualizações”, ou seja, a premissa é operar uma discussão muito mais informativa,
procurando situar o leitor da trajetória cultural de Jomard Muniz de Britto, especialmente
centrada nas décadas de 1970 e 1980, que conformam nosso recorte temporal, ante o cenário
cultural da cidade do Recife-PE. Tal lapso temporal, escolhido em função das nossas fontes,
nos remete, a princípio, a um contexto nacional marcado pela influência da Ditadura Civil-
militar (1964-1985), na qual Marcos Napolitano, dividiria em três grandes fases. A primeira,
marcada entre os anos de 1964 a 1968, teria como mote “dissolver as conexões entre a ‘cultura
de esquerda’ e as classes populares, estratégia manifestada no fechamento do CPC (Centro
Popular de Cultura, associado à União Nacional de Estudantes-UNE) e do ISEB (Instituto
2

Superior de Estudos Brasileiros) e dos movimentos de alfabetização de base”, como o


sistema/movimento de alfabetização de jovens e adultos encabeçado por Paulo Freire.99
A segunda fase, iria de 1969 a 1978 e seria pautada em “reprimir o movimento da cultura
como mobilizadora do radicalismo da classe média (principalmente dos estudantes)”.100 Por
fim, nosso terceiro momento, que vai de 1979 a 1985, teria como objetivo “controlar o processo
de desagregação da ordem política e moral vigentes, estabelecendo limites de conteúdo e
linguagem”.101 Neste último momento, a força repressora centra-se efetivamente na defesa de
um modelo cultural, daquilo que seria “a moral e os bons costumes” para a época. Tal
compreensão de uma espécie de “repressão progressiva”, nos ajuda a observar o cenário
macropolítico a qual Jomard Muniz de Britto acaba sendo atingido/mobilizado por tais “fases”,
por tal “linha evolutiva da repressão”, tendo seu ápice no contexto pós-AI-5, o que será melhor
trabalhado a seguir.
Entretanto, situamos tal cenário, justamente, para dele nos afastarmos. Dito de outro
modo, não é nosso objetivo aqui, considerar, pensar, as produções de Jomard Muniz de Britto,
enquanto contraponto direto ao regime golpista em vigor em tal lapso temporal. Para explicar
melhor nosso modo de análise e compreensão de tal personagem, podemos tomar de
empréstimo os conceitos pensados por Edwar de Alencar Castelo Branco,102 de “corpo militante
partidário” e “corpo transbunde libertário”. Tais conceitos, mesmo cabendo a ressalva de que
os mesmos não dão conta de toda pluralidade de personagens em atuação, nos situam acerca
dos sujeitos e da própria ideia de “resistência” que figuram como atuantes nesse recorte
temporal.
O primeiro desses grupos, aqueles que fariam parte da margem do “corpo militante
partidário”, referem-se, essencialmente às resistências ligadas aos movimentos de esquerda
propriamente ditos, partidários de uma saída pró-revolução social, muito ligada aos princípios
comunistas. Já o segundo grupo, figura-se como os adeptos a margem de uma revolução
cultural, engendrando movimentos como o Cinema Novo, encabeçado por Glauber Rocha,
projetando uma imagem do Brasil, que desfigura, por exemplo, os princípios “do milagre
econômico”, muito usado como defesa ao período ditatorial, através de sua “estética da fome”.
Mas Edwar de Alencar Castelo Branco,103 pensa tais conceitos, especialmente ligados a outro
movimento do campo cultural, sendo este à emersão do Tropicalismo, de figuras como Caetano

99
NAPOLITANO, Marcos (org). História do Regime militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014, p. 101.
100
Ibid, p. 100.
101
Ibid, p. 101.
102
CASTELO BRANCO, 2004, p. 78.
103
Ibid.
2

Veloso, Gilberto Gil, Nara Leão e Maria Bethânia, que promovem uma resistência não só ao
regime político em voga, mas aos valores morais expressos por ideais tradicionais que
compõem um modelo de conduta e sexualidade no Brasil da época. Ideais, que se pensarmos
de modo mais específico na região Nordeste, encontrariam forma nas figuras do “homem macho
e mulher pura”, pensadas por Durval Muniz de Albuquerque Júnior,104 enquanto imagens
pensadas para os viventes da região.
Desse modo, por mais que possamos destacar uma certa aproximação de Jomard Muniz
de Britto do primeiro grupo levantado, especialmente na década de 1960, com sua ligação com
Paulo Freire, como veremos a posteriori, pensamos tal personagem estreitamente ligado a
imagem do segundo grupo, enquanto “corpo transbunde libertário”. Tal premissa é centrada na
compreensão de que suas produções, sua atuação nas décadas de 1970 e 1980, no espaço
pernambucano, estaria descentrada da figura do “militante”, Jomard M. de Britto, se afasta dos
movimentos de esquerda e passa a trilhar um caminho ainda que sob o mote de uma revolução
também política, mas que deveria ir além, enquanto uma revolução cultural, pluralizando as
possibilidades de identidade e vivência dos corpos, então existentes/vigentes.
Todavia, trabalhando ainda no campo das ressalvas, mesmo pensando Jomard Muniz de
Britto sob a margem de um “agitador cultural”, reconhecemos que seus diálogos, sua produção,
enquanto professor, escritor, poeta, filmaker, entre outras rotulações, extravasam as condições
práticas deste trabalho, como também, fogem, divergem, da nossa ideia central que promove
uma observação centrada nas suas performances, nas discussões a respeito de gênero e
sexualidades que permeiam sua atividade. Desse modo, não almejamos neste capítulo
contemplar de maneira profunda sua larga produção cultural, ou seja, como dito a priori, nosso
intuito reverbera muito mais pela margem da contextualização, de informar e situar o leitor
acerca de sua trajetória e vivência no cenário pernambucano, enquanto base para a compreensão
das nossas análises seguintes acerca do Corpo, Gênero e Sexualidades.
Situados acerca da nossa análise em função do cenário macropolítico nacional e de
ressalvas próprias aos nossos objetivos, podemos então dividir a vivência cultural jomardiana,
em três grandes recortes, que demarcariam momentos, fases, da produção e pensamento do
próprio em função de seus diálogos culturais, de suas aproximações de movimentos e sujeitos,
a qual pode ser capturada através de suas próprias produções. Desse modo, o primeiro excerto
seria demarcado pela sua juventude, formação enquanto professor de filosofia e sua
aproximação do movimento de alfabetização encabeçado por Paulo Freire, culminando na

104
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013b.
2

produção de suas primeiras obras, Contradições do Homem Brasileiro105 e Do Modernismo à


Bossa Nova,106 na observação de traumas pós-golpe Civil-militar, afastamentos e abrindo
espaço para o que seria nossa segunda fase. Nesta Jomard M. de Britto se afasta, em certa
medida, do campo acadêmico, para se conformar de fato enquanto um “agitador cultural”,
dando vazão a embates e aproximações com movimentos como a Tropicália, sendo a publicação
de seus dois manifestos, Porque somos e não somos tropicalistas e Inventário do nosso
feudalismo cultural, ambos datados de 1968, seu ponto de maior apreciação/visibilidade da
vivência cultural do mesmo nesta fase.
Por fim, como terceiro momento, temos a observação de um Jomard Muniz de Britto já
reconhecido regionalmente enquanto intelectual de resistência, situado já no fim dos anos 1970
e início dos 1980, que procura na experiência enquanto crítico de cinema, poeta e filmaker, dar
visibilidade a sua crítica cultural, sendo o filme O Palhaço Degolado,107 o fim de um ciclo de
discussões segundo o próprio, visto como “resposta definitiva” de suas posições ante aos
cânones da cultura nordestina e, assim, abrindo espaço para a vivência/experimentação/
exploração das possibilidades do corpo e sexualidade, das performances corporais e de gênero,
através da linguagem cinematográfica e poética de suas produções. Logo, podemos então partir
para a discussão e apreciação efetiva de cada fase citada e assim, conhecermos de maneira mais
profunda nosso personagem central e seus diálogos e relações com o espaço da capital
pernambucana.

2.1. A formação do professor Jomard Muniz de Britto

Apresentar a figura de Jomard Muniz de Britto não é uma tarefa das mais simples, o
mesmo, propositalmente, procura estar sempre a margem das rotulações e mesmo quando as
possui, as reconhece, tal estado é logo revisto, reinterpretado. Não que o mesmo negue suas
posições ao longo de sua trajetória de vida, mas parece que certas contradições surgem nos seus
discursos, se paramos para vislumbrar o que se escreve sobre o mesmo e o que o próprio fala e
delimita como em uma “trajetória oficialmente aceita” de sua vida. Trajetória não apenas
marcada pela tentativa de “estar sintonizado com o tempo presente”, mas por um “olhar
desejante de fazer recortes e bricolagens, aproximações e distanciamentos, sempre em busca de

105
BRITTO, Jomard Muniz de. Contradições do homem brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1964.
106
BRITTO, 1966.
107
O PALHAÇO DEGOLADO. Direção: Jomard Muniz de Britto e Carlos Cordeiro. Recife, 1977. 9min22s, son.
Color.
2

outra marioandradiana ‘atualização permanente’”.108 Em “atualização permanente”, é assim


que o mesmo se apresenta na coletânea Relendo o Recife de Nassau,109 como em resposta a si
mesmo, a sua própria entrevista dada ao jornal Correio das Artes, em 1997 e republicada em
2002, na obra de cunho enciclopedístico, Atentados Poéticos,110 na qual o mesmo afirma sua
proposição em se manter em sintonia com o que haveria de novo ao longo de sua vivência.
Tal desejo de restruturação constante, de atualização, não como simples adendos,
adições ou subtrações, mas “marioandradiana ‘atualização permanente”, uma metamorfose
antropofágica, de deglutição de si próprio ao longo das décadas. Tal discussão nos é salutar,
pois transcreve um desejo que se inicia com uma aproximação gestada na sua própria formação
enquanto professor, especialmente com a obra Do Modernismo à Bossa Nova,111 vemos um
sujeito que começa a pensar o que o Fábio Brito,112 chama por uma “linha evolutiva da cultura
brasileira”, Jomard Muniz de Britto, começa a ensaiar uma análise da cultura brasileira,
tomando como ponto de partida o movimento modernista de 1922.
O livro citado, Do Modernismo à Bossa Nova,113 seria a sua segunda publicação, voltada
de forma efetiva a uma discussão acadêmica, a mesma faz parte da gestação de uma construção
de imagem pública de Jomard Muniz de Britto. Imagem esta, que possui o “apadrinhamento”
de Glauber Rocha, que escreve a apresentação da sua primeira edição, construindo uma das
primeiras imagens acerca do nosso personagem:

Deixo a crítica aos leitores. Prefiro falar de Jomard Muniz de Britto, pernambucano
de muitas artes escondidas atrás de uma fascinante timidez. Fascinante porque, se
recolhendo continuamente, Jomard sempre deixa prever um bote; e quando larga é
golpe certo, no ponto vital. O que me fêz amigo de Jomard foi nossa comum paixão
pelo cinema, isto já faz dez anos, na decente Recife. Depois, nosso desencontro de
temperamentos criou compensações: Jomard veio escrever crítica de poesia numa
revista literária que eu dirigia em Salvador, depois veio mesmo para a Bahia, onde
agiu com brilhantismo e polêmica nas rodas jovens das artes e letras sociais. E assim
foi, se revelando palmo a palmo: o crítico de cinema era professor de Filosofia, o
teórico de poesia era entendido de teatro, o esteta rigoroso era jornalista, o jornalista
era professor e o professor sambista, outra vez no teatrol Fascinante timidez evoluindo
por meandros táticos, aqui e ali exercendo sua função precisa, consequente..114

Glauber Rocha, entrevem uma imagem de Jomard Muniz de Britto, marcada por uma
timidez, mas que “estaria sempre pronto para o bote”, um crítico, de cinema? De filosofia? De

108
BRITTO, Jomard Muniz de. Entre-lugar para atentados poéticos: de Joaquim Cardozo a Vital Corrêa de Araújo
e outros. In: WHITAKER VERRI, Gilda Maria; ______. (org.). Relendo o Recife de Nassau. Recife: Edições
Bagaço, 2003, p. 183.
109
Ibid.
110
BRITTO, 2002a.
111
BRITTO, 1966.
112
BRITO, 2018.
113
BRITTO, op. cit.
114
Ibid, p. [07].
2

poesia? Ou então, sambista? O que nos fica claro neste princípio de debate é que não adianta
desenhar um único “rosto” para nosso personagem, ele se mostra diferente a cada dia, o perfil
se perde, as linhas se confundem no emaranhado de “eus”, multiplicando suas feições em
função das suas diversas vivências, práticas e experiências. Cabe a nós então, pensarmos pelo
menos neste capítulo, três de suas faces, na qual podemos partir de pistas, como a própria
imagem construída por Glauber Rocha e assim entendermos um pouco mais o processo
formativo do nosso personagem.
Em sua apresentação, Glauber Rocha, afirma que sua amizade com Jomard de Britto,
fora condicionada pela paixão pelo cinema, uma amizade que em 1966, ano da publicação da
obra, já teria “dez anos” na “decente Recife”. Aqui podemos encontrar um ponto chave para a
entender a trajetória de Jomard Muniz de Britto, sua relação com o cinema. Nascido na rua
Imperial, no bairro São José, centro da cidade, no dia 08 de abril de 1937,115 Jomard M. de
Britto, conforma-se, segundo sua biografia organizada por Fabiana Moraes e Aristides Oliveira
entre os “tabuleiros e os homens de negócio, a boemia e o centro econômico da cidade”,116
sendo sua relação com o cinema, gestada, principalmente, a partir dos seus 14 anos de idade,
na qual passa a frequentar o Cine Clube Vigilanti Cura, um espaço de orientação católica,
dirigido por Valdir Coelho, onde aconteciam mostras de cinema, palestras e reunia cinéfilos e
estudiosos do ramo.117
Seria através das idas ao Cine Clube Vigilanti Cura, que Jomard Muniz de Britto, se
encontraria com o Magistério, ainda que a princípio, voltado à discussão e crítica de cinema. O
próprio, comenta em entrevista no Jornal da cidade, em 1981, sobre a sua descoberta para o
ramo pedagógico:

[Jornal da Cidade]: Como você descobriu a vocação para ensinar?


[Jomard M. de Britto]: Ensinar para mim começou muito cedo. Foi através de um
cineclube chamado “Vigilanti Cura”. Era um cineclube de orientação católica que
exibia filmes, tinha debates. Pedro Jorge de Andrade conta uma história muito
engraçada. É que quando eu apareci nesse cineclube para um primeiro debate, dentro
de quinze dias eu já estava fazendo palestras sobre cinema. Pedro Jorge conta como
uma brincadeira, mostrando a leviandade de como eu me improvisei professor de
cinema. A partir daí comecei a ler muito sobre cinema e a frequentar cineclubes. Quem
me lançou como conferencista de cinema foi José Rafael de Menezes. Me lembro de
que ele publicou no Diário de Pernambuco: “um conferencista de 17 anos”. E eu me
lembro que fiquei com raiva porque tinha somente 16. Comecei a ensinar em colégios
de freiras. Colégios das Damas Cristãs e Colégio São José. Isto nos finais da década
de 1950. Eu estava ainda cursando a faculdade. Já ensinada nesses colégios sobre
cultura cinematográfica.

115
LEITÃO, Paulo André; et al. Recife é um show. Jornal da Cidade, 1981a. In: COHN, Sérgio (org.). Jomard
Muniz de Britto. Apresentação Paulo Marcondes Ferreira Soares. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 89.
116
MORAES; OLIVEIRA, 2017, p. 21.
117
Ibid, p. 31.
2

[Jornal da Cidade]: Que curso você fazia?


[Jomard M. de Britto]: Filosofia pura. E quando terminei fui ensinar logo filosofia
no Colégio Carneiro Leão. Saí da fina-flor da burguesia para a fina-flor da
esculhambação.118

Aqui entendemos um pouco melhor a fala de Glauber Rocha, situando Jomard M. de


Britto, enquanto professor, amante de cinema, filósofo. De fato, o cinema atravessa de maneira
significativa sua trajetória, lhe acendendo a contatos como o próprio Glauber Rocha, através do
próprio Cine Clube Vigilanti Cura, que apresentaria em seguida nosso então jovem professor a
nomes ilustres da cidade, como Gilberto Freyre e Ariano Suassuna.119 Este último, guarda ainda
uma relação mais estreita com Jomard Muniz de Britto, ao passo que se torna seu professor de
estética na Universidade do Recife, atual Universidade Federal do Recife, a qual desde 1956,
Jomard M. de Britto, passaria a frequentar enquanto aluno do curso de Filosofia.120
Ainda na entrevista ao Jornal da Cidade, vista acima, Jomard M. de Britto, comenta que
passa, ainda cursando Filosofia na Universidade do Recife, a lecionar em outros espaços da
cidade, evidenciado pela frase “Saí da fina-flor da burguesia para a fina-flor da
esculhambação”. Todavia, no decorrer da própria entrevista, o mesmo afirma que ainda não
tinha noção sobre “classe social”, ou seja, ainda não compreendia a dimensão de divergência,
disparidades entre os espaços que frequentava, o que adviria, segundo o próprio, somente com
o contato com Paulo Freire, a qual ainda mesma entrevista comenta:

[Jornal da Cidade]: Você estava ensinando quando veio aquele período mais
efervescente em termos de política entre 1960-1964. Como você foi tocado pela
política?
[Jomard M. de Britto]: Foi através de Paulo Freire, evidentemente. Eu conheci Paulo
Freire porque tinha alguns amigos meus que já trabalhavam no Serviço de Extensão
Cultural da Universidade. Tinha Luís Costa Lima que falou para Paulo Freire que eu
estava disponível na Universidade. Então ele me requisitou e eu fui para o SEC
(Serviço de Extensão Cultural). O que eu gostei mais da equipe de Paulo Freire é que
era uma equipe volante. A gente ia fazer palestras em Natal, ia para São Paulo, para o
Rio. Quando houve o lançamento do sistema Paulo Freire na PUC, no Rio, a gente foi
em um avião da FAB (Força Aérea Brasileira). Luisinho Costa Lima, eu, Jarbas
Maciel. Então a preocupação com política foi através do sistema de educação Paulo
Freire.121

Entre 1962 e1964, Jomard Muniz de Britto faria parte da equipe inicial do Serviço de
Extensão Cultural da Universidade do Recife,122 o mesmo atuaria muito mais na instância de

118
LEITÃO, 1981a. In: COHN, 2013, p. 91, grifo nosso.
119
MORAES; OLIVEIRA, 2017, p. 41.
120
Ibid, p. 40.
121
LEITÃO, op. cit.
122
MORAES; OLIVEIRA, op. cit, p. 62.
2

treinamento dos estudantes universitários que seriam aplicadores do método Paulo Freire,123
fazendo assim debates e palestras, que como o mesmo afirma na entrevista acima, se
caracterizava pela mobilidade, Jomard Muniz de Britto passa a percorrer o Brasil em meio a
eventos e palestras do Sistema de educação Paulo Freire. 124 O mesmo afirma ainda ao Jornal
da Cidade, em 1981, que o sistema era marcadamente plural entre seus integrantes, fariam parte
católicos, ateus, reacionários, de modo que não havia um bloco homogêneo segundo o mesmo,
sendo o que este chama por uma “abolição da cartilha”, em função justamente da pluralidade
característica do sistema educacional proposto por Freire, o que nas suas palavras:

Havia uma pluralidade muito grande nas coisas de Paulo Freire. Paulo lançou
nacionalmente o método dele, que logo depois foi chamada de sistema, porque era um
negócio que dispensava a cartilha. Ele considerava a cartilha uma coisa superada
porque era uma doação e o camarada já recebia pronto. Então ele jogava com as
palavras do universo vocabular. O sistema de palavração em que as pessoas iam
formando as frases e as palavras a partir de uma pesquisa feita em cada comunidade.
Então, uma das coisas do sistema Paulo Freire era abolir a cartilha, não existir a
cartilha como coisa pronta para alfabetizar. Era um sistema audiovisual com projeção
de slides, com debate em torno de natureza e cultura.
[Jornal da Cidade]: Você acompanhou esse processo?
[Jomard M. de Britto]: Acompanhei uma parte da implantação do sistema Paulo
Freire, em Brasília.
[Jornal da Cidade]: Funcionou esse sistema?
[Jomard M. de Britto]: Não houve tempo para uma avaliação. A repressão acabou
tudo.125

Um sistema que abolia a “cartilha pronta”, que primava pelo jogo de palavras, enquanto
significantes de uma realidade local, apesar de Jomard M. de Britto não afirmar diretamente,
podemos compreender uma certa aproximação com sua própria forma de produção, sempre em
“marioandradiana ‘atualização permanente’”.126 A dimensão pedagógica inclusive, será pauta
de um dos raros depoimentos que se arriscam em delimitar um núcleo essencial em sua
produção cultural, sendo este, apontado pelo Professor Paulo Marcondes Ferreira Soares, na
Apresentação da coletânea de entrevistas de Jomard Muniz de Britto, organizada por Sérgio
Cohn,127 como:

No entanto, mesmo considerando a diversidade desses procedimentos, parece existir


um núcleo comum em seu trabalho, cujo propósito mantém um sentido de unidade

123
Aqui cabe a ressalva que os universitários entrariam já enquanto supervisores no sistema, o que indica uma
posição mais elevada de Jomard Muniz de Britto no programa, ao passo que treinaria os supervisores, sendo
os reais aplicadores do processo de alfabetização, seriam, segundo o próprio Jomard M. de Britto, pessoas do
povo. LEITÃO, 1981a. In: COHN, 2013, p. 93.
124
Ibid, p. 91.
125
Ibid, p. 92-93.
126
BRITTO, 2003, p. 183.
127
COHN, 2013, p. 08.
2

poético-filosófica, orientada para uma ação cultural politicamente dimensionada em


termos estéticos e pedagógicos. E, diga-se de passagem: ação cultural democrática.128

Assim, Jomard Muniz de Britto, parece nunca abandonar a dimensão pedagógica da sua
produção, ao longo da sua trajetória, o que se confirma se pensarmos que o seu último livro
publicado em 2007, intitulado: O livro dos três, faz referência ao que o mesmo chamou como
“A Língua dos três ppês: poesia, política e pedagogia”.129 A ideia aqui seguiria premissa
semelhante ao método de Freire, de jogar com as palavras de modo que estas façam sentido,
crítica e referência a uma dada realidade, ou, como Jomard M. de Britto, pensaria, uma “arte
geral da palavra, transformando poema-produto em objeto útil”.130 Aqui já podemos entrever
certas bases de pensamento que seriam aprofundadas nas nossas fases seguintes, dentre elas,
podemos apontar que a aproximação com a estética audiovisual, ganha cedo espaço na sua vida
e mostra-se importante para sua jovem emancipação econômica, intelectual e, propriamente,
cultural.
Intelectual, pois como vimos, nossa primeira fase, marcada pelo ofício pedagógico, seja
enquanto palestrante sobre cinema, seja enquanto educador de formação filosófica, nosso
personagem se aproximaria de movimentos como o Cinema Novo, ao passo de sua relação
próxima com Glauber Rocha, como também, aponta para as leituras “andradianas”, ou seja, de
sujeitos como Mário de Andrade e Oswald de Andrade, o aproximando do movimento
modernista de 1922. Cultural, pois começa a “ser visto”, a ocupar espaços, no cenário cultural
recifense e brasileiro em si, com as movimentações pelo Brasil como educador, e como vimos
sempre procurando estar sintonizado com as vanguardas, fato destacado também por Vladimir
Carvalho que em 1969, publica no jornal Diário de Notícias, uma matéria onde afirma:

[...], JMB [Jomard Muniz de Britto] faz questão de lembrar que está estreitamente
sintonizado com os movimentos mais significativos da cultura brasileira atual, desde
o teatro de José Celso Martinez até a música do grupo tropicália e do Som Livre,
passando pelo cinema de Glauber Rocha, a poesia-processo, [...]. (COHN, 2013, p.
40).131

Assim, nosso personagem começa não apenas a ser visto publicamente enquanto
“intelectual promissor”, mas também começa a ser “mal: visto, quisto ou mesmo dito”, ou seja,
passa a se apresentar como figura indigesta aos amantes do conservadorismo, dos

128
COHN, 2013, p. 09.
129
BRITTO, 2002a, p. 187.
130
Ibid, p. 190.
131
CARVALHO, Vladimir. Tropicalismo ao Norte. Diário de Notícias, 1969. In: COHN, Sérgio (org.). Jomard
Muniz de Britto. Apresentação Paulo Marcondes Ferreira Soares. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p.
40.
2

tradicionalismos, como veremos em seguida, especialmente sob a imagem da crítica aos seus
“antigos professores”. E assim, começamos a adentrar o campo das adversidades na trajetória
do nosso personagem, afinal, “nem tudo são flores”, assim, de expoente de uma intelectualidade
jovem, engajada academicamente, em figurar enquanto resistência e com aproximações com os
movimentos de esquerda, enquanto atua como importante figura do movimento educacional de
Paulo Freire, Jomard Muniz de Britto, passa a ser visto também pelo Estado, enquanto possível
“perigo” ao novo regime que assume o poder de forma golpista.
Como situamos a princípio neste capítulo, através das discussões propostas por Marcos
Napolitano,132 os primeiros anos da Ditadura civil-militar, seriam marcados pela dissolução das
ligações entre os movimentos de ligação esquerdista e as classes populares, enquanto estratégia
de blindagem do regime. E, como figura de renome nacional, Paulo Freire e seu sistema, não
ficariam de fora da repressão ou da alcunha de “subversivo”, fato que Jomard Muniz de Britto
comenta ainda na entrevista, trabalhada anteriormente, ao Jornal da Cidade, em 1981:

[Jornal da Cidade]: Você chegou a ser preso em 1964?


[Jomard M. de Britto]: Toda a equipe de Paulo Freire foi presa e eu na podia deixar
de ser. Eu posso contar esse histórico. Eu acho isso tão apelativo porque coloca todo
mundo que foi preso como herói. Tem a coisa do processo de heroicização.
[Jornal da Cidade]: Como foi?
[Jomard M. de Britto]: É o seguinte: tinha um homem aí, forte, que avisou a Hélder
Câmara que a equipe de Paulo Freire ia ser presa. A gente foi avisado que ia ser preso.
Então quem tivesse problema, muita paranoia, fugisse ou se escondesse por algum
tempo. Ficamos esperando. Eu ia dar aula na Escola de Belas Artes e avisava toda vez
quando saía que, se não chegasse em tal hora, é porque tinham me pegado. Foram me
pegar em casa mesmo, aqui pertinho, na Gervásio Pires. A gente foi preso em
setembro. Os grandes exponenciais da época já tinham sido presos. Então não tinha
ninguém mais a prender. Então pegaram a equipe de Paulo Freire. Eu estava
angustiado porque tinha um camarada chamado Romeu Padilha que tinha entrado no
SEC (Serviço de Extensão Cultural) em um curso preparado por mim. Ele tinha sido
preso e eu não tinha. Era meu vizinho. Eu já estava me considerando um dedo duro.
Uma pessoa que estava comprometida. Me levaram em uma cela em que estava
Romeu e ele falou: “Oi, Jomard”. Ele pensou que eu ia visita-lo. Eu disse: “Não, eu
vim para ficar”. Era assim, chegava um e o outro saía.133

Logo, passamos a imagem de promissor a indesejado, afinal, não foi só a prisão que se
configura como violência do regime ditatorial ao nosso personagem. A própria angústia da
prisão anunciada, relatada acima, o medo de sair para trabalhar e não voltar, depois tal angústia
se transforma em medo de ser considerado um delator, pois segundo o próprio, outras figuras
próximas a ele foram detidas e o próprio continuara em liberdade, uma liberdade condicionada
pela violência simbólica. A figura do “delator” é interessante, pois nos explica como uma
posição divergente, se transforma em embate e amargor, especialmente, sobre a figura de

132
NAPOLITANO, 2014, p. 100.
133
LEITÃO, 1981a. In: COHN, 2013, p. 94, grifo nosso.
2

Gilberto Freyre e para isso, podemos entrecortar um trecho escrito por Jomard M. de Britto, na
coletânea Interpenetrações do Brasil: Encontros e Desencontros:

Na década dos 60 do século passado, os então jovens intelectuais – que se


traumatizaram com o adesismo de GF (Gilberto Frdeyre) ao Golpe Militar de
1964 –, não se motivaram para ler as 6 Conferências Em busca de um Leitor (Livraria
José Olympio Ed., RJ, 1965). Por raiva ou ingenuidade? Por causa da boêmia corajosa
das “canções de protesto” ou pelos vexames do Inquérito Policial Militar que cerceou
a todos os pioneiros da equipe de Paulo Freire de Educação de Adultos? Os perigos
da “alfabetização conscientizadora” rebrilhando nas “estrelas vermelhas”? Só
nos restavam as imagens fulgurantes de Visconti, Godard, Antonioni, Glauber, Nelson
Pereira de todos os santos e demônios.”
“Se esses rebeldes intelectuais, tão revigorados pelo “realismo crítico” do Cinema
Novo no Brasil, tivessem lido essas 6 Conferências (tão pirandellianas...) não se
surpreenderiam tanto ou quanto. Ou melhor: teriam compreendido o poder dos outros
intelectuais, modernistas e a seu modo tradicionalistas.
Tempos mortos? Tempos perdidos reencontrados. Esses rebeldes
professores/intelectuais aliviariam, incertamente, o trauma dos interrogatórios,
permutando ou reconfigurando a comédia oficial dos intelectuários salvadores
da pátria [...]. Para isso, bastaria lermos e relermos, sadomasoquistamente, o texto
Nação e Exército que se inicia com a exortação:
– Novamente velho estudante de Sociologia é chamado a estaa escola de altos estudos
militares. E na verdade são maiores do que parecem as afinidades entre os dois:
sociólogo e soldado. (p. 65).
Sem conter o riso do grotesco diante da significativa nota ao pé da página:
– Conferência proferida na Escola do Estado-Maior do Exército, a convite do seu
Comandante General Tristão de Alencar Araripe, no dia 30 de novembro de 1948.
O que acrescentar diante de tão firme esclarecimento? Bater continência para
nosso soldado-sociológo GF e nos envergonharmos, um pouco, de nossa condição
humana.134

O trecho acima, exalta em síntese, o processo descrito por Napolitano, 135 como a
primeira fase do processo repressivo, marcadamente centrado no que seria a blindagem do
regime, antes os perigos, do que Jomard Muniz de Britto chamou acima de “estrelas
vermelhas”. Mas podemos ainda notar a partir da citação acima, que a figura do “delator”
destacada anteriormente, pelo medo exaltado pelo próprio Jomard M. de Britto, de ser visto
com um destes, não se passa apenas na instância de sujeitos desconhecidos, ou anônimos,
haveria, o adeísmo de figuras de renome ao sistema golpista, como no caso em questão a de
Gilberto Freyre, que seria na imagem construída por Jomard Muniz de Britto, um grande trunfo
e apoiador do regime no âmbito institucional, ou seja, ante o ideal de “sanear as universidades”,
romper os elos institucionais que amparavam os movimentos de mobilização e elo entre as
classes populares e uma “cultura de esquerda”.

134
BRITTO, Jomard Muniz de. Crueldades e Confraternizações: Breve Ensaio de Psicanálise Selvagem. In:
Dantas, Elisalva Madruga; ______. (org.). Interpenetrações do Brasil: Encontros e Desencontros. João Pessoa:
Editora Universitária UFPB, 2002b, p. 197-198, grifo nosso.
135
NAPOLITANO, 2014, p. 100.
2

Todavia, se convidarmos a historiadora, Marylu Alves de Oliveira para o debate,136


podemos ir um pouco mais fundo ante a nossa compreensão acerca do sistema de repressão
instaurado. Com esta, podemos perceber que os instrumentos de tortura, as prisões e
perseguições, instauram não só uma repressão no campo prático em si, mas também no
imaginário, no simbólico, como no caso do medo contínuo de ser preso ou difamado, de Jomard
M. de Britto. Desse modo, ao passo que o regime golpista se utilizava e divulgava/espalhava, o
discurso de uma repressão agressiva a tais “perigos da nação”, o medo também é mobilizado
enquanto agente de repressão.
Assim, estar ligado, ou ser denunciado e preso como comunista, subversivo ou
semelhante, significava uma “marca” malquista/mal-dita, na sociedade, o sujeito “marcado”,
torna-se alvo e exemplo na sociedade do que deveria ser evitado, afastado, jubilado. Logo, não
diminuindo ou esquecendo a máquina de tortura prática instaurada, podemos enxergar que para
além das 3 fases mobilizadas, pensadas por Napolitano e situadas no início deste capítulo,137
temos ainda um universo de práticas de cerceamento da liberdade de expressão, que permeiam
as relações sociais e são reforçadas ou mobilizadas pelos discursos e práticas do regime em
voga.
Todavia, mesmo diante de tal “máquina de repressão simbólica e prática”, os sujeitos
resistem, existem e temos na figura do Jomard Muniz de Britto um exemplo de tal margem de
resistência. Aqui cabe ainda não esquecermos, que para além da sua prisão, que perdura cerca
de 20 dias, o mesmo ainda é afastado, aposentado compulsoriamente, das atividades ligadas ao
Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade do Recife, o que nos introduz em certa
medida as motivações de Jomard M. de Britto, de procurar espaço em João Pessoa, na qual
leciona na Universidade Federal da Paraíba, até 1968, quando instituído o AI-5, recebe o
comunidade da impossibilidade de voltar a lecionar na cidade.138
Mediante a compreensão de tais cerceamentos práticos e dos interditos e violências que
se passam no campo simbólico é que podemos observar o processo de heroicização, de
construção de uma imagem do Jomard Muniz de Britto, enquanto um militante contra o regime
golpista em vigor, imagem esta que atravessa a sua biografia produzida por Fabiana Moraes e
Aristides Oliveira,139 como também é tema de diversas entrevistas com o mesmo. Imagem esta,
que será ainda mais reforçada, com a publicação de dois manifestos, que podem ser

136
OLIVEIRA, Marylu. Esteja preso, comunista! breves considerações sobre práticas anticomunistas no pós-golpe
civil-militar de 1964 no Piauí. Crítica Histórica. Alagoas, n° 10, p 109-132, dezembro, 2014.
137
NAPOLITANO, 2014, p. 100.
138
LEITÃO, 1981a. In: COHN, 2013, p. 96.
139
MORAES; OLIVEIRA, 2017.
2

considerados como o ponto de maior expressão, ou mobilização de forças prós e contra o


mesmo, o que será tema do nosso segundo momento da trajetória do nosso personagem.

2.2. De professor a tropicalista: Jomard Muniz de Britto agita o feudalismo cultural

Afastado do ofício prático de professor, Jomard M. de Britto se volta de maneira efetiva


ao campo do debate cultural, que já vinha sendo gestado antes mesmo do afastamento da
Universidade Federal da Paraíba, em 1969.140 De modo que em 20 de abril de 1968, publica
seu primeiro manifesto, intitulado: Porque somos e não somos tropicalistas e assinado também
por Celso Marconi e Aristides Guimarães, no Jornal do Commercio, em Recife.141 Quanto a
este, Jomard M. de Britto, em entrevista a Vladimir Carvalho, para o Jornal Diário de Notícias,
em 1969, comenta:

O nosso movimento -continuou Jomard – partiu da necessidade que os artistas


nordestinos mais jovens e atuantes sentiram de acusar a atitude feudal,
reacionária e fechada de elementos ligados a um passadismo subdesenvolvido e
folclórico, e visa pôr em xeque os problemas mais evidentes da cultura brasileira e
nordestina, enfocando-os dentro de novas perspectivas, sob a luz da teoria da
comunicação e dos experimentos de vanguarda. Tentamos, assim, escapar daquela
velha mentalidade cartão-postal, que faz da cultura uma mera curiosidade para
turistas, impondo uma dinâmica cultural como sinônimo de militância, instaurando
novos processos criativos e dando respostas presentes a problemas presentes.142

Nosso sujeito de análise, neste fragmento refere-se ou coloca o movimento iniciado com
o manifesto de abril de 1968, como uma resposta à cultura de “cartão-postal”, como o mesmo
nomeia acima, enquanto expressão de uma identidade inventada para o Nordeste, como bem
pensa Durval Muniz de Albuquerque Júnior,143 a partir de um conjunto de experiências movidas
por folcloristas e intelectuais, que ganham corpo a partir da publicação do livro O Nordeste, em
1925, por Gilberto Freyre e da organização do Primeiro Congresso Regionalista do Nordeste,
no dia 07 de fevereiro de 1926.144

140
Em 1969, Jomard Muniz de Britto, recebe uma comunicação sumária: “Por ordem do comandante da região
vossa senhoria está impedido de exercer suas atividades como professor na Universidade da Paraíba”, atual,
Universidade Federal da Paraíba. Entretanto, o mesmo continua recebendo seus vencimentos referentes a sua
atividade na universidade até 1973, quando a instituição deixa de depositar os mesmos e Jomard Muniz de
Britto, entra com processo contra a universidade. LEITÃO, 1981a. In: COHN, 2013, p. 96.
141
Os manifestos chegam até nós por dois meios, primeiramente, republicados em sua íntegra pelo próprio Jomard
Muniz de Britto, como parte da obra Bordel Brasilírico Bordel, em 1992 e por meio da coletânea organizada
por Sérgio Cohn, em 2013, que também mantém o texto original publicado em 1968.
142
CARVALHO, 1969. In: COHN, 2013, p. 39, grifo nosso.
143
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011.
144
FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e na primeira mocidade
do autor (1918-1926). Organização José Antônio Gonsalves de Mello; prefácio Nilo Pereira; apresentação
Geneton Moraes Neto. São Paulo: Global, 2016, p. 595.
2

Segundo o autor Nilo Pereira, que elabora o prefácio da coletânea, intitulada Tempo de
Aprendiz, que reuni os artigos publicados por Freyre entre 1918-1926, no Jornal Diário de
Pernambuco, afirma, em relação ao livro:

[...], adolescente e jovem já inserido nos problemas do mundo, sentindo toda a


vibração que as novas legendas do século traziam, organiza Gilberto Freyre a edição
especial da comemoração do centenário do Diário de Pernambuco em 1925, dando
ao livro que então imaginou uma estrutura regional que se exprime no próprio título:
Livro do Nordeste. [...]. O Livro do Nordeste é a expressão de uma mentalidade nova
que Gilberto Freyre trazia para o jornalismo, para as letras, para o pensamento
brasileiros. Os ensaios publicados nessa histórica edição são ainda hoje a prova de que
o orientador de tão importante celebração se voltava para uma visão pluralista do
Nordeste, despertando estudiosos, pesquisadores, críticos, historiadores, cientistas
sociais, jornalistas, cronistas, para a compreensão geral de uma problemática que
começava a ser entendida de modo diferente.
O Nordeste não era apenas a região euclidianamente trágica. Oferecia uma gama de
conhecimentos, investigações, prospecções capazes de mudar a face das antigas
concepções dramaticamente irreversíveis. [...].145

Nilo Pereira, destaca em sua fala um livro que para sua época, vinha encabeçar um novo
movimento, o movimento regionalista do Nordeste, um espaço que com Freyre, pluralizaria sua
identidade, ou, como levanta o próprio Durval Muniz de Albuquerque Júnior,146 seria
conformada, seria feito “o cartão-postal” mencionado por Jomard M. de Britto. Assim, podemos
observar o destaque que Nilo Pereira dá a Freyre enquanto um sujeito que mudaria a imagem
do espaço, transformaria o que seria uma identidade indesejada, destacada no trecho
“euclidianamente trágica”, em prol de uma exaltação plural e moderna, a moda de Freyre. Nilo
Pereira, continua sua discussão de modo que chega em uma espécie de romantização, ou
heroicização, de Gilberto Freyre, a uma comparação entre o Congresso Regionalista de 1926,
organizado por Freyre e a Semana de Arte Moderna de 1922, na qual, sob suas próprias
palavras:

O Congresso reunia três temas fundamentais: o regionalismo, o tradicionalismo, o


modernismo. Se muito me atrevo na especulação do assunto, que ainda não encontrou
o seu exegeta mais profundo, direi que o modernismo saído do Recife – o modernismo
de Gilberto Freyre – teve maior amplitude do que a Semana de Arte Moderna de São
Paulo.147

O que podemos retirar da escrita de Nilo Pereira? A princípio, não nos cabe entrar na
condição meritória, se esse ou aquele movimento teve maior amplitude ou significação, o que
nos interessa é que o mesmo exalta um incômodo, ou revela, confirma os argumentos de Durval
Muniz de Albuquerque Júnior, quanto este pensa a invenção do “cartão-postal” nordestino,

145
FREYRE, 2016, p. 25.
146
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011.
147
FREYRE, op. cit., p. 26.
2

marcada pela inconformidade e saudosismo de uma elite intelectual advinda de uma economia
senhorial, colonial, que agora via seu prestígio, espaço e influência, remanejados para o centro
sudeste do país e seu próprio espaço, transformado por ideias modernas. Mas se já não podiam
disputar economicamente com São Paulo, por exemplo, os intelectuais agora nordestinos,
lançam-se ao embate cultural, a pensar onde estariam e quais seriam as “raízes da cultura
brasileira”, a lembrar Sérgio Buarque de Holanda.148
O prefácio escrito torna-se ainda mais significativo a nossa discussão, ao passo que
observamos que o mesmo é produzido em 25 de fevereiro de 1978, na própria Recife, ou seja,
nosso ato de escrita heroica ou romântica é produzida pós adeísmo de Freyre aos ideais do
regime golpista em voga, como levanta Jomard M. de Britto, anteriormente e pós inclusive,
manifestos e diversos movimentos que procuram alargar as possibilidades do que seria a
“cultura popular nordestina”. Assim podemos entender melhor trechos do manifesto de abril de
1968, quando os primeiros pontos do mesmo são os seguintes:

1. Constatamos (sem novidade) o marasmo cultural da província. (Por que insistimos


em viver há dez anos da Guanabara e há um século de Londres? Por fidelidade
Regionalista? Por defesa e amor às nossas tradições?)
2. Recusamos o “comprometimento” com nossos “antigos professores”. (Porque eles
continuam mais “antigos” do que nunca: do alto da sua benevolência, de sua vaidade,
de sua irritação, de seu histrionismo, de menopausa intelectual).149

Com tal manifesto, vemos a passagem de um Jomard M. de Britto, de um sujeito que


comentava sobre músicas, como artigo sobre o novo disco de Caetano Veloso, publicado no
Jornal do Commercio em finais da década de 1960, para um dos expoentes que introduziria um
novo Tropicalismo, uma nova forma de ver a palavra/conceito/movimento, que agora fugiria
ao modus da tropicologia freyriana. Nova definição que abre o segundo manifesto, chamado de
Inventário do nosso Feudalismo Cultural e publicado ainda no mesmo ano de 1968, junto da
apresentação de um novo sujeito, o “Tropicanalha”:

1) O ALGO MAIS QUE OS SIMPLES RÓTULOS NÃO DIZEM


O que é tropicalismo: posição de radicalidade crítica e criadora da realidade
brasileira hoje; vanguarda cultural como sinônimo de militância, da instauração de
novos processos criativos, da utilização da “cultura de massa” (rádio, tv, etc.) com a
finalidade de desmascarar e ultrapassar o subdesenvolvimento através da explosão de
suas contradições mais agudas; “ver” com olhos “livres”.
O que é tropicanalha: atitude conservadora e purista em face da cultura e da realidade
brasileira hoje; retaguarda cultural significando alheamento, de tentar dar respostas
passadas aos problemas, revelando o passadismo através da nostalgia, do donzelismo,
do pitoresco, do cartão postal, da carência de informação, contribuindo assim para
uma perpetuação do subdesenvolvimento; enxergar com viseiras e preconceitos.

148
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936.
149
BRITTO, 1992, p. 79.
2

Além e aquém dessas proposições podem existir muitas outras. 150

Se o primeiro manifesto ensaia uma adesão ao movimento tropicalista, o segundo


carrega tom imperativo, definindo posições, se o primeiro abre ao embate público contra o
regionalismo, os seus antigos professores, o segundo alarga sua margem de ação/assalto. O
segundo manifesto mostra-se mais amplo, pensando não só a província recifense, ou a região
nordeste, mas a própria terra brasilis, o próprio cenário nacional, angariando também muito
mais assinantes, dentre eles, aqueles que seriam vistos como os grandes nomes do movimento,
Caetano Veloso e Gilberto Gil, apresentando assim uma oposição/posição muito mais
consciente e radical em função do que seria uma atualização cultural, uma abertura às novas
linguagens e estéticas do mundo moderno. Assim conforma-se ou gesta-se o que viria a se
chamar pela alcunha de Pernambucália, como expressão do movimento capitaneado pelos
recifenses.151
Como é de esperar, tanto “seus antigos professores”, como de maneira geral, a sociedade
recifense é “agitada” pelos manifestos, principalmente, pelo segundo manifesto, muito em
função também do próprio renome dos novos assinantes. Um episódio torna-se frequentemente
comentado, quando se fala, na reação aos manifestos, o episódio envolve especialmente o ex-
professor de estética de Jomard Muniz de Britto, Ariano Suassuna e Celso Marconi, que assina
junto a nosso personagem os dois manifestos, o caso ganha as páginas de Jornais importantes
da cidade, como o próprio Diário de Pernambuco, que em nota intitulada Azar Tropicalista,
datada de 09 de junho de 1968, relata o caso e comenta sobre a repercussão do movimento:

Acontece que os adeptos do chamado movimento tropicalista pararam um momento


para refletir. No Recife, diante do Teatro Popular do Nordeste, um dos chefes do
movimento, Celso Marconi, pêso pluma, teve que enfrentar a fúria de um escritor mal
visto pela nova-onda, E recebeu dois murros: “este é para você e este outro é para o
Jomard”. Antes de pensar em reagir, o líder estava agarrado pela turma do-deixa-
disso. Ja na Paraíba, o Jomard quase se envolvia em bruto sururu, ao participar de
debates sobre o movimento, no Colégio Estadual. Houve gritos, correrias, ovos
podres.
Agora, certos adeptos do tropicalismo dizem que os líderes estão “assuntando” os
novos rumos a seguir. Entraram de peito aberto na campanha, confiados apenas no
pode das idéias. Mas houve resistências, e que resistências!...
Agora, indecisos, os tropicalistas consideram seriamente a necessidade de aprender
jiu-jitsu e caretê, para aprimorar o seu poder de persuasão.152

150
BRITTO, 1992, p. 81, grifo nosso.
151
O movimento conhecido como Pernambucália, encontra-se registrado também no livro Alegria, alegria, de
Caetano Veloso, como também nos livros do próprio Jomard Muniz de Britto, tais como Escrevivendo (1973),
Terceira Aquarela do Brasil (1982), Bordel Brasilírico Bordel (1992), Atentados Poéticos (2002), entre outras
possibilidades que possam escapar ao registro da nossa análise.
152
AZAR TROPICALISTA, Diário de Pernambuco, Recife, 09 de jun. de 1968, p. 03.
2

Com certo tom humorístico e apoio aos tropicalistas, o jornal mais antigo das Américas
comenta sobre dois socos de “um escritor mal visto pela nova-onda” e o caso de uma agitação
envolvendo uma palestra de Jomard Muniz de Britto na Paraíba, que agora pensam “seriamente
a necessidade de aprender jiu-jitsu e caretê, para aprimorar o seu poder de persuasão”. O caso
dos socos também é comentado por Jomard Muniz de Britto, em entrevista em 1981, o que nos
confirma a própria identidade do dado “escritor mal visto”:

[Jornal da Cidade]: Esse foi o que gerou a polêmica aqui. Que irritou muito as
áreas oficiais. Inclusive foi esse segundo manifesto que provocou aquele artigo de
Ariano, que deu a polêmica?
[Jomard M. de Britto]: Olha, nenhum manifesto tropicalista atingiu Ariano. Vocês
não sabem não da história? Haja rum para memorialismo. [...].
[Jornal da Cidade]: Vamos voltar ao Ariano?
[Jomard M. de Britto]: Bom, que podia dar uma entrevista completa sobre isso era
o Celso Marconi, mas eu acho que posso reproduzir com fidelidade. [...]. Quando um
cineasta chamado George Jonas anunciou que ia fazer um filme chamado O auto da
Compadecida, baseado na peça do Ariano, Celso começou a colocar umas notas no
jornal perguntando por que Ariano permitia que uma pessoa que não era identificada
com a cultura pernambucana, com a obra dele, filmasse a obra dele. [...]. Ariano não
gostou. E nas primeiras vezes que se encontrou com ele disse: “Mas rapaz, que
negócio é esse?” Celso continuou botando umas notinhas e Ariano mostrou realmente
que não estava satisfeito com aquilo. [...]. Ariano escreveu um artigo no jornal de uma
maneira muito violenta contra Celso Marconi em termos até de humilhação. Dizendo
que Celso Marconi tinha passado com ele por generosidade, porque ele era um
professor complacente. Então o primeiro manifesto tem algumas tacadinhas contra os
antigos professores. Mostrando o gagaísmo dos antigos professores. Não é exatamente
esta a palavra. Então Araino tomou a carapuça para ele e continuo escrevendo contra
Celso. Então eu fiz dez perguntas ao professor de bestética. [...]. Então a gente
publicou isso na coluna de Celso. Ariano nunca respondeu a esse artigo meu. E
Ronaldo Gomes disse que a resposta de Ariano foi o murro que ele deu em Celso. Eu
acho que isso deveria sair em uma entrevista com Celso.153

Conforme é possível observar no fragmento de entrevista, Jomard nega uma destinação


inicial dos manifestos a figura de seu antigo professor, Ariano Suassuna, afirmando que fora
através de notas Celso Marconi que o embate iniciara com tal figura. Quanto a este caso, não
podemos afirmar as intenções ou destinações iniciais do nosso personagem, quanto a publicação
dos manifestos, mas fica claro, que após o caso da agressão a Celso Marconi, a resposta viria,
não enquanto o aprendizado de “jiu-jitsu e caretê”, citado pelo Diário de Pernambuco, mas
anos depois, na forma de uma produção audiovisual, em formato de super-8, intitulada O
Palhaço Degolado,154 realizado em parceria com o cineasta Carlos Cordeiro, que será pauta do
nosso debate do nosso terceiro momento acerca da trajetória cultural de Jomard Muniz de
Britto.

153
LEITÃO, 1981a. In: COHN, 2013, p. 100-104, grifo nosso.
154
O PALHAÇO DEGOLADO, 1977.
2

2.3. Escreviver com a câmera: O Palhaço Degolado e a resposta “definitiva ao debate


cultural”

Em função dos manifestos publicados em 1968, Jomard Muniz de Britto, passa a ser
publicamente reconhecido, o que para além dos casos de resistência a suas ideias, como visto
anteriormente, também lhe acenderam a possibilidade de fala, a um espaço na mídia e uma
procura por entrevistas e participações em eventos. O que nos leva a um crescimento
exponencial no número de entrevistas concedidas por Jomard Muniz de Britto pós-manifestos,
mas sua imagem ainda ganharia mais fôlego nos noticiários com a sua atuação agora em outro
campo, o filmaker ganha espaço e voz. O Palhaço Degolado,155 não fora seu primeiro filme em
Super-8, mas a produção notabiliza-se tanto pelo embate e crítica cultural, como pela
criatividade e inúmeras mensagens intrínsecas que carrega.156
A obra tem como ator principal o próprio Jomard Muniz de Britto, que se veste de
palhaço e tem como cenário principal a Casa da Cultura do Recife. A crítica e mensagens do
filme são produzidas pela performance do palhaço que percorre, saltita e ao final se autodegola,
em diálogo com a narração do nosso próprio personagem. Para nossa análise, recorremos a
observação das cenas através do próprio roteiro do filme, presente no livro Atentados Poéticos,
de autoria do próprio Jomard M. de Britto e publicado em 2002,157 na qual podemos destacar
os embates a figuras como Gilberto Freyre, que abre o filme:

Primeira cena:
Mestre Gilberto Freyre!
Muito bem situado nos trópicos.
Casa-Grande, alpendres, terraços,
quarto-e-sala, senzala!
Senzala?
Mestre Gilberto Freyre! Senzala?
Casa-Grande de detenção da cultura.
Muito bem situada nos trópicos,
Tristes trópicos...
Segunda Cena:
Democracia racial, a seu modo
Morenidade, brasilidade, a seu modo
Luso-tropicologia, a seu modo
Regionalismo ao mesmo tempo modernista
& tradicionalista, a seu modo
Relações entre política e tecnocracia, a seu modo
Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais,
pesquisas sociais, a seu modo.

155
O PALHAÇO DEGOLADO, 1977.
156
Tantas relações, possibilidades e repercussões que a película ganharia não só prêmios em mostras de cinema,
mas também um livro dedicado a si mesma e seu autor, claro, sendo esta a produção de Aristides Oliveira,
nomeada: Jomard Muniz de Britto e O Palhaço Degolado, publicada em 2016. O mesmo ganha análise especial
também na obra Visionários de um Brasil profundo, de autoria de Fábio Leonardo Castelo Branco Brito,
publicada em 2018, que podem ser consultadas para aprofundamento das discussões e análises sobre a obra.
157
BRITTO, 2002a.
2

Anarquismo construtivo, a seu modo


Não é, Glauber Rocha?
Democracia relativíssima, a seu modo.
[...].158

Com o filme em questão, vemos a retomada ao ataque a figura que Jomard chega a
chamar de “Wagner nos Trópicos”,159 em referência ao Navio Fantasma e o mito do Holandês
voador, encontraríamos em Recife o mito freyriano, o mito regional, tudo “a seu modo”. Jomard
Muniz de Britto, chega a comparar a cidades de Joao Pessoa e Recife, em função do espaço
simbólico ocupado por Freyre no cenário cultural das mesmas, em entrevista ao jornal A União,
em 1981:
A coisa é muito complicada. Eu não estou querendo fazer apologia aqui,
dizendo que Recife é metrópole e João Pessoa é província. Agora, vamos dizer
assim, há mais espaços e mais atividades lá. Cada um tem sua experiência. Por
exemplo, Pedro Osmar, transando junto à Fundação Joaquim Nabuco o show
dele lá em Recife que vai ser em janeiro, disse que era bom que houvesse na
Paraíba alguma coisa como a Fundação Joaquim Nabuco. Mas ele não está
sabendo das coisas sórdidas que há na Fundação Joaquim Nabuco. Aqui você
encontra, por exemplo, no jornalismo, um espaço que pode ser mais ocupado
por pessoas jovens. Em síntese, em Recife está tudo girando em torno do
Gilberto Freyre. Está tudo identificado com a figura dele. É metrópole, há
uma projeção nacional, mas há uma coisa também muito dominada pela
oligarquia. Pelos patriarcas da cultura o que eu não sinto muito aqui em João
Pessoa. (COHN, 2013, p. 72, grifo nosso).160

Logo, percebemos o espaço, o tamanho do mito freyriano e o porquê de tantas produções


do nosso personagem se voltarem ao “mestre de Apicucos”, seja no campo audiovisual com o
filme em questão, seja, em relação aos manifestos tropicalistas, ainda em 1968, seja a posteriori,
quando do acontecimento do centenário do mesmo, quando é lançado a coletânea
Interpenetrações do Brasil,161 já citada quanto ao remorso pelo adeísmo de Freyre a Ditadura
Civil-militar. Assim, Jomard Muniz de Britto, revela também um pouco da sua aproximação
com a cidade de João Pessoa, para além das motivacionais profissionais, ao passo que
encontraria um lugar de menor domínio dos “brasões senhoriais”, um espaço de maior liberdade
para a vivência cultural.
Outra figura que ganha destaque no filme é a figura de Ariano Suassuna, o mestre
armorial, que como vimos no tópico anterior, passa a gestar uma relação conturbada com o
nosso sujeito, quanto a este, podemos destacar o que seria a quinta cena do filme:

158
BRITTO, 2002a, p. 167.
159
BRITTO, 2002b, p. 184.
160
ALMEIDA, Agnaldo; et al. “Arte não tem missão redentora”. A União. 1981b. In: COHN, Sérgio (org.).
Jomard Muniz de Britto. Apresentação Paulo Marcondes Ferreira Soares. Rio de Janeiro: Beco do Azougue,
2013, p. 72, grifo nosso.
161
BRITTO, 2002b.
2

Quinta cena:
Mestre Ariano Suassuna
Mestre Ariano
Mestre Armorial!
- “Como é dura a vida do colegial
começar o ano com lápis de classe
assinalando os brasões e
suas armas armoriais...”
E TUDO, pela força dos brasões familiares
e dos poderes oficiais,
TUDO pode transformar-se em armorial...
Céus armoriais
Astrologia armorial
Literatura de cordel armorial
Gravadores armoriais
Povo, povo, povo armorial
Sexologia armorial
Subvenções armoriais
Sobrados & Mocambos, quem diria, armoriais
Megalomania armorial
Piruetas armoriais
Dança armorial:
como é mesmo profa. Flávia Barros,
a reverência armorial?
(Quem sabe é a Maria Paula?)
Herálditas e Ministérios armoriais
Onça armorial
O príncipe dos príncipes, Estética, Metafísica...
Capibaribe armorial, Capiberibe armorial.
Orquestra armorial, não!
Orquestra romançal!162

O movimento armorial, citado no filme é pensado por Ariano Suassuna e surge na época,
como expressão de criação do que seria uma arte erudita, através do que seria a “cultura popular
nordestina”. As críticas de Jomard Muniz de Britto, incidem neste ponto, na adoção do
regionalismo freyriano, de uma cultura “cartão-postal”, como expressão de tal movimento, que
poderia englobar múltiplos ramos artísticos, indo desde a música e o teatro à literatura, artes
plásticas e o próprio cinema, o que justifica a expressão no filme de que “tudo poderia
transformar-se em armorial”, tudo que fosse expressão, no olhar de Ariano Suassuna, parte da
cultura popular nordestina. Quanto a tal menção direta feita no filme, Jomard M. de Britto,
comenta ainda na entrevista citada anteriormente, concedida ao Jornal da Cidade, em 1981, na
qual enxerga a produção enquanto uma resposta:

Foi na medida. Ele saiu na medida. Eu acho que um amadurecimento disso, uma
reflexão disso é o filme O palhaço degolado, que é justamente o ajuste de contas da
coisa, que começou com o tropicalismo e O palhaço degolado fecha. Não me interessa
atualmente esta polêmica mais. Por uma questão de ética eu não gostaria de passar O

162
BRITTO, 2002a, p. 169-170, grifo nosso.
2

palhaço degolado na Universidade porque Ariano é meu colega de departamento. [...].


E também porque O palhaço degolado já deu seu recado. E agora?163

Jomard neste trecho nos confirma o tom de resposta pensado para o filme, resposta esta
que começaria pelo próprio título do filme, que segundo Almílcar Almeida Bezerra, seria
referência ao “Rei degolado” na novela Pedra do Reino, de Ariano Suassuna. Para além de uma
“resposta final”, ao embate junto a Ariano Suassuna, o que podemos compreender até aqui é
que nosso personagem se conforma, ao longo das décadas de 1960 e 1970, enquanto um sujeito
situado a margem de uma cultura oficial, ou cartão-postal, como ele bem chama.164 De modo
que ao longo de sua trajetória nosso personagem passa em função de suas produções e atuações,
a angariar cada vez mais espaço e visibilidade, ao passo que observamos também o cenário
cultural que o mesmo se insere. Espaço este, que como vemos na obra O Palhaço Degolado,165
teria dois grandes cânones ou “fantasmas culturais”, que estariam sempre regendo, atravessando
os sujeitos, delimitando “a seu modo” o que seria a identidade e cultura do povo nordestino.
Diante do exposto, é possível perceber a recorrente inserção cultural de Jomard Muniz
de Britto no cenário cultural e intelectual pernambucano. Visto que suas relações passaram
desde os ramos mais tradicionais dos circuitos locais até a intelligemsia de esquerda, a figura
do poeta, professor e filmaker pernambucano atravessaria um conjunto cada vez mais amplo de
temas e possibilidades de interpretação. Uma delas, para além dos debates culturais – questão
bastante discutida no cenário aqui estudado – é a dimensão das experiências corporais e relações
de gênero, debate bastante marcante ao longo de sua trajetória como produtor de filmes e
literato. A respeito dos filmes, dedicamos as linhas que seguem no capítulo seguinte.

163
LEITÃO, 1981a. In: COHN, 2013, p. 104.
164
OLIVEIRA, 2016, p. 13.
165
O PALHAÇO DEGOLADO, 1977.
2

3. Artevida Atrevida: o “outro” nas produções em Super-8 de Jomard Muniz de Britto, dos
anos 70

A recusa da existência é ainda uma maneira de existir.


Ninguém conhece, enquanto vivo, a paz do túmulo.
(Simone de Beauvoir, grifo nosso)

A via da revolução não passa somente/através da tomada


de consciência racional, /mas de uma resposta que nasce
do corpo, /como raiva, como loucura,/como imaginação
exasperada,/ de uma consciência de total inevitabilidade da
liberação. / Arte tem que ter ambição. / Romper com a
montagem idealista e chegar na montagem nuclear. /Aí o
discurso fica livre e o cinema cria.
(Jomard Muniz de Brito – Atentados Poéticos, grifo nosso).

Ao atravessarmos o “reino das contextualizações”, como informalmente chamamos o


capítulo anterior, ou seja, ao passo que projetamos um olhar mais focado na trajetória cultural
de Jomard Muniz de Britto, compreendendo seus trâmites, trânsitos, transes e transas por
diversos espaços e perspectivas na terra brasilis. Podemos nos voltar efetivamente a discussão
almejada no nosso estudo, sendo esta, figurada inicialmente em função da sua produção
enquanto filmaker superoitista nos entremeios da Recife da década de 1970. Para tanto,
tomamos nota da existência de 44 filmes vinculados a sua pessoa dentre 1974 à 2005, anos
correspondentes ao primeiro e último filme que tomamos ciência de sua participação.166
Entretanto, haja visto, o tipo e prazo para realização deste trabalho, torna-se inviável a
análise do seu corpus fílmico como um todo. Porém, ao passo que começamos a analisar,
separar, as produções que se dirigem as questões de Corpo, Sexo e Gênero, como também,
entrecortamos um formato específico de produções, no caso os filmes em Super-8, vemos o
número se reduzir significativamente, podendo enfim, delimitarmos a década de 1970 como
espaço de manobra na qual há o maior número de produções que atendem a tais requisitos ou
se mostram profícuos à discussão destes. Restando dessa maneira, pelo menos 12 obras sob as
quais poder-se-iam se relacionarem a tais discussões.167
Aqui, nos deparamos com o que podemos chamar de “escolhas do autor”, ao passo que
reconhecemos, primeiro, que não haveria como produzir um estudo imparcial em si, logo, desde

166
Para consulta acerca de tal filmografia, sugerimos a lista organizada na obra supracitada de Fabiana Moraes e
Aristides Oliveira, 2017, p. 237.
167
Todavia, salvo, possivelmente o acervo físico da Cinemateca Pernambucana, ou do próprio Jomard Muniz de
Britto, muitos destes filmes não são de acesso público em vias digitais, o que com a vigência da Pandemia
Mundial de Covid-19 enfrentada no entretempo desta escrita impossibilita qualquer tentativa de contato mais
direto em busca de mais produções. Dessa maneira, chegamos ao número “bingo”, o dígito final com base em
nossa proposta de estudo de 12 produções, dispostas em sites de busca como o Youtube.com e organizadas em
acervo pessoal.
2

os “primórdios” desta pesquisa, foram feitas e refeitas escolhas, cortes e margens de análise que
respondem diretamente ao modo com a qual pensamos/observamos o que chamamos
anteriormente de “trajetória cultural” do nosso personagem. O que chamamos atenção aqui é
para que os próprios números acima, sendo reduzidos as nossas objetivações, já são em si frutos
de arbitrariedades do autor, o que chegará ao seu ápice, no ponto que selecionamos, em função
das objetivações supracitadas, pelo menos 4 obras, sendo estas Uma experiência didática: o
corpo humano (1974), Vivencial I (1974), Toques (1975) e Folionas ou paixão de carnaval
(1975) que servirão de “fios condutores”, obras que canalizarão nossas reflexões enquanto
espelhos de um corpus de filmes mais amplo.168
Deste modo, o objetivo do presente capítulo se estrutura em um olhar mais focado não
só nas produções fílmicas em si, mas de maneira mais direta nas representações e
performatizações dos corpos em tais obras. Através deste enfoque, pensaremos os diálogos
entre tais produções e o contexto a qual estas se inserem, tanto na trajetória cultural do nosso
personagem, como sua inserção na Recife dos anos 1970. Assim, temos dois grandes nortes de
discussão, a priori, observar os modos com os quais as questões do corpo aparecem nos filmes,
bem como as relações de gênero aparecem em suas fronteiras identitárias em relação ao espaço
da cidade em si. Como também, como tais produções dialogam, se relacionam com a própria
vivência e as condições históricas nas quais Jomard Muniz de Britto se encontra inserido.

3.1. (Contra)dições do corpo humano: uma experiência vivencial-didática

Na tentativa de responder as acepções listadas para análise neste recorte, podemos nos
lançarmos no ato de rememorar um certo ponto da nossa introdução, afim que os interstícios
presentes na linha de argumentação deste trabalho sejam preenchidos. Dito de outra maneira,
cabe lembrarmos da passagem na qual destaca-se um fragmento autobiográfico de João Silvério
Trevisan – escritor, professor e um dos editores do jornal homossexual Lampião da Esquina –
em que Jomard Muniz de Britto toma o protagonismo em suas memórias, destacando-se o
episódio onde o mesmo responde a intimação: “você é homossexual?”:

Foi em 1982, um dos anos mais difíceis da minha vida. [...] Para variar estava
completamente sem grana. Jomard e Antônio Cadengue generosamente me
arranjaram um emprego, incluindo-me num projeto deles. Assim, fomos os

168
A escolha por se trabalhar com obras específicas, enquanto representantes de um todo, não parte de um
entendimento abrupto, ou singular, esta metodologia de análise, encontra-se margem no próprio campo
cinematográfico, onde se destacam obras como a de Jacques Aumont e Michel Marie, A Análise do Filme.
Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2010, como também, de maneira mais próxima a nós, as próprias obras já
citadas de Fábio Brito (2018) e Aristides Oliveira (2016), que fazem uso de exercício semelhante em suas
análises sobre as obras do nosso personagem.
2

três a uma cidadezinha no interior dar um curso de treinamento para rapazes


de uma faculdade de Agronomia, por vários dias de trabalho nem sempre
agradável. No encerramento do curso, nós nos dispusemos a fazer uma sessão
tira-dúvidas. Tudo corria bem até que um gaiato levantou-se e, dirigindo-se a
nós três indiscriminadamente, fez uma pergunta que tinha o som de uma
acusação: “Vocês são homossexuais?” Olhei para a cara de Cadengue, que
olhou para a cara de Jomard, ambos sem saber responder à evidente
provocação. O máximo de jogo de cintura a que eu poderia chegar remeteria
à pergunta retrucada por Truman Capote, numa situação semelhante: “Isto é
uma cantada?” Mas não ousei, já que conhecia mal aquele terreno de rapazes
machões acostumados a meter a mão em xoxota de vaca. De modo que
olhávamos ambos aflitos para Jomard que se manteve por alguns segundos
com aquele seu enigmático sorriso no rosto. Instantes depois, presenciei uma
das cenas pedagogicamente mais provocadoras de toda minha vida. Jomard
Muniz de Britto levantou-se, dirigiu-se para o público e pôs-se a percorrer
todo o auditório, devolvendo a pergunta. Corria para um lado, parava diante
de um estudante, indiscriminadamente e perguntava com o dedo apontado
para seu rosto: “Você é homossexual?” A seguir, corria até outro, repetia o
gesto e a pergunta: “Você é homossexual?” Ele simplesmente colocou um
espelho diante do rosto de cada estudante. [...] No final, não foi preciso debate
algum. O que vi, com olhos estatelados de prazer, foi o público começar
lentamente a rir de si mesmo, até explodir em palmas, com o sorriso de quem
diz: “E quem não é?” [...]169

A memória de Trevisan, nos é interessante novamente ao passo que nos fornece uma breve
síntese, da ligação entre o professor e intelectual Jomard Muniz de Britto e as questões acerca de Corpo,
Gênero e Sexualidades. Ou seja, rememoramos tal passagem, pelo fato de compreender a intimação que
transparece ao longo da vida do nosso personagem, acerca da sua própria sexualidade, do seu corpo,
como dirá Foucault,170 de confessar-se à sociedade. Todavia, mais do que a intimação, a resposta
“pedagogicamente provocadora”, como diria Trevisan acima, nos ajuda a compreender como Jomard
M. de Britto, ao “correr de um lado para o outro”, ao incitar, devolver e revolver os sentidos da intimação
sofrida, performatiza e pluraliza as possibilidades do corpo.
Todavia, se o caso antes listado, através das memórias de Trevisan em 1982, exemplifica a
relação entre Jomard M. de Britto e os desígnios de gênero, no campo das próprias produções do nosso
personagem, encontraremos em sua produção superoitista na década anterior material para
aprofundarmos nossa análise, sendo as nossas primeiras “chaves de leitura” as obras: Uma experiência
didática: o corpo humano (1974), Vivencial I (1974). A escolha pela análise de pares de filmes, associa
tanto características de produção em comum – tais quais o fato de ambos serem filmados com apoio de
Carlos Cordeiro, ambos, contarem com o empréstimo dos corpos do grupo de teatro paraibano Vivencial
Diversiones, além de serem produzidos no mesmo ano de 1974 – como mostra-se enquanto uma
estratégia de contemplar-se de maneira mais significativa parte da vasta produção do autor, como
também, compreender-se o papel do corpo e suas potencialidades em tais películas. De maneira mais

169
TREVISAN, 1997.
170
FOUCAULT, 2020.
2

específica, a escolha por manejar uma análise conjunta de tais filmes, compreende, o que entendemos
por uma prática “pedagógica sobre o corpo” nos filmes jomardianos.
Se antes vimos a trajetória cultural ou vivente do nosso personagem, pautada por “fases”
onde destaca-se ora a imagem de professor, ora de cineasta, ora de crítico cultural, no campo
prático não podemos deixar de reconhecer que tal pluralidade encontra-se imersa e misturada
em um único sujeito; Jomard Muniz de Britto, não deixa de ser professor, por produzir filmes,
não deixa de ser filósofo por escrever poesias e assim por diante, logo, de partida, reconhecemos
neste tópico o que seria a margem professor-crítico cultural-filmaker. E para incorrermos em
tal re-conhecimento, cabe a imersão na película: Uma experiência didática: o corpo humano,
de 1974.
Com tal obra, embarcamos em uma experiência singular ante a outras produções do
mesmo, no sentido de que é uma produção onde o espectador é participante ativo desta. O
espectador deixa a margem de passivo e passa a fazer parte da produção, dessa forma, a película
se transforma em uma experiência imersiva:

Figura 01: Provocação escrita em quadro negro.

A obra, com seus cerca de 04:00 minutos de duração, é conduzida em função da


provocação contida no frame acima, onde se lê: “escolha uma parte do seu corpo. Em seguida
escreva tudo que você faz e poderia fazer com ela”. A provocação dá lugar a close-ups de
diversas partes de corpos, ora com traços que indicariam um corpo feminino, ora masculino,
dentro da dualidade tradicional de gênero:
2
2

Figuras 02, 03, 04 e 05: Close-ups de partes do corpo


humano.
O filme prossegue com diferentes partes e corpos em si diferentes, sem música de fundo ou
acompanhamento, sem uma pós-produção que suavize cortes, ou procure retirar perdas de foco. O filme
mostra-se construído com poucos recursos, em síntese, uma câmera, um quadro negro e giz e claro, o
corpo, os corpos que não possuem nome, idade, sexualidade, identidades pré-definidas, apenas o
acompanhamento de possíveis perguntas: por que o espectador teria imaginado uma língua, seios, pés?
O que fazem com essas partes? O que poderiam fazer com elas? Jomard Muniz de Britto, precisa de
apenas 04 minutos para nos fazer pensar e repensar o que autores como Foucault levaram mais de 1000
páginas, em seu famoso tratado sobre a História da Sexualidade para chegar-se ao mesmo intento, o de
possibilitar a visibilização da coerção do corpo, intrínseca a relação fazer e imaginar o que poderia fazer,
como também, oportunizar a emersão de um espaço de liberdade, o corpo na obra não possui amarras,
o corpo é por si mesmo um campo de experimentação.
Ao passo que observamos tal produção, podemos recordarmos para além da obra de Foucault,171
onde destacamos anteriormente a necessidade de “confessar-se” própria dos corpos manejados pela
ideologia do cristianismo, pode-se compreender que nosso personagem põe em debate a própria ideia
de naturalidade dos desígnios de gênero, Jomard M. de Britto, nos propõe pensar o corpo enquanto uma
construção. Todavia, de maneira semelhante, em certo sentido, a leitura de Deleuze para com a trajetória
de vida e pensamento de Espinosa, especialmente no que seria uma “filosofia prática” para este primeiro,
Jomard M. de Britto, procuraria, tal qual Espinosa, em lócus de ação diferentes, fazer de si mesmo um
homem livre – tão livre quanto possível [...], e isso indo até o limite de seus pensamentos, e interligando
todos os elementos uns aos outros.172
E o que nos leva a interligar a leitura deleuziana de Espinosa as produções do nosso
personagem, para além desse desejo, dessa busca por uma “liberdade”, seria a premissa de tomar o corpo

171
FOUCAULT, 2020.
172
DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002, p. 07.
2

enquanto meio e pauta para tal “quebra de correntes”, tomar o “corpo como modelo” para Espinosa,
segundo Deleuze, seria justamente compreender que o mesmo ultrapassa o conhecimento que dele
temos, e assim fazer dele “modelo”, caminho e forma das nossas ações seria essencialmente captar,
entender a potência do corpo para além das condições dadas da nossa consciência, perfazendo assim
uma descoberta do inconsciente, não só do pensamento, mas da própria potência do corpo. A provocação
jomardiana pode ser vista enquanto semelhante ainda no campo filosófica, mas agora voltada a um
clássico das discussões de Gênero e Sexualidade, sendo este os escritos de Judith Butler,173 no
entendimento de que a mesma compreende o corpo enquanto uma “invenção da humanidade”, ou seja,
não seria apenas a premissa de que o gênero, feminino, masculino, são construídos, pois se fazem
enquanto interpretações culturais do elemento natural, que seria o sexo. O que Butler nos aponta seria
que o sexo é em si tão culturalmente construído como o próprio gênero, sendo sua distinção nula, fora
dos processos de individuação estabelecidos.174 Tal debate, suscitaria a organização de uma nova obra
que, dentre outras pautas, nas nas palavras da mesma, se propõe a:

Meu propósito aqui é entender como o que foi excluído ou banido do próprio
domínio de “sexo” – domínio esse garantido por um imperativo heterossexual
– pode de uma só vez ser produzido como um retorno desestabilizador, não
apenas como contestação imaginária que efetua o fracasso no funcionamento
da lei inevitável, mas como rompimento habilitador, a ocasião para rearticular
radicalmente o horizonte simbólico em que alguns corpos começam a importar
[matter] mais do que outros.175

A digressão proposta ao interligar-se a película a textos de cunho filosófico, é justamente


compreender que a mistura, as experimentações, focos, desfoques, closes e long-shots, onde prima-se
pela não conformação de um indivíduo único e específico a priori, trata-se de parte da sua experiência
pedagógica e crítica, na qual a nulidade da relação sexo/gênero se faz presente juntamente com as
práticas autorizadas ou não para os corpos. Assim, chegamos a ideação de que nosso personagem, se
move em um intuito de dois enfoques, um pessoal, onde tal qual Espinosa, buscaria uma liberação, um
espaço de liberdade de seus desejos e práticas, mas também, como se percebe pelo próprio título da
obra, Uma experiência didática, o mesmo se propõe a expor/contrapor o que seriam os limites
tanto simbólicos e discursivos sobre o corpo, o sexo e a própria ideia de gênero.
Ademais, outra relação possível, seria ao recordarmos da própria relação entre Jomard
Muniz de Britto e o patrono da educação brasileira, Paulo Freire, o que legaria ao caso de seu
encarceramento em 1964. A relação nos é salutar, ao passo que recordamos minimamente sobre
o método de alfabetização de Freire, onde a alfabetização era alcançada através do debate, da
sobreposição de perguntes e relações entre palavras e a realidade. Dito de outro modo, em uma

173
BUTLER, 2015.
174
Ibid, p. 27.
175
BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo:N-1 Edições, 2019, p. 53.
2

quase maiêutica socrática, as palavras são postas e relacionadas à vida prática de cada sujeito,
procurando não só proporcionar a relação daquele processo didático com a experiência pessoal
dos educandos, mas também problematizando suas condições, à própria realidade que os
envolve.
Tendo em mente o modelo de pedagogia a qual Jomard Muniz de Britto partilharia,
entendemos que quando o mesmo propõe por uma experiência didática se aliaria justamente a
ideia posta na citação acima, de um retorno desestabilizador, onde o corpo e seus limites, seus
“possíveis autorizados”, seriam postos em pauta, uma pedagogia libertadora que promoveria,
tal como versa Butler na citação acima, a ocasião para rearticular radicalmente o horizonte
simbólico em que alguns corpos começam a importar [matter] mais do que outros.
Ao observarmos até aqui os possíveis desejos, objetivações, intenções de Jomard Muniz
de Britto sobre a performance e captura dos corpos em tal filme em especial, mas em suas obras
de uma maneira mais geral, cabe enfim, nos perguntarmos, mas quem ou de onde viriam os
corpos ali postos, misturados, figurados. Citamos a priori, que o grupo de teatro Vivencial
Diversiones fariam o papel de colocar em prática o pensamento e ideias do nosso sujeito, cabe
em si, compreendermos que tais sujeitos, muitas vezes não nomeados nos créditos dos filmes
disponíveis na versão digital, tal é o caso da película em análise, são mais que elementos vivos
em uma “obra de arte” de Jomard Muniz de Britto. Os mesmos partilhariam, contribuiriam de
maneira significativa no processo de construção de tais obras, não só no empréstimo dos seus
corpos, mas nas formas de fazer de tais produções.
Tamanha sua importância, que no mesmo ano Jomard Muniz de Britto, nomearia o
nosso segundo filme em análise, Vivencial I, como uma homenagem a tal grupo de Teatro e em
1982, em sua obra Terceira Aquarela do Brasil, faria nova homenagem com o texto intitulado:
Vivencial, vivecas, diversiones, devassidões.176 O texto citado, mais que uma homenagem, se
propõe a discutir, a versar sobre o que seria a importância e a relação entre o autor e tal grupo,
o que nas palavras do mesmo:

O grupo de teatro vivencial de olinda vem representando um papel semelhante


ao desempenhado pelo grupo construção na década 60: um trabalho de criação
coletiva, didaticamente aberto, extra-oficial, polêmico na medula e nos ossos
da criatividade. a direção de guilherme coelho, muito mais pedagógica do que
estritamente artística, [...].177

176
BRITTO, 1982, p. 63-67.
177
Ibid, p. 63.
2

Dessa forma, será através do grupo Vinvencial Diversiones, que Jomard Muniz de Britto irá
materializar o que em Foucault chama-se de heterotopias,178 ou seja, o sexo, o corpo que retorna
desestabilizador em Butler,179 retornaria para Foucault, contra justamente a ideia de utopia, o corpo
utópico, que nas palavras do próprio:

E se considerarmos que a vestimenta sagrada ou profana, religiosa ou civil faz


com que o indivíduo entre no espaço fechado do religioso ou na rede invisível
da sociedade, veremos então o que tudo o que concerne ao corpo – desenho,
cor, coroa, tiara, vestimenta, uniforme – tudo isso faz desabrochar, de forma
sensível e matizada, as utopias seladas no corpo. Mas talvez fosse preciso
descer mais, por baixo da vestimenta, talvez fosse preciso atingir a própria
carne, e veríamos então que, em certos casos, no limite, é o próprio corpo
que retorna seu poder utópico contra si e faz entrar todo o espaço do
religioso e do sagrado, todo o espaço do outro mundo, todo o espaço do
contramundo, no interior mesmo do espaço que lhe é reservado. Então, o
corpo, na sua materialidade, na sua carne, seria como o produto de seus
próprios fantasmas.180

Com isso, observamos no diálogo entre Butler e Foucault, a compreensão de que dentro
da construção dos mecanismos identitários, maquinalmente destinados a adequação na
dualidade homem/mulher, masculino/feminino, não só esbarramos nos limites subversivos do
corpo, mas percebemos que o próprio processo de postular-se, de manejar-se um ideal, um
corpo utópico, ou, os corpos que importam181 tais mecanismos produzem também o que seria
o “outro”, os corpos abjetos que funcionariam como “o não dito/maldito”, o estranho, o queer,
em síntese foucaultiana, o corpo enquanto produto de seus próprios fantasmas. Entretanto,
Jomard Muniz de Britto, conjuntamente com o Grupo Vivencial Diversiones, fazem desse corpo
estranho, marginal, abjeto, a conformação, não de uma nova utopia, mas uma hetero-topia, um
espaço absolutamente outro.182 Nas palavras do próprio Jomard M. de Britto: [...], o grupo
vivencial deseja colocar em cena, ao nível de uma discussão permanente,183 a dialética entre o
erótico e o político, sem pedir permissão nem a platão nem a marx-engels para revolucionar a
palavra no corpo.184

178
FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias: posfácio de Daniel Defert. Tradução de Salma Tannus
Muchaail. São Paulo: Edições n-1, 2013, p. 20-21.
179
BUTLER, 2015, p. 53.
180
FOUCAULT, 2013, p. 13-14.
181
BUTLER, 2019.
182
FOUCAULT, 2013, p. 20-21.
183
Jomard Muniz de Britto, neste trecho, ao evocar uma discussão permanente, faz menção ao que seria um de
seus métodos para revolucionar-se o espaço e discursos que o envolve, que seria o método da dúvida permanente,
exercitando assim o que seria uma atitude geradora de incertezas, na qual o exercício de duvidar, seria em si o
de estranhar-se, estranhar a si e o mundo (BRITTO, 1992, p. 13). O método pode ser observado de maneira mais
ampla através do texto intitulado Anotações da Dúvida, que integra o livro Bordel Brasilírico Bordel:
antropologia ficcional de nós mesmos, de 1992, onde o mesmo aponta sua metodologia, suas potencialidades e
referências teóricas para a construção do mesmo.
184
BRITTO, 1982, p. 65.
2

“Revolucionar a palavra no corpo”, é com tal frase/provocação síntese que podemos


iniciar uma leitura sobre a produção Vivencial I. O filme, como visto antes é produzido no ano
de 1974 e compreende uma lista de créditos, de sujeitos citados muito mais ampla que a película
anterior, com isso destacam-se nomes como Guilherme Coelho, que como vimos nas palavras
do próprio Jomard M. de Britto, dirigia o grupo Vivencial Diversiones e aparece como
responsável pelo que nosso personagem chama por “colagem teatral”, além deste, novamente
observa-se a parceria com Carlos Cordeiro enquanto responsável pelas imagens.
A obra em si, é encontrada nos meios digitais dividida em duas partes, uma primeira,
com cerca de 06 minutos e 47 segundos e a segunda com 05 minutos e 32 segundos. Para além
da duração ser mais ampla, diferentemente da película anterior, a mesma apresenta uma
sonorização, aliando assim cena e sons na construção de sentidos ao longo da trama. No que
seria a primeira parte da mesma, podemos entrecortar alguns frames enquanto sintetizadores
das sequências do curta, sendo estes:
2

Figuras 06, 07, 08, 09 e 10: As 5 sequências principais


observadas na primeira parte do filme Vivencial I.
2

Os 5 frames acima, fazem referência ao que entendemos pelas 5 sequências principais


da primeira parte da obra, na qual em ordem, podemos nomeá-las como: sequência 01:
performance de sujeitos, com destaque para o que seria figura de um elemento com vestes
semelhantes a um padre que figura no centro da tela. A sequência se dá em um espaço que
podemos ler como a porta central de uma Igreja, onde as figuras rodopiam e fazem gestos, que
por vezes imitam o gestual religioso católico, ao som de uma espécie de cântico gregoriano.185
Dessa forma, temos a emersão do dispositivo religioso enquanto margem de paródia na
sequência 01.
A sequência 02, representada pela imagem de número 06, guarda o que entendemos
pelas maiores semelhantes ao filme analisado anteriormente, tanto pelo fundo negro, neutro,
como pelo predomínio dos close-ups como forma de representação do corpo. Assim, tal qual o
filme anterior, vemos partes de diversos corpos, nádegas, braço, rosto, entre outros, ao que seria
um som ambiente, com leves batidas do que poderiam ser baquetas. A 03 sequência
compreendida na obra e representada aqui pela imagem número 07, se passa no que seriam as
ruínas de um edifício, onde a câmera situa-se agora à distância, em um long-shot. Nesta, a uma
multiplicidade dos corpos, a um número maior de sujeitos, com trajes esfarrapados, rasgados,
lenços, em uma performance sobre os escombros que lembraria um conjunto de “zumbis sobre
os restos da cidade”. Nesta sequência, há o predomínio de um distanciamento focal, conjugado
com uma visão de ângulo alto, um plongée; no âmbito sonoro, destaca-se um fundo musical
sem cântico, apenas instrumental, com o som de um piano, em especial, a acompanhar a
performance dos corpos indistintos.
O que chamamos por 04 sequência, é legada ao momento em que a obra passa a
representar espaços boêmios, como o destaque do que seria a varanda de um bar/restaurante na
imagem número 08. Nesta, novamente há a confusão das distinções de gênero, onde corpos se
misturam, agora com vestes mais elaboradas, a conduzir o momento mais erótico do filme, em
função da gestualística dos personagens. Como fim da nossa primeira parte da obra,
encontramos a quinta sequência, imagem 09, na qual parecem sumir-se os atores em si, tendo
a filmagem de um espaço boêmio, de alta classe, pelos figurinos, em especial a primazia dos
ternos, pelo espaço de maior cuidado estético, destacando-se também a fácil distinção de
homens com tais trajes, a predominarem no espaço. Aqui o destaque está na relação trilha
sonora e espaço, onde é possível reconhecer a declamação da poesia de Álvaro de Campos,
heterônimo de Fernando Pessoa, intitulada Poema em linha reta:

185
Entendemos aqui por Canto Gregoriano, uma espécie de canto litúrgico próprio da Igreja Católica. Um gênero
musical dado ao sacramento cristão, com raízes no que cristianismo primitivo.
2

Nunca conheci quem tivesse levado porrada./Todos os meus conhecidos têm


sido campeões em tudo./E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas
vezes vil,/Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,/Indesculpavelmente
sujo,/Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,/Eu, que
tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,/Que tenho enrolado os pés
publicamente nos tapetes das etiquetas,/Que tenho sido grotesco, mesquinho,
submisso e arrogante,/Que tenho sofrido enxovalhos e calado,/Que quando
não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;/Eu, que tenho sido cômico
às criadas de hotel,/Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de
fretes,/Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem
pagar, /Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado/Para fora
da possibilidade do soco;/Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas
ridículas,/Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo./Toda a gente
que eu conheço e que fala comigo/Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu
enxovalho,/Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida.../Quem
me dera ouvir de alguém a voz humana/Que confessasse não um pecado, mas
uma infâmia;/Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!/Não, são
todos o Ideal, se os oiço e me falam./Quem há neste largo mundo que me
confesse que uma vez foi vil?/Ó príncipes, meus irmãos,/Arre, estou farto de
semideuses!/Onde é que há gente no mundo?/Então sou só eu que é vil e
errôneo nesta terra?/Poderão as mulheres não os terem amado,/Podem ter sido
traídos - mas ridículos nunca!/E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido
traído,/Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?/Eu, que
venho sido vil, literalmente vil, /Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
186

Podemos ler o poema em linha reta, de Fernando Pessoa, como a projeção em versos de
uma utopia social que na verdade se configuraria como um grande jogo de aparências, um jogo
de identidades e pertencimentos, onde tudo que aparenta escapar a tal utopia, a tal aparência,
seria excluído, ou nos termos do poema seria “vil e ridículo”. Dessa maneira, o interlocutor
apresenta-se com ares de pessimismo, de revolta e dificuldade em se alinhar com os sujeitos
em seu entorno, com os modelos sociais bem quistos. Ao passo que temos em mente tal
compreensão sobre o poema que atravessa o final da primeira parte da nossa película, podemos
então relaciona-lo com a sequência descrita a priori. Um poema que transmite pessimismo e
revolta, um poema que aponta a hipocrisia e malfadada “perfeição” dos sujeitos ao seu redor,
conjugada com imagens de um bar boêmio, com sujeitos vestidos com ternos, sujeitos alinhados
ao modelo de “corpos que importam”,187 tendo apenas a aparição de um elemento que se
percebe fora de contexto no espaço, a emersão da imagem de uma mulher vestida como trajes
ala Carmen Miranda, símbolo sexual latino da época:

186
PESSOA, Fernando. Poema em linha reta. In: ______. Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1944 (imp.
1993), p. 312.
187
BUTLER, 2019.
2

Figura 11: Sequência de declamação de Poema em linha


reta de Fernando Pessoa.

Esta sequência, conduzida na maior parte em medium shot, aparece como a única
sequência em que as vestes e o corpo, aparecem nítidas e alinhadamente a uma projeção de
gênero dualística, dito de outro modo, o medium shot transforma-se progressivamente, a medida
que a atriz se aproxima da câmera, em um close-up, sendo possível reconhecer o alinhamento
entre vestes e corpo de traços femininos. Aqui também há o destaque para o erótico, enquanto
uma mulher que desfila, com roupas próximas a de um símbolo sexual da época, em um
ambiente boêmio e como nota-se no fundo da imagem 10, com sujeitos de ternos e smokings,
remetendo assim a possível aproximação do que seria um cabaré de alta classe, com a exposição
de corpos femininos alinhados a ideia de aventura exótica da sexualidade.
A segunda parte da nossa obra, com seus 05 minutos e 32 segundos, apesar de apresentar
uma duração próxima a primeira, a sequência de cenas aparece basicamente distribuída em
duas, podendo a primeira destas ser representada pelos seguintes frames:
2

Figuras 12, 13, 14: Sequência de performance do


manifesto de Guilherme Coelho.

Tal qual a nossa última sequência analisada da primeira parte do Vivencial I, esta é
marcada pela relação som/imagem, ou som/performance, de modo que o que o espectador só
compreenderá os gestos, rodopios, saltos e os movimentos der câmera ao realizar o diálogo, a
relação com o fundo o sonoro. Este em si, diferentemente do poema de Fernando Pessoa, onde
se é possível reconhecer-se de modo mais rápido sua origem, nesta há a dificuldade em conectar
o que está sendo declamado e uma obra de um dado autor. Dessa forma tateamos por diversos
trabalhos, até encontrarmos na dissertação de mestrado em Comunicação, de Ricardo César
Campos Maia Júnior, publicada no ano de 2009,188 uma transcrição da cena, que aponta, ainda
que sem destacar ano, ou, local de disponibilização, a referência de que a experiência sonora de

188
MAIA JÚNIOR, 2009, p. 102.
2

tal sequência, tratar-se-ia de um tratado ou manifesto de Guilherme Coelho, o supracitado


diretor do Grupo Vivencial Diversiones, sendo este, em transcrição de Maia Júnior do filme:

Amor, desamor, neuroses: encontro e desencontro – duas versões:


A única maneira de curar a humanidade de suas neuroses seria devolvê-
la ao pleno funcionamento de suas atividades bissexuais. Foi o próprio
Platão que celebrou pela primeira vez a bissexualidade universal. No início
era o ovo, uma série de entes esféricos feitos de duas metades. Havia pares de
homens, pares de mulheres e pares mistos. Um deus ciumento cortou estes
pares em dois. Desde então, cada metade anda em busca de seu complemento
perdido, a fim de reconstituir a sua unidade. És a origem da sede de amor
universal que atrai os homens uns para os outros. Mas a posteridade só
utilizou ainda em um terço os três tipos de seres duplos. Só os pares mistos
passam a constituir o arquétipo do amor universal. Resta nos perguntar, se
a obrigação de pertencer ao próprio sexo contribuiu, realmente, para o
progresso da humanidade ou se, ao contrário, os homens e as mulheres que
correm, há séculos, atrás de sua identidade sexual não sofreram um
empobrecimento real, limitando a sua personalidade a uma metade de si
mesmo?189

Dessa forma observamos o construir da cena em função do artifício de voz over, na qual
o texto é introduzido, o que nos lembra o porquê de indicarmos anteriormente que a provocação
de Jomard Muniz de Britto, ao afirmar que o grupo teatral Vivencial Diversiones, procura sem
pedir permissão nem a platão nem a marx-engels para revolucionar a palavra no corpo.190 Nos
lembra, ou nos elucida, ao passo que as ideias de ruptura, de construção de práticas e espaços
de liberação, de transgressão, encontram na paródia ao mito de Aristófanes, o mito andrógino,
descrito por Platão em O Banquete, o que seria a “via de cura da humanidade”, representada
pela bissexualidade universal. Dito de outro modo, o texto é visto como manifesto, justamente
pela ideia de crítica aberta aos dispositivos de repressão do corpo, da identidade sexual,
culminando na indagação de que teria sido, de fato, construtivo a elevação da
heterossexualidade a condição de “modelo socialmente correto”, ou se, esta não seria uma
barreira, uma forma de limitação das potencialidades do corpo, das formas de prazer, do ser
humano em si.
No tocante a relação voz over e imagem, vemos a cena sendo construída em função de
representar esta primeira, onde em long-shot, ou o que poderia se chamar de uma objetiva
indireta da câmera, se colocando a distância e tentando passar-se despercebida, antes de uma
aproximação progressiva, a cena é representada pela imagem 11, na qual é possível observar o
espaço de uma praça onde forma-se um círculo pelos populares, ficando ao centro os atores a

189
MAIA JÚNIOR, 2009, p. 102, grifo nosso.
190
BRITTO, 1982, p. 65.
2

tentar representar o mito andrógino, em seus momentos de origem, chegada do “deus ciumento”
– imagem 12 – e ruptura da bissexualidade originária. No tocante a tal cena, podemos destacar
a leitura de Emilia de Oliveira Santos, disposta em sua dissertação de mestrado em Multimeios
publicada em 2020:
Pela reivindicação do prazer, as propostas expostas no texto aparecem
impressas na construção dos gestos dos atores, que trazendo a tona uma
sensibilidade camp se tocam e buscam novas combinações na formação destes
pares mistos, em busca da sede do amor universal. Rodeados de espectadores
que assistem atenciosos a performance, o público que é composto por pessoas
diversas crianças, homens, mulheres e bebês de colo, é convidado pelas
Vivecas a participa da performance, à se engajarem na ação. [...], As Vivecas
seduzem as pessoas que assistem a performance, as tocam e convidam estas a
saírem da zona da espectatorialidade, a fim de ativarem em seus corpos para
novas percepções e ações performativas. A interação entre atores e os atores
sociais, captadas pela objetiva indireta, inscreve a imprevisibilidade do desejo
como catalisador do desdobramento da ação. Insurgindo-se contra a castidade,
a moral e os bons costumes, o jeito de corpo apresentado na mise-en-scène
reflete as transformações comportamentais que emergiram durante os anos 70
e que se fazem visíveis no campo do cinema experimental. (SANTOS, 2020,
p. 102-103).191

A descrição sensível de Emilia de Oliveira Santos, da ação do que a mesma chama de


Vivecas – enquanto referência a nomenclatura jomardiana acerca dos atores do grupo teatral
Vivencial Diversiones – nos faz atentar-se que não só a performance procura representar, dar
materialidade ao manifesto, mas aparece enquanto uma reivindicação e convite a vivenciar o
campo do desejo de forma experimental. Dessa forma, observa-se em certa semelhança ao filme
anterior analisado, a tentativa jomardiana em fazer do espectador/participante indireto do filme,
um sujeito ativo em sua obra, ou como na citação acima, de modo a ativarem em seus corpos
para novas percepções e ações performativas. Findando-se a representação do manifesto de
Guilherme Coelho, o filme retorna a cena apresentada no início da produção, onde figura-se a
imagem do que seria um padre, um representante da Igreja, em frente a um de seus templos,
iniciando assim o que seria a segunda sequência da última parte do nosso filme em análise:

191
SANTOS, Emilia de Oliveira. O sexo contra os dogmas: Na simpatia da bitola de JMB. 2020, p. 102-103.
Dissertação (Mestrado em Multimeios) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP,
Campinas-SP.
2
2

Figuras 15, 16, 17, 18 e 19: Sequência final do


filme Vivencial I.

A nossa última sequência em análise do filme Vivencial I, retorna ao dispositivo


religioso, onde conjuga-se a representação da tríade cristã, pai, filho e espírito santo, nas três
figuras da imgem 14, com o fundo sonoro a reproduzir a música “Tinindo Trincando”, do grupo
musical Novos Baianos192. A música, diferentemente dos trechos em voz over analisados
anteriormente, parece servir muito mais como trilha sonora, do que exercer um papel decisivo
na composição de sentido da sequência. Dessa forma, observamos a tríade de sujeitos, onde a
figura de trajes religiosos ao centro, despe-se de modo a ficar apenas com o que seria uma
“sunga” em moldes antigos, representada pela imagem 15. A paródia segue-se com o corte para
um long-shot, que logo se transforma em um medium-shot, retratando um conjunto de sujeitos

192
A música Tinindo Trincando, corresponde a terceira faixa do álbum Acabou Chorare, lançado dois anos antes
da produção do filme em análise, em 1972, pelo grupo Novos Baianos.
2

diversos, que parecem “tomar” as ruas, reivindicar o espaço, as práticas de liberdade, à


pluralidade de pensamento, de sexualidades.
À crítica, ou a satirização, do dispositivo religioso encontra ainda nova força, em meio
a multidão, ao passo que a figura de um “padre”, de um sacerdote cristão, ganha destaque em
meio à multidão a realizar uma performance semelhante ao ato de benzer-se um católico,
todavia, os gestos do mesmo, são parodiados e em close-up, o espectador se depara com um
gesto de reprodução do que seria “um ânus” na imagem 17 e na imagem 18, com o dedo do
meio em destaque, o gesto de benzer-se, finda-se com o sinal da cruz reproduzido com a
manutenção do dedo do meio em riste.193 Com o fim, da observação, da leitura feita sobre os
filmes Uma experiência didática: o corpo humano e Vivencial I, ambos produzidos em 1974
por Jomard Muniz de Britto, podemos chegar a certas conclusões acerca da forma como o
mesmo entende as discussões vinculadas a Corpo, Gênero e Sexualidades, como também a
forma como este investe nas produções em Super-8 uma potência dada ao inconformismo e à
experimentação.
Em 2018, no livro produzido por Fábio Leonardo Castelo Branco Britto, acerca da
produção cultural e inserção de Jomard Muniz de Britto em função do que seria uma linha
evolutiva da cultura brasileira, o mesmo ao tratar-se sobre produções em Super-8 do mesmo,
chega a conclusão, de que o que aqui chamamos por uma potência de insurreição, tratar-se-ia
também da construção de um novo regime de visualidade que procura se impor contra as
certezas, os receituários culturais, sexuais, estabelecendo nos meandros desse processo, o que
nas palavras de Fábio Britto efetivaria também a conformação ou liberação de um “outro de si
mesmo”:

[...], é possível afirmar que as imagens elaboradas a partir do


experimentalismo fílmico de Jomard Muniz de Britto são, portanto,
instauradoras de um novo regime de visualidade, uma vez que este tenta, a
partir delas, questionar o tom de certeza que, via de regra, ocupa as discussões
sobre o ser da cultura brasileira, e as tentativas de conformação desta como
uma obra de arte, em seu sentido estrito. Na medida em que busca, nos
diferentes filmes experimentais que elabora – tais como Recinfernália (1975),
O Palhaço Degolado (1977) e Inventários de um Feudalismo Cultural
Nordestino (1978), dentre tantos outros – despir-se dos dispositivos de
coerção social que o envolvem para vestir-se de si mesmo, transformando-
se em um outro de si mesmo, este palhaço propõe, no reverso das certezas,
estabelecer um discurso do incerto, do constantemente colocado em xeque.194

193
SANTOS, 2020, p. 104.
194
BRITO, 2018, p. 189, grifo nosso.
2

Despir-se dos dispositivos de coerção social que o envolvem para vestir-se de si mesmo,
transformando-se em um outro de si mesmo, a leitura de Fábio Brito, acerca do debate cultural
a qual Jomard Muniz de Britto se envolve ao longo da sua trajetória de vida, nos aparece
também enquanto uma chave de leitura para a compreensão das provocações, para a
problematização e satirização constante nos seus filmes em Super-8, no tocante também as
relações que incorrem sobre o corpo. Nos filmes, as personalidades de professor, filósofo,
crítico cultural e filmaker, se juntar, se misturam para dar lugar a um “outro”, um outro de si
mesmo, ao passo que também maneja uma crítica potente dos dispositivos de coerção social.

3.2. Entre Toques e Folionas: formas de visualidades do corpo

Se com a análise dos filmes: Uma experiência didática: o corpo humano e Vivencial I,
observamos a forma de pensar o corpo e suas potências ante a si mesmo e os dispositivos de
coerção, chegando à conclusão da emersão do que seria um novo regime de visualidade,195
podemos enfim pensar como tal regime passa representar o campo do desejo que incide sobre
tais corpos. Dito de outra forma, nos propomos a análise de outro par de filmes, sendo estes:
Toques e Folionas ou paixão de carnaval, que como os anteriores, são produzidos no mesmo
ano, agora em 1975, tendo a particularidade de serem gravados na cidade de Olinda-PE, que
forma atualmente uma conurbação urbana com a capital Recife-PE. Com a observação destes
almejamos representar os extremos da representatividade dos corpos nos filmes em Super-8,
produzidos por Jomard Muniz de Britto na década de 1970, indo da reprodução de uma dada
“pureza” da nudez até a erotização dos mesmos.
O filme Toques, gravado em 1975, possui duração de 6 minutos e 51 segundos, sendo
gravado em película Super-8, o mesmo faz parte de um conjunto de 4 filmes gravados neste
mesmo ano de 1975,196 por Jomard Muniz de Britto. O filme pode ser compreendido através
dos seguintes frames:

195
BRITO, 2018, p. 189.
196
Segundo levantamento feito por Fabiana Moraes e Aristides Oliveira (2017, p. 236-237), Jomard Muniz de
Britto, produz em 1974 os filmes: Babalorixá Mário Miranda, Maria Aparecida no Carnaval; Infernolento;
Ensaio de Androgenia; Uma experiência didática: o corpo humano; Mito e contramito da família
pernambucana; Lixo ou lixo cultural; Vivencial I. Em 1975: Recinfernália; Toques; Esses moços, pobres moços;
Folionas ou paixão de Carnaval.
2
2

Figuras 20, 21, 22, 23 e 24: Sequência de corpos nus do


filme Toques.

Os frames apresentados seguem a sequência original do filme, iniciando-se com o surgir


de um corpo em meio a vegetação, a priori desfocado, andrógino, onde figura-se um sujeito
sem definições de sexo ou gênero, o jogo entre nitidez e desfoque será uma marca que atravessa
toda a obra, entre long-shots, extreme-long-shots, close-ups e medium-shots, o corpo é operado
em uma espécie de fuga identitária, como viria a chamar Edwar de Alencar Castelo Branco.197
A performance tanto dos corpos, como da câmera, nos oportuniza observar um conjunto de
micro-revoluções que se operam na obra em função da desestabilização dos processos de
captura social manejados pela sociedade que o envolve. A esse processo de “revolução
molecular”, Suely Rolnik, assimilaria a posteriori enquanto semelhante a ideia de
esquizoanálise, proposta por Gilles Deleuze e Felix Guattari, na qual segundo a mesma: a

197
CASTELO BRANCO, Edwar de A. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a invenção
da Tropicália. São Paulo: Annablume, 2005, p. 96.
2

esquizoanálise se propõe como um tipo de revolução molecular lentíssima, quase


imperceptível, que, no entanto, modifica radicalmente a existência de todo o percebido.198
Dessa forma, ao passo que observamos a produção jomardiana em foco, através das
“lentes esquizo”, podemos compreender que cada ato, cada corte, cada parte da montagem,
trilha sonora e quadros, compõem-se enquanto “objetos conscientes”,199 representações do
pensamento contracultural, especialmente contra a heteronormatividade e os “modelos de
conduta”. Portanto, o próprio “ato inicial”, do corpo desnudo sair-se da vegetação, representa
também uma dessas “insurgências”; segundo leitura de Virginie Despentes : “[...], o simbolismo
da floresta é interessante: a sexualidade deve sair fisicamente do domínio do visível, do
consciente, do esclarecido, não se trata de uma decisão política que zela pela moral”.200 Logo,
se “estar na floresta” representa a saída do campo visível, a abjeção do corpo, “lugar dos
desviados da normalidade”, o ato inicial de sair desnudo desta, representado na imagem 19,
representa justamente a tomada de posição, o corpo, a sexualidade, agora figura no campo
visível.
Todavia, Foucault, em seu livro A ordem do discurso,201 nos chama atenção para o fato
de que o discurso que se manifesta, no nosso caso a ideia que resguarda a produção da cena em
análise, não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo: é, também, aquilo que
é o objeto do desejo.202 Nesse sentido, o filme Toques, que se apodera do ato simbólico de sair-
se da posição de subalternidade legada aos corpos desviantes da norma, o ato de
“liberação/libertação” que atravessa a produção como um todo, resguarda tanto a denúncia,
como o próprio desejo de vivência, ou seja, não só representa uma forma de embate, como
também, aquilo pelo que se luta, nas palavras de Foucault: o poder do qual nos queremos
apoderar.203
Compreendido a dupla manifestação que se apresenta nas produções jomardianas, cabe
retornarmos a compreensão da construção do nosso filme em destaque. O mesmo, como é
perceptível nas imagens anteriores, se passa fora do espaço urbano, na qual transparece ao
espectador a ideia de uma espécie de espaço idílico ao longo da obra; O filme, conta ainda com

198
ROLNIK, 2018, p. 14.
199
DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 153.
200
DESPENTES, Virginie. Teoria King Kong. Tradução: Márcia Bechara. São Paulo: N-1 Edições, 2016, p. 69.
201
FOUCAULT, 2014.
202
Ibid, p. 10.
203
Ibid, p. 10.
2

o fundo sonoro da música Pelos Olhos, de Caetano Veloso,204 no processo de construção de


seus sentidos, onde destacam-se trechos como:

O Deus que mora na proximidade


Do haver avencas
Esse Deus das avencas é a luz
Saindo pelos olhos
De minha amiguinha
O Deus que mora na proximidade
Do haver avencas
Esse Deus dos fetos
Das plantas pequenas é a luz
Saindo pelos olhos
De minha amiguinha linda
De minha amiguinha
[...].205

A relação Jomard M. de Britto e Caetano Veloso, mostra-se frequente ao longo da


trajetória cultural deste primeiro em especial, Caetano Veloso, com seu corpo Odara, mostra-
se enquanto sínte/símbolo de um corpo revolucionário, promotor de novas linguagens, um
corpo em invenção permanente. Em entrevista concedida a Aristides Oliveira em 2012, Jomard
Muniz de Britto, ao falar sobre suas inspirações ao longo de sua história, o mesmo dá destaque
de maneira especial a figura de Glauber Rocha, símbolo do movimento do Cinema Novo e ao
próprio Caetano Veloso, que encabeça a chamada Tropicália, na qual nas palavras do mesmo:

Quando eu aproximo Glauber e Caetano, porque eu acho que eles nunca


tiveram assim... o que se chamaria hoje de um discurso politicamente correto.
Eles estão sempre na contramão das coisas... nas margens... nas dobras... E
não é uma atitude para ser “diferente” não, eles são a diferença. Eles
marcavam a diferença. (OLIVEIRA, 2012, p. 05).

Eles estão sempre na contramão das coisas [...], eles são a diferença, com trechos como
este podemos observar que a música Pelos Olhos, não é posta apenas com um ideal estético no
filme Toques, a mesma resguarda também seu papel na construção do discurso que se traduz na
produção, discurso este que pode ser observado de maneira mais clara se pensarmos um pouco
mais sobre o álbum Jóia, a qual a música pertence. Segundo Emilia de Oliveira Santos:

Logo após seu lançamento, a arte da capa do disco foi censurada.


Originalmente, a pintura retratava a família desnuda na composição, Caetano,
sua esposa na época Dedé e seu filho Moreno Veloso, com apenas dois anos.
Caetano opta por acrescentar a pintura simbolicamente a imagem de algumas
pombas em sua composição, uma destas cobrindo sua genitália. Com o

204
A música Pelos Olhos é lançada enquanto parte do álbum Joia, tendo Caetano Veloso como intérprete, o álbum
seria lançado no ano de 1975.
205
VELOSO, Caetano. Pelos Olhos. In: ______. Jóia. [S. I.]: Philips: 1975.
2

lançamento do disco, o departamento de censura exigiu que as imagens de


nudez fossem retiradas, e só sobrassem as pombas e a tipografia do título da
obra na composição pictórica. Além da censura da capa, as consequências
legais sofridas por Caetano e Dedé ameaçavam o casal com a perda da guarda
de seu filho.206

Em sequência, a capa censurada e a capa oficialmente lançada em 1975:

Figuras 25 e 26: Em sequência a capa censurada e a capa


oficialmente lançada do álbum Jóia de Caetano Veloso
em 1975.

A escrita de Emilia de Oliveira Santos, nos oportuniza pensar o simbolismo do próprio


Caetano Veloso, se pensarmos que o próprio, tal qual nosso personagem fora preso em 1968, o
primeiro pelo que seria “um insulto a pátria”, sob alegação de cantar o hino nacional de forma
desrespeitosa.207 O fato é que mesmo após o período de prisão, o regime ditatorial brasileiro

206
SANTOS, 2020, p. 118.
207
VELOSO, CAETANO. Narciso em Férias. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 139.
2

passa acompanhar de perto a produção de Caetano Veloso, interferindo no que seria a pós-
produção, ou a montagem dos discos do cantor, censurando e inventariando canções e
elementos que feriam “a moral e os bons costumes do povo brasileiro”.208 Dessa forma tanto a
própria editora Philips procurava evitar atritos com o regime em voga e cedia as intervenções
do mesmo, como o próprio Caetano Veloso, sofreria ameaças de novas “retaliações” ante sua
conduta subversiva. O que no caso da capa do álbum Jóia, representada pelas figuras 25 e 26,
nos indicam as marcas de tal censura, nesse caso na tentativa de preservar-se um pudor sobre o
corpo, onde animais passam a cobrir a genitália de Caetano, seu filho passa a tapar a nudez de
Dedé e com sua própria mão, a cobrir a sua própria genitália, de modo que podemos também
lembrar quando Guacira Lopes Louro fala sobre uma pedagogia dos corpos, especialmente
nesta figura da criança a cobrir-se.209
Retornando a nossa obra em si, não possuímos registros sobre as intenções que levaram
Jomard Muniz de Britto a relacionar a música as cenas em questão, logo podemos apontar a
possibilidade do mesmo se atentar a censura ocorrida ao álbum de Caetano Veloso construindo
o filme Toques, quase como uma performance viva da capa do álbum do artista. Dito de outro
modo, no tocante ao nosso filme, a relação música e cena, constroem uma representação do
corpo em um estado de pureza, desarticulado do que seriam “os pecados da carne” para os
cristãos, destituído dos conceitos de obscenidade e sexualidade. Foucault, em sua obra O corpo
Utópico,210 ressalta a ideia de que para além da construção do que seriam “as utopias seladas
na carne”,211 as utopias possuiriam lugares específicos, deste modo, tal qual vimos
anteriormente uma possibilidade de leitura de Despentes,212 acerca do espaço da floresta, a
sociedade, os sujeitos são alocados na cidade de modo que tais espaços passam a fazer
referências a pré-conceitos particulares, espaço boêmio, espaço comercial, espaço da
cafetinagem.
Todavia, tal referência nos é salutar ao passo que não se produzem apenas definições
sobre o espaço, mas também constroem o que seriam os contraespaços:
Sem dúvida, essas cidades, esses continentes, esses planetas nasceram, como
se costuma dizer, na cabeça dos homens, ou, na verdade, no interstício de suas
palavras, na espessura de suas narrativas, ou ainda, no lugar sem lugar de seus

208
Para saber mais sobre o episódio da prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil, como também observar parte dos
arquivos secretos produzidos pelo regime militar sobre os mesmos ver: VELOSO, CAETANO. Narciso em
Férias. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
209
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Rio de Janeiro:
Vozes, 1997.
210
FOUCAULT, 2013, p. 19
211
Ibid, p. 13-14.
212
DESPENTES, 2016, p. 69.
2

sonhos, no vazio de seus corações; numa palavra, é doce gosto das utopias.
No entanto, acredito que há – e em toda a sociedade – utopias que têm um
lugar preciso e real, um lugar que podemos situar no mapa; utopias que têm
um tempo determinado, um tempo que podemos fixar e medir conforme o
calendário de todos os dias. É bem provável que cada grupo humano, qualquer
que seja, demarque, no espaço que ocupa, onde realmente vive, onde trabalha,
lugares utópicos, e, no tempo em que se agita, momentos ucrônicos. [...]. Ora,
entre todos esses lugares que se distinguem uns dos outros, há os que são
absolutamente diferentes: lugares que se opõem a todos os outros, destinados,
de certo modo, a apaga-los, neutralizá-los ou purifica-los. São como que
contraespaços.213

Dessa forma, para Foucault, a sociedade produz para além do visível, contraespaços,
utopias situadas, lugares reais fora de todos os lugares,214 tais como os asilos, prisões,
conventos, ou, no nosso caso a vegetação que atravessa toda a produção. A vegetação, os corpos
desnudos, a música de Caetano Veloso, todos esses elementos corroboram não para uma mística
de uma “floresta” que guarda perigos, mas como um espelho do mito cristão da criação do
homem, o Éden, como é perceptível nas imagens 20 e 21, símbolos da pureza, de corpos
destituídos do pudor, uma personificação, não censurada da própria capa do disco de Caetano
Veloso. Dessa forma, observamos na imagem 22, com o abraço ao próprio corpo, com o nome
Toques escrito em suas costas, sintetiza a premissa central da obra, um “abraço ao próprio
corpo”, um corpo que é seu, de cada um de nós; tal sentido se intensifica, se observarmos que
a obra passa a ser conduzida em seguida em função de close-ups, em partes íntimas de maneira
especial, como é possível notar na imagem 23, onde o “fim” do filme, é anunciado sobre uma
vagina.
Portanto, podemos compreender que o filme Toques, produzido por Jomard Muniz de
Britto, em 1975, se apresenta como uma espécie de criação de um novo espaço, um espaço que
é real, mas também fora de todas as pré-disposições da cidade. Um espaço na qual nosso
personagem pode jogar com as fronteiras entre a obscenidade e a pureza, entre a moral e os
modelos de estética, de beleza e corpo “real”, o corpo sem tais preocupações, um corpo que
abraça a si mesmo, como em um ato de sensibilidade e aceitação. Ao passo que analisamos e
procuramos realizar conexões em função do filme Toques, chegando a um entendimento de
construção de um espaço idílico, onde o corpo é destituído de sua potência sexual, por assim
dizer, podemos passar a análise do nosso 4° filme deste capítulo e que compõe um par ante a
nossa interpretação das produções jomardianas no presente subtópico, sendo este o filme:
Folionas ou paixão de carnaval, ou?.

213
FOUCAULT, 2013, p. 19-20.
214
Ibid, p. 20.
2

Com cerca de 18 minutos e 49 segundos de duração, Folionas ou paixão de carnaval,


ou?, inicia-se de maneira semelhante ao filme Toques, com uma figura transitando em meio a
vegetação:

Figura 27: Corpo em meio a vegetação, filme Folionas


ou paixão de carnaval, ou?.

Todavia, como observa-se na imagem 26, a figura em meio a mata diferencia-se da


analisada no filme anterior, primeiro por estar com um short e não com o corpo nu a ser o foco
da cena. A nossa primeira sequência é assim construída, em meio ao que chamamos
anteriormente por uma objetiva indireta, um long-shot em plongée, que se aproxima do
personagem, através do recurso de zoom out, a medida que este transita pela paisagem,
transformando-se em um medium shot. Em vias de síntese, podemos nos atentar a dois pontos,
o primeiro a de que o sujeito parece muito mais estar sendo observado atravessar por um
caminho “fora do visível”, como também a impossibilidade de observação do rosto de tal figura.
Após desaparecer da imagem, em meio a vegetação, há um corte no plano e o sujeito agora
retorna de frente à câmera, todavia, com outra aparência:
2

Figura 28: Transformação do corpo que saí da


vegetação.

Travestido agora com novos adereços – uma espécie de chapéu e sombrinha se destacam
– agora com espécie de pressa, a figura corre em meio a mata e outro corte no plano acontece,
surge uma rua/avenida cheia de sujeitos fantasiados, onde nossa figura inicial não é mais
identificável. A sequência inicial, nos apresenta justamente o carácter (per)formativo do corpo
que irá se assumir durante o filme, ante os processos de ce(n)sura dos corpos, ou como nos
elucida Foucault:

O corpo é também um grande ator utópico, quando se trata de máscaras, da


maquiagem e da tatuagem. Mascarar-se, maquiar-se, tatuar-se não é,
exatamente, como se poderia imaginar, adquirir outro corpo, simplesmente
um pouco mais belo, melhor decorado, mais facilmente reconhecível: tatuar-
se, maquiar-se, mascarar-se é sem dúvida algo muito diferente, é fazer com
que o corpo entre em comunicação com poderes secretos e forças invisíveis.
Máscara, signo tatuado, pintura depositam no corpo toda uma linguagem: toda
uma linguagem enigmática, toda uma linguagem cifrada, secreta, sagrada, que
evoca para este mesmo corpo a violência do deus, a potência surda do sagrado
ou a vivacidade do desejo. A máscara, a tatuagem, a pintura instalam o corpo
instalam o corpo em outro espaço, fazem-no entrar em um lugar que não tem
lugar diretamente no mundo, fazem deste corpo um fragmento de espaço
imaginário que se comunicará com universo das divindades ou com o universo
do outro. Por ele, seremos tomados pelos deuses ou seremos tomados pela
pessoa que acabamos de seduzir. De todo modo, a máscara, a tatuagem, a
pintura são operações pelas quais o corpo é arrancado de seu espaço próprio e
projetado em um espaço outro.215

Assim, para Foucault, o ato de mascarar-se, maquiar-se, não se fixa no sentido estético,
de “tornar-se belo” – talvez “mais belo” para si próprio, mas não em relação à modelos estéticos
correntes – mas sim uma forma de tropo, de mudança e comunicação entre os espaços, as forças,

215
FOUCAULT, 2013, p. 12.
2

os desejos visíveis e invisíveis, trazendo para o campo material um universo de possibilidades


que anteriormente figuram apenas no imaginário. Dessa forma, o ato de acompanhamento da
transformação, da passagem, como dirá Foucault acima, de um espaço à outro, da nossa
sequência inicial representa um exercício que se repete ao longo do filme sob o espectro
carnavalesco. Nesse sentido, conforme o filme segue-se, podemos compreender um pouco mais
acerca do espaço e proposta do mesmo, onde se destacam frames como:
2
2

Figuras 29, 30, 31, 32 e 34: Os corpos sendo per-


formados em meio ao carnaval de Olinda-PE.

O pensamento foucaultiano é basilar a nossa análise ao passo que o filme em questão se


desenvolve ante ao que seria o espectro carnavalesco. De maneira mais específica, o filme
Folionas ou Paixão de Carnaval, ou? (1975), Jomard M. de Britto, realiza uma imersão no que
seria o cenário carnavalesco pernambucano, através dos diversos cenários, em especial a faixa
de destaca o chamado “bloco As virgens” (imagem 31), podemos notar que o mesmo toma
novamente o espaço de Olinda como palco e inspiração para sua obra. Aqui cabe observarmos
que a cultura carnavalesca de Olinda, torna-se nos anos seguintes, em 1982, Patrimônio Cultural
da Humanidade, concedido pela Unesco, o que nos acomete a força representativa de tal
movimento no cenário cultural pernambucano e nordestino em si. Nesse sentido, podemos
atentar que tal cultura carnavalesca olindense é marcada pelos diversos conflitos entre a elite
regional e as classes populares, que fazem com que o processo de “invenção”, em uma guerrilha
semântica, torne-se efervescente, misturando arte e vida, os blocos e os foliões independentes,
são projetos, espelham as relações sociais da época e por conseguinte suas críticas.
Desse modo, tanto com o bloco que se destaca na faixa em close-up no filme, como na
tradição de criação dos bonecos gigantes, calungas – qual podemos lembrar da calunga do
homem da meia noite, que é estandarte de um dos maiores blocos da cidade e torna-se em 2006,
Patrimônio Vivo de Pernambuco –,216 as questões de gênero, principalmente, de inversão,
desvio as normalizações, são vivamente identificáveis, o que nosso autor toma como ponto
central na obra, trabalhando na maioria das cenas onde se é possível identificar rostos e corpos,
eles estão desviantes, andróginos, o que dentre os frames acima a imagem 32 é representativa

216
SILVA FILHO, Jorge Luiz Veloso da. Do teatro ao museu : a criação do Museu do Mamulengo - Espaço
Tiridá. 2017. 178 f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em História) - Universidade Federal Rural de
Pernambuco, Recife.
2

ante a tal observação, que é possível através dos atores do grupo local Vivencial Diversiones,
em destaque na imagem.
Outro ponto, que atravessa especialmente as sequências iniciais, Jomard Muniz de
Britto, desloca a câmera das ruas e foliões em procissão, representada pela imagem 28, para o
que Paul B. Preciado (2020) chama de crônicas da travessia, ou seja, nosso autor passa a
demonstrar o processo de fabricação, transformação do corpo, como também do deslocamento
operado no campo do desejo, como é identificável nas imagens 29 e 30. Nesse ponto, podemos
retornar as ideias de Foucault (2013) e perceber que os diversos aspectos que compõe a
visibilidade do corpo, o batom vermelho sendo passado nas imagens 29 e 30, o colar de pérolas
ainda da imagem 29 e os diversos processos que operam a construção dos corpos até efetivar-
se no “produto final” exemplificado na imagem 32, todos esses processos de “travessia”, de
mudança, acabam por desestabilizar, no campo das microresistências, as utopias que incidem e
regem o corpo e suas performances.
Jomard Muniz de Britto, em seu livro Arrecife do desejo, chega a dizer que o Carnaval
não seria territórios de anjos, mas de demônios (1994, p. 21). Demônios para os habitantes do
dia, da norma, demônios que se libertam no primeiro dia de carnaval, como marcianos que
invadem a terra, e se espalham pelo dia, até virarem cinzas se continuarem sob o sol depois da
quarta-feira, que marca o que seria a “purificação” re-novada da sociedade para um novo ciclo.
Dessa forma, reconhecemos por fim, na obra de Jomard Muniz de Britto em questão, o processo
inventivo de deslocamento, de criação de um novo espaço, da representação de um
contramundo operado sob o mesmo espaço/tempo das utopias de nação, de gênero, de
religiosidade que se afirmam como poderes regentes da vida.
Portanto, ao atravessarmos as análises dos filmes: Uma experiência didática: o corpo
humano (1974) e Vivencial I (1974), em um primeiro momento e Toques (1975) e Folionas ou
paixão de carnaval (1975) em um segundo, podemos concluir que a produção superoitista de
Jomard Muniz de Britto, marcadamente situada na década de 1970, no espaço pernambucano,
nos oportuniza observar nosso personagem, não propriamente o situando como um militante
propriamente dito, mas pensando que suas atribuições como filósofo, crítico cultural e
professor, convergem no espectro do filmaker sob o signo do experimentalismo, não só da
câmera, mas como vimos, das fronteiras, dos limites do desejo, do erótico, da sexualidade, dos
corpos, se apoderando do espaço e corpos para construir um espaço de fuga e vivencialismo,
uma operação de transformação efetiva da cidade em uma invenção permanente.217

217
BRITTO, 1994, p. 27.
2

4. Revolver Tudo: Da voz na pró-cura dos corpos

[...], ao meu passado, eu devo o meu saber e a minha


ignorância, as minhas necessidades, as minhas relações, a
minha cultura e o meu corpo. Hoje, que espaço o meu
passado deixa para a minha liberdade hoje? Não sou
escrava dele. O que eu sempre quis foi comunicar
unicamente da maneira mais direta o sabor da minha vida.
Unicamente o sabor da minha vida. Acredito que eu
consegui fazê-lo. Vivi num mundo de homens, guardando em
mim o melhor da minha feminilidade. Não desejei e nem
desejo nada mais do que viver sem tempos mortos.
(Simone de Beauvoir. Não mais me deitar no feno
perfumado ou..., grifo nosso).

Ao atravessarmos os diversos meandros deste trabalho, podemos por fim, elaborarmos


um apanhado geral acerca da proposta desta escrita. Nesse sentido, cabe observar que a escolha
de Jomard Muniz de Britto, enquanto personagem central deste, move-se em função da sua
participação inventiva e diversificada em meio a década de 1970, no espaço pernambucano.
Todavia, sua diversidade de ações nos leva a contemplar ao leitor que desconhece o
personagem, não só uma imersão específica no nosso objeto de pesquisa, mas exatamente a
síntese de sua trajetória, suas relações, influências, margens e marcas de pensamento, o que fora
alvo do nosso segundo tópico desta monografia. Todavia, para além de uma inserção e
contextualização de sua trajetória, tal tópico resguarda ainda a premissa de delimitar-se pela
oposição, pelo que não é, a própria originalidade e significância desta pesquisa.
Ou seja, ao passo que observamos o passado, as relações, influências e produções de
Jomard Muniz de Britto, observamos o próprio processo de conformação de sua identidade, a
sua fabricação em meio ao espaço cultural pernambucano que margeia as décadas de 1960 e
1970. Entretanto, ao tomarmos os filmes experimentais em Super-8 dirigidos pelo mesmo entre
1974 e 1982, enxergamos um novo rosto de tal sujeito, um rosto que mostrasse fugidio a
carimbos como o de professor de filosofia caçado pela Ditadura civil-militar, nestes nosso
personagem embarca em uma linha de fuga, de modo a não prestar culto nem ao dispositivo de
normatividade social, nem mesmo a si próprio. Deste modo, observar a sua produção em Super-
8 de tal espaço material e temporal é fazer-se em um sobrevoo sobre um espaço de liberações
encontrado pelo mesmo, um espaço na qual Jomard M. de Britto vive seus mais diversos desejos
e inquietações.
Em meio a tal espaço de pulsão do desejo, nos acomete no terceiro tópico deste trabalho
à análise de parte de tal material, em especial dos filmes: Uma experiência didática: o corpo
humano, Vivencial I, em um primeiro momento, Toques e Folionas ou paixão de carnaval em
um segundo, de modo a representar o corpus cinematográfico de tal sujeito no período que
2

permeia a década de 1970 e o início da seguinte. Com o estudo de tais produções, nos é possível
vislumbrar como Jomard Muniz de Britto, se utiliza de tal ferramenta para tensionar suas
“múltiplas identidades atribuídas”, de modo a viver, um pouco do professor, do crítico, do
filmaker e eminentemente do viver a sua própria sexualidade. Tais filmes acabam por denotar,
tanto o que Durval Muniz de Albuquerque Júnior irá conceber como uma espécie de
“dispositivo de sexualidade nordestinada”,218 onde há a manobra de papéis próprios atribuídos
ao gênero masculino e feminino em de tal espaço.
Como também, o modo com a qual nosso personagem compreende e se coloca diante
dos regimes de ordenação que incidem sobre os corpos. Portanto, ao esmiuçarmos tais
produções, nos propomos a reconhecer tanto a existência de um dispositivo de sexualidade
próprio, legado, produzido, sobre o que seria o Nordeste, tendo o espaço Pernambucano como
palco privilegiado em tais debates desde o início do século, com o movimento tropicalista
encabeçado por Gilberto Freyre, como a existência do “outro” que figura fora de tal
normatividade. Logo, o trabalho aponta o que Butler chamará por uma economia
219
heteronormativa, traduzida ou apropriada pelo discurso da nordestinidade, para assim,
observar Jomard Muniz de Britto, não como um ativista cultural propriamente dito, mas
entendendo que as linhas de fuga produzidas por este e exemplificadas por tais filmes analisados
são também uma forma de resistir e existir defronte a tal “dispositivo de nordestinidade” e o
poder repressivo do período ditatorial.
Por conseguinte, pensar as expressões de desejo contidas nas performances, nos cortes,
nas escolhas feitas em tais produções fílmicas, mostrasse um exercício de revolver, repensar as
vias de revolução dispostas entre as décadas de 1970 e 1980, para além de uma consciência
racional em si. Pensando uma revolução que nasce e se finda nos próprios corpos,
“microinsurreições”, como dirá Rolnik,220 que concorrem com a polarização de gêneros,
repensando as possibilidades de identidade matizadas na condição de “estranho”, queer, mas
que encontram em ferramentas com a câmera Super-8 uma forma de embate, de dessacralizar
e “sair-se sob o sol” em forma de (ex)implosão dos corpos mal: quistos, vistos, ditos.

218
Aqui nos referimos ao estudo feito por Durval Muniz de Albuquerque Júnior, na obra: Nordestino: invenção
do falo, onde o papel da dicotomia de gêneros, masculino e feminino, será alvo de suas discussões.
219
BUTLER, 2015.
220
ROLNIK, 2019.
2

REFERÊNCIAS

FONTES

Entrevistas

ALMEIDA, Agnaldo; et al. “Arte não tem missão redentora”. A União. 1981b. In: : COHN,
Sérgio (org.). Jomard Muniz de Britto. Apresentação Paulo Marcondes Ferreira Soares. Rio de
Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 72, grifo nosso.

CARVALHO, Vladimir. Tropicalismo ao Norte. Diário de Notícias, 1969. In: COHN, Sérgio
(org.). Jomard Muniz de Britto. Apresentação Paulo Marcondes Ferreira Soares. Rio de Janeiro:
Beco do Azougue, 2013, p. 40.

ENTREVISTA AO CORREIO DAS ARTES, Correio das Artes, 03 de ago. de 1997. In:
BRITTO, Jomard Muniz de. Atentados Poéticos. Recife: Bagaço, 2002a, p. 308-321.

LEITÃO, Paulo André; et al. Recife é um show. Jornal da Cidade, 1981a. In: COHN, Sérgio
(org.). Jomard Muniz de Britto. Apresentação Paulo Marcondes Ferreira Soares. Rio de Janeiro:
Beco do Azougue, 2013, p. 89.

Filmografia

FOLIONAS OU PAIXÃO DE CARNAVAL, OU?, Direção: Jomard Muniz de Britto.


Produção: ______. Imagens: Carlos Cordeiro. Olinda-PE: [S. N.], 1975, Ficção/experimental,
8mm (07 min), son., color.

O PALHAÇO DEGOLADO. Direção: Jomard Muniz de Britto e Carlos Cordeiro. Recife, 1977.
9min22s, son. Color.

TOQUES, Direção: Jomard Muniz de Britto. Produção: ______. Olinda: [S. N.], 1975,
Ficção/experimental, 8mm (07 min), son., color.

UMA EXPERIÊNCIA DIDÁTICA: O CORPO HUMANO, Direção: Jomard Muniz de Britto


e Carlos Cordeiro. Produção: ______. [S. I.]: [S. N.], 1974, Ficção/experimental, 8mm (04
min), son., color.

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