Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Título em outro idioma: Weaving ties and connecting dots : men of color, political cultures,
racialization and the citzen's (in)vulnerable armor, Santos (1870-1898)
Palavras-chave em inglês:
Quilombos
Brotherhoods
Abolitionists
Associativism
Freedom
Black people
Santos (SP) - Social conditions
Área de concentração: História Social
Titulação: Mestre em História
Banca examinadora:
Aldair Carlos Rodrigues [Orientador]
Lucilene Reginaldo
Maria Helena Pereira Toledo Machado
Data de defesa: 16-07-2021
Programa de Pós-Graduação: História
A meus pais,
Maria da Luz e Félix Benedito
Agradecimentos
Após mais de três anos em meio a arquivos, bibliotecas, aulas, reuniões e viagens, fiquei
surpreso ao perceber que uma pesquisa se faz por meio do que procurei demonstrar na presente
investigação: circulações, encontros, solidariedades e conexões. Ao dar meus primeiros passos
como pesquisador, achei que passaria horas dentro de arquivos e biblioteca, isolado, o que
realmente aconteceu. No entanto, igualmente tive que me deslocar por diferentes cidades,
recorrer a amigos, familiares, colegas de profissão, instituições e várias pessoas que fui
conhecendo ao longo do caminho. Corro risco de esquecer alguns nomes, mas assumindo esse
risco, gostaria deixar meus singelos, mas sinceros agradecimentos aos que minha memória
vacilante permitir recordar.
Ao Fundo de Apoio ao Ensino e à Extensão (FAEPEX; Convênio n°: 519 292-1,
Solicitação 2138/18) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq; processo 130226/2019-0) que financiaram o projeto e cujos recursos foram vitais para
o andamento da pesquisa.
Ao professor Aldair Carlos Rodrigues, por toda a atenção, paciência e orientação que
dedicou a meu projeto. Suas leituras e comentários me deram rumo quando eu estava
completamente perdido em um mar de documentação e historiografia.
À professora Lucilene Reginaldo, por ter aceitado o convite para compor tanto a banca
da qualificação e da defesa. Além disso, sou imensamente grato por ter se interessado e se
disposto a me orientar durante a monografia, na graduação, onde dei os primeiros passos na
investigação da documentação que serviu de fonte para esta dissertação. Inclusive, fez toda a
diferença ter sido seu aluno em disciplinas que marcaram minha formação.
À professora Maria Helena P. T. Machado, por ter aceitado compor a banca da defesa e
por ter aceitado minha matrícula como aluno especial na disciplina que ofereceu na FFLCH-
USP em 2019, na qual foram debatidos temas importantes para o andamento da pesquisa.
Ao professor Mário Augusto Medeiros da Silva, por ter aceitado fazer parte da banca
da qualificação e ser suplente da defesa. Sem seus comentários, críticas e sugestões, o trabalho
não teria desenvolvido pontos cruciais para discussão que me propus fazer.
Ao professor Matheus Serva Pereira, por ter aceitado ser suplente da banca de defesa e
pela gentileza em me dar dicas muito boas sobre a pesquisa em Santos, quando nos conhecemos
em um evento acadêmico no IFCH-UNICAMP.
À Irmandade de São Benedito de Santos, que me permitiu consultar seu acervo
particular, cuja documentação se tornou a principal fonte consultada nesta dissertação.
Agradeço especialmente ao sr. Provedor Daciano Rodrigues Rocha que pessoalmente me
recebia em seu tempo vago para que eu pudesse digitalizar os documentos.
Aos meus pais, Maria da Luz de Freitas Santos e Félix Benedito Tenório dos Santos,
cuja visão de futuro e os preparativos que deixaram em vida abriram os primeiros caminhos
para minha formação escolar e universitária. Sem todo o amor, cuidado e incentivo que me
dedicaram, com certeza jamais teria realizado coisa alguma. Igualmente, agradeço a meus tios,
José Manoel Clemente de Freitas e Rosemi Bonfim de Oliveira Freitas que tomaram para si a
missão de assumir minha tutela e de minha irmã, o que fizeram com amor tão ou maior que
meus próprios pais.
À minha irmã Lenísia e meus primos Tamires e Luiz Ricardo, companheiros de infância
e adolescência que encheram minha vida de alegria e diversão, mesmo com nossas picuinhas
eventuais.
À minha companheira, namorada, amante, revisora e interlocutora Karen de Andrade,
que mais do que ninguém esteve ao meu lado cotidianamente, encorajando a perseverança no
trabalho, mas também compartilhando momentos de felicidade, tristeza, saúde e doença.
Aos meus primos João Pedro e Paulo Vitor, que sempre me trazem um sopro de
juventude, quando eu menos espero.
À Alexandro Souza, Cendi Gadhes, Matheus Lessa, Guilherme Ferreira, Wilker dos
Santos Brito, Pedro Anastácio, Felipe Freitas, Murilo Freitas, Lucas Vigal, Fellipe Sales e
Fellipe de Moura Araújo, amizades que me acompanham desde a época da escola e continuam
sendo companheiros para desabafos e bagunças.
À Taína Aparecida da Silva, Felipe Mello, Bruno Ribeiro, José Victor, João Lopes
Rampim Renata Fialho Rotenberg, Klaus Ramalho von Behr, Monique Telecki, Isabela Salinas,
Matheus Gonçalves, Micael dos Santos, Mateus Costa, Natalia Barbarini, Lucas Rosa, Yuri
Duarte, amigos que fiz entre a graduação e o mestrado, sem os quais cursar história não seria a
mesma coisa, além de que tudo seria muito mais chato e difícil.
À Pedro Ferreira, Isabela Castilho, Fernanda Ramos, Lua Bonduki, Raul Schor e Rafael
Palazzi, com quem felizmente partilhei moradia em meio a um período tão difícil como a
pandemia de COVID-19. Sem os papos no quintal, os churrascos improvisados na varanda e os
filmes nas noites frias essa fase teria sido muito mais enlouquecedora.
Um agradecimento mais que especial àqueles amigos que me hospedaram em suas casas
para que eu pudesse realizar minhas pesquisas: Matheus da Cruz, Adriano Reis, Leonardo
Novo, Guido Santos e Lorraine Delorenzo. Além de me prover estadia, sua companhia em bares
após os dias enfurnado nos arquivos foi indispensável para o amadurecimento de algumas ideias
sobre o trabalho e sobre a vida.
À todo o pessoal do Centro de Referência Quilombo Urbano OMG e do Cursinho
Popular Dandara dos Palmares, com quem tive grandes momentos de aprendizado tanto como
educador quanto como pesquisador, mas principalmente como cidadão e agente político.
À professora Ana Flávia Magalhães, por ter oferecido duas disciplinas na graduação que
me forneceram os primeiros subsídios teóricos para pensar nos meus interesses de pesquisa.
Até hoje retorno àquelas ementas e às minhas anotações das aulas sobre liberdade e imprensa
negra.
Ao professor Fernando Teixeira da Silva, que me indicou leituras importantes sobre
Santos quando eu ainda estava apenas procurando algo para ser tema de minha monografia de
graduação. Também sou muito grato pela oportunidade que me deu em ser monitor da disciplina
de Brasil III, quando foi responsável por ela, em 2016.
Aos funcionários das bibliotecas da UNICAMP, especialmente a do IFCH, onde passei
horas e horas trabalhando na dissertação e tive todo o suporte que precisei.
Aos funcionários do Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, Arquivo da Diocese
de Santos, Fundação Arquivo e Memória de Santos, Biblioteca da Sociedade Humanitária dos
Empregados do Comércio de Santos, da Hemeroteca Municipal Roldão Mendes e do Arquivo
Público do Estado de São Paulo, cujo atendimento foi o melhor que eu podia querer.
Assim, já me desculpando caso alguém tenha me fugido à memória, vou ficando por
aqui para que leitor possa se concentrar no que mais lhe interessa.
“O crioulo me diz que eu sou mulato
O branquelo me diz que eu sou moreno
Tem quem diga que eu sou bicho do mato
Porque me fazem mal, mas eu não temo
Nem com furo de bala não me abato
Nem com corte de faca muito menos
Pois meu corpo eu fechei com meu retrato
Da medalha de São Bento Pequeno”
Toque de São Bento Pequeno,
Paulo César Pinheiro
RESUMO
The dissertation aims to investigate the political cultures of free and freed black and brown
people in Santos-SP, their interconnections with quilombos, social movements and Catholic
brotherhoods between 1870 and 1898. We intend to understand the position and agency of these
subjects through the reconstitution of their trajectories that permeate the most diverse events
and political spaces. In parallel, we seek to demonstrate how the brotherhoods, little explored
in the historiography of São Paulo in general, can serve to deepen our knowledge about the
social life of the city. We have also focused on how the racialization process influenced the
constitution of these political cultures, at the same time that it marked the identities forged
individually and within lay and civil associations. We sought to evidence the interconnections
of the historical agents not only among the different spaces of the municipality, but also with
other regions of Brazil and abroad. Our main argument is that political culture in Santos was in
a process of (re)elaboration, in which a series of references from other cultures were mobilized
by the subjects who came to settle in the seaside city. To capture moments and meanings that
reveal this process, in order to understand the perspective of black and brown people, it was
necessary to search for these references in sources that recorded their voices and/or those that
allow us to reconstruct the realities in which they lived and the trajectories they traced. A varied
set of documentation was used to retrace the context of Santos during the period in question
and to make a prosopography of the members of the Irmandade de São Benedito de Santos. The
newspaper Diário de Santos (1880-1885 and 1888-1891) and the almanac Indicador Santista
(1887) were consulted to access this daily life, as well as the main debates and events that had
repercussions on public opinion. It was also possible to gather biographical information about
several subjects who published or were mentioned in these documents. Regarding the
brotherhoods and their internal dynamics, we studied two undated compromissos, the Livro de
Irmãos and the Livro de Atas (1859-1887) of the Irmandade de São Benedito de Santos. We
also consulted a summary of the meetings of the Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos de Santos (1880-1902), by historian Jaime Franco. Finally, to reconstruct the
biographies of the subjects and their participation in various events, we crossed what the
historiography about the city had already narrated with information from civil and parish
registers (19th century), population census (1836), official correspondence between authorities
(1884-1885), a police inquiry (1885), and voter lists (1880-1881) distributed among the
archives of Santos and São Paulo. In addition, nominal searches were made in the Brazil
National Library's digital hemeroteca to locate some agents in periodicals from other regions,
especially São Paulo and Rio de Janeiro.
INTRODUÇÃO
Em 1895, Quintino de Lacerda foi eleito vereador municipal de Santos. Ele era um
homem negro, natural de Sergipe, que chegou à cidade ainda como escravizado. Não se sabe
exatamente quando desembarcou no litoral paulista, nem quando foi adquirido pelos irmãos
Lacerda, mas foi mantido como escravizado de ganho, alugando seus serviços de cozinheiro. A
historiografia também desconhece quando o sergipano conseguiu sua alforria, mas segundo os
memorialistas, em 1882 ele foi escolhido para liderar o Quilombo do Jabaquara, um reduto de
fugitivos do cativeiro do interior da província, supostamente idealizado e construído por um
grupo de jovens ilustrados, muitos deles filhos das elites comerciais da cidade.1
A participação ativa de Quintino de Lacerda no movimento abolicionista local é atestada
por todos os autores, embora os mais recentes problematizem sua atuação, destacando
ambivalências e interesses latentes na narrativa memorialista.2 De qualquer maneira, o liberto
teria papel de destaque em mais dois acontecimentos históricos, antes de ser eleito para
vereador. Em 1891, ele liderou “turmas de homens de cor” para furar a greve portuária
encabeçada por trabalhadores imigrantes europeus, atendendo ao chamado de empresários e
patrões, outrora aliados seus na luta contra a escravidão. Além disso, dois anos antes de ser
eleito, Lacerda também teve um papel de liderança de algumas tropas na Revolta da Armada,
em favor de Floriano Peixoto, para proteger o porto mais importante do estado de São Paulo.
Como recompensa, ele recebeu o título honorário de major do exército como condecoração por
seus atos.3
No entanto, ao ser eleito vereador, assistimos à recusa de seus colegas na Câmara
Municipal em lhe dar posse. Um atrás do outro renunciava ao ser nomeado presidente da
1
SANTOS, Francisco Martins dos. História de Santos. São Paulo: Emp. Gráfica Revista dos Tribunais, 1936, vol.
2, pp. 221-222.
2
SANTOS. Op. cit., 1936, vol. 2, pp. 212-240. GITAHY, Maria Lúcia C. Ventos do mar: trabalhadores do porto,
movimento operário e cultura urbana. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, pp. 127.
LANA, Ana Duarte. Uma cidade na transição. Santos 1870-1913. São Paulo/Santos: Hucitec, 1996, pp. 189.
MACHADO, Maria Helena P. T. O Plano e o Pânico: Os Movimentos Sociais na Década da Abolição. 2ª ed. rev.
São Paulo: Edusp, 2010, pp. 141. Da mesma autora: “De rebeldes a fura-greves: as duas faces da experiência da
liberdade dos quilombolas do Jabaquara na Santos pós-emancipação”. In: Cunha, Olívia Maria Gomes da; &
Gomes, Flávio dos Santos. (orgs.) Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2007, pp. 241-282. ROSEMBERG. Ordem e burla: Processos sociais, escravidão e
justiça em Santos. São Paulo: Alameda, 2006, pp. 222-241. PEREIRA, Matheus Serva. Uma viagem possível: da
escravidão à cidadania. Quintino de Lacerda e as possibilidades de integração dos ex-escravos no Brasil. Niterói-
RJ: Dissertação de mestrado, UFF, 2011, especialmente capítulos 1 e 4.
3
Sobre a greve de 1891: GITAHY. Op. cit., pp. 79-81. MACHADO. Op. cit., 2007, pp. 241-282. PEREIRA. Op.
cit., 2011, pp. 239-256. Sobre a participação de Lacerda na Revolta da Armada: PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 24,
232 e 257.
17
câmara, para não ter que fazê-lo. Até que José André do Sacramento Macuco, enfim, dá a posse
ao vereador negro. Porém, logo em seguida também renuncia, declarando estar enojado com
esta situação. Não fica evidente se o nojo era de seus colegas que negavam a eleição de Lacerda,
ou se era pelo fato deste ter sido eleito. Esse episódio, que tão pouca atenção recebeu dos
historiadores, mostrou-se para nós revelador de processos históricos pouco perceptíveis,
dependendo da porta de entrada na documentação disponível para o período e localidade aqui
estudados.4
Nessa versão do historiador santista Francisco Martins dos Santos, mais romantizada, é
difícil de ir além da constatação de que Lacerda foi alvo do racismo de seus colegas da vereança;
e que ele tinha aliados suficientemente importantes para conseguir tomar posse e exercer o
cargo por mais ou menos um ano, até mesmo presidindo algumas sessões da Câmara Municipal
de Santos. Por seu turno, Matheus Serva Pereira ampliou nosso entendimento sobre o episódio,
comparando os registros nas atas da Câmara Municipal e em notícias de jornais. No quadro que
reconstituiu, o sergipano se encontra no cerne de várias disputas políticas entre as elites
santistas, mas também entre ele e outros pretensos representantes dos trabalhadores, como
Olympio Lima, diretor do A Tribuna do Povo. Foi graças a essa teia emaranhada de conflitos
de interesses, que a posse do vereador negro foi associada a boatos de outras maquinações entre
os partidos republicanos em disputa pelo controle da cidade e do estado.5
Contudo, acreditamos que há mais dimensões a serem exploradas a partir deste caso,
tendo em vista algumas informações que coletamos em outras fontes. Pudemos tomar
conhecimento que o mesmo Sacramento Macuco era pardo6 e que já havia existido outro
vereador mestiço. Este era João Octavio dos Santos, filho de uma escravizada com seu senhor
branco.7 Essas últimas informações que encontramos nos levam a uma pergunta importante:
por que Quintino de Lacerda é considerado pelos seus contemporâneos e pela historiografia
como o primeiro vereador negro se outros o haviam antecedido? E, o que o fato de Macuco ser
pardo acarreta no caso dele ter “sentido nojo” da situação envolvendo a eleição do liberto?
Ademais, esses três indivíduos fizeram parte da Irmandade de São Benedito de Santos
e tiveram papéis importantes no seu desenvolvimento, em momentos diferentes. Octavio dos
Santos foi juiz da confraria em 1859; Macuco doou um terreno para construírem uma capela
4
SANTOS. Op. cit., 1936, vol. 2, pp. 261. Na última década Pereira. Op. cit., 2011, pp. 257-269 revisitou o
episódio comparando diversas fontes que registraram o ocorrido e as discussões contemporâneas a seu respeito.
5
Idem.
6
Essa constatação foi resultado de uma articulação de um variado conjunto de fontes documentais que exporemos
detalhadamente no capítulo 5.
7
OLIVEIRA, Joyce. “Niger, sed formosus”: a construção da imagem de São Benedito. Guarulhos-SP: Dissertação
de mestrado, UNIFESP, 2017, pp. 280-281.
18
própria em 1886, sendo eleito como mesário no ano seguinte; e Lacerda, coincidentemente ou
não, entrou na irmandade naquele mesmo ano de 1886, poucos meses depois de seu veterano
de vereança. Afinal eram aliados ou adversários políticos? Seria essa aliança ou adversidade a
mesma em todos os espaços? E como o processo de racialização influenciava esses
posicionamentos e as demais escolhas que fizeram, como a de entrar em uma confraria de
“pobres pretos”?
Questões como essas puderam ser traçadas graças aos desdobramentos historiográficos
que resultaram na formação do campo do Pós-Emancipação e do Pós-Abolição. Até meados da
década de 1990, apenas a marginalização dos libertos no mercado de trabalho pós-emancipação
era enfatizada nas análises, com enfoque nos últimos cativos e seu destino após a abolição, mas
sem apresentar maior potencial explicativo para a história do período.8 Assim, o campo do Pós-
Abolição começa a tomar forma, sendo elaborado como uma área de estudos derivada da
escravidão, sem a ela se limitar. Seu principal desafio foi - e está sendo - o de propor uma
periodização mais ampla, num contexto de emancipações políticas consecutivas, em nome da
liberdade dos novos cidadãos. Trata-se de tentar compreender, nesse esforço, a emancipação de
uma significativa parcela da população antes e depois da abolição formal de 1888. 9 Variáveis
como a questão dos direitos de cidadania dos libertos, o pensamento racial emergente na
formação dos Estados-nação americanos, bem como suas relações com os cânones do ideário
liberal e com as variadas conjunturas históricas, em que as diferentes sociedades escravistas
viveram o processo de emancipação escrava ao longo do século XIX, passaram a ser cada vez
mais consideradas.10
8
RIOS, Ana Maria; MATTOS, Hebe Maria. “O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas”.
Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 5, n. 8, junho de 2004, pp. 170.
9
GOMES, Flávio dos Santos. MACHADO, Maria Helena P. T. Da abolição ao pós-emancipação: ensaiando
alguns caminhos para outros percursos. In: CASTILHO, Celso Thomas. MACHADO, Maria Helena P. T. (orgs.)
Tornando-se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de abolição. São Paulo-SP: Edusp, 2015, pp. 30.
10
MATTOS. RIOS. Op. cit., pp. 173. Entre trabalhados com essas preocupações, podemos citar: MATTOS, Hebe.
Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brazil, século XIX). 3ª ed. rev.
Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2013. ANDREWS, George Reid. Black Political Protest In Sao Paulo, 1888-
1988. Journal of Latin American Studies, Vol. 24, No. 1 (Feb., 1992), pp. 147-171. ALBUQUERQUE, Wlamyra.
Santos, Deuses E Heróis Nas Ruas Da Bahia: Identidade Cultural Na Primeira República. Afro-Ásia, 18 (1996),
103-124. Da mesma autora, A exaltação das diferenças: raça, cultura e cidadania negra (Bahia, 1880-1900).
Campinas-SP: Tese de doutorado, UNICAMP, 2004. OLIVEIRA, Lúcia Helena. Construindo uma nova vida:
migrantes paulistas afro-descendentes na cidade do Rio de Janeiro 1888-1926). Campinas-SP, Tese de doutorado,
2001. MONSMA, Karl, FERREIRA, Lania Stefanoni, SILVA, Virgínia Ferreira Da. Imigração E Violência
Racial: Italianos E Negros No Oeste Paulista, 1888-1914. Impulso, Piracicaba, 15(37): 49-60, 2004. SANTOS ,
Jocélio Teles Dos. De Pardos Disfarçados A Brancos Pouco Claros: Classificações Raciais No Brasil Dos Séculos
XVIII-XIX. Afro-Ásia, 32 (2005), 115-137. MACHADO. Op. cit., 2007. BARICKMAN, B. J. “Passarão Por
Mestiços”: O Bronzaemento Nas Praias Cariocas, Noções De Cor E Raça E Ideologia Racial, 1920-1950. Afro-
Ásia, 40 (2009), 173-221.
19
Seguindo as questões propostas por esse campo e pensando no que narramos sobre a
eleição de Lacerda, nosso estudo busca dar algumas respostas e propor mais outras tantas
questões sobre quem são os negros e pardos em Santos; quantos são; de onde vieram; como se
dão suas relações sociais e políticas. Especialmente num momento de profundas transformações
de poder e recrudescimento da racialização das relações sociais, que foram os últimos anos do
século XIX. Estamos particularmente preocupados com a forma como essas pessoas se viam,
de que forma eram vistas pelos outros e de que maneira viam umas às outras.
Nas últimas três décadas, Santos e seus habitantes têm sido alvo do interesse de alguns
poucos trabalhos cujo enfoque de estudo são a luta contra a escravidão e a trajetória pessoal de
libertos, temas correlatos ao campo do Pós-Abolição.11 A princípio, porém, a cidade litorânea
foi tema de pesquisadores do movimento operário, que viam na região um dos berços da luta
de classes sob o regime de trabalho livre. Na narrativa desses autores, os principais
protagonistas são os imigrantes europeus de baixa renda – sobretudo portugueses e espanhóis
– que se estabeleceram na cidade desde fins do século XIX e durante toda a primeira metade
do XX. Esses trabalhadores assumiram postos de trabalho que, anteriormente, eram exercidos
por escravizados de ganho e libertos, ou seja, eles eram estivadores, carroceiros, caixeiros,
pequenos comerciantes e ambulantes, marceneiros, ferreiros, sapateiros e uma infinidade de
ofícios de renda modesta. Não se ignora aqui algum esforço que esses trabalhos empenharam
em fornecer um panorama da composição populacional e da cultura operária santista,
destacando a presença significativa de negros entre os habitantes de Santos, principalmente na
classe trabalhadora. Contudo, eram as entidades e sindicatos dos europeus e seus descendentes
que ganhavam a maior parte da atenção.12
As transformações urbanas e suas consequências na ocupação, economia e dinâmica
social da cidade, também foram tema recorrente nas pesquisas mais conhecidas sobre Santos.
Ana Lanna é a melhor representante desse esforço de compreensão do rápido e violento
desenvolvimento urbano pelo qual a cidade passou na virada entre os séculos XIX e XX.
Através de seus estudos, podemos conhecer as condições de moradia dos vários estratos sociais;
a vulnerabilidade dos santistas às séries de epidemias que devastaram a cidade naquele período;
e as disputas em torno de quais interesses dirigiriam as reformas urbanas e portuárias para o
melhor aproveitamento econômico do espaço. Aqui, o abolicionismo e a luta de cativos e
11
MACHADO. Op. cit., 2007. PEREIRA. Op. cit., 2011, ROSEMBERG. Op. cit., 2006.
12
GITAHY. Op. cit. SILVA, Fernando Teixeira. Operários sem patrões: os trabalhadores da cidade de Santos no
entreguerras. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 2003. TURCI, Alex Neriz. Para um Estudo da questão do
socialismo no Brasil: Os primórdios em Santos através da publicação de A Questão Social. São Carlos-SP: Tese
de Doutorado, UFSCAR, 2007.
20
libertos contra a escravidão e suas rivalidades com os trabalhadores europeus são brevemente
abordados, porém, não ocupam o centro da investigação.13
Ainda, recentemente, observamos um esforço de algumas pesquisas em estudar as
iniciativas educacionais por parte da sociedade civil, principalmente nos anos iniciais da
Primeira República. Aqui, uma miríade de sociedades beneficentes e mutualistas são
exploradas, destacando alguns participantes mais célebres, mas dificilmente superando uma
narrativa descritiva, que igualmente desconsidera a cor e o pertencimento étnico dos agentes
históricos.14
Nessas narrativas sempre se percebe uma historiografia que tratou da cidade de Santos
colocando a população negra como marginal ou ausente da história da cidade. Esse “paradigma
da ausência” ou da marginalidade é um problema epistemológico marcado pelo eurocentrismo,
um legado que nos impede de compreender o mundo a partir do próprio mundo em que vivemos
e das epistemes que lhes são próprias.15 Segundo Álvaro Pereira Nascimento,
13
LANNA. Op. cit.
14
CALEFFI, Anderson Manoel. A Educação na Primeira República na cidade de Santos (1889-1908). São Paulo:
Dissertação de mestrado, USP, 2014.
15
NASCIMENTO, A. P. “Trabalhadores negros e o “paradigma da ausência”: contribuições à história social do
trabalho no Brasil”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 29, n. 9, setembro-dezembro 2016, pp. 15.
16
Idem, pp. 13.
21
e escrever a história do Brasil significava legitimar uma representação do país por meio de uma
competência científica de sua elaboração. Para tanto, elegia-se personagens num passado
remoto para representar as origens de sua civilização.17
A obra de Francisco Martins dos Santos, História de Santos, trata-se de um exemplar
desse tipo de produção intelectual.18 Com um capítulo dedicado ao abolicionismo, o autor
procurou narrar a história do movimento através da repetição de determinados nomes e
episódios, comprovando a circularidade de uma interpretação dos fatos que procurou construir
uma perspectiva a partir de determinados nomes, eventos e incidentes, insistentemente
relembrados e reescritos, num processo de legitimação.19 Elas “buscaram recontar a trajetória
de um punhado de homens que lutaram pelo fim da escravidão e pela entrada do país na lista
das nações ‘civilizadas’”.20 Essas narrativas são expressão da construção de uma memória
idealizada sobre o município, com intenção de transparecer tranquilidade e consenso entre a
população local com relação a questão do elemento servil. Um discurso apologético e teológico
que não cansou de descrever Santos como o “sonho permanente do cativo e rumo comum de
todo negro que queria ser livre”.21
Os escravizados e libertos não ganhavam quase ou nenhum destaque, a não ser para
apontar a suposta origem da escravidão no continente africano e algumas exceções de “bons
negros” que entenderam seu papel auxiliar na campanha. Essa narrativa demorou a receber uma
crítica contundente.
Mesmo durante os anos 1970, quando Alice Aguiar de Barros Fontes criticou a
uniformidade com que o abolicionismo era tratado pelos historiadores brasileiros, seu trabalho
continuou deixando à margem do processo a agência daqueles que seriam os protagonistas
dessa luta, cativos e libertos. Para essa autora, o caráter revolucionário dos caifazes, ala mais
radical do abolicionismo paulista capitaneada por Antonio Bento, era merecedor de mais
atenção. Apesar de não terem sido tão efetivos em introduzir os fugitivos do eito no mercado
de trabalho livre santista, seu sucesso em acelerar a desorganização do trabalho escravo,
auxiliando fugas e acoitamentos, fora admirável.22 Poucos anos depois de seu estudo, porém,
Célia Maria Marinho de Azevedo demonstrou a diversidade de projetos abolicionistas,
17
Sobre o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo ver SCHWARCZ, Lilia Mortiz. O espetáculo das raças:
cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, pp. 164-
175 e, para um panorama de todos os institutos congêneres no país ver o Capítulo 4 do mesmo livro na íntegra.
18
SANTOS. Op. cit., 1936, 2 volumes. Para o abolicionismo ver vol. 2, pp.-212-240.
19
MACHADO, Op. cit., 2011, pp. 248 e 249.
20
PEREIRA, Op. cit., pp. 89.
21
Idem.
22
FONTES, Alice Aguiar de Barros. A prática abolicionista em São Paulo: os caifazes (1882-1888). Tese de
doutoramento, São Paulo, Universidade de São Paulo, 1976.
22
23
AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginario das elites, seculo XIX.
São Paulo, SP: Annablume, 2004, especialmente capítulo 4.
24
CONRAD, Robert. Os ultimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro, RJ: Civilização
Brasileira, 1975. CARDOSO, Ciro Flamarion. Escravidão & Abolição no Brasil: Novas Perspectivas, Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. ALONSO, Angela. Flores, votos e balas. O movimento abolicionista brasileiro
(1868-1888). São Paulo: Companhia das Letras, 2013. PARRON, Tâmis. A política da escravidão na era da
liberdade: Brasil, Espanha e Estados Unidos, 1787-1845. Tese de doutoramento, Universidade de São Paulo,
2015.
25
AZEVEDO. Op. cit. ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra
no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. CASTILHO, Celso. Abolitionism Matters: The Politics of
Slavery in Pernambuco, Brazil, 1869-1888, tese de Ph.D., Berkeley, University of California, 2008. CHALHOUB,
Sidney. “Precariedade Estrutural: O Problema da Liberdade no Brasil Escravista (Século XIX)”, História Social,
vol. 19, pp. 33-69, 2010. Do mesmo autor: Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão
na corte. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2012. FILHO, Walter Fraga. Encruzilhadas da Liberdade:
Histórias de Escravos e Libertos na Bahia (1870-1910. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020. LIMA, Lana
Lage. Rebeldia Negra e Abolicionismo. Rio de Janeiro, Achiamé, 1980. MACHADO. Op. cit.., 2010. MACHADO,
Maria P. T. CASTILHO, Celso T. Op. cit., 2015, reúne artigos dos mais variados temas relacionados ao processo
de abolição e ao pós-emancipação, tributários das mudanças teórico-metodológicas na historiografia da escravidão
e da abolição, assim como das problemáticas propostas pelo campo do Pós-Abolição. Para um balanço dessas
transformações historiográficas: MACHADO. GOMES. Op. cit., 2015, pp. 19-42.
23
26
MACHADO. Op. cit., 2010, pp. 138-151.
27
MACHADO. Op. cit, 2007.
28
PEREIRA. Op. cit., 2011,especialmente capítulos 1 e 4.
24
trabalho se apresentavam mais acirradas devido a chegada cada vez mais frequente de
trabalhadores europeus.
Entretanto, muitas dúvidas restaram sobre a experiência negra em Santos,
principalmente daqueles livres e libertos. Alguns aspectos da sociabilidade e prática política
dessa parcela da população, que remetem a processos históricos mais amplos do que os tardios
movimentos abolicionistas, podem nos dar mais dimensão para suas formas de luta e resistência
contra a escravidão e as estratégias para manutenção sua liberdade e cidadania. Pensamos que
um estudo mais detido sobre as irmandades de negros e pardos em Santos pode ser produtivo
nesse sentido.
As confrarias católicas existem na cidade desde o século XVI, quando do início da
ocupação da região e da fundação da primeira Irmandade da Santa Casa da Misericórdia e seu
hospital. As irmandades de negros também não tardaram a aparecer, sendo a mais antiga a
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, fundada no século XVII, entre
1650 e 1652. O século XVIII, por sua vez, assistiria ao estabelecimento de mais cinco confrarias
dedicadas a devoções de pretos e pardos: Irmandade de N. S. do Terço, das Mercês, do Amparo,
das Neves e de São Benedito.29 A presente dissertação se debruça sobre esta última e a do
Rosário, para reconstituir trajetórias, sociabilidades e práticas políticas de negros e pardos livres
e libertos.
Apesar dessas agremiações não abrigarem a totalidade absoluta dos sujeitos negros nas
localidades onde são erigidas, elas reúnem ritualmente parte significativa dessas pessoas,
“proporcionando redes de proteção e identificação social mais amplas que aquelas criadas pelo
parentesco ou pela vizinhança”30, que podem ser compreendidas como “família estendida”. Por
muitos anos, os historiadores que se debruçaram sobre essa temática, privilegiando o período
colonial, preocupavam-se em demasia em classificá-las como formas de acomodação ou
resistência ao sistema escravista em vigência na América Portuguesa. É de extrema importância
seus apontamentos sobre a dinâmica institucional entre Estado, Igreja e irmandades e em como
estas podiam servir de entidade representativa de coletivos negros, cativos e libertos, para
29
Sobre a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Santos: CAMPOS, Ernesto de Souza. Santa Casa de
Misericórdia de Santos: primeiro hospital fundado no Brasil, sua origem e evolução. São Paulo, SP: Elvino Pocai,
1943. Sobre as irmandades negras na mesma cidade: OLIVEIRA, Joyce. Op. cit., capítulo 1. Vale ressaltar que
não havia uma Irmandade de N. S. das Neves. Na verdade, era uma devoção partilhada entre vários fiéis que, no
entanto, não se congregaram formalmente.
30
VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa. Campinas-SP:
Editora da UNICAMP, 2007, pp. 142.
25
defender interesses comuns. O período colonial, assim, foi eleito como o momento de maior
atividade dessas agremiações.31
Um segundo momento de produção historiográfica privilegiou a construção e
manutenção de identidades étnicas dentro das confrarias negras, nas quais tradições de matriz
africana eram reelaboradas ao contexto colonial, abrigando não só alianças, mas também
intensas rivalidades entre grupos de procedências distintos, entre os africanos e seus
descendentes.32
Mais recentemente, os estudiosos das irmandades negras têm se dedicado a averiguar
as redes de relacionamento e solidariedade entre as confrarias de homens pretos e as de outros
grupos sociais. Também têm se preocupado com a relação das mesmas e os movimentos
políticos e sociais.33 A experiência da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos de São Paulo, estudada por Antônia Aparecida Quintão, é emblemática nesse sentido,
haja vista as evidências que a autora achou da presença de abolicionistas em reuniões da mesa
administrativa e a forte oposição do pároco de sua igreja a essa aproximação.34 Além disso,
outra novidade dessas pesquisas está na eleição do século XIX como recorte temporal, período
em que supostamente esse tipo de associação estaria em declínio e cedendo espaço para novas
formas de agremiação. Nesses trabalhos, as confrarias se apresentam como espaços de grande
importância para a construção de alianças políticas, não só entre seus membros, mas entre estes
e grupos externos a elas, possibilitando que vislumbremos a complexidade e os pontos de
intersecção entre alianças/rivalidades horizontais e verticais.35 Por outro lado, experiências
como a da Irmandade de N. S. do Rosário de Porto Alegre nos mostram que, longe de serem
substituídas por outras formas laicas de associação, as confrarias de negros podiam servir de
base a partir da qual essas novas formas de organização coletiva seriam construídas.36
31
BOSCHI, Carlos. Os leigos e o poder. São Paulo: Editora Ática, 1986. SCARANO, Julita. Devoção e
Escravidão. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no Século XVIII. São
Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1975. QUINTÃO, Antônia Aparecida. Irmandades negras: outro espaço de
luta e resistência. São Paulo: 1870-1890. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2002, apesar de se deter nas últimas
décadas do XIX, também discute sobretudo o caráter de resistência ou acomodação das confrarias de negros.
32
SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro,
século XVIII. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2000. REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas:
irmandades negras, experiências escravas e identidades africanas na Bahia setecentista. Campinas-SP: Tese de
doutorado, UNICAMP, 2005. VIANA. Op. cit.
33
REIS, João José. A Morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. RIBEIRO, Fábioa Barbobsa. Caminho da piedade, caminhos de devoção: as
irmandades de pretos no Vale do Paraíba paulista, século XIX. São Paulo: Alameda, 2014.
34
QUINTÃO. Op. cit.
35
MACCORD, Marcelo. O Rosário dos Homens Pretos de Santo Antônio: alianças e conflitos na história social
do Recife, 1848-1872. Campinas-SP: Dissertação de mestrado, UNICAMP, 2001.
36
SILVA, Fernanda Oliveira da. As lutas políticas nos clubes negros: culturas negras racialização e cidadania
na fronteira Brasil Uruguai no Pós-Abolição (1870-1960). Porto Alegre-RS: Tese de Doutorado, UFRS, 2017. Da
mesma autora: Os negros, a constituição de espaços para os seus e o entrelaçamento desses espaços: associações
26
Apesar de nosso enfoque maior ter recaído sobre as confrarias, procuramos interpretá-
las em relação com o associativismo intenso da sociedade brasileira e, mais especificamente,
da população negra. Essa prática se tornou mais ampla e diversificada ao longo dos Oitocentos,
conforme a liberdade de associação foi se tornando mais acessível, sobretudo, após a
independência. Alguns pesquisadores tem se debruçado sobre esse fenômeno à luz das questões
propostas pelo campo do Pós-Emancipação e Pós-Abolição de modo a enquadrar as
experiências coletivas de grupos negros que se agremiavam em associações civis. O objetivo
mais comum entre elas era satisfazer uma série de necessidades das comunidades que as
orbitavam, muitas das quais viviam sob condições precárias. Conforme a escravidão e a
monarquia ficavam no passado, a precariedade continuava parte integrante da vida da maioria
dos negros brasileiros, contudo, cada vez mais se abria para eles a possibilidade de se
organizarem sob condições diferentes daquelas do período da escravidão.37
Considerando que nosso interesse de estudo reside nas sociabilidades e articulações
políticas de negros livres e libertos, entre 1870 e 1898, entendemos que esse período foi um
momento de transformações nas relações de poder e de formulação de teorias raciais que
atingiram diretamente a vida dessas pessoas. Para entender essas questões, a experiência
histórica das confrarias negras na cidade se mostra producente levando-se em conta, por um
lado, o procedimento de Machado e Pereira em recuar cronologicamente para recuperar
permanências e rupturas na ação histórica de negros livres e libertos e, por outro, as
aproximações entre as agremiações religiosas e movimentos sociais e políticos demonstrados
pelos estudiosos de irmandades e associativismo. A Irmandade de São Benedito, em primeiro
lugar, e a de N. S. do Rosário dos Homens Pretos, em segundo, foram escolhidas nessa
investigação por representarem uma tradição centenária de sociabilidade e articulação política,
mas também por terem contado com a participação de um número razoável de abolicionistas,
e identidades negras em Pelotas (1820-1943). Porto Alegre-RS: Dissertação de Mestrado, 2011. MÜLLER, Liane
Susan. As contas do meu rosário são balas de artilharia. Porto Alegre-RS: Pragmatha 2013. Em Campinas, os
membros da mesa administrativa da Irmandade de São Benedito fundaram o Colégio São Benedito, nos anos 1890,
o qual teve ainda maior atuação nas primeiras décadas do século XX. Vide: PEREIRA, José Galdino. Os negros
e a construção da sua cidadania: estudo do Colégio Sâo Benedito e da Federação Paulista dos Homens de Cor –
1896-1914. Campinas-SP: Dissertação de mestrado, UNICAMP, 2001.
37
DOMINGUES, P. “Associativismo Negro”. In: GOMES, F. dos S. SCHWARCZ, L. M. (orgs.). Dicionário da
Escravidão e da Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, pp. 117-124. Do mesmo autor: Esta
“magnânima volição”: a Federação dos Homens de Cor. História (São Paulo), v. 37, 2018. SILVA, Lúcia Helena
Oliveira. “Associativismo Negro: Federação Paulista dos Homens de Cor (1910-1936)”. In: Ananis do 7º Encontro
Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Curitiba-PR: UFPR, 2015, pp. 1-15. SILVA. Op. cit., 2017.
MACCORD, Marcelo. Andaimes, Casacas, Tijolos e Livros: uma associação de artífices no Recife, 1836-1880.
Campinas-SP: Tese de Doutorado, 2009. RIBEIRO, Jonatas Roque. O fardo da escravidão, as penas da liberdade:
associativismo negro e trabalho (Minas Gerais, 1880-1930). Campinas-SP: Tese de doutorado, UNICAMP, 2017.
ROSA. Júlio César da. Sociabilidades e territorialidade: a construção de sociedades de afrodescendentes no Sul
de Santa Catarina (1903-1950). Curitiba-PR: CRV, 2019.
27
quilombolas e políticos santistas entre seus quadros, inclusive assumindo cargos de direção.
Quintino de Lacerda, anteriormente citado, é um desses indivíduos que além de se tornar irmão
em 1886, ainda foi eleito juiz da confraria por dois anos consecutivos, 1893 e 189438.
A princípio, o vínculo documentado das irmandades e demais movimentos se dá apenas
pela presença de Lacerda nesses espaços. Contudo, breves menções a outras experiências
quilombolas na região, para além do Jabaquara, dão indícios de que esse vínculo era mais
amplo, porém, até então, difícil de definir. Por exemplo, a menção de que, em 1881, o sergipano
teria encontrado no meio das matas entre Santos, Cubatão e a Serra do Mar um preto velho
conhecido como Pai Felipe. Lacerda, então, o trouxe para Santos, porém o homem não quis se
instalar nos territórios do Jabaquara. Ele preferiu estabelecer seu próprio mocambo, na Vila
Mathias, não muito longe dali. O futuro vereador negro justificou aos seus contemporâneos que
Pai Felipe era um rei africano, que não se submeteria a outra liderança.39 Ora, segundo Marina
de Mello e Souza, a tradição de eleger reis para governar sociedades africanas e comunidades
afrodescendentes nas Américas era recorrente. Inclusive, no interior das irmandades de pretos,
a festa de Coroação de Rei Congo também foi reproduzida desde os tempos coloniais, passando
pelo Império e mesmo durante o período republicano.40
Longe de se propor que era tudo a mesma coisa, adotamos a matriz teórica sugerida pela
autora, a qual interpreta a circulação de tradições de matriz africana entre a África e a América
como um processo de tradução resultante dos encontros entre diferentes culturas. Nessa ótica,
cada cultura teria uma gramática cultural peculiar, passíveis de serem traduzidas ao entrarem
em contato umas com as outras. Deste modo, uma nova gramática se construía de acordo com
as circunstâncias desses encontros, de forma que símbolos, termos, rituais e outras tradições,
que eram selecionadas e reproduzidas, ganhavam múltiplos significados.41
Para autores da antropologia da África, as migrações eram elemento constituinte da
própria gênese das sociedades africanas e, provavelmente, da diáspora. A fronteira no
continente africano é vivida como algo extremamente mutável e que remete a um ecúmeno
africano tão antigo quanto a ocupação do continente. A história da África é a história de
diferentes grupos que abandonaram sua sociedade natal por inúmeros motivos, partindo para
áreas neutras e sem supremacia dominante, onde eles puderam se reorganizar, algo que teria
acontecido e reacontecido inúmeras vezes, conforme o continente era ocupado. As regiões de
38
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Livro de Irmãos, pp. 60.
39
GITAHY. Op. cit., pp. 127.
40
MELLO E SOUZA, Marina de. Reis Negros no Brasil Escravista: História da Festa de Coroação de Rei Congo.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, especialmente capítulo 4.
41
Idem, pp. 52-71 e 135-156.
28
fronteira entre as sociedades eram consideradas espaços “sem dono”, onde grupos dissidentes
poderiam se fixar. Estes chegavam a esse lugar com um modelo mental culturalmente
embasado, de sociedade ideal para eles mesmos. Muito mais fácil de realizar as instituições
idealizadas em outro lugar do que onde foram inicialmente pensadas, nas fronteiras, os modelos
políticos, culturais e sociais idealizados na metrópole natal puderam ser aplicados, pois
frequentemente havia menos resistência. Essa noção de fronteira permissiva, que permite um
desenvolvimento histórico-cultural difusionista, assume fronteiras étnicas permeáveis, havendo
similaridades entre sociedades africanas como sendo algumas vezes antigas, outras vezes
recentes, mas na maioria dos casos como atribuível à comunicação contínua dentro de um
ecúmeno cultural.42
Com isso, procuramos considerar ao longo dessa dissertação que as práticas culturais
em elaboração entre negros e pardos tinham referências múltiplas, inspiradas em uma
imaginação política global, cujos horizontes eram os mesmos da capacidade dos sujeitos em
circular no espaço.43 Nesse sentido, entendemos a cultura política em Santos não como um
conjunto estático de princípios, tradições e símbolos, mas como algo em movimento e constante
(re)elaboração, que se informa a partir da bagagem cultural que cada indivíduo e grupo carrega
em sua memória.
Assim, os quilombos santistas deixam de ser algo isolado para se tornarem conectados
com o resto da sociedade. Nesse sentido, os estudos de Flávio dos Santos Gomes, Maria Helena
Machado e Yuko Miki foram essenciais para explorarmos essa dimensão dos mocambos como
algo integrado as sociedades da escravidão e do pós-abolição. Diante da dificuldade de
identificar outros quilombolas na documentação, para além de Quintino de Lacerda, conceitos
como campo negro, geografia insurgente e comunidades contingentes, além da ideia de
quilombos volantes, foram usados para enquadrar o Jabaquara e outros redutos santistas numa
realidade complexa, multifacetada e interconectada com outras esferas das sociedades imperial
e republicana, assim como com os mais diversos espaços da geografia social santista, incluindo
as irmandades, o associativismo e as manifestações públicas e coletivas.
As circulações e as conectividades são o mais interessante para esses autores que
buscam em arquivos de contato, ou nas fontes que se tem acesso, os sujeitos que efetivamente
circularam pelas fronteiras nacionais de seu tempo, fazendo eles mesmos suas próprias
42
KOPYTOFF, Igor (orgs.) The African Frontier. The Reproduction of Traditional African Societes. Indianapolis:
Idiana University Press, 1989.
43
COOPER, Frederick, “What is the concept of globalization good for? An African-historian’s perspective”,
African Affairs, v. 100, 2001, p. 189–213.
29
comparações, traduções e adaptações sobre lugares e culturas que visitavam ou nos quais se
radicavam. Diante dessas ponderações, perguntamos: o quanto as confrarias podem trazer à
tona redes de sociabilidade mais amplas nas quais os movimentos abolicionistas, e outros,
estavam ancorados? Como essas associações continuaram influenciando alianças e conflitos
após o fim da escravidão? Através delas é possível identificar quais grupos de procedência
originaram a população negra em Santos e como suas tradições informaram as práticas políticas
das gerações da segunda metade do XIX? E se os grupos de procedência não são importantes
para esse período, o que os substituiu? O que a experiência confraternal pode nos dizer sobre o
processo de racialização em curso durante os Oitocentos?
O principal ângulo analítico da investigação buscará identificar a experiência dos
membros dos sodalícios em questão a partir de uma perspectiva interseccional, procurando por
meio da reconstituição das trajetórias dos irmãos as múltiplas articulações entre a irmandade,
os quilombos e o movimento abolicionista. Portanto, nosso enfoque privilegia menos o
institucional do que a ação histórica dos sujeitos, buscando situar a irmandade num conjunto
mais amplo de espaços por meio dos quais a população negra participava do processo histórico
de desagregação do escravismo e da luta pela liberdade e cidadania.
Nosso maior objetivo é compreender a posição e agência de sujeitos negros e pardos,
livres e libertos, no fazer-se da cultura política em Santos. Paralelamente, queremos entender
de que forma a noção de raça era mobilizada pelos diversos agentes, para catalisar valores
ligados à cidadania e liberdade em consonância com a constituição de identidades políticas,
individual ou coletivamente. Reconstituir as práticas, significados e referências que constituíam
essa cultura é o primeiro passo para isso. Assim, pretendemos demonstrar como as irmandades,
muito pouco exploradas na historiografia santista de modo geral, podem servir para aprofundar
nosso conhecimento sobre a vida social em Santos. Em especial, sobre a vida de negros e
pardos, mesmo em períodos nos quais as cores são silenciadas na documentação.
Para tanto, utilizamos alguns métodos como a redução da escala, a ligação nominativa
e o normal excepcional como contraponto aos grandes padrões e modelos gerais desenvolvidos
a partir de séries documentais extensas. Longe de descartar o tipo de documentação preferido
pela história quantitativa, seguimos os passos da micro-história, buscando fazer uma nova
apropriação das mesmas fontes e sua articulação com outros tipos de registros, menos ou nada
passíveis de serialização, articulando um variado conjunto de documentação. Os temas de
análise colocados em observação são o comportamento e as relações interpessoais. É necessário
que encaremos estas relações investigadas como relações que são simultaneamente econômicas,
sociais e culturais e que, sendo assim, necessitam ser analisadas em todas as suas facetas
30
constitutivas. A dilatação dessas relações para além do espaço da comunidade amplia por isso
mesmo a dimensão territorial da estrutura social para o nível de uma assimetria fundamental
intracomunitária. Em outras palavras, uma estratificação interdependente.44 Isso não exclui o
aprofundamento analítico da estrutura específica da comunidade subalterna.45
A prosopografia a partir das bases da sociedade se mostrou bem profícuo para nossos
objetivos. Nesse tipo de análise, o mais importante é a articulação das propriedades e
características dos sujeitos estudados para evitar grandes abstrações e investir no
enriquecimento da realidade social, escancarando sua diversidade e sua riqueza de
ambiguidades e contradições.46 A depender dos sujeitos capturados na proposopografia não é
inviável se pensar numa micro-história em movimento, isto é, que mantendo a escala de
observação reduzida à dimensão humana, é capaz de acompanhar a circulação dos indivíduos
por unidades nacionais e territoriais distintas com jurisdições e costumes adversos em relação
uns aos outros. O que já foi executado por alguns historiadores nos últimos anos.47 Por isso,
apesar de nossa investigação se manter restrita ao território de Santos, procuraremos evidenciar
como sua história social estava interconectada com aquelas de outras regiões, uma vez que as
pessoas estão em trânsito no espaço.
Lançaremos mão de um variado conjunto documental. Como principal fonte, usaremos
os próprios documentos da Irmandade de São Benedito de Santos, entre eles o Livro de Irmãos,
o Livro de Atas e o Compromisso, estatuto que regia a confraria. Nesse primeiro conjunto,
contamos com o registro dos irmãos e irmãs que ingressaram, sobretudo na segunda metade do
XIX; das reuniões gerais e da mesa administrativa entre 1859 e 1887; e dos princípios que
norteavam a coesão grupal da comunidade que reunia. Além disso, também recorremos à
documentos avulsos guardados no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, onde
encontramos duas pastas referentes à cidade de Santos, correspondentes ao nosso recorte
44
Esse termo é usado por Ian Read para descrever a relação entre senhores, escravizados, livres e libertos. O autor
capturou essa dimensão ao realizar uma extensa prosopografia da sociedade santista entre 1822 e 1888. READ,
Ian. Hierarchies of Slavery in Santos, Brazil 1822-1888. Stanford, California: Stanford University Press, 2012, pp.
39, 77 e 249.
45
GINZBURG, Carlo, et al. “Microhistory: Two or Three Things That I Know about It.” Critical Inquiry, vol. 20,
no. 1, 1993, pp. 10–35; GINZBURG, Carlo; PONI, Carlo, O nome e o como: troca desigual e mercado
historiográfico, in: GINZBURG, Carlo (Ed.), A micro-história e outros ensaios, [s.l.]: Editora Bertrand Brasil, S.
A., 1989, p. 169–178; GRENDI, Edoardo, Microanálise e história social, in: OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de;
ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de (Orgs.), Exercicios De Micro-Historia, Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 19–
38.
46
GINZBURG; PONI, Op. cit., pp. 176-178.
47
Para um exemplo de estudo que utilizou essa abordagem de “micro-história em movimento”, ou história
conectada ver SCOTT, Rebecca J.; HÉRBRARD, Jean M., Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da
emancipação, Campinas-SP: Editora UNICAMP, 2014; Para uma discussão sobre a possibilidade de conciliar
micro-história e história atlântica ver PUTNAM, Lara. “To Study the Fragments/Whole: Microhistory and the
Atlantic World”, Journal of Social History, v. 39, n. 3, 2006, pp. 615-630.
31
48
Essa estratégia analítica de considerar a frequência dos irmãos nas reuniões e temas debatidos foi utilizada por
RIBEIRO. Op. cit., pp. 86-88.
32
que resultasse naquela situação. No entanto, é preciso ter cuidado com esse tipo de fonte, pois
devemos considerar que as testemunhas são inquiridas sob coação das autoridades. Portanto,
reforçamos que suas narrativas não revelam o real de forma absoluta, mas o que é considerado
verossímil e plausível para esses sujeitos.
A dissertação que apresentamos a seguir se divide em cinco capítulos. O primeiro
introduz o leitor ao cenário santista nas suas características econômicas, geográfica,
demográfica e social. Em seguida, nos debruçamos sobre cinco acontecimentos que
consideramos marcantes na vida política da cidade. Esses cinco eventos estão ligados por meio
do envolvimento de irmãos de São Benedito, abolicionistas e quilombolas. Tais ocorrências nos
permitem pensar sobre a articulação política entre esses sujeitos e os espaços mencionados,
tema principal do presente trabalho. Os acontecimentos são os seguintes: (1) questão das águas,
em 1884, com envolvimento de Satyro Alves de Azevedo, Joaquim Fernandes Pacheco,
Guilherme Liborio Freire e João Octavio dos Santos; (2) a invasão da cadeia de Santos para
libertar quatro escravos, em 1886, com participação de Joaquim Xavier Pinheiro e Joaquim
Fernandes Pacheco; (3) a greve geral de 1891; com envolvimento de Quintino de Lacerda; (4)
a eleição de Quintino de Lacerda para vereador, em 1893, e sua posse concedida por José André
do Sacramento Macuco; e (5) o desmantelamento do Quilombo do Jabaquara, em 1898.
Todos os nomes destacados são de membros da referida irmandade, com exceção de
Guilherme Liborio Freire que, apesar disso, é irmão de Pacífico Frederico Freire, escrivão da
confraria por mais de dez anos consecutivos. Por outro lado, entre esses nomes há brancos,
negros e pardos; senhores de escravizados, abolicionistas, quilombolas e libertos. Os demais
sujeitos que citaremos ao contar mais detidamente cada evento também expressam essa
diversidade social e racial. Mais que isso, esses acontecimentos nos permitem entrever
evidências do tipo de relação praticada por esses sujeitos. A proposta é partir deles para refletir
sobre a articulação política dos sujeitos negros e pardos entre si e entre eles e os demais agentes
históricos. Alguns aspectos que podem ajudar a pensar isto são: território (quilombo,
irmandade, moradia); cor/raça (quem tem sua cor/raça designada nos documentos, como e por
que); trajetória (há quanto tempo vive na cidade, qual sua linhagem, classe social, profissão,
letramento, etc.).
No segundo capítulo, dedicamo-nos a identificar quem eram os negros e pardos em
Santos, suas origens, profissões, idades, gênero, etc. Paralelamente, prestamos atenção nos
caminhos que os levaram até a cidade litorânea e quais foram as formas que encontraram para
se tornarem livres durante esse percurso. Para isso, exploramos os dados levantados por Ian
Read, em sua pesquisa sobre as hierarquias da escravidão na mesma cidade. O autor fez um
33
49
READ. Op. cit., especialmente capítulo 3. Em Rosemberg. Op. cit., 2006, capítulo 4, também são analisados
vários casos em que cativos e libertos acionaram a justiça para conseguir sua liberdade.
34
poderá imaginar o peso dessa tradição, além de como os confrades ocupavam e circulavam pelo
município. Sem nos prolongar muito nessa breve introdução, as reuniões e os compromissos da
confraria de São Benedito ocuparão a maior parte de nossa atenção.
Como dissemos antes, aqui será o momento oportuno para analisar como as reuniões
eram realizadas, quem as frequentava e com que frequência, quais os temas mais polêmicos e
os grupos de interesse em torno deles; de que forma as regras eram elaboradas e seguidas, de
que maneira seus membros se relacionavam com os de outros sodalícios e como seu
funcionamento fazia parte de uma economia que conectava pessoas e lugares a nível atlântico.
As reuniões do Rosário dos pretos são analisadas em seguida, como contraponto aos primeiros,
nas mesmas questões. Entretanto, neste segundo caso é possível capturar um momento
importante dos reflexos da racialização nas identidades políticas elaboradas entre seus
integrantes. Entre o fim dos anos 1880 e 1900, os rosários deixaram de se chamar “Irmandade
de N. S. do Rosário dos Homens Pretos”, para adotar por certo tempo o título “Irmandade de
N. S. do Rosário dos Homens de Cor” e, enfim, simplesmente se denominar “Irmandade de N.
S. do Rosário”.
O último item desse capítulo apresenta os resultados obtidos com a prosopografia dos
irmãos de São Benedito, por meio da articulação de informações contidas no Livro de Irmãos,
nas listas eleitorais de 1880 e 1881 e nos maços de população de 1836. Com isso, pudemos
comparar quais características pessoais eram mais relevantes para compor a direção da
irmandade e ocupar determinados cargos. Além disso, será oportuno entender as possibilidades
de agência dos cativos na política confraternal, reparando quais funções eles podiam exercer.
Por seu turno, selecionamos algumas famílias de confrades e rastreamos suas unidades
domésticas ou de seus parentes nos censos da primeira metade do XIX, para projetar o perfil de
cativos que poderiam ser atraídos para aquela confraria, o que nos permitiu fazer algumas
considerações sobre a identidade étnica e racial desse grupo.
Finalmente, no quinto e último capítulo, ganharam a cena as trajetórias de dois sujeitos
que selecionamos por seu caráter à princípio excepcional diante de tudo que vimos até aqui.
Procuramos reconstituir as biografias de José André do Sacramento Macuco e Quintino de
Lacerda. O primeiro foi um homem pardo, advogado, delegado, escritor, político e
abolicionista. Ele era oriundo de uma família antiga na cidade, livre a gerações e com maior
estabilidade econômica que muitos de seus semelhantes. O segundo, mais conhecido pelos
historiadores, foi um homem negro, sergipano, liberto, que chegou à cidade cativo, conseguiu
sua alforria, liderou o maior quilombo da região e se aventurou no ramo comercial na esperança
de garantir uma vida melhor para si e sua família. Como vimos desde o início, esses dois sujeitos
35
estavam envolvidos nos mais variados eventos políticos e sociais de Santos nos anos finais do
século XIX e oferecem a possibilidade de observar como a racialização se processa em
diferentes vias, mobilizando elementos variados que agregam mais ou menos distinção social.
Evitando fazer uma história biográfica que idealize e romantize a vida desses sujeitos, queremos
valorizar suas biografias como importantes instrumentos para atingir as problematizações
propostas sobre o passado. Esse movimento reforça o debate metodológico relacionado às
escalas de análise e sobre o papel do indivíduo na história.50
Sem nos demorar mais, vamos abrir as cortinas e dar início à apresentação.
50
LEVI, Giovanni. “Usos da biografia”. In: Ferreira, Marieta de Moraes. AMADO, Janaína. (orgs.). Usos &
absuso da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. BURKE, Peter. “Introdução: as variedades da
biografia”. In: O historiador como colunista. Ensaios para a Folha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 9. Alguns exemplos do uso das biográficas histórica para análise de trajetórias de
escravizados e libertos: AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha: a trajetória de Luís Gama na imperial cidade
de São Paulo. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 1999. MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca. Uma santa africana no
Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993. SILVA, Eduardo. Dom Obá II d’África, o príncipe do povo – Vida,
tempo e pensamento de um homem livre de cor. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. REIS, João José.
Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008. PINTO, Ana Flávia Magalhães. Escritos de Liberdade: literatos negros, racismo e
cidadania no Brasil oitocentista. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 2018. DUARTE, Eduardo de Assis.
“Maria Firmina dos Reis: Na Contracorrente do Escravismo, o Negro como Referência Moral”. In:
CHALLHOUB, Sidney. PINTO, Ana Flávia M. Pensadores Negros – Pensadoras Negras. Cruz das Almas/Belo
Horizonte: Ed. da UFRB/Fino Traço, 2016, pp. 41-58. MACHADO. M. H. P. T. “Introdução – Maria Firmina dos
Reis: invisibilidade e presença de uma romancista negra no Brasil do século XIX ao XXI”. In: REIS, Maria Firmina
dos. Úrsula. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2018, pp. 7-42.
36
FIGURA 1
Localização do Porto de Santos na Província de São Paulo. Tradução da legenda: 1 Nova cadeia; 2 Hospital de
caridade (Santa Casa da Misericórdia de Santos); 3 Antiga Alfândega; 4 Convento de Nossa Senhora do Carmo;
5 Nova Alfândega e Segunda Matriz de Santos; 6 Cemitério Público do Paquetá. Fonte READ, Ian. Hierarchies
of Slavery in Santos, Brazil 1822-1888. Stanford, California: Stanford University Press, 2012, pp. 17.
37
CAPÍTULO 1
ABRINDO AS CORTINAS: SANTOS, UMA CIDADE TURBULENTA
Durante a segunda metade do século XIX, a cidade de Santos passava por um período
de intensas transformações urbanas e sociais. Na verdade, desde o início do Oitocentos, a
pequena vila de aproximadamente 4.700 habitantes conhecia uma demanda crescente por seus
serviços portuários devido à expansão das fazendas de cana-de-açúcar, voltadas para exportação
no interior paulista. No entanto, foi a partir de meados da centúria, com a predileção pelo café
em detrimento da cana, nas novas terras cultivadas no Oeste Paulista, que o porto santista se
viu muito mais requisitado pelos fazendeiros que queriam lucrar com a crescente demanda dos
países europeus e dos Estados Unidos pelo referido produto.51
Logo se empreendeu a construção de uma extensa malha ferroviária que ligava o porto
à capital paulista e, por conseguinte, às diversas zonas cafeicultoras da província. Composta,
sobretudo, pela Companhia Ferroviária Paulista e a Mogiana, a rede foi implantada a partir da
expansão e incorporação do traçado original da São Paulo Railway, conectando, assim, as
plantations do Oeste Paulista – com sua grande quantidade de braços escravizados – e as do
norte da Província, com as cidades em franca ascensão econômica como São Paulo, Santos e
Rio de Janeiro. Já em 1867, a ferrovia Santos-Jundiaí estava concluída, após oito anos de
apresentação de seu projeto. Durante as décadas de 1880 e 1890, o desenvolvimento ferroviário
da província conhecera seu auge, financiado pelas lavouras cafeeiras.52
Apesar de ter superado o porto do Rio de Janeiro em exportações de café apenas em
1894, entre 1870 e 1889 as exportações em sacas de 60 quilos apresentaram uma diferença de
1.603.923 sacas a favor do porto santista.53 A demanda aumentava num ritmo acelerado, mas
sua capacidade como porto não acompanhava. Por conta disso, a necessidade de reformas
profundas – que não foram feitas sem conflitos – era frequentemente ressaltada. Com o aumento
gradativo da movimentação, muitos problemas se tornaram frequentes devido às condições
51
FONTES. Op. cit., pp. 23-26. Ver também: LANNA. Op. cit.., pp. 48. ROSEMBERG. Op. cit., 2006, pp. 39.
52
GITAHY, Maria Lucia Caira. Op. cit., pp. 24. FONTES. Op. cit., pp. 28-29. LANNA. Op. cit., pp. 50 e 55.
53
FONTES. Op. cit., pp. 30. GITAHY. Op. cit., pp. 30. ROSEMBERG, Op. cit., 2006, pp. 252, nota 35, com base
no Relatório apresentado ao Exm. Sr. Presidente da Província de S. Paulo pela Comissão Central de Estatística,
São Paulo, Leroy Bookwalter, 1888, destaca que “Enquanto em 1877-1888, foram importados 6:212;970 $ 601
réis e exportados 27:632:349$ 53 réis, perfazendo um movimento total de 21:419:378$942 réis. O biênio 1886-
1887 apresentou incremento significativo na entrada e saída de divisas. As importações para o período somaram
16:302:337$048 réis; as exportações, 74:999:073$823, redundando em um total de 57:897:394$775 réis”.
38
FIGURA 2
Território aproximado dos principais bairros urbanos de Santos. Legenda: Valongo (Vermelho); Quatro
Cantos (Amarelo); Quartéis (Roxo). Tradução da legenda original: 1 Nova cadeia; 2 Hospital de caridade
(Santa Casa da Misericórdia de Santos); 3 Antiga Alfândega; 4 Convento de Nossa Senhora do Carmo; 5
Nova Alfândega e Segunda Matriz de Santos; 6 Cemitério Público do Paquetá. Fonte READ, Ian.
Hierarchies of Slavery in Santos, Brazil 1822-1888. Stanford, California: Stanford University Press,
2012, pp. 17.
Em meio a isso tudo, a população santista também passava por transformações, tanto
demográficas como espaciais. O município abrangia o atual “Centro Velho” e as zonas rurais
em Bertioga e Guarujá, estas últimas, porém, com uma densidade demográfica bem menor. Até
54
GITAHY. Op. cit., pp. 24-26. O grupo de empresários por traz da companhia era composto por José Pinto de
Oliveira, Cândido Gafrée, Eduardo Palacin Guinle, João Gomes Ribeiro de Avilar, Alfredo Camilo Valdetaro,
Benedito Antônio da Silva e Barros e Braga & Cia.
55
Idem, pp. 26.
39
56
Para mais detalhes sobre as informações deste e dos próximos três parágrafos ver: READ, Ian. The Hierarchies
of Slavery in Santos, Brazil. 1822-1888. Stanford, California: Stanford University Press, 2012, capítulo 1.
40
FIGURA 3
57
LANNA. Op. cit., pp. 56. OLIVEIRA, Joyce. “Niger, sed formosus”: a construção da imagem de São Benedito.
Guarulhos-SP: Dissertação de mestrado, UNIFESP, 2017, pp. 110.
58
Sobre este e o parágrafo seguinte ver LANA. Op. cit., “Loteamentos e bairros” e “A casa”. PEREIRA. Op. cit.,
2011, “1.2. ‘Resquícios do Jabaquara’: a vida de Quintino de Lacerda e dos demais habitantes do Jabaquara”.
41
Cortiços existentes na cidade de Santos entre 1880 e 1889. Fonte: LANNA, Ana Lúcia Duarte. Uma cidade em
transição. Santos: 1870-1913. São Paulo-Santos-SP: Editora HUCITEC, Prefeitura Municipal de Santos, 1996, p.
121-122.
59
GITAHY. Op. cit., pp. 31, afirma que Santos tinha 9.121 habitantes, baseada no recenseamento de 1872. Mas
outros autores indicam a quantia de 9.871 residentes. Cf. PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 50. Ainda, READ, Op.
cit., pp. 86, contabiliza 9.087 para o mesmo ano.
60
ROSEMBERG, Op. cit., pp. 39, baseia-se no Recenseamento Geral do Império, em Álvaro Guilherme, A
campanha sanitária de Santos. Suas causas e seus efeitos (1919); e Zélia Cardoso de Mello & Flávio A. M. Saes,
“Características dos núcleos urbanos em São Paulo” (1985). O autor acrescenta: “O Relatório apresentado ao
Exm. Sr. Presidente da Província de S. Paulo pela Comissão Central de Estatística, São Paulo, Leroy King
Bookwalter, 1888, atesta esses dados e acrescenta especificidades às pesquisas demográficas. Aponta para os anos
de 1883-1884, a existência de 440 nascimentos; para o biênio seguinte, 487, e, em 1885-1886, o aparecimento de
560 novas almas. Em 1886, havia, além disso, a presença de 587 eleitores, numa proporção de 3,7 para cada mil
habitantes”. Ver também: READ, Op. cit., pp. 86.
42
Paulo e, na seguinte, mais 430 mil61. Em Santos, cerca de 1.455 estrangeiros entraram pelo
porto entre 1879 e 1880, enquanto um total de 981 saíram do país também por ali.62
Em 1887, o montante de imigrantes oficiais e extraoficiais que chegaram ao país pelo
porto santista somavam 31.310 e, no ano seguinte, eram 74.353. Entre 1882 e 1890, segundo
Rosemberg, 176.442 imigrantes entraram no Brasil por Santos. 63 Muitos deles preferiam ficar
pela cidade, mais afeitos aos trabalhos comerciais e propriamente urbanos, como os portugueses
que historicamente migravam para a cidade ambicionando abrir seus próprios negócios e
financiavam a vinda de mais parentes. Em 1872, dos 1.577 estrangeiros residentes na cidade,
981, ou 62,2%, eram portugueses, aproximadamente 9,93% da população total.64
Os negros e negras livres e libertos compartilhavam desse espaço e contexto turbulento,
vivenciando essas mesmas transformações. Muitos deles competiam com os imigrantes
europeus por moradias e empregos. Outros, mais proeminentes economicamente, disputavam
investimentos e negócios com comerciantes abastados e companhias estrangeiras.
Do ponto de vista demográfico, quando ainda era apenas uma vila, em 1823, com 4.700
habitantes, em Santos habitavam 2 mil escravizados e 2.700 pessoas livres. Em 1825, de um
total de 4.953, 45% eram cativos e 55% livres. Nove anos depois, em 1854, temos 38% de
escravizados e 62% livres, num total de 6.450. Já em 1872, o número de cativos caiu
drasticamente. Com pouco mais que o dobro dos habitantes do início da década de 1820, Santos
tinha 9.871 habitantes, dos quais 1.742 (17,65%) eram cativos e 6.552 (66,38%) eram livres.
Nesse mesmo ano foram contabilizados no censo 5.012 brancos, 835 negros, 1.438 mulatos e
239 caboclos. Além disso, havia 255 africanos na cidade, equivalente a 16,16% dos estrangeiros
e 2,58% da população geral. Se somarmos as categorias do censo de escravos e pretos, mulatos,
caboclos e africanos livres, chegamos a um total de 4.373 habitantes não-brancos, isto é, 44,7%
da população. De fato, os negros eram boa parte da população livre, correspondendo a 33,32%
de uma soma de 7.585 pessoas livres.65
Santos era definitivamente uma cidade negra ao longo do século XIX. Nesse quesito,
ela se assemelhava à outras cidades oitocentistas no Império, com índices de concentração de
população negra – pretos e pardos – muito parecidos, como eram Rio de Janeiro, Salvador,
61
HALL. Michael. M. “Imigrantes na Cidade de São Paulo”. IN: PORTA, Paulo (org.). História da Cidade de São
Paulo, v. 3: a cidade na primeira metade do século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2004, pp. 124.
62
AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginario das elites, seculo XIX.
São Paulo, SP: Annablume, 2004, pp. 42-43.
63
ROSEMBERG. Op. cit., pp. 99.
64
ROSEMBERG. Op. cit., pp. 39. Ver também PEREIRA Op. cit., pp. 50-51.
65
PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 50. READ, Op. cit., pp. 86. De acordo com os dados de GITAHY. Op. cit., pp.
23, 31 e 41, em 1872, havia 9.191 habitantes, 1.606 eram cativos e 7.585 eram livres.
43
Recife, São Luís e Porto Alegre.66 Com pequenas variações, a maioria das cidades mais
importantes do Império eram predominantemente negras, algumas inclusive com uma
significativa quantidade de africanos.67 Muitos desses africanos, crioulos, pardos e negros em
geral chegaram a essas cidades, inclusive Santos, por meio do tráfico de escravizados, mas não
só. Conforme a economia paulista prosperava na segunda metade do século XIX e o porto
santista se tornava a principal via de exportação da produção da província/estado, homens e
mulheres de diferentes regiões do Brasil foram atraídos para lá.
Epidemias e doenças endêmicas eram mais um dos fatores de peso para a flutuação da
população local. O Diário de Santos publicou uma relação de óbitos com as causas de morte
mais recorrentes. Segundo esta folha, em 1879 houve 465 óbitos, dos quais 254 eram adultos,
206 eram crianças, 5 natimortos e 330 brasileiros68. Há de se destacar que a população da cidade
estava entre 9 mil e 15 mil habitantes69. As causas mais recorrentes foram: bronquite,
decrepitude, enterocolite, enterite, febre amarela, gastro-enterite, hepatite, inviabilidade, tétano
dos recém-nascidos, tuberculose e vermes70.
Em 1889, a febre amarela ceifou 750 vidas, enquanto a malária atingiu a soma de 107 e
a tuberculose 68. Entre 1891 e 1896, essas três doenças continuariam aumentando o número de
óbitos drasticamente, chegando a alcançar 4.173 mortos em 1892 quando a cidade passou
também por mais um surto de varíola que levaria 823 vidas71.
Esse era um quadro comum em muitas cidades atlânticas. As zonas urbanas eram
cenários típicos de insalubridade, principalmente nas cidades portuárias como Santos, Rio de
66
ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira de; FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio dos Santos Gomes;
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Cidades negras. Africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do
século XIX. São Paulo: 2ª edição. Alameda, 2006, pp. 9-14.
67
Para o Rio de Janeiro, destaca-se que, em 1872, nas suas cinco principais freguesias urbanas os escravizados
somavam 14% da população total, enquanto os pretos e pardos livres atingiam o índice de 23,7%. Por outro lado,
os africanos compunham 40% da população livre e liberta nesse mesmo período. Na freguesia urbana da Sé, na
capital da Bahia, os pretos e pardos livres eram 68% da população e os escravizados 20%, no mesmo ano. O
município de Recife, por sua vez, contava com 13% de escravizados em relação à sua população total. Quando
somados aos pretos e pardos livres, os negros atingiam a proporção de 56,4% do total de habitantes. Já a capital
maranhense, na sua região mais central, nas freguesias de N. S. da Vitória e N. S. da Conceição, a população em
cativeiro equivalia a 64% do todo, enquanto pardos e pretos eram 51,5% da população livre. Os africanos, entre
livres e cativos, alcançavam 75% do total. Enquanto isso, em Porto Alegre, no sul do Império, nesse mesmo
período, para as freguesias de Madre de Deus e N. S. das Dores, encontravam-se 4 mil escravizados e uma
população negra livre que ultrapassava os 5 mil, equivalente a 26,4% das pessoas livres. Somando as duas
categorias temos 38% de negros nessas freguesias. São Paulo, muito próxima e com estreitos vínculos comerciais
e políticos com a baixada santista, possuía 3.828 escravizados e uma população negra livre que atingia os 25% do
total dos livres. Os africanos correspondiam a 6% dos cativos e 13% dos livres. Idem.
68
Diário de Santos, Santos, 18 de janeiro de 1880.
69
Dados referentes a 1874 e 1886. FONTES. Op. cit., pp. 102; GITAHY. Op. cit., pp. 31.
70
Diário de Santos, Santos, 18 de janeiro de 1880.
71
GITAHY. Op. cit., pp. 35. READ. Op. cit., pp. 230-242, descreve um panorama mais detalhado das doenças e
epidemias que afligiram os santistas de todas as cores e classes sociais durante o século XIX, mas que no geral
está de acordo com o quadro mais amplo aqui exposto.
44
Janeiro, Recife, Salvador, São Luís e Porto Alegre. A grande circulação de embarcações
oriundas de várias partes do mundo tornava as áreas portuárias um laboratório de enfermidades,
mas também de práticas terapêuticas. As condições em que viviam pessoas livres, escravizados
e libertos estavam intimamente associadas ao tipo de doença que cada um desses grupos sociais
contraía. A saúde das pessoas era comprometida de acordo com problemas relacionados a
moradia, alimentação e jornada de trabalho.72
A tuberculose era a principal doença que atacava os escravizados urbanos, mas não só
eles, como também a população livre estava à mercê dessa enfermidade. A doença atacava
principalmente mulheres africanas na puberdade, homens adultos e amas de leite, mas também
imigrantes da Europa e dos Estados Unidos, locais onde a enfermidade era endêmica. A varíola,
por sua vez, era muito comum entre africanos e escravizados. Essa doença começava a atacar
já na travessia do Atlântico. Mesmo com os esforços de vacinação na costa africana, havia
muitas regiões da África e das Américas em que os cativos não eram vacinados, em
consequência, várias cidades atlânticas foram assoladas pela enfermidade.
O tétano, à época, era um dos principais responsáveis pela mortalidade infantil e de
escravizados. O estigma da doença recaía mais sobre os cativos, pois alguns médicos
argumentavam que eles tinham “mais predisposição ao tétano porque andavam descalços, eram
mordidos por animais ou feridos por instrumentos perfurantes, especialmente quando
castigados”73. Manuais médicos da época atribuíam às mulheres negras a culpa pelo contágio
dos bebês. Entretanto, essas mulheres possuíam métodos para proteger seus filhos, como cortar
o cordão umbilical mais distante da barriga, untando-o com pimenta e azeite.
Outra doença que atingia tanto a população livre quanto a escravizada na maioria das
zonas urbanas era a malária e suas derivações, chamadas na época de “febres intermitentes” e
“perniciosas”. As precárias condições de vida da maioria dessas populações, que
frequentemente habitavam as imediações das cidades, vivendo em improvisadas barracas
construídas em áreas pantanosas ou alagadiças, compunham o ambiente ideal para a
proliferação de mosquitos. Até os africanos, que tinham mais resistência à essa doença, não
estavam completamente livres de contraí-la, pois muitos deles chegavam debilitados da
travessia atlântica, o que favorecia a contração dessa e de outras infecções.
Ainda sobre febres, a febre amarela também assolou diversas cidades. No Rio de
Janeiro, a enfermidade ceifou 9.600 vidas em apenas 5 meses, no ano de 1850. Um ano antes
72
ARAÚJO et. al., Op. cit., pp. 15-23.
73
Idem, pp. 18.
45
ela teria deixado um rastro de vítimas em Salvador. Suas principais vítimas eram os europeus,
seguidos por crioulos, africanos, libertos, escravizados e pobres livres. Os africanos tinham
mais chances contra a febre amarela, uma vez que muitos deles já haviam contraído a doença
durante a infância em África, onde havia algumas regiões nas quais a enfermidade era
endêmica.
Os vermes e doenças do aparelho digestivo, como a diarreia, também eram algumas das
mais recorrentes nessas zonas urbanas do século XIX. Solitárias, lombrigas, ancilóstomos e
mais uma variedade de outros vermes de difícil identificação atacavam as populações urbanas
devido às péssimas condições de saneamento básico da maioria das cidades. Além dessas
enfermidades, podemos destacar brevemente também o sarampo, a sífilis, doenças no aparelho
respiratório (bronquite, asma, pleurisia, hemoptise, etc.), diferentes tipos de elefantíase,
oftalmia e o tifo, como doenças frequentes que assolavam as populações das áreas urbanas no
período.
A população santista tinha basicamente duas escolhas para o tratamento da maioria
dessas enfermidades: os hospitais ou os médicos particulares e curandeiros. Santos contava com
três instituições hospitalares no século XIX: o hospital da Santa Casa de Misericórdia,
localizado na atual Praça Visconde de Mauá até 1830, quando foi transferido para a base do
morro de São Jerônimo a poucos metros da cadeia municipal, na Praça dos Andradas; o pequeno
e rústico hospício do mosteiro de São Bento, no morro de mesmo nome, nas fronteiras com a
zona rural ao sul do Valongo; e o hospital da Beneficência Portuguesa, inaugurado em 1878,
localizado entre a Rua do Rosário (atual João Pessoa) e a Rua das Flores (atual Amador Bueno),
no Paquetá, ao sul dos Quartéis.
Entretanto, a capacidade dessas instituições estava quase sempre aquém da demanda por
leitos gerada pelas doenças endêmicas e epidêmicas que afligiam a cidade nos últimos anos dos
Oitocentos. Para se ter noção, entre 1878 e 1885, o hospital da Santa Casa operava com uma
lotação de 125% em relação à sua capacidade oficial na maioria do tempo. Durante 1878, a
epidemia de varíola adoecia 294 pacientes em um mês, 244 a mais que a quantidade de leitos
disponíveis no geral. Em situações extremas, era comum que o governo municipal e os hospitais
locais abrissem enfermarias emergenciais em igrejas e conventos.74
Segundo Ian Read, o principal público dos hospitais eram as pessoas livres pobres.
Escravizados também eram atendidos, mas em menor número. Em geral, havia um senso
comum de que era melhor se tratar de doenças em sua própria cama, no conforto do lar, do que
74
READ. Op. cit., pp. 219.
46
nos hospitais lotados. Assim, mesmo no caso de cativos, não era raro que os senhores
preferissem tratá-los em casa. Por outro lado, escravizados de sociedades empresariais,
associações civis ou instituições frequentemente eram mandados para os hospitais para receber
atendimento médico.75
Em Santos, todo esse cenário de modernização e precariedade compunha um processo
de urbanização acelerada, segundo avaliou Fontes. A cidade estava se transformando em um
dos principais portos do Brasil 76. Para esta autora, esse processo é entendido como ampliação
de necessidades provocadas pela expansão da cafeicultura na província. “Trata-se de um
processo globalizador de transformações que aparece indicado pelo crescimento de serviços,
pelo aumento da população, pelo surgimento de novas profissões [...], pelo aparecimento de
uma mentalidade urbana, além de outros fatores”77.
Em nosso recorte específico, entre 1870 e 1898, uma série de acontecimentos se
desenrolaram no cenário que descrevemos acima, contribuindo para agitação política própria
dos anos finais da escravidão e da monarquia e da primeira década republicana. Uma vez que
nosso objeto de estudo são as articulações políticas encetadas por negros e pardos livres e
libertos, assim como a cultura decorrente disso, elegemos cinco eventos que impactaram a vida
social santista nesses anos. Essas turbulências ajudam a perceber algumas articulações
possíveis entre diferentes sujeitos de variadas posições sociais. Não só senhores e escravizados
participaram, mas também pretos, libertos, pardos livres, imigrantes, trabalhadores, oficiais da
polícia e de justiça. Em um movimento sincrônico, iremos destacar esses sujeitos-chave cuja
participação nesses eventos nos permitem entrever a extensão de algumas redes de
sociabilidade, subordinação e aliança que nos levam a diferentes associações, clubes,
movimentos sociais e às irmandades, sendo estas últimas a porta de entrada privilegiada de
nossa análise nos capítulos subsequentes para entender a cultura política gestada entre a
população negra e parda que habitava Santos nas últimas décadas do século XIX.
75
Idem, pp. 230-242.
76
FONTES. Op. cit., pp. 29.
77
Idem, pp. 103-104.
47
78
Diário de Santos, 23 de dezembro de 1884.
79
Essa informação foi encontrada em fonte distinta do inquérito, em Apesp, Secretaria da Presidência da Província
de São Paulo, Estatísticas, micro-filme 176.
48
por meio do guarda livros da Praça do Comércio, que lhe entregou um boletim que divulgava a
reunião.80
Ao relatar seus esforços para dispersar a multidão, o delegado destacou que a maioria
dos presentes eram “pessoas de menor importância”, “carroceiros, trabalhadores de prancha”.
Ele também tentou abordar esses sujeitos para saber mais sobre a organização do meeting.
Contudo, as pessoas não lhe respondiam, abaixavam a cabeça e saíam andando, aparentemente
uma tática para não serem identificadas.
Por outro lado, Freire notou a presença de alguns indivíduos, entre os quais havia
pessoas que considerava de maior importância. O escrivão Joaquim Fernandes Pacheco, o
professor Aprígio Carlos Macedo81, João dos Santos Bandeira82, Henrique José Rodrigues e um
“Leonardo mestre de obras”83. Em seu depoimento, Macedo cita que também estavam presentes
Affonso Francisco Veridiano, Antonio Manoel Fernandes, Manoel de Jesus Couto, Angelo
Garcia de Sousa Ramos, Joaquim Appolinario da Silva e Arlindo Carneiro de Araujo Aguiar.
Pacheco e Macedo tentavam acalmar os ânimos da multidão. Os demais apenas assistiam
curiosos. Entre os que falavam contra a companhia na ocasião, estavam Satyro Alves de
Azevedo, Miguel Ferreira, Antonio Militão de Azevedo e um alemão chamado Burgmann.
De repente, gritos anônimos na multidão esbravejaram “quebra lampião!” e diversas
pessoas começaram a depredar os postes de iluminação pública na praça. Em pouco tempo, o
caos se instaurou e os desordeiros se espalharam pela cidade, quebrando postes e chafarizes,
destruindo bondes e jogando-os ao mar. Os revoltosos atacaram também duas estações de bonde
da Cia. City, uma na Barra e outra no Boqueirão, regiões que ficavam na parte povoada por
chácaras, algumas das quais começavam a ser repartidas e loteadas para se tornarem bairros.
Entre uma estação e outra, ainda passaram pelas residências do Presidente da Câmara
Municipal, João Octavio dos Santos, do vereador Joaquim Manoel Alves Lima e do gerente da
companhia Herbert H. Heyland e no escritório da empresa, depredando janelas e portões e
atirando móveis à rua. O prejuízo total, somando todos os estragos, foi avaliado em 13:689$000
– treze contos, seiscentos e oitenta e nove mil réis.
FIGURA 4
80
Todos os depoimentos aqui citados estão registrados em inquérito policial aberto pelo chefe de polícia em 23 de
dezembro de 1884 localizado em Apesp, Secretário da Presidência da Província de São Paulo, Polícia, Ordem
CO2647.
81
22 anos, natural do Rio de Janeiro, casado, professor público.
82
52 anos, casado, natural de Santos, tesoureiro do English Bank.
83
Trata-se de Leonardo Antonio de Castro, 38 anos, natural de Santos, casado, carpinteiro.
49
84
Possíveis pontos onde os revoltosos passaram . Mapa-base: https://www.google.com.br/maps?hl=pt-
BR&authuser=0 Acesso em 30 de maio de 2021 as 21:06.
No decorrer dos fatos, a polícia pouco pôde fazer para conter os insurgentes. Segundo o
delegado Freire havia um destacamento insuficiente na cidade e ele optou em manter as forças
no quartel, não muito longe da Praça dos Andradas, a algumas quadras ao nordeste, na Rua do
Rosário, atual Rua João Pessoa. Na verdade, as autoridades locais pareciam estar em desacordo.
Segundo Freire e outras testemunhas, um oficial de justiça denominado apenas por Queiroz
tomou parte no levante, inclusive assumindo papel de liderança em alguns momentos. Uma
interpretação diferente aparece no depoimento de Joaquim Fernandes Pacheco, de 28 anos,
casado, natural de Santos, amanuense de polícia (o tal escrivão). Ele relata que realmente
parecia que o oficial de justiça tinha aderido aos distúrbios, mas que ao ser abordado por ele,
Queiroz explicou que estava apenas tomando nota de quem praticava a destruição. Pacheco
também menciona que havendo apenas quatro praças de polícia, eles foram posicionados para
defender a Alfândega e o arquivo da Câmara, ao qual se queria assaltar durante o tumulto. Ele
ressalta que despachou telegrama ao Chefe de Polícia às sete e meia da noite, pouco tempo
depois da eclosão da revolta.
Outro oficial da polícia local apresentou discordâncias quanto à capacidade do
destacamento, o alferes Joaquim Antonio de Jesus, de trinta anos de idade, natural de São Paulo,
casado. Ele não presenciou os atos na Praça dos Andradas, por ter sido ordenado para se manter
no quartel. Segundo ele, tinha alguns soldados sob seu comando – o que bota em dúvida a
84
Considere que o túnel Rubens Ferreira Martins que liga a Praça dos Andradas a Av. Dr. Valdemar Leão não
existia na época, nem a referida avenida. A Barra era a região atual região praiana de Santos que se ligava ao centro
do município pelo Caminho Velho da Barra. Ele começava pouco depois da Rua Braz Cubas e prosseguia pela
atual Rua Luiz de Camões, cruzando a Vila Mathias.
50
informação dada por Pacheco. O alferes relata que o grupo que atacara a estação do Boqueirão
voltava ao centro da cidade e, avistando o quartel, começaram a ir em sua direção. Na ocasião,
um “preto Benedicto” tentou quebrar com um pedaço de pau um dos lampiões em frente ao
edifício, “ato em que foi preso”. Jesus e seus subordinados conseguiram fazer com que o resto
do grupo recuasse. Nesse momento, o Juiz de Direito (não nomeado), o delegado (Freire) e o
“escrivão Machado” apareceram no local. Eles orientaram que o alferes tivesse prudência e
contivesse a força para evitar conflito com o povo, pois este estava em número muito superior
ao destacamento policial. Logo em seguida, mandaram soltar o preto Benedicto, após o que os
três se retiraram deixando o quartel novamente sob o comando de Jesus.
O alferes, além disso, relata que depois das onze horas o povo espalhado pela cidade era
“o de classe mais baixa; já se tendo recolhidos ou parando pelas esquinas a melhor gente”.
Aparentemente, mais ou menos próximo desse horário, o oficial de justiça Queiroz apareceu no
quartel chamando Jesus para que impedisse que um grupo de moleques quebrasse um bonde. A
simples aparição do alferes no local fez com que os moleques fugissem. Contudo, naquele
momento um “tabelião Machado” apareceu e ordenou que Jesus “não fizesse nada para não
expor-se ao povo que era muito e com ele não podiam”. Nesse momento de seu depoimento, o
alferes expressa sua indignação ao dizer que “voltou para o quartel onde sempre esperou com
as praças preparadas em número de vinte, ordens para proceder e de onde não saiu com a força
porque nunca recebeu ordem alguma senão a de nada fazer”. Ele acreditava que, apesar de
pequena, a força era capaz de ter impedido os acontecimentos, ou pelo menos evitar a
intensificação da situação até a proporção que tomou. Exemplo disso, era a prisão de Benedicto
efetuada por ele e seus subordinados, que inclusive fizeram o resto do grupo recuar.
O receio de usar a pouca força policial por parte de algumas autoridades é compreensível
quando lembramos que a polícia era até então uma instituição embrionária na Província de São
Paulo, como observou André Rosemberg. Com uma definição ainda muito ampla, a noção do
que eram as responsabilidades da polícia muitas vezes iam além da mera segurança pública e
do combate ao crime. Mesmo em fins do século XIX, o Império apresentava uma especialização
técnico-administrativa precária, impondo à polícia uma ampla carga administrativa. Por essa
razão, a Secretaria de Polícia, órgão provincial capitaneado pelo chefe de polícia,
constantemente servia de repositório das demandas as mais variadas. Nas instalações policias
circulavam ofícios multi-institucionais, além de uma série de pedidos, demandas e súplicas
51
85
ROSEMBERG, André. De chumbo e festim: uma história da polícia paulista do Final do Império. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2010, pp. 26.
86
Vários desses ofícios podem ser consultados em Apesp, Ordens CO2641, CO2642, CO2646 e CO6037. Ver
também: MACHADO, Maria Helena P. T. Machado. Crime e Escravidão: Trabalho, Luta e Resistência nas
Lavouras Paulistas (1830-1888). 2. ed., 1. reimpr. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018. Da
mesma autora: Op. cit., 2010, especialmente capítulos 2 e 3.
87
Inquérito policial aberto pelo chefe de polícia em 23 de dezembro de 1884 localizado em Arquivo do Estado de
São Paulo (Apesp), Secretário da Presidência da Província de São Paulo, Polícia, Ordens CO2647.
52
Esse trecho do contrato parece ser o fundamento das críticas “d’Os Santistas”, assinantes
dos dois artigos. No primeiro, publicado 6 dias antes do segundo, os autores chamam a atenção
para o fato de que, naquele momento, a cidade só passava por uma situação de abundância de
água graças às pancadas de chuvas típicas daquela época do ano. Após a mudança de estação,
as precipitações escasseariam e a seca voltaria a assolar a região devido à ineficiência da
empresa:
88
Diário de Santos, 10 de janeiro de 1880, grifo do original.
89
Diário de Santos, 04 de janeiro de 1880, grifos do original.
53
90
Diário de Santos, 10 de janeiro de 1880, grifos do original.
91
AMARAL, Raul Joviano. Os pretos do Rosário de São Paulo. Subsídios históricos. São Paulo: Edições Alarico,
1954, pp. 59-68.
54
circulação de várias pessoas entre as regiões mais rurais, como a Barra e os morros, e o centro
da cidade, onde fica o Valongo, os Quatro Cantos e os Quartéis. À primeira vista, imaginamos
que os principais usuários fossem os proprietários rurais e comerciantes que desejavam trocar
seus produtos e mercadorias na cidade. Contudo, também os trabalhadores residentes no
Jabaquara, na Vila Mathias, no Morro do São Bento e nas várias pequenas roças que povoavam
o perímetro urbano, eram frequentes usuários dos bondes e dependiam deles para suas
atividades diárias. A linha que conectava o centro da cidade à Barra foi assunto recorrente na
imprensa no início de 1880. Entre 1874 e 1879, o número de passageiros dessa linha teve um
aumento progressivo, com exceção dos anos entre 1876 e 187792. Entretanto, como sugerem
outras publicações, a companhia não estava dando conta desse aumento de demanda:
92
Diário de Santos, 04 de janeiro de 1880.
93
Diário de Santos, 08 de janeiro de 1880.
94
Diário de Santos, 13 de janeiro de 1880.
95
LANNA, Op. cit., pp. 66.
55
“Ineditoriais” do Diário de Santos. Desde pelo menos 23 de novembro daquele ano, o gerente
da Cia. City estava publicando quase diariamente um aviso sobre a regularização e a íntegra do
aditivo ao contrato que tratava do assunto. Os funcionários da empresa dariam início à operação,
visitando as residências dos consumidores, a partir do dia seguinte.96
No dia 29, o Diário noticiou a última sessão da Câmara Municipal, na qual foi firmada
uma procuração que permitia ao advogado e procurador da casa assinar a escritura pública que
oficializava o compromisso realizado entre a Câmara e a Cia. City, relativo ao fornecimento de
água.97 Entretanto alguns munícipes parecem ter demonstrado seu descontentamento com a
regularização, pois o periódico publicou um edital no qual seus redatores defendiam a
companhia e os vereadores. Segundo eles, o contrato inicial entre a municipalidade e empresa
inglesa determinava que fossem cobrados 20 réis por barril d’água de 26 litros, fornecidos às
casas particulares por encanamento, sem cogitar as penas d’água que viriam a ser instaladas
anos depois. Os redatores continuam dizendo que,
96
Eis um trecho do aditivo: “1º A Companhia fornecerá diariamente (24 horas) 500 litros d’agua por pena, por
6$500 mensaes. [...] 2º Compromete-se a Companhia a fornecer 750 litros por pena logo que reforme o
encanamento geral sem aumento de preço ao consumidor. [...] 3º A dividir Fornecimento em séries de 5 pennas,
de modo que o consumidor que tiver duas penas pagará pela primeira 6$000 e pela segunda 5$500, reduzindo
assim progressivamente 500 rs. Em cada pena até á quinta que custará 4$000. [...] 4º No caso, porém, de ter o
consumidor 6 pennas, a sexta que fica pertencendo a 2º série custará 6$, mas se forem 7 pennas a sétima custará
5$500 como a 2ª da primeira e assim progressivamente de maneira a fazerem-se as reducções quantas forem as
séries. [...] 5º Entendem-se estas reducções com o fornecimento feito em uma só casa, onde o consumidor mande
colocar as penas, cujo fornecimento será feito por um só encanamento, podendo, porém, dentro de sua propriedade
distribuir a agua como entender e colocar as torneiras como julgar mais commodo. [...] 6º A Companhia
regularisará todas as penas d’agua. [...] 7º A construção de depósitos, o emprego de torneiras de boia e o regulador
chamado relógio, são facultativos ao consumidor. [...] 8º No caso do consumidor exigir um encanamento particular
para cada pena, o preço de cada uma será sempre 6$000. Este encausulento entende-se da rua para o prédio e não
a distribuição d’agua na canalização interna. [...] 9º A Agua não poderá ser desviada da casa onde se achar a pena
colocada, não podendo o consumidor ceder ou vender agua. [...] 10º Organisar-se-há um regulamento que
determine as obrigações da Companhia no fornecimento d’agua e dos particulares no modo de servirem-se da
agua, estabelecendo-se a fiscalização da Camara para de modo certo impedir as infracções por qualquer das partes.
[...] 11º A Companhia propõe-se fornecer gratuitamente [?] agua ás escolas publicas d’esta cidade, colocando uma
pena em cada escola, deixando de cobrar d’ora avante a da Auxiliadora da Instrucção e colocar os lampeões da
iluminação publica que d’ora avante se colocarem na distancia de 40 metro entre um e outro”. Diário de Santos,
23 de novembro de 1884.
97
Diário de Santos, 29 de novembro de 1884.
56
98
Diário de Santos, 7 de dezembro de 1884.
99
Diário de Santos, 11 de dezembro de 1884; Diário de Santos, 14 de dezembro de 1884; Diário de Santos, 17 de
dezembro de 1884.
100
Diário de Santos, 17 de dezembro de 1884.
101
SANTOS. Op. cit., vol. 3, pp. 64. A informação de que Macuco era pardo é corroborada ao cruzarmos
informações de um conjunto de batismos e do censo de 1836, conforme explicaremos no capítulo 5.
57
Ribeiro indicava que a casa fizesse publicar o contrato original, o novo e o aditivo em suas
íntegras para que os munícipes ficassem cientes de seus direitos. Por sua vez, o vereador
Benedicto Narciso do Amparo Sobrinho indicava que fosse suspensa a regularização até que a
Assembleia Provincial aprovasse as mudanças contratuais. Ribeiro, então, lembrou que a
regularização não é consequência do novo contrato, mas sim do original, portanto é um direito
da companhia continuar com o procedimento. Contudo, o vereador Joaquim Xavier Pinheiro se
manifestou corroborando a fala de Amparo Sobrinho. Com ele concordaram José Proost de
Souza e João Antonio Pereira dos Santos. Por fim, Ribeiro acabou reconhecendo a exigência.
Entretanto, apenas Amparo Sobrinho e Pereira dos Santos votaram a favor da indicação.102
Ao que tudo aponta, a regularização igualmente não era um consenso entre os
vereadores, apesar de a Câmara ter aprovado o aditivo, como noticiou o Diário de Santos alguns
dias antes. É interessante notar que pelo menos três deles concordavam com os apelos feitos
naquele jornal, sobre a necessidade da aprovação da instância provincial. Vale mencionar que
João Octavio dos Santos e Joaquim Manoel Alves Lima, cujas residências foram alvos nos
ataques do dia 22 de dezembro, não se manifestaram sobre o assunto. Parece que havia alguns
atritos entre Câmara e Companhia, apesar da população tê-las julgado cúmplices. Em 19 de
dezembro, por exemplo, o Diário de Santos publicou um aviso do presidente da Câmara
requisitando que a empresa não levantasse calçamentos para regularizar as penas dos
particulares sem prévia autorização da municipalidade.103
Tendo em vista o que vinha sendo publicado na imprensa, os inquiridores suspeitavam
tenazmente que havia um ou mais mandantes dos tumultos e interrogaram todas as testemunhas
sobre isso. O delegado Freire relatou que nos dias anteriores ao ocorrido, algumas pessoas já se
manifestavam contra a Companhia e a regularização. O Dr. Garcia Redondo, Miguel Ferreira e
o português Boaventura Rodrigues de Souza. O primeiro tinha lhe procurado dias antes para
pedir que ele impedisse os operários da companhia de realizarem seu trabalho. Quanto a
Ferreira, o delegado diz que ele também participou de um primeiro meeting, ocorrido em 19 de
dezembro no mesmo local que o segundo, falando à multidão contra a companhia ao lado de
Satyro Alves de Azevedo e Antonio Militão de Azevedo. 104
Seu depoimento é parcialmente corroborado pelo Diário de Santos do dia 19, que
noticiou que houve aquele primeiro meeting e que Miguel José Ferreira clamou mais água ao
102
Diário de Santos, 29 de novembro de 1884.
103
Diário de Santos, 19 de dezembro de 1884.
104
Inquérito policial aberto pelo chefe de polícia em 23 de dezembro de 1884 localizado em Apesp, Secretário da
Presidência da Província de São Paulo, Polícia, Ordens CO2647.
58
povo. De lá, os manifestantes caminharam até o escritório da companhia, onde o orador refez
seu apelo. A folha também comprova que Boaventura foi o único que fez publicações, sem
esconder seu nome, contra o corte de fornecimento de água nas casas daqueles contrários à
regularização. Ele afirmava que não permitiria que a água fosse cortada em seus imóveis a
menos que fosse comprovado que seus pagamentos não estavam em dia.105 O amanuense
Pacheco também confirma as declarações de Freire sobre essas pessoas, com a diferença de que
o tal Miguel Ferreira era Miguel Francisco Ferreira106, o que põe em dúvida a notícia do Diário
de Santos pela variação no nome. Porém, parece-nos que são a mesma pessoa e o jornal ou as
testemunhas cometeram um erro.
Outros suspeitos são nomeados no depoimento de Joaquim Pereira de Moraes, 49 anos,
natural e morador de Santos, casado, empregado público (secretário da Câmara Municipal).
Moraes retornava do seu passeio diário pela cidade quando se deparou com a multidão na Praça
dos Andradas e com o caos subsequente. Sua narrativa sobre os acontecimentos naquela noite
não difere do que os demais relataram, no entanto ele traz alguns boatos sobre pessoas que
podem ter organizado a execução do levante e confirma boa parte do que os demais depoentes
presentes naquele momento relataram. A novidade que traz é que ele soube “por ouvir de José
Feliciano da Silveira Anjos” que mais cedo no dia 22, “Silvestre de tal”107 conversava a respeito
dos “planos da noite”, enquanto trabalhava à serviço de Manoel José Barreiro108, à rua do
Marques de Herval. Ele conversava com “um preto de nome Pedro, escravo de Barreiro, que se
acha no hospital com uma perna fraturada na noite de vinte e dois, por ocasião dos tumultos”.
Ao ser intimado, Silvestre disse que “absolutamente nada sabe a respeito” das acusações de
Moraes. Por sua vez, Barreiro igualmente alegou desconhecimento sobre o ocorrido,
ressaltando que a obra em execução na qual seus subordinados trabalhavam era de Floriano
Camargo.
Por fim, os inquiridores suspeitavam de alguns órgãos de imprensa e de seus redatores.
O redator do Diário de Santos, Carlos Luiz de Affonseca, de 36 anos, casado, português, foi
convocado para depor. Perguntaram-lhe se reconhecia os tipos usados na impressão dos boletins
que foram espalhados pela cidade incitando o povo contra a companhia e convocando a reunião
do dia 22. Em caso positivo, complementavam questionando se alguém havia encomendado
105
Diário de Santos, 17 de dezembro de 1884; Diário de Santos, 19 de dezembro de 1884; Diário de Santos, 20
de dezembro de 1884; Diário de Santos, 21 de dezembro de 1884.
106
Inquérito policial aberto pelo chefe de polícia em 23 de dezembro de 1884 localizado em Apesp, Secretário da
Presidência da Província de São Paulo, Polícia, Ordens CO2647.
107
Trata-se da testemunha Silvestre João de Moura, 45 anos, natural de Portugal, solteiro, carpinteiro.
108
55 anos, natural de Portugal, solteiro, proprietário.
59
sua impressão na tipografia em que trabalhava. Affonseca alegou não reconhecer os tipos e que
ninguém havia feito encomenda para impressão de coisa alguma relacionada à “questão das
águas”, como ficou conhecida a polêmica. Ele também não tinha ideia de quem eram os
promotores das reuniões públicas, nem quem havia concorrido para elas. Heitor Peixoto, redator
do Diário do Comércio, e Antonio Manoel Fernandes, do Jornal da Tarde, alegaram as mesmas
coisas. Este último, porém, justificou que não reconhecia os tipos do boletim “porque parece
ou prova de escova ou de algum prelo pequeno que particulares costumam ter”.
Não sabemos o desfecho do inquérito. Segundo a imprensa, nos dias que se seguiram
aos distúrbios, o chefe de polícia destacou forças de cavalaria e infantaria para patrulhar a
cidade e evitar aglomerações. Além disso, foi convocada nova reunião pública para tratar sobre
a questão das águas, no dia 23, mas o povo se manteve pacífico. Os serviços de iluminação e
bondes ficaram desativados por alguns dias, porém no dia 27 a maior parte da iluminação já
havia sido consertada. Em 25, o gerente da City, Heyland, publicou um aviso anunciando que
a companhia receberia todos os consumidores que tiverem reclamações sobre seus serviços e
sobre a regularização das penas, prometendo fazer o possível para atendê-las contanto que
sejam justas. Quarenta e oito horas depois, o Diário de Santos publicou uma sugestão à
empresa: aplicar a regularização apenas aos clientes que contrataram seus serviços a partir da
aprovação do aditivo ao contrato, sem regularizar as penas da clientela anterior até que a questão
fosse resolvida na justiça.109
Em 28, o mesmo jornal publicou dois artigos de correspondentes da capital que
argumentavam que não era necessário a aprovação da Assembleia Provincial para que as
alterações contratuais com a City fossem validadas. A Câmara Municipal estava autorizada a
fazer tal tipo de acordo pela Lei Provincial n. 65 de 9 de Maio de 1868. Na mesma edição, é
noticiado que Guilherme Liborio Freire pediu demissão do cargo de delegado e dois dias depois
foi substituído por Paulo P. Auto Rangel, que ficou no comando das forças da capital destacadas
para patrulhar a cidade.110
Em vista da substituição do delegado, é evidente que as suspeitas sobre a conivência das
autoridades locais com os supostos mandantes dos distúrbios persistiram. Não obstante nossa
ignorância sobre a conclusão do caso, o que destacamos desse acontecimento são as possíveis
ligações entre os envolvidos direta e indiretamente nos tumultos da noite de 22 de dezembro de
1884 e nas discussões envolvendo o assunto, assim como a identificação de um modus operandi
109
Diário de Santos, 23 de dezembro de 1884; Diário de Santos, 24 de dezembro de 1884; Diário de Santos, 25
de dezembro de 1884; Diário de Santos, 27 de dezembro de 1884.
110
Diário de Santos, 28 de dezembro de 1884; Diário de Santos, 30 de dezembro de 1884.
60
da vida política local. Considerando que a pauta das discussões era o fornecimento de água e
demais serviços prestados pela Cia. City, pudemos observar que o assunto foi amplamente
debatido em espaços públicos como a Câmara Municipal, as folhas dos jornais e os meetings
de rua. Além disso, ao se sentir a necessidade de uma manifestação mais chamativa e
espetacular, os insatisfeitos se reuniram em uma praça e caminharam pelas ruas da cidade,
visitando lugares simbólicos relacionados ao poder local e à empresa. Por seu turno, veremos
que vários dos sujeitos envolvidos em ambos os lados da contenda estão conectados por uma
vasta teia de relacionamentos envolvendo relações familiares, associativas e de trabalho que
davam sustentação a esse tipo de manifestação coletiva. Esse universo social é permeado por
hierarquias com base na origem, na linhagem, na cor, na riqueza, em títulos e na profissão, que
demandam que haja negociação entre os diferentes sujeitos para que qualquer mobilização em
prol de um objetivo comum seja possível.
Por outro lado, apesar desses padrões, chama atenção a diversidade de posicionamentos
envolvendo a “questão das águas” ao longo desse conturbado mês em que o assunto tomou as
páginas dos jornais e as ruas da cidade. Havia aqueles que falavam abertamente contra a
companhia, publicando artigos indignados na imprensa e fazendo discursos nos meetings. Entre
eles, temos Satyro Alves de Azevedo, um comerciante local que vendia todo tipo de coisa,
desde móveis e brinquedos até roupas de banho, fantasias e tecidos. Ele também tinha um
negócio de armação de Igrejas e prestava serviços funerários. Ele fora fiscal da Câmara
Municipal, além de ser proprietário de um cortiço. Azevedo era membro de muitas irmandades
e ordens terceiras na cidade, desde aquelas costumeiramente restritas a alta sociedade local
quanto das administradas por negros, pardos, libertos e cativos, inclusive a Irmandade de São
Benedito, na qual entrou em 1879 e nela exerceu os cargos de escrivão, procurador e mesário
durante os anos 1880111.
Antonio Militão de Azevedo112, por outro lado, era filho de Thomas Antonio de
Azevedo, proprietário de uma fábrica a vapor na qual trabalhavam cerca de 10 a 40 operários.
Militão desempenhava a função de contramestre.113 Garcia Redondo, se for o mesmo Manuel
Garcia Redondo citado por Francisco Martins dos Santos, era proprietário de uma empreiteira,
111
Diário de Santos, 03 de novembro de 1883; Indicador Santista, 1887. Disponível em
https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ ; IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Irmãos, pp. 29;
Livro de Atas.
112
Não há parentesco aparente com Satyro.
113
Os depoimentos variam sobre essa informação. Cf. Inquérito policial aberto pelo chefe de polícia em 23 de
dezembro de 1884 localizado em Apesp, Secretário da Presidência da Província de São Paulo, Polícia, Ordens
CO2647.
61
que venceu a concorrência aberta para construção do Teatro Guarani em 1881.114 Portanto,
também tinha certo número de trabalhadores a seu serviço. Por último, Boaventura Rodrigues
de Souza era um importador e exportador, com “muitos trabalhadores nacionais e estrangeiros
sobre os quais tem ascendente”.115
Em um segundo grupo, temos aqueles que se posicionaram a favor da suspensão da
regularização de forma mais moderada, como os vereadores Joaquim Xavier Pinheiro,
Benedicto Narciso Amparo Sobrinho e José Antonio Pereira dos Santos. Dos três, temos mais
informações sobre o primeiro. Pinheiro detinha a patente de major, já havia sido delegado em
1883, era proprietário de uma caieira nos arredores dos Quartéis (atual Paquetá), era
abolicionista e participou da fundação do Quilombo do Jabaquara, em 1882. Ele também era
irmão de São Benedito, ocupando a função de procurador da confraria entre 1874 e 1878.
Pinheiro era filho de um lisbonense radicado em Santos, que em 1836 era dono de um armazém
de açúcar na cidade.116
O terceiro grupo que observamos procurava “acalmar os ânimos” da multidão ou
dispersá-la no dia dos distúrbios. Eram o amanuense Pacheco, o professor Macedo e o delegado
Freire. Do segundo, sabemos muito pouco, a não ser o que ele mesmo declarou em seu
depoimento. Ele era um jovem professor carioca. Entretanto, identificamos um Aprigio
Clemente Carlos Macedo ingressando na irmandade de São Benedito, em 1893, sem outra fonte
que confirme se são a mesma pessoa.117 O primeiro, por outro lado, além do que informou no
depoimento, sabemos que era também confrade naquela irmandade desde 1868. Assim, como
Pinheiro, Pacheco estava entre os abolicionistas que se reuniram para fundar o quilombo do
Jabaquara, em 1882, de acordo com Francisco Martins dos Santos.118 O último deles, o delegado
Freire, era pardo, filho de Antonio Freire Henriques. Era irmão de Pacífico Frederico Freire,
proprietário de um negócio de armação de Igrejas, juiz de direito em 1880 e irmão de São
Benedito, exercendo a função de escrivão da mesma confraria durante vários anos consecutivos
nas décadas de 1860 e 1870.119
114
SANTOS. Op. cit., vol. 3, pp. 64.
115
Inquérito policial aberto pelo chefe de polícia em 23 de dezembro de 1884 localizado em Apesp, Secretário da
Presidência da Província de São Paulo, Polícia, Ordens CO2647.
116
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Irmãos, pp. 86; Livro de Atas. Apesp, Secretaria da Presidência
da Província de São Paulo, Estatísticas, micro-filme 176. OLIVEIRA, Joyce. “Niger, sed formosus”: a construção
da imagem de São Benedito. Guarulhos-SP: Dissertação de mestrado, UNIFESP, 2017, pp. 121 e 282-284.
ROSEMBERG. Op. cit., 2006, pp. 197-207. SANTOS. Op. cit., vol. 2, pp. 219-225.
117
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Irmãos, pp. 114.
118
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Atas. SANTOS. Op. cit., vol. 2, pp. 219-225.
119
Diário de Santos, 01 de janeiro de 1880. IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Atas. Apesp, Secretaria
da Presidência da Província de São Paulo, Estatísticas, micro-filme 176.
62
Em quarto lugar, temos aqueles que tentavam fazer uma defesa legalista da companhia,
ressaltando os detalhes contratuais estabelecidos entre a mesma e a Câmara. Era o caso dos
redatores anônimos do Diário de Santos que publicaram o artigo de 7 de dezembro de 1884 e,
supostamente, José André do Sacramento Macuco. Anteriormente foi dito algumas informações
básicas sobre ele, das quais relembramos que era também homem pardo, abolicionista e irmão
de São Benedito, tendo entrado para aquela confraria no ano de 1886, quando doou um terreno
para a mesma construir sua capela. No ano seguinte, foi eleito para o cargo de mesário. Macuco
escreveu para diversos jornais locais, entre os quais Diário de Santos, Diário do Comércio, O
Pyrilampo, O Raio, O Embryão, O Porvir, O Pirata, O Alvor, O Piratiny, O Patriota, A Ideia
Nova e Cidade de Santos. Em alguns deles trabalhou com algumas das testemunhas do
inquérito, como Heitor Peixoto e Antonio Manoel Fernandes. Além disso, foi delegado em duas
ocasiões, entre 1885 e 1886 e em 1899.120
Em quinto, os “curiosos” que assistiram a reunião do dia 22 na praça dos Andradas.
Entre os poucos para os quais temos alguma informação, estão João dos Santos Bandeira,
Angelo Garcia de Sousa Ramos e Joaquim Appolinario da Silva. O primeiro, como já
mencionado era tesoureiro do English Bank, além de sabermos ser filho do português Joaquim
dos Santos Bandeira, morador de Santos desde pelo menos 1836.121 Antonio Manoel Fernandes,
por sua vez, era redator do Jornal da Tarde, como já sabemos, mas também escreveu para O
Pyrilampo, junto de Macuco122. Angelo Garcia de Sousa Ramos era advogado e chegou a
defender libertos em ações de liberdade na justiça.123 Por último, é possível que Joaquim
Appolinario da Silva seja o irmão de São Benedito de mesmo nome que entrou na confraria em
1884 e foi eleito escrivão em 1885.124
Enfim, destaco também o presidente da Câmara, João Octavio dos Santos. Não está
explícito seu posicionamento nas polêmicas envolvendo a questão das águas. A multidão
julgava que ele era um cúmplice da regularização, mas como vimos na ata publicada pelo Diário
de Santos ele não fez declarações durante aquela sessão e não tivemos acesso a outras. O próprio
presidente confirma que foi em sessão presidida por ele que o aditivo do contrato e a
regularização foram aprovadas. De qualquer forma, é importante mencionar que o referido
120
A Tribuna, 26 de janeiro de 1939. IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Irmãos, pp. 59; Livro de
Atas. SANTOS. Op. cit., vol. 3, pp. 64.
121
Apesp, Secretaria da Presidência da Província de São Paulo, Estatísticas, micro-filme 176.
122
SANTOS. Op. cit., vol. 3, pp. 64.
123
Juízo Municipal - Autos de depósito de dinheiro para remissão de serviços em que é a preta liberta Marcelina
suplicante, em 10 de janeiro de 1882. Arquivo Geral do Fórum da Comarca de Santos (AGFCS). Maço 144.
ROSEMBERG. Op. cit., 2006, pp. 219. Este caso será abordado no capítulo 2.
124
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Irmãos, pp. 15; Livro de Atas.
63
vereador era um homem mestiço, filho natural de Escolastica Rosa de Oliveira e de seu ex-
senhor Joaquim Octavio Nébias, o Conselheiro Nébias, muito próximo da família imperial.
Octavio dos Santos foi apadrinhado por seu avô, que financiou sua educação e lhe abriu
caminhos para a ascensão social. Ao longo do século XIX, ele se tornou um dos comerciantes
mais prósperos da cidade. Ele era membro da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, uma
das mais prestigiadas da cidade e para a qual deixou grande parte de sua fortuna ao morrer. Por
outro lado, era também irmão de São Benedito, confraria na qual ocupou o cargo de juiz entre
1859 e 1860.125
Apesar de o elo comum entre boa parte dessas pessoas ser a irmandade, esta não
desempenhou nenhum papel institucional no evento, mas só é mencionada aqui para enfatizar
que de fato os santistas estavam envolvidos em redes que podiam servir de mobilização para
diferentes movimentos. Essas redes podem ser mediadas pelas confrarias e também pelas
próprias relações de trabalho, de convivência familiar, associativa ou de vizinhança, que se
retroalimentam no cotidiano e na consolidação de alianças, solidariedade e rivalidade entre os
sujeitos históricos. Elas conectavam pessoas de todas as classes sociais, cores, nacionalidades
e residentes dos mesmos e de diferentes bairros.
A participação de escravizados, libertos, pardos livres e luso-brasileiros também merece
alguns comentários. É evidente que tal composição dos participantes é um retrato da demografia
da cidade, habitada desde o início dos oitocentos majoritariamente por portugueses, seus
descendentes e a população negra e mestiça que vivia em cativeiro ou em liberdade. Entre os
luso-brasileiros temos aqueles que pertencem a famílias que chegaram na cidade no início do
XIX, ou antes, e conseguiram conquistar posições de destaque na sociedade, como Santos
Bandeira, Pinheiro e Octavio dos Santos. Temos também comerciantes ricos de recente
imigração como Boaventura e a massa de trabalhadores lusitanos que nunca parava de chegar
à cidade. Entre os escravizados e libertos estão Benedito, Bonifacio e Pedro, sobre os quais
praticamente nada sabemos, sendo apenas suposto que tiveram papel auxiliar nos distúrbios, a
mando de seus senhores ou patrões. Quanto aos pardos livres, Macuco, Freire e Octavio dos
Santos, são exemplos de como os cidadãos de cor podiam alcançar posições de autoridade e
prestígio na sociedade santista, a depender da sua origem familiar e das relações que
mantinham. De certa forma, esse conjunto de pessoas também compartilhavam do perfil geral
dos confrades de São Benedito, como veremos no capítulo 4.
125
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Atas. 1. 1899, Testamento de João Octavio dos Santos.
Disponível em https://www.novomilenio.inf.br/santos/h0260d9.htm . OLIVEIRA. Op. cit., pp. 280-281.
64
Dois anos depois da questão das águas, dois dos abolicionistas envolvidos naquele
episódio participariam de outro evento igualmente preocupante, do ponto de vista da ordem
social vigente. Eram eles Joaquim Xavier Pinheiro e Joaquim Fernandes Pacheco. Eles
lideraram um ataque à cadeia municipal para libertar um escravizado preso por ter fugido de
seu proprietário.
No mês de novembro de 1886, o delegado em exercício, Claudio Honorio dos Santos,
trocou correspondência com o chefe de polícia informando sobre distúrbios causados por
abolicionistas. No dia 4 daquele mês, o delegado enviou um telegrama “reservado” informando
que não atendeu pedidos de abolicionistas e que o delegado titular assumia a jurisdição contra
sua vontade, declarando sustentar seus atos contra os militantes.126 No dia seguinte, o chefe de
polícia recebia um ofício contando em mais detalhes o que se passava na cidade litorânea.127
No dia 2 de novembro, Honorio dos Santos recebeu a visita de José Augusto Pereira de
Oliveira, encarregado pelo Dr. Angelo Pires Ramos, de Rio Claro, de recuperar seu cativo
fugitivo de nome Manuel que estava preso na cadeia de Santos. Como Oliveira vinha munido
dos documentos apropriados para comprovar sua missão, o delegado permitiu a entrega do
escravizado. No entanto, algumas horas depois Honorio soube que Oliveira foi atacado quando
estava prestes a embarcar na estação de Cubatão. Um grupo de indivíduos saltou do trem e o
atacou, tentando tomar Manuel dele, o que conseguiram. No mesmo dia, a uma hora tarde, o
delegado foi surpreendido, desta vez por uma “comissão” composta de 25 a 30 pessoas, entre
126
Apesp, Polícia, Ordem CO2663.
127
Idem.
65
as quais estavam Joaquim Xavier Pinheiro, Joaquim Fernandes Pacheco, Antonio Pacheco, o
português José Theodoro dos Santos Pereira, Pedro Borges de Saés e o redator do Diário de
Santos (não nomeado). Eles “pedirão-me terminantemente a soltura de quatro escravos”, o que
foi negado pela autoridade. A narrativa de Honorio é um pouco confusa e, ao que parece, após
isso o grupo se dispersou. Contudo, uma “pessoa de probidade” informou o delegado que alguns
membros da dita “comissão” haviam declarado que atacariam a cadeia em breve. Curiosamente,
a cadeia ficava no mesmo local que dois anos antes havia sido palco dos distúrbios sobre a
questão das águas, reforçando seu simbolismo para a vida política da cidade: a Praça dos
Andradas.
Para se prevenir, o delegado convocou os praças que estavam espalhados pela cidade
patrulhando para que fizessem a guarda da cadeia. Mais uma vez a insuficiência da força
policial na cidade se mostra evidente. Não havia policiais suficientes para, ao mesmo tempo,
patrulhar a cidade e proteger o edifício. Reforçando isso, é nesse momento que Honorio
telegrafou uma primeira vez ao chefe de polícia.
O que o delegado não esperava era que o alvo real dos abolicionistas seria outro local:
a estação de trem, no Valongo. Às quatro horas da tarde, quando o trem estava prestes a partir,
o local foi acometido por cerca de oitenta pessoas, “trabalhadores da plancha, carroceiros e
outros individu-os de igual classe, todos armados de páo no intuito talvez de agredirem a
qualquer passageiro que contivesse escravo”. Assim que soube, Honorio se deslocou para lá,
mas chegou tarde demais, pois os manifestantes já haviam se dispersado. Ele soube, entretanto,
que o grupo agrediu transeuntes que supunham serem “procuradores d’escravos”.
Honorio termina o ofício ressaltando que os abolicionistas continuavam insistindo na
soltura dos quatro cativos presos na cadeia. Ele alega não ter cedido nunca, conservando-se no
posto apesar das ameaças. Ele também informa que o delegado titular acabou assumindo,
garantindo que sustentaria seus atos, mas desta vez ele não menciona que resistiu a deixar a
função.
De fato, as turbulências causadas pelos abolicionistas persistiram até o fim daquele mês
e Honorio voltou ao cargo de delegado. Em 23, ele oficiava novamente ao chefe de polícia
sobre novos acontecimentos relativos ao assunto.128 Aparentemente, o superior da capital foi a
Santos prestar assistência às autoridades locais no meio tempo entre os dois ofícios. Honorio
informa que após seu retorno à capital, os ânimos continuaram bastante exaltados. Apesar de a
situação não ser assustadora, era “provocante, porém tendendo sempre a melhóra”. O delegado
128
Idem.
66
também relata que a chegada do trem na noite anterior foi esperada “por numero supperior a
quatrocentas pessôas, sendo a maiór parte da plebe e alguns cidadãos de alguma importancia,
querendo eu crer que maior parte especuladores, curiosos, o que motivou-me a telegraphar a V.
E.”. Contudo, o chefe de polícia respondeu apenas dizendo que tivesse prudência e evitasse usar
a força para prevenir “desordens que serião funestas”. Honorio ainda cobra de seu superior que
envie sete praças que estavam em falta na cidade, conforme lhe prometera.
Infelizmente, mais uma vez não encontramos fontes que nos informem sobre o resultado
de tal tensão que tomou conta de Santos naquele penúltimo mês de 1886. Contudo, à primeira
vista salta aos olhos a semelhança entre esse episódio e o da questão das águas no que diz
respeito ao perfil das pessoas que participaram dos distúrbios e os possíveis mandantes. Sem
acesso a publicações na imprensa para esse ano, sabemos menos detalhes sobre esse evento do
que sobre o de 1884. Ainda assim notamos em ambos uma grande massa de trabalhadores do
porto e do transporte terrestre de mercadorias participando ativamente das escaramuças. Os
“curiosos e especuladores” também parecem ser uma constante nesses eventos, vistos sempre
com suspeita pelas autoridades. Mesmo assim, as pessoas mais abastadas e influentes que não
se manifestassem tão explicitamente sobre seus posicionamentos diante das contendas mais
polêmicas conseguiriam assumir esse disfarce, estando ou não realmente envolvidas nos
ocorridos. Como já destacamos, a força policial continuava tendo problemas para reagir a
qualquer turbulência social ou insurreição civil, por mais que Honorio demonstrasse mais força
de vontade em conter os levantados do que o delegado Freire.
A tal “comissão” que exigia a soltura dos cativos presos podia estar intimamente ligada
tanto ao assalto ao capitão do mato Oliveira, quanto ao ataque à estação do Valongo. O ponto
de ligação é o português Santos Pereira, também conhecido como Santos Garrafão. Ele foi um
dos abolicionistas mais radicais na cidade, estando presente na fundação do Jabaquara, em 1882
e citado como um dos ajudantes de Quintino de Lacerda, liderança desse mocambo, quando
adentrava a serra para guiar escravizados em fuga das fazendas do interior. Vale mencionar que
Garrafão era dono de um botequim, o qual administrava junto de sua esposa liberta, Brandina
Fiuza, que também auxiliava nas atividades abolicionistas do português.129
Surpreendentemente, aqui há mais um ponto de ligação com a Irmandade de São Benedito.
Fiuza era confrade desta agremiação, como consta o seu registro no Livro de Irmãos. Contudo,
sua entrada para a confraria ocorreu alguns anos mais tarde, em 1893.130
129
MACHADO. Op. cit., 2010, capítulo 4. PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 92, 155, 160-165. SANTOS. Op. cit.,
vol. 2, pp. 219-225.
130
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Irmãos, pp. 126.
67
em agosto de 1886 e foi eleito juiz entre 1892 e 1894.131 Sua experiência nos permite pensar as
permanências e rupturas das culturas políticas negras entre o período anterior e posterior à
abolição, como veremos.
Assim, entre a entrada de Quintino de Lacerda na irmandade e sua eleição para juiz
ocorreram os episódios envolvendo os ataques à cadeia e à estação de trem e a greve de 1891.
Apesar de não haver menções ao seu nome nos ofícios do delegado Honorio dos Santos ao
chefe de polícia, devemos considerar que dois homens que ajudaram a fundar o Jabaquara (do
qual o sergipano era líder) e seu principal cúmplice no acoitamento de cativos vindos de fora
da cidade estavam à frente dos fatos de novembro de 1886: major Pinheiro, amanuense Pacheco
e o português Santos Garrafão. Os três eram irmãos de São Benedito ou estavam ligados à
confraria indiretamente, agremiação esta para qual Lacerda ingressou dois meses antes dos
eventos de novembro de 1886. Vejamos o que esta rede de alianças proporcionou ao liberto
mesmo após o fim da escravidão e do movimento abolicionista.
Naquele ano de 1891, aconteceu a primeira greve geral da cidade, a primeira do gênero
no país. Os movimentos grevistas não eram surpresa. Nos anos de 1877, 1889, os portuários já
haviam paralisado suas atividades reivindicando melhores salários, sendo vitoriosos na segunda
vez. Ainda, em 1888, também a indústria de construção civil viveu uma greve e, em janeiro de
1891, os ferroviários paralisaram suas atividades. Contudo, a greve de maio de 1891 se
diferenciou não só pela adesão consecutiva de várias categorias, como também foi marcada por
um conflito racial entre os trabalhadores, o qual acabou sendo manipulado pela imprensa e
pelos patrões envolvidos, de modo que os quilombolas do Jabaquara, liderados por Quintino de
Lacerda, furaram a greve dos portuários. Na verdade, não há um consenso entre os historiadores
sobre o grau de manipulação dos fura-greves.
A greve começou na semana do dia 12 de maio, entre os carregadores de café, no mês
de maio. Até o dia 16, estivadores, trabalhadores da ferrovia, do matadouro, do cemitério, das
obras do cais, das pedreiras e das obras particulares também aderiram ao movimento, levando
à paralisação da Alfândega e da Mesa de Rendas, do comércio e de bancos e armazéns da
131
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Irmãos, pp. 60. FONTES. Op. cit., pp. 72-74. MACHADO.
Op. cit., 2010, capítulo 4; 2007, pp.243. OLIVEIRA. Op. cit., capítulo 4. PEREIRA. Op. cit., 2011, capítulos 1 e
4. ROSEMBERG. Op. cit., 2006, pp. 222-241. SANTOS. Op. cit., vol. 2, pp. 219-239.
69
ferrovia.132 Jornais locais, além de folhas de São Paulo e Rio de Janeiro, mantinham repórteres
a postos para obter novos furos. Os números de trabalhadores que aderiram ao movimento
variaram muito de acordo com o periódico consultado. O Correio Paulistano afirmava que
cerca de dois mil grevistas se mobilizavam, enquanto O Estado de S. Paulo falava em quatro
mil, com destaque para os trabalhadores de pranchas e estivadores.133
As rivalidades entre a Cia. Docas e os comerciantes locais reunidos na Associação
Comercial persistiam após três anos da concessão para a reforma do cais feita por aquela
empresa. Além disso, a companhia também entrava em litígios na justiça contra diversos
proprietários na região dos morros. A pretensão era instalar ali seus serviços de fornecimento
de insumos para as reformas no cais. Os proprietários, por sua vez, arrendavam suas terras para
a população de baixa renda, além de investir na construção de benfeitorias e plantações, e
mesmo pedreiras com as quais a Docas pretendia competir.134 A São Paulo Railway, outra
empresa que empregava parte significativa dos trabalhadores santistas nos serviços ligados a
estação ferroviária, passava por uma desapropriação de terras em Jundiaí empreendida pelo
governo central da República.135 Além disso, os importadores se queixavam nas páginas do
Diário de Santos do alto preço dos impostos de ouro.136 Tudo isso constata que o conjunto dos
empregadores e também os representantes do governo continuavam embrenhados em conflitos
entre eles. Entretanto, assim como na greve de 1889, é possível observar nessa ocasião os
esforços comuns em apelar para as forças policiais, cônsules estrangeiros e representantes
políticos, com o diferencial que dessa vez os empregadores saíram vitoriosos graças à escolha
política feita pelas “turmas de homens de cor” que responderam a convocação de Quintino de
Lacerda para substituir os carregadores de café.137
Do ponto de vista dos trabalhadores e da população de baixa renda em geral, as coisas
continuavam na mesma. Epidemias persistiam, reformas urbanas excludentes, moradias
precárias e cada vez mais um mercado de trabalho inchado, com uma enorme competição pelos
empregos disponíveis. Os trabalhadores que ocupavam os serviços portuários e da construção
civil, antes do boom imigrantista, costumavam ser os libertos e escravizados de ganho.
Entretanto, a partir da década de 1880, grande fluxo de imigrantes europeus inflou o mercado
132
GITAHY, Op. cit., pp. 79. PEREIRA. Op. cit., pp. 241-255.
133
Além dos periódicos mencionados também o Diário de Santos, Jornal do Comércio, Diário Popular e Diário
da Manhã cobriram os eventos da greve de maio de 1891. PEREIRA, Op. cit., pp. 245.
134
MACHADO. Op. cit., 2007. PEREIRA. “Uma ‘paragem chamada Jabaquara’: arrendamentos, lavouras e
intensas disputas pelas terras do reduto abolicionista”. In: PEREIRA, Op. cit.
135
Diário de Santos, 10 de maio de 1891. Diário de Santos, 15 de maio de 1891.
136
Diário de Santos, 15 de maio 1891.
137
Diário de Santos, 20 de maio de 1891. PEREIRA, Op. cit., pp. 34.
70
de trabalho, disputando não só serviços que costumavam ser ocupados pela população de cor,
mas também espaços de moradia. O Diário de Santos, assim como a historiografia que abordou
o assunto, com mais ou menos ênfase, concordam que imigrantes portugueses e espanhóis
tiveram uma atuação predominante nesta greve. Vários deles aparecem sendo presos em
notícias de periódicos locais e da capital.138
Compartilhar espaços e situações precárias não necessariamente despertou uma
solidariedade latente entre os diferentes grupos étnicos que compunham os trabalhadores
santistas naqueles anos. Era comum emergirem “querelas cotidianas ocasionadas por problemas
no trabalho, apostas, dívidas ou casos amorosos” 139, tanto entre indivíduos de grupos étnicos
diferentes quanto entre aqueles pertencentes a uma mesma nacionalidade/etnia.140
Uma manifestação dessas tensões pode ser vista na própria greve aqui abordada. O
envolvimento de um deputado do partido operário na assembleia constituinte do estado, o
tenente José Antonio Vinhaes, como intermediário das negociações, acabaria num profundo
desagrado por parte da Associação Comercial. Esta tinha grande expectativa que Vinhaes fosse
acalmar os ânimos proletários, mas o deputado decidiu tomar o partido do movimento. Ele
chegou à cidade no dia 17 de maio e, no dia seguinte, já ocorreu uma reunião na Praça do
Comércio. A situação se agravou no dia 21, quando, ao saber da atitude de Quintino de Lacerda
de arregimentar “turmas de homens de cor” para substituir os grevistas, Vinhaes foi ao seu
encontro.141 Segundo publicado no Diário da Manhã:
138
Diário de Santos, 16 de maio de 1891. Diário de Santos, 17 de maio de 1891. GITAHY, Op. cit., pp. 79.
PEREIRA, Op. cit., pp. 230-257.
139
LANNA, Op. cit., pp. 216.
140
Ana Lanna, Op. cit., pp. 216-223, lista alguns casos que encontrou em processos judiciais ao longo da década
de 1880 e 1890, por exemplo, Antônio Rocca que agrediu Pascoal Ponzio, amigos desde a Itália, por este ter
começado a agredi-lo frequentemente e a difamar sua mulher por Rocca ter se naturalizado brasileiro; a autora
também cita o caso, em 1881, de Antônio que foi até a delegacia denunciar Manuel Francisco de Azevedo Porto,
advogado abolicionista local, e a preta Maria Joana, proprietária de um sítio no Sabó, por terem lhe enganado num
acordo que lhe prometiam a alforria, mas que na verdade mais pareciam o terem vendido para Maria Joana; ainda,
a autora dá como exemplo a greve aqui analisada como um episódio em que houve uma tensão racial entre os
trabalhadores. Ver também: ROSEMBERG. Op. cit., 2006, capítulo 3.
141
PEREIRA, Op. cit., pp. 253-254
71
Esses comentários demonstram como a memória das ações perpetradas por Lacerda
durante os anos precedentes colocaram-no agora como uma figura central nos embates
políticos. O que parece ter acontecido no caso dessa greve, por parte dos periódicos, foi uma
utilização ideológica do abolicionismo para angariar a simpatia da população negra local. O
mês da greve coincidiu com a comemoração de três anos do “13 de Maio”, portanto,
oportunidade para elaboração de narrativas e propagação de uma memória da Abolição. Nesses
anos, era uma data comemorada e reivindicada pelos próprios homens negros para celebração
do fim do cativeiro. Inclusive, houve celebrações do 13 de maio no Teatro Guarani e no
Jabaquara, sendo que nesta última uma “comissão de homens de cor” presentou Lacerda com
um retrato à óleo dele.143 Justo nesse momento, Vinhaes cometeu um erro em atacar um dos
maiores símbolos locais do abolicionismo, chamando-o de negro em meio à outros impropérios,
com a intenção de desmerecer sua liderança e liga-la à sua condição de cativo no passado.144 O
tenente acabou sendo forçado a se retirar da saída, a greve foi minada e acabou com a derrota
dos grevistas após cerca de onze dias de duração. As últimas notícias sobre o movimento são
do dia 22 de maio.
Apesar da historiografia até aqui mencionada concordar na influência do(s)
movimento(s) abolicionista(s) nessa e em outras greves do período, percebe-se algumas
peculiaridades. Gitahy considera que essa rivalidade entre imigrantes e população negra foi
resultado do excesso de oferta de força de trabalho no mercado, que possibilitou o aumento da
competição por emprego entre brancos e negros, assim as classes patronais manipularam essa
rivalidade através das reminiscências ideológicas do abolicionismo, até aquele momento
presente nas páginas da imprensa. Maria Helena Machado, por sua vez, não exatamente
142
Apud. Idem.
143
PEREIRA, Op. cit., pp. 242-244
144
Idem, pp. 230-257.
72
145
MACHADO, Op. cit. (2007).
146
PEREIRA, Op. cit., capítulo 4.
147
Segundo PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 24, “A Revolta da Armada de 6 de setembro de 1893 consistiu no ato
final de uma série de movimentos em razão do processo de sucessão presidencial promovidos pelos altos oficiais
da Marinha contra o presidente marechal Floriano Peixoto. Quintino de Lacerda teria atuado do lado dos legalistas,
que defendiam a permanência de Floriano Peixoto na presidência. A atuação política de Quintino de Lacerda
durante o período republicano demonstra uma ligação com um nacionalismo popular e o florianismo”. Cf.
FERREIRA & DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs.) O Brasil republicano. O tempo do liberalismo
excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
Sobre a Revolta da Armada em Santos: SANTOS. Op. cit., vol. 2, pp. 256-260. Sobre o florianismo e o
jacobinismo: QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Os Radicais da República. Jacobinismo: ideologia e ação. 1893-
1897. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.
73
Sobre essa eleição e a tomada de posse por Lacerda os historiadores contam versões
diferentes. Na versão do historiador santista Francisco Martins dos Santos, o sergipano foi eleito
para vereança naquele ano, porém sua posse foi negada pelos demais vereadores.148 O autor
relata que o sergipano recorreu à Justiça, por meio de seus protetores. Assim, em 5 de abril,
apresentou-se com um Acórdão do Tribunal de Relação de S. Paulo. Prevendo o desfecho, o
presidente da Câmara Municipal, Manoel Maria Tourinho renunciou, seguido pelo vereador
Alberto Veiga.149
Restou assumir a presidência da casa o nosso já conhecido José André do Sacramento
Macuco. Ele era vereador desde 1894 e havia participado da confecção da Constituição
Municipal promulgada naquele ano.150 Apesar das conexões entre Macuco e Lacerda, apontadas
anteriormente, este é o único registro de uma interação direta entre os dois. Por outro lado, a
despeito daquelas conexões, no abolicionismo e nas irmandades, Martins dos Santos nos
informa que “Macuco viu-se obrigado a dar posse a Quintino, o herói retinto do Jabaquara, e,
em seguida, declarando-se enojado ante o que via, renunciou ao posto e ao mandato”.151 O que
colocaria dois homens de cor, confrades da mesma irmandade, em lados opostos? Tentaremos
responder esta pergunta ao longo do trabalho indo mais fundo na rede abolicionista e
confraternal na qual ambos estavam inseridos. Por enquanto, continuemos acompanhando o
mandato de Lacerda na Câmara Municipal.
De seus desafetos políticos, restou apenas Olympio Lima, redator do jornal A Tribuna
do Povo. Contudo, as sessões da Câmara foram suspensas até dia 1º de junho, por falta de
número. Naquele dia, na sessão de reabertura, Quintino de Lacerda exerceu a função de
Presidente Interino. No dia 9, as cadeiras vagas foram preenchidas e ele continuava presidindo
o plenário. Uma semana depois, com base na Lei Eleitoral n. 16, Lacerda requisitou a cassação
de Olympio Lima, alegando o seu não comparecimento ostensivo às sessões, sem qualquer
justificativa. O pedido foi deferido por unanimidade. Lima só tentou recuperar seu cargo no
mês seguinte, mas o novo presidente da casa, Antonio Vieira de Figueiredo lhe cientificou que
não seria permitido. O jornalista cedeu, mas continuou esbravejando contra Lacerda e seus
aliados nas páginas de seu periódico.
148
SANTOS. Op. cit., vol. 2, pp. 261.
149
Idem.
150
Idem, pp. 260-261. Cf. A Tribuna, 26 de janeiro de 1939.
151
SANTOS. Op. cit., vol. 2, pp. 261
74
Por outro lado, Pereira chega a uma versão diferente dos fatos ao comparar as narrativas
dos memorialistas com as publicações na imprensa e as atas da Câmara Municipal. Segundo
ele, os memorialistas deram pouca atenção à trajetória de Quintino de Lacerda após 1888,
quando muito apenas mencionando pontualmente sua participação na vida política local:152
Apesar de não haver restrições de cor, renda ou condição social para exercer o voto e se
candidatar aos cargos elegíveis da política institucional, a legislação republicana mantinha
impedimentos para a participação dos mais pobres, incluída a maior parte da população negra,
por meio do requisito de alfabetização. Esta condição já havia sido validada no Império, com a
aprovação da Reforma Eleitoral de 1881 e foi mantida pela Constituição de 1891.153 Entretanto,
se isto confirma que era bem provável que os eleitores de Lacerda eram em maioria seus aliados
brancos, também causa certa estranheza, pois sabemos que o próprio era analfabeto. Isso era
destacado por seus opositores políticos, entre os quais o já citado Olympio Lima, mas também
Manoel Henrique Lima, membro do Partido Republicano Parlamentarista.
Em 29 de março de 1895, Henrique de Lima publicou na imprensa uma carta na qual se
dizia surpreso pela notícia que recebeu em fevereiro naquele ano lhe informando que sua eleição
para vereador de Santos havia sido anulada pelo Tribunal de Justiça. Mais surpreendente para
ele era que o cidadão Quintino de Lacerda, recente major honorário do Exército, tivera sua
eleição reconhecida.
Por sua vez, Olympio Lima, meses antes de ser cassado por Lacerda, publicava em 10
de abril de 1895, no seu A Tribuna do Povo, um breve editorial defendendo o parlamentarismo
e atacando a atitude do Supremo Tribunal de Justiça de S. Paulo, o que convergia para uma
análise da posse do líder quilombola na Câmara Municipal de Santos. Segundo o periódico, a
municipalidade sofria ataques constantes do partido do governo estadual, pois a Câmara era
presidida por Manoel Maria Tourinho, da oposição. Por meio de uma estratégia “bastante
torpe”, o redator acusava do governo estadual de “atir[ar] a sufrágio popular o nome de um
indivíduo irresponsável e analfabeto, que o próprio nome não sabe assinar”. Além disso, o
jornal acusava Lacerda de ter forjado documentos junto de um advogado para conseguir a
152
“Aplicando tons mais sóbrios ao quadro histórico que construiu em sua escrita, Castan relembra os habitantes
do Jabaquara como ‘míseros negros’ que trabalhavam nos serviços que a cidade de Santos fornecia como o de
carroceiros e ensacotadores de café, tendo como chefe o ‘negro Quintino de Lacerda [...] ex-escravo da família
Lacerda Franco [...] e que nos primeiros tempos da República, quando o voto ainda era respeitado, foi pelos
brancos eleito vereador da Câmara Municipal de Santos’”. Grifos do autor”. PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 258.
Os pormenores da eleição, posse e exercício de Lacerda como vereador são narrados nas pp. 257-269.
153
Cf. GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros, cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio
Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. MATTOS, Hebe Maria. Marcas da escravidão:
biografia, reacialização e memória do cativeiro na História do Brasil. Tese (Professor Titutlar). Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 2004.
75
aprovação do tribunal estadual e elidir Henrique Lima de sua legítima posse à vereança, após
ser eleito por 60 votos.
Pereira observa que esse conflito estava vinculado à maneira como a recente República
organizaria as disputas políticas com reflexos na administração municipal de Santos. De um
lado, Lacerda se posicionava junto aos presidencialistas. De outro, Henrique de Lima e Olympio
Lima eram adeptos da corrente parlamentarista. Uma série de publicações no A Tribuna do
Povo sustenta esse quadro. Apesar de se declarar neutro, o periódico não economizava tinta em
lançar críticas ao governo do presidente marechal Floriano Peixoto, defendendo seus opositores
que se rebelaram em 1893.
Portanto, uma inimizade política que já se desenhava desde o início da década atinge
mais um ponto de ebulição. Após as críticas preconceituosas contra Lacerda publicadas em
abril de 1895, a tipografia daquele jornal foi atacada “por um grupo de indivíduos de cor”, do
que resultou um incêndio que só não se espalhou graças ao fato de o chão do edifício ser
cimentado. A polícia não encontrou pistas sobre os responsáveis ou mandantes, mas uma das
testemunhas afirmava que a situação lhe “cheirava a Quintino”.154
Todo o escândalo dos parlamentaristas, no entanto, não é corroborado pela ata da
Câmara Municipal de 8 de abril de 1895, na qual é registrado o momento em que Quintino de
Lacerda compareceu ao local para assumir o cargo de vereador.
Esse registro descredita a versão narrada por Martins dos Santos e pelos opositores
contemporâneos ao sergipano. Por um lado, não foi Macuco quem deu posse à Lacerda, mas
sim Silva Motta. Não é feita menção alguma à suposta sequência de renúncias para que isso
não se concretizasse. Aparentemente, Macuco renunciou antes de qualquer tentativa nesse
154
Apud. LANNA. Op. cit., pp. 197, nota 64.
155
Atas da Câmara Municipal de Santos, abril de 1895, p. 169v. FAMS. Fundo Câmara Municipal de Santos.
Apud. PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 265. Possivelmente o nome de Macuco foi transcrito errado pelo autor.
76
sentido, talvez por outros motivos, e, na realidade, Lacerda se apresentava para substituí-lo. Por
outro lado, Manoel Henrique de Lima nem se quer é citado no documento.
Entretanto, esse é o primeiro e único documento encontrado por Pereira no qual Lacerda
aparece assinando o próprio nome. O historiador coloca algumas dúvidas sobre a probabilidade
de o recém-empossado vereador realmente ter aprendido a ler e escrever em pouco tempo,
devido à firmeza e clareza da grafia de sua assinatura, algo incomum entre pessoas de recente
alfabetização. Apesar disso, nenhuma outra fonte desmente a presença de Lacerda naquela
ocasião para assumir o cargo. Fica a suspeita levantada pelo A Tribuna do Povo de que os
documentos foram forjados.156
Sem esquecer de Henrique de Lima, a rejeição de sua posse nada tinha a ver com
Lacerda. Ao que tudo indica sua contenda não era com o liberto, mas diretamente com os
presidencialistas nas esferas estaduais do governo. Alguns meses depois, em nova eleição para
preencher cadeiras vagas na vereança, Henrique de Lima aparece compondo uma chapa com o
Partido Republicano Parlamentarista, mas agora representando o Partido Operário. Em defesa
de sua candidatura, o jornal Santos Comercial publicou uma nota na qual não havia mais
menção à Lacerda e as críticas se concentravam ao Supremo Tribunal de Justiça.
Tudo não passou de um mal-entendido no qual Lacerda estava envolvido de forma
indireta. Ao que parece, ele não teve maiores problemas além de boatos mal informados para
assumir seu mandato como vereador. Pereira confirma que o major presidiu algumas sessões,
cassando o mandato de Olympio Lima e, acrescenta, que exerceu o cargo até janeiro de 1896:
156
PEREIRA. Op. cit., 2011, capítulos 1 e 4, analisa vários processos judiciais no qual Quintino de Lacerda é
convocado para testemunhar ou é réu. Em todos é patente que o quilombola era analfabeto, pois seu nome é sempre
assinado “a rogo”. O último desses processos antes de sua eleição para vereador teve lugar em 1889.
157
Idem, pp. 268.
77
158
Lisboa, “Almanak litterario” in Lichti and Santos, Poliantéia santista, 167–68. Apud. READ. Op. cit., pp. 67.
Read se inspira na expressão usada no almanaque para caracterizar a cultura política santista de constituição de
redes de sociabilidade “derivada de uma série de relacionamentos, de um lado, entre pessoas de similar riqueza,
status, e raça que tiravam força da origem familiar, compartilhando costumes e paridade social, e, de outro, entre
pobres e ricos, escravos e senhores, patrões e empregados, entre clientes e padrinhos que tiravam força da
dependência, do dever, da honra e da reverência”.
78
É nesse momento que Fontana viu a oportunidade perfeita para despejar os quilombolas
e Lacerda. No mês seguinte, ele compareceu a uma audiência pública na qual declara já ter
entrado com o pedido de despejo. O italiano assegurava que os prédios e terrenos deveriam ser
desocupados no prazo de 24 horas. Ainda, deveria ser paga da data da citação no processo até
159
1898. Ação de despejo em que são Benjamin Fontana: A. e Major Quintino de Lacerda R. AGFCS. Apud.
PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 59.
160
Idem.
79
a entrega dos imóveis uma locação de 5 mil réis por mês. Para seu desprazer, Quintino de
Lacerda respondeu que o contrato que mantinha com Fontana venceu em 1895, logo não havia
nada que o obrigasse a responder qualquer requisição do italiano. Entretanto, o processo foi
interrompido com a súbita morte de Lacerda em agosto de 1898. Isso não seria suficiente para
aplacar as pretensões de Fontana.
Anexada ao inventário do falecido major, consta uma intimação de 29 de setembro
daquele ano, na qual o italiano demonstrava preocupação em relação as propriedades no
Jabaquara por não confiar no inventariante Faustino Vasque.161 Ele acusava o compadre de
Lacerda de não cumprir com suas obrigações de inventariante e tutor do finado. Ele não
confiava em Vasques pois o mesmo não oferecia garantia suficiente para administrar a herança
deixada pelo sergipano, haja vista que o tutor não teve sucesso em administrar um
estabelecimento de café que tinha no Largo Mauá, sendo em 1898 apenas um pequeno hoteleiro.
Realmente, desde 1882, Faustino Vasques era proprietário do Hotel Madrid, localizado na
Barra. O local era notório por hospedar prostitutas. Para Pereira, a amizade com Lacerda talvez
tenha surgido exatamente desse hotel, uma vez que esse tipo de lugar era comumente usado por
escravizados em fuga como esconderijo temporário. Não há mais notícias sobre o resultado
desse processo, contudo logo em seguida teve início o leilão dos imóveis pertencentes a
Quintino de Lacerda para pagar as dívidas que deixou. O italiano parece ter ficado satisfeito
com o montante de 8 contos de réis que arrematou referentes a “duas casas números 15 e 17, à
Rua 13 de Maio, e um terreno na Avenida Ana Costa, com 20 m de frente e 104 de fundos,
onde existe um chalé de madeira em mau estado”, propriedades que foram do finado major.
Já mencionamos antes que os arredores rurais da cidade de Santos, ao sul do perímetro
urbano da época, eram em parte chácaras e sítios de membros das elites locais, em parte roças
de pessoas mais humildes espalhadas pelos morros. Pois bem, essas regiões estavam sendo
progressivamente loteadas, principalmente pelos proprietários mais abastados, para terem suas
porções vendidas e revendidas, como eram o caso da Vila Matias e da Vila Macuco.162 A
intenção era proporcionar moradias operárias. Também havia a pressão de grandes firmas que
operavam na cidade que pretendiam usar parte dessas terras como instalações para produção de
161
Intimação de Benjamin Fontana com relação à tutoria de Faustino Vasques aos bens deixados por Quitnino de
Lacerda presente no Inventário de Quitnino de Lacerda. Coleção Costa e Silva Sobrinho, vol. 14. FAMS. Apud.
PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 28.
162
LANA. Op. cit., “Loteamentos e bairros” e “A casa”. PEREIRA. Op. cit., 2011, “1.2. ‘Resquícios do
Jabaquara’: a vida de Quintino de Lacerda e dos demais habitantes do Jabaquara”.
80
insumos para as reformas urbanas e a construção civil. O próprio Fontana chegou a entrar em
litígio com a Companhia Docas de Santos em 1899 por causa disso.163
Assim, vemos que o processo de marginalização reservado à população liberta e negra,
em geral nos anos subsequentes a Abolição, mais cedo ou mais tarde, alcançava a maior parte
desses sujeitos. Nem mesmo os habitantes do Jabaquara e o eminente major Quintino de
Lacerda puderam se manter ilesos por mais de 10 anos após 1888, quando o movimento
abolicionista perdeu seu sentido de ser.164 Isso não deve ser usado como argumento de que as
redes de sociabilidade que viemos destacando enfraqueceram ou se tornaram dispensáveis, mas
sim que há limites circunstanciais para extensão de sua capacidade de proteção.
Mesmo não sendo perceptível nenhum esforço de outro de seus aliados políticos de
outrora durante o processo de despejo, quando da sua morte Quintino de Lacerda foi louvado
pela imprensa e pela opinião pública, tendo menção honrosa na Câmara Municipal. O cortejo
que acompanhou seu enterro foi acompanhado por uma multidão, quase tão massivo quanto o
de Luiz Gama quase 20 anos antes, na capital paulista. Marcando presença ostensiva estava o
préstito dos irmãos de São Benedito que o levaram, rodeados pela multidão, a sua última
morada no jazigo da mesma confraria, no Cemitério do Paquetá.165
Encerramos esse capítulo, entendendo o cenário santista de fins do século XIX, a
composição de sua população em termos gerais, as condições de moradia de seus habitantes e
as tensões sociais envolvendo trabalhadores e patrões, brancos e negros. Além disso, pudemos
observar uma sequência de acontecimentos que abalaram a tranquilidade pública ao longo dos
anos 1880 e 1890. Deles, saltam uma variedade de sujeitos de todas as cores, classes e
nacionalidades que estão conectados por meio de redes subterrâneas que lhes permitem
mobilizar outras tantas pessoas em prol de causas comuns ou particulares.
Pudemos constatar que estava ocorrendo uma sobreposição de práticas políticas nos
diferentes movimentos, associações e na própria política institucional. O debate público, seja
nos jornais ou nas ruas, a agremiação em comissões ou instituições para propor ações e as
manifestações coletivas que percorriam a cidade de forma espetacular – violenta ou não – eram
163
1899. Ação de Embargo de Obra Nova em que são Gafrrée e Guinle: AA e Benjamin Fontana e sua mulher:
RR, fls 17 a 21, AGFCS. Apud, MACHADO, Op. cit., 2007, p. 260. Documento também analisado em PEREIRA.
Op. cit., 2011, pp. 228.
164
Outros ex-escravizados que habitavam o Jabaquara, tendo chegado em meio à onda de fugas dos últimos anos
da escravidão enfrentavam tentativas de despejos, como se vê em Auto de Ação de Despejo em que são: Dona
Cândida de Matos, por seu marido: A. e Maria Rosa Siqueira e outros: RR. Apud. LANNA. Op. cit., pp. 212.
Documento também citado em PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 34.
165
Atas da Câmara Municipal de Santos, 11 de agosto de 1898. FMAS. Fundo Câmara Municipal de Santos. A
Tribuna do Povo, 12 de agosto de 1898. Coleção Costa e Silva Sobrinho, vol. 14, p. 38. FAMS. Diário de Santos,
12 de agosto de 1898. Coleção Costa e Silva Sobrinho, vol. 14. FAMS. Apud. PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 22.
81
166
Termo usado em A Tribuna do Povo, 10 de abril de 1895, Arquivo Edgar Leuenroth, para qualificar Quintino
de Lacerda como mero títere dos presidencialistas, no período republicano.
82
relação entre a experiência vivida e a tradição herdada, o que reflete na sua constante
atualização. É “um conjunto de diferentes recursos, em que há sempre uma troca entre o escrito
e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole”.167 Guardadas as devidas
proporções, a metáfora thompsoniana da cultura como uma arena na qual símbolos e práticas
são mobilizados ao sabor das circunstâncias de quem os mobiliza cabe para o contexto que
estamos olhando. O final do século XIX foi um momento de redefinição ou reelaboração de
lugares e hierarquias, fundadas em critérios raciais, em um ambiente de falência de seculares
formas de diferenciação social.168 Nesse contexto, os grupos dominantes e os dominados
fizeram o seu melhor para botar em prática o máximo que conheciam sobre as culturas políticas
compartilhadas pela sociedade de seu tempo, de modo que saíssem vitoriosos nas diferentes
contendas. Consequentemente, as identidades políticas também estavam em constante
atualização. Tanto cultura quanto identidade, portanto, são relacionais.
Uma breve discussão nos jornais entre Brandina Fiuza e Manoel Pinheiro da Rosa se
mostra ilustrativa para termos noção de como identidades políticas são mobilizadas para
barganhar, a partir de um arcabouço discursivo e simbólico da cultura mais ampla
compartilhada pela sociedade contemporânea. Fiuza publicou em 9 de maio que Rosa não lhe
pagara o devido valor referente a 657 kg de jornais velhos para embrulhar pão. Tendo ela
pagado devidamente os pães que havia comprado de Rosa, a liberta se queixava que após quatro
dias usando seus papéis o homem não quis quitar a dívida no fim do mês argumentando sobre
o preço abusivo que lhe era cobrado, garantindo que pagaria apenas o que foi usado e devolveria
o resto. Fiuza vai mais fundo informando ao público que havia acordado com Rosa de que ele
depositasse a quantia devida junto ao Asilo de Órfãos da cidade, pois seria uma doação dela
para a instituição. Contudo, um ano depois, ela soube que o pagamento não foi realizado e ia
aos jornais expor o caloteiro. No fim do artigo, a mulher faz uma afirmação interessante: “Sou
negra, mas até agora, mercê de Deus, tenho sabido cumprir com os meus deveres como uma
verdadeira dona de casa”.169
No dia seguinte, Pinheiro da Rosa estampou no mesmo jornal uma publicação sob o
título “A preta Brandina Fiuza e o cidadão José Theodoro dos Santos Pereira”. Extremamente
irritado por ter sido forçado a se expor publicamente na imprensa, o padeiro inicia sua réplica
alegando que Fiuza era simplesmente a “testa de ferro” que servia de proteção ao seu esposo, o
167
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998, pp. 17.
168
ALBUQUERQUE, Wlamyra. “A vala comum da ‘raça emancipada’: abolição e racialização no Brasil, breve
comentário. História Social, n. 19, segundo semestre de 2010, pp. 91.
169
Diário de Santos, 10 de maio de 1891. BSHECS.
83
famoso abolicionista Santos Garrafão. Segundo a versão de Rosa, ele havia tratado diretamente
com o português, não com a liberta. Ao ser questionado por meio de seu empregado se ele
gostaria dos jornais velhos para embrulhar seus pães, respondeu que sim e os papéis foram
deixados em sua padaria em grande quantidade e em uma única viagem. Ao dar de cara com a
pilha de jornais e ser notificado do preço a ser pago ficou indignado e mandou chamar Santos
Garrafão. Contudo, foi Fiuza quem apareceu, pronta para pagar a quantia que o casal devia
pelos pães e para negociar o pagamento dos papéis para embrulho. Rejeitando o negócio, Rosa
prontamente disse que o português podia recolher os jornais quando quisesse, devendo lhe pagar
a armazenagem dos mesmos. Garantindo que o público sabia que ele não se “emporcalha com
ninharias”, o padeiro termina seu texto mandando que Garrafão continuasse “a carregar o seu
aromático lixo, que já não é pouco”.170
Rosa parece ser um negociante mais antigo e abastado na cidade e procurou demarcar
isso ao longo de todo seu texto, rebaixando o casal o máximo que pôde. Apesar de tentar
emplacar que Fiuza era apenas uma “testa de ferro” para o marido, é patente que a liberta de
fato tinha uma proeminência nos negócios, pois lidava diretamente com os clientes e
fornecedores do botequim e, além do mais, recorria à imprensa quando se deparava com um
mau negociante, no intuito de apelar para o constrangimento. Parecendo prever que sua cor
seria usada para rebaixá-la, Fiuza constrói sua argumentação mobilizando identidades políticas
positivas sobre sua pessoa: negra, dona de casa, temente à Deus e caridosa. Esses elementos
permitem ver como a vida privada e pública de uma mulher negra se conectavam no cotidiano.
Ao mesmo tempo em que ela se colocava no papel esperado de uma mulher (dona de casa), o
próprio fato de estar ali publicando sobre uma contenda relativa aos negócios comerciais que
tocava demonstra que esse papel é bem mais amplo nas camadas médias santistas, demandando
que ela cuide tanto do lar como de tarefas financeiras e relações pessoais com a clientela de seu
comércio. A menção à Deus e o exercício da caridade remete a uma cultura tradicional de várias
vilas e cidades brasileiras que relaciona religião, caridade e mutualismo que encontramos nas
irmandades, mas que não se resumem a elas no século XIX.
Por sua vez, a escolha dos termos usados por Rosa é revelador de sua visão sobre a
população de cor no pós-abolição, sobretudo as mulheres. É evidente o quanto o padeiro ficou
perturbado pela intromissão de uma “preta” nas negociações feita entre dois homens –
possivelmente brancos. Como veremos adiante, categorias como preto, negro, pardo, mulato,
etc., estão em constante transformação ao longo do tempo de acordo com as circunstâncias
170
Idem.
84
sociais, culturais, econômicas e políticas de cada momento. Nessa contenda, “negra” aparece
positivada por meio da articulação de outras identidades (dona de casa, cristã e caridosa),
enquanto “preta” tem o objetivo de rebaixar a quem se designa como tal, para Rosa, pessoas
que se ocupam com “ninharias” e “aromático lixo”. Na verdade, a maior qualidade de sua
pessoa com base na sua antiguidade na cidade e bom relacionamento com a praça comercial se
mostrava inversamente proporcional à desqualificação que buscava atribuir à Fiuza e Garrafão.
É bom lembrar que no inquérito da questão das águas aqueles que tiveram sua cor ou condição
mencionada foram Pedro, Bonifácio e Benedito, que, enquanto suspeitos e potenciais
criminosos, eram descritos ora como “pretos”, ora como “escravos”.
O mais certo aqui é que de uma forma ou de outra ambos os lados da contenda estavam
inseridos em suas próprias redes de solidariedade às quais procuravam apelar para constranger
um ao outro publicamente. Se Rosa tinha sua antiguidade na cidade e seu bom relacionamento
com outros comerciantes influentes, Fiuza reivindicava seu histórico como uma cristã caridosa
e boa companheira que cumpre seus deveres com responsabilidade, o que possivelmente
buscava reforçar quando entrou para a Irmandade de São Benedito, dois anos depois.
Nos capítulos seguintes, procurarei destrinchar mais essas redes e relações existentes
entre os santistas, demonstrando a aproximação formal entre a organização das confrarias e a
das associações laicas que não paravam de surgir na cidade durante a segunda metade dos
oitocentos. Essa aproximação formal também será perceptível nas festas e celebrações
realizadas por esses tipos de agremiações e nas comemorações pela abolição. Aprofundaremos
nossa compreensão sobre os perfis sociais dos irmãos de São Benedito e investigaremos mais
de perto a trajetória de alguns deles para captar elementos do processo de racialização em curso
naquele contexto. Antes, porém, se faz produtivo para a investigação explorar um pouco mais
sobre quem eram os negros, pardos e mestiços habitantes em Santos, os caminhos que tomaram
para lá chegar, suas motivações para isso e suas estratégias para se tornar e se manter livres,
subsídios importantes para a reconstituição dos significados por traz da atualização das culturas
políticas vigentes naquele contexto.
85
CAPÍTULO 2
Negros, negras, pardos e pardas que viviam em liberdade estavam presentes em todas
as classes sociais da sociedade imperial, mesmo que desigualmente distribuídos entre elas,
como constatamos no capítulo anterior, com Macuco, Freire e Octavio dos Santos. Havia
aqueles homens e mulheres de cor, como muitos deles se reconheciam, que nasciam livres em
famílias bem estabelecidas e outros que conseguiram ascender e puderam pleitear casas e
terrenos em loteamentos que surgiam na cidade, empreendimentos de capitalistas locais para
construção de bairros operários, porém que nunca chegaram a caber nos orçamentos dos
habitantes dos cortiços e cocheiras. Esses empreendimentos de iniciativa privada geralmente
estavam aliados à expansão da rede de transportes urbanos que era explorada pelos proprietários
dos terrenos. Aqueles indivíduos, que costumavam ocupar esses bairros, pertenciam a uma
crescente camada urbana de servidores públicos e empregados qualificados de empresas
estrangeiras monopolistas.
Os mais pobres moravam em cortiços, moradias precárias e coletivas, divididas em
pequenos cômodos para cada locatário. Essas habitações abrigavam toda a diversidade presente
na arraia-miúda santista e estavam espalhadas em diversos lugares da cidade, desde o Valongo,
próximo à estação ferroviária, até os Quartéis, com maior concentração na área triangulada
entre a Praça dos Andradas, Alfândega e a Praça José Bonifácio. A rua e o largo do Rosário,
onde se encontrava a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, estavam envoltos por cortiços
abrigando grande parte dessa massa populacional.171
Segundo Ana Lanna, era recorrente brasileiros “que, por conta própria ou
arregimentados nas suas regiões de origem por contratadores de trabalho, vinham para Santos
em busca de melhores condições de vida”. A autora aponta que a maioria deles era paulista,
mas havia também muitos oriundos do Rio de Janeiro, Sergipe, Minas Gerais, Santa Cantarina,
entre outros.172 A migração, isto é, a mobilidade espacial, era um dos distintivos da liberdade.
Segundo Hebe Mattos, uma vez que um indivíduo se vê frustrado na manutenção de uma vida
satisfatória para si em determinada região, ele migrava e buscava construir novos laços e
alianças no novo local.173
171
LANNA, Op. cit., pp. 120-123.
172
Idem, pp. 178-179.
173
MATTOS. Op. cit., 2013, pp. 49-63.
86
Infelizmente, os censos da segunda metade do século XIX não são tão detalhados sobre
essa população migrante para além de contá-los e apontar sua província/estado de origem. A
historiografia sobre Santos tendeu em analisá-los junto à experiência da classe pobre e
trabalhadora nacional que se instalou na cidade. Por outro lado, podemos reunir mais
informações sobre os caminhos que levaram os negros e pardos para Santos por meio do tráfico
de escravizados, das fugas e dos quilombos. Assim, também é possível analisar como eles se
integraram a redes de sociabilidade existentes na cidade que envolviam senhores, livres, libertos
e outros escravizados e quilombolas lá residentes. Poderemos traçar um perfil tanto dos cativos,
quanto dos libertos e dos fugitivos. Teremos a oportunidade de problematizar a experiência
quilombola em Santos e procurar referências de uma cultura política afro-brasileira que é
gestada nesses trânsitos. Por fim, a análise das lutas na justiça para tornar-se livre nos informa
sobre as possibilidades que pessoas negras e pardas tinham para fazê-lo e assim permanecer
dentro da lei. A centralidade das redes subterrâneas que sustentam ações e comportamentos
mais uma vez se mostrará palpável, assim como percebê-las torna mais compreensível a
margem de agência dos sujeitos e sua posição nas articulações políticas.
Por sua vocação portuária e comercial, mesmo que em proporções mais regionais antes
de meados do século XIX, Santos estava inserida em rotas marítimas de navios nacionais e
internacionais que circulavam por toda a costa brasileira. A cidade era um entreposto que ligava
outros portos relevantes, como Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Desterro (atual Florianópolis).
Nesse circuito, muitas mercadorias e sujeitos eram transportados, inclusive os escravizados.
O tráfico transatlântico foi o principal motor da migração forçada de milhões de
africanos para o Brasil. Nas regiões de grande lavoura no Rio de Janeiro, São Paulo e no sul de
Minas Gerais, a escravidão era majoritariamente africana, na primeira metade do século XIX.
Com a nova conjuntura econômica favorável para o plantio de cana de açúcar voltado para
exportação, decorrente da revolução haitiana que tirou de cena um dos maiores concorrentes
internacionais do Brasil, as regiões do Oeste Paulista, do Vale do Paraíba fluminense, do
Recôncavo da Guanabara e de Campos de Goitacazes se tornaram polos de atração de
fazendeiros e investidores interessados em construir engenhos de açúcar. Estes, no entanto, não
87
funcionavam sozinhos e para tanto, o principal meio de obtenção de braços foi o tráfico
internacional de africanos.174
Na província do Rio de Janeiro esse influxo populacional fazia com que os africanos,
em 1850, equivalessem a 59% dos escravizados, 45% dos pretos e pardos (livres e cativos), e
32% da população total. Em terras mineiras, por conta do intenso tráfico de cativos que para lá
foram direcionados ao longo do século XVIII, as proporções de africanos entre escravizados,
entre negros e mulatos, e na população total, eram menores que em São Paulo e no Rio no
Oitocentos. O resultado disso foi a alta concentração de negros nascidos no Brasil, chamados
de crioulos na época. Não obstante, no ano de 1832, 40% de todos os escravizados e 50% dos
adultos da província eram africanos. Na sua região sul, em pleno crescimento econômico
atrelado tanto ao mercado interno como externo, essas percentagens eram maiores,
aproximando-se dos números de São Paulo e Rio de Janeiro.175
Na província paulista, enfim, o tráfico afetou menos a população total e a de negros
livres, mas deixou a população escravizada, sobretudo nas regiões de grande lavoura,
predominantemente estrangeira. Em 1829, treze localidades paulistas tinham 54% dos
escravizados africanos da província, segundo dados de Robert Slenes. Para citar um exemplo,
em Campinas 69% dos cativos eram africanos. Entre os escravizados adultos (acima de 15
anos), a taxa de africanidade chegava a 80% nesse município e 65% nas outras treze localidades
juntas. Boa parte dos cativos que passaram a fugir com frequência e quantidade cada vez
maiores nos últimos anos do regime escravocrata em direção às cidades de Santos e São Paulo
eram dessa região do Oeste Paulista.
De modo geral, no Sudeste brasileiro aqui considerado, esse contingente africano que
foi chegando desde fins do século XVIII até meados do XIX era majoritariamente da África
centro-ocidental. Nesse período e regiões, a maioria dos escravizados vieram de sociedades
falantes de línguas bantu, principalmente da atual Angola e do que Mary Karasch chamou de
“Congo-Norte”, equivalente à bacia do rio Congo/Zaire e a costa ao norte da desembocadura
desse rio, abarcando o atual Gabão. Entretanto, a partir da segunda década do século XVIII
outra região africana passou a exportar escravizados em uma quantidade nada desprezível,
174
SLENES, Robert W. Na senzala uma flor – Esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil
Sudeste, século XIX. 2ªed. corrig. – Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2011, pp. 78-82. PIROLA, Ricardo
Figueiredo. Senzala insurgente: malungos, parentes e rebeldes nas fazendas de Campinas (1832). Campinas, SP:
Editora da UNICAMP, 2011, pp.50-52. Sobre a região do Recôncavo da Guanabara, no Rio de Janeiro, ver
GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro,
século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 27-34 e 163-178.
175
Os dados deste e do próximo parágrafo foram consultados em SLENES, Robert W., “’Malungu, ngoma vem!’:
África coberta e descoberta no Brasil”, Revista USP, nº 12, dez.-jan.-fev., 1991-1992, pp. 55.
88
176
SLENES. Op. cit., 2011, pp. 151. SLENES. Op. cit., 1991-1992, pp. 55-56. KARASCH, Mary. Slave Life in
Rio de Janeiro, 1808-1850. Princeton: Princeton University Press, 1987, cap. 1.
177
SLENES. Op. cit., 2011, pp. 79. AZEVEDO, C. M. M. de. Op. cit., pp. 92-96.
178
A autora se baseia na correspondência de Luiz Gama a Lucio Mendonça. AZEVEDO, E. Op. cit., 1999, pp. 36-
37.
179
FRANCO. Op. cit., p. 31. OLIVEIRA. Op. cit., pp. 68.
180
QUINTÃO. Op. cit., pp. 40-41. CHARLHOUB. Op. cit., 2012, também menciona a predominância dos
escravizados nordestinos e nortistas no tráfico interprovincial que abastecia as fazendas do Vale do Paraíba e do
Oeste Paulista.
89
67% eram do gênero masculino e 43% eram crianças abaixo dos 16 anos, a maioria separados
de seus familiares, mas com alguns poucos sendo vendidos/comprados junto de algum parente.
As ocupações mais comuns eram prestadoras de serviços domésticos (limpeza e cozinha),
transportadores de mercadorias, pedreiros, sapateiros, cocheiros, carpinteiros, latoeiros, entre
outras. A quantidade de africanos era substancial, correspondendo a 55% dos cativos
comercializados, enquanto os brasileiros eram 45%, sem maiores distinções quanto aos seus
locais de nascimento. Entre os africanos, porém, Read destaca que a maioria veio das regiões
de Angola, Benguela, Congo e Moçambique, mas não nos apresenta os dados exatos para as
proporções dessas procedências na amostra. Em relação à cor e raça, apenas 4% dos registros
mencionam tal característica. Isso pode ser explicado pelos termos “preto” e “escravo” serem
praticamente sinônimos naquele contexto. De qualquer forma, nos registros em que consta
cor/raça, temos 6% de pretos, 76% de mulatos e 12% de pardos. Ao que tudo indica, é provável
que essa distinção fosse mencionada com mais frequência em casos de cativos de pele mais
clara.181
Para a segunda metade do século XIX, Read conta com contratos (1861-1873) e
anúncios em jornais (1851-1873) de compra e venda de cativos. Nesses registros, os homens
continuaram sendo maioria entre os escravizados comercializados, mas o contingente de
mulheres aumentou consideravelmente, equilibrando assim as proporções entre os gêneros. Em
242 contratos, são 56% homens e 44% mulheres, enquanto nos 130 anúncios coletados, temos
54% e 47%, respectivamente. Como resultado do fim do tráfico transatlântico, o número de
africanos caiu, ficando em 26% dos contratos e 18% nos anúncios. Os brasileiros
correspondiam a 73% e 82%, respectivamente. Nessa amostra os cativos naturais de Santos
passam a ser distinguidos, chegando a 23% nos contratos, porém sem menções nos anúncios.
No novo quadro histórico santista da segunda metade do Oitocentos, a prosperidade da
economia cafeeira que utilizava a cidade como porto aumentou o número de residentes que
podiam bancar escravizados domésticos, os quais chegavam a corresponder a 30% dos
contratos e 20% dos anúncios, perdendo apenas para os lavradores, que eram 14% e 8%
respectivamente. Ocupações como cozinheiros, artesãos e “outra” mal chegavam a 10%. Vale
dizer que aqueles sem habilidades ou ocupações especificadas perfaziam 44% dos escravizados
descritos nos contratos e 12% nos anúncios.182
181
Para este e o próximo parágrafo ver: READ. Op. cit., pp. 114-128.
182
Somente 74% dos contratos e 64% dos anúncios especificavam as habilidades ou ocupação do cativo. Idem.
90
Quanto à cor/raça, somente 86% dos contratos e 26% dos anúncios mencionam esse
quesito. No caso dos primeiros, temos 72% de pretos, 23% de pardos e nenhum mulato. Por sua
vez, no segundo caso, 68% eram pretos, 18%, pardos, e 9%, mulatos. Read faz duas ressalvas
quanto a esses dados. Primeiro, os anúncios podiam não mencionar cor/raça (entre outras
características) para economizar dinheiro, uma vez que se pagava por cada letra grafada. Em
segundo lugar, a diferença na frequência da menção à cor/raça entre a primeira e a segunda
metades do XIX pode ser explicada pelo fim do tráfico internacional de cativos, o que dificultou
a associação entre raça e origem/linhagem. No período colonial, a cor era uma entre muitas
marcas simbólicas de classificação e distinção social, apesar de estar associada à condição que
separava a liberdade da escravidão. A cor era acionada em relação com uma miríade de fatores
ou percepções que incluíam riqueza, nascimento, ocupação, grau de crioulização, o modo de
apresentar-se publicamente, entre outros. O nascimento era de longe o mais importante e
praticamente subordinava todos os outros. Assim, enquanto os africanos predominaram no
cativeiro e no tráfico “preto”, “escravo” e “africano” eram praticamente sinônimos, só sendo
necessário especificar aqueles de pele mais clara e com algum nível de mestiçagem. Entre estes,
a predominância de mulatos em detrimento de pardos também sugere a extensão da vigência
dos critérios coloniais, pois o primeiro termo está intimamente associado aos filhos ilegítimos,
enquanto o segundo foi criado e reivindicado pelos próprios pardos para se distanciarem
simbolicamente da condição de escravo e do universo africano. Portanto, apesar de haver
cativos pardos, este era um termo pouco usual para designar a cor dos escravizados.183 Essa
lógica não morreu completamente com a independência do Brasil e teve bastante influência
ainda nas primeiras décadas do século XIX.
Todavia, ao longo da centúria as transformações políticas e econômicas demandavam
uma redefinição das hierarquias e dos critérios de classificação e distinção social. Os africanos
estavam cada vez em menor quantidade e os brasileiros eram mais frequentes no tráfico
interprovincial, tornando mais difícil definir a distinção de uma pessoa a partir de sua linhagem.
Com isso, a cor vai ganhando mais espaço como indicador principal para demarcar as diferenças
e permitir inferências. A massa cada vez maior de negros e pardos libertos e livres também
contribuiu para que se tornasse mais difícil separar livres e cativos. Com isso, Hebe Mattos
observou que qualquer menção à cor da pele, seja preta, parda, mulata, etc., era uma forma de
183
Idem, pp. 124. Sobre as classificações sociais e raciais no Antigo Regime ver: LARA, Silvia H. Fragmentos
setecentistas: escravidão, cultura e poder na América Portuguesa. São Paulo: Cia. das Letras, 2007, pp. 136-146.
VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa. Campinas-SP:
Editora da UNICAMP, 2007, capítulo 1.
91
insinuar seu passado ou ascendência escrava nas pessoas livres e ascendência branca nos
escravizados, enquanto o silêncio tornou-se um atributo de cidadania.184
Voltaremos a discutir com mais vagar as mudanças na percepção e designação da
cor/raça no capítulo 5. Por ora, é importante notar a composição social e étnica dos cativos em
Santos que acabamos de descrever, pois mesmo nosso enfoque sendo dado sobre os negros e
pardos livres e libertos, muitos desses cativos se tornariam livres ao longo do XIX, uma vez
que a escravidão sofria cada vez mais abalos com o passar dos anos e o contingente de pessoas
em cativeiro diminuía, sobretudo em Santos. De qualquer forma, os dados de Read não
invalidam aqueles registrados nos censos185, informando apenas alguns detalhes a mais, o que
nos permite um olhar mais apurado da situação da população negra santista no final dos
Oitocentos.
Entretanto, é interessante prestar um pouco de atenção nos participantes do comércio de
viventes186 que compravam e vendiam cativos na cidade, pois tal atividade serve para
destacarmos a importância das redes de sociabilidade entre os habitantes em muitas esferas da
vida cotidiana, redes nas quais esses cativos traficados eram inseridos e a partir delas balizavam
a construção de novos laços de solidariedade e/ou rivalidade com outros escravizados, libertos
e cidadãos livres.
Santos não era um dos grandes destinos do tráfico transatlântico durante sua vigência,
mas sim um ponto de passagem, mas seus residentes eram maioria entre vendedores e,
sobretudo compradores nas transações feitas na cidade. Os santistas costumavam deixar esses
cativos passar direto para outros destinos. O mais comum era que eles se voltassem para seus
vizinhos, familiares, confrades, colegas de trabalho ou até mesmo para o pároco local para
comprar ou vender escravizados, raramente em grandes quantidades. Dessa forma, formavam-
se redes de troca localizadas, quando cativos eram vendidos. Um terço dos compradores
também vendia cativos.187
O perfil dos participantes desse comércio de viventes reflete a estratificação social da
cidade. Tratava-se de uma maioria masculina, na casa dos 30 ou 40 anos de idade,
frequentemente casados, muitos deles portugueses ou brasileiros naturais de outras regiões. Os
184
Sobre as designações de cor/raça nos documentos oficiais ao longo do XIX: MATTOS, Hebe Maria. Das cores
dosilêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil, século XIX). 3ª ed. rev. Campinas-SP:
Editora da Unicamp, 2013, pp. 361.
185
Ver Capítulo 1 da presente dissertação.
186
Termo usado por Luis Felipe de Alencastro para os sujeitos escravizados que eram comercializados durante a
vigência do tráfico internacional de cativos. Cf. ALENCASTRO, Luís Felipe. O Trato dos Viventes: formação do
Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
187
READ. Op. cit., pp. 117.
92
santistas eram minoria nesse comércio entre 1832 e 1859, não alcançando nem mesmo 20% dos
envolvidos. Entre 1861 e 1873, os naturais da cidade aumentaram sua participação,
correspondendo a 33% dos compradores e 44% dos vendedores. Em geral, os que vendiam
cativos diferiam dos que compravam por serem um pouco mais velhos, haver alguns solteiros
e brasileiros a mais e com outras ocupações além de comércio. É importante enfatizar que
nenhum deles declarava o comércio de escravizados como sua ocupação principal. Muitos se
designavam apenas como “negociante” ou “comerciante”, os quais eram a maioria tanto entre
vendedores quanto entre compradores.188
Vender um cativo poderia render montante razoável para pagar dotes ou garantir uma
aposentadoria estável. Por isso, Read destaca que homens mais velhos e mulheres, eram
vendedores frequentes. Por outro lado, comprar um escravizado demandava uma quantidade
significativa de capital que muitos só conseguiam arrecadar nos anos finais da vida. Isso explica
a idade avançada entre vendedores e compradores. Contudo, o autor destaca também a
predominância de portugueses nesse ramo, o que indica que muitos imigrantes chegaram antes
e depois da independência. De acordo com a documentação coligida pelo historiador, o número
de lusitanos testemunhas em tribunais reflete que eles foram uma minoria poderosa,
frequentemente dominando o comércio nas cidades portuárias do Brasil, como em Santos.
Portanto, conclui, uma vez que o número de santistas entre compradores e vendedores era
menor que 20% em ambas as categorias no conjunto global, muitos naturais da cidade não
podiam sustentar a compra de cativos e poucos tinham sequer um para vender.189
Esse quadro muda ligeiramente com as transformações econômicas vivenciadas pela
cidade entre os anos 1840 e 1870, ou seja, com a influência da economia cafeeira em expansão.
Os comerciantes de viventes continuaram sendo, em sua maioria, homens velhos e casados,
porém o número de lusitanos entre eles diminuiu consideravelmente. A maioria dos
compradores e vendedores passaram a ser brasileiros, com menos da metade sendo naturais de
Santos. Algumas profissões se destacam: oficiais públicos de baixo escalão, profissionais
liberais, oficiais do exército, empresários e, os maiores participantes, aqueles envolvidos com
a exportação de café, como donos de casas de comissão ou armazéns. Pequenos comerciantes
e banqueiros, donos de restaurantes e de fábricas também se tornaram mais frequentes. Por sua
vez, os fazendeiros começavam a desaparecer dos registros de compra e venda de cativos após
1850, especialmente entre os compradores.
188
Para os dados exposto neste e nos dois parágrafos seguintes ver: READ. Op. cit., pp. 121.
189
As informações a respeito dos sujeitos e redes que compunham o tráfico local de escravizados de Santos
expostos neste e nos parágrafos seguintes são de READ. Op. cit., Capítulo 3.
93
Por meio dessa documentação, Read também pôde reconstituir duas grandes redes de
comércio de viventes em Santos, cada qual com características próprias relativas àquelas dos
escravizados trocados e dos envolvidos nas transações, inclusive podendo localizar
geograficamente tais relações. Uma rede de relacionamentos facilitava esse comércio. Essa teia
se espalhava pela cidade, colocando compradores e vendedores em contato por meio de pontos
chaves nas relações de trocas, nos quais estavam agentes intermediários. Cativos eram
mercadorias caras e vendedores e compradores dependiam de especialistas familiares para o
processo de transação, que conhecessem as pessoas certas para obter o escravizado apropriado
para o comprador, ou pelos menos que pudessem convencê-lo disso. Esses homens eram
âncoras na estrutura que ligava áreas semi-homogêneas e tinham forte influência em quais
cativos seriam trocados e entre quais pessoas.
Os dois nichos do comércio local de cativos estavam concentrados em torno do Capitão
Gregorio Innocencio de Freitas e do Padre Scipião Ferreira Goulart Junqueira. O primeiro
operava uma casa de comissão de café na Rua São Bento, no Valongo. Ele também viveu em
Iguape, uma cidade portuária ainda menor, cerca de 88 quilômetros ao sul. Sua renda provinha
de suas relações mercantis entre as duas cidades. Ele atuava como agente para muitos
vendedores em Iguape e compradores em Santos. A maioria dos cativos trocados por ele eram
iguapenses ou nascidos em outras vilas e cidades do litoral sul de São Paulo.
Por sua vez, o padre Junqueira era o vigário da cidade e por isso circulava tanto em
várias partes do município como da província. Como vigário, é importante enfatizar, ele
também tinha um contato cotidiano com as irmandades da cidade, desempenhando um papel de
supervisão e vigilância.190 Ele administrava testamentos, o que lhe dava conhecimento sobre
bens imobiliários, mobiliários e “semoventes” (escravizados) antes de eles serem vendidos em
leilões ou vendas particulares. O tipo de cativo que comercializava e a clientela que atendia
eram distintos daqueles do capitão Freitas, diferença influenciada pelas características pessoais,
ocupação e posições na rede comercial que cada um deles detinha. Imagine que uma série de
pessoas procurava por Junqueira ou Freitas para comercializar cativos. No entanto, essas
pessoas também comercializavam com outra miríade de sujeitos, apesar de menor comparada
com a dos dois agentes principais. Quanto mais próximo destes, mais características em comum
os envolvidos compartilhavam entre si.
190
Em ata de 5 de janeiro de 1880, encontramos o vigário Junqueira oficiando a irmandade de São Benedito para
colaborar em dinheiro para a compra um novo sino para a Matriz, templo no qual estava sediada a confraria.
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Livro de Atas. Sobre a relação dos padres, em especial os
párocos e vigários com as irmandades negras no século XIX ver: QUINTÃO. Op. cit.., pp. 52-67.
94
191
READ. Op. cit., Capítulo 3.
192
A Nova Alfândega foi construída no antigo bairro dos Quartéis, de frente para a Igreja de Nossa Senhora do
Carmo.
95
tráfico permaneceram no antigo centro, principalmente os vendedores, dos quais a maioria era
justamente formada pelos donos das propriedades rurais dos arredores da cidade. Havia uma
intersecção entre os grandes proprietários rurais193 e os grandes comerciantes, mas no geral é
possível distinguir dois grupos distintos. Estes refletem a oposição tradicional na cidade, entre
portugueses e santistas, entre proprietários rurais e comerciantes/profissionais liberais. Em
geral, os maiores vendedores, compradores e locadores estavam concentrados no centro-oeste
da cidade (Valongo e Quatro Cantos), enquanto os pequenos proprietários e aqueles que
costumavam alugar cativos alheios estavam nas periferias urbanas e na nova área em expansão,
no sudeste (Quartéis e suas fronteiras).
Até aqui já é possível perceber que é por meio dessas redes que parte dos sujeitos
enfocados neste trabalho chegaram a Santos, de modo que suas vidas eram atravessadas por
essa dimensão comercial e geográfica da teia de relacionamentos construídas pelo tráfico. A
sociedade santista era fundamentada na escravidão, como o resto do país. Isto fazia com que as
hierarquias sociais e os critérios de classificação social fossem informados também pelo
comércio de viventes, como vimos acima. À medida que cativos eram incorporados nas
unidades domésticas de múltiplos tamanhos por meio de sua compra, venda e aluguel, eles
tinham oportunidade de nutrir relações que seriam fundamentais para sua sobrevivência, melhor
tratamento e possibilidades de encontrar um caminho para a liberdade. Talvez o fato de ter sido
trocado no interior da rede em torno do padre Junqueira lhe aproximasse de pessoas e
comunidades mais afeitas à vida confraternal nas irmandades católicas, enquanto aqueles
comercializados entre a clientela do capitão Freitas eram menos inseridos no círculo familiar,
visto que eram comumente empregados no porto e habitavam os estabelecimentos dos
comerciantes e sociedades que os possuíam.
Ironicamente, as redes nas quais foram integrados também serviam para aqueles que
tentavam alcançar a liberdade dentro dos parâmetros legais. Basicamente, havia três caminhos:
a manumissão onerosa, a condicional e a alforria sem condições, para as quais diferentes
estratégias podiam ser utilizadas pelos cativos e seus aliados, mas que dependiam da
sustentação fornecida por uma rede apoio. Além disso, é possível identificar o perfil daqueles
que mais frequentemente recorriam à justiça ou eram agraciados pela benevolência senhorial.
Portanto, passemos a analisar mais detidamente os caminhos possíveis para a liberdade sob a
tutela da lei e as possibilidades de negociação.
193
Read ressalta em vários momentos que uma grande propriedade de escravizados em Santos seria considerado
de médio porte em outras cidades e regiões como a capital imperial ou nos grandes latifúndios do Oeste Paulista,
Vale do Paraíba, sul de Minas Gerais e outras regiões.
96
194
Em uma amostra de 372 senhores de escravizados que manumitiam, até 1850, os homens eram 43% e as
mulheres, 54%. Passando desse ano, isso muda para 58% e 38%, respectivamente. Mantendo-se entre 1% e 3%
dos que alforriavam, temos também casais, sócios, empresas privadas e associações religiosas. Em relação ao
estado civil, eram solteiros em 36% dos casos, 28%, casados e 36%, viúvos, que, no segundo recorte, muda para
18%, 64% e 18%, respectivamente. eram solteiros em 36% dos casos, 28%, casados e 36%, viúvos, que, no
segundo recorte, muda para 18%, 64% e 18%, respectivamente. READ. Op. cit., pp. 257-277.
195
Até 1850, 33% eram portugueses, 67% eram brasileiros (santistas inclusos) e 48% eram naturais de Santos.
Após esse ano, essas proporções se alteram para 44%, 50%, 24% e, ainda, são listados 7% de outras nacionalidades
europeias. Idem.
97
196
Antes de meados do Oitocentos, 44% de comerciantes, 10 % de funcionários públicos, 18% de clérigos, 15%
de lavradores, 5% de soldados e 10% designados como “outra”. Ainda, há 25% de proprietários de terras do
interior. Depois de 1850, as proporções respectivas passam a ser 42%, 28%, 6%, 4%, 6%, 6% e 22%. Idem.
197
READ. Op. cit., pp. 275.
98
198
MATTOS. Op. cit., 2013, pp. 83-100.
199
“Quase 5% dos 331 indivíduos que aparecem nos registros do mercado de cativos e para quem temos dados
sobre ocupação profissional estava envolvido no lucrativo negócio de café ou de importação e exportações em
geral. Em contraste, menos de 2% dos 211 homens encontrados nos registros de manumissão estavam envolvidos
nessas ocupações. Médios e grandes mercadores compravam e vendiam 55 escravos, mas manumitiam apenas 5.
Esses homens de negócio, em média, eram de maior status e riqueza que os homens e mulheres que administravam
pequenas vendas ou que trabalhavam como vendilhões e ambulantes.”. READ. Op. cit., pp. 275
99
sem condições. Read alerta que cruzando informações com outras fontes cartoriais, os contratos
de locação, pôde encontrar alguns destes que foram firmados entre contratantes e libertos
mencionados em um pequeno número das manumissões supostamente incondicionais e
gratuitas.200
Uma boa forma de compreender o caráter conservador das alforrias e as condições com
as quais os cativos tinham que lidar para obtê-las são os Fundos de Emancipação. Aqui, porém,
temos uma mediação do Estado, o qual instituiu por lei esses fundos, inclusive publicando
instruções de como eles deviam ser distribuídos. Tratava-se de uma iniciativa institucional
organizada por campanhas abolicionistas locais e pelo governo, que recolhia doações para
serem revertidas na compra de alforria de escravizados. Os fundos de emancipação foram
regulamentados pela Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871 e pelo decreto 5.135 de novembro
de 1872, referente à mesma lei.201 Neste último, em seu capítulo II, é descrito de forma
pormenorizada como devem ser classificados os escravizados candidatos à alforria pelos
fundos. Determinava que a preferência fosse dada primeiro às famílias, do que aos indivíduos,
tendo sempre em vista quem tinha acumulado mais pecúlio. Ou seja, mesmo com o fundo, eram
os escravizados que pagariam a maior parte de sua alforria. Do mesmo modo, era considerado
se os cônjuges eram de senhores diferentes, se seus filhos eram ou não livres, ou se eram ou
não menores. O comportamento e a conduta moral, segundo o julgamento do senhor e a
ausência de passagem pela polícia, também eram fatores analisados pelas juntas que
administravam os fundos.202 O governo provincial de São Paulo e a municipalidade de Santos
parecem ter sido bastante atenciosos em relação a essas preferências. Em junho de 1886, o
presidente da província, Barão de Parnaíba, enviou um memorando a Santos acerca dos critérios
contidos no artigo 27. Em resposta, o presidente da Câmara Municipal santista atestava que a
junta apuradora local seguiria essas regras.203 O Diário de Santos também celebrava os
progressos curiosamente lentos do Fundo de Emancipação do governo da província paulista.204
200
READ. Op. cit., pp. 257-277.
201
Lei nº 2.040 de 28 de setembro de 1871. Disponível em http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/496715
Acesso em 12/11/2019. Decreto nº 5.235 de novembro de 1872. Disponível em
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-5135-13-novembro-1872-551577-
publicacaooriginal-68112-pe.html Acesso em 12/11/2019.
202
NETO. Op. cit., pp. 264-267 e 269-271. READ. Op. cit., pp. 315.
203
READ. Op. cit., pp. 317.
204
Em 1881, foi publicado um artigo saudando as conquistas dessa iniciativa. Celebrava-se que, desde quando o
fundo começou a ser aplicado, em 1875, foram libertados por seus recursos 423 cativos em 85 municípios paulistas.
A quantia despendida para tanto somava 373.381$154 (Trezentos e setenta e três contos, trezentos e oitenta e um
mil, cento e cinquenta e quatro réis) , restando empregar 597.834$475 (Quinhentos e noventa e sete contos,
oitocentos e trinta e quatro mil, quatrocentos e setenta e cinco réis). O número total de escravizados na Província
de São Paulo em 1872 era cerca de 156.612 cativos. Portanto, em seis anos da existência desse fundo, apenas
100
Read localizou uma curta lista referente aos anos de 1883 e 1886, na qual se registrava
que quatro casais e um cativo solteiro ganharam a liberdade em Santos através do Fundo de
Emancipação. Segundo o autor, um número desproporcional de escravizados casados vivia nos
Quatro Cantos ou nos dois outros bairros mais ricos da cidade, onde proprietários mais
abastados tinham mais recursos que a média. Os custos para bancar um casamento oficial na
Igreja era alto para a maioria dos cativos. Inclusive, Read apurou que a maioria dos que
conseguiam fazê-lo pertenciam a senhores com maior número de escravizados e com melhores
condições econômicas. Aqueles que pertenciam aos mais pobres, estavam mais vulneráveis à
separação por venda ou migração, uma vez que seus próprios donos tinham poucos recursos
para manter sua estabilidade num mesmo lugar por muito tempo. De qualquer forma, confirma-
se que os ex-senhores dos poucos libertos pelos fundos de emancipação eram frequentemente
os residentes mais ricos e poderosos. Três de seis proprietários que receberam dinheiro desses
fundos eram comissários de café, enquanto outros dois eram oficiais militares. Entre eles, estava
o Capitão Gregorio Innocencio de Freitas, um dos maiores traficantes de cativos de Santos
durante os anos 1860.205
Há uma relação entre as regras de funcionamento desse dispositivo e sua atuação
modesta e conivente com as expectativas senhoriais. Manipulado pelos senhores, o Fundo de
Emancipação tinha um raio de ação restrito, com resultados mais significativos nos principais
centros urbanos do país. Optando por aqueles que tivessem família, fossem morigerados e
pudessem pagar pela alforria, essa via à liberdade reafirmava a gradualidade na solução da
questão servil. Ressalta-se sobretudo a ambivalência dessa legislação, pois, de um lado, abriu
brechas e oportunidades para que os cativos mobilizassem mecanismos jurídicos e redes sociais
em favor próprio, enquanto que, por outro, serviu também a senhores e magistrados
situacionistas que recorriam à essa mesma legislação para garantir uma transição gradual e sob
controle senhorial para a liberdade. É sintomático do quanto a Lei do Ventre Livre e o Decreto
de 1872 passaram a servir aos interesses gradualistas dos escravistas quando, ao longo dos anos
1880, os mesmos passaram a defendê-los contra os projetos de abolição imediata.206
0,27% dos escravizados da província foram alforriados pelos recursos disponibilizados por ele, considerando os
dados expostos pelo jornal. Diário de Santos, 05 de janeiro de 1881.
205
READ. Op. cit., pp. 317.
206
NETO. Op. cit., pp. 263-266. José Pereira de Santana Neto, Sociedade, indenização e liberdade precária: os
meandros burocráticos do fundo de emancipação de escravos (São Francisco do Conde-BA). Campinas: Tese de
Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, 2018, enfatiza o caráter conservador dos fundos de emancipação
para destacar a precariedade da liberdade deste e outros projetos de emancipação e abolição promovidos pela classe
senhorial. Ver também PEREIRA, Op. cit., 2011, pp. 72.
101
Se nas libertações via fundo de emancipação as famílias tinham mais destaque, nas
cartas de alforrias podemos observar as preferências mais cotidianas por um leque mais amplo
de perfis, que não passava pelo crivo da instituição e que também tinha uma esfera de ação
maior para o cativo, principalmente a partir da Lei do Ventre Livre. Após sua promulgação,
bastava haver um pecúlio para dar início ao processo, mesmo que houvesse a possibilidade de
a liberdade não ser conquistada. Mais uma vez, os dados de Read contribuem para aprofundar
nossa compreensão dos perfis cativos mais comumente manumitidos e o tipo de liberdade que
cada um tinha mais chances de conseguir.
Em relação ao gênero, a proporção entre homens e mulheres beneficiados com a alforria
era equilibrada, apesar das últimas serem ligeiramente mais frequentes. Entre 1800 e 1877, 47%
das manumissões tiveram como beneficiário homens, enquanto 54% foram mulheres. A idade
média de um cativo alforriado era de 22 anos para o mesmo período, entretanto, as crianças
eram um contingente substancial: 38%. Sobre a naturalidade, apenas 28% mencionam onde os
libertos nasceram. Destes 46% eram africanos, 55% brasileiros e apenas 5% eram santistas. A
menção à cor/raça também não está presente em todas as manumissões, constando apenas em
24% delas. Nesse espectro, 34% eram pretos, 42% pardos e 21% mulatos.207
No que diz respeito ao gênero e à idade não há variações significativas entre a primeira
e a segunda metades do XIX. No entanto, as demais categorias que nem sempre são citadas
apresentam oscilações interessantes. Entre 1800 e 1850, 21% das alforrias mencionavam a
naturalidade do liberto. Nestas, eram 49% africanos, 51% brasileiros e 6% santistas. Um quadro
compatível com as informações que já vimos sobre o comércio de escravizados na região.
Apesar de os santistas não recorrerem tanto ao tráfico internacional, a pujança deste no período
influenciava indiretamente a presença de africanos mesmo naquela cidade.208
Por sua vez, no período seguinte, de 1851 a 1877, podemos observar a influência do
tráfico interprovincial que se intensificou após a abolição do comércio transatlântico de cativos.
Agora, são 41% das alforrias que mencionam a naturalidade, sendo 43% africanos, 58%
brasileiros e 4% santistas. Após a Lei Eusébio de Queiróz muitos africanos ou seus aliados
recorriam a ela para alegar que o cativo havia sido comprado ilegalmente, assim não é de se
estranhar que esse contingente continuasse substancial na amostra, apesar de cair um pouco.
Porém, vemos as consequências da expansão do tráfico interprovincial não só no aumento de
brasileiros alforriados, mas também na queda dos santistas. O fluxo interprovincial era tão
207
READ. Op. cit., pp. 254-277.
208
Idem.
102
intenso que contribuía para diversificar a população nacional na cidade, mesmo entre cativos e
libertos.
Quanto à cor/raça, na primeira parte dos oitocentos, apenas 14% das alforrias trazem tal
informação. Delas, pretos e pardos estavam igualados, com 28% de representatividade cada,
enquanto os mulatos correspondiam a 45%. No segundo recorte, as menções à cor/raça sobem
para 41%.209 Anteriormente mencionamos como a abolição do tráfico internacional
obstaculizou a classificação sociorracial mais própria ao período colonial, uma vez que se
tornou mais difícil identificar a linhagem dos cativos e libertos, o que também pode explicar
essa diferença nas alforrias. Não era mais tão prático designar os mestiços como mulatos, pois
não se sabia se eram ou não filhos naturais. Em contrapartida, o termo pardo ganha mais espaço
conforme essa mudança favoreceu o apelo a cor como critério de classificação, tendência que
já vinha ganhando espaço entre os intelectuais europeus e brasileiros na hierarquização das
“raças humanas”. No crepúsculo dos Oitocentos, o termo pardo também passou a remeter
preferencialmente a ancestralidade negra e ao passado escravista quando usado para designar
pessoas livres, enquanto indicava ascendência branca para classificar cativos.210
Assim, entre 1851 e 1877, 39% eram pretos, 51% eram pardos e 5% eram mulatos. Mais
do que nos informar que mestiços e cativos mais claros tinham mais chances de conseguir uma
alforria, devemos considerar que essas variações podem estar ligadas à própria noção do que
era ser preto, pardo ou mulato em transformação com as circunstâncias históricas.
Aprofundaremos essa discussão no capítulo 5, após termos apresentado outras informações
relevantes para análise. Por ora, sigamos nos perfis desses libertos.
As características dos felizardos que conseguiam se manumitir também podia ou não
variar de acordo com o tipo de alforria concedida. As proporções entre os gêneros pareciam ser
equilibradas em todas as formas de manumissão.211 Em relação à idade e ao local de
nascimentos, há quantias substanciais de cartas que não trazem tais informações (menos da
metade). Entretanto, considerando os diferentes perfis e as variações entre os tipos de alforria,
é razoável considerar diferenças entre os gêneros, idades, naturalidades e cores em termos de
distintas oportunidades e metas econômicas. 212 Não à toa, os homens e aqueles em idade para
209
Idem.
210
Ver notas 178 e 179. Sobre a difusão de teorias raciais entre os intelectuais brasileiros cf. SCHWARC. Op. cit.
211
De 126 manumissões onerosas (pagas) 66 eram de homens, 60 de mulheres. Por outro lado, de 78 alforrias
condicionais, 40 eram de libertas e 38 de libertos. Há também 25 cartas que são simultaneamente onerosas e
condicionais, entre as quais temos 13 homens e 12 mulheres. Entre as alforrias sem condições (pelo menos
mencionadas) as proporções são equilibradas. De 65, 32 são do gênero masculino e 33 do feminino. READ. Op.
cit., pp. 254-277.
212
Entre as manumissões sem condições há 13 crianças, 16 em idade de trabalho, 7 idosos, 18 brasileiros e 11
africanos. No caso das onerosas, são 20 infantes, 35 adultos, 10 anciãos, 35 brasileiros e 38 africanos. Por sua vez,
103
trabalhar eram maioria nas manumissões onerosas. Os segundos também se destacam nas
alforrias condicionais. Esses eram os escravizados mais caros no mercado, portanto faz sentido
seus proprietários imporem mais obstáculos financeiros e contratuais para aceitar a libertação.
Contudo, o que se destaca é que para qualquer cativo tornar-se livre por vias legais, ele ou ela
precisaria atender uma entre três condições: ser capaz de acumular alguma quantia em dinheiro
para cobrir seu preço estimado (pecúlio); encontrar outra pessoa que pudesse financiar a compra
da alforria; ou negociar com seu proprietário a possibilidade de fornecer trabalho em troca da
liberdade. Assim, que conquistavam uma alforria com condição de prestação de serviços, o
próximo passo era desfazer este último vínculo, o que instigava tensões naqueles que
intentavam explorá-los mais um pouco sob pretextos humanitários.213
Em 1882, a preta liberta Marcellina interpôs uma ação de remissão de serviços contra
João do Sacramento Macuco, irmão caçula de José André S. Macuco, também um homem
pardo. Ele teria emprestado a ela 950 mil réis para a compra de sua manumissão214. No entanto,
após seis meses trabalhando para seu credor, prontificou-se a entrar com o valor da dívida em
dinheiro para quitá-la. O credor não aceitou, pois “apega-se [...] a um contracto de serviços cuja
integra a supplicante ignora, pois não lê nem escreve, e menos comprehende o que se pretende”.
Os autos foram interrompidos com a apresentação da certidão de depósito do valor do débito,
efetuada por Ângelo Garcia de Souza Ramos, autor da petição e patrono da suplicante.215
Nem sempre o liberto conseguia levar a melhor. Clemente e Domingos são listados
como escravizados na lista nominal de 1817, apesar de terem sido condicionalmente
manumitidos quatro e oito anos antes, respectivamente. Esse foi o caso de Urçula também, que
aparece na mesma lista nominal como uma jovem cativa de Antonio Joaquim de Figueredo,
que a alforriou três décadas depois. Contudo, aparece na documentação sendo vendida pouco
tempo após esse fato.216
Esses acordos e desacordos sobre a possibilidade de manumissão são parte de uma
política doméstica, permeada pela convivência cotidiana e barganha das condições de vida e
trabalho. Nesses casos, o indivíduo tinha que estar bem ancorado em uma ampla rede de
alianças com outros agentes sociais, como outros cativos, libertos e negros livres, advogados,
às vezes até outro senhor que ofertava condições de trabalho mais interessantes. Muitas vezes,
podemos observar a convergência entre o costumeiro acoitamento de cativos e a ação de
abolicionistas. Permeado por um ideário paternalista, esse “abolicionismo de lucro” consistiu
em estimular a ida de negros fugitivos para Santos, com a justificativa de que não haveria outra
opção para o controle social dessa mão de obra, senão encetar uma nova exploração. Suas
verdadeiras intenções eram desveladas no momento que começaram a reagir de forma
transgressora contra escravocratas recalcitrantes, as quais: “ter acesso direta ou indiretamente
ao sobretrabalho de ex-escravos; enriquecendo via especulação e exploração de sua mão de
obra”.217
Podemos capturar do que realmente se tratava esse “sentimento humanitário” quando
desses abolicionistas de lucro, digamos, “provou do próprio veneno”. Falamos de quando
Joaquim Xavier Pinheiro, que, no capítulo 1, vimos organizar uma comissão para cobrar do
delegado a soltura de quatro cativos presos na cadeia municipal, ficou enfurecido ao ter seu
domínio senhorial ameaçado por outrem. Em 1883, o major encetou uma ação contra o
português Manoel Alvez Ferreira, por ter acoitado um de seus cativos.
De acordo com o autor do processo, o escravizado Matheus teria se ausentado de sua
casa inesperadamente. O proprietário se mostrava desgostoso e surpreso com a descoberta, pois
não havia “de sua parte occasionado motivo para aquelle errado passo”. Mais tarde, ficou
sabendo que seu cativo estava refugiado no sítio de Ferreira, que o empregava em serviços na
sua lavoura desde janeiro, ciente de que Matheus pertencia a Pinheiro. Este tentou enquadrar o
réu no artigo 260 do Código Criminal, referente à prática de furto. A defesa, por sua vez, tentou
argumentar que Matheus era africano e havia sido importado após a lei anti-tráfico de 1831, o
que tornava seu cativeiro ilegítimo. Apesar de o advogado do réu ter conseguido anexar
216
READ. Op. cit., pp. 267.
217
Apud. ROSEMBERG. Op. cit., 2006, pp. 206-207.
105
218
Juízo Municipal do Termo de Santos - Autos crimes, em que são Joaquim Xavier Pinheiro, autor, o súbdito
portuguez Manoel Alvez, réu, em 04 de maio de 1883. Arquivo Geral do Fórum da Comarca de Santos (AGFCS).
Maço 150. Apud. ROSEMBERG. Op. cit., 2006, pp. 197-205.
219
Processo crime da delegacia de Polícia de Santos em 13 de dezembro de 1881. 1881, Arquivo Geral do Fórum
da Comarca de Santos (AGFCS), caixa 144. Apud. LANNA. Op. cit. Pp. 219. Sidney, Chalhoub, Op. cit., 2012,
capítulo 1, identificou diferentes casos em que mães, irmãs, tias, etc. recorriam à justiça, mediante a apresentação
de pecúlio, na tentativa de resgatar parentes do cativeiro. Por sua vez, Yuko Miko, Op. cit., pp. 522, destaca que o
apego das mulheres a seus filhos e familiares foi uma das principais motivação para fugir e buscar melhores
condições de vida e trabalho para si e para os seus.
106
comunitários entre grupos familiares, permitindo coesão grupal capaz de pressionar senhores e
até mesmo outros cativos pouco integrados ao grupo.220
Ainda, Maria Joana nos permite observar outras possibilidades de articulação entre
libertos e escravizados na empreitada pela liberdade. Em dezembro de 1881, o preto Antonio,
um liberto, e um cativo acoitado foram presos em seu sítio, no Saboó, muito próximo do
Jabaquara diga-se de passagem. O primeiro havia recorrido à mulher para que ela lhe desse
refúgio e trabalho, além de ajudá-lo com sua alforria. Rejeitado pela liberta, o cativo se dirigiu
à polícia na esperança de se manter protegido de seu senhor.
Recorrer aos homens da lei era um recurso cada vez mais utilizado, não só pelos
escravizados, mas por boa parte da “arraia-miúda”. A justiça era vista como uma instância
legítima para a salvaguarda de seus interesses, mesmo que a resolução efetiva das contendas
pelos agentes judiciários e policiais não atendesse às suas expectativas iniciais.221 Entre os
cativos, a historiografia demonstrou que esse foi um recurso cada vez mais utilizado por eles
para se livrarem dos arbítrios senhoriais ao longo do século XIX. Os cativos estavam atentos à
circulação de boatos e notícias sobre insurreições de escravizados em diversas regiões, sobre
os movimentos abolicionistas nas cidades e o possível fim da escravidão num horizonte não
mais tão distante. Nos centros urbanos e seus arredores essa atenção era dobrada, uma vez que
eram desses lugares que se publicavam jornais que defendiam a campanha e onde a atuação da
justiça era mais presente. Nos anos 1870 e 1880, momento em que advogados, juízes e
curadores abolicionistas se mostravam cada vez mais atuantes, não só defendendo ações de
liberdade como divulgando seus pontos de vista na imprensa, aqueles que procuravam libertar-
se do jugo senhorial acenavam em direção à tutela da Justiça e da Polícia, na esperança de que
os homens da lei se valessem da impessoalidade inerente ao cargo e os protegesse dos abusos
de seus proprietários. Mesmo quando o cativo cometia crimes mais graves, como assassinato
de senhores e feitores, entregar-se à polícia confessando o crime parecia uma alternativa mais
palpável do que se curvar aos arbítrios da casa grande.222
O limite entre o castigo legítimo e o abuso senhorial era tênue, mas palpável para a
sociedade da época pautada pelo costume e os (des)acordos historicamente feitos entre senhores
e escravizados, que estabeleciam obrigações mútuas entre os dois lados. Os primeiros, deveriam
sempre prover aos segundos alimentação, cuidados de saúde, panos para se vestir, catequização
220
MATTOS, Hebe. Op. cit., 2013, pp. 49-100 e 131-156. Para uma crítica à Mattos ver, SLENES. Op. cit., 2011,
pp. 61-62 e, especialmente, capítulo 2.
221
ROSEMBERG. Op. cit., 2006, pp. 141.
222
Idem, 2006, pp. 212.
107
e disciplina. Os últimos deviam retribuir de volta com a propriedade de seus corpos e sua força
de trabalho, esperando-se sempre um comportamento subserviente e a expressão da devida
gratidão.223
Enquanto isso, Maria Joana novamente recorreu a um solicitador, Manuel Francisco
d’Azevedo Porto, para requisitar seus serviços para conseguir a alforria de Antônio, oferecendo-
lhe a quantia de 200 mil réis. Então, o solicitador com o auxílio do carcereiro da cadeia,
persuadiram o senhor de Antonio, que de alguma forma aceitou alforriá-lo sem condição
alguma, sob o valor de 100 mil réis. A partir daí, o liberto foi levado para casa de Porto, onde
foi submetido a alguns trabalhos, enquanto a documentação necessária para a conclusão do
processo era ajeitada.
Finalmente, Antonio foi chamado para receber um papel na casa de J. J. Teixeira, que
lhe disse que aquilo representava sua liberdade sem condições. Em seguida, o dono da casa o
instruiu a “ir agradecer tão grande benefício levando também a carta para ser completamente
registrada”, de modo que enfim Antônio estaria “completamente livre, sem condição alguma
para qualquer pessoa”.224 Após falar com Porto, o recém-liberto foi encaminhado para outras
duas casas, antes de retornar novamente para a de seu curador inicial. Em todas elas ele parece
ter recebido o que comer em troca de “limpar o quintal e outros trabalhos”225. Duas semanas
depois, foi lhe dada a opção de escolher trabalhar para o solicitador ou para Maria Joana, optando
por esta última, “visto que não se dá bem na cidade (...)”.226 Antônio permaneceu com a liberta
até o momento em que foi preso com um cativo fugitivo nas propriedades daquela mulher. O
resultado do processo que se instaurou em decorrência da prisão foi a garantia ao direito de
alforria sem condição alguma adquirido por Antônio. Maria Joana não recebeu indenização.
É oportuno destacar que não são raros os escravizados expressarem preferência por
senhores que compartilhassem minimamente da mesma origem étnica e racial que eles ou, pelo
menos, dos mesmos costumes e hábitos culturais.227 Apesar de isto não ser mencionado, não se
pode descartar a hipótese de que na escolha de Antônio em ficar com Maria Joana e não com
outrem poderia haver mais do que a razão de “se dar melhor no campo que na cidade”, alegado
pelo liberto. Afinal, Maria Joana foi a primeira pessoa a quem recorreu, sendo que não faltavam
223
CHALHOUB. Op. cit., 2012, Capítulo 2.
224
Idem, pp. 221.
225
Idem.
226
Idem.
227
OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. “Viver e morrer no meio dos seus. Nações e comunidades africanas na Bahia
do século XIX”. Revista USP, São Paulo (28), dez./fev. 1995/1996, pp. 187-189.
108
outras opções de acoitadores de cativos em fuga na cidade.228 Ambos foram classificados como
“pretos”, termo que mais carrega o estigma da escravidão e a referência a origem africana. Além
do mais, a proximidade com o Jabaquara pode ter pesado na sua escolha, uma vez que era
possível ter laços com outros aquilombados e sitiantes naquelas redondezas. Só depois de
receber a negativa da liberdade, é que o escravizado decidiu recorrer à justiça alegando maus-
tratos excessivos de seu senhor.
Não só conquistar a liberdade exigia um imenso esforço de mobilização de
solidariedades, mas também garantir seu exercício de forma digna demandava que o indivíduo
gozasse de certo reconhecimento dos demais cidadãos livres. Para consegui-lo era necessário
empreender também a política da troca de favores, ou melhor, troca de obrigações recíprocas.
Na verdade, essas redes eram essenciais tanto para a lutar contra escravidão e a conquista da
liberdade como para qualquer outra atividade do cotidiano santista. Já vimos acima que até
mesmo o tráfico de cativos praticado em Santos era enraizado nas relações pessoais
estabelecidas entre familiares, vizinhos, colegas de trabalho, confrades e membros dos mesmos
clubes.
Um último caso se mostra oportuno para reforçar a capacidade articulatória dos cativos
e suscitar questões acerca da racialização em curso. Em julho de 1884, o delegado Guilherme
Liborio Freire tomou conhecimento de um refinado esquema de estelionato organizado por
Fernando Magalhães de Arruda, escravo da herança de Maria Ignacia de Arruda, 24 anos,
solteiro, natural de Tietê, cozinheiro, residente em Santos e alfabetizado. Em 24 de julho, o
delegado foi informado por José Manuel de Arruda, brasileiro, sócio da firma Arruda & Viegas,
que Henrique Pedro de Oliveira, Emilio de Sá e J. B. de Brito Filho foram lhe cobrar por uma
quantia de saco de aniagem que supostamente haviam lhe vendido. Ao alegar que não foi feito
nenhum pedido de saco, tampouco havia recebido algum, foi-lhe mostrado dois memorandos
com a assinatura do caixeiro que trabalhava em sua firma, João Francisco do Sacramento
Macuco, o mesmo que emprestara dinheiro a Marcellina em 1882.229
Freire primeiro suspeitou do caixeiro e logo o interrogou. Porém, Macuco disse que
aquela não era sua assinatura e que “supõe que forão subtrahidos pelo varredor do escriptorio
um preto de nome Fernando, aproveitando-se da ausência do empregado os tirou do lugar em
228
Ver, por exemplo, Juízo Municipal do Termo de Santos – Autos crimes, em que são Joaquim Xavier Pinheiro,
autor, e o súbdito portuguez Manoel Alvez, réu, em 04 de maio de 1883. AGFCS. Maço 150. Apud.
ROSEMBERG. Op. cit., 2006, pp. 197-207.
229
Delegacia de Polícia da cidade de Santos – Autos de inquérito e exame de corpo de delitcto em quatro
memoranduns, em que é José Manoel de Arruda, sócio representante da firma desta praça Arruda & Viegas,
suplicante, em 24 de julho de 1884. AGFCS. Maço 153. Apud. ROSEMBERG. Op. cit., 2006, pp. 159-168.
109
que estavão guardados”.230 O delegado mantinha as suspeitas e duvidava que o cativo tivesse
capacidade para tramar tamanho esquema sozinho. Contudo, conforme a investigação
prosseguiu, o próprio Fernando confessou seus atos e sua autonomia no planejamento e
execução dos mesmos.
O esquema de falsificação de assinaturas e desvio de sacos de aniagem tinha o objetivo
de revendê-los a preços mais acessíveis para diferentes estabelecimentos comerciais que
necessitavam deles. Assim, Fernando pretendia “obter dinheiro para sua liberdade”.231 O cativo
que, ora convencia, ora era requisitado por comerciantes residentes na cidade para conseguir os
referidos sacos e para ocultar seus traços, pediu a dois jovens caixeiros que falsificassem a
assinatura do funcionário de Arruda. Além disso, ele contratava o serviço de carroceiros
portugueses para transportar a mercadoria entre os estabelecimentos. Vale dizer que estes
estavam localizados em diferentes pontos do município, como nos arredores da Matriz, nos
Quartéis, na rua General Câmara – a poucos metros de distância – e no outro lado da cidade,
nas ruas de Santo Antonio e da Penha, no Valongo.
Segundo Rosemberg, esse caso demonstra o grau de autonomia que os escravizados
podiam obter em ambientes urbanos como Santos. Apesar de se designar cozinheiro, ele
alugava seus serviços como faxineiro, além de costurar sacos por demanda. No entanto,
mostrava saber manejar a cadeia de atividades comerciais, de modo a atingir uma situação
vantajosa para sua condição de escravizado. Suas habilidades pessoais lhe permitiam manter
uma ativa comunicação com seus eventuais comparsas, de maneira que podia fazer demandas
que o deslocavam da condição de cativo.232 Todavia, alguns detalhes que complexificam a
situação fugiram ao historiador, entre eles, de que Freire e Macuco eram homens pardos.
Nesse sentido, é curioso que o segundo chame Fernando de “preto”, enquanto ele
mesmo não informou ou não foi inquirido pela sua cor quando deu seu depoimento. Chama
atenção também que o delegado suspeite tanto de Macuco quanto duvide da capacidade do
cativo em articular tamanha tramoia. Isso sugere que provavelmente a situação do acoitamento
de escravos, assim como outras formas escusas de auxiliá-los a conseguir meios para se tornar
livres estava em um ponto suficientemente tenso para essa autoridade insistir em questionar
sobre outros possíveis envolvidos. De fato, independente do protagonismo de Fernando, Freire
confirmou que ele contava com uma rede de cúmplices de diferentes camadas sociais. Por outro
230
Idem, pp. 160.
231
Idem, pp. 161.
232
Idem, pp. 163-164.
110
lado, nota-se que esses três homens de cor não tinham as mesmas expectativas em relação a
como viam e eram vistos uns pelos outros.
Isso fica mais interessante quando, no final do inquérito, o delegado convoca os dois
caixeiros que falsificaram as assinaturas para Fernando. Benedicto Tiburcio José de Souza, de
vinte anos, solteiro, brasileiro, confirmou que “o pardo Fernando de Arruda” lhe pediu para
assinar os memorandos e que ele o fez “na boa fé, [...], mas que elle depoente não teve
ingerência alguma nesse negocio, tanto nem Fernando pagou-lhe coisa alguma pelo trabalho
[...] disse mais [...] que apenas conhecia de vista a Fernando, ignorando se elle é livre ou
captivo”.233 O outro caixeiro, mais jovem, Manoel Lopes Guilherme, quinze anos, solteiro,
português, informou que atendeu ao pedido do cativo por não saber se ele era livre ou não. Mais
que isso, o rapaz pleiteou “ignorância, supondo que o tal pardo chamava-se João Macuco, e que
nenhum [ilegível] em escrever o bilhete que elle pedio”.234 Fernando confirmou que eles não
tiveram nenhum ganho.
Com isso, vemos o quanto os diferentes agentes históricos divergiam nas suas
interpretações e expectativas envolvendo a cor e a raça das pessoas com quem cruzavam. É
verdade que as testemunhas que tentavam emplacar que Fernando era pardo podiam estar
tentando “forçar a barra” para parecer que ele realmente podia se passar por uma pessoa livre.
Dessa forma, o termo “pardo” mais uma vez se aproxima da condição de livre ou liberto. Por
sua vez, ficamos tentados a concluir que Macuco queria mesmo insinuar a distinção social entre
ele e Fernando, uma vez que parece ter sido a única pessoa interrogada que o classificou como
“preto”. A coisa se torna mais complexa com o jovem Manoel alegando que acreditou que o
cativo fosse o referido caixeiro. Será que o rapaz não conhecia Macuco ou de fato a tonalidade
da cor dos dois podia ser parecida o suficiente para confundir os limites entre escravidão e
liberdade, sendo necessário outros distintivos?
Antes de esboçar qualquer resposta para essa questão, olhemos para uma última forma
de alcançar a liberdade, que também implicava no crescimento do fluxo de negros e pardos para
Santos: as fugas e os quilombos.
233
Idem, pp. 165-166.
234
Idem.
111
Não podemos esquecer de mencionar aqueles que eram fugitivos do cativeiro, que
também miravam Santos como destino. A fuga, assim como as revoltas escravas e os quilombos
são inerentes à escravidão.235 Clóvis Moura notou que várias notícias de ordens de prisão contra
“pretos criminosos”, para prender cativos evadidos de propriedades rurais da Coroa e de
remessas de escravizados apadrinhados ou encaminhados aos donos, na capitânia paulista, no
século XVIII. Os locais mais recorrentes eram Mogi-Guaçu, Atibaia, Santos e Itu. Às vezes as
fugas eram isoladas, às vezes em grupo.236
O autor relata que em 1784 foi expedida uma carta com uma relação dos cativos que se
refugiavam em Santos. No mesmo ano, outro escravizado fugira de Cubatão para aquela cidade,
evadindo-se da Fazenda Santana, propriedade da Coroa. No entanto, também era comum que
cativos de Santos fugissem para outras localidades. Em 1785, um grupo escapou e seguiu para
Paranaguá, no litoral paranaense, até então território sob jurisdição da capitânia de São Paulo à
época. Contudo, até o século XIX, na região paulista, a fuga seria mais praticada por pequenos
grupos ou indivíduos isolados, sem grandes articulações, o que, para Moura, reflete a baixa
concentração de escravizados até a breve expansão da economia açucareira, logo substituída
pela cafeicultura, que se tornou a principal atividade econômica da província durante os
Oitocentos.237
Outro caminho possível para a liberdade, ao lado das manumissões onerosas,
condicionais e das alforrias sem condições, a fuga envolvia um grande risco para qualquer
cativo, pois significava quase sempre abandonar familiares, amigos, padrinhos, enfim, uma rede
de apoio construída ao longo dos anos com base na convivência e no costume. Ainda que
seguindo o mesmo raciocínio dos migrantes livres que Mattos ressaltou, esses fugitivos
contavam com o risco de serem pegos, castigados e devolvidos ao antigo senhor, onde mais
castigos e trabalho forçado os aguardavam. Por isso, os que mais tomavam esse risco eram
homens com habilidades que pudessem lhes garantir algum emprego ou renda ao longo do
caminho e no novo local de residência. Coincidentemente, esse grupo de cativos eram os mais
caros e os menos prováveis de receber alforrias sob quaisquer condições.238
A maioria deles eram carpinteiros, tanoeiros, oleiros, mas muitos também eram
lavradores e pastores. Alguns trabalhavam em profissões que permitiam viajar e gozar de
235
MOURA, Clóvis. Rebeliões na Senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. 4ª ed. Porto Alegre-RS: Mercado
Aberto, 1988, pp. 103.
236
Idem, pp. 226.
237
Idem, pp. 231-232.
238
Yuko Miki, Op. cit., pp. 522, questiona a historiografia que afirma que as mulheres estavam menos propensas
à fugas permanentes devido ao apego a seus filhos e família. Para autora, era justamente esse apego que as
motivava a fugir e buscar melhores condições de vida e trabalho para si e para os seus.
112
239
READ. Op. cit., pp. 279.
240
Idem. O autor ainda ressalta que muito mais anúncios descreviam a forma da face ou o tamanho do corpo do
que a cor da pele.
241
AZEVEDO, C. M. M.. Op. cit., pp. 155.
242
GOMES, Flávio dos Santos.A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil,
(Séculos XII-XIX). São Paulo: Ed. UNESP: Ed Polis, 2005, pp. 350.
243
GITAHY. Op. cit., pp. 127.
113
conhecidos mais detalhes sobre a trajetória desta comunidade ou sequer sua origem.244 O autor
também relata haver desde 1850, aproximadamente, a existência de um quilombo auto
organizado por escravizados fugidos, nas redondezas do bairro da Vila Matias, em Santos,
liderado por Pai Felipe, suposto sobrevivente do antigo quilombo do Jurubatuba.245
A tradição rebelde246 da região na baixada santista ganhou mais força na segunda metade
do século XIX. Segundo Maria Lucia C. Gitahy, após a Guerra do Paraguai o movimento
abolicionista teria se intensificado, no mesmo período em que Célia Maria Marinho de Azevedo
ressalta a ocorrência de insurreições individuais ou de pequenos grupos contra seus senhores
nas fazendas da província.247 As insurreições coletivas de cativos em fazendas do interior da
província começaram a ser frequentes nessa mesma década, e contavam muitas vezes com apoio
popular248. Alguns destes levantes eram sucedidos por fugas coletivas que iam aumentando seu
número de adeptos ao longo da estrada, à medida que passavam por outras fazendas. A intenção
de muitos era a negociação das condições de trabalho assalariado com ex-senhores ou outros
fazendeiros dispostos a fazê-lo. Enquanto não conseguiam, muitos grupos se tornavam
“quilombos volantes”, refúgios que migravam pela região para fugir das expedições policiais
até conseguirem um bom acordo.249 Em abril de 1888, o vice-presidente da província era
avisado de que em “vários municípios, ao mesmo tempo, os escravos abandonaram em massa
as fazendas, procurando, a princípio, abrigo no município de Santos, colocando-se depois nas
localidades vizinhas, e não raro, à vista dos seus próprios senhores”.250
244
Martins dos Santos menciona um Quilombo que se formara desde os anos 1780/1790 entre as serras do
Cabaiaquara, Jurubatuba e Jaguareguava. Este quilombo foi destruído por Bento José Branco e seus voluntários
de São Bernardo, “a soldo e contrato, sendo o lucro apurado com a captura dos que não morreram (os mortos foram
centenas), dividido entre o governo da Província e a Câmara Municipal de Santos, como se verifica pelas sessões
desta última, em 1837, 1838 e 1839. Além disso, Martins do Santos afirma que Pai Felipe seria um dos últimos
sobreviventes deste refúgio, por isso considerado um príncipe africano e líder do Quilombo de Vila Mathias, anos
mais tarde. SANTOS. Op. cit., v. 2, pp. 236-237, notas 13 e 38.
245
SANTOS, Francisco Martins dos. Lendas e Tradições de uma velha cidade do Brasil. São Paulo: Empresa
Gráfica da Revista dos Tribunais, 1940, pp. 110-113 Apud. FONTES. Op. cit., pp. 72; MACHADO. Op. cit., 2010,
pp. 141; SANTOS. Op. cit., 1936, vol. 2, pp. 222
246
O termo é usado por Flávio dos Santos Gomes para caracterizar o acúmulo de experiências relacionados à fugas
e formações de mocambos. GOMES. “Uma tradição rebelde: notas sobre os quilombos na capitania do Rio de
Janeiro(1625-1818)”. Afro-Ásia, nº 17, 1996, pp. 07-28.
247
AZEVEDO, C. M. M. de. Op. cit., pp 155-171. GITAHY. Op. cit., pp. 33.
248
AZEVEDO, C. M. M. de. Op. cit., pp. 171-173.
249
GOMES & MACHADO, “Atravessando a liberdade: deslocamentos, migrações e comunidades volantes na
década da abolição (Rio de Janeiro e São Paulo)”. In: GOMES, Flávio dos Santos e DOMINGOS, Petrônio (orgs.)
Políticas da Raça: experiências e legados da abolição e do pós-emancipação no Brasil.São Paulo: Selo Negro,
2014, mencionam as insurreições de Salto e Itu cujos os revoltosos pretendiam chegar à Santos.
250
Relatório com que o Exm. Snr. Dr. Francisco de Paula Rodrigues Alves Passou a Administração da Província
de S. Paulo ao Exm. Snr. Dr. Francisco Antônio Dutra Rodrigues, 1º Vice-Presidente, do dia 27 de Abril de 1888,
pp. 23-24. Apud. AZEVEDO, C. M. M. de. Op. cit., pp. 178-179.
114
Como vimos no capítulo anterior, no ano de 1882 foi criado o Quilombo do Jabaquara,
supostamente por iniciativa de abolicionistas das elites santistas, que inclusive teriam nomeado
o líder do abrigo, Quintino de Lacerda. É difícil precisar a quantidade de habitantes no reduto,
pois as estimativas são díspares, variando de 500 a 10 mil fugitivos251. O morro do Jabaquara
estava localizado entre o morro de São Bento e Saboó, Monte Serrat, Vila Matias e o mar.252
Para chegar ao quilombo, era necessário pegar a linha de bonde suburbana, cuja estação final
se localizava na Vila Matias, próximo ao refúgio de Pai Felipe e seus seguidores. A partir daí,
era necessário continuar o caminho a pé por uma “estrada estreita e tortuosa que se iniciava
atrás da Santa Casa de Misericórdia, passando pela chácara de Benjamin Fontana e à esquerda
do Monte Serrat”.253 Esses refúgios evidenciam o trânsito convergente dessas pessoas para a
cidade portuária.
FIGURA 5
251
Idem, pp. 173-174; FONTES. Op. cit., pp. 72-74; MOURA. Op. cit., pp. 243-249. QUINTÃO. Op. cit, pp. 80.
MACHADO e GOMES, “Atravessando a liberdade”, e MACHADO (2007) falam que o mais provável era a
quantia de cerca de 2 mil pessoas.
252
MACHADO. Op. cit., 2007, pp. 243.
253
PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 101-102. GITAHY. Op. cit., pp. 33-34.
115
resistência.254 No caso santista, o mais estranho é que esse paraíso negro foi concebido graças
aos heroicos abolicionistas que decidiram fundá-lo. Na verdade, foi justamente essa imagem
que os memorialistas tentaram imprimir sobre o reduto santista. Por muitas vezes, esse
quilombo foi descrito como terra erma e primitiva à época da campanha abolicionista255.
Apesar disso, há algum tempo os historiadores vêm duvidando dessa versão. Barros
Fontes considera a hipótese de que o quilombo de Pai Felipe tenha servido de base de apoio
para a formação do Jabaquara, pois seus integrantes habitavam a região havia mais tempo, de
modo que prepararam o terreno para a chegada de mais fugitivos. Além disso, auxiliaram como
guias nas trilhas pela serra que servia de caminho para os novos fugitivos.256
Por outro lado, Maria Helena Machado nos chamou atenção para o fato de aquelas terras
já eram ocupadas por habitantes humildes, como roceiros, egressos dos engenhos e
trabalhadores urbanos de baixa renda desde o século XVII. Nas décadas de 1880 e 1890, o local
foi alvo de conflitos entre proprietários que cresciam os olhos para as propriedades uns dos
outros, além de empresas – como a Companhia Docas de Santos – que viam nelas uma boa
oportunidade de se construir instalações que auxiliassem no funcionamento do porto e que
fornecessem insumos para as reformas urbanas em geral. Tais conflitos resultaram em
processos judiciais, alguns dos quais foram analisados por Machado, que neles encontra
indícios de que a ocupação daquela região era mais antiga do que a historiografia e os
memorialistas estavam dispostos a assumir. Em um processo aberto contra Walter Wright, por
Benjamin Fontana e sua esposa, ficamos sabendo que em 1686 o capitão Bento Nunes de
Siqueira declarava, em escritura pública, possuir
uma sorte de terras na paragem chamada Jabaquara, que de uma banda partem
com o sítio que foi de Antonio Fernandes Mourão a sair no tanque que está na
estrada desta Vila de São Vicente, pelo valo do dito tanque na mesma direita
a sair em outra quebrada e caminho a sair ao Marco e jurisdição desta vila e
daí partindo com as terras de Paulo Corrêa a sair nas capoeiras que foram de
canaviais do mesmo Bento Nunes de Siqueira, pelo valo acima até o cume e
pelo cume acima até sair na vargem da banda do Marapé. 257
254
Para críticas sobre essa concepção de quilombo ver: GOMES. Op. cit, 2006, capítulo 1. MIKO. Op. cit., pp.
496.
255
JARDIM, Silva. Op. cit., pp. 86-88. Apud. PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 100-101; SANTOS. Op. cit., pp. 221.
MOURA. Op. cit., pp. 243-249. Nos anos 1980, essa imagem do Jabaquara foi questionada por Beatriz
Nascimento, “O conceito de quilombo e a resistência cultural negra”. In: RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a
trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo-SP: Imprensa oficial do Estado de São Paulo; Instituo Kuanza,
2006, pp. 122, mas só foi definitivamente superada com as evidências documentais expostas por MACHADO. Op.
cit., 2007.
256
FONTES. Op. cit., pp. 72-74.
257
1886. Ação de Interdito Pocessório em que são: Benjamin Fontana e sua mulher: AA e Walter Wright: R, fls.
2, 2v. e 3, AGFCS. Apud MACHADO, Op. cit., pp. O mesmo documento também é analisado em PEREIRA. Op.
cit., 2011, Capítulo 4.
116
De acordo com a autora, por anos, diferentes proprietários de grandes parcelas de terras
na região costumavam esquadrinhá-las em pequenos lotes e arrendá-los a terceiros, que por sua
vez as subarrendavam. Tanto Fontana como Wright eram dois proprietários de terras naquela
região que tinham pretensões como as descritas. Porém, em 1886 seus interesses os tornaram
rivais. Momentos privilegiados para se apreender como era a vida e os habitantes do Jabaquara
são aqueles nos quais as testemunhas de ambos os lados são chamadas para elucidar os fatos.
Como veremos detalhadamente mais adiante, os depoimentos mostram uma região ocupada por
vários pequenos lavradores que viviam da terra. Inclusive há indícios de que alguns trabalharam
em troca de sua estadia no local. Muitos negros livres, mas alguns imigrantes europeus pobres
também arrendavam terras por ali. Composto por casas de madeira, semelhante aos cortiços,
repleto de roças, o reduto misturava características de um ambiente urbano e rural. Sua
utilização como refúgio de escravizados parece ter sido improvisada e seguiu estratégias e
práticas que já vinham sendo usadas anteriormente. Tão diferente do estereótipo de quilombo,
o que explica essa experiência tão peculiar do Jabaquara?
A historiografia sobre quilombos, especialmente a respeito de Palmares, debruçou-se
muito sobre a relação entre os mocambos brasileiros e as sociedades e culturas africanas, além
do seu caráter revolucionário ou não. Na primeira metade do século XX, uma tradição
culturalista, inaugurada por Nina Rodrigues, ressaltava as origens africanas de Palmares como
uma “influência diretora”. O mocambo pernambucano era visto como um “Estado Negro”,
semelhante a seus congêneres africanos, consistindo em um fenômeno contra-aculturativo.
Nesse espaço, os quilombolas podiam reproduzir a cultura africana fora e paralelamente à
ordem escravista.258
Procurando refutar a tradição freyreana que descrevia a escravidão brasileira como
benevolente, flexível e menos violenta que a norte-americana, nas décadas de 1950, 1960 e
1970, uma nova geração historiográfica deixou de lado o debate sobre as origens africanas de
258
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 5ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977. RAMOS,
Arthur. “O espírito associativo do negro brasileiro”. Revista do Arquivo Municipal, vol. 47, n. 4. São Paulo, 1939,
pp. 105-126. CARNEIRO, Edison. O Quilombo dos Palmares. 2ª ed. revista. São Paulo: Brasiliense, 1958a. Do
mesmo autor: “Singularidade dos quilombos”. O Quilombo dos Palmares. 2ª ed. revista. São Paulo, Brasiliense,
1958b, pp. 13-25. Vale destacar também FREITAS, Mário Martins. Reino negro de Palmares. 2ª ed. Rio de
Janeiro, Biblioteca do Exército, 1988, o primeiro autor a apontar que os fundadores de Palmares eram jagas e que
o refúgio constituía um sobado, baseado na autoridade da linhagem real daquele povo, apesar desse povo não ter
linhagens, tampouco constituíam sobados. Cf. LARA, Silvia Hunold. “Quem eram os ‘negros do Palmar’?”. In:
RIBEIRO, Gladys Sabina; FREIRE, Jonis Freire; ABREU, Martha e CHALHOUB, Sidney (orgs.). Escravidão e
cultura afro-brasileira: temas e problemas em torno da obra de Robert Slenes. Campinas: Editora da Unicamp,
2016, p. 57-85.
117
Palmares. Agora, a ênfase recaía sobre a reação e a resistência escrava. Porém, criou-se um
novo estereótipo reducionista, que ora via o escravizado como coisa desprovida de consciência,
ora como rebelde reacionário, sem direção ou projeto para o benefício de toda a classe. Nos
trabalhos de Clóvis Moura, Benjamin Péret e Décio Freitas, os quilombos são lidos na chave
do “escravo-rebelde” e a resistência escrava era uma das formas da luta de classes no Brasil.259
Moura se destacava, por ressaltar que apenas tornando-se quilombola o cativo podia realmente
ser livre. Apesar de não terem plena consciência, o mocambo era o mais próximo disso, sendo
Palmares a grande exceção.260
Enquanto isso, historiadores estrangeiros insistiam na perspectiva africanista sobre os
quilombos, identificando a recriação de uma sociedade africana em Palmares e outros redutos
americanos. Eles se interessaram em enforcar processos de adaptação de modelos africanos
para a construção de organizações políticas e militares nos mocambos.261 Merece destaque
Stuart B. Schwartz, que não acreditava que se tratasse mais de sobrevivências ou heranças
africanas, nem de uma cultura completamente nova. Para ele, era necessário compreender como
a marca africana nas ações dos cativos e quilombolas podia ser compatível com a diversidade
étnica deles e com os desafios vividos por eles na América. Essa marca seriam estratégias
políticas africanas engendradas por aqueles sujeitos. Portanto, teríamos uma cultura política,
uma experiência africana de integração junto a povos distintos e de geração de solidariedades
que também encontrou espaço em território americano.262
Schwartz se inspirava na coletânea organizada por Igor Kopytoff, nos anos 1980, cujo
objeto de análise eram os princípios e práticas políticas compartilhados entre as sociedades
africanas, chamados de cultura política pan-africana pelos autores. Para eles, a gênese das
sociedades africanas estava intimamente ligada às fronteiras internas do continente. Nas
disputas internas de uma mesma sociedade, o grupo dissidente frequentemente se via obrigado
a migrar para regiões de fronteira. Nelas, havia um vácuo institucional e de poder. Os recém-
chegados buscavam implantar a cultura política da terra natal, mas apenas com os elementos
que eles considerassem corretos, antes rejeitados por seus antigos opositores. Essa cultura
259
FREITAS, Décio. Palmares. A guerra dos escravos. 5ª ed. reescrita, revista e ampliada. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1984. MOURA. Op. cit.. PÉRET, Benjamin. O quilombo dos Palmares. Porto Alegre: Editora UFRGS,
2002. Cf. LARA. Op. cit., 2016, p. 57-85.
260
MOURA. Op. cit., pp. 88-89.
261
KENT, R. K. “Palmares: An African State in Brazil”. Journal of African History, vol. 6, n: 2. Cambridge:
Cambridge University Press, 1980, pp. 57-78. THORNTON, J. K. “Angola e as origens de Palmares”. In: GOMES,
F. (org.) Mocambos de Palmares: Histórias e fontes (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro, 7 Letras, 2010, pp. 48-60.
262
SCHWARTZ, S. B. “Mocambos, Quilombos e Palmares: A resistência escrava no Brasil colonial”. Estudos
Econômicos, vol. 17, n. especial. São Paulo, 1988, pp. 61-88. Do mesmo autor: “Repensando Palamres: Resistência
escrava na colônia”. Escravos, roceiros e rebeldes. Trad. Jussara Simões. Bauru: Edusc, 2001, pp. 213-255.
118
política acabava incorporando outros elementos dos povos que já viviam na fronteira e eram
integrados ou conquistados. Tal dinâmica de circulação e adaptação cultural gerou um ecúmeno
pan-africano, que carrega uma matriz de significados e comportamentos compartilhados pelas
sociedades africanas, mas que são redefinidos e relacionados aos de outras culturas conforme
as circunstâncias históricas dos diferentes encontros. Critérios de precedência como a linhagem
(matrilinear ou patrilinear), antiguidade, quantidade de seguidores (a riqueza em pessoas), a
permissividade nas fronteiras étnicas, a importância da religião, do pensamento mágico e das
sociedades secretas, são alguns desses princípios e práticas que caracterizariam a cultura
política pan-africana que circula não só na África, mas possivelmente também entre os africanos
e seus descendentes na diáspora.263 Assim, os quilombos seriam um dos possíveis
desdobramentos dessa dinâmica de fronteira.
Para Silvia Lara, mais que revelar as origens ou identidades africanas nos quilombos,
sem generalizar uma perspectiva predominantemente africanista, é possível repensar os
significados políticos das matrizes culturais desses redutos, com base nos elementos oferecidos
pela documentação sobre a dinâmica de seu próprio desenvolvimento. De certa forma, todos
esses autores estão certos, mas “erraram a mão” em atribuir uma identidade fixa demais aos
refugiados, dando pouca atenção ao fato de que os processos históricos se desenvolvem na
duração. Um mesmo mocambo pode ter sido constituído por pessoas vindas dessa ou daquela
região, inspirando-se em tal ou qual linguagem política, mas nem sempre foi o mesmo ao longo
de sua existência.264 Assim, vemos que os mocambos são acima de tudo organizações sociais
extremamente dinâmicas e mutáveis, influenciadas por várias características circunstanciais,
mesmo quando comparamos diferentes experiências no mesmo século, na mesma região.
De fato, havia uma predileção da cultura política de muitas sociedades africanas, em
especial as bantu, para a eleição de um rei para governar, que, no entanto, não o fazia sozinho,
mas sempre acompanhado de um conselho de nobres mais confiáveis e, às vezes, de um
sacerdote da religião hegemônica. Este era o caso dos reinos do Congo e do Ndongo, assim
como nos kilombos jagas e imbangalas.265 Essas sociedades, apesar de distintas em muitos
aspectos, compartilhavam uma matriz cultural. Nelas, a autoridade podia ser exercida por meio
da força militar, mas também a partir do acúmulo de bens atribuidores de prestígio, do controle
da religião, da ampliação das redes de solidariedade fundadas em laços matrimoniais e na
incorporação de dependentes. A linhagem e o pertencimento a uma família ou clã eram
263
KOPYTOFF, Igor (orgs.) Op. cit., especialmente pp. 3-86.
264
LARA. Op. cit., 2016, pp. 82.
265
MELLO E SOUZA. Op. cit., pp. 87-95 e 104-105.
119
primordiais de modo que até mesmo as sociedades que buscavam romper com isso, como jagas
e imbangalas, precisaram desenvolver rituais que representavam a ruptura dos laços com a
comunidade original das pessoas para consolidar sua incorporação ao kilombo. A figura do rei
podia ser mantida como ideia de unidade mesmo nos reinos menos centralizados, pois ele estava
no ponto de convergência de todos esses elementos importantes para a configuração de uma
identidade étnica.266
Marina de Mello e Souza registrou vários casos de reis e rainhas liderando quilombos
no Brasil, ora sustentados por linhagens, ora aparentemente contando apenas com seus talentos
e virtudes pessoais, ao longo do século XVIII. Segundo a autora, era comum que os africanos
e seus descendentes escolhessem chefes que chamavam de reis ou capitães ao se reorganizarem
em comunidades no Novo Mundo. Dessa forma, assumiam um termo que era lusitano, mas se
adequava a formas de organização política e social básicas nas sociedades africanas, fossem
elas estruturadas em reinos, confederações tribais ou tribos independentes.267 Tratava-se de um
processo de tradução que permitia aos africanos e seus descendentes interpretar a linguagem
política desenvolvida no encontro entre culturas diferentes a partir de uma gramática cultural
bantu. Com isso, eles se apropriavam de termos e símbolos lusitanos para descrever títulos e
estruturas políticas próprias de modo que os mesmos passavam a ter um caleidoscópio de
significados que podiam ser ou não captados dependendo daquele que os interpretava. Segundo
a autora, o processo de escolha dessas lideranças podia ser pautado pelo conhecimento ou
habilidade que o(s) candidato(s) possuíam, relacionados à profissão que desempenhavam, ao
passado africano, a práticas culturais (como música) ou à religião e ao pensamento mágico.268
Uma vez que esses sujeitos estão em trânsito, cultura e religião continuavam em
constante mudança e adaptação. Portanto, as formas de organização política, econômica e
cultural praticadas nos quilombos dependem de muitas circunstâncias contextuais: a
intensidade do tráfico atlântico de escravizados; a área geográfica em que está; a composição
étnica dos habitantes da região; a repressão oficial; e, no caso específico do século XIX, o
relacionamento com o abolicionismo.269 Kilombo pode ser tanto uma instituição quanto um
266
Idem, pp. 154.
267
Idem, pp. 238-240.
268
Para REIS, João José. “Magia Jeje na Bahia: a invasão do Calundu de Pasto da Cachoeira, 1785”. Revista
Brasileira de História. São Paulo, vol. 8, num 16, 1988, pp. 74, a magia era um elemento fundamental tanto das
religiões tradicionais africanas em geral como do catolicismo popular. Ela representava um elemento importante
das relações sociais e de poder na África.
269
NASCIMENTO, Beatriz. ““O conceito de quilombo e a resistência cultural negra”. In: RATTS, Alex. Eu sou
atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo-SP: Imprensa oficial do Estado de São Paulo;
Instituo Kuanza, 2006, pp. 121-122.
120
270
Idem. Cf. MUNANGA, Kabengele. “Origem e histórico do quilombo na África”. Revista USP, São Paulo (28),
dez./fev. 1995/1996, pp. 56-63. REIS, João José. “Quilombos e revoltas escravas no Brasil: ‘Nos achamos em
campo a tratar da liberdade’”. Revista USP, (28), dez./fev. 1995/1996, pp. 14-39; GOMES, Flávio dos Santos. Op.
cit., 2006, Capítulo 1.
271
Em 1722, foi feito o primeiro regimento de capitão-do-mato, que regulamentava os valores para as capturas de
escravizados de acordo com a distância de seu senhor na qual o cativo foi encontrado. Além disso, determinava
que fossem pagos pelos “negros que forem presos em quilombos formados distantes de Povoação onde estejam
acima de quatro negros, com rancho, pilões, e modo de ali conservarem” o valor de vinte oitavas de ouro. Em
1741, o rei de Portugal determinou, não só para São Paulo, mas para todo o Brasil, medidas punitivas para
quilombolas, como marcas a ferro e decepamento de orelhas. Muitos bandos eram organizados para capturar
escravizados fugitivos e era redigido um regimento para regular suas ações. Em 1734, oficiais do Senado da
Câmara de São Paulo já pediam providências quanto aos crimes cometidos por negros fugidos de seus senhores.
Em 1751 essa casa legislativa publicou novo regimento de capitães-do-mato, que dessa vez não mencionava os
ranchos e pilões, apesar de continuar considerando criminoso o ajuntamento de 4 escravizados em quilombos. Em
1746, bandos como esses faziam regimentos para repressão de quilombolas tanto próximos a Santos e Cubatão
como de São Paulo. GOMES, Flávio dos Santos.A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de
fugitivos no Brasil, (Séculos XII-XIX). São Paulo: Ed. UNESP: Ed Polis, 2005, pp. 350-351.
272
Idem.
273
Idem, pp. 351. LARA, Silvia H. “Do singular ao plural: Palmares, capitães-do-mato e o governo dos escravos.
” In: REIS, João José, GOMES, Flávio dos Santos (Org.) Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 81-102.
121
Jurubatura em Cubatão seria alvo de expedições policiais anti-mocambos, que após 4 anos
teriam sucesso em dissipar o refúgio.
O quilombo também passa a ser relacionado ao “perigo negro”, que cresce no coração
das elites coloniais e imperiais conforme as notícias da experiência haitiana e de revoltas como
a dos Malês, circulam na sociedade brasileira. Com o código de Processo Penal de 1835, o
quilombo se distingue de qualquer outra forma de contestação dos escravizados. Definido como
valhacouto de bandidos, passa a ser tratado enquanto perigo à estabilidade e integridade do
Império, partilhando inclusive da mesma pena dada aos participantes de insurreições.
Nesse período, o tráfico de escravizados se diversifica ainda mais, misturando cativos
de diferentes regiões da África, sobretudo nas cidades mais prósperas do país, cujas economias
se dinamizavam com a expansão inicial das plantações de açúcar, depois de café, com a
modernização e urbanização, como foi o caso de Santos, São Paulo e Rio de Janeiro. O tráfico
interprovincial também desempenha um papel importante, pois provocava uma série de novas
ondas migratórias e circulações desses sujeitos entre as regiões do país. Todavia, agora a
presença crioula é mais marcante, uma vez que a entrada de africanos começou a ser barrada a
partir de 1850. Trata-se agora de uma geração que nasceu e cresceu no Brasil, assim como uma
minoria africana ladina.
A instituição centro-africana Kilombo, já bastante transformada pelos prévios
deslocamentos África-Brasil, assim, passa por um novo momento de redefinição de acordo com
as circunstâncias contextuais há pouco destacadas. A diferença básica entre estes quilombos e
os do período precedente está diretamente vinculada à impossibilidade de cada refúgio em si
representar um risco ao sistema. Ao longo do século XIX, conforme a população escravizada
aumentava e circulava pelo território brasileiro, novos mocambos, quilombos e comunidades
de refugiados surgiam nos pontos de expansão econômica e nos caminhos e fronteiras entre
eles. Entretanto, em ambos os casos, podemos ver o fenômeno do quilombo como uma brecha
no sistema escravista, caracterizado pelas oscilações das atividades econômicas, ora numa
região, ora em outra. Estas ocasionavam também as oscilações nos laços entre senhores e
cativos, possibilitando que a fuga passasse a ser uma instituição decorrente desta fragilidade
estrutural e integrante da ordem do quilombo. Ironicamente, onde havia muitos cativos e a
ordem senhorial parecia mais ostensiva, as fugas eram inevitáveis. E onde há fugas,
potencialmente há quilombos. 274
274
NASCIMENTO. Op. cit., 2006, pp. 120-122.
122
Por outro lado, trabalhos mais recentes têm apontado para experiências que permitem
inferir que o quilombo era mais que uma brecha; estava integrado ao sistema escravista. Apesar
disso, esses refúgios minavam seu funcionamento simplesmente por existirem, mesmo que a
intenção de seus membros não fosse necessariamente o fim da escravidão como um todo. O
fator-chave são as migrações e circulações, que devem ser levados em consideração como os
estudos sobre quilombos volantes sugerem. Com todo o aparato repressivo anti-mocambo
reaproveitado e atualizado pelo Império, essas comunidades de refugiados precisavam se
manter em constante alerta, preparadas para se locomover ao menor sinal da chegada de
capitães do mato, bandos e expedições policiais e militares. Mesmo quando mais ou menos
fixados, os fugitivos precisavam compreender a geopolítica local da região que se encontravam
para nelas localizarem espaços onde poderiam se refugiar e buscar meios para sobreviver, em
alguns casos até mesmo em partes das fazendas de proprietários de escravizados. Tratava-se de
achar a fronteira interna na própria geografia social da escravidão. Porém, isso também fazia
deles uma comunidade contingente.275
Nesse sentido, os quilombos compartilhavam de algumas estratégias e contra-
estratégias, táticas que provavelmente circularam no espaço, tanto quanto os próprios
escravizados em fuga. Se nos atentarmos a elas, podemos encontrar alguns padrões como: a
escolha de uma localização estratégica, não muito longe, mas não muito perto, de modo a
mantê-los bem escondidos de visitas indesejadas e garantir meios de fugir rapidamente caso
fossem encontrados; o cultivo de agricultura de subsistência, cujo excedente podia ser
comercializado em vendas e botequins simpáticos aos quilombolas; prática de uma economia
extrativista na impossibilidade de cultivo agrícola que rendesse excedentes suficientes; o
estabelecimento de relações de solidariedade com os comerciantes, e até mesmo alguns
fazendeiros, que poderiam vender seus excedentes e protegê-los mentindo às expedições anti-
mocambos sobre sua existência e localização; pré-existência e preservação de solidariedades e
parentesco com escravizados da antiga senzala, ou estabelecimento desses laços com outras
senzalas próximas ao refúgio.276 Gomes deu o nome de campo negro a essa rede de relações
econômicas, de solidariedade e parentesco estabelecidas entre aquilombados, assenzalados,
275
MIKI. Op. cit., pp. 497-499 e 503-517.
276
GOMES. Op. cit., pp. 352-254.; Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de
Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, Capítulo 1; do mesmo autor: “Uma tradição rebelde:
notas sobre os quilombos na capitania do Rio de Janeiro (1625-1818)”. Afro-Ásia, nº 17, 1996, pp. 07-28.
123
277
GOMES, Op. cit., 2006, pp. 34 a 52. Segundo este autor, o mosteiro de São Bento, na região de Iguaçu do Rio
de Janeiro, possuía grandes propriedades em terras e muitos escravos que, aparentemente, recebiam um tratamento
melhor que em muitos outros lugares, podendo ter suas próprias porções de terras para seus cultivos, com direito
a dias de folga. Existia, entretanto, um quilombo em algum lugar das áreas mais inabitadas e distantes do mosteiro
e suspeitava-se a cooperação dos religiosos com os aquilombados.
278
MIKI. Op. cit., pp. 496-503.
124
Dessa perspectiva, a ideia de liberdade não era definida pelo simples fato de se deslocar para
longe, mas igualmente pela habilidade de viver junto da família e da comunidade em local de
sua própria escolha.279
Por sua vez, nos anos finais dos Oitocentos, os redutos de grande porte passaram a ser
encontrados com mais frequência nos morros e periferias dos centros urbanos mais importantes,
muitos dos quais se organizavam dentro de um arcabouço ideológico. Paralelamente, ao longo
do século se tornou significativa a existência da tradição oral ao lado de referências literárias
dos fenômenos passados.280 O quilombo adquire o significado de instrumento ideológico contra
as formas de opressão. É nesse período que um novo fator entra em jogo e passa a influenciar
diretamente na construção de significados sobre esse fenômeno: o abolicionismo. O sonho da
liberdade dos cativos das fazendas paulistas, novo centro econômico do país, começa a se
alimentar da mística do quilombo, frequentemente através da retórica dos abolicionistas. Ocorre
uma nova redefinição do quilombo, sendo o Jabaquara o melhor exemplo desta dinâmica.
Migrando para Santos, os negros fugidos das fazendas paulistas buscavam o quilombo
apregoado pelos caifases de Antonio Bento, mas se deparavam com uma grande favela. A
realidade frustrava aquele ideal de território livre, onde a cultura africana era revivida ao lado
de uma reação militar à escravidão.281
Contudo, não devemos ser tão céticos a ponto de pensar que a maior proximidade com
o abolicionismo representava uma completa ruptura com a dinâmica da fronteira, da geografia
insurgente, do campo negro ou mesmo da tradição de escolha de reis e capitães como lideranças.
O mais verossímil é que houve um processo de contato e tradução entre essas várias concepções
e estratégias de organização de uma comunidade quilombola.
No caso dos quilombos santistas, é possível conjecturar que houve uma simbiose entre
as formas de arrendamento e subordinação já corriqueiras na região, as tradições rebeldes
praticadas por outros mocambos que existiram na Baixada Santista e o relacionamento com o
abolicionismo e seu ideário político. Devemos imaginar um ambiente múltiplo, em que
diferentes e sucessivos agrupamentos de proprietários, seus escravizados, arrendatários livres,
dependentes e refugiados, conviviam e nutriam laços nos perímetros urbanos e nas zonas rurais.
Evidentemente, não se tratava de uma única experiência de quilombo e acoitamento de cativos,
mas distintas e sujeitas a rupturas, tanto quanto a continuidades, na medida em que proprietários
tinham mais oportunidade de se perpetuar na terra do que os cativos, arrendatários livres,
279
Idem, pp. 516-517.
280
NASCIMENTO. Op. cit., 2006, pp. 120-122.
281
Idem, pp. 122.
125
Embora nem sempre tenha sido chamado de quilombo, de uma certa maneira,
o refúgio de Pai Felipe, em Vila Mathias, na encosta leste do Monte Serrate,
talvez estivesse mais próximo à tradição anterior dos quilombos. Não muito
longe de Santos, o quilombo de Jurubatuba, abrigara escravos fugidos de
Campinas, litoral e Vale do Paraíba até sua destruição, em 1839, mas nem
todos seus habitantes foram recapturados. Em 1881, Quintino encontrou na
serra um homem velho que, aparentemente, vivia na mata há muitos anos, e o
trouxe para Santos. Recusando-se a aceitar a autoridade de Quintino, construiu
um refúgio para si e sua gente, não muito longe do Jabaquara. Quintino
explicou esta atitude aos abolicionistas dizendo que Pai Felipe era um velho
rei africano que não podia receber ordens de ninguém. Sua gente trabalhava
cortando madeira para a construção civil e produzindo chapéus de palha.283
282
PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 53.
283
GITAHY. Op. cit., pp. 127. Grifos nossos.
126
O que não é evidente é se Pai Felipe foi rei na África ou era africano e tinha sido
escolhido por seus pares para ser o rei de um ou mais quilombos que eles formaram durante sua
vida na Baixada Santista. Também é possível que esta seja uma caracterização preconceituosa
da posição de Pai Felipe por parte dos abolicionistas, como parte de uma narrativa que visava
cooptar os fugitivos politicamente. A diferença nas datas informadas por Francisco Martins dos
Santos e por Gitahy quanto a migração de Pai Felipe para a Vila Mathias levanta mais dúvidas
sobre isso, enquanto reforça a hipótese da multiplicidade de refúgios coetâneos e/ou sucessivos
que circularam por essas bandas e do envolvimento desse rei africano em mais de um deles. O
que caracterizava exatamente sua liderança e seu grau de organicidade, porém, não sabemos.
Por outro lado, apesar de independentes, possivelmente até rivais, os diferentes refúgios
mantinham-se conectados de alguma forma, uma vez que a ligação entre Quintino de Lacerda
e Pai Felipe é unânime na historiografia.
Finalmente, o fator que mais nos interessa, as relações que constituíam o campo negro
entre os quilombolas e outros setores da sociedade envolvente. Se esse fator era importante para
qualquer refúgio ou mocambo, no caso dos quilombos santistas do final do XIX era algo vital
para sua sobrevivência, principalmente para o Jabaquara que guardava profundos laços com
abolicionistas e membros das elites locais. Portanto, reiteramos a tese de Mattos sobre a
importância da mobilidade espacial na liberdade e na vida daqueles que almejavam alcançá-la.
Por mais que a fuga e a migração envolvessem a ruptura com redes pré-existentes, ao se
estabelecer em novo espaço essas relações eram construídas do zero, com novos sujeitos,
constituindo um dos primeiros esforços das pessoas ao se fixarem. Era necessário empreender
a política da troca de favores, ou melhor, troca de obrigações recíprocas. As contendas jurídicas
pela propriedade das terras do Jabaquara, nas quais Benjamin Fontana tomou parte como autor,
ajudam-nos a entender alguns aspectos da situação em que libertos e negros livres se
encontravam. Fontana era um italiano proprietário de boa parte das terras onde a historiografia
e os memorialistas apontam como o refúgio dos fugitivos em Santos.
Em 1886, o italiano acusava Walter Wright de invadir suas terras, cercando parte delas
e estragando suas plantações de bananeiras e mandiocais. A cerca inclusive impediu o acesso a
um galinheiro, a outras benfeitorias construídas pelos habitantes e a uma cachoeira existente no
terreno. Na verdade, os limites entre as propriedades nunca foram muito bem definidos. Fontana
alegava que havia comprado as terras de Dona Umbelina Teixeira de Sá e possuía a escritura
para provar. Porém, o documento só garantia a posse de “uma casa e terras” localizadas “na
127
paragem chamada Jabaquara”, de modo que não fica evidente qual era o real tamanho da
propriedade.284
Wright, por sua vez, alegava que a acusação era ilegítima pois o processo de cercamento
que empreendera não atingia as benfeitorias vizinhas, uma vez que ele respeitara a divisa com
a chácara de nome Teixeirinha, atual propriedade de Fontana e onde Quintino habitava como
arrendatário. Sua estratégia se baseava em expor os verdadeiros limites daquelas terras e para
tanto afirmava tê-las adquirido através de uma herança deixada por Joaquim José Vieira de
Carvalho, comprovada por uma escritura de aforamento perpétuo, de 1832, concedida pelo
mosteiro de São Bento a Carvalho, apresentada na ocasião.285
No fogo cruzado entre os dois proprietários estavam inúmeros moradores que
arrendavam as terras em questão, muitos deles cultivando plantações e criando animais. Alguns
deles se viram na obrigação de prestar depoimento no processo a favor de um dos lados para
garantir sua permanência no local. É o caso de Quintino de Lacerda, negociante de profissão,
que explicou ter feito um contrato de arrendamento com João dos Santos Bandeira286,
procurador de Carvalho, há aproximadamente um ano, mas ao iniciar suas benfeitorias e
plantações, os serviços foram embargados por Fontana. Ao que parece, nesse momento Santos
Bandeira abriu mão do contrato, e Lacerda optou por arrendar as terras diretamente com
Fontana, o que parece ter corrido bem. Então, o liberto reforçou a versão de seu novo senhorio,
dizendo que Wright realmente tinha cercado parte das terras de maneira violenta, impedindo
acesso aos frutos do trabalho que tinha empreendido no local. Fora ele próprio, com a ajuda de
trabalhadores ali residentes que havia construído boa parte daquelas benfeitorias e plantações.
A impressão que fica é que num primeiro momento o depoimento procura de algum modo
mostrar que, independentemente de quem fosse o proprietário, ele tinha contratos de
arrendamento tanto com Fontana quanto com o antigo dono das terras de Wright, portanto este
não podia ter feito o que fez prejudicando suas benfeitorias e plantações.287 Os trabalhadores
284
PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 216.
285
Idem, pp. 217. Com esta informação, mais uma vez encontramos uma ligação de Lacerda com o universo
confraternal das confrarias. É possível que esse senhor pertença a tradicional família Carvalho, cujo ancestral
sargento-mór Antonio José Carvalho mandou construir a extinta Capela de Jesus, Maria José, herdada por seu
sobrinho José Antonio Vieira de Carvalho. Quando este faleceu, a confraria de Nossa Senhora do Terço, composta
por pretos e pardos, mudou-se para o templo que ficou conhecido como Capela do Terço. Cf. OLIVEIRA. Op. cit.,
82-87. Outro detalhe interessante é que naquele ano de 1886, nosso já conhecido Macuco foi eleito para o cargo
de escrivão nessa irmandade. Vide: Indicador Santista, 1887. Disponível em
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=829935&PagFis=0&Pesq= pp. 248-249, Acesso em
06/01/2017. Apesar desses fatos curiosos, não há evidência que Lacerda fosse também irmão de N. S. do Terço.
286
O mesmo que testemunhou os distúrbios na praça dos Andradas em decorrência da questão das águas, em 1884.
287
PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 217.
128
que ajudaram naquele empreendimento eram provavelmente ex-escravizados que não paravam
de chegar ao Jabaquara naqueles anos de 1880, com a ajuda do próprio Lacerda.288
Em defesa de Wright também se mobilizaram testemunhas para depor. William Furbutt
Wright289 se declarou americano, casado, de profissão negociante e ter 53 anos. Ele disse ter
habitado as terras de Carvalho em 1860, muito antes de Fontana sequer comprar sua
propriedade de Dona Umbelina Teixeira. Segundo ele, parecia ser senso comum que o limite
entre as terras de Carvalho e a chácara “Teixeirinha” era um valo fundo em forma de funil. A
cachoeira, mencionada pelos autores do processo e pelas testemunhas a eles favoráveis, tanto
pertencia à propriedade herdada pelo réu que o norte-americano costumava tomar banho lá.
Entretanto Furbutt Wright nunca viu a escritura das terras onde morou, o que indica a
probabilidade de seu contrato ter sido feito informalmente. Deporam em favor de Walter
Wright, ainda, Jorge Adão Rofmam, alemão com 72 anos e casado, e seu filho brasileiro de 46
anos, José Tomé Rofmam, que também nunca viram a escritura do lugar onde moravam, mas
corroboraram as alegações da primeira testemunha dizendo que era sabido por todos que o valo,
construção de longa data já no tempo de sua moradia na região, era a demarcação dos limites
entre as duas propriedades.290
É notável a fidelidade desses trabalhadores que não parecem ter hesitado em depor,
reafirmando as declarações de seus patrões e senhorios.291 Com essas poucas informações, é
possível observar que na região do Jabaquara não moravam apenas quilombolas, escravizados
fugidos e pessoas de cor no geral. Também imigrantes de diferentes nacionalidades habitavam
a região, o que sugere uma composição populacional mais diversificada.
Alguns anos mais tarde, em dezembro de 1888, posteriormente à abolição total da
escravidão podemos observar como esse tipo de articulação continuava se mostrando necessária
para os libertos manterem a integridade de sua autonomia. Outro habitante do Jabaquara, o
pardo Nicolau Teixeira, lavrador, tentou assassinar Benjamin Fontana enquanto este saía da
casa de negócios do português Joaquim Queiroz no caminho do Monte Serrat. Quintino de
Lacerda foi o grande herói da vez, rapidamente impediu o agressor e o rendeu. Enquanto
Teixeira tentava amenizar sua situação dizendo que já se encontrava no lugar e que apenas
carregava uma faca embaixo do braço sem intenção de usá-la, Lacerda narrou que ele gritava
em alto e bom som que “queria dar cabo de Fontana, senão naquela, em outra ocasião”. Fontana,
288
Também depôs a favor de Fontana Rafael Tobias, solteiro, de profissão de lavoura, e dizia-se camarada,
arrendatário e empregado do líder quilombola. Idem.
289
Não tem parentesco com o réu.
290
PEREIRA, Op. cit.,2011, pp. 223-224.
291
MACHADO, Op. cit., 2007, pp. 258.
129
além do mais, acionou alguns trabalhadores de uma obra que empreendia que depuseram
alegando que Teixeira havia ido até eles dizendo-lhes sobre suas intenções assassinas. De
acordo com eles, as motivações do réu eram devido à cobrança de aluguéis atrasados e uma
ameaça de despejo pelo italiano. 292
Mais uma vez, empregados e trabalhadores ligados a Benjamin Fontana, assim como o
próprio Quintino de Lacerda, atendem ao chamado para testemunharem a favor destes.
Paralelamente, percebe-se algumas características partilhadas pelas testemunhas: todos eram
homens e solteiros, além de brasileiros e empregados de Fontana, com exceção de Joaquim
Queiroz, português, casado e dono da casa de negócios que foi palco da tentativa de homicídio.
Os homens solteiros eram mesmo maioria na cidade àquele momento. Igualmente não era de
se estranhar que entre todos os envolvidos que deram seus depoimentos, Nicolau vivesse de
suas lavouras, assim como outros que depuseram no primeiro processo, profissão
aparentemente comum na região dos morros da cidade. Os trabalhadores da obra de Fontana
estarem no ramo da construção civil, ramo que mais empregava trabalhadores na cidade àquele
momento, também era algo recorrente naqueles anos. Da mesma forma, não surpreende que
Joaquim Queiroz, português, fosse dono de um pequeno estabelecimento comercial,
empreendimento frequentemente feito por imigrantes dessa nacionalidade que aportavam em
Santos.293
Benjamin Fontana, por sua vez, não nos parece mais um abolicionista de grande coração
que gentilmente cedeu suas terras para a formação de um refúgio para escravizados fugitivos.
Ele não deixou de aproveitar as oportunidades de enriquecimento abertas com a chegada dessa
população. De modo semelhante, outro grande proprietário abolicionista que participou da
formação do Jabaquara, Joaquim Xavier Pinheiro, empregava os refugiados em seu sítio e na
sua fábrica de cal “apenas a troco do esconderijo e comida, nada lhes pagando[...], naturalmente
com o fito de ressarcir-se dos prejuízos verificados com a sua colaboração nas despesas da
campanha”294 abolicionista. É nesses casos que podemos ver o momento em que a costumeira
prática dos acoitadores de escravizados se encontra com a práxis abolicionista. Essas relações,
inicialmente formadas como acordos oportunistas para conseguir trabalho em troca de comida,
abrigo e, em alguns casos, até mesmo armas entre quilombolas e seus empregadores podiam
292
1888. Subdelegacia de Polícia da Cidade de Santos. Autuação de Inquérito Policial em que são Benjamin
Fontana: A. e Nicolau José Teixeira: R. Coletado no extinto AGFCS. Apud. PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 210-
214.
293
Ver Capítulo 1.
294
MORAIS, Evaristo de. A campanha abolicionista, 1879-1888. Brasília: UnB, 1986, pp. 218 Apud. PEREIRA.
Op. cit., 2011, pp. 93-94.
130
295
MIKI. Op. cit., pp. 507.
296
PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 214.
297
Idem, pp. 221.
298
Idem.
299
Idem, pp. 39.
300
Idem, pp. 221-222.
131
301
Mais uma vez, o caso do Quilombo de São Mateus, em Espírito Santo, é emblemático. João Carretão era um
dos escravizados de Francisco Pinto Neto, pequeno proprietário rural que acoitava os quilombolas da região,
fornecendo comida, abrigo e armas em troca de trabalho. Carretão era justamente o mensageiro de Neto para tratar
com os refugiados e entregar o pagamento por seus labores em sua fazenda. Eventualmente, Carretão atravessou
a fronteira entre escravidão e liberdade, juntando-se aos quilombolas. Ele inclusive teve um filho com Gertrudes,
uma das mulheres aquilombadas. MIKI. Op. cit., pp. 509.
132
Procuramos também apresentar uma série de situações em que vimos como libertos,
cativos e quilombolas lidaram com os vínculos sociais que mantinham, para o bem ou para mal,
com outros setores da sociedade, incluindo abolicionistas, mas não só. Evidentemente, as
relações de subordinação fazem parte desses vínculos, o que envolve cooptação e manipulação
daqueles em condição subalterna. O envolvimento de trabalhadores, cativos e libertos na
questão das águas ou na greve de 1891 supostamente seriam exemplos de "massa de manobra".
Todavia, não devemos esquecer que a cooptação sempre é uma via de duas mãos, assim como
o paternalismo. Como tal, pode ser apropriada pelos subalternos, dos quais vemos exemplos
dos libertos Felipe Arruda, Marcellina, Antonio, Maria Joana e do próprio Quintino de Lacerda.
Família, parentescos fictícios, camaradagem de trabalho, alianças com personalidades
influentes; em suma, a constituição de redes se destacou como o pilar de qualquer estratégia
possível.
De certa forma, o quadro desenhado permite também reafirmar alguns significados para
os marcadores raciais utilizados na Santos do XIX. "Preto" e "negro" parecem estar muito mais
associados ao mundo da escravidão. No entanto, "pardo" não estava muito longe disso.
Percebemo-los como minoria significativa entre cativos e libertos. Além disso, dispomos de
vários exemplos de homens que foram classificados como pardos em censos da primeira metade
do século, mas na segunda, evitavam ser associados a qualquer menção a cor. Se esse
apontamento parecia mera especulação com Guilherme L. Freire e José André do Sacramento
Macuco, com o irmão caçula deste último flagramos uma situação bastante curiosa no caso de
Felipe Arruda. Nela notamos que para alguns brancos Arruda e João Macuco eram tão pardos
que poderiam ser confundidos um com o outro, apesar do segundo classificar o primeiro
taxativamente como "preto" e silenciar a própria cor. O que, então, é ser pardo em Santos no
final do século XIX? Voltaremos a essa discussão no capítulo 5.
Ainda, os arredores da Baixada Santista parecem sempre ter sido atraentes para os
cativos em fuga e para a formação de refúgios e quilombos, apesar de sabermos muito pouco
sobre qualquer um dos anteriores ao Jabaquara. Ao que tudo indica, o reduto foi algo
improvisado e ocupou uma região que já ensaiava arrendamentos de terras para populações
mais humildes. Longe de ser o paraíso que os memorialistas tentaram pintar, esse quilombo
mantinha relações firmes com sujeitos das elites locais, muitos dos quais até empregavam os
refugiados em suas empresas e negócios. Tratava-se de um campo negro extenso e complexo,
cheio de ambivalências e sujeito a muita negociação e conflito, mas que lhes permitiam
materializar geografias insurgentes no espaço social da escravidão e do pós-abolição.
133
Essas redes são o ponto de convergência entre as diferentes experiências que abordamos
neste capítulo. É fundamental ressaltarmos as referências políticas que guiavam o
comportamento, as escolhas, articulações e rivalidades entre os diferentes sujeitos envolvidos
no processo histórico de desintegração do escravismo brasileiro e de reelaboração da ordem
social, política e econômica do país. A dinâmica da fronteira das sociedades afrodescendentes,
a gramática cultural africana, o paternalismo, a própria escravidão, o campo negro e as
geografias insurgentes eram elementos aos quais cativos, libertos, quilombolas, negros e pardos
livres estavam atentos na hora de negociar, tecer laços e disputar interesses.
A segunda metade do século XIX se apresenta como um novo momento diaspórico.
Contudo, agora a diáspora é afro-brasileira, pois é composta pela circulação de africanos
ladinos, crioulos e mestiços. Assim, mais uma vez ocorre um encontro que coloca em contato
diferentes culturas políticas que mesmo tendo em comum a necessidade de se reinventar à luz
do primeiro contato entre cultura africana e europeia, novamente passam por um processo de
tradução para forjar maneiras desses diferentes sujeitos se comunicar, agir e se organizar, haja
vista que não selecionaram e traduziram necessariamente as mesmas referências e elementos
nas experiências previas.
Portanto, a reelaboração da ordem social, política e econômica é igualmente cultural.
Além de se apoiar nas redes de sociabilidade, o encontro dessas culturas políticas procurou
fundamentos nas formas de manifestação pública e coletiva já praticadas na sociedade
brasileira, desde os tempos coloniais, como meio de afirmar e legitimar hierarquias sociais e
significados sobre os projetos de abolição e liberdade. Tão importante quanto negociar e
barganhar nas relações pessoais, no âmbito da vida privada, era dialogar com as massas nas
ruas para evitar maiores turbulências.
Tudo isso aponta para as irmandades católicas de negros e pardos. A presença de
confrades, sobretudo os de São Benedito, coloca essas confrarias em evidência na construção
de laços e alianças entre os habitantes de Santos. O fato de Pai Felipe ser chamado de rei
africano e de que em pelo menos dois sodalícios de pretos na cidade se mantinham a tradição
de coroação de reis negros igualmente nos tenta a reforçar a hipótese de que havia uma conexão
entre esses espaços que, que pode ser mais compreendida por meio dos laços pessoais entre os
sujeitos. A partir de agora, exploraremos esse aspecto da vida dos negros e pardos santistas. O
abolicionismo e as irmandades serão as duas estradas que, ao se cruzarem, nos permitirão ver
as práticas mais comuns na vida associativa e na micropolítica local, buscando entender com
que dinâmicas os quilombolas estavam dialogando. Veremos as manifestações públicas e a vida
associativa que nos permitem identificar os objetos e os diferentes "lados" das disputas locais,
134
CAPÍTULO 3
DEPOIS DO PARLAMENTO ESTÁ A NAÇÃO: A CULTURA POLÍTICA
POR TRÁS DA SOCIABILIDADE SANTISTA
302
Sobre as estratégias e argumentações jurídicas de Luiz Gama ver AZEVEDO, E.. Op. cit., 1999, especialmente
Capítulo 4.
303
Idem, pp. 258.
136
havia um número razoável de apoiadores seus que inclusive podiam ajudá-los nas operações
clandestinas de acoitamento de cativos enquanto os embates jurídicos se desenrolavam.304Note,
leitor, que a luta pela liberdade e pelo direito à cidadania envolveu a apropriação e adaptação
de práticas e linguagens políticas as quais a população já estava habituada.
Começaremos analisando as celebrações pela Abolição e pela proclamação da
República, captando as formas de manifestação política dos coletivos envolvidos e os modelos
de associação que deram sustento à essa cultura política. Santos, como outras cidades e vilas
paulistas e brasileiras, não perdeu tempo em organizar grandes festejos e espetáculos públicos
para consolidar imediatamente uma narrativa e memória sobre a luta contra o cativeiro.
Contudo, o que veremos é que isso estava em disputa tanto quanto qualquer outro aspecto da
vida social. Os significados atribuídos a esses eventos partiam de diferentes sujeitos e estratos
da sociedade que se encontravam e competiam para ser o discurso oficial.305 Além disso,
poderemos constatar que a população negra tinha que lidar com a marginalização e a
perseguição de suas manifestações coletivas, mas isso não os impedia por completo de exercer
seu direito à diversão, à expressão e à construção de uma memória sobre o passado. Os pretos
e pardos residentes em Santos saíram às ruas para festejar, reuniram-se em teatros, praças e
igrejas para organizar ações políticas e religiosas e, com isso, (re)elaborar suas práticas
políticas. Eles sabiam reconhecer aliados potenciais em outras camadas sociais e grupos étnico-
raciais, assim como tinham meios tanto de cooptar quanto de serem cooptados, o que sempre é
difícil diferenciar com as fontes disponíveis. Mesmo assim, é patente a agência e a capacidade
de articulação dessas pessoas, tanto por caminhos individuais quanto coletivos.
As formas coletivas de atuação ofereciam maior flexibilidade de ação e proteção
simbólica para pessoas que eram obrigadas a se adequar e “jogar” de acordo com as expectativas
de uma sociedade racializada. Ou melhor, uma sociedade que passava por um processo de
racialização em constante mudança.
304
QUINTÃO. Op. cit., pp. 78-83. A autora também menciona que os abolicionistas tinham aliados nas Irmandades
de Santa Ifigênia e São Elesbão e na de N. S. dos Remédios.
305
ALBUQUERQUE. Op. cit., 2010, pp. 94.
137
306
PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 128.
307
Diário de Santos, 27 de maio de 1888; Diário de Santos, 31 de maio de 1888.
308
Idem.
138
de pedra, tendo o frizo e capiteis de bronze [...] e da mesma forma as cornijas”. Segundo a
descrição publicada no Diário,
Na hora marcada, os mais variados espectadores já concorriam à praça para ocupar seus
lugares para a grande cerimônia. Estavam presentes autoridades civis e militares, agentes
consulares, alunos e alunas de todos os colégios juntos de seus professores, empunhando seus
estandartes e trazendo bandeiras nas mãos, grafadas com datas das leis abolicionistas como a
de 28 de Setembro de 1871, a de 13 de Maio de 1888 e a lei anti-tráfico de 1850, e nomes de
distintos abolicionistas, os quais Joaquim Nabuco, Senador Dantas, João Alfredo, Rodrigo Silva
e outros. Também compareceram as associações e os clubes com seus estandartes, entre eles a
Sociedade Humanitária dos Empregados do Comércio de Santos, as sociedades musicais Luso-
Brasileira, União dos Artistas e 15 de Abril. Representantes da colônia portuguesa local foram
enviados. O capitão do porto apresentou-se junto de um corpo de menores aprendizes
marinheiros. A Câmara Municipal e os representantes da imprensa também não deixaram de
comparecer.
A missa foi ministrada pelo cônego Luiz Alves, que finda a cerimônia, pronunciou um
discurso que “foi ouvida com muita atenção e agrado; o digno sacerdote fez rápidas
considerações sobre a propaganda abolicionista distinguindo os serviços de homens ilustres”,
terminando com vivas “entusiásticos a Nação Brasileira e a S. Alteza Regente”, retribuídos com
“verdadeiro delírio”.310
Ao fim da fala do cônego, a população saiu em procissão em forma de préstito cívico
dirigido pela Comissão Especial para isso convidada, seguida das corporações literárias, dos
clubes recreativos, dos membros do corpo comercial, dos senhores advogados, dos senhores
médicos, dos senhores engenheiros, de todos os homens letrados em geral, dos empregados no
309
Idem.
310
Idem.
139
comércio, dos tipógrafos, dos artistas em geral, dos operários, dos libertos em geral e dos
libertos pela lei de 13 de Maio. Por fim, vinham os aprendizes marinheiros, a Comissão Inicial
– que presidiu o planejamento dos festejos e da força pública. O préstito seguiu pelas ruas 25
de Março, travessa de Santo Antonio (atual Rua do Comércio), Praça dos Andradas para, enfim,
chegar em frente ao edifício da Câmara Municipal, que funcionava no prédio da cadeia, naquela
mesma praça.
Neste local, uma comissão de vereadores entregou a um grupo de “dignas e gentis
meninas” uma “linda coroa da Saudade e Gratidão”, além de mais duas, sendo uma da Loja
Maçônica Fraternidade e outra da Câmara Municipal da Conceição de Itanhaém. Antes do
préstito partir novamente, o redator-chefe do Diário de Santos, Galeão Carvalhal, proferiu “um
breve discurso, erguendo, ao terminar, vivas entusiásticos à memória de José Bonifácio e ao
povo brasileiro”311. Só então, a multidão seguiu seu trajeto, passando ainda em frente aos
consulados português e argentino.
Enfim, o préstito chegou à Igreja do Carmo, na praça Barão do Rio Branco312, onde
abriram-se alas para que as portadoras das coroas passassem em direção ao túmulo de José
Bonifácio, na capela mor. Enquanto isso o “que havia de mais fino na nossa sociedade tinha
com antecedência tomado seus lugares na igreja”313. Ali ainda ocorreram vários discursos. O
primeiro deles foi o da Sra. d. Julietta de Moraes que fez uma homenagem ao “patriarca da
independência”. Do mesmo modo, uma comissão de mulheres do Clube Amazonas e três alunas
fizeram discursos sobre a ocasião. Só então foi a vez de José Rubim César, advogado
abolicionista que atuou em muitas ações de liberdade em Santos, representando a comissão
enviada pela Câmara Municipal de Conceição de Itanhaém. Por último, teve a palavra Silva
Jardim, ativista republicano que vinha tendo destaque nos movimentos políticos locais.
311
Idem.
312
Não confundir com a já citada Praça Visconde do Rio Branco, hoje chamada Praça Antônio Telles. Entretanto,
as duas estavam bem próximas uma da outra, formando um grande largo junto com a atual Praça da República.
313
Idem.
140
FIGURA 6
Caminho percorrido pelo préstito nas celebrações do dia 27 de maio de 1888. Fonte:
https://www.google.com.br/maps?hl=pt-BR&tab=wl&authuser=0
Na noite do mesmo dia, houve uma Sessão Cívica na Praça Visconde do Rio Branco
(atual Antonio Telles), na qual diversas personalidades, como Gaspar Silva, Silvério Fontes,
Galeão Carvalhal, Assis Pacheco Netto, Gastão Bousquet, Vieira Barboza, José André do
Sacramento Macuco, entre outros proferiram mais e mais discursos. Após isso, seguiu-se uma
grande passeata até a Praça dos Andradas, na qual a colônia portuguesa foi homenageada. Mais
uma vez, Galeão Carvalhal tomou a palavra, desta vez para saudar a Nação Portuguesa por ter
financiado viagens à Europa para José Bonifácio. Em seguida, a procissão retornou à Praça
Visconde do Rio Branco, onde dissolveu-se.
Infelizmente, não encontramos as edições em que teriam sido publicados os relatos dos
outros dois dias de comemorações. Porém, no programa, publicado na semana anterior aos
festejos, incluía o planejamento dos três dias. Assim, ficamos sabendo que no dia 28 de maio
estavam programadas uma regata, um passeio marítimo e uma passeata livre. No último dia,
terça-feira, às duas horas da tarde,
Os festejos foram encerrados por mais uma passeata livre na noite daquele dia. Em
primeiro lugar, o que mais chama atenção nesses festejos é a forma harmônica como os atos se
deram, ou pelo menos assim foram narrados. As narrativas oferecidas pelos oradores e os
lugares escolhidos para serem saudados nos trajetos não foram questionados em momento
algum pelos espectadores, segundo conta o redator, possivelmente Galeão Carvalhal que
participou ativamente e discursou em vários momentos.
As comemorações que foram realizadas imediatamente após o 13 de Maio, não eram
um fenômeno exclusivo de Santos e em outros lugares apresentaram muitos aspectos
semelhantes. Na corte, Renata Figueiredo Moraes demonstra que a imprensa local foi pontual
em procurar mediar os sentidos e significados atribuídos à Lei Áurea recém assinada pela
Regente. Num primeiro momento, a autora destaca que houve diferentes interpretações sobre a
lei. Porém, em pouco tempo a imprensa carioca foi se unindo para organização de festas que
serviram de espaço de síntese de narrativas. O fim era agradar um grande público ao passo que
buscava ensinar aos festeiros como o ocorrido deveria ser comemorado nos anos vindouros.
Desde o desenrolar da campanha, a abolição e sua forma eram parte fundamental do plano
maior de inserir o país no hall das nações civilizadas, portanto fazia parte das preocupações de
boa parte das elites letradas envolvidas no movimento encontrar soluções pacíficas, ordeiras e
graduais para a questão. E, uma vez alcançada a vitória, esses militantes, agora convertidos em
memorialistas, queriam também passar a impressão de que o processo todo se deu de forma
harmônica, mesmo durante a vigência do regime escravista:315
Mais próximo do nosso recorte geográfico, de acordo com Matheus Serva Pereira,
festejos desse tipo também aconteceram por toda a província de São Paulo, antes mesmo da
314
Idem. Grifos do original.
315
MORAES, Renata Figueiredo. “A abolição no Brasil para além do parlamento: as festas de maio de 1888”. In:
MACHADO. CASTILHO. Op. cit., pp. 322-323.
316
Idem, pp. 325.
142
promulgação da Lei Áurea.317 Em Araras, por exemplo, teria ocorrido uma festa emancipadora,
não abolicionista, o que indicava a tentativa de reforçar a imagem de um movimento lento,
gradual, controlado pela classe senhorial e, sobretudo, sem perturbação da ordem. Segundo o
programa publicado em A Província de São Paulo, em 29 de março de 1888, os instrumentos
começariam a soar às quatro hroas da madrugada. Ao fim daquela manhã, uma missa solene
seria rezada e, às 4 da tarde, uma sessão se daria na câmara, seguida de procissão até o Largo
da Matriz. A imprensa marcou presença. Oradores fizeram discursos e muita pirotecnia
preencheu os intervalos.318 Os diversos tipos de fogos e espetáculos pirotécnicos eram
fundamentais nessas ocasiões, sempre iluminando os céus, avisando os mais desinformados e
convocando o público a festejar o advento da nova cultura da liberdade no Brasil. 319
Assim como as comemorações santistas, as demais pareciam seguir um modelo no qual
determinadas versões sobre a luta contra a escravidão eram legitimadas. Para Pereira, os jornais
divulgavam esses festejos como uma forma de garantir a visibilidade da filantropia senhorial.
Reforçava-se a imagem de uma permanência da ordem sob o controle dos senhores. “De uma
maneira geral, todas essas festas e celebrações de regozijo funcionaram como modelos para a
organização das festas que estavam por vir pelo 13 de Maio”320.
Os tramites da Lei Áurea foram acompanhados de perto pelo povo. Os jornais cobriam
intensamente os desdobramentos, com o telégrafo acelerando a comunicação. Dessa forma, as
celebrações foram imediatas à promulgação da lei, possivelmente influenciadas pelas
manifestações que os periódicos vinham publicando anteriormente, e parecem ter seguido o
mesmo roteiro, isto é, foram organizadas por comissões ou reuniões que traçavam os planos
tanto para terminar a obra de libertação de um município, como para englobar toda a cidade nos
festejos por essa realização321. Todavia, nada era em vão; as passeatas cíveis e marchas
comemorativas da Abolição selecionavam quem seria lembrado e por onde passariam.322.
Os festejos de 1888, anteriores ou posteriores à lei de 13 de Maio, não eram bem uma
novidade. Ao longo de toda a década de 1880 cerimônias realizadas por fazendeiros e senhores
317
PEREIRA, Op. cit., 2011, “3.2 O palco sendo montado”, narra brevemente os festejos que ocorreram, antes do
13 de Maio, nas cidades de Limeira, Araras e Itatiba.
318
Idem.
319
Em Limeira, no mês de fevereiro de 1888, teve lugar na Câmara Municipal uma reunião de fazendeiros para
decidir como libertar os escravizados daquele município, de modo que dez dias após a reunião já circulava no A
Província de São Paulo uma declaração alegando que o município estaria completamente livre da escravidão e
festejos eram esperados. Segundo os relatos publicados nesse mesmo jornal, os festejos aconteceram na mais
perfeita harmonia, a decoração com lanternas venezianas transformou a cidade num belo cenário, com os nomes
dos abolicionistas em escudos e datas relacionadas com a libertação de municípios paulistas. Idem, pp. 132-135.
320
Idem.
321
Idem.
322
Idem, “3.3 O primeiro carnaval fora de época: as festas na província de São Paulo pelo 13 de Maio de 1888”.
143
323
Diário de Santos, 08 de janeiro de 1881.
324
PEREIRA, Op. cit., 2011, pp. 71.
325
Correio Paulistano, 17 de março de 1888 apud. PEREIRA, Op. cit, pp. 76-77.
326
PEREIRA, Op. cit., 2011, “2.2. Benevolência, gratidão e tutela: a liberdade desejada pelos senhores”.
144
Segundo Matheus S. Pereira, a maioria das liberdades que são apresentadas pelo Correio
Paulistano e pelo A Província de S. Paulo caracterizam-se como liberdades condicionais, ou
seja, com cláusulas de prestações de serviço que, em alguns casos, ultrapassavam o 13 de maio
de 1888. Esse tipo de libertação, comumente caracterizado pelos jornais como “a título
oneroso”, pode ser entendida de várias maneiras: por um lado, a constatação da adesão da classe
senhorial paulista a, pelo menos, uma postura abolicionista moderada que admitia um fim
próximo para a escravidão; por outro, reconhecer o esforço em garantir a legitimidade da
concessão desse tipo de liberdade como retentora de um atributo pedagógico, cujo fim era
ensinar aos senhores como deveriam agir diante da rápida desestruturação do sistema
escravista.327
Apesar disso, Pereira acredita que havia uma tendência gradativa na diminuição das
libertações a prazo em favor das libertações imediatas e incondicionais, entre o fim de 1887 até
abril de 1888. As autoridades percebiam essas alterações das variações de formas de
manumissão, e para elas essa mudança pela alforria incondicional estava ligada ao crescente
abandono do trabalho pelos cativos, frequentemente seguidos de fugas coletivas. Ao que
parece, inicialmente as libertações a prazo, condicionais e “a título oneroso” eram feitas para
evitar essas situações, colocando o sonho da liberdade num horizonte não tão distante e
preservando o domínio senhorial. No entanto, na interpretação das autoridades, nos últimos
meses de escravidão, tais libertações já não mais impediam as fugas, fazendo-se necessário
libertar incondicionalmente os escravizados para que o controle fosse retomado.328
As semelhanças entre o relato das comemorações santistas e os de outros festejos pela
província paulista expressam que também para o Diário de Santos havia uma intenção de
327
PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 72. Segundo ARIZA, Marília Bueno de Araújo. “Comprando brigas e liberdade:
contratos de locação de serviços e ações de liberdade na província de São Paulo nas últimas décadas da escravidão
(1874-1884)”. In: MACHADO. CASTILHO. Op. cit., pp. 65-84, inicialmente, os contratos de locação foram
pensados para regulamentar os contratos de trabalho entre fazendeiros e imigrantes nas décadas de 1830 e 1840.
Porém, ao longo do tempo, foram sendo usados para elaborar os termos de alforrias condicionais, pendendo entre
o favorecimento dos senhores e dos libertandos. Esse tipo de arranjo foi formalizado na lei 2.040, de 28 de setembro
de 1871, e no decreto que a regulamenta, de 1872. Tornou-se formalmente permitido ao escravizado que procurasse
um curador que lhe emprestasse pecúlio para pagamento de sua alforria em troca da prestação de serviços por
tempo a ser determinado, desde que com a anuência do senhor e do juiz de órfãos. A autora do artigo, contudo,
ressalta a ambivalência desse dispositivo, uma vez que em muitos casos os contratos de locação representavam o
favorecimento do interesse senhorial em promover uma emancipação lenta e gradual, na qual o liberto mantinha
vinculado a seu patrono mediante trabalho dependente e vigilância constante. Por outro lado, muitos escravizados
e libertos não cederam diante dessa tendência conservadora, desafiando os limites dos contratos. Fugindo ou
negando-se a continuar prestando serviços, esses trabalhadores alegavam ofensas físicas ilegítimas e transferência
irregular de sua dívida para outrem. Surpreende ainda as cláusulas de alguns contratos, as quais obrigam o locatário
a alimentar, dar residência e cuidados médicos ao locador, enquanto este, em muitos casos, é obrigado a morar
junto do primeiro, não podendo ir à rua sem permissão, e a servir também a outros membros da família do locador.
328
Idem, pp. 74-75.
145
A imprensa, por sua vez, acabava servindo como um manual de procedimento para
aqueles senhores que encontravam dificuldades em lidar com as pressões escravas, enquanto a
propaganda abolicionista daquelas últimas décadas de escravidão cumpriu um papel de
legitimar essas ações. Podemos dizer que os periódicos eram como cartilhas que mostravam as
diferentes possibilidades que os senhores possuíam para agir nesses momentos de crise.
Ademais, os jornais paulistas funcionavam muitas vezes como agência de recados, anunciando
329
Sobre a falência da política senhorial ver CHALHOUB, Op. cit., Capítulo 2; e sobre a desintegração do sistema
escravista ver MACHADO, Op. cit., 2010, Capítulos 1 e 2.
330
PEREIRA, Op. cit., 2011, pp. 82.
146
com frequência reuniões de fazendeiros com o fim de debater a melhor forma de alforriar seus
cativos331.
Apesar da adesão do Diário de Santos aos festejos dos dias 27 a 29 de maio de 1888,
tanto publicando seu programa como relatando seus desdobramentos como se fossem os
melhores possíveis, o mais verossímil é que havia divergências sobre como o movimento
deveria ser lembrado e sua vitória celebrada. Foram publicados também artigos que
questionavam a versão oferecida por aquela comemoração.
Na edição do dia 27 de maio de 1888, em que foi publicado o programa dos festejos,
essa disputa se tornou evidente. Há artigos como o intitulado “13 de Maio”, que parecem
enunciar a narrativa que foi propagada nos grandes festejos abordados no início deste item.
Exaltando no início e no fim José Bonifácio como o idealizador máximo da abolição no Brasil,
cuja conclusão teria sido o fruto direto da semente plantada pelo Patriarca, o texto celebra que
a escravidão foi derrotada, mas não graças aos ex-escravizados, e sim a nova orientação política
que “vai afugentar as aberrações partidárias, dando ao cidadão liberto a sua personalidade
completa, que havia sido roubada pelo cativeiro”. O abolicionismo triunfou, pois, o povo
brasileiro, essa figura coletiva que no texto parece ser quem dá a decisão final, “Perdoou os
crimes passados, esqueceu as crueldades inauditas de muitos senhores de escravos e pediu a
fraternidade no solo nacional”. “Na frase de um brasileiro ilustre operou-se a ablação do cancro
negro”. Os aplausos delirantes desse povo com que recebeu as notícias da lei só significavam
uma coisa para o redator: “a gratidão imorredoura que ficará guardada em todos os corações”.332
José Bonifácio era membro de uma das famílias mais ricas e tradicionais de Santos, os
Andrada. Seu retrato no pórtico da praça Visconde do Rio Branco não era à toa. Ele era tido
como uma espécie de personificação de tudo que a cidade queria representar nas últimas
décadas do século XIX; era frequentemente apresentado como o homem que deu início aos
princípios políticos que vigoravam no município. Bonifácio havia atuado no movimento da
independência e desde aquela época libertava seus escravizados, defendendo a abolição e
promovendo a importação de braços imigrantes.333
Esses princípios políticos, plenamente desenvolvidos e vitoriosos na forma de uma nova
orientação política, nas palavras do artigo, tem o papel de tutelar os libertos no novo sistema.
Entretanto, fica subentendido que apesar de estarem sendo tutelados, o que se opera é a “ablação
331
Idem, especialmente o item“2.2 Benevolência, gratidão e tutela: a liberdade desejada pelos senhores” e
“Capítulo 3 Comemorações por um futuro sonhado: Quintino de Lacerda e o festejar pela Abolição na província
de São Paulo (1888-1898)”.
332
Diário de Santos, 27 de maio de 1888.
333
SANTOS, Op. cit., 1936, vol. 2, pp. 217-218.
147
Agora [ilegível] realmente quente e tão quente que [ilegível] queimou foi o
peditório do Clube Esmeralda.
Eu disse – [ilegível] – e disse mal, porque aquilo não era [ilegível], não era
mesmo impetrar, aquilo era [ilegível], era extirpar a gente, embora com muita
maciez, com muitos sorrisos, com muita gentileza.
É incrível o extermínio que aquelas mãozinhas fizeram na algibeira do
público!
Caíram-nos em cima como nuvens de borboletas, mas borboletas de garras e
bicos que levaram-nos até o ultimo níquel de 100 réis para o bonde da
[ilegível]!
E admiraram-se no fim quando computaram a receita e [ilegível] um conto e
tanto!
[...]
É por isso que eu e os numerosos amigos esfolados, quando a noite rezamos
nosso – padre nosso – costumeiro em vez de dizermos: “Não nos deixeis cair
em tentação e livrai-nos, Senhor, de nossos inimigos”, diremos: “Não nos
deixeis cair na asneira de sair à rua nestes dias e livrai-nos, Senhor do Clube
Esmeralda. Amém. ”335
O referido clube havia realizado uma reunião comemorativa pelo 13 de Maio, cujo relato
foi publicado alguns dias antes do folhetim de Risonho. O evento contou com uma concentração
de pessoas no Paço Municipal, na Praça dos Andradas, onde foram ouvidos discursos de Silva
Jardim e Rubim César, aparentemente sócios do clube. Um préstito saiu em passeata pela
334
Diário de Santos, 27 de maio de 1888.
335
Idem.
148
cidade, ao sinal de girândolas lançadas ao ar. Fez-se uma pausa na casa da presidente do clube,
após a qual se seguiu para o palacete do tenente-coronel Felix Bento Vianna, onde realizou-se
“uma animada e brilhante soirés”. Houveram danças, bandas musicais, recitação de poemas,
etc.336 Porém, para João Risonho isso era um pretexto para angariar dinheiro, uma estratégia
tão batida que seus oradores se apresentavam frios e sem entusiasmo. A ausência da população
negra nessas ocasiões era gritante, segundo o autor.
Risonho ainda teceu algumas considerações sobre o “Programa dos festejos
comemorativos da abolição da escravidão” publicado naquela mesma edição, algumas páginas
a frente. De acordo com ele, “bem se vê, pela ordem, pela [ilegível], pela ciência mesmo da
redação desse – programa – que ali anda dedo do major Pinheiro e do Macedo”337. Tratava-se
dos nossos já conhecidos irmãos de São Benedito, Joaquim Xavier Pinheiro e Aprígio Carlos
Clemente Macedo. Os mesmos envolvidos no caso do cativo Matheus em 1883, na questão das
águas em 1884 e nas ações abolicionistas em 1886. Vale a pena reproduzir as interpretações de
João Risonho sobre o dito programa:
336
Diário de Santos, 24 de maio de 1888.
337
Diário de Santos, 27 de maio de 1888. Grifo nosso.
338
Atual praça Antônio Teles.
149
Em 2º lugar será uma missa longa, tão longa que irá das 11 horas à 1 hora, isto
é duas horas, porque o “programa” depois de marcar a missa para as 11, diz-
nos que só a 1 hora desfilará o préstito.
No imenso préstito irão todas as sociedades, corporações, associações,
comissões, agremiações e individualidades existentes por existir.
Irá o – Clero, com – C – grande.
Irão as nações amigas –, e irão os inimigos se nós os tivéssemos.
Irão os Clubes políticos –, isto é, o – republicano – solus.
Irão as sociedades literárias, isto é, o – Clube Luiz Gama – totus.
Irão as autoridades militares da terra e mar, isto é o Capitão do Porto – et unus.
Irão os homens de letras em geral, e o – Onacy – em particular.
Irá mais isto, irá mais aquilo, e no fim de tudo no couce da procissão
“Os libertos, especialmente, pela lei de 13 de Maio”, isto é, aqueles que
deviam ir adiante e que dão o pretexto para a funçanata.
Depois temos a recepção, a entrega, na cadeia, da “Coroa da gratidão e da
saudade da pátria”, e a recepção, entrega e colocação da dita coroa “numa
coluna a cabeceira da campa do Patriarca”.
Pobre coroa de nome tão comprido e que vai de mão em mão, de comissão em
comissão, aos trambolhões até a abandonada e esquecida lage de cobre os
ossos de José Bonifácio, - descança em paz”
Coroa desgraçada, que sendo só uma, terás de ser entregue a quatro (número
fatal) senhoras ao mesmo tempo, que andarás do – déo em déo – até
completares tua piedosa missão!
Isto tudo lardeado de algumas girandolas mais e de alguns, poucos, discursos.
As 7 horas da noite em ponto – “Sessão cívica” – na qual sessão, tremei povo”
o sr. Presidente da Comissão abrirá a torneira aos oradores inscritos, que são
numerosos, e que depois de suas torneiras abertas, darão todos boa medida de
chapas e paradoxos”
Mas nessa hora, leitor amigo, será inútil procurarem-me, já estarei longe, bem
longe.339
A ironia não abandona o texto por um segundo. A primeira crítica vai em relação aos
gastos despendidos para a realização de tamanho evento, que teria como fundo de investimento
o dinheiro público arrecadado em ocasiões como aquela armada pelo Clube Esmeralda
mencionado por Risonho anteriormente. As girândolas são manifestação dessa ostentação
desmedida. Além disso, o autor também ironiza a própria forma como os atos são anunciados
pelo programa, desde a menção a quantidade de girândolas lançadas até o momento em que são
elencados os grupos sociais que participaram das comemorações. Com destaque, João Risonho
critica a posição em que os libertos foram colocados no préstito que seguiu a missa, em último
lugar. Nem mesmo a adoração a José Bonifácio passou ilesa a pena afiada do redator, que
menciona que o tumulo do Patriarca andava esquecido e abandonado até a entrega da coroa da
gratidão e da saudade. Por fim, os próprios oradores se tornam motivo de chacota, representados
como uma torneira aberta que nunca cessa o fluxo de saída de água. Nesse momento, o autor
alegava que já estará bem longe.
339
Diário de Santos, 27 de maio de 1888.
150
340
Diário de Santos, 24 de maio de 1888.
341
Alguns dias depois uma Comissão inicial publica um informe dizendo que as comissões convidadas para
compor o préstito do primeiro dia deveriam comparecer às dez e meia no Largo do Visconde do Rio Branco. Logo
abaixo desse, havia outro informe, do Clube Esmeralda, anunciando sua doação de 900$000 ao tesoureiro da
Comissão Inicial, Sr. Lucrecio Fernandes. Por fim, um terceiro informe sobre festejos populares dizia que estes
teriam lugar naquele mesmo dia, e que na sessão apropriada o programa organizado pela comissão inicial, além
de alertar o comércio que deveria fechar as portas ao meio dia nos dias 28 e 29 em decorrência dos festejos. Na
sessão “Ineditoriais” dessa mesma edição, uma “comissão inicial pela escravidão” faz um convite público aos
“senhores representantes das Nações amigas, aos senhores vereadores da Câmara Municipal, às autoridades civis
e militares de terra e mar, à assistência das festas que a comissão proveu e organizou para os dias 27, 28 e 29 de
Maio”. Faz ainda convites aos clubes e sociedades locais a concorrerem às festas e participar do préstito como
descrito no programa, e também aos “habitantes desta cidade” a concorrerem aos festejos e enfeitarem as frentes
e janelas de suas casas para ajudar a decoração da cidade. No programa, a comissão se intitula “comissão inicial
da cidade de Santos” e “Comissão Inicial e Adjunta dos Festejos”. Diário de Santos, 27 de maio de 1888. Além
disso, no relato do primeiro dia de festas, publicado dias depois, aparece uma “comissão inicial” em alguns
momentos e é mencionado que Silva Jardim é secretário da mesma. Diário de Santos, 31 de maio de 1888.
Portanto, é difícil delimitar o raio de ação daquela comissão de homens de cor. Considerando, porém, a crítica de
João Risonho e a tendência já mencionada dos periódicos paulistas de reservar aos escravizados e libertos o menor
crédito possível sobre a campanha abolicionista e sua conquista na forma da lei de 13 de Maio, somos levados a
acreditar que o caso santista seguia tal tendência.
342
A Província de São Paulo, 23 de maio de 1888. BN. Apud. PEREIRA, Op. cit., 2011, pp. 165.
151
343
SANTOS. Op. cit., vol. 2, pp. 243. IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Livro de Irmãos, pp.
28 e 59.
152
344
AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Op. cit., Capítulo 4; AZEVEDO, Elciene. Op. cit., Introdução; FONTES.
Op. cit., pp. 47; MACHADO. Op. cit., 2010, Capítulo 4.
345
FONTES. Op. cit., pp. 98-99.
346
Idem, pp. 125.
347
ROSEMBERG. Op. cit., 2006, pp. 143-145, 219.
348
Diário de Santos, 21, 22, 26, 27, 28 e 29 de agosto; 01, 03, 04, 06, 08 e 11 de setembro de 1885.
153
E agora o maldito projetcto há de passar tal e qual no senado para não dar
lugar a nova discussão na câmara, o que poderia provocar crises que o sr.
Cotegipe sempre a sorrir quer evitar.
Mas não creia o nobre ministro que a victoria fácil obtida contra os bisonhos
soldados do parlamento seja completa.
Não é uma batalha de Marengo a que acaba de ganhar.
Depois do parlamento está a Nação.
No seo triumpho há um ponto negro, e melhor talvez seria arriscar se o exímio
estadista a uma queda imediata rejeitando o projecto hediondo à tentar
consolidar o seo partido com tal argarmassa.
O grande ministro deve saber que hoje é preciso além do muito talento de que
dispõe um pouco de coração.
Não ria-se.
R. C.349
Com uma sensibilidade aguçada aos arbítrios das autoridades em relação a população
negra, o próprio Rubim Cézar se via como possível alvo da “polícia negreira” em situações
como essas, apesar de já se sentir resignado em relação a isso:
349
Diário de Santos, 03 de setembro de 1885.
350
Diário de Santos, 28 de novembro de 1885.
154
E quem não for branco de apurada refinação que se acautélle. O redactor desta
folha não trata de si, porque já está resignado a tudo, mas é que o próprio sr.
Delegado Zé André que està em terceira dynamisação não acha-se livre das
garras do sr. Bueno por engano, já se vê.
R. C.351
Apesar de Risonho ter dito que Silva Jardim não podia ver nenhum “rosto preto” na
plateia da cerimônia do referido clube, o próprio Rubim Cézar a seu lado era um homem de cor.
Por outro lado, o advogado parece ser realmente a figura mais próxima de Luiz Gama no
espectro político da época, ao criticar tanto conservadores quanto seus correligionários liberais
que demonstravam pouco empenho e dissimulação em relação aos projetos referentes ao fim
do cativeiro. Até mesmo os republicanos, aos quais de fato se enquadrava, eram alvos de suas
críticas:
Para nós onde está o senhor está o tyranno e a luta que travamos há de durar
hoje e sempre até que não haja no solo do Brazil um só escravo.
Debaixo deste ponto de vista repelimos o oportunismo revoltante do partido
republicano paulista que, parodiando Gambetta entende poder transigir com a
escravidão aliando á liberdade a humilhação, a luz ás sombras, o céu ao
inferno. Sustentar-se a republica na tribuna, na imprensa, nas urnas e após as
horas de dedicação e luta pela sancta idéa vir-se para casa comandar escravos
é d’uma incoherencia tal que chega as raias do mais arrevessado paradoxo.
A republica não póde deixar de ser absolutamente livre, e entretanto os
republicanos paulistas descobriram o meio de transformal-a em idéa de
contemporização com a trafica herança do passado, o escravo!352
351
Diário de Santos, 01 de dezembro de 1885.
352
Diário de Santos, 03 de dezembro de 1885.
155
É inegável que se aquele decreto é assinado pela mão de uma princesa, que
desse modo segura na cabeça a coroa imperial, se está referendado por um
ministro de Estado, que dessa forma purgou-se do pecado de ter feito parte do
negregado ministério Cotegipe, é inegável, digo que ele é mais que tudo a
manifestação genuína e perfeita da vontade do povo, partindo de Quintino de
Lacerda e acabando em Dantas.
Li que os antigos senhores feudais, analfabetos, costumavam assinar seus
decretos de morte, de roubo e de extermínio, molhando os dedos na tinta e
imprimindo-os sobre o pergaminho; chamavam a isso – a garra do Senhor.
Assim também esse notável decreto de abolição total, se o lermos com os
olhos da alma, veremos por baixo da visível assinatura da Regente, – a garra
do povo que ali muito antecipadamente escreveu – Soberania Popular.
E mesmo a bem da dignidade da Assembleia Legislativa, a bem da
hombridade dos pares da nação, – escravocratas ferrenhos ontem e hoje ultra-
abolicionistas, é conveniente que se acentue esta imposição da Nação, – que
somos nós todos.353
A crítica desse autor não parece ser direcionada especificamente aos festejos da
“comissão inicial”, mas a outros artigos publicados no jornal que saudavam o Imperador, a
princesa e/ou a coroa pela assinatura da Lei Áurea. Junto da primeira página do dia 31 de maio
de 1888, há um pedaço de página que contém um fragmento de um artigo que parece ter
continuação, porém perdida. No excerto, o autor ou autora se concentra em prestigiar quem
julga ser os principais responsáveis pela tão esperada abolição que acabara de se realizar. No
pedaço de página que chegou até nós, o início do parágrafo foi perdido, mas ao que nos consta
se trata de considerar a Abolição uma humanitária reforma social e política “que se tornou Lei
do Estado em poucas horas”. São honrados o Parlamento e a Princesa Regente, que inspirados
e legitimados pela opinião pública esclarecida e pelo Imperador, respectivamente, fizeram o
possível para decretar a lei de 13 de Maio. A “Província de São Paulo” é apresentada como a
responsável pela iniciativa da campanha abolicionista, detentora de habitantes com pujante
moralidade, exemplo de civismo e sentimento humanitário. Santos, por sua vez, “sentinela
avançada da província”, “secundo galharda entre a propaganda patriótica; esposou de modo
franco a causa simpática da humanidade; honrou assim as suas tradições de povo adiantado na
civilização do século!” E foi no terreno legal, que a autora ou autor do artigo localiza onde
foram feitos os esforços, que “grandes patriotas nacionais e estrangeiros” uniram “para apressar
a obra grandiosa já tão adiantada se antolhava às vistas da Nação”.354
Apesar de ter sido publicado provavelmente depois do artigo de Martins Junior, é
possível que posicionamentos como esse circulavam entre o público, colaboradores e/ou
353
Diário de Santos, 27 de maio de 1888.
354
Diário de Santos, 31 de maio de 1888.
156
redatores do Diário de Santos. No relato do primeiro dia dos grandes festejos, a única saudação
a coroa foi feita pelo cônego Luiz Alves que, terminando suas considerações após a missa
campal, deu “vivas entusiásticos a Nação Brasileira e a S. Alteza Regente”.355 Mesmo sendo
uma cidade especialmente liberal e republicana, mesmo em Santos as disputas entre
monarquistas e republicanos pelos louros do 13 de Maio encontravam coro.
Também na Corte, onde o abolicionismo monarquista tinha mais força, são expressivas
as divergências em relação aos créditos devidos à monarquia nas publicações em torno das
celebrações pela Abolição. Em geral, como no caso santista, costumava-se vangloriar os nomes
de alguns “heróis” do abolicionismo, reproduziam a lei tecendo comentários, divulgavam
chamadas, reuniões e programas das comissões dos festejos ou dissertavam sobre as
responsabilidades dos novos cidadãos no novo patamar civilizacional alcançado pela nação.
Igualmente, na capital do Império, os jornais de tendências republicanas, como O Paiz,
anunciavam a Lei Áurea como resultado das ações nas ruas. Outro períodico carioca, Gazeta
Nacional, reproduzindo texto do A Província de São Paulo, enfatizou que o Parlamento
simplesmente executou uma ordem urgente do povo.356 Tratava-se de um esforço dos
republicanos em dissociar qualquer ideia de benevolência e humanidade intrínseca à monarquia
e ao ato da princesa em assinar a lei. A república viria em seguida.357
Segundo Ângela Alonso, esse grupo de agentes políticos, identificados por ela como
“liberais-republicanos”, percebia na república a reforma mais essencial para alçar o Brasil ao
estatuto de civilização compartilhado pelas nações ocidentais. A abolição era apenas uma etapa,
entre outras, para essa reforma maior. A educação e saúde pública também faziam parte dessa
agenda. Um projeto de nação em muito semelhante ao idealizado pelos frequentadores da
Faculdade de Direito de São Paulo, cujos estudantes e docentes, muitos deles santistas,
acreditavam que a educação, a moral, a higiene, a saúde, assim como a raça, faziam parte do
rol de elementos que se precisava estudar e melhorar na sociedade brasileira para que esta
alcançasse um patamar civilizacional à altura dos europeus.358 Fato curioso é que Rubim Cézar
foi estudante nessa instituição.359
355
Idem.
356
MORAES. Op. cit., pp. 320-325.
357
Idem, pp. 324.
358
SCHWARCZ. Op. cit., pp. 235-238.
359
Correio Paulistano, 16 de junho de 1870. Nesse ano, Rubim Cézar estava cursando o primeiro ano de direito,
segundo uma lista de faltas dos estudantes matriculados no curso de Direito. Ele se formou em novembro de 1875.
Vide http://www.arcadas.org.br/antigos_alunos.php?q=nome&qvalue=jos%E9+rubim&grad=#result_busca
Acesso em 04 de junho de 2021, as 16h.
157
Apesar da popularidade das teorias raciais nesses meios, muitos homens de cor como
Luiz Gama, Quintino de Lacerda e o referido bacharel viam na república o sonho tão aguardado
da liberdade, igualdade e cidadania. Na capital paulista, o ano de 1889 viu nascer um jornal
intitulado A Pátria: Órgão dos Homens de Cor. Em seu número de 2 de agosto daquele ano, os
redatores celebravam a recente assinatura da Lei Áurea. Porém, não era a monarquia que
ganhava os holofotes. Na primeira página foram estampados os bustos do Visconde do Rio
Branco, Feliciano Bicudo, Fernando Albuquerque, enquanto no fundo imprimiram as frontes
de Luiz Gama, José Bonifácio e Fernandes Coelho, todos brancos com exceção do
antepenúltimo.360
Essa reverência correspondia a uma sinalização que indicava as vertentes políticas com
as quais a argumentação do periódico estava vinculada. Seus redatores teceram críticas
contundentes tanto aos projetos liberais quanto aos conservadores que se revezaram no gabinete
ministerial entre as décadas de 1870 e 1880. Sem fazer maiores distinções sobre esses “partidos
monárquicos”, A Pátria via na adesão ao republicanismo uma saída promissora, pois “só nela
[república] encontraremos a reabilitação de nossa raça estigmatizada pela escravidão”.361 Em
suas páginas, havia um incômodo expresso diante de qualquer indício de a população negra ter
de permanecer oferecendo reverências à monarquia, como se fossem devedores de alguma
coisa. Nem mesmo José do Patrocínio, abolicionista negro carioca, foi poupado da ironia dos
redatores sendo duramente criticado por ter se unido ao poder monárquico na última hora, no
intuito de aproveitar os meios acessíveis para realizar o objetivo abolicionista. Se havia alguma
dívida dos negros com alguém seria a todos, brancos e negros, que numa ação suprapartidária
pressionaram pela libertação das últimas gerações de escravizados. Nesse seleto grupo estavam
as personalidades celebradas pelos jornalistas negros, figuras emblemáticas que não hesitavam
em estampar logo na primeira página.362
Ainda, em meio a disputa sobre os futuros do regime político adequado para o Brasil,
os redatores de A Pátria expressam uma identidade fundada na herança negro-africana e no
pertencimento ao grupo sociorracial negro por meio da denúncia das agruras compartilhadas
pelos que tinham em comum a pele mais escura. Assim, vemos que marcas africanas ainda
carregavam um peso simbólico em alguns nichos da população negra, mesmo entre alguns
homens de cor letrados, como fica demonstrado no seguinte trecho:
360
PINTO. Ana Flávia Magalhães. De pele escura e tinta preta: a imprensa negra do século XIX (1833-1899).
Brasília: Dissertação de mestrado, UnB, 2006, pp. 135-136.
361
A Pátria: Órgão dos Homens de Cor, 2 de agosto de 1889. Apud. PINTO. Op. cit., 2006, pp.137.
362
PINTO. Op. cit., 2006, pp. 138.
158
E nós que sentimos correr em nossas veias o sangue Africano, nós que nos
orgulhamos em pertencer a essa raça, que foi a primeira que penetrando no
seio virgem da terra, de lá voltou com as mãos cheias d’ouro e pedras
preciosas, frutos esses por eles colhidos, que se transformou em mantos, onde
se esconderam tantos crimes e que ainda hoje existem nos cofres dos
potentados; ainda mais os três séculos de trabalho dessa raça expatriada e
escravizada encheu também de ouro e de pedras preciosas o erários dos reis e
dos imperadores. É o tempo que corre e exige o nosso congraçamento para
juntos combatermos as trevas nas quais imersos estão ainda muitos dos
libertos de ontem, educá-los e encaminhá-los na idéia grandiosa Pátria e
República (...) Nossos avós e nossos pais sucumbiram entre sacrifícios e dores
cruciantes, não no terreno da luta pela aspiração ou ideia, mas sob os golpes
do azorrague vibrados por braços possantes, nos amplos quadriláteros das
fazendas.363
Assim, o periódico procurava instar os negros que já eram livres e libertos antes da Lei
Áurea a arcar com a responsabilidade pela conquista da igualdade efetiva aos recém-libertos e
a eles próprios por meio da realização de uma missão mais trabalhosa que o contexto
demandava. Esta missão “mais nobre e mais honrosa” era garantir que todos eles pudessem
desfrutar a cidadania prometida por meio do próprio engajamento na educação e
engrandecimento moral de seus pares.
Na base da Serra do Mar, Santos também assistiu a mobilização dos homens de cor. No
Diário de Santos de 19 de novembro de 1889, encontramos um registro de uma “Reunião dos
Homens de Cor no Teatro Guarani”, localizado na Praça dos Andradas. Recém proclamada, a
República era tema dos vários discursos feitos por alguns sujeitos que já apareceram e outros
que roubarão a cena nas páginas seguintes dessa dissertação. Aqui, confirmamos a cor de alguns
deles, até então desconhecida. O encontro havia sido anunciado nos jornais e aconteceu no dia
17. Logo que terminou a sessão do Governo Provisório do município, seus membros seguiram
para o teatro acompanhados da comissão organizadora do evento, de uma banda de música e de
grande massa de povo, à moda dos préstitos cívicos da época.364
O Guarani em pouco tempo se encheu de gente e tão logo a comissão e a municipalidade
tomaram seus lugares, rompeu a Marselhesa que foi ouvida de pé em meio às aclamações do
público. Quem abriu a reunião foi Benedicto Figueiredo Ramos que ao discursar “fez ver aos
homens pretos os benefícios que a eles, como a todos os outros trazia o novo sistema de governo
e em nome deles prometeu todo o apoio à idéia vitoriosa”.365 Também discursaram na ocasião
363
A Pátria: Órgão dos Homens de Cor, 2 de agosto de 1889. Apud. PINTO. Op. cit., 2006, pp. 143.
364
Diário de Santos, 19 de novembro de 1889. Apud. SANTOS. Op. cit., 1936, vol. 2, pp. 253.
365
Idem.
159
Guilherme Aralhe, Eugênio Wansuít, Quintino de Lacerda e José Rubim Cézar. Este último,
levou o auditório ao auge do entusiasmo, “pedindo ao povo que jurasse ali mesmo defender a
Pátria, gritando República ou Morte! o auditório chegou ao delírio”.366 A reunião terminou em
outro préstito cívico seguido pelo povo e pela banda de música que acompanhou um militar que
lá havia discursado até o porto onde embarcaria para corte.
A iniciativa desses homens de cor evidencia o duplo sentido abolicionista-republicano
que muitos comícios em Santos assumiam, cujos gestos ecoavam nos meios de mesma
orientação política de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde muitos santistas circulavam e se
incumbiam de divulgá-los. Em Eugênio Wansuít temos outra personificação das duas causas.
O orador da reunião dos homens de cor havia feito parte da Bohemia Abolicionista, sociedade
que agremiava a mocidade santista em prol da libertação dos cativos. Ex-marinheiro e
combatente na Guerra do Paraguai, Wansuít é descrito pelo historiador santista Francisco
Martins dos Santos como “mais velho, com trinta e alguns anos, mas com aparência de vinte e
poucos, pernambucano, quase preto, que falava muito, em toda parte, sem o menor rebuço ou
respeito às conveniências, fazendo um comício em cada ponto onde parava, em contínuo e
absoluto desprezo à vida e à liberdade, não deixando escravocrata em paz, fosse de elevada
posição ou da classe média”.367
No depoimento de um contemporâneo, Wansuít era apresentado como “um mulato
pernóstico, falando muito, fazendo a propaganda no seio do povo com muito proveito”.368 Um
episódio muito lembrado é quando, numa grande sessão pública realizada no Teatro Rink,
situado na rua S. Francisco, o ex-marinheiro interrompeu a fala de Campos Sales para dizer-lhe
com severidade que “ele devia ser coerente, pois um republicano não podia ser senhor de
escravos, como ele ainda o era”.369 Secundado por Silva Jardim, os dois deram conta de
constranger o futuro presidente da república que se comprometeu a libertar todos os seus
escravizados assim que retornasse à São Paulo.
Em Santos, a figura mais expressiva do republicanismo popular talvez seja Silva Jardim,
este um homem branco. Como vimos, ele marcava presença nas comemorações da Abolição
fazendo vários discursos. Esse ativista viveu em Santos entre 1886 e 1888, participando
ativamente tanto da campanha abolicionista quanto da republicana370. Ele deixou para os
366
Idem. Grifos do original.
367
SANTOS. Op. cit., pp. 224.
368
Idem. pp. 229.
369
Idem, pp. 244.
370
PEREIRA. Op. cit., 1936, vol. 2, pp. 99.
160
371
SILVA JARDIM. Memórias e viagens I: campanha de um propagandista (1887-1890). Lisboa: Typ. da
Companhia Nacional Editora, 1891.
372
PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 99.
373
Idem, pp. 152-153.
374
Idem.
375
Idem, pp. 161-162. Alguns trechos da canção publicados por Silva Jardim no seu livro de memórias, são
reproduzidos por Pereira: “Isabel não teve medo, / Assim é! / Viva o senhor José Alfredo / Olaré! / Acabou a
escravidão, / Assim é! / Viva o Santos Garrafão! / Olaré! / A causa segue com tino, / Assim é; / Viva o Lacerca
Quintino! / Olaré! / E foi sem susto maior, / Assim é; / Viva, pois, nosso major! / Olaré! ”
376
Idem.
161
libertos nele. Tal moldura tinha um pensamento paternalista por trás, que reservava aos
escravizados e libertos o papel de demonstrar toda a sua gratidão aos heróis da Abolição, agora
que esta se consolidara legalmente. Detentores de “almas simples”, aqueles em nome dos quais
se havia feito o movimento, deveriam se manter no papel de espectadores de seu próprio
destino.377
Pereira, por outro lado, chama atenção para outra versão da mesma canção, publicada
em 1889, no Almanaque da Casa Branca. Nessa publicação, a autoria da música é atribuída a
Pai Felipe, liderança do quilombo vizinho ao do Jabaquara, que levava o nome de seu líder378.
Aqui, os primeiros a receberem vivas são os dois representantes mais próximos das camadas
populares do movimento, Santos Garrafão – o mesmo que esteve com Pinheiro e Pacheco em
1886 – e Quintino de Lacerda, liderança do Jabaquara. Entretanto, no resto da letra são saudados
outros nomes, entre os quais tanto republicanos quanto monarquistas. Para Pereira, é
interessante notar as variações existentes entre os versos de cada letra:
Os versos “E foi sem susto maior” e “Dia da lei da libertação dos brancos”,
publicados em 1889 e inexistentes na versão de 1891, indicam duas
interpretações acerca do processo da Abolição recorrentes nos dez anos
posteriores à promulgação da lei: o primeiro diz respeito à ideia da ocorrência
do movimento abolicionista sem grandes perturbações da ordem e o segundo
entendimento vincula-se à ideia de que a escravidão era responsável pelo
atraso nacional. Seu fim, portanto, teria possibilitado ao branco progressista e
civilizado alcançar a sua liberdade de fato através do fim da outra instituição
que o impedia de atingir todas as suas plenitudes, a monarquia.379
Sem discordar de Machado quanto ao fato de Silva Jardim reproduzir uma lógica
paternalista por trás de seus objetivos, Pereira acredita que o republicano soube perceber a
relevância das “almas simples” no jogo político que se desenhava a partir de então. São
sintomas disso a menção em primeiro lugar de Santos Pereira e Quintino de Lacerda, que
privilegia agentes populares, e a divergência sobre a autoria da canção, cuja a reivindicação
posterior de Silva Jardim representa uma apropriação de tradição negra e popular, o samba, ao
reconhece nela relevância política.380 Talvez possamos interpretar o mesmo sobre o título de
“rei africano” conferido a Pai Felipe por abolicionistas e memorialistas. Fazendo uma
apropriação retórica e preconceituosamente imprecisa de uma tradição afro-brasileira, no limite
essas narrativas reconhecem sua relevância política.
377
MACHADO. Op. cit., 2007, pp. 250-252.
378
Essa versão da canção foi reproduzida em PEREIRA, Op. cit., 2011, pp. 162-164.
379
Idem, pp. 165.
380
Idem.
162
Por mais que as menções tangenciais as iniciativas dos homens de cor reforcem a
hipótese de que a população negra e parda em geral teve uma participação restrita e periférica
nas cerimônias e nas representações feitas pela imprensa, elas nos permitem perceber que
libertos, quilombolas e livres de cor também ocuparam as ruas e os impressos com a intenção
de expressar suas próprias narrativas e memórias sobre o processo de abolição e de proclamação
da República. As celebrações desse setor da população geralmente não eram vistas com bons
olhos pelas autoridades, nem mesmo pelos abolicionistas que se acastelavam nas redações dos
jornais.
Em 1888, por exemplo, a Gazeta de Notícias da Corte denunciava que na frente de seu
escritório “a música do 7º batalhão tocou desde o anoitecer umas músicas que pareciam mesmo
feitas de requebros; ouvindo-as, a gente sentia não sei o que, que lhe dançava cá por dentro, e
era música para se ouvir com as pernas, em vez de se ouvir com os ouvidos”.381 Após descrever
os movimentos de um sujeito “de chapéu de palha e calças brancas dançava como se tivesse
trezentos mil diabos no corpo”, o redator pede pela “abolição da dança obrigatória”,
denunciando à sociedade e autoridades que esses grupos cercavam os transeuntes forçando-os
a participar da brincadeira.382 Esse tipo de celebração criticada pela folha, consistia em grupos
irem se juntando e formando uma roda com instrumentos de percussão. Conhecidas como
batuques, essas práticas ocorriam em várias regiões do país durante a escravidão. Negros,
cativos e libertos, tinham que manter constante negociação com senhores, agentes públicos e
com a própria vizinhança para poderem realizar batuques, festas e outras manifestações
culturais. Nem sempre, o resultado era a favor da cultura negra, seja no ambiente privado das
fazendas, ou nas ruas das cidades.383 Segundo João José Reis, “[d]uas regras básicas de
sobrevivência da religião afro-brasileira nos tempos da repressão eram a aliança com pessoas
mais privilegiadas e a discrição”.384
No caso de Pai Felipe e Quintino de Lacerda não é estranho que os grupos políticos que
representavam, quilombolas e libertos, tiveram a oportunidade de participar dos festejos
principais da cidade, promovidos pela imprensa e pela municipalidade, haja vista seu bom
relacionamento com o setor abolicionista que circulava nesses espaços. Pai Felipe, por exemplo
aos domingos, franqueava o seu “quilombo” aos rapazes e homens conhecidos como
abolicionistas, tratando-os com esmerada cortesia e contando das fazendas coisas do
381
“Abolição”, Gazeta de Notícias, 28 de maio de 1888 apud. MORAES. Op. cit., pp. 326.
382
Idem.
383
Idem. ARAÚJO et al. Op. cit., 2006, pp. 123-152.
384
REIS. Op. cit., 1988, pp. 71.
163
arco da velha, coisas de fazer arrepiar os cabelos. [...] Enquanto ele fazia narrações, a
“sua gente” dançava o samba no terreiro, ao som do “tambaque”, pandeiro e chocalho,
a cuja cadência, mulatinhas ainda novas e crioulos robustos, bamboleavam o corpo,
meneavam as cadeiras, picavam com o pé, fazendo um círculo vagaroso até
encontrarem-se os pares que se esbarravam numa proposital umbigada certeira, cheia,
fazendo o corpo dar meia volta.385
Por mais enviesada que essas narrativas memorialistas possam ser, elas nos dão alguns
vislumbres da centralidade da figura de Pai Felipe não só como uma liderança política
quilombola, mas também como detentor de saberes relacionados à música e à dança que lhes
davam a prerrogativa de coordenar seus pares nas manifestações públicas. Nestas, como as já
citadas e nas festas de irmandades que veremos no capítulo seguinte, as marcas africanas são
visíveis na forma de eleger o rei, que devia ter talento. Essa constituição de lideranças e
articuladores pode ser considerada como um elemento da cultura forjada durante os primórdios
do contato entre europeus e africanos de diferentes origens. Apesar dos primeiros deterem o
monopólio do poder, o material cultural trazido pelos africanos contribuía para a construção
das instituições formadoras da vida social. Com isso, a força simbólica e a capacidade de
arregimentação de um rei ou chefe fizeram as associações étnicas organizadas ao seu redor
fossem adotadas pelos diferentes grupos, em variados lugares.386
Enfim, a ênfase no povo e a crítica à monarquia não implicavam na quebra profunda das
estruturas sociais vigentes no discurso da maioria dos periódicos. Para jornais de
posicionamentos semelhantes ao Diário de Santos, a energia popular, a consciência dos donos
de escravizados, a desagregação dos elementos conservadores e a capitulação das últimas forças
de resistência teriam confluído, mas em plena paz, sem perturbações da ordem. Mesmo assim,
algumas disputas do interior do movimento abolicionista santista são perceptíveis nesse
momento em que o objetivo de sua campanha foi alcançado e é necessário tecer uma narrativa
legítima sobre essa vitória.
Naquele momento, era nítido para os republicanos paulistas que havia uma tendência de
monarquistas e conservadores em se apropriar do movimento enaltecendo a assinatura da lei
pela princesa regente e a decretação pelo Parlamento, num esforço de legitimar os poderes
estabelecidos. Os “vivas” do cônego Luiz Alves e o fragmento de texto jornalístico sem autor
são expressão disso. Por outro lado, temos aqueles como João Risonho que denunciam os vícios
dessas estratégias assimiladoras disfarçadas de festejos emancipadores e comemorativos, e
385
VICTORINO, Carlos. Reminiscências, 1875-1898. São Paulo: Modelo, 1904, pp. 64-67 apud. PEREIRA, Op.
cit., 2011, pp. 97.
386
SOUZA. Op. cit.. 171-173.
164
como estes não eram nem um pouco democráticos. Martins Junior, por sua vez, acha necessário
fazer o lembrete que essa conquista emanou no sentido do povo para os grandes poderes do
Estado, destacando a liderança quilombola local, Quintino de Lacerda. Há ainda aqueles
decididamente republicamos, como Rubim Cézar, Silva Jardim e Oliveira Bello, autor do artigo
“Nova evolução”, que afirma que a libertação de uma raça regenerará um povo, pois no seu
horizonte está “a democracia federalista, do cidadão, da comuna e da província livre, girando
na esfera de seus direitos e interesses peculiares, e subordinados à disciplina cooperativa do
vínculo nacional”.387 A gama de projetos políticos para a liberdade dos cativos era extensa e
heterogênea. Pudemos analisar os projetos que as classes senhoriais e alguns profissionais
liberais idealizam nas páginas da imprensa.
A deixa para seguirmos nossa análise é a aderência e adaptação de tradições populares,
mas correntes na sociedade para persuadir cativos, libertos e a população em geral a favor de
projetos específicos de cidadania e liberdade para a população negra: festejos públicos e
procissões. Nesse ponto, também encontramos uma variedade de formas de se festejar o fim do
cativeiro e os principais interessados - cativos, libertos e negros livres - tinham margem
razoável para tomar a iniciativa em ações e manifestações individuais e coletivas.
Há uma relação direta entre a maior permissividade com essas populações negras e o
contato com as associações civis e as infinitas comissões que davam sustentação aos
movimentos sociais e políticos da época. Até aqui está comprovada as conexões entre diversos
quilombolas, fugitivos e libertos com sujeitos que participavam ativamente dos movimentos
por meio de agremiações autogestionadas, que podiam ter um objetivo específico e finito, como
as emancipacionistas e abolicionistas, ou ter um amplo leque de ações sociais com uma proposta
de longa duração. Passemos nosso enfoque para essas agremiações, seu surgimento e
florescimento em Santos para captar como esses espaços serviram de laboratório para a
(re)elaboração de culturas políticas diversas que se encontravam em meio trânsito intenso de
variados sujeitos históricos.
Desde pelo menos fins dos anos 1850, a vida associativa santista floresceu e se
diversificou em ritmo acelerado. Desde os habitantes de elites até os trabalhadores imigrantes,
387
Diário de Santos, 27 de maio de 1888.
165
388
GITAHY. Op. cit., pp. 42.
389
Idem, pp. 44-47. Segundo a autora o “ano de 1902 viu também a criação de uma associação de mulheres em
Santos: a Associação Feminina Beneficente e Instrutiva dedicou-se à educação das moças, à criação das pré-
escolas para crianças necessitadas e à assistência aos pobres e doentes. A sede da sociedade ficava em uma escola
pública, e desde a fundação da Associação, Eunice Caldas e suas colaboradoras mantiveram a afiliação da mesma
a uma instituição similar em São Paulo. Eunice Caldas, a primeira presidente da sociedade e irmã do famoso
médico e cientista brasileiro Dr. Vital Brasil, era a diretora do Grupo Escolar Cesário Bastos (uma das novas e
mais respeitadas escolas públicas de Santos). [...] A principal atividade da sociedade foi a organização e
manutenção do Liceu Feminino Santista, a primeira escola secundária para mulheres, em Santos. A lista dos
professores do Liceu mostra alguns dos melhores professores da cidade, assim como profissionais e membros da
elite santista, todos trabalhando como voluntários. Note-se que as senhoras da Associação Feminina, pertencentes
a famílias de elite e de ‘classe média’, começavam a dedicar-se à carreira de professoras. De início, a instrução
abriu o caminho par aa esfera pública, a umas poucas mulheres da elite e da ‘classe média’ no começo do século.
Somente nas décadas seguintes a profissão iria expandir-se, abrindo espaço para um número maior de jovens da
‘classe média’ e posteriormente até para mulheres de famílias operárias”, pp. 46-47.
166
acontecimentos políticos nos últimos anos do século XIX390. Entre eles, estava o referido major,
Antonio José Vianna e o tenente Francisco Martins dos Santos (avô do historiador homônimo).
Em um encontro naquele mesmo clube, a comissão abriu uma subscrição para financiar a obra.
Nela, foram acionistas os Barões de Vergueiro e Embaré, Antônio José da Silva Bastos, Júlio
Backenheuser, José André do Sacramento Macuco, Matias Costa e o comerciante Gonzaga. O
teatro foi inaugurado em 1882.391
Por outro lado, alguns grupos de trabalhadores igualmente fundaram suas próprias
associações mutualistas, como a Sociedade Humanitária dos Empregados do Comércio de
Santos, fundada em 1879, para oferecer assistência médica e funerária, além de construir uma
biblioteca e se empenhar na educação de seus sócios. O socialismo e a social-democracia
também tiveram espaço na sociedade santista de fins dos Oitocentos, proporcionando a
fundação de associações e partidos dessas orientações políticas que contavam com
trabalhadores nacionais e imigrantes, homens de cor e expoentes intelectuais da burguesia local.
O primeiro manifesto socialista em Santos é de 1886; o jornal O Socialista apareceu em 1888;
em 1890, os mestres da construção civil fundaram o partido União Operária; em 1892, Benedito
Figueiredo Ramos fundou o Partido Operário; e, em 1895, Silvério Fontes fundou o Centro
Socialista.393 Um ano depois, as três últimas agremiações, “em grande reunião”, se fundiram
para dar vida ao Partido Operário Socialista, cujo primeiro diretório eleito foi composto por
390
Lembro ao leitor que o referido teatro foi construído em frente à Praça dos Andradas, onde vimos ocorrer vários
eventos públicos relevantes no período.
391
Idem, pp. 44. O nome dos integrantes da comissão e dos acionistas são listados na nota 73, na pp. 147.
392
Idem, pp. 45-46.
393
TURCI, Alex Neriz. Para um Estudo da questão do socialismo no Brasil: Os primórdios em Santos através da
publicação de A Questão Social. São Carlos-SP: Tese de Doutorado, UFSCAR, 2007, pp. 90-91.
167
Silvério Fontes, Sóter Araújo, Benedito Ramos e Névio Vianna. Eles tomaram para si o
programa do Partido Democrata-Socialista de São Paulo.394 Assim como a Sociedade
Humanitária, parte dessas associações mantinham funções mutualistas. O Partido Operário
objetivava a criação de “seguros mútuos, associações de ofícios, e cooperativas de crédito e
consumo”. A União Operária oferecia cuidados médicos e educação aos correligionários. O
grêmio se institucionalizou como uma entidade assistencial, contando com recursos da
prefeitura, com uma biblioteca, escola, assistência médica e odontológica para seus
membros.395
Os sujeitos que orbitavam em torno desses órgãos operários e socialistas colaboraram
com as campanhas abolicionistas e republicanas. Como Silvério de Fontes, que tocava a folha
A Evolução, onde propagava ideias sobre o fim do cativeiro e da monarquia. Carlos Escobar,
também do Centro, tinha atuado a favor do abolicionismo em Santos, Mogi-Mirim e São Paulo.
Na capital paulista, participava da atividade clandestina da Confraria de Nossa Senhora dos
Remédios e colaborava na Redempção de Antônio Bento. Paralelamente e no jornal
abolicionista de Henrique Barcelos, em Campinas.396 Não esqueçamos Benedito Figueiredo
Ramos, que esteve entre os membros da comissão de homens de cor que organizou a reunião
em comemoração à proclamação da República, no Teatro Guarani, narrada anteriormente. Além
disso, para enfatizar a circulação desses sujeitos na cultura associativa santista, vale destacar
que Silvério Fontes e Sóter de Araújo, ambos residentes na cidade desde 1881-1882,
trabalhavam como médicos da Santa Casa de Misericórdia, irmandade mais antiga de Santos.397
Entre outras agremiações voltadas especificamente para fins políticos, como o
abolicionismo, estavam a Bohemia Abolicionista, fundada em 1881 e a Sociedade
394
GITAHY. Op. cit., pp. 39.
395
TURCI. Op. cit., pp. 90-91. Este autor ressalta que a grande maioria da massa trabalhadora não foi atingida
pela propaganda e instituições socialistas. “Muitas das várias reuniões que realizavam resumiam-se a debates de
intelectuais, onde os operários ficavam isolados das discussões, com a exceção de uns poucos, não por falta de
interesse, mas sim por não compreenderem a linguagem e os termos usados que, às vezes nem os próprios
debatedores conheciam muito bem. [...] A maioria dos operários não possuía conhecimento algum sobre o
marxismo e os intelectuais ainda não tinham uma precisa concepção do mundo do ponto de vista da teoria de
classes de Marx; muitas vezes misturavam ideias do socialismo utópico, do anarquismo pequeno-burguês e do
marxismo”, pp. 59-60. Por outro lado, na “greve de 1891, a União Operária montou uma comissão para mediar a
situação, porém, a comissão não teve sucesso na obtenção de uma acordo. A União Operária, que não era uma liga
operária com fins revolucionários, era mais moderada, publicou uma carta declarando sua missão cumprida e
deixando claro que nenhum de seus associados havia participado da greve. Cinco anos depois, a União Operária
aproximou-se mais do que poderíamos chamar de socialista, e seu presidente, Serapião Palma, fala do Primeiro de
Maio, como ‘um dia de greve’, pp. 91. GITAHY, Op. cit., pp. 39, também faz algumas ressalvas, especificamente
sobre o Centro Socialista: Através destas páginas [do A Questão Social, folha do órgão], não é fácil detectar as
relações do Centro com as lutas operárias ou outros movimentos locais”.
396
GITAHY. Op. cit., pp. 37-38.
397
Idem, pp. 37. Silvério Fontes se integrou a tradicional família santista Martins dos Santos via matrimônio, por
volta de 1886.
168
Emancipadora 27 de Fevereiro, fundada em 1886. A primeira era uma sociedade que reunia
estudantes, comerciantes, escriturários e outros jovens. Segundo o historiador Martins dos
Santos, os tais bohemios nunca tiveram uma organização regular, às vezes organizando uma
diretoria, outras funcionando sem ela durante meses. Porém, as reuniões eram diárias e
realizadas, ora nos bancos dos jardins, ora no prédio onde funcionou o cine Paramount, na
esquina do antigo Largo do Rosário (atual Praça Rui Barbosa), o qual na época era residência
dos pais de Guilherme e Pedro Melo, membros do grêmio. Ao lado destes e de Wansuít,
integravam a sociedade o poeta Vicente de Carvalho, o advogado Rubim Cézar, Francisco
Bastos, Antonio Augusto Bastos, Antonio Couto, Artur Andrade, Antero Cintra, Luciano Pupo,
Paulo Eduardo, José Vaz Pinto de Melo Júnior, Brasilio Monteiro, Joaquim Montenegro e, mais
uma vez, José André do Sacramento Macuco. Este último escreveu dramas para que os rapazes
da Bohemia Abolicionista apresentassem em espetáculos artísticos e literários, cujo dinheiro
arrecadado era convertido na compra de alforrias. Além disso, parece haver uma conexão com
o Jabaquara, pois Rubim Cézar, orador oficial do grêmio, instava à juventude a exigir a abolição
imediata e a promover fugas sistemáticas para aquele quilombo.398
Por seu turno, a sociedade 27 de Fevereiro recebeu seu nome em referência à lei
municipal promulgada no mesmo dia, em 1886, a qual abolia a escravidão em todo o território
santista. Esse grêmio foi fundado pelo major Pinheiro e junto dele faziam parte da diretoria
Joaquim Fernandes Pacheco e Antonio Augusto Bastos. A inauguração da sociedade teve lugar
no Teatro Guarani, assistida por uma multidão de duas mil pessoas. Segundo, narra o Indicador
Santista:
Em residência do major, no Paquetá, ocorriam reuniões diárias nas quais se discutia com
entusiasmo o problema da Abolição. Eles também se reuniam no sótão de um sobrado do largo
398
SANTOS. Op. cit., 1936, vol. 2, pp. 223-224.
399
Indicador Santista, 1887, pp. 49. Episódio narrado também em SANTOS. Op. cit., 1936, vol. 2, pp. 227.
169
do Carmo (atual Praça Barão do Rio Branco) para combinar fugas de cativos e o seu transporte
para outras províncias e para o estrangeiro.400 Pacheco e Pinheiro estavam também ligados ao
incidente abolicionista de 1886 que vimos no capítulo 1, além de terem participado da fundação
do Jabaquara em 1882:
400
SANTOS. Op. cit., 1936, vol. 2, pp. 227.
401
Idem, pp. 221.
170
BOA CAÇADA
A policia, tendo conhecimento de que na casa n.42 da rua S. Francisco [atual
rua do Comércio] funcionava clandestinamente um Club de pretos na maioria
escravos africanos, que eram dirigidos por um tal Adelino, para lá se dirigio
ante-hontem á noite com grande numero de praças encontrando todos em
plena sessão.
A policia que é muito sem-cerimonia foi logo entrando pelas salas,
interrompendo os trabalhos e deitando a unha tanto no presidente como em
mais de 17 membros e visitantes que ali estavam em atitude reverente,
conduzindo todos para o xadrez.
Entre os presos achava-se o escravo Pedro que ia fazer sua profissão de fé,
filiando-se portanto áquella espécie de Maçonaria.
O Sr. Delegado prossegue no encalço de outros sócios.402
Em informe no dia seguinte, podemos conhecer o nome de alguns dos sócios que foram
presos e o suposto nome do clube:
Foram soltos:
[...] os augustos e digníssimos sócios do Club Mandinga da Fortuna Fermino
José Raphael, José Rodrigues, Egydio Guedes, Rufino Neves, Ignacio Manoel
de Deos, Maria Antonia Neves, Antonia Maria Neves, Fausta Maria Lima,
Anna Maria da Conceição, Manoel Antonio Neves, Francisca de Paula e
Benedicta Lourença de Freitas.403
É muito comum o itálico ser usado em tom de ironia nas publicações da época, de modo
que é difícil saber se aquele era mesmo o nome do clube. Contudo, parece provável que o grupo
praticava atividades religiosas e esta era a razão de sua perseguição, tendo em vista que 24 horas
após a sua soltura outro ajuntamento de praticantes de rituais de matriz africana estava na mira
das autoridades. Em 31 de dezembro, a delegacia notificou o Diário de Santos que recomendou
“ao sr. Comandante do destacamento que faça dispersar os jogadores de búzio que se reúnem
atraz do cemitério dos protestantes”.404 Quando pretos e africanos se juntavam para praticar
suas crenças com influências mais explícitas de suas culturas originais, como calundus e
candomblés, era muito comum serem perseguidos pelas autoridades. Era preciso manter
extrema discrição até mesmo com os vizinhos, que podiam denunciá-los ao menor indício de
estarem realizando tamanhos atos profanos.405 Nesse sentido, esses “clubes” e reuniões
402
Diário de Santos, 29 de dezembro de 1885. Grifos do original.
403
Diário de Santos, 30 de dezembro de 1885. Grifos do original.
404
Diário de Santos, 31 de dezembro de 1885.
405
REIS. Op. cit., 1988, pp. 55-81. SAMPAIO, Gabriela dos R. Juca Rosa. Um Pai de Santo na Corte Imperial.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009, pp. 183-230. Para um caso de repressão a um culto que misturava
elementos indígenas africanos ver: “Processo-Crime de Amélia Rosa de outros documentos”. In: FERRETI,
Mundicarmo. Pajelança no Maranhão no Século XIX. O Processo de Amélia Rosa. São Luís-MA: CMF/Fapema,
2004, pp. 63-190.
171
religiosas podem ser também entendidos como comunidades contingentes, o que faz de sua
existência um ato eminentemente político.
Por outro lado, chama atenção que tais notícias foram publicadas justamente no ano em
que José Rubim Cézar, homem de cor abolicionista, estava na redação do jornal.
Evidentemente, ele não era o único redator, logo não escreveu tudo que foi publicado. Contudo,
é interessante notar duas coisas nas publicações desse ano em que são citados “pretos” e
“negros”: quase sempre eles estão envolvidos em algum acontecimento desqualificante, como
suspeitos de crimes, fraudes, tendo suas reuniões religiosas interrompidas ou mesmo nas
denúncias de Rubim Cézar sobre as prisões abusivas que narramos anteriormente; isso reforça
o que falamos sobre João Macuco antes, sobre alguns homens de cor mais distintos socialmente
enfatizarem essa associação entre os termos “preto”, “negro”, “africano” e tais situações
escusas, enquanto silenciavam sobre a própria cor de modo a se distanciar destes sujeitos,
mesmo que militassem a seu favor em certas ocasiões.406 Segundo Wlamyra Albuquerque, as
“restrições às circulações de africanos demonstram o quanto eles eram suspeitos, ainda que a
sua rebeldia não estivesse mais sendo traduzida em rebeliões”.407
Entretanto, de volta ao tema do associativismo, o fim oficial do cativeiro, em 1888, não
liquidou todas as necessidades da população negra, mas abriu a ela a possibilidade de se
organizar sob condições diferentes daquelas do período da escravidão, com mais margens de
liberdade.408 Essa cultura de articulação política e social era tão essencial para essas pessoas
que, mesmo quando não se reuniam em associações exclusivas, individualmente as pessoas
entravam em agremiações congêneres mais heterogêneas, como parece ser o caso de Santos,
onde acabamos de constatar que alguns negros, pardos e mulatos estavam inseridos tanto em
clubes recreativos e sociedades abolicionistas quanto em irmandades junto de outros grupos
sociorraciais.
Muitas dessas associações nasceram das que existiam vinculadas às confrarias católicas,
ou daquelas que nelas se inspiraram. Essa influência é nítida mesmo em detalhes aparentemente
superficiais, como a estrutura administrativa organizada a partir de uma mesa regedora ou
diretoria. Uma rápida olhada no Indicador Santista permite constatar que elas eram regidas por
um conjunto de cargos eleitos em assembleias gerais dos membros.
406
Diário de Santos, 28 de novembro, 01, 08, 18, 19, 24, 27, 30 e 29 de dezembro de 1885.
407
ALBUQUERQUE. Op. cit., 2009, pp. 60.
408
DOMINGUES, P. “Associativismo Negro”. In: GOMES, F. dos S. SCHWARCZ, L. M. (orgs.). Dicionário da
Escravidão e da Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, pp. 117-124.
172
409
Indicador Santista, 1887, pp. 244.
410
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Compromisso, s/d. Em outubro de 1885, a irmandade do
Rosário dos pretos informava ao público que elegeu para os títulos do reinado: “Capitão do Mastro: o Irmão
Gregorio Lucas. Rei o Irmão Firmino Alves. Rainha: a Irmã Florinda Thereza. Diário de Santos, 13 de outubro de
1885. Para ver a estrutura administrativa de todas as associações conhecidas atuantes em Santos em 1886, ver:
Indicador Santista, 1887, pp. 249-249.
411
SILVA. Op. cit., 2017. Da mesma autora: Op. cit., 2011.
173
culturais, ideológicas, econômicas, etc., que, por sua vez, eram atravessadas pela ideia de raça
negra forjada dentro dos grupos.412
Por sua vez, Marcelo Maccord identificou como os grupos de Maracatus em Recife se
formaram a partir de uma cisão entre os grupos antagônicos no interior da Irmandade de N. S.
do Rosário de Santo Antônio, que disputavam o título de Rei do Congo. Além disso,
demonstrou como as hierarquias das cortes negras das confrarias tinham intersecções com as
hierarquias firmadas entre trabalhadores livres e libertos de diversas categorias profissionais.413
Mais próximo de Santos, membros da Irmandade de São Benedito de Campinas,
fundaram o Colégio São Benedito durante os anos 1890. Entre esta década e os primeiros anos
do século XX, os fundadores do colégio foram deixando de atuar na direção da confraria devido
às interferências do vigário. Assim, desassociaram a direção das duas instituições para manter
sua autonomia. Nas primeiras décadas dos Novecentos, os diretores do colégio também
comemoraram várias datas cívicas importantes para a República, como a Independência, a
Proclamação e a Abolição, organizando desfiles, oferecendo festas e banquetes, tudo bem ao
estilo das celebrações que vimos no item anterior.414
Neste capítulo, buscamos demonstrar ao leitor como um processo de tradução de
gramáticas culturais estava em andamento na segunda metade do século XIX. Esse processo
envolvia tanto as várias formas de agremiação quanto as manifestações públicas e coletivas que
ocorriam com o pretexto de celebrar grandes acontecimentos da nação. Mais uma vez, a
palavra-chave é circulação. Os sujeitos que observamos ao longo do texto estão em trânsito e
por isso circulam junto com suas concepções e estratégias políticas entre vilas, cidades,
instituições e outros espaços. Eles negociam, barganham, cooptam e tentam legitimar ideias,
hierarquias e comportamentos com a intenção de materializar cada qual seus próprios
interesses. No âmago desse processo, paternalismo, racialização, referências culturais de
gerações passadas e as experiências vividas servem de bússola para os agentes em ação. Assim,
de forma relacional, gestavam-se e/ou se impunham identidades políticas variadas que tornam
mais complexa nossas percepções sobre a construção da cidadania em finais do Império e início
da República. Em um período extremamente turbulento, no qual a população negra e parda
estava bastante vulnerável, sujeita a perseguições, desapropriações e ostracismo político, eram
412
SILVA. Op. cit., 2017, pp. 21.
413
MACCORD, M. Op. cit., 2001, especialmente capítulos 3 e 4. Maccord vai mais fundo nas conexões entre os
diferentes tipos de associações das classes trabalhadoras de Recife em seu doutorado: Andaimes, Casacas, Tijolos
e Livros: uma associação de artífices no Recife, 1836-1880. Campinas-SP: Tese de Doutorado, 2009.
414
PEREIRA. Op. cit., 2001, pp. 05-82.
174
os clubes, grêmios e confrarias que ofereciam um espaço para definir as pautas coletivamente
para enfrentar as agruras daqueles tempos.415
De fato, uma das brechas encontradas pelos africanos e seus descendentes, desde o
período colonial, foram as irmandades católicas que serviram de lugar privilegiado para a
tradução e expressão dessas tradições culturais através das festas em devoção aos seus
padroeiros e outras datas comemorativas do calendário católico. Nessas celebrações, africanos,
crioulos, pardos e mulatos aproveitavam para expressar suas próprias representações sobre o
passado e sobre as hierarquias e distinções entre os diferentes grupos étnicos que compunham
essa parcela da população.416
Por isso, agora se mostra oportuno avançarmos para a análise mais detida das confrarias
negras em Santos que tiveram uma presença marcante na vida social, política e religiosa da
cidade durante o final dos oitocentos.
415
GOMES, Flávio dos Santos. Negros e política (1888-1937). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, pp. 80.
416
ARAÚJO [et al.]. Op. cit., pp. 103-122, apresenta as principais questões da historiografia que estudou o tema
das confrarias negras e pardas, assim como um panorama das práticas culturais gestadas nessas agremiações.
175
CAPÍTULO 4
HOMENS DE COR, PRETOS, PARDOS E MULATOS NAS IRMANDADES
DE SANTOS
As irmandades que agremiavam pretos e pardos eram um dos espaços onde os coletivos
podiam se organizar, discutir, negociar e se manifestar publicamente. Longe de serem espaços
monolíticos, as confrarias abrigavam diversas disputas motivadas por razões religiosas e
políticas, relacionadas ao sagrado ou não. Eram lugares onde a hierarquia social era refletida,
mas também relativizada até certo ponto. Se inicialmente eram voltados para a disciplinarização
e padronização dos comportamentos, ao longo do tempo foram apropriadas pelos convertidos
que souberam usá-las a seu favor apesar dos limites que a ordem social colocava.
Por isso mesmo, as irmandades eram um dos pilares da vida social e política de qualquer
vila e cidade, desde o período colonial até, pelo menos, os últimos anos do século XIX. Muitos
movimentos políticos as utilizavam como base de sustentação de forma explícita ou não. Mais
que isso, elas foram o berço de uma série de novas formas de associações civis à medida em
que os poderes eclesiástico e secular tentavam reforçar seu papel de vigilância e controle.
Poderemos constatar esses processos por meio da reconstituição das reuniões e das regras
seguidas pelas Irmandades de São Benedito e de N. S. do Rosário dos Homens Pretos de Santos,
comparando suas trajetórias entre si e com as de outras confrarias de negros e pardos na
província e em outras regiões do Brasil, quando oportuno.
Este quarto capítulo se encerrará com uma prosopografia dos irmãos de São Benedito
de Santos, confraria da qual pudemos localizar o Livro de Irmãos, cujos dados cruzamos com
informações contidas em outras fontes oficiais, como listas de eleitores, maços de população e
na própria historiografia. Veremos que em alguma medida essa comunidade confraternal se
encaixava no quadro demográfico que viemos delineando até aqui com base nos dados sobre
tráfico, alforria e fugas.
O principal objetivo era garantir enterros dignos para todos os seus membros. Porém, as
confrarias se mostraram indispensáveis para o povoamento dos novos territórios, pois eram seus
associados que custeavam a construção dos templos. Assim, o “estabelecimento de novos
povoados e freguesias implicava, quase necessariamente a criação de associações leigas que
davam o verdadeiro suporte da vida religiosa”.417
Eram os fiéis que financiavam e administravam a manutenção dos cultos, bancando as
festividades, as procissões, missas e enterros, assim como todo o aparato material e simbólico
necessário para a execução desses rituais. Em Santos, uma das primeiras povoações criadas em
nosso país pelos portugueses, não seria diferente. Logo que ficou explícito para os exploradores
lusitanos que a área que hoje conhecemos como Centro de Santos era mais vantajosa que São
Vicente para o estabelecimento de um porto, o navegador Brás Cubas não perdeu tempo e em
1543, fundou a primeira irmandade da colônia: a da Santa Casa da Misericórdia.418 As
Misericórdias eram o modelo para as demais confrarias. Porém, diferente destas, sua função era
quase que exclusivamente a caridade. Elas se distinguiam por sua função como hospital. Os
associados eram parte dos quadros mais abastados e prestigiosos da sociedade portuguesa que,
por razões caritativas, faziam doações e financiavam o hospital da irmandade, cujo objetivo era
tratar feridos e doentes desamparados, além dos marinheiros e soldados da coroa.419
Por outro lado, as irmandades de negros demorariam cerca de mais um século até
começarem a ser fundadas na então vila de Santos. A de N. S. do Rosário dos Homens Pretos
foi a mais antiga, erigida entre 1650 e 1652, por cativos oriundos das senzalas da Bahia e do
Rio de Janeiro, além daqueles vindos diretamente da África. Ainda no XVII, a devoção a São
Benedito se iniciou entre os escravizados dos franciscanos na cidade, mas só seria legalizada
como irmandade na segunda metade do XVIII. As demais irmandades negras e pardas de que
se tem notícia foram erigidas durante os Setecentos. Nesse período, outro grupo de pretos
fundou a confraria de N. S. do Terço que, posteriormente, reformulou-se permitindo a entrada
de mestiços e brancos. Também a devoção a N. S. das Neves era cultuada por cativos, que
habitavam a zona continental de Santos, do outro lado do estuário. Os pardos, por sua vez, se
agremiavam em torno das confrarias de N. S. das Mercês e do Amparo.420
417
REGINALDO. Op. cit., pp. 70.
418
CAMPOS, Ernesto de Souza. Santa Casa de Misericordia de Santos: primeiro hospital fundado no Brasil, sua
origem e evolução. São Paulo, SP: Elvino Pocai, 1943.
419
BOSCHI. Op. cit., pp. 13. SCARANO. Op. cit., pp. 27.
420
OLIVEIRA. Op cit., 2017, capítulo 1. GITAHY. Op. cit., pp. 149, nota 88, menciona que existia também a
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pardos e outra de mesma devoção dos homens brancos sob
invocação de N. S. do Rosário Aparecida.
177
Essas confrarias estavam espalhadas pela cidade, o que fazia com que a população
circulasse pelo município com frequência. Anteriormente destacamos que apesar de os bairros
santistas agruparem residentes mais ou menos homogêneos, a segregação espacial não era
absoluta. Havia moradias mais humildes no coração dos Quatro Cantos e muitos trabalhadores
iam e vinham das periferias rurais e dos bairros mais pobres para desempenhar suas tarefas e
ofícios. A disposição das irmandades reforça essa circulação.
FIGURA 7
Localização das Igrejas e Capelas citadas. Legenda: 1 – Capela do Terço, no cais da antiga Alfândega;
2 – 2ª Matriz de Santos, na atual Praça Visconde de Mauá; 3 – Igreja de N. S. do Rosário, na atual Praça
Rui Barbosa; 4 – Igreja de St. Antonio do Valongo, na rua S. Bento; 5 – 3ª Matriz de Santos, na atual
Praça Antonio Telles; 6 – Capela de S. Benedito, em frente ao cemitério do Paquetá. Mapa base:
https://www.google.com.br/maps?hl=pt-BR&tab=ll&authuser=0
FIGURA 8
178
Localização da Capela de N. S. das Neves, no atual Morro de N. S. das Neves. Mapa base:
https://www.google.com.br/maps?hl=pt-BR&tab=ll&authuser=0
Até 1746, com exceção dos irmãos das Neves e de São Benedito, todas mantinham seus
altares na Igreja Matriz, que estava localizada ao lado do antigo hospital da Misericórdia, na
atual Praça Visconde de Mauá, entre os Quatro Cantos e os Quartéis. Nela também estavam
algumas das confrarias de brancos, como a de N. S. Senhora do Rosário Aparecida e do
Santíssimo Sacramento. A nova Matriz seria construída na atual Praça Antônio Teles, no então
bairro dos Quartéis. Enquanto aguardavam o novo templo ser devidamente sacramentada, as
irmandades se mantiveram na Capela de Santa Isabel, do Hospital da Misericórdia. Quando
tudo estava pronto, em 1754, no entanto, os irmãos do Rosário dos Pretos não puderam
transferir seu altar para a nova igreja e mantiveram-se na referida capela.
Isso não os impediu de dar a volta por cima. Dois anos depois, o coronel José Ribeiro
de Andrade doou duas braças e meia de terreno para os Rosários construírem seu próprio
templo. Assim, onde hoje está a Igreja do Rosário, naquele ano deram início aos esforços para
a construção de uma capela. Em 1822, o templo atual já tinha sua forma quase acabada, faltando
apenas a torre. Ele fica na atual Praça Rui Barbosa, que até o período republicano era Largo do
Rosário, muito próximo dos Quatro Cantos, bairro onde estavam concentradas as residências e
negócios dos habitantes mais abastados da cidade, mas que, na segunda metade dos oitocentos
se tornou uma região cada vez mais tomada por cortiços e armazéns, como vimos nos capítulos
anteriores. A igreja também ficava a poucos metros da Praça dos Andradas, onde se deram as
principais turbulências sociais nas últimas décadas do XIX.
Segundo Joyce Farias de Oliveira, ainda no século XVII um pequeno grupo de cativos
iniciou a devoção a São Benedito, numa capela no interior do Convento de Santo Antônio do
179
Valongo. Provavelmente, isso fez parte do esforço de conversão pelos frades franciscanos dos
poucos escravizados que mantinham no convento. Entretanto, o reconhecimento legal da
Irmandade de São Benedito de Santos só ocorreu entre 1750 e 1780. O ano exato é desconhecido
devido a discordâncias e lacunas entre as fontes.421 Em algum momento da década de 1790, por
conta da reconstrução do dito convento em 1798, a confraria se mudou para a Matriz da Praça
Antonio Teles. Lá, os devotos do santo de Palermo ocupavam um dos altares laterais junto com
outros sodalícios, enquanto a Irmandade de N. S. do Rosário Aparecida, dos brancos, ocupava
o altar principal. Eles permaneceram ali instalados até o ano de 1887, quando retornou à igreja
do convento franciscano devido às ameaças de demolição da Matriz vindas do poder público.422
Sobre as demais, pouco se sabe sobre sua fundação, a não ser que foi durante o século
XVIII e se mantiveram na Matriz. Porém, a confraria de N. S. do Terço também conseguiu um
templo próprio, em 1823. A Capela de Jesus, Maria e José também era conhecida como Capela
do Carvalho, pois o sargento-mór Antônio José Carvalho mandou construí-la, estando pronta
em 1791. O prédio hoje inexistente ficava ao lado do porto da Alfândega velha, nos Quatro
Cantos, avançada sobre o mar. Alguns anos mais tarde, o sobrinho dele, coronel José Antônio
Vieira de Carvalho, herdou o templo. Com o falecimento deste, os irmãos do Terço se mudaram
para a capela, que passou a ser conhecida como Capela do Terço.423
Por último, a única delas que nunca esteve na matriz, não se constituiu por uma
congregação, mas sim um grupo de devotos negros que viviam no engenho localizado na parte
continental de Santos, no sítio do Cabraiaquara, na região que fica em frente ao Valongo, do
outro lado do estuário. Neste local, havia sido construída a Capela da Madre de Deus a mando
de Pedro de Góes, colono da primeira fase de assentamentos na região e que ali estabelecera
um engenho. Em algum momento do século XVIII, o templo passou a ser chamado de Capela
de Nossa Senhora das Neves, devido à devoção que uma distinta senhora, Joana Gomes de
421
Um relatório do provedor da irmandade, datado de 1958, determina que sua fundação oficial foi em 1755.
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Relatório de Provedoria de 17 de janeiro de 1958. Por outro lado, em
registro de uma assembleia extraordinária, em 1970, é mencionado um documento que informava a data de
fundação da confraria em 04 de abril de 1780. IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro Ata de Reunião Geral
(Assembelai Geral), nº2 [1918/1991]. Assembleia Extraordinária de 08/03/1970, p. 170. OLIVEIRA. Op. cit., pp.
110, nota 174. Ver também: CAVALLAR, Roseli de Brito; FARIAS, Hercílio Vieira de; SILVA, Maria Cristina
da. A Irmandade de São Benedito de Santos: um século de história. 1859-1959. Santos-SP: Trabalho solicitado
pelo curso de Pós-Graduação em História da Sociedade Visconde de São Leopoldo, 1982, Cap. 3.
422
OLIVEIRA. Op. cit., pp. 101-111. O vínculo entre franciscano e a fundação de irmandades de São Benedito
não é exclusividade de Santos. Em Lisboa, na década de 1580, surgiu a Irmandade de N. S. de Guadalupe e São
Benedito, no Convento de São Francisco. REGINALDO. Op. cit., pp. 47. Igualmente, a fundação da Irmandade
de São Benedito de Taubaté esteve vinculada ao Convento de Santa Clara, residência local dos franciscanos. O
próprio São Benedito em vida fora membro da ordem dos franciscanos. RIBEIRO. Op. cit., pp. 41. Para uma
reconstituição mais detalhada da vida de São Benedito, seu vínculo com os franciscanos e sua hagiografia:
OLIVEIRA. Op. cit., especialmente capítulos 2 e 3.
423
OLIVEIRA. Op. cit., pp. 101-111.
180
Gusmão, nutria pela santa e a ela fez uma promessa, naquele local, antes de se mudar para
Desterro (Florianópolis). Contudo, a devoção permaneceu e de alguma forma continuou sendo
cultuada pelos negros que começaram a chegar na região e habitar o antigo Engenho da Madre
de Deus. A devoção chegou ao fim nas últimas décadas dos Oitocentos, quando a capela foi
destruída por um incêndio e o engenho foi desativado, no ano de 1884.
Como podemos ver, as irmandades de pretos e pardos estiveram posicionadas em locais
próximos ao centro comercial e administrativo, assim como das residências urbanas dos grandes
proprietários. Ao longo do tempo, porém, observa-se que elas foram sendo realocadas em áreas
periféricas, com exceção dos irmãos do Rosário e do Terço que conseguiram templos próprios
na parte mais rica da cidade.
Os que continuaram na Matriz tiveram que se mudar para o novo prédio nos Quartéis,
onde os naturais de Santos, pessoas mais humildes, negros e mestiços costumavam habitar.
Contudo, continuariam próximos de pelo menos um lugar importante para as elites locais: a
Igreja do Convento de N. S. do Carmo, que servia de sede para a Ordem Terceira de N. S. do
Carmo. As ordens terceiras não eram muito diferentes das irmandades em seus objetivos, mas
sua fundação estava via de regra conectada com uma ordem religiosa do clero regular
(carmelitas, franciscanos, etc.) Além disso, no período colonial e, em alguns casos, até meados
do XIX, esse tipo de confraria se utilizava dos Estatutos de Pureza de Sangue para garantir que
negros, mulatos, judeus, cristãos novos e trabalhadores não ingressassem em seus quadros.
No caso dos confrades de São Benedito, vimos que eles estiveram sediados na Igreja do
Convento de Santo Antônio, no Valongo, lar dos franciscanos. Este templo também abrigava a
Ordem Terceira de São Francisco da Penitência. Em outro momento, informamos que o
Valongo era tradicionalmente um bairro de portugueses até meados do século XIX. Esse bairro
era quase uma extensão dos Quatro Cantos, mas também abrigava uma série de lusitanos de
baixa renda que se dedicavam ao pequeno comércio e à pescaria. Nos anos 1790, devido a uma
reforma no templo e no convento, a Irmandade de São Benedito se viu obrigada a mudar para
a Matriz, nos Quartéis, onde ganhou um altar lateral em meio a tantos outros. Quase um século
depois, a confraria retornou à Igreja de Santo Antônio do Valongo para dividir novamente o
espaço com os irmãos terceiros da Penitência. Importante relembrar que nesse novo contexto,
o Valongo agora era uma zona quase inteiramente dedicada à ferrovia, ao porto e suas
atividades. Grande parte dos antigos valonguenses mais abastados migraram para a área em
expansão, onde predominavam chácaras e sítios, ao sul do perímetro urbano. Assim, deram
lugar a uma série de cortiços, armazéns e casas de comissão, além de trabalhadores da ferrovia
181
e do porto que neles vieram habitar e labutar com a intensificação da migração e imigração para
Santos naqueles anos.
Se nos primórdios da colonização as agremiações dos cativos e libertos em irmandades
foi uma iniciativa dos missionários e dos colonizadores, no cotidiano os convertidos se
apropriavam dessas confrarias para seus próprios interesses. Eles precisaram se articular, até
mesmo para garantir o mínimo para seu funcionamento que é um altar em uma igreja ou capela
qualquer. Isso porque os templos eram particulares, ou seja, eram propriedade de um sujeito ou
associação religiosa, portanto, para nele ter altar os devotos de outros oragos que não do
proprietário tinham que colocar em prática uma série de negociações, concessões e
reivindicações. E mesmo após conseguir seu espaço no templo de outrem corriam o risco de ter
que lidar constantemente com a intromissão de fiéis externos ao sodalício.
O espírito de sociabilidade novamente se faz indispensável, desta vez para conquistar e
manter um espaço, um território no qual o coletivo poderia comungar e celebrar. Na sociedade
escravista brasileira havia uma grande preocupação em relação ao potencial subversivo dos
comportamentos dos escravizados e dos libertos, como já comentamos anteriormente. Logo,
suspeitas e medo sempre rondavam a circulação e as aglomerações dos cativos. Entretanto, no
caso santista, vimos que o funcionamento da cidade não permitia que houvesse uma divisão
espacial rigorosa dos locais onde negros e brancos podiam estar. Muitos cativos moravam com
seus senhores nos casarões nos Quatro Cantos ou no Valongo. Outros tantos que eram alugados,
mas moravam nos Quartéis ou na periferia rural, cruzavam o município diariamente para
cumprir suas funções laborais. No caso dos pequenos proprietários, sua vida e trabalho mal se
diferenciava da de seus cativos, sobretudo nas áreas rurais mais afastadas como Bertioga e
Guarujá. E mesmo os habitantes dessas regiões iam semanalmente ao centro do município para
comercializar seus excedentes agrícolas.424
Eventualmente, ganhava corpo a preocupação com as eventuais aglomerações nas
esquinas, nas praças, pelas ruas. O medo de Palmares que rondou o século XVIII, a Revolução
Haitiana que inaugurou o temor do haitianismo no século XIX, a Revolta dos Malês e, não
esqueçamos, a formação de quilombos nas serras paulistas que levaram à expedição contra o
quilombo de Cubatão dos anos 1830, provavelmente pesaram quando foi decidido mover a
Matriz de Santos que abrigava tanto irmandades de negros como de pardos.
Das fronteiras com os Quatro Cantos, a nova sede da paróquia seria transferida para a
vizinhança do quartel onde se abrigavam as forças policiais e militares em serviço na cidade.
424
READ. Op. cit., especialmente capítulo 2.
182
Os templos que serviam de sede para essas confrarias eram ponto de aglomeração para partida
e chegada de procissões e para realização de festas dos padroeiros e das datas religiosas. As
únicas confrarias que conseguiram escapar completamente desse enquadramento foram o
Rosário dos pretos e os irmãos do Terço, uma vez que conseguiram templos próprios nas
proximidades das residências e das casas comerciais mais ricas da cidade.
Por sua vez, a Irmandade de São Benedito conseguiu se manter no Valongo até a última
década do XVIII. Enquanto ela foi composta apenas pelos cativos do convento franciscano, isso
talvez não tenha incomodado os portugueses mais abastados da região até a avalanche de
insurreições desencadeadas pelas revoluções do fim dos Setecentos. Ao se mostrar urgente a
reforma do convento naquela década de 1790, teria a elite residente no bairro, possivelmente
agremiada na Ordem Terceira da Penitência, aproveitado-se disso para expulsar com êxito os
confrades de São Benedito e suas festas de seu bairro? Bem provável. Os devotos do santo de
Palermo tiveram que se sujeitar a dividir a apertada matriz do outeiro de Santa Catarina com
várias outras irmandades de pretos, pardos e brancos. A situação ficou mais delicada quando os
irmãos do Terço se mudaram para a Capela de Jesus, Maria e José no porto contíguo aos Quatro
Cantos, em 1823, tornando a confraria de São Benedito a única irmandade de pretos na matriz.
Talvez por isso vemos tantos ricos senhores brancos, de ascendência lusitana ou não, e pardos
de várias condições sociais circulando na mesa do referido sodalício, como mostraremos a
seguir. Isso provavelmente reflete com quem e quais grupos os irmãos de São Benedito tiveram
que negociar para continuar tendo direito à associação, lazer e alguma margem liberdade
religiosa. Assim, temos maior dimensão da importância dada à construção de uma capela
própria ao que tanto se dedicaram esses confrades na segunda metade do século XIX, como
narremos a seguir.
Por essas razões, muitas confrarias, sobretudo as de pretos e pardos, conseguiram
terrenos e templos por meio de doações, como nos casos dos confrades do Rosário e do Terço.
Nesse sentido, podemos observar que os irmãos de São Benedito pareciam ter preferência em
uma parte diferente da cidade para realizar o sonho de ter uma capela própria. Após longos
anos tendo que dividir a Matriz com tantas confrarias, em 25 de setembro de 1859, a mesa
administrativa recebeu a “oferta do irmão Manoel Lourenço da Rocha de um terreno sito no
lugar denominado Bexiguento, com frente para a Rua das Flores [atual Amador Bueno] e rua
do Cemitério [atual Dr. Cochrane]”425, isto é, onde hoje fica o Paquetá, na época periferia dos
425
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Ata da reunião de mesa em 25 de setembro de 1859, Livro
de atas.
183
No ano seguinte, José André foi eleito mesário da confraria. Assim, nota-se momentos
do procedimento de articulação entre os sujeitos, no qual o procurador em alguns meses
conseguiu a simpatia dos irmãos Macuco, fazendo que ingressassem na confraria em julho e
um mês depois doassem um terreno para a mesma edificar sua capela. Repare, leitor, no fato de
os Macuco já tinham algumas conexões indiretas com os confrades de São Benedito. Uma
Angela Macuco já havia sido juíza em 1861.427 Outros abolicionistas também participaram da
irmandade e de sua mesa anteriormente, como o próprio Pinheiro. Por outro lado, Manoel
Evaristo do Livramento, o juiz de N. S. do Rosário dos Homens Pretos, era também irmão de
São Benedito naquele momento, sendo que cerca de um ano antes, José André foi advogado
426
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Ata da reunião geral em 23 de julho de 1886, Livro de
atas.
427
Idem. Ata da reunião geral em 05 de janeiro de 1861, Livro de atas.
184
daquela confraria numa contenda contra Benjamin Fontana acerca dos limites entre uma
propriedade sua e o terreno da Igreja do Rosário.428 Mesmo não tendo todas as evidências de
que Livramento, Pinheiro ou a juíza Macuco foram a ponte entre Machado e os irmãos Macuco,
é razoável considerarmos que esses indivíduos fazem parte de redes que se interseccionam no
cotidiano santista abrindo possibilidades de ação para os diferentes sujeitos, inclusive os que
costumam ser mais discriminados, como pretos e pardos, escravizados e libertos.
Ademais, de fato, o empreendimento no terreno que Rocha havia doado parece ter
falhado completamente. Mais uma vez, nenhuma menção à capela de Pinheiro. Contudo, é
interessante destacar que o Macuco, isto é, a Vila Macuco era uma região mais ao sul do
Paquetá, muito próxima do cemitério, no qual a confraria possuía um jazigo, assim como as
demais. Considerando que por duas vezes os confrades receberam doações de terrenos na
mesma região da cidade, mais parece que eles estavam mesmo interessados nesse local. Era
interessante para eles ter um ponto de apoio próximo ao local onde era realizado um dos rituais
que compunham os objetivos principais desse tipo de agremiação: o sepultamento.
Tanto em irmandades de negros como de brancos, é perceptível o zelo contínuo com a
garantia do sepultamento decente de seus membros, no qual era indispensável a segurança da
sepultura em lugar sagrado, a certeza da liturgia apropriada presidida por sacerdote e
acompanhamento digno e honrado, se possível pomposo.429
Os falecimentos e as cerimônias correlatas eram anunciados nos jornais, convidando
familiares, amigos, sócios e conhecidos em geral para comparecerem e prestarem seu apoio
espiritual. Podemos tomar como exemplo dessas ocasiões o próprio enterro de Quintino de
Lacerda, falecido em 10 de agosto de 1898 por conta de um “ataque violento”, um infarto. O
cortejo fúnebre que acompanhou seu corpo no dia seguinte contou não apenas com o
acompanhamento dos confrades de São Benedito em peso, como de uma grande multidão na
qual estavam pessoas de diferentes estratos da sociedade. O jornal Tribuna do Povo estimou
que cerca de 2 mil pessoas participaram da procissão e assistiram ao sepultamento,
demonstrando sua estima por um homem que dedicou “sua existência afanosa e útil em prol de
todas as causas justas liberais e humanitárias”. Por sua vez, o Diário de Santos, avaliou que
“mais de 800 pessoas” compareceram, assim como as instituições mandaram representantes.
428
Idem. Livro de Irmãos, pp. 04. Livramento também comparece à uma reunião dos irmãos de São Benedito, vide
Ata da reunião de eleição geral para se proceder a Eleição da nova meza que tera de funcionar de 1887 á 1888.
Livro de Atas. Sobre sua atuação na Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos ver FRANCO. Op. cit.,
pp. 35-45.
429
REIS. Op. cit., 1991, especialmente, Capítulos 3 a 8.
185
Além dos confrades que lideravam o cortejo, também a Câmara Municipal esteve presente nas
pessoas do intendente municipal e três vereadores. O Corpo de Bombeiros prestou todas as
honras fúnebres. A Escola do Povo de São Vicente e as repartições municipais hastearam as
bandeiras a meia haste. Uma série de cidadãos ilustres fizeram discursos, entre os quais destaco
alguns nomes que já apareceram nesta dissertação: Galeão Carvalhal, Heitor Peixoto e Isidoro
de Campos, todos homens versados no direito e/ou na imprensa santista. Além disso, o Partido
Federal Republicano e Américo de Campos deixaram coroas de flores à sepultura do herói da
Abolição.430
De forma muito semelhante aos préstitos cívicos dos festejos pela Abolição, o cortejo
percorreu a cidade, passando por vários lugares célebres. Seu corpo saiu de sua casa no
Jabaquara acompanhado pelos bombeiros e envolto no pavilhão nacional, às três horas da tarde.
Ele foi levado em um bonde especial que o transportou até a igreja Matriz, no bairro dos
Quartéis. Uma vez lá, o defunto aguardou até as cinco horas, quando o cortejo fúnebre saiu do
local para serpentear pelas ruas da cidade. Segundo apuração de Pereira,
Nesses cortejos tudo simbolizava de alguma forma o prestígio social e/ou o poder
aquisitivo do falecido, ou de sua família. A quantidade de padres, se as pessoas iam a pé ou de
carroças, as cores usadas para cobrir o defunto, eram elementos que expressavam reflexos de
uma divisão social que adentrava ao universo das devoções religiosas. Nesse sentido, é
produtivo comparar Lacerda e os Macuco. Em 1885, José André informava aos santistas que
sua mãe havia falecido e que seria sepultada no jazigo da Ordem Terceira de N. S. do Carmo e
seu corpo seria velado no templo da mesma.432 Já mencionamos antes que as ordens terceiras
430
PEREIRA. Op. cit., 2011, p. 21-24, narra a morte e sepultamento de Lacerda com base em Atas da Câmara
Municipal de Santos, 11 de agosto de 1898. FAMS. Fundo Câmara Municipal de Santos; Inventário de Quintino
de Lacerda. Coleção Costa e Silva Sobrinho, volume 14, FAMS; A Tribuna do Povo, 12 de agosto de 1898.
Coleção Costa e Silva Sobrinho, vol. 14, p. 38. FAMS; Diário de Santos, 12 de agosto de 1898. Coleção Costa e
Silva Sobrinho, vol. 14. FAMS.
431
Idem. Na documentação da Irmandade, encontramos a confirmação de que o sergipano foi de fato enterrado no
jazigo de São Benedito, no Paquetá, vide. IRMANDADE DE SÃO BENEDITO, Livro de Irmãos, pp. 60.
432
Diário de Santos, 10 de novembro de 1885.
186
eram bem mais seletivas quanto aos seus membros e ofereciam um distintivo social mais
prestigioso. Nessa diferença entre as escolhas das duas famílias, apesar de ambas serem “de
cor” e confrades de São Benedito, podemos notar a existência de diferenciações e de tensões
com base na cor e na condição social dos irmãos.
Ora, a construção de uma identidade parda no período colonial esteve intimamente
ligada às confrarias católicas, como demonstrou Larissa Vianna. Tratava-se de uma estratégia
de se diferenciar dos mulatos, pretos e africanos inaugurando uma noção de mestiçagem que
não se atrelasse ao estigma da bastardia inerente ao termo “mulato”, ao mesmo tempo em que
afirmava uma identidade colonial que os distinguia dos africanos. Conforme eram negados nas
confrarias de brancos e negligenciados nas irmandades de pretos, ou seja, ao passo que seus
interesses divergiam daqueles de outros grupos sociais, os que viriam se autodenominar pardos
forjavam uma identidade própria atrelada à origem, à linhagem, à raça, à religião e à condição
social. Assim, desde o século XVII os pardos começaram a fundar suas próprias irmandades.
No caso santista, vimos que havia a irmandade de N. S. do Amparo e de N. S. das Mercês que
agregavam essas pessoas.433
Apesar de não termos confirmação de que os Macuco estivessem nessas duas confrarias
marianas, chama atenção que havia certa rivalidade entre os sodalícios dos pardos e dos pretos
santistas. Em primeiro lugar, sabemos que os confrades do Amparo e das Mercês não aceitavam
escravizados em seus quadros, nem em suas campas.434 Em segundo, no ano de 1887,
ironicamente, os irmãos do Amparo solicitaram aos pretos do Rosário que compartilhassem seu
jazigo, contudo, o juiz interino Guilherme Elias Aralhes foi categórico em negar o pedido.435
No interior de São Paulo, entre 1807 e 1820, podemos assistir uma cena de certo modo inversa,
mas semelhante, quando os irmãos pardos da Boa Morte de Taubaté procuraram autorização
real para enterrar seus mortos no corredor lateral no interior da Igreja Matriz, onde apenas os
súditos brancos e membros das ordens terceiras conseguiam sepultura. Esses confrades pardos
tentavam se distanciar dos pretos que eram enterrados na Igreja do Rosário.436
De volta a Santos, as confrarias do Rosário dos Pretos, de São Benedito e de N. S.
Senhora do Terço eram as únicas que aceitavam cativos e, de fato, pareciam ter uma
convivência mais íntima entre si do que com os demais sodalícios. Assim, no Livro de Atas da
Irmandade de São Benedito, encontramos mais de uma vez, troca de convites entre essas
433
VIANA. Op. cit., especialmente capítulos 1 e 2.
434
READ. Op. cit., pp. 249.
435
FRANCO. Op. cit., pp. 41. Trata-se do mesmo Guilherme Aralhes que integrou a comissão que organizou a
reunião dos homens de cor no Teatro Guarani, em 1889.
436
RIBEIRO. Op. cit., 2014, pp. 115-120.
187
confrarias para participarem das cerimônias públicas umas das outras, assim como a presença
de algumas pessoas em ambas as irmandades. Além do já citado irmão Livramento, Antonio
Eugênio Wansuít fez parte de consecutivas mesas administrativas do Rosário ao longo dos anos
1880 e 1890 e ingressou na irmandade do santo de Palermo em 1902.437 Além do mais, José
André, que também estava nesta última a partir de 1886, foi escrivão de N. S. do Terço no
mesmo ano438 e, como dissemos, em 1884, serviu como advogado dos pretos do Rosário num
litígio contra Benjamin Fontana a respeito dos limites entre um prédio deste e o templo do
Rosário.
Podemos nos perguntar, então, como poderia haver rivalidade se o próprio Macuco,
homem pardo, estava nas confrarias de pretos? Ora, a identidade prevalecente em uma devoção
não significava exclusividade. Existiam interesses políticos, econômicos e religiosos que
podiam levar os brancos e pardos às irmandades de pretos, que costumavam aceitar toda a
qualidade de pessoas da sociedade brasileira. Contudo, apesar de muitas vezes senhor e cativo
participarem da mesma confraria, relativizando a hierarquia social da escravidão no interior
desses espaços específicos, senhores tentavam de alguma forma explicitar sua distinção social,
inclusive quando conviviam constantemente e por mais semelhantes que fossem seus modos de
vida. Esse é o caso de Ignes Angélica dos Anjos, em 1826, e Francisco Machado, em 1819,
ambos irmãos do Rosário dos pretos de Taubaté, junto de alguns de seus cativos, mas que, ao
morrer, solicitavam em testamento serem sepultados no cemitério da Ordem de São
Francisco.439
Essas agremiações carregavam significados simbólicos muito valorizados por seus
membros. Basicamente, representavam um espaço de mediação entre o divino e o terreno. Os
oragos que recebem as devoções dos confrades o fazem como parte de uma relação de troca.
Enquanto os irmãos se reúnem ritualmente para lhes oferecer homenagens pomposas e públicas,
ou mesmo oferendas individuais, os santos retribuem os bons devotos não só com uma
passagem tranquila para o paraíso, mas também lhes dedicam proteção contra as agruras da
vida.440 A escolha dos santos por uma pessoa ou comunidade confraternal, pode ter a ver com
o compartilhamento entre ambos de características físicas ou de sofrimentos passados durante
a vida.
437
FRANCO. Op. cit., pp. 35-60. O mesmo Wansuít da Boehmia Abolicionista e da reunião dos homens de cor
no Teatro Guarani.
438
Indicador Santista, 1887, pp. 248.
439
RIBEIRO. Op. cit., 2014, pp. 132.
440
REIS. Op. cit., 1991, pp. 59.
188
De outra perspectiva, por mais que alguns santos tenham sido selecionados por
eclesiásticos para serem adorados por grupos negros, vê-se aí um grande esforço na produção
de hagiografias e imagens para consolidar símbolos que remetam a uma identidade da
comunidade negra com o orago. Os santos negros como Elesbão, Ifigênia, São Benedito e Santo
Antônio de Catageró são exemplos desse esforço, uma vez que são santos de origem africana.
Os dois primeiros eram aristocratas cuja imagem foi mobilizada pelos carmelitas para
comprovar que na África a cristandade também era antiga e tão comprometida quanto na
Europa. Os dois últimos, cuja hagiografia coube aos franciscanos, foram escravizados em vida
e representavam a possibilidade de até os mais baixos na hierarquia social conseguirem alcançar
uma vida cristã exemplar, a ponto de ser neles reconhecida a santidade. Por outro lado, há
devoções negras de santos brancos que mesmo não compartilhando nem características físicas,
nem os sofrimentos da vida com seus fiéis, representavam uma possibilidade de construir uma
identidade própria, como é o caso das devoções marianas escolhidas pelos pardos ainda no
século XVII.441
Tratava-se de uma concepção teológica que imaginava a cristandade como um único
povo no qual todos eram iguais na possibilidade de alcançar a graça e a santidade, mas cada um
tinha um papel específico nessa ordem. Dessa forma, as devoções funcionavam também como
cartilha de comportamentos adequados para os diferentes grupos de cristãos e suas respectivas
funções na ordem divina. Por isso mesmo, a produção de imagens estava intimamente ligada
ao objetivo de catequização de negros, inclusive a de São Benedito. Oliveira reconstituiu o
contexto iconográfico das várias versões das imagens desse orago entre o século XVII e XIX,
demonstrando como essa produção dialogava com tendências portuguesas, espanholas e
italianas em meio às transformações estilísticas entre o barroco e o neoclassicismo. A autora
elucida que
441
Sobre as imagens dos santos negros e suas respectivas hagiografias ver OLVEIRA. Op. cit., especialmente
capítulos 2 e 3. Sobre as devoções de pardos ver VIANA. Op. cit., capítulo 2.
189
Apesar das variações das apropriações da imagem desse santo, manteve-se um contorno
único: o de um “santo servo” no plano celestial. Benedito representava um “negro manso”,
humilde porque era obediente. A maioria dessas representações eram inspiradas na obra do Frei
Apolinário da Conceição, a qual canalizou um grande repertório das hagiografias e comédias
que o antecederam no tema. Com isso, consolidou um arcabouço para apresentar e utilizar São
Benedito como uma indiscutível ferramenta de conversão e catequese de negros. A cor foi o
maior artifício de assimilação. Conceição definia que a cor de Benedito era um “acidente”, ou
seja, tratava-se de um defeito que poderia ser tolerado diante de sua elevada espiritualidade e
seu exemplo de devoção e entrega ao amor de Jesus Cristo. Todavia, a cor preta não deixava de
ser conotada como algo degenerativo. 443
Esse tênue equilíbrio entre a manutenção do caráter subordinado e da afirmação de uma
potencial santidade dos negros é perceptível no modelo de São Benedito carregando o Menino
Jesus, do qual a imagem da irmandade santista dessa devoção é uma variação. São
pouquíssimos os santos que carregam o nazareno infante, mesmo entre os de cor branca, sendo
Benedito o único negro que é representado assim. Em Portugal e no Brasil, foi a partir de 1750
que começou a ser predominante a imagem do orago carregando o Menino Jesus sobre um
tecido branco. Tratava-se de um modelo italiano que foi recuperado para sancionar uma
catequese mais didática e direcionada. No Brasil, esse modelo se tornou unânime ao longo do
século XIX. Diferente das representações de Santo Antonio, São Cristóvão e Santa Rosa de
Lima, oragos brancos que igualmente carregam o menino divino, São Benedito nunca tocava a
pele da criança, havendo sempre um pano entre eles. Para Oliveira, isso atesta que sua negritude
não é esquecida, muito menos o que ela representava, por mais que esse modelo iconográfico
simbolizasse a conquista da essência da vida cristã de corpo e alma de Benedito. O curioso,
porém, é que a imagem da irmandade santista apresenta o santo preto encostando sua mão no
braço do bebê Jesus, sem o intermédio de tecido algum, o que categorizaria uma subversão sutil
da linguagem visual das hierarquias sociorraciais predominantes na cristandade católica e
latina.444
442
OLIVEIRA. Op. cit., pp. 227.
443
Idem, pp. 227-229.
444
Idem, pp. 230-245.
190
FIGURA 9
São Benedito. Escultura de madeira policromada (120x64cm). Século XIX. Igreja de São
Benedito/Santos-SP. Fonte: Foto de Joyce Farias de Oliveira. Reproduzida em OLIVEIRA, J. F. de. “Niger, sed
formosus”: A Construção da imagem de São Benedito. Guarulhos-SP: Dissertação de Mestrado, UNIFESP,
2017, pp. 17.
Assim, mesmo não sabendo quem de fato confeccionou tal imagem, se branco ou se
negro, nem se essa variação no detalhe da mão foi explicitamente encomendada pelos confrades
santistas ou arbitrariedade do artista, mais uma vez se observa a versatilidade com que
significados tanto de dominação como de insurgência podiam ser difundidos em meio a um
processo de tradução de tendências artísticas e culturas políticas variadas, em contato na mesma
medida em que os sujeitos circulavam no espaço.
É oportuno lembrar que Wlamyra Albuquerque identificou um pequeno circuito de
comércio internacional de artigos religiosos do qual participavam alguns africanos, cubanos,
brasileiros e alguns homens e mulheres da Europa, livres e libertos. Segundo a autora, a fluidez
desse trânsito instituía parcerias e vínculos entre comerciantes e comunidades religiosas do Rio
de Janeiro, Salvador e Lagos, de modo que importantes figuras religiosas tiveram lucros com
as trocas de produtos africanos e com o intercâmbio de experiências culturais proporcionado
por esse trânsito. Tal circuito alimentava de fiéis e objetos sagrados as tradicionais casas de
candomblé nas referidas cidades, de maneira que proporcionou que a ideia de pertencimento e
191
continuidade entre a Bahia e o povo iorubano fosse um mecanismo importante para lhes garantir
distinção dentro da comunidade afro-brasileira.445
Nesse sentido, podemos especular a formação de um circuito afro-luso-brasileiro ao
considerarmos os trâmites comerciais que envolveram a aquisição da imagem de São Benedito
pela irmandade desta devoção em Santos que ligava Brasil e Portugal. Oliveira constatou que a
imagem foi encomendada diretamente da antiga metrópole nos anos 1850, provavelmente
graças à contribuição dos ricos comerciantes João Octavio do Santos, mestiço, e Joaquim
Xavier Pinheiro, branco, já confrades do sodalício naqueles anos. Ambos de ascendência
lusitana. Eles não eram os únicos, como veremos.446
Lisboa e a região norte de Portugal, sobretudo a cidade do Porto, eram os principais
polos que concentravam oficinas e artesãos independentes que se dedicavam à confecção de
esculturas e ícones religiosos. Era muito provável que um número substancial desses artesãos
fosse de escravizados e libertos, haja vista que estes eram uma presença marcante nas cidades
e vilas mais importantes do reino português.447 Até pelo menos a proibição de 1761, Setúbal,
Porto e muitas outras cidades portuárias na região do Algarve receberam grande número de
cativos africanos. Nos séculos XV e XVI, a maioria deles vinha das regiões entre os atuais
Senegal e Guiné-Bissau, mas boa parte aparece na documentação como oriundo de Cabo Verde,
entreposto onde mercadorias e viventes da África Ocidental eram mantidos por um período
mais ou menos longo. A presença de Centro-Africanos começou a crescer a partir do final dos
Quinhentos e no século seguinte passaram a constituir o maior contingente de escravos
introduzidos em Portugal. Vale mencionar que em Porto e Lisboa existiam irmandades de
negros dedicadas à São Benedito e à N. S. do Rosário, entre outras, desde o século XVI,
podendo a devoção informal a esses oragos ser anterior.448
445
ALBUQUERQUE. Op. cit., 2009, pp. 56-58.
446
OLIVEIRA. Op. cit., capítulo 4.
447
“Em Lisboa, os escravos eram responsáveis por variadas tarefas: eram criados, cozinheiros, ferreiros,
serralheiros, alfaiates, aguadeiros, caiadores e marítimos; entre as mulheres destacavam-se as vendedoras
ambulantes de tremoços, mexilhões, favas, bolos e outras iguarias, além das lavadeiras, trapeiras, aguadeiras e
calhandreiras, entre inúmeras outras atividades”. REGINALDO. Op. cit., pp. 46. Segundo Sauders, nos séculos
XV e XVI, escravos e libertos africanos podiam ser encontrados na agricultura, em oficinas de artesãos, vendendo
comida nas ruas, carregando água dos chafarizes, lavando roupa nos rios, carregando dejetos e mercadorias trazidas
pelos navios. SAUDERS, A. C. de C. M. História Social dos escravos e libertos negros em Portugal (1441-1555).
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982. Apud SOUZA. Op. cit., pp. 160.
448
REGINALDO. Op. cit., pp. 47-57. Sobre negros, cativos e libertos em Portugal: BRÁSIO, Antonio. Os Pretos
em Portugal. Lisboa, Agência Geral das Colônias, 1944. LAHON. O negro no coração do Império. Uma memória
a resgatar – Século XV-XIX. Lisboa: Secretariado Coordenador dos Programas Multiculturais – Ministério da
Educação, 1999. SAUDERS. Op. cit. TINHORÃO, José Ramos. Os Negros em Portugal. Uma presença
silenciosa. Lisboa, Editorial Caminho, 1997.
192
Essa produção de imagens chegava à Província de São Paulo pelo Porto de Santos e seu
principal destino eram as lojas de artigos variados das ruas do Rosário e de São Bento, no centro
da capital. A maioria dos vendedores nesses endereços comercializavam diversos artigos
importados, especialmente vindos de Portugal e da França. Esses produtos, inclusive as
imagens, vindos do litoral e passando pela capital, podiam chegar até o interior da província,
como é o caso do conjunto de esculturas religiosas produzidas em Lisboa adquiridas pelo Sr.
Bento Manoel de Barros, o Barão de Campinas, entre 1867 e 1868.449 Oliveira também
menciona as viagens do comerciante paulistano Monteiro Salgado, registradas em diversas
relações de passageiros de paquetes que atracavam em Santos. Ele percorria rotas internacionais
e nacionais para tratar de negócios relacionados ao comércio de variadas mercadorias, desde
gêneros alimentícios e bebidas até imagens religiosas e artigos de armarinho. Para manter os
negócios em dia, Salgado frequentemente circulava entre Santos, São Paulo, Rio de Janeiro, no
Brasil, e Porto, em Portugal.450
Por isso, devemos entender a participação de brancos e pardos em irmandades negras e
vice-versa como uma atitude com múltiplos significados que pode ir desde a simples devoção
ao santo até a perseguição de interesses econômicos ou políticos (de negociação com aquela
comunidade). Por mais que possamos abstrair as diferenças entre motivações políticas,
econômicas e sociais, na vida confraternal dessas pessoas, essas coisas estavam intimamente
conectadas.
De volta aos sepultamentos e às cerimônias fúnebres, possivelmente toda a pompa
despendida servia mais aos vivos que aos mortos, como uma forma de se despedir dos entes
queridos e/ou manifestar ante a sociedade o poder e prestígio do defunto e sua família. Nessa
dinâmica das confrarias, encontra-se um equilíbrio entre a religiosidade e a economia, de modo
que são indissociáveis na prática social. Toda uma série de serviços e mercadorias são
contratados, comprados, vendidos e/ou alugados com fins religiosos. Um equilíbrio que,
quando quebrado, pode gerar a revolta violenta daqueles que o mantém, como foi o caso da
Cemiterada em Salvador, em 1836.451
As próprias irmandades e ordens terceiras cobravam mensalidades ou anuais cujo
principal fim era financiar os enterros. A Irmandade de São Benedito de Santos, por exemplo,
tinha diferentes modalidades de ingresso e filiação que resultavam em categorias distintas de
irmãos, de acordo com o Compromisso sem data encontrado em seu acervo particular,
449
OLIVEIRA. Op. cit., pp. 263-265.
450
Idem, pp. 269-272.
451
REIS. Op. cit., 1991, especialmente capítulo 9.
193
possivelmente escrito entre 1887 e 1908.452 Se admitido, o novo confrade era inserido no
respectivo registro, pagando a taxa de admissão referente à sua classe, e então seria emitido um
diploma pelo qual deveria ser pago três mil réis. A irmandade era composta por três classes de
irmãos, segundo disposto no Capítulo IIº do respectivo Compromisso:
Entretanto, o fino equilíbrio entre religião, política e economia fica mais palpável na
correspondência entre a Irmandade de N. S. do Rosário Aparecida, o pároco Francisco
Gonçalvez Barrozo e o bispo de São Paulo. Em 23 de setembro de 1886, a mesa administrativa
da dita confraria enviou uma representação ao bispo D. Lino Deodato Rodrigues de Carvalho.
A imagem de N. S. do Rosário Aparecida ocupava o altar principal da Matriz e era conhecida
por agregar pessoas brancas. No documento, os irmãos se queixam de “o quanto tem ella [a
mesa] sido victima de caprichos inconfessáveis, que a inhabilitão de lesa marcha, trazendo
desgosto e má vontade por parte dos Irmãos, em querer aceitar cargos nas Mezas”.454
Os caprichos inconfessáveis eram de autoria de alguns padres que abusavam de suas
autoridades. Em primeiro lugar o antigo pároco, Scipião Ferreira Goulart Junqueira, desde sua
chegada à paróquia, usava o consistório e as alfaias emprestados da referida irmandade. Por
conta disso, os irmãos perderam o controle sobre seus bens que estavam lá guardados,
eventualmente precisando guardar livros e outros objetos nas suas próprias casas. Isso não foi
o suficiente para garantir a segurança dos objetos, pois um deles ainda assim fora roubado: o
452
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Compromisso, s/d, informa que naquele momento a sede
da confraria era a Igreja de Santo Antonio, no Convento do Valongo.
453
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Compromisso da Irmandade de São Benedito em Santos, s/d. Para
comparar esses preços com aqueles cobrados por aluguéis de imóveis, diárias de hotéis, refeições, entretenimento
e fornecimento de água ver notas 96 e 214 da presente dissertação.
454
22 de setembro de 1886. Sessão extraordinária da Mesa da Irmandade de Nossa Senhora do Rozario
Apparecida, Padroeira da Cidade de Santos, aos 26 de Setembro de 1886. Pasta I de documentos avulsos da
Paróquia de Santos. Arquivo da Arquidiocese de São Paulo.
194
rosário de ouro da imagem da padroeira, item que estava supostamente sob os cuidados do
pároco.
Não está claro quando houve a troca de párocos, mas mesmo com a mudança, os
problemas continuaram. Fica subentendido que o novo pároco continuou fazendo uso do
consistório da irmandade. Além disso, o que havia servido de estopim para a elaboração da
representação foi um desentendimento com o padre Francisco Gonçalvez Barrozo, que àquele
momento paroquiava interinamente a freguesia de Santos. Segundo narra a representação, em
29 de agosto do mesmo ano, os irmãos do Rosário Aparecida decidiram realizar sua festa no
dia da padroeira, em 05 de outubro. Logo em seguida, o procurador foi tratar de contratar os
serviços necessários para a cerimônia, começando pelo responsável por ministrar os rituais
espirituais. Ao encontrar o padre Barrozo no exercício de pároco, o irmão primeiro se espantou
com o preço cobrado: “quantia à maior do que determina a tabela de emolumento, quinze mil e
tantos réis, [...], em desrespeito à tabela referendada por Vossa Excellencia”.455
Na sequência, o sacerdote quis saber quem iria armar a Igreja para as solenidades. Ele
não ficou feliz em saber que seria a firma Satyro d’Azevedo & Companhia. Barrozo “tinha
ordenado Vigario Souza oliveira, de não consentir que Satyro ou seos empregados armassem a
igreja, alegando como razão para isso, muitas futilidades. [...] [E] ‘que não consentia, não só
n’essa igreja, como nas outras que estivessem debaixo da estola, e se a Irmandade fizesse
questão de capricho, era a mesma cousa’”.456 Após ouvirem esse relato do procurador, os irmãos
da mesa decidiram não mais realizar sua festa, nem a próxima eleição, em protesto. Além disso,
enviaram a representação, na esperança que o bispo intercedesse a seu favor. Todos os membros
da mesa assinaram, inclusive o mesário Satyro Alves de Azevedo.
O bispo, contudo, demorou para fazer alguma coisa. Somente em 18 de novembro
remeteu ofício com cópia da representação ao padre Barrozo, para que este desse sua versão
dos fatos. O sacerdote não poupou palavras para descredibilizar Azevedo e a própria Irmandade
de N. S. do Rosário Aparecida. Chegou inclusive a afirmar que a maioria dos santistas não tinha
respeito pela religião e seus ministros, respeitando apenas ao dinheiro. Ele começa com uma
breve biografia de Satyro, contando que em 1874 ele era apenas um desocupado que vendia
miniaturas de capelas e igrejas feitas de papelão. Pouco tempo depois, ele parece ter começado
a fazer escrituras para casas comerciais a preços módicos. Um dia, pediu trabalho no armarinho
455
Idem.
456
Idem.
195
de Pacífico Frederico Freire457, que o aceitou. Após isso, Freire começou a ter problemas nos
negócios, enquanto Satyro conseguia montar seu próprio armarinho e se tornava rapidamente o
melhor empresário do ramo na cidade.458 Desde pelo menos 1880, Azevedo teria uma renda de
3 contos e 600 mil réis e era considerado oficialmente como proprietário, conforme registrado
na lista eleitoral do mesmo ano.459
Segundo um anúncio no Diário de Santos, em 1883, a Satyro de Azevedo & C. estava
localizada na rua Visconde do Rio Branco, n. 6, praticamente do lado da Matriz, nos Quartéis.
Naquele ano, sua loja vendia “grande e variado sortimento” de móveis, decorações, fantasias,
brinquedos, roupas de banho, tecidos, além de “encarregar-se de funeraes e festas, collocação
de vidros, etc.”.460 Um ramo de negócios muito semelhante ao do paulistano Manoel Salgado
a pouco comentado. Barrozo explica que o sucesso empreendedor de Satyro foi resultado de
uma estratégia que já era utilizada por seu ex-patrão. Ele entrou “em todas as ordens 3ªs e
Irmandades, para incumbir-se das nomeações das respectivas Igrejas”461, o que pudemos
constatar parcialmente em outros documentos. O Livro de Irmãos da Irmandade de São
Benedito informa que Azevedo ingressou ali em dezembro de 1879. Mais que isso, as atas das
reuniões confirmam que ele ocupou os cargos de escrivão (1882-1884), procurador (1884-
1886) e mesário (1886-1887).462 Por sua vez, o almanaque Indicador Santista, de 1887, registra
que, no último ano ele também havia ocupado os cargos de mesário na Irmandade de Nossa
Senhora do Terço e da Irmandade do Santíssimo Sacramento e de tesoureiro na Ordem Terceira
de N. S. do Carmo. O almanaque ainda registra que Azevedo era proprietário de um cortiço na
Rua do Rosário, n. 8.463
Segundo a carta do sacerdote, as irmandades e ordens terceiras eram dependentes dos
serviços dos armadores para a realização de suas festas e demais solenidades religiosas. Assim,
era vantajoso para os donos de armarinhos ingressarem nessas agremiações a fim de garantir
um tipo de público cativo. Em outras palavras, entrando nas confrarias e ganhando o respeito
dos confrades a ponto de serem eleitos para cargos da mesa, esses comerciantes conseguiam
457
Trata-se do irmão mais velho do delegado Guilherme L. Freire. Pacífico também foi escrivão da Irmandade de
São Benedito de Santos por cerca de dez anos consecutivos entre as décadas de 1860 e 1880.
458
22 de novembro de 1886. Carta do Padre Francisco Gonçalves Barroso ao Bispo de São Paulo. Pasta I de
documentos avulsos da Paróquia de Santos. Arquivo da Arquidiocese de São Paulo.
459
Arquivo do Estado de São Paulo (Apesp), Secretaria da Presidência da Província de São Paulo, Negócios
eleitorais, Ordem CO5904, Caixa 216.
460
Diário de Santos, 03 de novembro de 1883.
461
22 de novembro de 1886. Carta do Padre Francisco Gonçalves Barroso ao Bispo de São Paulo. Pasta I de
documentos avulsos da Paróquia de Santos. Arquivo da Arquidiocese de São Paulo.
462
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Irmãos.
463
Indicador Santista, 1887. Disponível em https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
196
certo monopólio na prestação desses serviços – talvez por isso mesmo, temos tantos
comerciantes entre os quadros administrativos da Irmandade de São Benedito, como veremos
adiante. Por conta disso, na visão do padre Barrozo, armadores e vigários viviam em pé de
guerra, quando os últimos não se vendiam aos primeiros. A antipatia de Azevedo contra Barrozo
e o pároco titular era resultado de uma situação assim. Para que os dois sacerdotes não
atrapalhassem seus negócios, o leigo tentou de várias maneiras burlar sua vigilância ou difamá-
los para seus superiores.
Azevedo uma vez convenceu os irmãos do Rosário Aparecida a fazer sua festa na igreja
do Carmo, para que o pároco não soubesse. Em outra, influenciou os irmãos de São Benedito a
não contratarem os serviços espirituais de Barrozo para sua festa. Quando da visita do
imperador à cidade, Satyro parece ter-lhe escrito difamando o sacerdote. Além disso, a própria
representação da mesa da irmandade de N. S. do Rosário Aparecida, para o padre, teria sido
ideia do armador. Ademais, encontramos nos jornais que em agosto de 1885, Azevedo e alguns
confrades foram contra a contratação de Barrozo como capelão da confraria do Santíssimo
Sacramento, segundo o próprio comerciante, “por julgarmos melhor prevenir do que remediar,
e pouparmos desgostos futuros como já se deu na Ordem 3ª do Carmo [e] actualmente na Ordem
3ª de S. Francisco da Penitencia, desgostos estes que revertem sempre em prejuízo das
Irmandades [...]”.464
Essa documentação permite que acessemos algumas dinâmicas das práticas políticas
envolvendo as irmandades. As confrarias continuavam a ser uma das bases da organização
econômica e social dos municípios. Elas organizavam os sepultamentos dos mortos e as
tradições dos vivos. Garantiam o jeito certo de morrer e a devida manutenção dos costumes da
comunidade, além de servir de modelo disciplinar. Porém, também era a partir delas que se
articulava toda uma economia para que elas funcionassem. Contratações de capelães e
armadores eram essenciais para que desempenhassem seu papel na sociedade. Apesar de
estarmos lidando com um período no qual outros tipos de associações civis e mutualistas
começavam a surgir, as confrarias continuavam sendo uma das bases da vida social em fins do
século XIX. Bater de frente com essa economia imbuída de crenças e tradições religiosas, como
queria o padre Barrozo, podia custar alto. Exemplo disso é o já citado caso da Cemiterada de
1836, em Salvador, quando confrades de várias irmandades se revoltaram por conta da mudança
de local do cemitério e a concessão do monopólio de sua administração a um particular.
464
Diário de Santos, 22 e 25 de agosto de 1885.
197
Santos quase chegou a viver um levante como esse pelas mesmas razões. Quando o
cemitério público do Paquetá foi inaugurado em 1854, os religiosos e moradores da cidade
alegavam que o terreno não era santo, o que impedia o sepultamento de cristãos naquele local.
Eles também alegavam falhas estruturais, destacando que o terreno estava situado abaixo do
nível do mar e não combinava com a construção de um cemitério. Alegavam mais que a Igreja
e as confrarias poderiam perder rendas com a perda de seus túmulos particulares, uma vez que
não contariam mais com os valores originários dos enterramentos. A solução encontrada foi a
repartição do novo local em lotes e jazigos para as várias irmandades católicas que existiam na
cidade. Apesar das críticas, essa medida prevaleceu, pois era uma forma de solucionar a questão
sanitária que incomodava a todos na cidade, ceifando muitas vidas todos os anos.465
Também em Taubaté, no Vale do Paraíba paulista, a construção de um cemitério público
gerou protesto por parte das confrarias, especialmente a de São Benedito, em 1886. Segundo
Fábia Barbosa Ribeiro, a inauguração do cemitério municipal e a consequente mobilização da
dita confraria em garantir o direito dos irmãos de serem sepultados em lugar diferenciado,
expressam a força dessa tradição. Indo além, esse episódio demonstra ainda uma divisão social
patenteada pela existência dessas confrarias, uma vez que a Ordem Terceira, com a qual dividia
a Igreja do convento franciscano local, conseguiu continuar mantendo um cemitério particular
naquele local, enquanto os irmãos de São Benedito tiveram que mudar seu lugar de
sepultamento.466
Constatada a importância e os significados em torno dos enterros, seu espaço e da
economia moral que os rodeia, não é de estranhar que os irmãos de São Benedito tivessem
alguma intenção de se posicionar próximo ao novo cemitério, considerando também o esforço
e o dinheiro despendido para mantê-lo em boas condições materiais. Podemos constatar essa
importância igualmente nas várias vezes em que irmãos tentaram aforar campas com a intenção
de manter privilégios de exclusividade de suas famílias sobre determinados túmulos no jazigo
da confraria.
Em 05 de janeiro de 1860, a mesa era informada do pedido do irmão Manoel Pereira
Jorge para que a sepultura de sua mulher, D. Josefina Pereira Jorge, permanecesse imaculada
por trinta anos, dando para isso uma esmola de 60 mil réis para as despesas que a Irmandade
fizesse com o cemitério, o que foi aceito unanimemente. De forma semelhante, em 14 de janeiro
465
CHIAPETTA, A. P. COSTA, B. G. da. PEREIRA, O. J. Repertório de documentos para a história da
escravidão em Santos (1865-1888). Santos-SP: Fundação Arquivo e Memória de Santos/FACULT, 2015, p. 14.
466
RIBEIRO. Op. cit., 2014, pp. 162-163.
198
de 1866, o irmão Paulino José Ribeiro Rato pedia o privilégio de trinta anos para a campa em
que foi sepultada sua mulher Dona Margarida Teixeira da Silva Rato, a fim de nela serem
somente sepultadas pessoas de sua família, que fossem confrades da Irmandade. Em
contrapartida, ele dava uma joia de 120 mil réis, além de 40 mil réis que doou para a construção
daquela campa, anteriormente. Mais uma vez, a Mesa aceita o privilégio. Um ano antes, em 15
de outubro de 1865, Joaquim Xavier Pinheiro solicitava que sua sobrinha menor fosse sepultada
no jazigo da irmandade e perguntava se devia pagar alguma indenização visto que o direito ao
enterro de parentes de irmãos só se estendia ao cônjuge e aos filhos menores de sete anos. A
Mesa decidiu que não lhe seria cobrado nada, haja vista Pinheiro ter doado dezoito campas em
ocasião anterior.467
Como vemos, é notável o tipo de acordo feito entre os envolvidos. As doações eram
moeda de troca para conseguir privilégios espirituais, ao passo que forneciam meios para a
irmandade, coletivamente, destacar-se socialmente melhorando ou ampliando seu patrimônio
material e simbólico. É interessante reparar a composição da mesa e os irmãos presentes ao
longo da década de 1860 que garantiam o funcionamento dessa dinâmica.
Podemos ver que havia um grupo de irmãos que se mantinha assíduo às reuniões e se
perpetuava na mesa administrativa. Possivelmente, os indivíduos que eram privilegiados com
os aforamentos de campas estavam ligados a eles de alguma forma, ou pretendiam ganhar sua
simpatia. Alguns nomes chamam a atenção como o de Pacífico Frederico Freire, homem pardo,
major da seção de infantaria da Guarda Nacional, Juiz de Direito (1880), irmão do delegado
Freire e ex-patrão de Azevedo.468 Sua influência na irmandade se estenderia até 1880, sempre
ocupando o cargo de escrivão que detinha o poder sobre livros de registros e documentos caros
ao funcionamento da confraria. Se no incidente da questão das águas restaram suspeitas se o
delegado Freire e o vereador Pinheiro eram coniventes com os distúrbios, aqui a aproximação
entre eles fica mais convincente, visto a troca de favores entre o segundo e a irmandade. É
verdade que Pacífico não estava presente na reunião que favoreceu Pinheiro, nem mesmo
compunha a mesa naquele ano. No entanto, outros irmãos que estariam ao lado do longevo
escrivão na administração da mesa estavam presentes e ocupavam cargos importantes naquele
467
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Ata da reunião de 05 de janeiro de 1860; de 14 de janeiro de 1866; e de
15 de outubro de 1865. Livro de Atas.
468
Nos maços de população de 1836, Freire é listado como filho de Antonio Freire Henriques e irmão de um
Guilherme, o futuro delegado Freire. Todos são designados como pardos. Apesp, Secretaria da Presidência da
Província de São Paulo, Estatísticas, micro-filme 176. Encontramos a informação sobre sua patente na Guarda
Nacional no Novo Almanach de São Paulo para o Anno de 1883, pp. 264. Por fim, encontramos um anúncio de
que Pacífico foi nomeado para Juiz de Direito da Comarca de Santos, Ubatuba e São Sebastião, em Diário de
Santos, 01 de janeiro de 1880.
199
469
Cf. Apesp, Secretaria da Presidência da Província de São Paulo, Estatísticas, micro-filme 176. No caso dos
Costa Aguiar, não encontramos esses nomes exatos nos maços de 1836, mas achamos dois fogos de famílias com
esse mesmo sobrenome, as quais eram brancas, brasileiras e cujos homens eram comerciantes prósperos Por outro
lado, em websites de genealogia encontrei referências à família João Xavier da Costa da Aguiar, português nascido
em 1775, em Miranda do Corvo em Coimbra. Segundo essas páginas, ele teve um filho e um neto, os quais foram
batizados com o mesmo nome e eram moradores de Santos. A viúva do mais velho, Ana Joaquina da Costa Aguiar
pode ser localizada nos maços de 1836, morando sozinha com seus escravizados em um sítio.
470
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Ata da reunião de 28 de fevereiro de 1866. Livro de Atas.
471
Idem. Ata da Reunião de 05 de janeiro de 1876.
472
Idem. Ata da reunião de 03 de maio de 1873.
473
Idem. Ata da reunião geral em 05 de janeiro de 1874.
200
474
Sobre os fatos narrados neste e no próximo parágrafo ver Idem. Idem. Atas das Reuniões de 26 de dezembro de
1875 e de 05 de janeiro de 1876.
201
com exceção do irmão Pedro Rocha. Quando eles voltaram a se reunir no início de janeiro, lá
estava Rocha acompanhado de Andre dos Santos (juiz), Antonio Apolinário da Silva, Benedito
Guerra, Eleuterio Vergueiro, Jorge Vergueiro, José Jacintho da Silveira e Tito Mariano. Com
esses sujeitos presentes, a reunião geral deliberou que não seriam aceitos novos aforamentos
até que o jazigo fosse expandido. Alguns anos depois, com apenas 8 irmãos reunidos, nota-se
novamente que o grupo de Freire está muito mais reduzido, proporcionalmente. Quando é
decidido que pessoas externas à irmandade não poderiam mais ser sepultadas em suas campas,
novamente estão presentes Eleuterio Vergueiro e José Jacintho da Silveira.
Coincidentemente esse período é marcado pelo retorno dos registros em ata das
nomeações para os cargos de devoção – a corte festiva –, que foram omitidas entre 1868 e 1876,
além de ser o momento em que um juiz africano assume a presidência da mesa por três anos
consecutivos: João Jacintho da Silveira, que esteve no cargo entre 1876 e 1879. Nesse
momento, começamos a imaginar a gestação de dois grupos de interesses no interior da
confraria de São Benedito de Santos, que podem ser resumidos nos pretos e africanos, de um
lado, e, de outro, nos pardos e brancos. Não é uma divisão estanque e alguns sujeitos podem
transitar entre eles, ou se mantêm aparentemente ambivalentes.
Apesar da circulação de indivíduos tão variados no interior do sodalício, temos indícios
para acreditar que essa realmente era uma irmandade atrelada à identidade negra e africana. Na
referida correspondência entre o pároco de Santos e o bispo de São Paulo, em 1886, o primeiro
mencionava que Satyro A. de Azevedo ludibriava os “pobres pretos” devotos de São Benedito
quando os convenceu de não contratar seus serviços para a festa daquele ano. Além disso, como
é possível constatar em atas, no compromisso e no livro de irmãos, os confrades de São
Benedito elegiam reis e rainhas para tomarem parte na festa do padroeiro que acontecia uma
vez por ano.475 Tratava-se da coroação do rei do Congo, uma tradição gestada no interior das
irmandades negras por todo o Brasil, desde os tempos coloniais.
Os títulos de rei e rainha são reveladores da preservação de certa tradição africana no
interior das irmandades. Podendo ocorrer dentro ou fora destas, as coroações de reis e rainhas
possivelmente existem em território português, pelo menos desde o século XVI, sendo reflexo
da política de D. João II em relação à África. A instituição dos reis negros significava o
reconhecimento simbólico das realezas africanas e, mais comumente, serviu como política de
mediação entre os poderes portugueses e a população negra, tanto escravizada como liberta.
Desde cedo, diante do problema de controle da população africana cativa em grandes
475
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Compromisso, s/d, Art. 2º; Livro de Irmãos; Livro de Atas.
202
entrepostos escravistas como o foram Lisboa e Sevilha, a solução encontrada pelas autoridades
foi a transferência de parte da responsabilidade de polícia para determinados indivíduos entre
os próprios cativos, mais especificamente aqueles julgados mais confiáveis e responsáveis,
escolhidos entre seus semelhantes.476
Esse tipo de política de mediação criou fortes raízes no Novo Mundo. Reis, rainhas e
mayorais – como eram chamados em territórios espanhóis – foram eleitos por toda a América
entre os séculos XVIII e XIX. Os costumes dos povos conquistados pelos portugueses, entre
eles os africanos, tinham especial lugar na sociedade colonial e provavelmente continuaram a
ter após a independência. Nas cerimônias e festas públicas promovidas pela Coroa e outras
autoridades do reino, os costumes africanos tinham um lugar de destaque; eles marcavam
presença nas entradas, casamentos, aniversários da família real, etc. Da mesma forma, nas
recepções de bispos, procissões e visitas eclesiásticas era comum a participação dos povos
convertidos. Os espectadores poderiam encarar aquelas demonstrações de costumes exóticos
como divertimento, mas também era um momento de reafirmação do poder do império
português sobre os territórios anexados através de relações comerciais, diplomáticas e
religiosas.477
Apesar disso, a tolerância e o incentivo para a participação dos povos subjugados e seus
costumes, era restrita a espaços específicos. Quando não eram patrocinadas pelas autoridades
constituídas, mas, por exemplo, ocorriam nos dias de folga dos escravizados e eram organizadas
autonomamente pelos mesmos, a tendência era a perseguição e a repressão. Os exemplos que
demos no capítulo anterior de aversão por parte da imprensa às comemorações de negros pela
Abolição, demonstram que essa tendência persistia durante o Império. Os momentos de ócio,
lazer e descontração dos escravizados podiam ser vistos como ótimas oportunidades de
transgressão e ameaça à ordem estabelecida. Assim, havia uma ambiguidade em relação aos
festejos de patronos, de coroações e outras cerimônias realizadas por essa parcela da população;
por um lado eram vistas como necessárias para o controle social do contingente cativo,
funcionando como uma válvula de escape para as tensões; por outro, seus excessos deviam ser
reprimidos e os costumes restritos a espaços apropriados para sua demonstração. Portanto,
devemos nos atentar para as diferenças entre as festas independentes e os eventos laudatórios
476
REGINALDO. Op. cit., pp. 127.
477
LARA, Silvia H. “Significados Cruzados: um Reinado de Congos na Bahia Setecentista. In: CUNHA, M. C. P.
Carnavais e outras f(r)estas: ensaios de história social da cultura. Campinas-SP: Editora da UNICAMP,
CECULT, 2002. pp. 74-77. REGINALDO, Op. cit., pp. 124.
203
478
LARA. Op. cit., 2002, pp. 93-94.
479
STEIN. Stanley J. Grandeza e decadência do Café no Vale do Paraíba. São Paulo: Brasiliense, 1969, pp. 246-
247. Apud. RIBEIRO. Op. cit., pp. 167.
480
MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e Escravidão. São Paulo: Brasiliense, 1987, pp. 117.. Apud. RIBEIRO.
Op. cit., 2014, pp. 173.:
481
Consulta do CU ao Rei D. João V sobre os abusos do reinado dos negros e seus folguedos. Anexo cópia do
Bando que se publicou sobre não haver Reinados nas Festas de Nossa Senhora do Rosário. AHU, Bahia – Avulso,
Caixa 33, doc. 2978 apud. REGINALDO, Op. cit., pp. 129.
204
pombalina também se mostraria inimiga dessa tradição, proibindo a “eleição e coroação de reis
e rainhas em irmandades de negros”.482
Talvez pelo mesmo temor, em 1863, o magistério que vistoriou o livro de atas dos
irmãos de São Benedito de Santos repreendeu a eleição de reis e rainhas naquela confraria:
Com isso, vemos que em um compromisso anterior ao que temos em mãos, os cargos
da realeza e sua corte não eram mencionados e dada a reação do magistrado podemos imaginar
o porquê. Apesar disso, ele tenta se mostrar flexível ao considerar que “se há costume convem
continua-lo”, porém, como cargos “auxiliares” que deveriam ser nomeados pela Mesa e não
eleitos em escrutínio geral. Assim, a autoridade tentava limitar o poder de ação dessas realezas,
figuras potencialmente subversivas do ponto de vista da ordem social.
Entretanto, todas essas proibições e perseguições do poder secular e eclesiástico não
seriam o suficiente para apagar os reinados negros do mapa. As coroações continuaram
acontecendo graças a diferentes estratégias colocadas em prática pelos irmãos negros, entre as
quais estão: a omissão da eleição e coroação dos reinados no compromisso; a transferência das
atribuições dos reis e rainhas para o juiz e a juíza; a mudança dos termos rei e rainha para, por
exemplo, Juiz de Coroa e Juíza de Coroa; e descrever de forma concisa as atribuições desses
dois cargos, para não chamar muita atenção das autoridades.484 Esta última estratégia parece ser
utilizada pela Irmandade de São Benedito de Santos, cujo compromisso é extremamente breve
ao dispor sobre as obrigações das realezas e nada fala sobre como e quando a coroação deve
ser realizada. Na verdade, o que parece é que esta cerimônia foi incorporada à festa de São
Benedito, pois é justamente “abrilhantar a festa do padroeiro” a atribuição do rei e da rainha.485
Portanto, percebe-se um movimento de “maquiar” – ou seria traduzir? – as reais funções
desses dois cargos perante as autoridades que fiscalizavam os compromissos. Em outras
irmandades, há mais registros de até que ponto podia chegar a autoridade da realeza negra entre
a comunidade, como no caso da Irmandade de São Benedito da Vila de Cairu, na Bahia, na qual
482
Idem.
483
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Visto em correição, em 12 de agosto de 1863. Livro de Atas.
484
MACCORD, Op. cit., 2001, Capítulo 3. REGINALDO, Op. cit., pp. 124-129. QUINTÃO, Op. cit.
485
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Compromisso, s/d.
205
o rei integrava a mesa administrativa e tomava parte nos negócios da irmandade, nomeava o
procurador, além de cumprir um papel fundamental nas manifestações rituais.486 Mais próxima
de Santos, a Irmandade de São Benedito dos Pretos Cativos de Guaratinguetá fundada em 1757,
desde então coroava realezas negras que eram autoridades máximas da mesa. Existente até hoje,
essa confraria continua elegendo reis negros. Também a confraria de N. S. do Rosário dos
Pretos de Taubaté, entre 1805 e 1812, elegia tanto reis quanto juízes e ambos eram em grande
parte escravizados nesse período de tempo.487
Na capital da província paulista, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
de São Paulo, em 1778, no compromisso dispunha que o rei tinha direito a voto na mesa.488 As
realezas continuariam sendo eleitas ao longo do século XIX e XX nessa confraria para,
juntamente com o juiz e a juíza, ficarem à cargo da realização dos festejos. A descrição de uma
dessas celebrações com a participação das realezas negras, por volta de 1911, feita por Raul
Joviano Amaral, pode nos ajudar a imaginar como essa tradição sobrevivia em ambientes
urbanos como a capital, muito próxima de Santos:
486
REGINALDO. Op. cit., pp. 134.
487
RIBEIRO. Op. cit., pp. 88-96 e 223-225.
488
QUINTÃO. Op. cit.
489
AMARAL, Raul Joviano. Os Pretos do Rosário de São Paulo. Subsídios históricos. São Paulo: Alarico, 1954,
pp. 53-54.
206
490
MACCORD. Op. cit., 2001, pp. 75-94.
491
SOUZA. Op. cit., p. 200-201. RIBEIRO. Op. cit., pp. 223-224.
207
assim, podem ser interpretados como momento privilegiado para a recriação de referenciais
africanos na diáspora.492
Por isso, ao longo do tempo, houve um grande esforço das confrarias negras em
restringir o acesso a alguns cargos, sobretudo aqueles relacionados às coroações e à festa,
mesmo que aceitassem como membros ou em outras cadeiras da mesa pessoas de outros grupos
sociais. Voltamos a ressaltar que, mesmo quando uma etnia sozinha detinha a hegemonia de
uma confraria, não era incomum pessoas de outras identidades estarem entre os seus confrades.
O monopólio de uma irmandade era regulado através não só de critérios de admissão, mas
principalmente entre os critérios para ser eleito para os cargos da mesa regedora. As confrarias
de brancos regulavam isso através do estatuto de limpeza de sangue. Elas costumavam ser mais
rígidas, aplicando esse critério já na admissão de irmãos. As irmandades de negros, por sua vez,
exigiam o critério étnico aos cargos da mesa, principalmente os de juiz e juíza. No caso daquelas
que possuíam cortes, como reis, rainhas, duques, etc., também se exigia o pertencimento ao
grupo dominante na confraria como condição para tais títulos. Nas alianças com outros grupos
étnicos e/ou sociais isso podia sofrer alterações, como a eleição de duas mesas regedoras, ou
dois juízes, ou dois reis, entre outras possibilidades. Uma das possibilidades, inclusive, era
aquela em que, numa irmandade de escravizados, houvessem senhores de alguns deles
ocupando cargos como os de tesoureiro, procurador, mesário, mordomo ou escrivão.
No caso dos confrades de São Benedito de Santos não havia nada disposto no
Compromisso ou nas atas, explicitamente, sobre funções como a de juiz, juíza, rei, rainha,
capitão do mastro ou andador serem exclusivos para os pretos ou qualquer outro grupo. Porém,
se prestarmos atenção às eleições, os quatro últimos cargos citados são os únicos para os quais
escravizados foram eleitos em algum momento.493 Assim, podemos observar esse movimento
nas confrarias negras paulistas, inclusive em Santos, onde reis e rainhas eram eleitos e coroados
e onde a presença de senhores junto aos seus escravizados sinalizava acordos e desacordos
numa vida de convivência cotidiana.
Essa dinâmica fica mais palpável ao lermos as atas da referida confraria que, à princípio,
surpreende-nos, pois ao longo dos anos 1860 e 1870 as festas de São Benedito foram bem
modestas, quando era do feitio desse tipo de evento ser realizado com bastante pompa. Ponto
no qual convergem ao menos sete cargos – entre os quais quatro costumam ser de exclusividade
492
LARA. Op. cit., 2002, pp. 81-87. Na pp. 86, a autora afirma: Obviamente não se tratava apenas de negros
congueses, mas da apropriação de um ritual que, de certo modo, ligava os cativos à África e criava um espaço
político próprio, distanciado do mundo senhorial. Havia, portanto, algo comum à experiência da escravidão nas
Américas, que se expressava naquelas festas negras”. REGINALDO. Op. cit., pp. 135.
493
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Livro de atas.
208
negra ou africana nas confrarias da gente de cor –, nesse grande evento público e anual, os
irmãos tinham maior visibilidade pública, mobilizando a comunidade a contribuir para sua
realização. Entretanto, no Compromisso da Irmandade de São Benedito de Santos, não há
capítulo específico que disponha sobre mais detalhes da realização da festa; o evento nem
mesmo figura entre os objetivos da confraria no primeiro capítulo de seu estatuto. Conseguimos
apenas entrever algumas informações inseridas nas atribuições dos cargos eletivos. Sabemos
que o juiz e o diretor espiritual tinham que elaborar, em conjunto, o programa desse e de outros
eventos patrocinados pela irmandade. Também sabemos que ao rei, a rainha, a juíza e ao capitão
do mastro cabia “abrilhantarem quanto lhes for possível a festa do glorioso São Benedito e
concorrerem com a joia determinada por este compromisso”, provavelmente para serem
investidas no evento. Por último, sabemos que ao andador compete “fazer a distribuição das
pias e tochas nas festas, procissões e outros atos religiosos da irmandade, arrecadá-los e guardá-
los com zelo” e “dirigir nas procissões e enterros as alas dos irmãos conservando-os na boa
ordem”.494
Nessas duas décadas, a mesa deixou de investir nos festejos para priorizar a compra de
apólices da dívida pública cujos juros permitiriam uma renda estável e a formação de um
patrimônio para a confraria. De fato, depois de vermos a preocupação com a construção da
capela e as reformas no cemitério, faz sentido o conjunto dos irmãos terem concordado nessa
estratégia. Contudo, no final dos anos 1870 alguns deles parecem ter mudado de ideia:
possivelmente o grupo mais ligado aos significados simbólicos mobilizados durante tais
celebrações, aqueles de origem ou ascendência africana.
Pelo que se apreende das atas da confraria santista, uma festa simples era aquela que se
resumia à uma Missa Cantada, quando muito, seguida de Te Deum. Esse foi o caso da maior
parte dos anos 1860 e 1870, mesmo quando, nesta última década, a receita da irmandade
aumentou consideravelmente e as obras do cemitério e da capela parecem ter sido
momentaneamente suspendidas, pois não são nem mencionadas nos registros.495 O dinheiro
usado para realizar os festejos provinha das “joias” pagas pelo juiz, juíza, rei, rainha e capitão
do mastro. Contudo, raramente é mencionada qualquer contribuição dos três últimos e os
valores pagos pelos dois primeiros oscilavam de ano para ano. Havia momentos que os juízes
doaram 200 mil réis, outros que doaram apenas 50 mil réis e mesmo casos em que eles
494
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Compromisso da Irmandade de São Benedito em Santos.
495
Ver por exemplo, IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Atas da reunião de 25 de outubro de
1868; de 02 de janeiro de 1875; de 26 de dezembro de 1875; 25 de outubro de 1877; de 07 de dezembro de 1879.
Livro de Atas.
209
simplesmente sumiram sem dar notícias ou pagar as taxas, até mesmo faltando em todas as
reuniões de seu mandato.
Esse comportamento indica que apesar do papel de liderança comunitária que muitos
estudiosos das irmandades e os próprios compromissos atribuíam ao juiz, no caso dos irmãos
de São Benedito de Santos esse cargo tinha mais uma função de cooptar os elementos mais
externos ao e/ou abastados do grupo justamente para bancarem as celebrações anuais. Talvez
uma forma dos irmãos cativos e libertos cooptarem seus senhores e patrões. Entretanto, visto
isso não ser algo garantido, mesmo quando africanos assumiam o cargo, possivelmente fez
muitos irmãos levantarem suspeitas sobre a insistência de alguns mesários em priorizar a
compra de apólices do que os rituais da confraria.
Ao longo desses anos, muitos confrades tentaram contornar o problema, organizando
subscrições e pedindo esmolas para a realização das procissões contíguas às festas, nas quais a
imagem do santo percorria as ruas da cidade.496 As procissões eram momentos especialmente
simbólicos, nos quais o posicionamento das pessoas e das irmandades – quando havia mais de
uma no evento – significavam as hierarquias às quais estavam submetidas. Em alguns
compromissos, é possível encontrar capítulos reservados a descrição de como as procissões
deviam ser planejadas e executadas. Um exemplo, é o compromisso da Irmandade do Rosário
de João Pereira, que dispunha sobre a posição dos oficiais e irmãos no cortejo, insígnias
sustentadas de acordo com o cargo, ornamentos da santa imagem da padroeira, horário do
acompanhamento, postura requerida pelo ato, entre outras disposições. Enquanto procissões
devocionais, não solenes, aquelas organizadas pelas confrarias deviam ter prévia autorização
do Ordinário. A irmandade patrocinadora liderava o préstito, seguido por outras com a quais
por ventura dividissem o templo ou fossem convidadas. Ao lado do critério do patrocínio, o da
antiguidade definia a sequência dos grêmios religiosos no cortejo.497
Mais perto de nós, as Irmandades de N. S. da Boa Morte, dos Pardos, e de N. S. do
Rosário, dos Pretos, em Bananal disputavam o direito ao lugar de precedência durante as
solenidades religiosas realizadas na vila, durante a década de 1850. Os confrades da Boa Morte
oficiaram ao Juízo Municipal argumentando que os irmãos do Rosário não poderiam estar a sua
frente nas cerimônias, visto o principal critério para isso ser o da antiguidade que tomava como
momento de fundação legal de uma confraria apenas quando seu compromisso era legalizado.
Nesse sentido, os irmãos pardos afirmavam que a legalização de seu estatuto era de 1850,
496
Ver por exemplo, IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Ata da reunião de 15 de outubro de
1865. Livro de Atas.
497
REGINALDO. Op. cit., pp. 115-117.
210
enquanto dos confrades pretos era de 1851. Contudo, estes responderam alegando que seu
primeiro compromisso era de 1838, mas que o mesmo havia se perdido na correspondência
burocrática quando eles fizeram uma reforma nos estatutos que resultou no novo compromisso
de 1851. Eles, então, tentaram comprovar sua antiguidade por meio de outros documentos nos
quais o bispo autorizava a construção de sua capela em 1841. Mesmo assim, o juiz municipal
deu causa ganha à Boa Morte, o que não fez os irmãos do Rosário desistirem. Eles ainda
tentaram entrar em contato com o poder eclesiástico argumentando a incompetência do poder
público para gerir os assuntos religiosos. Nisto, os confrades sutilmente apelavam para o
acirrado contexto de tensões nas relações escravistas vivido no Bananal naquele período. Nesse
sentido, sua apelação também tinha uma dupla sensibilidade: da perda fiéis, visto que a maioria
dos irmãos eram cativos; da iminência de uma revolta de escravizados, levados pelo
ressentimento de que foram “expoliados de suas regalias”. Segundo Ribeiro, tratava-se “de
resguardar uma posição adquirida por direito, com base nas mencionadas leis que regiam as
ordens religiosas leigas, mas também de reativar as lembranças das inquietações que abalaram
o Bananal alguns anos antes”.498
O lugar de cada pessoa na procissão era um ponto importante a demarcar, pois refletia
a hierarquia social e o prestígio dos indivíduos participantes. Qualquer modificação no
posicionamento dos integrantes da procissão equivalia a uma alteração de suas posições sociais.
Por outro lado, em procissões que contavam com a participação de mais de uma irmandade,
também carregava muito significado social o posicionamento das confrarias participantes.
Geralmente, o critério utilizado era: nas procissões de caráter solene, previstas no Direito
Canônico, Leis e Ordenações do Reino e costumes, a posição de cada agremiação no cortejo
ser definida por sua antiguidade; naquelas de caráter devocionais, organizadas diretamente por
alguma das irmandades, aquela que patrocinava o evento protagonizava o séquito, seguida por
outras que fossem convidadas ou ocupassem os demais altares no mesmo templo, também
conforme sua antiguidade.
Por isso, a perda do lugar de precedência por parte dos Rosários de Bananal poderia
significar o retorno a uma ordenação social que as festas religiosas podiam relativizar, chegando
muitas vezes a inverter as rígidas configurações sociais que sempre colocavam cativos nos
patamares mais baixos da sociedade. Nessas procissões e cerimônias religiosas, senhores,
escravizados e livres se misturavam e não era raro os subordinados ficarem à frente de seus
donos ou patrões, lançando uma massa negra em destaque pelas ruas das vilas e cidades
498
RIBEIRO. Op. cit., pp. 209.
211
brasileiras. Segundo Martha Abreu e Larissa Viana, nessa dinâmica as camadas mais pobres
politizavam as festas e afirmavam em praça pública seu direito à diversão e à expressão,
principalmente por meio das confrarias e de seus empresários barraqueiros. Dessa forma, a
apelação dos irmãos do Rosário expressa a disposição de seus representantes em politizar os
espaços de uso comum e em se altercar com os que tentavam restituir a velha ordem, apesar da
mesma estar presente de forma alegórica durante as procissões e cortejos.499
Em geral, tanto para os festejos como para as procissões que faziam parte do programa,
as confrarias insistiam em exibir toda a pompa que os recursos arrecadados poderiam oferecer.
Contratava-se o melhor pregador disponível para a missa, os melhores músicos, ornamentos e
outros serviços e materiais importantes para realização do evento.
Talvez por isso, em 1875, na Irmandade de São Benedito de Santos, quando se
priorizavam as compras das apólices e o juiz não pôde dar uma joia maior que 50 mil réis, sem
qualquer contribuição da juíza, a mesa deliberou fazer apenas uma missa cantada, mas com três
padres. Assim, haveria certa economia, mas poderiam conseguir saciar um pouco os “festeiros”
ao ostentar na quantidade de sacerdotes.500 Mais adiante, em abril de 1882, quando a mesa,
agora sob nova direção, teve a oportunidade de mostrar ao que veio na organização da festa, os
confrades reunidos se viram diante de novo impasse sobre o assunto. Havia dinheiro suficiente,
pois o juiz Adauto Felix de Lima deu uma contribuição de 150 mil réis, enquanto a juíza, Maria
Miranda, ofereceu 200 mil réis. O capitão do mastro Ambrósio José da Costa e o rei Erasmo de
Carvalho deram 20 mil réis cada um. Por fim, a rainha Maria Alvarenga entrou com 10 mil réis.
Então, o procurador Jeronimo X. da C. Aguiar deu duas opções: “sendo a festa sollene com
procissão ou novenas”. Lima, que presidia a reunião, colocou a questão em votação e as novenas
venceram “contra o voto o Irmão Juiz e o Irmão Escrivão [Jozé Antonio de Azevedo], que
opinavão para que a festa fosse feita com toda a pompa que fosse possivel sendo com expozição
do Sacramento e Tedeum as cinco horas”.501
Com isso, podemos ter uma noção do que era considerado uma festa com pompa para
esses confrades. Era aquela que oferecesse todos os cerimoniais possíveis: a missa cantada ou
solene, a procissão com a imagem do orago, a exposição do Santíssimo Sacramento, o Te Deum
e as novenas. Ou seja, uma festa que além de tudo durasse vários dias consecutivos.
499
ABREU, Martha; VIANA, Larissa. “Festas religiosas, cultura e política no império do Brasil. In GRINBERG,
Keila; SALLES, Ricardo (orgs.) O Brasil imperial. Vol. III: 1870-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2009, p. 237. RIBEIRO. Op. cit., 2014, pp. 198-210.
500
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Ata da reunião de 26 de dezembro de 1875. Livro de Atas.
501
Idem. Ata da reunião de 01 de abril de 1882.
212
Os festejos do padroeiro podem ser vistos como uma válvula de escape para os
confrades, um momento de lazer em meio à rígida disciplina do trabalho e da hierarquia social;
mas também pode ser encarada como expressão de uma cultura barroca na qual há prazer em
contemplar a exuberância das imagens, incensos, músicas, sermões, folguedos e sinos. Além
disso, toda a pompa despendida tinha influência nas relações entre o santo e seus devotos, pois
o primeiro dificilmente se satisfaria com as preces individuais nessa visão barroca do
catolicismo; era necessário também que os indivíduos se unissem para homenagear
coletivamente o padroeiro, a fim de tornar mais eficaz sua intercessão.
Ainda, o culto pomposo pode ser interpretado como elemento essencial para a saúde
material das irmandades. As festas tinham um papel de grande relevância no calendário das
confrarias; sendo realizadas uma vez por ano e, geralmente, pouco antes ou depois, ou às vezes
no mesmo dia, das eleições dos novos oficiais da irmandade. Assim, a antiga diretoria encerrava
seu mandato com o acontecimento do maior evento patrocinado pela agremiação, de modo que
talvez “a grandeza ou a modéstia da festa fosse a coroação ou a prova do fracasso da
administração que findava. Nesse sentido, [...], do ponto de vista simbólico, a festa consagrava
o prestígio social de alguns membros das confrarias”.502
Era igualmente nessas ocasiões que ocorriam a entrega de esmolas e pagamento de
anuais e de entrada de irmãos. Portanto, a festa pode ser entendida também como catalisador
de recursos financeiros. O evento era de grande importância para acumular prestígio não só
para os oficiais da irmandade, mas para a agremiação como um todo, estando diretamente
relacionada a atração de novos membros, no sentido de ser uma amostra da capacidade da
confraria na organização dos cortejos fúnebres, uma demonstração da coesão do grupo.
Por essas razões, não é de se estranhar que um grupo considerável de confrades de uma
irmandade negra, como a de São Benedito de Santos, fizesse questão de pelo menos conseguir
promover uma procissão na qual eles estivessem à frente dos demais sodalícios, inclusive
daqueles com os quais compartilhavam o templo e que agremiavam os brancos, pardos e
membros das elites santistas. Entre os que geralmente se preocupavam e tomavam a iniciativa
de angariar recursos para a procissão de São Benedito, em Santos, podemos encontrar alguns
dos nomes que citamos como possivelmente opositores de Freire e seu grupo nos quadros
confraternais. São eles Benedito Guerra e João Jacintho da Silveira, além de outros como
Francisco Antonio Ferreira, Sebastião Gomes, Juvencio Justiniano de Loredo, Agostinho
Barnabé, José Salta, Sebastião de Manoel Fernandes e, surpreendentemente, os irmãos Zacarias
502
REGINALDO. Op. cit., pp. 120.
213
e Jeronimo Xavier da Costa Aguiar, que até então pareciam estar alinhados com o grupo de
Freire.503 São esses irmãos que vão se tornando cada vez mais frequentes nas reuniões do fim
dos anos 1870 e início dos 1880. Isso mostra que de fato a divisão pretos/africanos x
pardos/brancos não era fixa e imutável, uma vez que brancos como os Costa Aguiar e pardos
como Sebastião Gomes também somavam força com os “festeiros”.
De acordo com a informação que temos, em 1836, Sebastião Gomes atuava no ramo de
agências e tinha uma renda bem modesta, sem cativos, mas morando com alguns agregados
pardos em seu fogo. Justamente suas condições econômicas podiam ter-lhe aproximado mais
do cotidiano dos cativos e pretos, o que pode ter nutrido sua solidariedade com eles, seus
festejos e religiosidade.504 Por outro lado, os Costa Aguiar podem ser aquele tipo de senhor que
via vantagem política em permitir e até incentivar os pretos e cativos a fazerem seus folguedos
e batuques, enquanto outros achavam isso uma oportunidade para sedições ou mero desperdício
de dinheiro. Além do mais, é possível que eles estivessem mesmo sendo pressionados por seus
cativos e subordinados a engrossar o coro a favor da festa e pela renovação da mesa regedora.
O que é patente é que essa cisão cresceu nos anos seguintes.
O auge dessa disputa parece se dar entre 1878 e 1882, quando João Baptista do Amaral,
Joaquim Xavier Pinheiro e Pacífico Frederico Freire sucessivamente deixam a mesa regedora.
É nesse meio tempo também que os procuradores e tesoureiros demoram mais que o esperado
para a compra das referidas apólices, aumentando as suspeitas. É possível que a eleição de João
Jacintho da Silveira para juiz, um africano preocupado com a realização das festas, tenha tido
o objetivo de pelo menos presidir as reuniões e não permitir que os recursos continuassem sendo
desviados, por mais que ele não pudesse fazer grandes contribuições financeiras para a
realização dos festejos.
A década de 1880 se inicia em meio a uma grande turbulência no interior da irmandade,
com a concorrência de grande quantidade de irmãos nas reuniões, o que era bem raro nos anos
anteriores. Para se ter uma noção, a média de presentes nas reuniões entre 1859 e 1869 era de
dez pessoas; entre 1870 e 1880, foi de oito participantes; e entre 1881 e 1887, temos uma média
de 20 concorrentes.
503
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Atas das reuniões de 13 de fevereiro de 1859; de 20 se
setembro d 1859; 15 de outubro de 1865; de 14 de janeiro d 1866; de 30 de outubro de 1869; de 10 de dezembro
de 1869; 25 de dezembro de 1869; de 02 de janeiro de 1875; de 25 de dezembro de 1881; 15 de fevereiro de 1885.
Livro de Atas.
504
Apesp, Secretaria da Presidência da Província de São Paulo, Estatísticas, micro-filme 176.
214
Uma figura que já conhecemos surge nessa época e confirma nossa hipótese da
conformação de dois grupos de interesse entre os confrades: Satyro Alves de Azevedo.
Ingressando na confraria em 1879, ele começou a frequentar as reuniões no ano seguinte. Na
eleição de 1881, a maioria dos presentes queriam elegê-lo ao cargo de escrivão, ao que se opôs
veementemente Freire, seu ex-patrão. A eleição acabou implodida, com vários confrades se
retirando e sendo necessário marcar uma nova, solicitando a presença do Juiz Provedor de
Capelas para mediar o impasse. Acontece que a prerrogativa de apresentar os nomes aptos para
serem votados para os cargos era do escrivão em exercício, naquele ano, Freire. Isso estava
disposto no compromisso da época e Azevedo se deu por vencido, pelo menos naquela hora.
Ele conseguiu que seu pai, Jozé Antonio de Azevedo fosse eleito para escrivão, tirando seu ex-
patrão da jogada. Por fim, Jeronimo Xavier da Costa Aguiar assumiu a vaga de procurador e
entre os mesários não havia nenhum dos nomes que antes pareciam estar ao lado de Freire,
como João Baptista da Silva Bueno, ou o ex-tesoureiro Amaral, ou mesmo Joaquim Xavier
Pinheiro. Aparentemente, os “festeiros” ganharam essa disputa. Poucos meses depois, o
mesário Cazemiro Martins dos Santos renunciou ao cargo e indicou Azevedo para substituí-lo,
o que foi aprovado.505
Os anos que seguem são marcados por festas mais pomposas, porém, como vimos,
mesmo entre o grupo que agora assumia a mesa, isto é, os “festeiros” em torno dos Costa Aguiar
e Satyro A. de Azevedo, havia discordâncias sobre o que era realmente uma celebração com
pompa. Para os Aguiar bastava uma festa solene com novenas e procissão, enquanto para o pai
de Azevedo (escrivão) e Lima (juiz), eram necessários ainda mais elementos que agregassem
devoção e prestígio. É evidente que para Azevedo era mais interessante o máximo de pompa
possível visto que mais dinheiro poderia ser gasto em sua loja de armarinho. Inclusive, o pároco
que escreveu ao bispo tinha como objetivo denunciar justamente o comportamento do armador
de entrar em sodalícios para conseguir mais clientes para seus negócios.
De qualquer forma, essa nova discordância não parece ter sido o suficiente para afastar
os Aguiar ou Azevedo da mesa. Os anos seguintes puderam garantir sempre festas com sermão,
Te Deum e exposição do Santíssimo Sacramento e quase sempre outros irmãos tomavam a
iniciativa de fazer subscrições para bancar a procissão.
Além disso, as mesas da década de 1880 passam a investigar os registros das gestões
anteriores afirmando haver diversas irregularidades. Em outubro de 1881, por exemplo, temos
505
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Atas das reuniões de 23 de abril de 1881; de 01 de maio
de 1881; de 25 de dezembro de 1881. Livro de Atas.
215
a confirmação de que as mesas anteriores não mandaram rezar missas para muitos irmãos
falecidos, de modo que o juiz autorizou o procurador a quitar essas pendências. Até mesmo o
Compromisso foi posto em debate e uma reforma desse documento foi empreendida, por
sugestão do pai de Azevedo, que servia como escrivão naquele ano.506
Antes de continuarmos, é preciso enfatizar que o compromisso que temos em mão é
posterior a 1887, pois nele é mencionado que os irmãos estavam sediados na Igreja do Convento
de Santo Antonio do Valongo.507 Possivelmente, ele foi escrito na primeira década do século
XX, quando mais uma reforma de seus artigos foi empreendida e quando a caligrafia do
escrivão se assemelhava mais àquela do redator do referido estatuto.508 Comparando-o com os
artigos mencionados ao longo das reuniões, é possível perceber que ele foi resultado de uma
série de revisões e reelaborações propostas e discutidas pelos confrades, ao longo dos anos.
Também é possível ver que as coroações continuavam acontecendo. O que parece realmente
novo é a presença do cargo de diretor espiritual a ser ocupado pelo vigário em exercício.
Ao todo, o cargo contava com onze atribuições, a maioria delas relacionadas a rotinas
de vigilância e controle sobre a irmandade e seus associados, seja na administração da primeira
ou na conduta moral e religiosa dos segundos. Em outros estudos sobre confrarias no Brasil,
não encontrei menção ao cargo de diretor espiritual, o que talvez indique um sintoma do
contexto específico em que o compromisso da irmandade santista foi produzido. Pelas atas das
reuniões, parece que esse cargo não estava instituído em compromissos anteriores, mas no que
analisamos aqui, o qual aparenta ser posterior a 1887, é relevante considerar a influência do
ultramontanismo nas confrarias católicas naquele contexto. Inclusive a instituição neste estatuto
mais tardio pode ser o resultado de anos de negociação entre o poder eclesiástico e os confrades.
Era comum as irmandades procurarem sempre se esquivar do controle eclesiástico sobre
suas práticas administrativas e religiosas, recorrendo ao poder secular, ou usando de artifícios
como a contratação de capelães. Durante o século XVIII, os Visitadores Eclesiásticos eram os
responsáveis por tal vigilância, encarregando-se de fiscalizar se as confrarias estavam
respeitando as hierarquias do clero não passando por cima da palavra do Pároco em exercício,
se seguiam corretamente os preceitos da Igreja sem se entregar a atividades profanas e até
mesmo conferiam os livros de contas.509
506
Idem. Atas da reunião de 16 de junho de 1881; de 24 de julho de 1881; de 16 de outubro de 1881; de 25 de
dezembro de 1881; de 29 de janeiro de 1882.
507
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Compromisso, s/d.
508
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Ata da reunião de 10 de maio de 1908. Livro de atas.
509
BOSCHI. Op. cit., Capítulos 2 e 3, analisa detidamente a relação entre Igreja e Estado e como as irmandades
ocupavam um lugar intermediário entre ambos. Ver também: REGINALDO. Op. cit., pp. 139-148.
216
Na segunda metade do XIX, com a romanização encabeçada por Pio IX, a presença do
Vigário, aliado ao bispo, era a garantia da Igreja de que seus preceitos seriam seguidos
adequadamente no interior das confrarias, entendidas como órgãos divulgadores de práticas,
rituais e da religião católica em geral, portanto a seu serviço. Na Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário de São Paulo, Quintão encontrou registros da interferência do vigário naquela
confraria, que a todo custo tentava anular as eleições para mesa de 1888-1889, com a intenção
de adequar as práticas da irmandade aos preceitos da romanização e afastar os caifazes da
direção. Ele chegou a tentar fundar um jornal católico com os recursos daquele grêmio. A autora
menciona ainda outra confraria na mesma cidade e década, devota de St.ª Ifigênia e São
Elesbão, na qual o vigário rivalizava com os confrades caifazes pelas chaves e o direito a toda
igreja.510
Ora, a presença e atuação do Vigário, garantida pelo Compromisso da irmandade
santista, parece ser mais um caso do que esse movimento eclesiástico tentou executar. Assim,
pelo menos formalmente, os devotos de São Benedito acabaram garantindo sua submissão ao
poder eclesiástico e seus representantes, o que pode ter sido difícil de driblar enquanto esteve
sediada na Matriz da cidade. A partir de 1887, a irmandade seria transferida para a Igreja de
Santo Antonio do Valongo, no convento franciscano. Mesmo assim, é difícil confirmar se isso
contribuiu para autonomia da irmandade, pois as ordens religiosas também foram mobilizadas
pela romanização, tanto é que o Compromisso possivelmente datado desta época trazia
sintomas evidentes da vigilância e controle pretendidos pelos eclesiásticos.
Além disso, esse compromisso sem data não tem um capítulo para festa e esta só é
mencionada na atribuição dos cargos a ela relacionados (diretor espiritual, juiz, juíza, rei,
rainha, capitão do mastro e andador). Apesar do procurador ter ficado responsável pela
execução das deliberações acerca dos festejos durante os anos aqui estudados, nesse
compromisso nenhuma menção sobre essa atribuição é feita no artigo que trata de suas
responsabilidades. No Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, encontramos outro
compromisso, também sem data, mas que não difere em quase nada daquele em posse da
Irmandade. Possivelmente, são duas versões do mesmo documento que foi revisado mais de
uma vez, enviado e reenviado entre confrades e autoridades eclesiásticas, nos primeiros anos
dos Novecentos.511
510
QUINTÃO, Op. cit., pp. 85-91.
511
Arquivo da Arquidiocese de São Paulo (AASP). Compromisso da Irmandade de São Benedito de Santos, s/d.
Pasta I de documentos avulsos da Paróquia de Santos.
217
De qualquer forma, mais interessante do que nos estendermos numa análise detalhada
desses estatutos será prestarmos atenção em quais partes deles são mencionadas durante as
reuniões, seja apenas para legitimar determinadas ações, seja para serem criticados e/ou
alterados. A primeira coisa que reparamos é que definitivamente nenhum desses dois
compromissos que temos em mãos era o vigente durante o período que cobrimos aqui, isto é,
1859 a 1887. Os artigos sobre a festa, as eleições, a prestação de contas, entre outros temas não
coincidem com os artigos que abordam os mesmos assuntos nos estatutos que constam no
arquivo particular da Irmandade e no da cúria paulista.
Em geral, o compromisso é sempre mencionado para justificar a pauta da reunião. Por
exemplo, em 1859, 1864 e 1871, os respectivos juízes abriram as reuniões dizendo que a mesma
tinha por fim a organização da festa como consta nos artigos 15 e 16 do compromisso vigente
na época. No entanto, há momentos em que alterações são propostas. Em 05 de janeiro de 1860,
o irmão tesoureiro Joaquim Benedito Braga fez ver aos confrades que os valores das joias de
entrada pagas na hora da admissão dos irmãos eram muito diminutos. Por isso, em breve, a
confraria não poderia dar campas e mais sufrágios aos irmãos que falecessem. Braga ainda
denunciou que a maior parte dos confrades mais antigos não pagavam seus anuais, nem as taxas
dos cargos para os quais eram eleitos. Ele culpava a procedência de procuradores anteriores que
deixaram por muitos anos esses inadimplentes ficarem no “desleixo”. Assim, o tesoureiro
propunha
não se admitir para Irmãos as pessoas que não pagassem de joia de entrada
dez mil réis (10$000) ficando sujeitos aos cargos para que fossem eleitos
porém isentos de pagarem anuais; assim como os que quisessem ser isentos
dos cargos e anuais, vinte mil réis (20$000) ficando inteiramente em vigor
esta deliberação no caso que a Mesa aprove para ser contemplada na primeira
reforma do Estatuto da nossa Irmandade.512
Aparentemente, essa proposta venceu em algum momento, pois, como vimos antes, o
compromisso sem data em posse da confraria dispunha dessa forma as classes de irmãos e os
valores a serem pagos por cada uma delas. O compromisso que está na Cúria, por sua vez,
também reitera o pagamento de 20 mil réis para quem quisesse se isentar dos anuais e taxas.
Contudo, designa para os demais irmãos a joia de entrada de cinco mil réis e anuais de mil
512
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Ata da reunião de 05 de janeiro de 1860. Livro de Atas.
218
descontente com a maior parte dos Irmãos da [Irmandade] e pelo pouco cazo,
e falta de vontade no pagamento de seus annuaes, tendo sido baldado todos os
seus esforços [para] recebimento dos [ditos] annuaes: indicava [que] se
cumprisse a risca o [que] determina o [dito artigo] e paragrapho, fasendo-se
os anuncios precisos afim de chamar attenção aos Irmãos e não desculpas e
queixas.514
Como vemos, foram anos nos quais as regras e as práticas organizacionais da confraria
estiveram em constante reelaboração de acordo com os interesses coletivos e individuais
daqueles que se reuniam para tomar as decisões. Já temos noção do teor das disputas entre os
grupos de interesse no interior dessa irmandade e vimos que a virada dos anos 1870 para os
1880 foi marcada pelo auge de um conflito entre duas facções. Justamente, é durante os anos
de 1881 e 1882, marcados pela ascensão do grupo de Azevedo e dos Aguiar à mesa, que uma
reforma completa do compromisso será iniciada.
Como dito, essa reforma parece ter tido como estopim a eleição para a mesa de 1881,
na qual Freire negou a candidatura de Azevedo. Na ocasião, o compromisso vigente delegava
ao escrivão que apresentasse a lista dos irmãos aptos a se candidatar. Seu antigo funcionário
criticava exatamente essa prerrogativa e teve que aceitá-la quando o Juiz Provedor de Capelas
ressaltou que isso estava corroborado pelo estatuto. Uma vez realizada a eleição e visto que
Freire não foi reeleito, os próximos meses foram marcados pelos esforços dos novos mesários
513
ACMSP. Compromisso da Irmandade de São Benedito de Santos, s/d. Pasta I de documentos avulsos da
Paróquia de Santos.
514
Idem. Ata da reunião de 16 de dezembro de 1883.
219
Pelo Irmão Escrivão [Jozé Antonio de Azevedo] foi dito que havendo
necessidade de compras de livros para reforma da escripturação, visto achar-
se apprezente com [muitas] irregularidades, assim como a reforma do
compromisso pelas faltas n’elle encontradas, pedia adeliberação da prezente
reunião; aqui foi aprovado unanimemente: sendo nomeados para organizar o
compromisso o Irmão Juiz [Adauto Félix de Lima] e o Irmão Satyro Alves de
Azevedo e concluido este tractar-se de convocar uma Reunião Geral para
discutir-se.515
515
Idem. Ata da reunião de 16 de junho de 1881.
220
casa comercial Raphael Sampaio & C. (1897), além de ter se candidatado para vereador de
Santos pela chapa do Partido Liberal (1883).516
De uma forma ou de outra, é perceptível que havia vantagens em escolher esses dois
indivíduos para a redação e o pedido de aprovação do novo compromisso. Eles eram homens
letrados, versados na vida comercial e na burocracia. Mesmo que fossem brancos, podiam estar
alinhados ao interesse dos “festeiros”, que julgamos terem como núcleo os “pobres pretos” que
o padre Barrozo tanto temia serem ludibriados.
Durante as reuniões seguintes nesse ano, os trâmites burocráticos para aprovação do
compromisso vão caminhando, com Azevedo requerendo recursos para bancar as taxas
necessárias. Contudo, na primeira reunião de 1882, o vigário compareceu para apresentar
algumas objeções sobre o novo estatuto:
516
Almanach Provincia de São Paulo: Administrativo, Commercial e Industrial (SP), 1886, p. 503. Correio
Paulistano, 24 de maio de 1897. Indicador Santista, pp. 1. Novo Almanach de São Paulo: Para o Anno de 1883
(SP), 1882, pp. 261. Santos Comercial, 18 de agosto de 1895.
517
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Ata da reunião de 29 de janeiro de 1882.
221
está em posse da irmandade, estes três últimos devem pagar 20 mil réis cada, enquanto os
mesários e andador devem pagar 15 mil réis cada um. Considerando que esses dois
compromissos são posteriores a 1887, portanto posteriores também à essa reunião de 1882,
parece que, mais ou menos, os confrades conseguiram manter toda mesa administrativa
pagando alguma taxa, assim como os cargos de devoção. Com exceção do andador e dos
zeladores que, no compromisso na Cúria, não precisam pagar nada. Ainda assim, no decorrer
desse trâmite burocrático de aprovação ou não dos estatutos, constata-se que há mesmo a
intenção de limitar a renda dos confrades. Em contexto de romanização, a Igreja estava
reprimindo as manifestações religiosas que fugiam da ortodoxia católica pregada pelo papado
naquele momento. Portanto, é sintomático que esse pároco estivesse tentando atingir a renda
provinda de dois cargos tão caros à festa. Além disso, estranha ele querer retirar a taxa de cargos
que costumeiramente são exercidos por pessoas em condições financeiras mais cômodas, como
o de tesoureiro e procurador.
Por trás de uma retórica que procura demonstrar preocupação com os irmãos mais
pobres que supostamente não poderiam contribuir financeiramente para o engrandecimento da
irmandade, as intenções de sabotagem e vigilância sobre uma comunidade negra espreitam
esperando oportunidades para serem efetivadas. Ademais, como já sabemos, o padre Barrozo
tinha uma ideia negativa sobre a devoção dos santistas que julgava serem mais devotos do
dinheiro do que dos padroeiros. As irmandades realmente contavam com outras formas de renda
para além dos anuais e das joias pagas no ingresso e na posse dos cargos. Os irmãos de São
Benedito, por exemplo, compravam apólices como mencionamos antes, além de possuírem
imóveis, que já dissemos terem recebido em doação. Em janeiro de 1863, no entanto, os
confrades decidiram vender uma casa que tinham nos Quartéis para reverter seu valor em
apólices. Eles conseguiram fazê-lo pelo preço de um conto e cem mil réis.518 Anos depois, em
1875, é registrado em ata que a confraria possuía metade de uma casa, cuja a outra parte era de
propriedade dos confrades Eleuterio Vergueiro e Bonifacio Belchior. Os dois propunham
comprar a metade da irmandade, o que foi aprovado pela mesa e o dinheiro adquirido foi mais
uma vez investido em apólices.519
A Irmandade do Rosário dos pretos da mesma cidade também estava no ramo de imóveis
e chegou a alugar um prédio para a Companhia Viação Paulista, para um colégio e para um
depósito de madeira, ao longo dos anos 1880 e 1890. Além disso, fazia leilões de prendas e
518
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS.Atas das reuniões de 05 de janeiro de 1863; 21 de agosto
de 1863; 25 de outubro de 1863. Livro de atas.
519
Idem. Atas das reuniões de 26 de dezembro de 1875; de 05 de janeiro de 1876.
222
pedia empréstimos ao poder público.520 Em São Paulo, os devotos do Rosário também atuavam
no ramo imobiliário. Os prédios que cercavam a Igreja do Rosário da capital eram da confraria
que alugava para comerciantes e algumas famílias. Contudo, em alguns momentos isso rendeu
sérias crises para os confrades quando alugaram seu consistório para fins não religiosos,
chegando eles a perderem a licença para realizar as cerimônias religiosas e litúrgicas em seu
templo. Com isso, a mesa expulsou os irmãos que tiveram participação no respectivo
contrato.521
Por outro lado, e de volta à reunião dos irmãos de São Benedito com o pároco, sua
objeção sobre a eleição reflete a possibilidade de realmente haver um clima de intimidação
nesses momentos. Os irmãos que eram subordinados ou dependentes de outros confrades, nos
espaços externos à irmandade, podiam de alguma forma estar sendo intimados nos momentos
decisivos. As redes de sociabilidade que ao longo da dissertação viemos tentando explicitar ao
leitor eram compostas necessariamente por redes de dependência, relações de trabalho e
familiares que impunham uma hierarquia. Se as irmandades ofereciam um espaço em que essa
hierarquia era relativizada, elas não davam conta de tornar tal relatividade absoluta e o
clientelismo podia se imiscuir nas reuniões como fazia em outros momentos, como nas eleições
para cargos públicos e no recrutamento militar.522
Mais interessante é quem se opôs de imediato às “objeções” do eclesiástico: o
procurador Jerônimo X. da C. Aguiar e Satyro A. de Azevedo.
520
FRANCO. Op. cit., pp. 35-60.
521
AMARAL. Op. cit., pp. 71-89.
522
Sobre as eleições e a mobilização de clientelas para votar ver GRAHAM, Richard. Patronage and Politics in
Nineteenth-Century Brazil, Stanford: Stanford University Press, 1990, cap. 5. Sobre clientelismo e recrutamento
militar ver KRAY. “Os companheiros de Dom Obá: os zuavos baianos e outras companhias negras na Guerra do
Paraguai”. Afro-Asia, 46 (2012), pp. 125.
223
Qui emquanto a eleição não ser feita por cedulas e sim verbalmente, acha que
como está no compromisso é o melhor meio, mesmo por ser o modo
estabellecido dê a muitos annos. Si o nome lembrado para qualquer cargo é
motivo de vexame para algum dos Irmãos, e votarem contra seus desejos por
meio das cedulas deve ser muito peiór, visto que não sabendo ler n’em
escrever a maiór parte dos Irmãos, é facil serem illudidos.523
523
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Ata da reunião de 29 de janeiro de 1882. Grifos nossos.
524
Provavelmente foi em 1885, pois em agosto deste ano Azevedo menciona que a ideia de contratar Barrozo
como capelão da Irmandade do Santíssimo Sacramento surgiu em razão de Junqueira ter deixado o posto de pároco.
Diário de Santos, 25 de agosto de 1885.
525
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Livro de Irmãos, pp. 28-29.
224
Emmerick, nomes que seriam muito assíduos nas reuniões da penúltima década dos Oitocentos.
Por sua vez, o ano em que o padre entrou, ingressaram também José Jeremias da Silva, Livino
Antonio Fogaça e Theodoro Justiniano de Loredo, mais nomes ativos nos encontros da mesa
daquela década.526 Especificamente nas reuniões entre junho de 1881 e janeiro de 1882, nas
quais a reforma do compromisso foi pautada, esses irmãos estiveram presentes para se informar
e/ou debater sobre a questão. Destaca-se que estiveram presentes nas mesmas ocasiões:
Eleuterio Vergueiro, Benedito Guerra, Gregorio Nebias, José Jacintho da Silveira, Erasmo
Carvalho, Lourenço Patusca, Miguel Caetano dos Santos, Sebastião Custódio, Sebastião Leite,
Anacleto Leite e Miguel Mina, muitos dos quais participaram das subscrições feitas para a
procissão de São Benedito ou ocuparam cargos variados da corte festiva.527 Assim, vemos que
a hipótese da maior participação da parcela “de cor”, diria até africana, da irmandade fez
questão de estar presente em momentos tão cruciais para a comunidade confraternal.
Realmente, parece que Azevedo e Aguiar tinham o apoio dessas pessoas, uma vez que os
presentes em janeiro de 1882 votaram para manter a letra do compromisso feita por eles, em
detrimento das objeções do padre.
É curioso notar que nessa mesma década os irmãos pretos do Rosário também
começaram a se mobilizar para reformar seu compromisso. Diferente dos confrades de São
Benedito, eles pareciam enfrentar muito mais dificuldades financeiras naqueles anos, apesar de
poderem gozar de um templo próprio. A torre do mesmo havia desmoronado em 1881, forçando
os irmãos a manterem sua Igreja fechada por quase toda a década. De acordo com Jaime Franco,
a reforma foi extremamente lenta devido à falta de recursos. Talvez isso tenha aproximado os
irmãos do Rosário dos confrades de São Benedito, reforçando o coro daqueles que priorizavam
os festejos à compra das apólices.528
As coisas parecem mudar a partir de 1883, quando Antonio Eugênio Wansuít é eleito
para o cargo de tesoureiro e mobiliza os confrades na causa pela reforma da igreja. Foi uma
década marcada pela atuação dele e de outros homens de cor republicanos na mesa, como
526
Idem, pp. 21, 25, 26, 28, 29 e 58
527
Benedito Guerra foi andador entre 1882 e 1884, mas também foi mesário entre 1876 e 1879 e entre 1884 e
1886. José Jacintho da Silveira foi rei entre 1859 e 1860, zelador geral entre 1863 e 1864, zelador do altar entre
1879 e 1886 e mesário entre 1861 e 1862, entre 1869 e 1870. Erasmo de Carvalho foi rei entre 1881 e 1882.
Lourenço Patusca foi capitão do mastro entre 1882 e 1883 e entre 1885 e 1886. Miguel Caetano dos Santos foi
capitão do mastro entre 1877 a 1878 e rei entre 1882 e 1883. Sebastião Custódio foi rei entre 1880 e 1881. Sebastião
Leite foi rei entre 1879 e 1880. Anacleto Leite foi mesário entre 1869 e 1870 e de 1874 a 1875, além de ter sido
capitão do mastro de 1878 a 1879 e andador entre 1879 e 1881. Vide IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE
SANTOS. Livro de atas.
528
Para as informações sobre as reuniões da Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos de Santos neste e
nos próximos parágrafos ver FRANCO. Op. cit., pp. 35-60.
225
529
SANTOS. Op. cit.., 1936, vol. 2, pp. 223-224.
530
Para as informações sobre as reuniões da Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos de Santos neste e
nos próximos parágrafos ver FRANCO. Op. cit., pp. 35-60.
226
um (se foi mesário ou não, quanto paga de anual, se já fez outras doações à confraria, etc.). O
documento foi aprovado pelo bispo naquele mesmo ano.
Entretanto, após vários anos de altos e baixos, com as obras necessárias no templo e no
jazigo e a inadimplência de muitos confrades, a mesa notou a ineficácia do velho compromisso,
em 1886. O juiz Manoel E. do Livramento nomeou uma comissão para revisar e elaborar um
novo documento. Para tanto foram escolhidos Antonio Eugenio Wansuit, Guilherme Elias
Aralhe e Benedito Figueiredo Ramos. Só teremos notícia do andamento desse processo dois
anos depois, na reunião de 4 de novembro de 1888, quando a comissão apresentou seu projeto
que contou com a ajuda do irmão Sidrônio José de Oliveira, o qual também pertencia a várias
confrarias da Corte e, por isso, possuía de antemão um Compromisso pronto, que era uma
compilação de vários outros documentos semelhantes, mas que podia ser modificado de acordo
com as necessidades dos irmãos do Rosário de Santos. Uma vez debatido em reunião, artigo
por artigo, os confrades reunidos reconheceram mais uma vez que o Compromisso de 1856 não
oferecia mais vantagens ao conjunto dos irmãos, agora livres e não mais submetidos ao domínio
senhorial, muito menos dava conta de regular seus deveres, nem provia aos melhoramentos da
economia e boa administração da confraria que aceitava pessoas de qualquer raça e
nacionalidade. É interessante perceber que, na própria percepção dos contemporâneos, o fato
dos confrades serem ou não livres, influenciava nas regras que iam conformar o novo estatuto.
Mesmo assim, o novo compromisso só ficou pronto em 1889. Em sete de abril, o irmão
Sidrônio J. de Oliveira apresentou o documento, relembrando fatos históricos da irmandade que
seriam o prólogo, cujo final Franco reproduz para nós:
Franco não nos dá os detalhes das alterações que foram feitas no estatuto, mas pelo
discurso do irmão Oliveira vemos que há uma reafirmação dos valores e princípios relacionados
ao culto do Rosário. De acordo com Raul Joviano do Amaral, essa devoção envolvia noções de
acolhimento, perdão, amor, meditação sobre a vida, a morte e a ressurreição. Ao rezar o rosário,
o devoto medita acerca da humildade, da caridade, do desapego. Pede coragem nas provações
e nos momentos dolorosos, nutre o ódio pelo pecado, pede pela mortificação dos sentidos.
Nessa oração, exercita-se a paciência, a resignação e a abnegação. Assim, consolidava-se a
completa conversão a Deus, cujo fim era atingir aos céus por meio da graça de uma boa morte
e da confiança na Santíssima Virgem. Por outro lado, é interessante notar o apelo à memória e
história de uma confraria composta por “homens de cor” que por “mais de dois séculos, milita
debaixo da invocação Augusta do Rosário de Maria, procurando perpetuar a devoção desta
Vossa invocação”. Mais curioso é perceber o termo usado para mobilizar tal identidade e
memória por parte dos irmãos: “homens de cor”. Até então, essa confraria era intitulada
“Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos”. Uma vez extinta a escravidão, no espaço
de quase um ano, os irmãos não perderam tempo em se afirmar, agora não mais com o distintivo
que os conectava a um passado como cativos, mas sim, com uma expressão que ao longo do
século de XIX foi usada por homens negros e pardos, em geral livres e letrados, para reivindicar
cidadania e igualdade jurídica. “Homens de cor” era um termo que propunha uma aliança entre
todos aqueles que sofriam as agruras do “preconceito de cor” que atormentava os sujeitos que
não tinham a pele branca, sobretudo aqueles que já viviam em liberdade. Quando todos os
negros, pardos, cabras, mulatos e tantos outros deixaram oficialmente de ser cativos em 1888,
531
FRANCO. Op. cit., pp. 45-46. Grifo nosso.
228
esse “preconceito de cor” passou a ser uma das experiências que todas essas pessoas cada vez
mais compartilhavam.532
Apesar disso, o sofrimento em comum nem sempre era garantia de que uma identidade
e solidariedade racial pudesse se disseminar em todos os que passavam por isso. Após a
Abolição, a vida das confrarias negras não ficou mais fácil. Infelizmente não há registro de atas
da Irmandade de São Benedito entre 1887 e 1907. Nesse período, os confrades estiveram
sediados na sede dos terceiros da Penitência, no Convento de Santo Antonio do Valongo.
Segundo consta nas primeiras atas do século XX, aparentemente foi um período de intensa
disputa entre os dois sodalícios e os irmãos de São Benedito acabaram perdendo parte de seus
bens e documentos no processo. Ainda assim, nos anos 1890, temos a eleição de Quintino de
Lacerda para juiz, no mesmo ano em que ocorreu a Revolta da Armada, na qual esse confrade
teve um papel importantíssimo, organizando grupos de homens de cor para defender a cidade.
Lacerda foi reeleito para o cargo até 1895.
Por seu turno, na Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos, os republicanos
Wansuít, Ramos e Aralhes continuavam sendo eleitos durante toda a década para cargos
variados (juiz, tesoureiro, escrivão, procurador). Contudo, a confraria passava por grandes
dificuldades financeiras a ponto de ter que vender parte do terreno de sua Igreja para cobrir os
gastos com suas atividades, em 1891, mesmo ano em que ocorreu a greve geral e Lacerda
liderou turmas de homens de cor para furar a paralisação. Isso reforça a situação de
vulnerabilidade em que se encontrava os sujeitos, mas também os coletivos negros em um
momento em que a competitividade no mercado de trabalho aumentava com a chegada
crescente de imigrantes europeus e a popularização das teorias raciais que desqualificavam os
povos não-brancos. Fator que fazia a escolha de furar a greve e de recorrer às antigas alianças
do tempo do abolicionismo parecerem mais vantajosas para esses homens de cor. Para piorar,
em 1893, os confrades tiveram seu cofre e sino roubados.533
Para contornar as dificuldades, os devotos do Rosário passaram a alugar os fundos da
Igreja para um depósito de madeira e montaram um quiosque ao lado do templo para leilão de
prendas, naquele mesmo ano. Além disso, um colégio voltado para filhos de pessoas pobres foi
532
Sobre as percepções de sujeitos não-brancos como homens de cor e como identificavam o preconceito de cor
como um mal compartilhado entre eles: PINTO, Ana Flávia Magalhães. Escritos da liberdade: literatos negros e
cidadania no Brasil oitocentista. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 2018, pp.181-223. Para um enfoque dessas
percepções na imprensa negra brasileira do século XIX: PINTO. Op. cit., 2006.
533
Para as informações sobre as reuniões da Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos de Santos neste e
nos próximos parágrafos ver FRANCO. Op. cit., pp. 35-60.
229
aberto no primeiro andar do consistório, contudo não era gerido pela confraria, esta apenas
alugava o espaço.534
Do ponto de vista político, o consistório do Rosário foi palco de disputas reveladoras
sobre as filiações partidárias da comunidade confraternal em torno daquela confraria, que, como
vimos, podia se estender até as irmandades de São Benedito e N. S. do Terço devido à sua
interação constante. Em 1895, no mesmo ano em que Lacerda era alvo das polêmicas sobre sua
eleição para vereador municipal, o juiz eleito no Rosário apelava
Com isso, vemos que as disputas pela memória da Abolição persistiam na cidade,
inclusive entre os negros, após sete anos da sua efetivação e da realização dos festejos que
analisamos anteriormente. As disputas parecem ter se amenizado, pois em 1897, após muitos
anos de dificuldades financeiras, os irmãos do Rosário conseguiram realizar uma festa com
grande pompa. Entretanto, a vigilância e perseguição dos eclesiásticos continuava sendo um
obstáculo. De acordo, com Jaime Franco,
534
Apesar dessa experiência diferir daquela dos irmãos de São Benedito de Campinas, que fundaram seu próprio
colégio, é interessante notar que projetos educacionais encontravam espaço sob as dependências de ambas as
confrarias. GALDINO. Op. cit., 2001, pp. 05-82.
535
FRANCO. Op. cit., pp. 51.
536
Idem, pp. 53.
230
confrarias e aqueles escolhidos nos mocambos como sendo a mesma coisa. Os reis festivos
tinham poder limitado ao tempo da festa e a algumas atribuições, enquanto os reis quilombolas
eram chefes políticos que governavam de fato as comunidades que os elegiam, usufruindo dessa
prerrogativa durante diariamente até serem mortos ou capturados. Contudo, podem ter a mesma
referência simbólica com desdobramentos diversos. No caso santista, a conexão – documentada
– entre as duas formas de liderança se sustenta apenas na relação Irmandade-Quintino de
Lacerda-Pai Felipe, o que não deve ser tomado como argumento a favor de ignorarmos essa
hipótese, mas sim para que novas pesquisas vasculhem arquivos públicos, eclesiásticos e
particulares em busca de maiores evidências.537 No mínimo, as descrições preconceituosas dos
memorialistas podem ter se inspirado nas dinâmicas observadas nas irmandades para
caracterizar a tal realeza africana de Pai Felipe, visto que muitos militantes abolicionistas
também estavam nesses espaços. De qualquer maneira, fazemos das palavras de Marina de
Mello e Souza as nossas:
537
MELLO E SOUZA. Op. cit., pp. 222-223, encontrou casos em que essa intersecção ocorre: “As semelhanças
de objetos rituais usados nas congadas e suas variantes com objetos rituais bacongos também aparecem nas festas
religiosas católicas de um grupo remanescente de quilombo da região do baixo Amazonas. Definindo-se como
católicos, seus membros cultuam Santo Antônio e São Benedito, em homenagem ao qual é anualmente realizada
uma festa, de 25 de dezembro a 6 de janeiro, na qual sai o ‘Cordão do Marambiré’. Para Eurípedes Antonio Funes,
que estudou essa comunidade, o Marambiré ‘significa a identidade do Pacoval, uma manifestação cultural que
vem do tempo dos mocambos, constituindo-se um dos elos mais fortes de vinculação do presente dessa
comunidade negra com o passado dos mocambos. [...] O Cordão do Marambiré é uma variante da congada,
festejando a eleição de um rei negro, composto por uma corte em torno do rei congo, que Eurípedes Antonio Funes
diz ser ‘um mito de origem’. O rei é a autoridade máxima, devendo ser bom dançarino além de líder, portanto uma
coroa e indumentária diferente da dos ‘valsares’, que executam as danças, geralmente compromisso assumido pelo
resto da vida em cumprimento de uma promessa que foi atendida. Apesar de não encontrar afirmativas consistentes
a respeito de quando começaram a dançar o Marambiré, o autor chama a atenção para ligação que os depoentes
fazem entre a dança de lá, mas não podiam realiza-la sob a escravidão, retomando-a na liberdade do mocambo.
[...] Nos mocambos estudados por Eurípedes Antonio Funes, há imagens de Santo Antônio e São Benedito
esculpidas em madeira que se parecem com os minkisi e também com imagens de Santo Antônio esculpidas em
Angola, onde são conhecidas por Toni malau. Pertencem a essa mesma linhagem cultural as imagens de Santo
Antônio conhecidas como ‘nó de pinho’, esculpidas por escravos do interior do Estado de São Paulo nos séculos
XVIII e XIX. Segundo a explicação de descendentes de escravos, eram escolhidos os nós da raiz do pinheiro pois
a rigidez da madeira impunha ao escultor tamanha dificuldade que se acreditava que com tal sacrifício ‘os poderes
sobrenaturais dos santinhos seriam maiores e mais eficazes’. A identificação de santos católicos com minkisi
integrantes da religiosidade baconga existiu na África antes de se desenvolver na América portuguesa. Desde os
primeiros tempos da conversão, as imagens católicas foram incorporadas ao catolicismo africano, nele
desempenhando funções dos minkisi”.
232
os escravos e seus aliados, não sem um longo debate acerca dos meios com os
quais atingir tais objetivos.538
O fato é que as irmandades nos dão parâmetros para observar esses fenômenos. Apesar
de abrigar grupos étnicos e sociais específicos, elas não eram totalmente exclusivas e a
composição de seus quadros refletia a fina teia de sociabilidade na qual estavam inseridos todos
os irmãos e irmãs. Para manter seu território simbólico, seu respeito perante a sociedade e o
direito à reunião e à celebração, os confrades tinham que lançar mão de uma série de acordos e
desacordos; fazer concessões e cobrar reivindicações; articular as pessoas certas na quantidade
certa para se fazerem presentes em reuniões importantes. Fica mais palpável como homens de
cor, pretos e pardos, livres e libertos, conseguiram ascender socialmente e se familiarizar com
as práticas políticas da sociedade santista em formação durante o século XIX. O processo de
racialização também impõe certas dinâmicas ao colocar dificuldades para alguns e abrir
oportunidades para outros, de acordo com a complexa combinação de marcadores raciais e
sociais que cada sujeito carrega. Se alguns irmãos negros e pardos só puderam ser localizados
nas confrarias tradicionalmente reservadas a eles, outros conseguiam ingressar nas irmandades
e ordens terceiras mais distintas da cidade.
Em relação as designações de cor e raça, colhemos mais algumas referências
importantes para entender como esses sujeitos se definiam e eram definidos pelos outros.
Novamente, a cor “preta” carrega conotações negativas e depreciativas, contudo há brechas
para sua afirmação uma vez que todo cristão tinha a mesma capacidade de alcançar a graça e a
santidade, desde que soubesse seu lugar e professasse a fé católica. Nesse sentido, o termo
“negro” parece reter uma qualidade menos depreciativa. Como vimos, era o adjetivo mais
comum associado a São Benedito, personificação do negro manso, humilde, obediente e devoto.
Com isso, e lembrando do quanto a caridade era praticada como distintivo social na sociedade
santista, torna-se mais compreensível a autoafirmação de Benedita Fiuza, que vimos no capítulo
1. Ao se dizer negra, possivelmente era a esse imaginário que ela buscava remeter. Boa dona
de casa (apesar de ser bem mais que isso), a liberta caridosa dizia a seus contemporâneos que
ela tinha uma espiritualidade e probidade tão respeitáveis quanto qualquer um deles.
Por sua vez, no terreno das identidades sociorreligiosas, os pardos preferiam se
diferenciar apelando para a origem colonial/nacional e a legitimidade de suas linhagens, por
mais que humildes. Porém, isto não impediu os pardos santistas, mesmo os mais abastados, de
ingressarem nas confrarias onde pretos, mulatos e cativos se agremiavam, assim como muitos
538
MELLO E SOUZA. Op. cit., pp. 241.
233
brancos. Isso nos permite observar a importância política das populações não-brancas em um
contexto de recrudescimento do racismo, seja para aperfeiçoar uma forma de domínio, seja para
buscar apoio político-econômico.
Para compreender melhor o perfil dos membros dessa comunidade confraternal santista,
procuramos fazer uma prosopografia dos irmãos de São Benedito, dos quais tivemos acesso ao
Livro de Irmãos. Ao longo das atas e do compromisso até aqui analisados, podemos ter alguns
vislumbres de que essa confraria aceitava todas as classes e cores da sociedade santista do fim
dos Oitocentos. A seguir, poderemos ter um olhar mais apurado e constatar que tipo de
comunidade era essa.
539
Nas páginas finais são registradas mais de 6 fichas por página.
234
dentro desses 23 anos, é surpreendente a quantidade de novos confrades para os anos de 1892
e 1893.
160
140
120
100
80
60 Total
40
20
0
1815
1833
1840
1847
1850
1854
1857
1861
1864
1867
1870
1873
1876
1879
1882
1885
1888
1891
1894
1897
1900
188?
Fonte: IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Irmãos.
Essa alta de ingressos no início dos anos 1890, pode ter uma série de motivações.
Considerando tudo que já foi dito sobre o contexto pelo qual passava a cidade, os movimentos
políticos e as consequências do fim da escravidão, pensamos ser viável sugerir duas hipóteses.
Primeiramente, a nova situação de vulnerabilidade social à qual os libertos se viram lançados
com o boom de imigrações de europeus e a preferência dos empregadores em contratar este
novo contingente de trabalhadores.540 A própria greve de 1891 se mostra um sintoma dessa
situação, na qual Quintino de Lacerda organizou “turmas de homens de cor” para furar a
paralisação dos portuários, àquele tempo de maioria portuguesa e espanhola. Em outras
palavras, além de continuarem marginalizados, tendo de habitar residências precárias, os
libertos agora competiam com uma grande massa de imigrantes pelos postos de trabalhos que
costumeiramente ocupavam antes, ficando muito mais vulneráveis à pobreza e à suas
consequências, como alimentação precária ou maiores riscos de contraírem doenças e não terem
recursos para tratá-las. Numa situação como essa, as irmandades podiam parecer uma ótima
saída para um acolhimento comunitário, no qual o indivíduo encontraria cuidados médicos e
540
Para Santos: FONTES. Op. cit., pp. 108-109. Para São Paulo: ANDREWS, G. R. Negros e brancos em São
Paulo, (1888-1988). Trad.: Magda Lopes. Bauru-SP: EDUSC, 1998, pp. 93-148.
235
541
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Irmãos, pp. 60.
542
SANTOS, F. M. dos. Op. cit., 1936, vol. 2, pp. 219-225.
543
A Tribuna, 26 de janeiro de 1939. Sobre os casos em que tomou parte em ações de liberdade ver ROSEMBERG.
Op. cit., 2006, capítulo 4.
236
Profissão Irmãos
Advogado 1
Agencias 5
Alfaiate 1
Artista 1
Carpinteiro 2
Cozinheiro 1
Delegado 2
Doutor em leis 1
Emp. Comercio 3
Emp. Público 7
Escritor 1
Fabricante de cal 1
Guarda-livros 2
Industria 1
Jornalista 2
Juiz de Paz 1
Marceneiro 1
Militar 3
Negociante 12
Padre 1
Pedreiro 2
Proprietário 4
Total de
profissões 55
registradas
Total de Irmãos 106
Fonte: IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Irmãos; Livro de Atas; Arquivo do Estado de São Paulo
(Apesp), Secretaria da Presidência da Província de São Paulo, Negócios eleitorais, Ordem CO5904, Caixa 216;
Indicador Santista, 1887.
Ao que parece, a irmandade, ou pelo menos sua cúpula, era composta por sujeitos
ligados ao comércio e à prestação de serviços, que representam 54,4% das profissões. Numa
cidade com as características de Santos isso não é de se estranhar, haja vista que no período
aqui estudado, eram justamente esses setores que mais cresciam na economia local. O porto e
238
544
Sobre Machado de Assis e Luiz Gama: PINTO. Op. cit. 85-115 e 145-180. Sobre Maria Firmina dos Reis:
DUARTE, Eduardo de Assis. “Maria Firmina dos Reis: Na Contracorrente do Escravismo, o Negro como
Referência Moral”. In: CHALLHOUB, Sidney. PINTO, Ana Flávia M. Pensadores Negros – Pensadoras Negras.
Cruz das Almas/Belo Horizonte: Ed. da UFRB/Fino Traço, 2016, pp. 41-58. MACHADO. M. H. P. T. “Introdução
– Maria Firmina dos Reis: invisibilidade e presença de uma romancista negra no Brasil do século XIX ao XXI”.
In: REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2018, pp. 7-42.
239
sentido ter uma presença significativa das instituições públicas e representantes do Estado na
região.
De certa forma, as profissões presentes na confraria de São Benedito são representativas
da economia local, contudo, outros detalhes nos fazem crer que é muito provável que essa
amostra represente apenas aqueles indivíduos que tinham mais oportunidade e recursos para
estar na mesa administrativa e não tanto o conjunto dos membros da agremiação. Isso porque
para exercer as funções específicas de cada cargo, como já vimos anteriormente, muitas vezes
eram necessários influência social e capacidades como saber ler e escrever. Ou seja, podemos
concluir que o comércio era a principal via de mobilidade social e acesso ao poder no interior
da agremiação. Sobre o letramento, expomos o gráfico a seguir:
Total
90
80
70
60
50
40 Total
30
20
10
0
Não Sim (vazio)
Fonte: IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Irmãos; Livro de Atas; Arquivo do Estado de São Paulo
(Apesp), Secretaria da Presidência da Província de São Paulo, Negócios eleitorais, Ordem CO5904, Caixa 216.
545
SCARANO. Op. cit., pp. 130.
546
MACCORD. Op. cit., 2001 pp. 58. REGINALDO. Op. cit., pp. 108, afirma que desde “o século XVIII, [...],
tanto na América Portuguesa, quanto na metrópole, os homens de cor foram paulatinamente conquistando o direito
a esses prestigiados cargos [de escrivão e tesoureiro]”.
241
Ademais, mais um fator que pensamos ser útil para apurar a influência desses homens
na sociedade era a renda, que pudemos identificar nas mesmas listas de eleitores. Dos 106
indivíduos da nossa amostra, nas listas encontramos a renda de 27 pessoas. A tabela a seguir
ilustra essa situação:
Irmão
Renda*
s
Menos de
12
1:000$000
1:000$000 a
9
2:400$000
3:000$000 a
3
3:600$000
6:000$000 3
Total 27
Fonte: IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Irmãos; Livro de Atas; Arquivo do Estado de São Paulo
(Apesp), Secretaria da Presidência da Província de São Paulo, Negócios eleitorais, Ordem CO5904, Caixa 216.
*: Nas fontes não é designado se a renda é mensal ou anual.
A maioria deles tinha uma renda aparentemente modesta de menos de 1 conto de réis.
Estes ocuparam todo o tipo de cargo, desde juiz até zelador, incluindo alguns que foram reis,
portanto a riqueza podia ser um distintivo para ser um bom candidato, mas ela não era definidora
de forma absoluta. Suas ocupações profissionais eram de carpinteiro, pedreiro, marceneiro,
indústria, empregado público, agências e um proprietário. Mesmo assim, é surpreendente notar
a enorme renda que alguns dos demais listados possuíam. Dois dos três mais abastados, com
renda de 6 contos de réis, além de terem sido negociantes bem-sucedidos, ocuparam funções
importantes na política local. Joaquim Xavier Pinheiro, como já mencionado, foi vereador,
major e delegado, enquanto Manoel Barboza da Silveira foi juiz de paz. Ainda entre aqueles
com altas rendas, vale mencionar Satyro Alves de Azevedo que com seus cortiços, sua loja de
armarinho e a remuneração do cargo de fiscal da Câmara Municipal, tinha um rendimento de
3:600$000 – três contos e seiscentos mil réis.
242
Ocorrência
Profissão
s
Alfaiate 1
Agencias 2
Carpinteiro 1
Cozinheiro 1
Emp. Comercio 6
Emp. Público 2
Guarda-livros 2
Industria 1
Jornalista 1
Marceneiro 1
Militar (Guarda
1
Nacional)
Negociante 6
Pedreiro 1
Proprietário 1
Total 27
Fonte: IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Irmãos; Livro de Atas; Arquivo do Estado de São Paulo
(Apesp), Secretaria da Presidência da Província de São Paulo, Negócios eleitorais, Ordem CO5904, Caixa 216.
Nessa pequena amostra, é possível considerar que os que trabalhavam nas atividades
comerciais (negociante, empregado do comércio e agências) têm um peso significativo, com
51,8% das ocorrências nesse ramo. Contudo, os ofícios especializados (alfaiate, carpinteiro,
cozinheiro, marceneiro e pedreiro), mesmo aparecendo uma vez cada, somam 18,5% quando
agrupados. Se considerarmos a renda igualmente, podemos constatar que aqueles com
rendimentos mais modestos não eram facilmente descartados para o cargo. Sabemos a renda de
nove, entre os quais seis tinham um rendimento entre 500 mil e 1 conto de réis.
243
N. de
Renda
Irmãos
Entre 500$000
6
e 1:000$000
2:000$000 1
2:4000$0000 1
6:000$000 1
(vazio) 20
Total Geral 29
Fonte: IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Irmãos; Livro de Atas; Arquivo do Estado de São Paulo
(Apesp), Secretaria da Presidência da Província de São Paulo, Negócios eleitorais, Ordem CO5904, Caixa 216.
Com isso, vemos que a riqueza não é tudo, mesmo para um cargo cujo principal interesse
dos irmãos era financiar a festa. Tão importante quanto o dinheiro, eram as redes dos candidatos
e suas capacidades de mobilizá-las em prol da confraria. Além do mais, era o juiz que presidia
as reuniões, logo, em momentos em que a discórdia imperava entre os irmãos, o mais adequado
para o cargo era aquele que conseguiria se fazer respeitar e conduzir os trabalhos. Por exemplo,
mencionamos antes que quando João Jacintho da Silveira, africano e “festeiro”, foi eleito para
juiz durante três anos consecutivos mesmo sem poder dar grandes contribuições financeiras
para os festejos, cuja intenção por trás, poderia ser a vontade da maioria em orientar as reuniões
de modo que as celebrações fossem priorizadas, não as apólices.
Por fim, a presença dos escravizados também é importante para nossa análise, pois não
só reafirma que a confraria de certa forma era direcionada a população negra, como também
nos permite captar mais dimensões sociopolíticas dessa agremiação. Alguns desses cativos
foram de relevância para a articulação interna da irmandade; sintoma disso, foi a eleição de
alguns deles, principalmente, aos cargos de devoção. Antes, porém, vamos analisar sua
participação na irmandade de forma geral.
Dos 968 irmãos, consta que apenas 19 membros eram escravizados, mas é provável que
essa soma esteja equivocada e o Livro de Irmãos incompleto, uma vez que no Livro de Atas,
nos registros das reuniões, aparecem nomes de irmãos e irmãs sendo eleitos para mesa e para
os cargos de devoção, que não estão registrados no primeiro livro, adicionando à soma mais
244
nove nomes de cativos. Portanto, até onde foi possível constatar, temos um total aproximado
de 28 escravizados na confraria. Ainda assim, parece verossímil dizer que os escravizados eram
minoria nessa associação, pelo menos no período abarcado por esses livros. O que não é de se
estranhar, uma vez que em fins do XIX, o número de escravizados estava em declínio por conta
das pressões abolicionistas e dos próprios movimentos escravos, sendo que após 1888, ninguém
mais era cativo:
Total
5
4
3
2 Total
1
0
1832 1847 1848 1855 1857 1858 1859 1862 1868 1870 1873 1878 1879 1885
.
Fonte: IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Irmãos
regulares. A última vez que alguém pagou apenas mil réis de entrada foi em 1876. É provável
que até esse momento esse era o valor mais básico para se tornar irmão e a partir de então
passou-se a cobrar os cinco mil réis. Nos anos 1890 parece ter ocorrido mais um reajuste dos
valores. Em 1893, tivemos os últimos novatos que pagaram 5 mil réis para ingressar na
confraria. Daí em diante, todos os irmãos estão registrados como tendo pagado 10 mil réis de
entrada. Talvez a diferenciação em classes tenha sido derrubada em algum momento, ou ficou
mais difícil pagar o preço para ser remido. De qualquer forma, essas alterações aparentam estar
mais ou menos em consonância com as discussões que vimos sobre o tema, nas reuniões da
confraria analisadas no item anterior.
Entre os doze cativos que sabemos quanto foi pago na entrada, três deram 5 mil réis,
cinco deram 10 mil réis e quatro deram 20 mil réis. Ou seja, a maioria desses escravizados eram
irmãos remidos, isentos de anuidades e alguns não precisavam pagar nem mesmo a taxa para
tomar posse quando eleitos para mesa ou realeza. O que explica esse poder aquisitivo? Em
primeiro lugar, o próprio cativo podia estar juntando pecúlio. Em ambientes urbanos, como já
foi dito, os escravizados de aluguel eram mais comuns e, nesse tipo de relação, havia com mais
frequência senhores que lhes permitiam formar pecúlio. Isso tornou-se um direito dos
escravizados a partir de 1871. Em segundo, se fossem cativos que tinham a benção de seu
senhor para estarem na irmandade é possível que este tenha financiado sua entrada. Pagando as
taxas mais caras, de um lado, o senhor se isentava de continuar pagando anualmente as demais
tarifas, de outro, ostentava certo poder econômico e espírito caridoso investindo tamanha
quantia de uma vez na evangelização de seus escravizados.
Além disso, não consta no Livro de Irmãos que seus senhores estavam na mesma
irmandade, porém, há pelo menos dois casos que podemos afirmar que parentes dos senhores,
mais ou menos próximos, eram confrades. Antonio de Pinho Brandão, senhor de Josepha, tinha
três filhos na mesma confraria que sua cativa, sendo esta a primeira a ingressar. Por outro lado,
o sobrenome Alvarenga aparece cinco vezes no livro, cada uma para designar uma pessoa
diferente. Três delas aparecem apenas como senhores de cativos diferentes. As outras duas
ocorrências designam duas mulheres distintas. Nesse caso, não conseguimos confirmar se as
cinco pessoas são parentes. Por outro lado, no Livro de Atas, em reunião da mesa de 17 de maio
de 1860, consta que o irmão Sebastião José do Monte Bastos propôs “assentar de Irmãos ao
resto de seus escravos”, todos remidos, sem mencionar a quantidade deles.547
547
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO DE SANTOS. Ata da reunião de 17 de maio de 1860. Livro de atas.
246
O fato de vários membros de uma mesma família estarem em uma irmandade não era
incomum. O próprio compromisso da confraria aqui analisada incentivava essa atitude, como
no caso da extensão do direito à sepultamento aos filhos e netos menores de 7 anos. Permitir,
incentivar ou mesmo obrigar seus cativos a participar de uma confraria também não são atitudes
estranhas entre os senhores. Nota-se aqui uma estratégia corriqueira entre a classe senhorial:
colocar seus cativos em irmandades, provavelmente com a esperança de demonstrar para a
sociedade que estavam tomando os devidos cuidados com eles em relação a obrigação senhorial
de catequizar os escravizados. Estratégia que também implicava a intenção de disciplinar os
comportamentos dos cativos através dos preceitos e rituais da religião católica. Em alguns
casos, os próprios senhores e seus familiares entravam na confraria de seu escravizado, fazendo
doações como forma de promoção social ou mesmo política de domínio. Entretanto, uma
terceira hipótese não pode ser descartada. Esses cativos podem ter desejado ingressar na
irmandade por vontade própria, como parte de uma estratégia de garantir seu enterro digno caso
seu senhor fosse negligente nesse aspecto, ou buscar alguma manutenção de sua própria
identidade cultural e étnica, visto que nessa altura da história, pleno século XIX, as irmandades
de negros, em muitos casos, existiam a vários anos, até mesmo séculos. Portanto, faziam
manutenção de sua identidade cultural de forma autônoma, mesmo que com disputas internas.
Quanto aos nove escravizados que participaram da mesa administrativa, é possível
encontrá-los exercendo alguns cargos, principalmente os de devoção, como os de Rei e de
Rainha. Como explicamos mais cedo, esses cargos faziam parte de uma tradição nas irmandades
negras, desde os tempos coloniais. Seu significado estava atrelado à identidade étnica da
confraria. A coroação do Rei do Congo invocava memórias e narrativas sobre as cortes
africanas e seus contatos com os europeus. Inicialmente foram as populações centro-africanas
que, em diáspora, elaboraram as bases dessa tradição. Contudo, conforme o tráfico recorria à
outras regiões de África, mais etnias circularam no tráfico de escravizados, chegando ao Brasil.
Parte deles, os convertidos ao catolicismo, adaptaram-se ao modelo das confrarias de leigos no
cotidiano, ora ingressando nas já existentes e comandadas pelos centro-africanos e seus
descendentes, ora fundando suas próprias irmandades e elegendo seus próprios monarcas.
Assim, os cargos de Juiz, Juíza, Rei e Rainha também tinham uma importância
simbólica e representativa na comunidade. Por mais que o compromisso da Irmandade de São
Benedito de Santos designasse que aos seus monarcas só cabia “abrilhantarem a festa do
padroeiro o quanto lhes for possível”, em geral reis e rainhas desempenhavam um papel
articulador frente a comunidade. E, apesar da Igreja e o Estado tentarem suprimir tal tradição,
em algumas irmandades elas persistiram fortemente no século XIX. O caso da Irmandade de
247
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da freguesia de Santo Antônio do Recife é emblemático
nesse sentido. Seus Reis do Congo estavam no topo de uma hierarquia de lideranças negras de
várias ocupações profissionais, costumeiramente exercidas por escravizados e libertos, na
capital pernambucana.548
Não podemos confirmar se trata-se do mesmo fenômeno em Santos, pois sua
participação não é muito mencionada nos documentos da irmandade. O Compromisso atrela
suas funções unicamente a festa do padroeiro. Nas atas, eles aparecem apenas sendo eleitos,
sem participar das reuniões de rotina, com exceção dos encontros a partir dos anos 1880, o que
já destacamos anteriormente. Tratava-se de um período no qual a população negra não só
crescia em Santos como também se tornava cada vez mais ativa politicamente.
De 15 reis eleitos entre os anos de 1859 e 1902, quatro eram escravizados, sendo que
três desempenharam a função nos anos 1860 e apenas um em 1878. Não encontramos mais
informações sobre eles. Por outro lado, pudemos localizar nas listas de eleitores mais três reis.
Nas demais fontes, porém, não localizamos nenhum. Os três eleitores foram reis em 1882, 1885
e 1888, estando com 60, 22 e 43 anos de idade na ocasião, respectivamente. Dois eram de
profissão “agências”, um solteiro com renda de 400 mil réis e ou outro casado com 600 mil réis
de rendimento. O último era artista, solteiro, o mais jovem dos três e não constava sua renda
nas listas. Com tão poucas informações sobre apenas sete deles fica difícil fazer alguma análise
mais conclusiva. Por ora, pelas aparências, os profissionais de comércio predominam entre os
eleitos para rei, porém são aqueles com rendas mais modestas, o que no mínimo nos aproxima
mais de confirmar que o perfil mais geral da irmandade seja de pequenos comerciantes e
trabalhadores desse ramo.
Quanto aos demais cativos que tiveram cargos, duas foram rainhas, dois foram capitães
do mastro, um foi esmoler, três foram mesários, um foi andador e um foi zelador. Todos eles
exerceram seus cargos apenas uma vez, entre os anos de 1861 e 1867, com exceção do rei eleito
em 1878. Sabemos que pelo menos até 1885 cativos ainda ingressavam na irmandade, então
por que não estavam mais sendo eleitos? É possível que fossem rapidamente libertos após sua
entrada, com ajuda dos demais confrades? Apesar de nenhuma confraria se declarar
explicitamente abolicionista, a historiografia nos diz que elas chegavam a interceder a favor de
seus irmãos cativos quando estes sofriam algum abuso senhorial. Porém, num período como o
que tratamos aqui e numa cidade como Santos existe a possibilidade de o sentimento coletivo
pró-abolicionismo, que se tornava cada vez mais massivo na cidade – e no país –, tomava conta
548
MACCORD. Op. cit., 2001, especialmente capítulo 3.
248
também dos confrades negros. Ainda mais em casos nos quais havia militantes do movimento
entre os membros, como é o caso da confraria santista e das Irmandades de N. S. do Rosário
dos Homens Pretos de Santos e de São Paulo.
Por último, empreendemos uma análise das características dos escravizados das famílias
e/ou fogos aos quais pertenciam alguns irmãos de São Benedito. Cruzando informações da
documentação da irmandade com os maços de 1836 e as listas eleitorais de 1880 e 1881, foi
possível localizar confrades ou seus familiares que tinham ou residiam com escravizados,
naquela década de 1830. Contudo, é preciso fazer algumas ressalvas. Não necessariamente os
cativos eram do irmão ou irmã, mas o importante é rastrear as características dos escravizados
com os quais eles conviviam. Assim, poderemos ter uma projeção do perfil provável dos cativos
e libertos que poderiam ingressar futuramente na confraria.
Selecionamos os fogos em que moravam as famílias e/ou indivíduos de sobrenome
Freire, Macuco, Aguiar, Silva Bueno, Amaral, Silva, Rosa, Nébias, Pinheiro, Barros Lima,
Figueiredo e Machado, todas brancas, com exceção das duas primeiras que eram de pardos.
Vale destacar também que os Silva Bueno, os Rosa, os Pinheiro e os Machado eram portugueses
ou destes descendiam.
Em primeiro lugar, o que chamou nossa atenção foi a nacionalidade designada para esse
conjunto de escravizados. Ao todo são 178 cativos, dos quais a maioria era de origem africana:
249
Nacionalida Porcentag
Qtd.
de em
Africa 4 2,25%
Africano 3 1,69%
Benguela 1 0,56%
Congo 1 0,56%
Costa 6 3,37%
Criolo 20 11,24%
Guiné 7 3,93%
Iguape 1 0,56%
Nação 82 46,07%
Santos 47 26,40%
São
6 3,37%
Sebastião
Total Geral 178 100,00%
Fonte: IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Irmãos; Livro de Atas; Arquivo do Estado de São Paulo
(Apesp), Secretaria da Presidência da Província de São Paulo, Negócios eleitorais, Ordem CO5904, Caixa 216; na
mesma secretaria: Estatísticas, microfilme 176.
A maioria era classificada com o rótulo genérico de “nação”, com 46,07%, que indicava
a origem africana, mas não especificada por ser desconhecida ou irrelevante para quem fazia o
registro. Em seguida, temos os nativos de Santos, com 26,40%. Em terceiro lugar, estavam os
crioulos, como eram chamados os cativos brasileiros, sem naturalidade especificada, com
11,24%. Os naturais de Iguape e São Sebastião, vilas próximas à Santos e com as quais os
santistas costumavam comercializar intensamente, apesar de minoritários, tinham uma
expressão não desprezível quando somados, alcançando quase 4% da amostra.
Surpreendentemente, os centro-africanos (benguela e congo), também uma minoria, juntos mal
passavam de 1%. Por sua vez, os africanos ocidentais (costa e guiné) estão dentro do esperado
se lembramos que esse contingente era mesmo minoritário no Sudeste brasileiro. Mesmo assim,
chama atenção estarem mais bem representados que os centro-africanos, atingindo 7,3%. Além
disso, há mais duas designações genéricas, “africa” e “africano”, totalizando juntas 3,94%.
A primazia das designações mais amplas e genéricas sobre as demais pode indicar que,
como vimos nos dados sobre o tráfico no capítulo 2, grande parte desses cativos não vinham
diretamente do tráfico atlântico, mas sim das redes que se espraiavam em torno do capitão
Freitas e do vigário Junqueira, os quais comercializavam viventes que vinham de outras vilas e
cidades na costa ou no interior paulista. Mesmo no caso dos africanos, estes chegavam à Santos
250
por meio do tráfico interprovincial, como já discutimos. Devemos considerar que os nomes dos
grupos de procedência dos africanos não designavam exatamente a sua etnia de origem, mas
sim os nomes dos portos ou macrorregiões das quais eles vinham. Os “nomes de nação” eram
fruto da complexa mistura de significados dado pelos traficantes e senhores, que lhes atribuíam
suas expectativas e preconceitos, e dos próprios africanos, os quais se encontravam no cativeiro
e reconheciam uns nos outros as semelhanças culturais entre si e se agremiavam sob uma nova
identidade em construção. Por isso, o mesmo nome de nação podia agrupar etnias e práticas
culturais diversas em diferentes regiões do Brasil. Ser mina na Bahia, não é a mesma coisa que
ser mina no Rio de Janeiro, por exemplo. Assim, considerando que os cativos santistas vinham
sobretudo de outras partes da província e do Império, mesmo quando eram africanos, ao chegar
no litoral paulista os traficantes e proprietários locais talvez não reconhecessem seus grupos de
procedência, por conta dessas variações. Além disso, os próprios cativos, ao chegarem em
Santos, podiam perceber rapidamente que sua “nação” ali não era a mesma daquela a qual se
associaram no seu primeiro destino em território brasileiro. Com isso, eles viam a necessidade
de buscar a integração sob novas denominações étnicas mais amplas, assim conformando as
designações de “africanos” ou “nação”.549 Todavia, também é possível que, para os santistas,
estas e as designações centro-africanas fossem quase sinônimos devido à grande presença desse
contingente no Sudeste.
De qualquer forma, esses dados sugerem que o pároco Junqueira alimentava mais o
mercado santista, visto que era em sua rede que as pessoas podiam conseguir africanos com
mais facilidade. Por outro lado, a enorme quantidade de escravizados santistas demonstra que
havia grande interesse na reprodução natural desses cativos entre essas famílias, mas quando
somados com os iguapenses e sebastianenses nos faz pensar que a rede do Capitão Freitas
também alcançava esses círculos, mesmo que em menor escala. A prosopografia dos irmãos
que realizamos à princípio reforça essas observações, uma vez que havia grande número de
negociantes, profissionais liberais e funcionários públicos, além de portugueses e brasileiros.
Levando-se em conta que a Irmandade de São Benedito foi fundada no bairro com mais
portugueses e, durante o XIX, passou para a região da cidade onde havia mais santistas, o mais
provável é que a confraria acabou misturando em alguma medida esses dois perfis demográficos
de cativos e participantes do comércio de viventes.
549
Sobre a utilização de “grupos de procedência” como ferramenta interpretativa das identidades étnicas
construídas em torno dos nomes de nação: SOARES, M. de C. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e
escravidão no Rio de Janeiro do século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2000, especialmente capítulo
1. Ver também: LARA. Op. cit., 2002, pp. 84-86. MELLO E SOUZA. Op. cit., pp. 135-156 e 187.
251
Nº DE
COR PORCENTAGEM
CATIVOS
N 169 94,94%
P 9 5,06%
Total
178 100,00%
Geral
Fonte: Apesp, Secretaria da Presidência da Província de São Paulo, Estatísticas, microfilme 176.
A cor designada para esses cativos nos maços também permite algumas conjecturas.
Como vemos na tabela acima, a maioria esmagadora deles era classificada como negro,
atingindo 94,9% da amostra. Os pardos, por sua vez, totalizavam meros 5,06%. Mais uma vez
a pleonasmo entre “negro/preto”, “africano” e “escravo” se mostra válido, pelo menos no
imaginário dos inspetores de quarteirão que produziram o censo e classificaram as pessoas nele
inseridas. Por outro lado, entre esses pardos, seis tem nacionalidade “criolo”, dois são naturais
de São Sebastião e um de Iguape. Isso sugere que, na primeira metade do XIX, a raça ainda
não tinha como principal critério a pigmentação da pele mais clara ou escura, mas também
envolvia a intersecção com a origem geográfica e étnica dos indivíduos. Mais que isso, permite
que constatemos que o termo “criolo” servia, tanto para negros, quanto para pardos,
demarcando tanto uma aproximação com a escravidão, mas também uma identidade colonial e,
após a independência, brasileira. Mesmo assim, com uma representatividade tão baixa entre
esses cativos, é possível imaginar que a cor “parda” estava bem menos associada à escravidão
nessa primeira década dos Oitocentos. Principalmente se considerarmos que os poucos pardos
da irmandade, suas famílias e agregados que conseguimos identificar eram todos livres.
Dos maços de 1836, recortamos 24 pessoas que moravam em quatro fogos nos quais
residiam confrades pardos de São Benedito. Entre elas, 13 eram naturais de Santos, 1 de
Paranaguá-PR, 1 de Iguape e 4 brasileiros sem maiores especificações. Quanto às profissões,
temos 3 que trabalhavam com agências, 1 pedreiro, 1 empregado da Alfândega, 1 negociante e
1 ourives. Assim, reforça-se a identidade entre o termo “pardo” e uma identidade
colonial/nacional. Além disso, mesmo a minoria dos pardos sendo escravizados, a maioria dos
que eram livres continuavam desempenhando ocupações semelhantes à massa de cativos e
libertos negros e africanos, isto é, trabalhando como pequenos comerciantes e prestadores de
serviços. Os que conseguiam acender socialmente precisavam de um ofício mais rentável e mais
raro de se encontrar, como o de ourives, ou precisavam se iniciar na vida letrada que abria
252
oportunidades para empregos públicos, como na Alfândega. Ou, então, ser muito bem
relacionado para fazer as alianças certas para ser um negociante, termo mais usado pelos
comerciantes abastados para se autodesignar. Os fogos do irmão Joaquim José Alves e de
Sebastião Gomes eram bem mais modestos. Ambos não possuíam cativo algum. O primeiro era
pedreiro e o segundo trabalhava com agências.
Era justamente o ourives, o comerciante e o empregado da Alfândega que possuíam
cativos ou moravam em fogos com uma quantidade razoável de escravizados. Por exemplo, o
avô de Macuco, o negociante Francisco Manoel do Sacramento, possuía 8 cativos, todos negros,
dos quais 6 eram da “costa” e 2 eram de Santos. O pai de Macuco, que àquela altura estava
casado com sua primeira esposa e ainda não tinha relação aparente com seus avós, possuía
apenas três escravizados negros, um da “costa”, um africano e um santista. Ele era tanoeiro,
mas em algum momento de meados do século conquistou a patente de capitão. Por ora, o leitor
deve lembrar que José André S. Macuco traçou um caminho de prosperidade por meio do
jornalismo, da literatura, do direito e do funcionalismo público. Exploraremos mais a trajetória
dessa família no capítulo seguinte. Assim, para não me repetir mais tarde, tomemos a família
Freire como exemplo da ascensão de uma família parda.550
Os Freire, por sua vez, eram agregados de Joaquim José do Carmo, ourives. Não se base
se os cativos africanos no fogo são deles ou de Carmo. No entanto, os Freire parecem ter
melhorado de vida ao longo dos Oitocentos. Antonio Freire Henriques, o pai, era empregado
da Alfândega nos anos 1830, mas em 1882, ele tinha a patente de tenente da Guarda Nacional
e, em 1886, era tesoureiro do Banco Mercantil de Santos, do qual também faziam parte da
diretoria João Octavio dos Santos e Joaquim Benedito Braga Jr., outros confrades de São
Benedito. Dessa forma, vemos que de fato o letramento, mas também a carreira militar, eram
caminhos possíveis para pessoas pardas melhorarem de vida. Ainda mais se lembrarmos que
seu filho Guilherme acabou virando delegado e também era tenente, além de Pacífico que era
major, magistrado e possuiu uma loja de armação na segunda metade do século XIX.551
As patentes militares tinham especial importância para negros e pardos desde o período
colonial e era um dos elementos utilizados tanto pelo Estado quando por eles para conformar
identidades raciais. Muitos desses militares negros e pardos tiveram especial papel na
independência e na Guerra do Paraguai, durante o Império. Nesse período, houve muita
550
Para mais estudos sobre a ascensão de famílias afro-brasileiras durante o Império: GODOI, Rodrigo Camargo
de. Um editor no Império: Francisco de Paula Brito (1809-1861). Campinas, SP: Tese de Doutorado, UNICAMP,
2014. GRINBERG. Op. cit., 2002.
551
Novo Almanach de São Paulo: para o Anno de 1883, pp. 264-265. Almanach Administrativo, Commercial e
Industrial da Provincia de São Paulo para o anno de 1886, pp. 493.
253
discussão em torno de manter ou não o acesso de homens de cor aos postos mais altos e se
batalhões separados pelo critério racial deviam continuar, o que muitos homens de cor eram a
favor, pois não queriam se submeter diretamente a comandantes brancos.552 Segundo Henrique
Kraay, as raízes dessa ideologia remontam a uma longa tradição originada no período colonial,
a qual era o serviço dos homens de cor à monarquia e ao Estado. Sua mobilização envolvia
redes de clientelismo vinculadas ao sistema político. A complexidade da política racial do
Estado imperial brasileiro é descortinada pela experiência dos soldados e oficiais negros que
atenderam ao seu chamado, mas não tiveram sua identidade racial aceita por meio da rejeição
das companhias negras, abolidas no decorrer de 1866.553
Não obstante, negros e pardos continuaram a valorizar a importância simbólica das
patentes militares. Talvez a maior expressão disso seja Quintino de Lacerda, que recebeu a
patente de Major Honorário do Exército em 1893, em função de sua atuação durante a Revolta
da Armada em Santos. Vale mencionar também, o caso de Cândido da Fonseca Galvão, o Dom
Obá II, homem negro que combateu na Guerra do Paraguai e era considerado um rei entre os
pretos e africanos do bairro conhecido como Pequena África, na década de 1880, no Rio de
Janeiro.554 Isso nos aproxima ainda mais da hipótese de que estava em curso um processo de
tradução das culturas políticas que mesclava referências africanas, europeias e títulos
institucionais na concepção de novas formas de autoridade em (re)elaboração.
Depois de esmiuçar um pouco mais as características da nossa amostra dos dirigentes
da irmandade santista, chegamos a um esboço aproximado de um perfil étnico-racial e
socioeconômico de seus membros. Tratava-se de uma agremiação religiosa com fins
mutualistas, formada principalmente por pequenos comerciantes, trabalhadores do comércio e
alguns profissionais especializados de diferentes áreas. Havia também uma quantidade razoável
de oficiais da Guarda Nacional, policiais e empregados públicos. Boa parte deles era letrada e
552
“A Guarda Nacional foi criada por meio de Lei de 18 de agosto de 1831. Por meio dessa nova regra, foram
extintos os corpos de milícias e ordenanças ligados ao Ministério da Guerra, sendo substituídos pela Guarda
Nacional, submetida ao Ministério da Justiça. ‘Também a Guarda Municipal era declarada extinta, mas Feijó
[ministro da Justiça na época], posteriormente, pela lei de 10 de outubro, transformou-a na Guarda Municipal
Permanente, a Guarda dos Permanentes, como foi popularmente designada’ – acrescenta Paulo Pereira de Castro”.
PINTO. Op. cit., 2006, pp. 71.66-83.
553
KRAAY. Op. cit., pp. 123.
554
“A história de Cândido da Fonseca Galvão, mais conhecido como Dom Obá II (o título iorubá por ele adotado
no Rio de Janeiro na década de 1880), que serviu numa das companhias de zuavos (compostas de homens negros)
criadas na Bahia em 1865-66, revela a complexidade da experiência de guerra para a população negra.
Profundamente monarquista, Dom Obá destacava seu serviço ao imperador como evidência do seu pertencimento
à nação brasileira, mas também publicava críticas sofisticadas da discriminação racial que ele e o resto da
população negra enfrentavam”. KRAAY. Op. cit., pp. 122. Para uma análise mais detalhada da vida e trajetória
desse personagem histórico: SILVA, Eduardo. Dom Obá d’África, o príncipe do povo: vida, tempo e pensamento
de um homem livre de cor. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
254
participava da política institucional. Os cativos eram minoria, uma vez que a escravidão era
cada vez mais questionada e combatida pelo conjunto da sociedade. Contudo, recorrendo aos
maços de população de 1836, pudemos projetar o perfil possível dos cativos que poderiam ser
obrigados ou atraídos a ingressar na Irmandade de São Benedito, de acordo com a sua
convivência com confrades, ou familiares destes, na primeira metade do XIX. Nessa projeção,
a hipótese de ascendências africanas diversificadas e, consequentemente, sua influência na
cultura política da rede que investigamos se torna mais provável.
Entretanto, o que realmente confirmamos é que, por mais que a confraria tivesse um
núcleo de membros que fosse negro/africano, seus quadros refletem justamente a teia de pessoas
conectadas de acordo com as localidades em que o sodalício esteve sediado ao longo dos anos.
Consequentemente, isso também determinou o tipo de profissionais, as classes e os grupos
étnico-raciais que sentiriam interesse em se tornar irmãos.
Quintino de Lacerda se encaixa perfeitamente nesse perfil, não à toa foi eleito juiz nos
anos 1890. Sua comprovada habilidade política possivelmente lhe rendeu esse feito. Por outro
lado, esse grupo parecia ter alianças com alguns comerciantes mais abastados e políticos locais,
visto que alguns destes encontram-se em seus quadros, inclusive ocupando cargos estratégicos
da mesa, como os de procurador, tesoureiro e escrivão. Alguns estavam profundamente
envolvidos com os movimentos abolicionistas, muitas vezes com uma atuação ambivalente.
Sua presença nas irmandades negras reforça o caráter desses espaços como frente privilegiada
de negociação das relações sociais e raciais.
Ao longo desses quatro capítulos, vimos que realmente havia um processo de
(re)elaboração de culturas políticas às quais cada sujeito e grupo estava habituado, conformando
assim uma arena complexa e com múltiplos significados na qual os confrades tinham que saber
atuar, mobilizando marcadores sociais e raciais que lhes eram impostos e/ou que eles mesmos
reivindicavam. Dessa forma, práticas culturais que guiaram a organização política dos
brasileiros e, em especial, dos santistas ao longo do tempo, foram apropriadas e adaptadas para
sustentar movimentos sociais que floresceram nas últimas décadas do século XIX.
A seguir, abordaremos a trajetória pessoal de dois irmãos da nossa amostra para
tentarmos compreender de forma mais nuançada a maneira como essas pessoas se articulavam
na sociedade, com a irmandade sendo um dos espaços através dos quais eles teciam essas
articulações. Pretendemos comparar essas trajetórias entre si, com o intuito de analisarmos uma
dimensão mais prática das redes políticas de negros e negras livres e libertos em meio aos
movimentos do período. Passa a ser nosso enfoque o processo de racialização e seus efeitos na
255
vida dos dois sujeitos que destacamos. Para tanto, escolhemos seguir os passos de José André
do Sacramento Macuco, homem pardo livre e Quintino de Lacerda, homem negro liberto.
256
CAPÍTULO 5
“E QUEM NÃO FOR BRANCO DE APURADA REFINAÇÃO QUE SE
ACAUTÉLLE”: DOIS CAMINHOS POSSÍVEIS PARA A CIDADANIA
555
ALBUQUERQUE. Op. cit., 2009, pp. 35-36. SILVA. Op. cit., 2017, pp. 19.
257
Lacerda, por outro lado, havia sido escravo de ganho que trabalhava na função de
cozinheiro. Natural do nordeste, ele foi propriedade de um dos mais prósperos comissários de
café da cidade. Ele se mostra um verdadeiro ponto fora da curva quando lembramos dos perfis
gerais dos cativos e senhores envolvidos nas duas redes do tráfico local, carregando
características de ambas. Além disso, ele não só foi bem sucedido em conquistar sua liberdade
por meio da constituição de uma ampla de rede de sociabilidade, como também se tornou líder
do quilombo do Jabaquara e coordenou os homens de cor da cidade em diferentes momentos
importantes da história política local.
Essas duas trajetórias se encontram várias vezes no decorrer do processo histórico: no
movimento abolicionista, nas confrarias e nas instituições públicas. É interessante lembrar do
episódio narrado no primeiro capítulo, no qual Lacerda e Macuco quase se tornaram colegas de
vereança. Como dissemos naquele momento, não é evidente se eles se tornaram realmente
adversários devido às lacunas na documentação. Não é possível afirmar com exatidão se
Macuco renunciou para não dividir a municipalidade com Lacerda, ou se na verdade este último
apenas o substituiu quando renunciou por algum motivo desconhecido para nós. Considerando
as orientações políticas de cada um no novo contexto da República, é provável que passaram
mesmo a ser antagonistas. De qualquer forma, na memória e historiografia sobre Santos, foi o
liberto que ficou gravado como o primeiro vereador negro de Santos, por mais que outros
sujeitos pardos e mestiços, como o próprio Macuco e João Octávio dos Santos, já tivessem
ocupado a vereança antes do fim da escravidão.
Sem mais delongas, passemos a nos debruçar sobre as nuances existentes entre as vidas
desses dois homens de cor.
556
A Tribuna, 26 de janeiro de 1939.
258
Antonio Manoel Fernandes. O grupo estava filiado mais ou menos às ideias do então Partido
Liberal-Radical de S. Paulo, o mesmo que Luiz Gama.557
. Em 1872, partiu para os Estados Unidos da América, supostamente para estudar direito
na Universidade da Pensilvânia. Contudo, não conseguimos encontrá-lo nas listas das turmas e
de formados pela instituição, disponíveis em seu website. Apesar disso, a imprensa santista
novecentista registrava isso como um dado consumado.558 Se realmente estudou lá, formando-
se ou não, por volta de 1875 retornou a Santos, pois neste ano fundou junto dos seus antigos
colegas d’O Pyrilampo, o jornal abolicionista-republicano O Raio, também entusiasta da
atuação de Luiz Gama.559
Cerca de um ano depois, Macuco era admitido para o cargo de oficial de descarga da
Alfândega e discursou em uma cerimônia de premiação para os alunos da Escola do Povo. Esta
era um colégio beneficente voltado para a educação dos trabalhadores. Foi fundado por seu
colega jornalista, Antonio Manoel Fernandes com a ajuda de Macuco e outros amigos. A escola
funcionava na residência de Fernandes e também foi palco da fundação da Sociedade
Humanitária dos Empregados do Comércio de Santos.560
Por seu turno, os anos 1880 parecem ser o momento em que José André se torna mais
ativo profissional e politicamente. Logo em 1880, ele conseguiu provisão de dois anos pelo
Tribunal de Relação para solicitar nos auditórios de Santos561, assim como exerceu o cargo de
promotor interino.562 Em pouco tempo, deduz-se ter conseguido enfim o reconhecimento como
advogado, pois é listado entre os praticantes dessa profissão no Indicador Santista, escrito em
1886.563 Realmente, temos notícia de um caso de furto no qual foi advogado do réu, em 1882564,
além da vez em que defendeu a Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos de Santos
contra Benjamin Fontana, em 1884/5, mencionada no capítulo 4.
557
SANTOS. Op. cit., 1936, vol. 2, pp. 272. Sobre a trajetória política de Luiz Gama ao longo dos anos 1860 e
1870 ver: AZEVEDO, E. Op. cit., especialmente capítulos 2 e 3.
558
A Tribuna, 26 de janeiro de 1939. A documentação sobre as turmas da Universidade da Pensilvânia pode ser
consultada em https://archives.upenn.edu/digitized-resources/docs-pubs/the-record. Vale ressaltar que é
improvável que Macuco tenha estudado nessa universidade entre 1872 e 1879, pois a mesma não admitia
estudantes negros. Segundo a linha do tempo disponibilizada em seu website, a Universidade da Pensilvânia
admitiu seus primeiros estudantes afro-americanos em 1879, os quais começaram a obter seus diplomas a partir
de 1881. Por outro lado, um cubano, um venezuelano e um indígena Cherokee se formaram na instituição em 1829,
1836 e 1847, respectivamente. Vide: https://diversity.upenn.edu/diversity-at-penn/timeline.
559
SANTOS. Op. cit., 1986, vol. 2, pp. 273.
560
CALEFFI, Anderson Manoel. A Educação na Primeira República na Cidade de Santos (1889-1908). São
Paulo: Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, 2014, pp. 66 e 87.
561
Jornal da Tarde, 03 de fevereiro de 1880.
562
A Constituinte: Orgam Liberal, 20 de dezembro de 1879.
563
Indicador Santista, 1887, pp. 216.
564
A Constituinte: Orgam Liberal, 20 de dezembro de 1879.
259
Nessa época, ele começou a se tornar membro de algumas lojas maçônicas. Em 1882,
ficamos sabendo que ele ocupava o cargo de secretário da Loja Sete de Setembro.565 Dois anos
depois, ele se encontrava no cargo homônimo na Loja Fraternidade. A maçonaria parece ter-
lhe aberto muitas portas, pois cada vez mais encontramos ele em outras lojas e mesmo no
Grande Oriente, ganhando títulos e subindo de grau, ao longo da década de 1890.566 Na
realidade, isso parecia parte de uma estratégia mais ampla, que envolvia uma vida associativa
bem ativa. O jovem advogado também fazia parte de irmandades católicas, ocupando cargos de
mesa em várias delas. No ano de 1886, enquanto estava novamente atuando como secretário da
Loja Fraternidade, Macuco igualmente era procurador da Irmandade do Senhor dos Passos,
escrivão da confraria de N. S. do Terço e festeiro da Irmandade de N. S. do Monte Serrate. Ele
também foi presidente da Sociedade Musical Quinze de Abril em 1884.567
A participação nesse leque de associações tornava José André conhecido tanto na sua
cidade natal, como nas capitais paulista e carioca, onde seu nome frequentemente aparecia nos
jornais e almanaques indicando que ele ia galgando cargos e títulos variados, sobretudo na
maçonaria.568 Seus vínculos pareciam mais fortes com a cidade de São Paulo, pois também
defendia casos na comarca da capital.569 Além disso, o jovem advogado morava naquela cidade
quando, em 1888, era suplente da vereança municipal de Santos e teve que descer a serra para
participar de uma sessão da Câmara.570 Naquele mesmo ano, foi membro da Sociedade
Propagadora da Instrução Popular, sediada na capital, a qual promovia a abertura de escolas
beneficentes tanto ali, como no interior da província.571 Entre 1889 e 1890, José André
desempenhava o cargo de escrivão cível na comarca de São Paulo. Logo que a República foi
565
A Aurora Escosseza: Jornal Maçon, 01 de janeiro de 1882.
566
Em 1897 ele também estava nos círculos da Loja Ordem e Progresso. Revista Illustrada, setembro e outubro
de 1884; julho, agosto, novembro e dezembro de 1892; novembro e dezembro de 1892; novembro e dezembro de
1897; abril de 1898.
567
Indicador Santista, 1887, pp. 244 e 247. Almanach da Província de São Paulo: Administrativo, Commercial e
Industrial, 1884 a 1888, pp. 511. Na mesa do Senhor dos Passos também estavam Joaquim Fernandes Pacheco e
Francisco Antonio Ferreira; enquanto na de N. S. do Terço estava Levino Antonio Fogaça; os quais eram assim
como Macuco irmão de São Benedito ao longo dos anos 1880.
568
Alguns trabalhos vem enfatizando a atuação de homens de cor na maçonaria brasileira: AZEVEDO, Celia Maria
Marinho de. “Maçonaria: cidadania e a questão racial no Brasil escravista”. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro,
v. 34, 1998; Maçonaria, Anti-Racismo e Cidadania. 1. ed. São Paulo: Annablume, 2010. RIBEIRO, Renata
Francisco. A maçonaria e o processo de abolição em São Paulo. São Paulo, Tese de Doutorado, USP, 2018;
“Maçonaria: um lugar para a sociabilidade de homens de cor, nascidos livres e libertos”. Revista História: Debates
e Tendências, v. 20, n.2, p. 160-178, 29 abr. 2020.
569
Novo Almanach de São Paulo: para o Anno de 1883, pp. 152. Almanach da Província de São Paulo: Para o
Anno bissexto de 1884, pp. 140.
570
Correio Paulistano, 21 de janeiro e 02 de fevereiro de 1888.
571
Idem, 31 de julho e 05 de setembro de 1888.
260
instalada, ele e seus colegas de trabalho da 1ª e 2ª varas da capital foram cumprimentar o novo
governador do Estado de São Paulo, Dr. Rangel Pestana. 572
Entretanto, o que realmente alçou Macuco aos holofotes foi sua carreira como escritor
de romances e peças teatrais, tornando-se conhecido a nível nacional. Já em 1880, seu drama
Crime de Mãe ficou pronto e foi encenado no Teatro Rink, em Santos.573 Em 1884, ele já era
“um festejado autor do drama Carlota e outros de não menos valor”, segundo o Correio
Paulistano.574 Na ocasião que fez este elogio, a folha noticiava que seria apresentado no Teatro
São José, na capital, o drama em quatro atos Carta, do “distincto e applaudido escriptor
brazileiro”, assistido pelo próprio Imperador D. Pedro II e sua família, que visitavam a cidade
à época. Apesar de todos os elogios e fama, havia quem criticasse alguns de seus dramas. Em
novembro daquele ano, o jornal carioca O Espectador publicou a seguinte análise do drama
Carlota:
572
Diário do Commercio, 21 de novembro de 1889. Sentinella da Monarchia, 26 e 28 de julho de 1889. Correio
Paulistano, 13 de março, 30 de abril, 02 de maio, 03 de maio e 25 de novembro de 1890.
573
A Constituinte: Orgam Liberal, 18 e 24 de abril e 30 de maio de 1880.
574
Correio Paulistano, 01, 04, 05 e 06 de novembro de 1884.
261
Infelizmente não pudemos localizar nenhum dos escritos literários de Macuco nos
arquivos e bibliotecas, com exceção de Ser pensante, ser sensível, cujo um único exemplar
físico consta na biblioteca da Universidade de Indiana, nos EUA, que, contudo, não tivemos a
oportunidade de consultar.576 Todavia, é interessante prestar atenção às considerações de Ana
Flávia M. Pinto, que analisou as obras de José Ferreira de Menezes, outro literato negro que
andou por círculos muito semelhantes, senão os mesmos que os de Macuco. Originário do Rio
de Janeiro, Menezes chegou a São Paulo via Santos, para estudar na renomada Faculdade de
Direito da capital, onde muitos dos santistas e colegas de José André também estudaram.
Segundo Pinto, para homens de cor como eles, o envolvimento em redes de sociabilidades por
meio de periódicos e agremiações eram mecanismos por eles utilizados para ter sua produção
intelectual reconhecida. Além disso, apesar de ter sua produção concentrada cerca de 2 décadas
antes de Macuco, Menezes também escrevia em meio às disputas estilísticas entre românticos
e realistas, preferindo se versar no romantismo. Porém, não sem subverter seu modelo
estilístico. Ele fazia uso do recurso ao misterioso, ao onírico e ao insólito para desenvolver uma
575
O Espectador, 02 de novembro de 1884.
576
No site da Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos (BDLPL) encontramos uma lista de 13 títulos
cuja autoria é de José André do Sacramento Macuco. Disponível em:
https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/autores/?id=1431 Cf. COUTINHO, Afrânio; SOUSA, José Galante de.
Enciclopédia de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional; Academia Brasileira de Letras,
2001. 2v.
262
abordagem das questões da realidade desconcertante do cotidiano.577 É possível que José André
estivesse vivenciando desafios semelhantes na escrita literária.
De qualquer forma, a crítica de seus colegas jornalistas não parece ter abalado sua
carreira como dramaturgo, uma vez que, anos mais tarde, outro periódico carioca decide dar
visibilidade ao seu trabalho, tecendo alguns elogios. A Revista Illustrada, em 1888, anunciava
ansiosa que o autor tinha no prelo “um romance de costumes, destinado a causar bastante
sensação”, ressaltando que “diversos jornaes paulistas tecem-lhe elogios”. Os redatores diziam
ter tido “o prazer de ouvir a leitura de alguns capítulos, [e] ficamos muito bem
impressionados”.578 Em 1890, a mesma revista novamente elogiava o distinto escritor: “O 15
de Novembro, por Sacramento Macuco. É, em phrase muito fluente e elevada a historia dos
acontecimentos da nossa revolução, que o auctor inicia com a lei de 13 de Maio”.579
Teria Macuco retomado o estilo realista com ênfase na crítica sociológica? De fato, o
escritor tinha grande interesse pelas ciências sociais, pois o encontramos como sócio do
Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHSP), em 1898.580 Outro romance cujo título
chama atenção e pode estar relacionado à visão do autor sobre processos históricos e sociais da
sociedade de seu tempo era O Preconceito, anunciado com entusiasmo pela folha carioca
Novidades, em 1888.581 Talvez uma obra que se debruçasse sobre as agruras do preconceito de
cor, das quais tantos homens de cor se queixavam ao longo do século XIX?582
No entanto, a sua relação com a escravidão e o abolicionismo era cheia de controvérsias,
como já sabemos. Por um lado, podemos encontrá-lo em vários momentos contribuindo para a
luta contra o cativeiro, como na sua participação na imprensa abolicionista. Ele também fez
parte da sociedade abolicionista Bohemia Abolicionista, que mencionamos no capítulo 3. Ao
lado de Eugênio Wansuít, José Rubim Cézar e Vicente de Carvalho, também homens de cor,
ele se juntou a outros jovens santistas de várias cores e classes sociais para insuflar a propaganda
em prol daquela causa. Assim, surgia um panfletarismo violento por meio de jornais como O
Embrião, O Porvir, O Alvor, O Piratiny, O Patriota e A Ideia Nova. Além disso, eles
auxiliavam nas fugas para o Jabaquara. Ao longo dessa década, José André também escreveu
várias peças, que eram encenadas pelos abolicionistas e por companhias de teatro solidárias à
577
PINTO. Op.cit., 2018, pp. 46-51.
578
Revista Illustrada, 15 de dezembro de 1888.
579
Idem, 08 de fevereiro de 1890.
580
Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, 1898, pp. 475, 502, 514, 547 e 561.
581
Novidades, 29 de setembro de 1888.
582
Sobre as denúncias em torno do preconceito de cor feitas na imprensa por homens negros e pardos que se
identidicavam como homens de cor, ver PINTO. Ana Flávia Magalhães. De pele escura e tinta preta: a imprensa
negra do século XIX (1833-1899). Brasília: Dissertação de mestrado, UnB, 2006.
263
causa, para que fossem arrecadados fundos para a libertação de cativos, que em algumas vezes
era efetivada no próprio palco do Teatro Guarani, após as apresentações. Foi o caso da peça A
sombra da cabana, de sua autoria, cuja bilheteria foi direcionada à compra da alforria de um
“escravo mulato, quase branco”.583 Além disso, podemos encontrá-lo emprestando dinheiro a
cativos para comprarem sua liberdade, como em 1884, quando forneceu 350 mil réis à cativa
Bárbara que movia uma ação de exibição e pecúlio para obter alforria de seu senhor, que se
negava a aceitar a proposta por esse valor.584
Por outro lado, José André, assim como seu irmão João Francisco do Sacramento
Macuco, também esteve envolvido em processos jurídicos contra os esforços dos cativos que
buscavam a liberdade nos meios legais, como no caso da preta Sebastianna. Em 1882, Joanna
Evangelista da Silva, representada por José André, entrou com uma petição no juízo comercial
para que a preta liberta Sebastianna pagasse o que lhe devia, por ocasião de ter-lhe emprestado
520 mil réis para pagar sua alforria. A liberta tinha 31 anos, era crioula de São Francisco, mãe
de duas ingênuas e prestadora de serviços domésticos. O acordo havia sido que Sebastianna
poderia trabalhar para Silva durante 3 anos, ou pagar uma indenização de 20 mil réis mensais.
Entretanto, antes do prazo chegar ao fim, a liberta manifestou interesse em se remir de tal
obrigação e, em resposta, Silva lhe deu um mês para quitar o restante da dívida. Para sua
surpresa, Sebastianna não só não pagou o montante, mas também saiu da companhia da
peticionaria, motivo que a levou a apelar àquele juízo. Sebastianna preferiu alugar seus serviços
à outra pessoa, o cônego Luiz Alves. O advogado da liberta conseguiu que o processo fosse
anulado, argumentando a incompetência do juízo comercial em versar sobre o caso. Contudo,
Macuco, a pedido da peticionaria, recorreu ao Tribunal da Relação de São Paulo que lhes deu
sentença favorável, isto é, Sebastianna deveria voltar aos cuidados de sua credora ou lhe pagar
o que devia. Em 1884, o juízo de Santos mandou citar a ré sobre o teor da sentença, mas ainda
houve tentativas de seu advogado em embargá-la e assim se encerraram os autos.585
Outro episódio curioso nesse sentido é aquele em que o advogado, na função de
delegado de polícia de Santos em novembro de 1885, auxiliou as forças provinciais na busca e
captura de escravizados que fugiam para Iguape, o mesmo caso comentado criticamente por
583
SANTOS. Op. cit., 1986, vol. 2, pp. 224.
584
Juízo de direito cível - Autos cíveis de exhibição de pecúlio para obtenção de liberdade em que são Bárbara,
escrava de João de Andrade Basto, supplicante, e o senhor da mesma, supplicado, em 26 de agosto de 1884.
AGFCS. Maço 157.
585
Traslado de uns autos de acção commercial em que são Joanna Evangelista da Silva, autora, e ré, a preta
liberta Sebastiana, em 10 de outubro de 1882. Arquivo Geral do Fórum da Comarca de Santos. Maço 151. Apud.
ROSEMBERG. Op. cit., 2006, pp. 220-221.
264
Rúbim Cézar, nas páginas do Diário de Santos. Aqui é oportuno narrar o caso pela perspectiva
da correspondência entre as autoridades.
Em 16 de novembro daquele ano, o delegado de Iguape oficiava ao chefe de polícia
informando que apareceram na freguesia da Prainha daquele município quinze indivíduos
“quase todos de cor preta, trajão roupa de algodão transado e discalssos”. Questionados pelo
subdelegado, eles diziam ser ex-cativos do dr. Antonio Bento, que os havia libertado e por isso
se encaminharam para Iguape, em busca de trabalho. Três deles se identificaram para os
policiais iguapenses. Seus nomes eram Francisco, Herasmo e Bernardo. Eles diziam ainda que,
dos demais, só conheciam mais dois dos suspeitos, um de nome Bernardo e outro chamado José
Mourão. Para o delegado, os indícios não deixavam dúvidas que eles eram escravizados em
fuga. Ele terminava informando que mandou um praça à Peruíbe, onde se juntaria a força que
vinha de Santos para capturar os suspeitos. Eles planejavam emboscá-los na freguesia da
Prainha, chegando lá por meio de uma picada aberta na mata.586
Todavia, a operação levou cerca de 15 dias para ter sucesso e nesse meio tempo Santos
ficou praticamente sem forças policiais, o que gerou um caos social que aterrorizou moradores
e autoridades. Ao que tudo indica, os ânimos continuavam exaltados mesmo após um ano das
turbulências em torno da questão das águas. Uma cidade cuja população crescia em ritmo
desenfreado sem que obras e reformas urbanas conseguissem acompanhar, certamente era uma
panela de pressão pronta para explodir. Devo lembrar que os anos 1880 viram Santos receber
milhares de trabalhadores imigrantes e negros livres, libertos e fugitivos do cativeiro para nela
tentar começar uma nova vida. Várias vezes, o delegado de Santos, na ocasião Manoel B. de
Andrade, requisitou ao chefe de polícia que enviasse mais praças, porém sem sucesso.587 O
586
Apesp. Ofício do delegado de polícia de Iguape ao chefe de polícia da Província de São Paulo, em 16 de
novembro de 1885; Telegrama do delegado de polícia de Iguape ao chefe de polícia da Província de São Paulo,
em 26 de novembro de 1885; Telegramas do delegado de polícia de Iguape ao chefe de polícia da Província de
São Paulo, em 30 de novembro de 1885. Polícia. Ordem CO2646.
587
Apesp. Ofício do subdelegado de polícia de Santos ao chefe de polícia da Província de São Paulo em 06 de
novembro de 1885; Telegrama do subdelegado de polícia de Santos ao chefe de polícia da Província de São Paulo
em 30 de novembro de 1885; Telegrama do delegado de polícia de Santos ao chefe de polícia da Província de São
Paulo em 16 de novembro de 1885; Ofício do delegado de polícia de Santos ao chefe de polícia da Província de
São Paulo em 26 de novembro de 1885. Polícia, Ordem CO2646. Publicações na imprensa corroboram a tensão
social pela qual passava a cidade naquele ano. No dia 10 daquele mês alguns moradores da rua Xavier da Silveira
chamavam a atenção do delegado para destacar “algumas praças para policiar a rua Xavier da Sivleira, onde se
têm dado ultimamente serias desordens”. No mesmo dia, era noticiado que alguns objetos foram roubados da casa
do sr. Simão Silveira e que a polícia revistava os passegeiros do trem que partiria para São Paulo naquela tarde.
Diário de Santos, 10 de novembro de 1885. No dia seguinte, o público era informado que as autoridades policiais
conseguiram “felizmente prender os seguintes gatunos: Severino Ferreira Capa, Aristides Rodrigues Alencar
Brandão e mais alguns sujeitos sobre os quaes recahem suspeitas, e que se acham detidos para averiguações”.
Também foi noticiado que “hontem á noite, no fim da rua de S. Leopoldo, um escravo do sr. Manoel de tal tentou
matal-o a facadas. A policia recolheu o escravo á prisão”. Por outro lado, ficamos sabendo que naquele momento
a cidade está com um déficit de 20 praças de polícia em relação ao que deveria haver. O subdelegado pedia ao
265
comandante do corpo de permanentes da capital alegava que não havia homens o suficiente,
visto haver muitas diligências em outras partes da província tão urgentes quanto, sobretudo no
Oeste Paulista onde cada vez mais cativos fugiam em grandes grupos e se refugiam em partes
ermas de fazendas ou nas matas.
Assim, quando Macuco assumiu a vara de delegado, em 26 de novembro de 1885,
segundo suas próprias palavras, “reinava a anarchia n’esta cidade, além de tudo dominada pelos
gatunos e subjugada pela audacia das mulheres livres”. De acordo com sua percepção, só foi
possível fazer reinar a ordem novamente graças aos esforços incansáveis do alferes Carlos
Honorio dos Santos, o mesmo que tentava combater os abolicionistas em 1886. Neste distinto
oficial, a delegacia de Santos sempre encontrava “o mais poderoso auxiliar e de mais decidida
sinceridade no cumprimento das ordens recebidas e no desempenho das commissões de que
tem sido encarregado em busca de gatunos e na inspeção dos hoteis de meretrizes”.588
Realmente, o desempenho policial parece ter sofrido alguma melhora, haja vista que Macuco
era largamente elogiado no noticiário, possivelmente por seu colega Rúbim Cézar:
chefe de polícia que enviasse forças para completar o destacamento, além de solicitar uma montaria para o oficial
da ronda, “que a pé não póde bem desempenhar esse serviço, com proveito dos gatunos que ultimamente têm
tirado o somno e a paz á população. Diário de Santos, 11 de novembro de 1885. É possível encontrar uma série de
notícias sobre “gatunagens”, desordens, brigas, embriaguez exagerada, feitiçaria, calotes financeiros e muitas
prisões por motivos variados nas edições do mesmo jornal de 17, 24, 28 e 29 de novembro; e de 01, 02, 03, 05,
08, 10, 17, 18 e 19 de dezembro de 1885. A partir novembro, a delegacia começou a informar seu expediente diário
a essa folha que revelam uma série de situações envolvem crimes variados.
588
A posse do cargo de delegado por Macuco foi noticiada em Diário de Santos, 28 de novembro de 1885. Para
as citações: Apesp. Telegrama do delegado de Santos ao chefe de polícia da Província de São Paulo, em 28 de
novembro de 1885; Ofício do delegado de polícia de Santos ao chefe de política da Província de São Paulo, em
10 de dezembro de 1885; Ofício do delegado de polícia de Santos ao chefe de polícia da Província de São Paulo,
em 26 de dezembro de 1885. Polícia. Ordem CO2646.
589
Diário de Santos, 02 de dezembro de 1885. Grifos do original. As publicações nos noticiários não vêm
assinadas, logo não podemos afirmar quem de fato escrevia esses informes, mas fato é que Rúbim Cézar fazia
parte da redação do jornal nesse ano. Por outro lado, em alguns dias de dezembro desse ano foram publicadas
crônicas intituladas “Notas Semanais” ou apenas “Notas”, assinadas por Ruy d’Alva – não sabemos se é um
pseudônimo –, nas quais o delegado era parabenizado pelas medidas adotadas. Inclusive, na primeira delas o
assinante pede que Macuco publique boletins diários sobre as atividades policiais na cidade. Na crônica seguinte,
ele agradece informando que seu pedido foi atendido, o que mostra que Macuco realmente estava vinculado ao
grupo de redatores daquela folha. Diário de Santos, 06, 08 e 10 de novembro de 1885.
266
Ao Commercio
São tantos os serviços prestados pelo actual Sr. Delegado de policia advogado
Macuco – que o Commercio deve crear uma Caixa para dar uma mensalidade
ao distincto moço.
Sou negociante e pertenço ao povo e estou prompto para concorrer com a
minha parte.
Santos estava anarchisado, hoje está moralizado.
Santos, 28 de Dezembro de 1885.
J. Joaquim Marques dos Santos.590
O que torna curioso todos esses elogios ao delegado é que se deram justamente no
período em que o caso dos fugitivos de Iguape se desenrolava, enquanto Rúbim Cézar criticava
ferozmente o procedimento do chefe de polícia, tanto em relação a deixar Santos sem praças
quanto ao fato de estar perseguindo escravizados em fuga. Estranhamente, as publicações do
advogado e de outros possíveis redatores anônimos sobre o assunto desassociavam Macuco
desse comportamento. Quando da razia perpetrada por capitães do mato e praças enviadas pelo
chefe de polícia na noite de 26 de novembro, comentada no capítulo 3, Rúbim Cézar tentou
destacar que aquilo não era obra do delegado:
590
Diário de Santos, 29 de dezembro de 1885.
591
Diário de Santos, 01 de dezembro de 1885.
267
Foi no final deste mesmo artigo que o referido redator avisava ao “sr. Delegado Zé
André” para que tomasse cuidado para não cair também nas garras do Sr. Bueno, por não ser
“branco de apurada refinação”. Assim, percebe-se que esses sujeitos não só percebiam o
recrudescimento do “preconceito de cor” nos anos finais da escravidão, mas também pareciam
ter um senso de solidariedade em relação à possibilidade de serem confundidos com
escravizados apenas pela cor de sua pele. Em uma crônica publicada no mesmo jornal, Ruy
d’Alva fazia algumas considerações análogas ao comentar um caso do preto Antonio Venancio,
natural de Paranaguá-PR, que foi preso por ter sido confundido com um cativo fugitivo:
592
Diário de Santos, 08 de dezembro de 1885.
268
593
Diário de Santos, 03 de dezembro de 1885.
594
Diário de Santos, 06 de dezembro de 1885.
595
Diário de Santos, 02 de dezembro de 1885.Segundo PINTO, Luiz Maria da Silva. Dicionario da Língua
Brasileira. Ouro Preto: Typographia de Silva, 1832, pp. 1018, “Suspeição, s. f. ões no plur. Desconfiança da
probidade do Juiz, authorisada pela lei”.
596
Apesp. Telegrama do delegado de Santos ao chefe de polícia da Província de São Paulo, em 28 de novembro
de 1885. Grifos nossos.
269
597
Diário de Santos, 31 de maio de 1888.
598
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Irmãos; Livro de Atas.
599
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livro de Irmãos.
270
FIGURA 10
Outros indícios aparecem antes mesmo do seu nascimento, nos maços de população de
1836. Nestes, podemos encontrar o fogo de um Francisco Manoel do Sacramento, no qual
morava com sua esposa e três filhos, entre eles uma Luíza Maria, todos pardos. Esta família
possuía oito cativos negros, seis “costa” e dois santistas. Outro conjunto de documentos que
veremos a seguir permitem conjecturar que essa era a residência do avô materno de Macuco.
No fogo de seu pai, José Apolinário da Silva, moravam sua primeira esposa Anna e as três filhas
600
22 de novembro de 1886. Carta do Padre Francisco Gonçalves Barroso ao Bispo de São Paulo. Pasta I de
documentos avulsos da Paróquia de Santos. Arquivo da Arquidiocese de São Paulo.
271
do casal, também todos pardos. O então tanoeiro Silva era senhor de três cativos, um “costa”,
um “africa” e um santista. Assim, podemos imaginar que José André foi concebido e criado
entre cativos que serviam sua família. Possivelmente, uma convivência marcada pelo contato
com o catolicismo africano e a agremiação em confrarias como elementos indispensáveis para
a negociação entre senhores e escravizados, como constatamos no capítulo anterior.
Por fim, um conjunto mais amplo de documentos levanta algumas dúvidas. De acordo
com as listas de eleitores de 1880 e 1881, Macuco é filiado a Luísa Maria de Jesus, diferente de
Luísa Macuco como consta na imprensa.601 Também localizamos o batismo de um José, de
dezembro de 1851, filho de Luísa Maria de Jesus. O nome do pai e a cor de ambos não consta.602
O nome de sua mãe ainda aparece em outros batismos de meados do XIX, ora como madrinha,
ora como mãe, às vezes casada, outras vezes solteira, além de ser classificada como parda em
dois deles.603
O nome do seu pai, por outro lado, consta no batismo de uma Margarida, de 1826. O
que coincide com a “Margarida filha” de 10 anos registrada no fogo de Silva em 1836. No
batismo, ela consta como filha de José Apolinário da Silva e Ana Marcelina do Sacramento,
ambos identificados como pardos.604 Finalmente, encontramos um óbito, de 1838, de Ana
Severina do Sacramento, esposa do capitão José Apolinário da Silva e identificada como parda
por quem produziu o registro.605 Esse conjunto de fontes levantam mais dúvidas do que
respondem, a começar pelos sobrenomes da família do sujeito que enfocamos aqui. Jornal e
registros civis e paroquiais não concordam em relação ao sobrenome de sua mãe. Os de seu pai
são completamente diferentes dos do filho e da esposa. E são suas duas primeiras esposas que
possuem pelo menos o sobrenome “Sacramento”.606 Além disso, não temos como atestar que
todos os batismos nos quais o nome de Luísa Maria de Jesus aparece se tratam da mesma
mulher, portanto não podemos dizer com certeza que ela não era branca.
Além do mais, temos notícia sobre quem foi o provável avô de José André. De acordo
com F. Martins dos Santos, o bairro da Vila Macuco, já dividido em vários loteamentos para
601
Apesp, Secretaria da Presidência da Província de São Paulo, Negócios eleitorais, Ordem CO5904, Caixa 216.
602
Livro de Batismos n. 4, pp. 15v, Arquivo da Diocese de Santos (ADS). O mesmo batismo, entre outros, foi
transcrito no Volume 6 da Coleção Costa e Silva Sobrinho, Fundação Arquivo e Memória de Santos (FAMS), pp.
174.
603
Volume 6, pp. 227; Volume 131, pp. 210; Volume 132, pp. 149, 381-2, 390, 419; Volume 133, pp. 17, 68-9,
109, 218; da Coleção Costa e Silva Sobrinho, FAMS. Provavelmente são pessoas diferentes, pois entre 1819 e
1849, Luísa Maria de Jesus ora tem filhos solteira, ora casa com homens diferentes.
604
Volume 130 da Coleção Costa e Silva Sobrinho, FAMS, pp. 438.
605
Volume 95 da Coleção Costa e Silva Sobrinho, FAMS, pp. 247.
606
É possível que Ana Marcelina do Sacramento e Ana Severina do Sacramento sejam a mesma pessoa e que
algum dos padres que fizeram os registros tenha errado seu nome do meio. Porém, como não podemos comprovar
isso, optamos por considerar que são pessoas diferentes.
272
venda e aluguel no final dos Oitocentos, nas últimas décadas do XVIII era apenas uma chácara,
“cheia de pastos naturais na frente e várzeas florestadas, na parte do fundo ou de leste”.607
Francisco Manoel Sacramento, homem pardo nascido por volta de 1780, mudou-se para Santos
e adquiriu o referido terreno, o qual havia muitas “murteiras silvestres, de jissaras, bapuás,
passareúvas e ‘ferra-boi’, havia muito inambu-guaçu e até macucos”.608 A caça desta última
ave foi atividade muito praticada pelo novo proprietário do local, o que lhe rendeu o apelido
“Macuco”, posteriormente assumido por ele como parte de seu nome e de sua família por volta
dos anos 1840, tornando-se enfim Francisco Manoel do Sacramento Macuco. Isso explica
parcialmente a confusão de sobrenomes que atestamos nos registros de batismo e óbito, mas
ainda restam lacunas, pois a mãe de José André não possui o mesmo sobrenome nos referidos
registros. Uma explicação pode ser o fato de muitas pessoas fazerem uso de nomes inspiradas
em devoções religiosas, promessas ou afeição a outrem.
Igualmente, há a possibilidade da esposa de Francisco Manoel do Sacramento,
registrado nos maços de 1836, ser parente do capitão-tanoeiro, pois partilham do sobrenome
Silva. Por sua vez, a esposa deste pode ser parente dos Sacramento e, quando faleceu, a aliança
entre as duas famílias passou por uma manutenção por meio do casamento de José Apolinário
com a filha de Francisco Manoel, Luísa Maria.
Por outro lado, outras fontes que não foram possíveis confirmar, trazem informações
que deixam a situação bem mais complexa. Nelas é contada história muito semelhante ao que
Martins dos Santos narrou, sobre a chegada de Sacramento à Santos e o acréscimo do apelido
“Macuco” ao seu nome pelas razões já mencionadas. Contudo, aqui, Francisco Manoel é
apresentado como natural de Portugal, nascido em 1777, ignorando-se a data que chegou a
Santos. Ele seria casado com uma Maria Urserina da Silva e foi pai de um Francisco Manoel
do Sacramento, Luísa Maria de Jesus do Sacramento Macuco e Maria do Sacramento.
Compilados em um site de genealogias feito por uma pessoa leiga, esses dados foram retirados
de obras memorialistas raras pela autora. Esta observa que no censo de 1822 constava mais um
Francisco Manuel do Sacramento, pardo, 42 anos, profissão “carniceiro”, casado com Manuela
Sacramento, pais de Francisco, Luisa e Maria.609
607
SANTOS. Op. cit., pp. 330.
608
Idem.
609
Disponível em https://genearc.net/index.php?op=ZGV0YWxoZVBlc3NvYS5waHA=&id=NjM5Nw== A
autora do site se baseia em SANT’ANA, João Gabriel. Genealogia Sebastianense, São Paulo, 1976 – pp. 251, o
qual não encontramos exemplar para consultar. Contudo, outro título que lhe serve de referência, COSTA E SILVA
SOBRINHO, A. J. Santos noutro tempos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1953, pp. 217 informa que o
“carniceiro” Francisco Manoel do Sacramento, ancestral da família Macuco, era mesmo natural de Santos.
273
Considerando que no fogo dessa família parece ter sempre registrado pai e filho com o
nome “Francisco Manoel do Sacramento”, podemos especular se existiu um patriarca anterior,
este sim português, com o mesmo nome e que chegou a Santos no século XVIII. Se ele era
pardo ou branco, não foi possível apurar. Todavia, lembremo-nos da hipótese que levantamos
no capítulo anterior sobre um circuito afro-luso-brasileiro entre Santos e Portugal e a existência
de um contingente significativo de negros no reino naquele período. Por outro lado, mesmo que
o primeiro Macuco que chegou na cidade tenha sido branco, a proeminência social que essa
família alcançou nos anos seguintes sugere que os laços sanguíneos com portugueses podiam
conferir um distintivo vantajoso à negros e pardos ascendentes. De qualquer forma, apesar das
lacunas, é bem provável que sejam mesmo as mesmas pessoas e que fosse uma família “parda”
livre a gerações.610
Porém, o que significava ser pardo na segunda metade do século XIX e, mais
especificamente, em Santos? Em primeiro lugar, é preciso destacar que as categorias raciais
experimentaram diversas transformações ao longo do tempo. Podemos remontar a história dos
marcadores sociorraciais a partir dos Estatutos de Pureza de Sangue, mecanismo jurídico muito
utilizado por Portugal e Espanha, cujos territórios foram ocupados por muitos anos por cristãos,
muçulmanos e judeus. As coroas ibéricas se preocupavam em afirmar sua “europeidade” diante
de seus vizinhos e, ao mesmo tempo, tinham a intenção de defender a ordem social e suas
hierarquias, impedindo que a burguesia comercial ascendente acessasse os lugares sociais
privilegiados. Entretanto, esses estatutos tinham um caráter de fiscalização cultural, sem se
atentar ao fator biológico. Por mais que se acreditasse que a heresia era transmitida pelo sangue,
esse pensamento fazia parte de uma leitura religiosa. Com a expansão marítima nos séculos
XV, XVI e XVII, os ibéricos passaram a aplicar esses estatutos também às populações
ameríndias e africanas.611
A categoria negro ou preto, assim, remetia àqueles mais próximos das culturas africanas.
Por outro lado, os pardos, ou “o defeito da mulatice” se elabora nesse momento, conforme
610
Em BARATA, Carlos Eduardo de Almeida. Dicionario das familias brasileiras. Coautoria de Antonio
Henrique da Cunha Bueno. São Paulo, SP: Ed. Árvore da Terra, 2001, encontramos o verbete “SACRAMENTO”
que diz o seguinte: “Sobrenome de origem religiosa. De sacramento, subst. comum (Antenor Nascentes, II, 269).
Linha Africana: Sobrenome também adotado por famílias de origem africana. Na Colônia do Sacramento, entre
outras, registra-se a de Joana Maria do Sacramento, <preta forra> [filho nat. de Vitória Pereira, <preta forra>,
escrava de Manuel Pereira], que deixou geração, em 1769, com Domingos Carneiro, <preto forro> (Rheingantz,
Col., 1)”.
611
Este e o próximo parágrafo estão baseados em FIGUEROA-REGO, João de. “Honra alheia por um fio. Os
estatutos de limpeza de sangue nos espaços de expressão ibérica (secs. XVI-XVIII). Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian/Fundação da Ciência e Tecnologia, 2011, pp. 29-68. Sobre a vigência dos mesmos estatutos entre
irmandades e ordens terceiras no Brasil, no século XVIII ver: BOSCHI, Caio Cesar. Op. cit. SCARANO. Op. cit.
REGINALDO. Op. cit. VIANA. Op. cit., especialmente capítulos 1 e 2.
274
612
VIANA. Op. cit., pp. 131-133.
613
FIGUEROA-REGO. Op. cit., pp. 29-68.
614
VIANA. Op. cit., pp. 131-133.
615
MATTOS. Op. cit., 2013, pp. 101-111 e 297-338.
275
tenha sido no século XVIII, conforme cor e gradações sociais vão convergindo e se tornando
politizadas.616 Num século repleto de rebeliões e revoluções nas colônias, as hierarquias sociais
foram tensionadas e, mais de uma vez, escravizados e libertos, com a esperança de ver extinta
a escravidão, participaram de movimentos que questionaram o poder metropolitano, fenômeno
que só cresceu ao longo do século XIX. Era justamente o acesso dos negros e seus descendentes
a liberdade, que preocupava colonos europeus e seus herdeiros. Dois marcos dessa ruptura são
a abolição dos citados estatutos no governo pombalino e a garantia na Constituição do Império
do Brasil de 1824, de que todos os cidadãos são iguais, além do silêncio sobre a escravidão. É
verdade que os libertos não podiam votar ou serem eleitos, mas seus filhos nascidos livres
poderiam, desde que atendessem aos demais critérios – idade, gênero e renda. Nos Oitocentos,
à medida que a escravidão vai sendo cada vez mais contestada em toda a América, a legislação
brasileira se cala sobre distinções raciais, ao mesmo tempo em que suas instituições de pesquisa
e ensino superior legitimam as desigualdades, através de discursos evolucionistas e
deterministas, como era o caso do IHGSP do qual Macuco eventualmente se tornou sócio.617
As estratégias mudaram, porém, a preocupação permanece a mesma: manter a ordem e
hierarquia social, impedindo que os libertos tivessem muitas oportunidades de ascender
socialmente naturalizando sua inferioridade biológica, tornada fator fundamental de sua
degenerescência cultural e civilizacional, detectada através da cor da pele negra. Assim, ser
negro continuou a ser um marcador de diferença, por novas razões, e os mestiços passaram a
carregar uma ambiguidade até mesmo maior, representando a depravação, mas também a
solução da nação. No século XIX, esses indivíduos eram considerados como detentores de
atavismos e degenerescências, porém eles teriam a possibilidade de superar sua “condição”
através da educação, da higiene e da elevação moral e da procriação junto aos imigrantes
europeus.618
616
LARA. Op. cit., 2007, Capítulo 2.
617
SCHWARCZ. Op. cit., especialmente capítulos 4, 5 e 6.
618
Idem.
276
619
Apesp, Secretário da Presidência da Província de São Paulo, Negócios eleitorais, Ordem CO5904, Caixa 216.
620
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO. Livros de irmãos, pp. 59. Indicador Santista, ano de 1887. Sobre as
devoções de pretos e pardos ver REGINALDO. Op. cit, Capítulo 2.
277
621
MATTOS. Op. cit, pp. 101-111.
622
SANTOS. Op. Cit., 1986, vol. 2, pp. 220 e 224. Diário de Santos, 27 de maio de 1888 e 31 de maio de 1888.
623
Apesp, Secretário da Presidência da Província de São Paulo, Polícia, Ordens CO2641 e CO2642.
624
Diário de Santos, 08 de janeiro de 1881.
625
Diário de Santos, 05 de janeiro de 1881.
626
Sobre o uso das festas e banquetes emancipacionistas como meio de manutenção do domínio senhorial ver:
PEREIRA. Op. cit., 2011 “3.2 O palco sendo montado” e “3.3 O primeiro carnaval fora de época: as festas na
província de São Paulo pelo 13 de maio de 1888”; e MORAES, Renata F. “A abolição no Brasil além do
parlamento: as festas de maio de 1888”. In: CASTILHO. MACHADO. Op. cit., pp. 320-325. Sobre os fundos de
emancipação e as instruções que o governo elaborou para orientar a seleção dos cativos a serem beneficiados por
eles, assim como sua apropriação pelas sociedades emancipacionistas: NETO, José Maia Bezerra. “Se bom cativo,
278
apoiava, haja vista que não pudemos ter acesso a sua produção literária, onde isso pode estar
mais explicitado. Contudo, a hipótese que por ora se levanta é a de que ele provavelmente, ao
menos em público, apoiava um projeto conservador de abolição, que fosse pautado pela lei e
pela ordem, pois apesar de contribuir para a campanha ideologicamente, através dos jornais, e
financeiramente, emprestando dinheiro a escravizados, até agora vimos que dificilmente ele
desafiava os limites da lei.
É possível pensar, portanto, que Macuco vivia na pele a contradição de não ser branco,
mas atender outros critérios de distinção social no Brasil? Por um lado, defendia o fim da
escravidão, por outro, não ousava desafiar os protocolos legais. Afinal, tinha um estatuto a
preservar. A historiografia já demonstrou que nem sempre o conjunto da população negra teve
consenso sobre o fim dos regimes escravistas nas diferentes regiões da América, justamente
porque em algumas delas, existia um contingente negro livre, proprietário de terras e de
escravizados. Podemos dizer que a consciência racial vai se construindo conforme os
marcadores colocam obstáculos na trajetória ascendente desses indivíduos e em suas relações
sociais, cada vez ficando mais evidente para eles que, apesar de livres, jamais teriam a cidadania
plena enquanto houvesse escravidão.627 Esse foi o caso, por exemplo, do Haiti.628 No caso
brasileiro, algo semelhante a essa consciência parece estar em desenvolvimento ao longo dos
Oitocentos, haja vista os “jornais negros” que passaram a circular nas cidades brasileiras, como
O Mulato ou o Homem de Cor, O Progresso, A Pátria, que já naqueles anos denunciavam os
malefícios do “preconceito de cor”.629 Mais uma vez, é nas palavras do cronista Ruy d’Alva
que percebemos que a associação entre prolongamento da escravidão e o recrudescimento do
preconceito contra os de tez escura circulava entre os homens de cor santistas da época:
liberto melhor ainda: escravos, senhores e visões emancipadoras (1850-1888)”. In: CASTILHO. MACHADO. Op.
cit., pp. 264-271.
627
HOLT, Thomas. “Marking: Race, Race-making, and the Writing of History”. The American Historical Review,
v. 100, n. 1, fev. 1995, p 1-20.
628
JAMES, C. L. R. “A guerra de independência”. In: Jacobinos negros: Toussaint L’Overture e a revolução de
São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 264-342. SCOTT, Rebecca J. Provas da liberdade: Uma odisseia
atlântica na era da emancipação. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2014, capítulo 2.
629
PINTO. Op. cit., 2006.
279
Os tipos de crimes citados pelo cronista não eram exatamente aqueles pelos quais
escravizados mais eram presos na cidade, entre 1866 e 1879, mas certamente podiam habitar o
imaginário social dessa forma. Era mais comum que fossem detidos por desobediência,
desordem ou desrespeito, quebrar o toque de recolher, tentativa ou suspeita de fuga e
embriagues. Os cativos podiam ser presos tanto por policiais e oficiais militares quanto por
cidadãos comuns ou a pedido de seus senhores. Gênero, idade, raça, trabalho e a quem
pertenciam influenciavam nos motivos de prisão. Isso nos diz alguma coisa sobre como a
sociedade olhava para esses sujeitos de acordo com suas características mais ou menos
superficiais.631
Os mais jovens geralmente eram presos por desordem, desobediência e crimes violentos,
enquanto a quebra do toque de recolher e a embriaguez motivava as prisões dos mais velhos.
Por seu turno, em relação aos homens, mulheres eram ligeiramente mais detidas por desordem
e três vezes mais por desobediência, mas também não estavam tão atrás nas prisões por fuga.
Elas também costumavam ser mais levadas à cadeia por seus próprios senhores. Quanto ao local
de residência e de trabalho, os cativos que passavam mais tempo na zona urbana estavam mais
sujeitos a serem detidos ou serem levados por seus próprios proprietários até às autoridades,
pela proximidade geográfica. A zona urbana também proporcionava um convívio mais intenso
entre pessoas de diferentes classes e estatutos sociais, o que sugeria uma sensibilidade mais
refinada para julgar a ausência ou não de honra e respeito no comportamento dos escravizados,
libertos e negros livres. O que nos leva às características físicas e raciais. Aqueles detidos por
desobediência em geral eram descritos como altos e magros, enquanto os mais baixos e robustos
eram punidos por falta de respeito. Finalmente, os cativos de pele mais clara eram mais detidos
por “desrespeito”, enquanto os mais escuros comumente eram recolhidos à cadeia por
“desobediência”. É curioso notar duas coisas nesse quadro: as expectativas em relação ao mais
claros, citadinos e menos familiares estão mais ligadas à moralidade, enquanto os mais retintos,
630
Diário de Santos, 08 de dezembro de 1885.
631
READ. Op. cit., pp. 189-204.
280
632
Idem.
281
qualquer outro. O próprio termo “homem de cor” que vai ganhando espaço entre negros e
pardos livres ao longo do século enfatiza a humanidade desses sujeitos, de modo que para fazer
valer uma cidadania plena eles buscavam apagar a cor dos documentos oficiais para evitar
injustiças cometidas pelo Estado, enquanto forjavam uma identidade política para ser afirmada
nos debates e discussões públicos sobre o destino da nação e o que isso implicava para negros,
pardos, mulatos e mestiços em geral. Evidentemente, essa identidade não era um consenso,
além de ser disputada, como as demais que circulavam.
Além disso, é preciso ressaltar novamente os estudos de Macuco nos Estados Unidos.
Pensando nas observações de Hebe Matos sobre André Rebouças que se descobriu negro só
quando viajou para os Estados Unidos633, perguntamo-nos no que esse tipo de experiência e
visão de mundo pode ter acarretado para o advogado santista?
Os detalhes na documentação podem dizer muito sobre o lugar que os agentes históricos
almejam ocupar na sociedade. Tomo como exemplo, o anúncio publicado por José André sobre
o falecimento de sua mãe, que seria sepultada pela Ordem Terceira do Carmo.634
Tradicionalmente ocupadas pelas elites, no Antigo Regime, as ordens terceiras dispunham dos
estatutos de pureza de sangue para admitir membros. No XIX, essa prática havia sido abolida,
porém, as confrarias continuavam a representar as hierarquias em vigor na sociedade e a maioria
delas continuou agremiando mais alguns grupos sociais que outros.635 Nesse sentido, devemos
ler a escolha de Macuco em enterrar sua mãe na ordem terceira e não na irmandade de S.
Benedito como uma escolha deliberada em alcançar os espaços brancos ou a conquista de um
homem pardo que alcançou reconhecimento “apesar da sua condição”?
Observamos que os vínculos que estão postos no local ajudam a perceber elementos
importantes da racialização, mesmo o silêncio, o que vem à tona com a reconstituição das redes
de sociabilidade, da vida associativa e da cultura política que viemos delineando até aqui. Ser
pardo em Santos no final do século XIX era correr o risco de ser associado ao mundo da
escravidão, à imoralidade e ao mal comportamento, mesmo que o termo originalmente
remetesse a um vínculo com o sangue europeu e a maior aproximação da cultura
colonial/local/nacional. Quanto mais desconhecido aos residentes, maior risco de qualquer um
sem uma tez de “apurada refinação” poderia ser enquadrado como perigoso ao bom senso e à
633
MATTOS, Hebe. André Rebouças e o Pós-abolição entre a África e o Brasil (1888-1898). In: SIMPÓSIO
NACIONAL DE HISTÓRIA, XXVII., 2013. Natal-RN, disponível em:
http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364674765_ARQUIVO_HebeMattos_anpuh.pdf Acesso em
14 de novembro de 2019.
634
Diário de Santos, 10 de novembro de 1885.
635
MACCORD. Op. cit., 2001, capítulos 1 e 2.
282
ordem vigentes. Mais uma vez, verifica-se a mobilização de outros elementos e marcadores
cuja maior ou menor importância são rearranjadas de acordo com esse novo contexto. Se entre
os mais abastados a propriedade, a linhagem, o alto nível intelectual e a influência política
podiam ajudar a diluir sua racialidade por meio do silenciamento da cor ou do
embranquecimento incentivado pelas instituições científicas e, em alguns anos, pelo próprio
governo, entre os mais humildes a cor é mais facilmente detectável, assim como outros níveis
de racialização.
636
PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 211. Um artigo no Wikipédia informa o seguinte: “Quintino de Lacerda nasceu
escravo em 1855, na cidade serrana de Itabaiana, em Sergipe. Vendido como escravo aos 19 anos por seu senhor,
Major Antonio dos Santos Leite, para Santos durante o crescimento do comércio interno de escravos entre as
283
províncias do país após a proibição do comércio atlântico, foi escravo de ganho doméstico - cozinheiro - de
Joaquim e Antônio Lacerda Franco. Inteligente, ativo, dócil e simpático, afeiçoou-se à família de seu novo senhor,
de quem adotou o sobrenome e com suas filhas estudou os rudimentos da leitura e da escrita, conseguindo, após 8
anos de serviços como escravo, a carta de alforria”. A referência do autor é LIMA, Zózimo. "Quintino Lacerda."
Revista da Academia Sergipana de Letras, vol. 1. n. 12 (1947); a qual não pudemos consultar. WIKIPEDIA.
Quintino de Lacerda. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Quintino_de_Lacerda
637
Diário de Santos, 27 de novembro de 1884.
284
também participou das comemorações pela Abolição em 1888. Além disso, sabemos que esses
quilombolas vendiam madeira que extraíam da região próxima a seus territórios, além de
produzir chapéus de palha para comercializarem. É possível, que parte da autoridade de Lacerda
entre os quilombolas e ex-escravizados fosse garantida por conta da sua relação com Pai Felipe,
àquele momento um ancião com supostas raízes nobres no continente africano. Através desse
contato, também é possível ter sido transmitido ao Jabaquara e aos fugitivos que ocuparam suas
terras a tradição e experiência dos quilombos anteriores a ele.638 Como já ressaltamos antes,
não há evidências sobre a marca africana na organização política do Quilombo de Pai Felipe.
Porém, é evidente que as realezas negras tinham algum valor simbólico na imaginação política
dos sujeitos coetâneos, seja por sua associação aos quilombos, às irmandades ou à própria
África.
A história das terras do Jabaquara nas lutas jurídicas, como vimos, também revelam que
parte de sua autoridade frente aos demais habitantes do quilombo partia de sua relação com o
proprietário das terras. Além disso, os depoimentos dados nesse processo nos deixam mais
próximos de estimar um período mais provável de quando Lacerda conquistou sua liberdade.
Baseado em suas declarações nos diferentes processos judiciais que testemunhou a favor de
Benjamin Fontana, o que sabemos é que o liberto fez seu primeiro arrendamento das terras do
Jabaquara cerca de um ano antes da contenda jurídica com Wright. Ou seja, esse contrato foi
feito por volta de 1885. Isto parece compatível com a informação da lista de lançamentos de
escravizados, de 1884, na qual o sergipano ainda aparece como cativo. Portanto, parece-nos
plausível que sua alforria tenha se dado entre 1884 e 1885.639
Outras informações se somam a favor dessa hipótese. Primeiro, durante os anos 1880,
Quintino de Lacerda era um homem solteiro, tendo se casado apenas na década seguinte. Porém,
se nos atentarmos ao inventário deixado pelo líder quilombola após sua morte em 1898,
podemos notar que ele teve quatro filhos, sendo a mais velha de 13 anos, portanto nascida em
1885 aproximadamente. Em segundo, de acordo com o que viemos levantando até agora,
realmente se mostra provável que a radicalização do abolicionismo santista se intensificou entre
1885 e 1886. Nesta época, a cidade vivia um momento de grande tensão social ampliada pelas
epidemias, gatunagens, greves e chegada de cativos fugidos e trabalhadores imigrantes. Foi em
1885 que a cidade foi alvo de uma grande ação perpetrada por capitães do mato e pelo chefe de
638
PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 96-97. GITAHY. Op. cit., pp. 127.
639
Pelos dados de Zózimo Lima isso teria se dado em 1882, no ano em que os memorialistas apontam para a
fundação do Jabaquara. LIMA, Zózimo. "Quintino Lacerda." Revista da Academia Sergipana de Letras, vol. 1. n.
12 (1947) apud. WIKIPEDIA. Quintino de Lacerda. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Quintino_de_Lacerda
285
Três moradias com bananal onde mora Nicolau Carvalho com terras até a
divisa da Cia. Industrial Forjaz, abaixo até a porteira de Jabaquara onde tem
uma cruz, caixa d’água e chafariz que é para uso de todos os moradores das
terras de Fontana e a vertente da ponta do monte Serrat, desse lado é a grande
640
PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 211.
641
Idem, pp. 26-28.
286
casa de tijolos em que mora o dito Lacerda e outra casa pequena também de
tijolos perto da Lavanderia, cuja é para uso de todos os moradores das terras
do Fontana, e outras casas ranchos e cocheiras hoje existentes do primeiro
arrendamento que Fontana fez com Lacerda; mais as terras que ocupa João
Justo, mais uma casa ao pé da Saibreira e a mesma Saibreira do morro em que
mora Nicolau Carvalho; mais as terras que já estiveram arrendadas a Cesar
José Mericofer e a Manuel Cearense, mais a casa de tijolos, rancho e terras
que estiveram arrendadas a João Lopes, mais a casa e terras que estiveram
arrendadas a Luiz Bertozi; mais as terras que estiveram arrendadas a Frederico
Coutinho; mais as terras que estiveram arrendadas a Manuel Faustino. Casa e
terra que estão arrendadas a B. Da Costa, até o fim de 1893 (este pago), mais
terras que estiveram arrendadas a João Nunes; duas casas e terras que
estiveram arrendadas a Angélica; porém destas casas não entra a casa e terras
plantadas em que morou o carroceiro Miguel e depois o carvoeiro José Frade
mais o rancho e terras que estiveram arrendados a Borges e Bernardino
somente as terras fora da cerca do esbulho que fez Luiz de Matos e as terras
nas mesmas condições arrendadas a Pedro Lermarana. Observações: Todas
estas terras foram cultivadas.642
O caráter rural da ocupação dos aquilombados se confirma, tendo perdurado até depois
do fim da escravidão. “Todas as terras foram cultivadas”. Segundo Pereira, a maior parte das
habitações eram coletivas, construções de madeira, telha de zinco e chão de terra batida. Nelas,
provavelmente era feito apenas um pequeno cômodo com janela e porta, tendo como
predominância as áreas de convívio coletivo. Ainda segundo esse autor, essas moradias tinham
similaridades com descrições de cortiços santistas contemporâneos, mas também era notável
um desenho arquitetônico semelhante ao das senzalas das fazendas de café paulista, de modo
que podemos imaginar duas coisas: ou elas já existiam no lugar e foram adaptadas pelos
quilombolas; ou estes se basearam nas suas habitações do cativeiro para construir as novas
moradias.643 A reunião dos moradores para trocar notícias, experiências, insultos, risadas e
tristezas podiam acontecer no chafariz ou na lavanderia, espaços para “uso de todos os
habitantes”. Existia também um terreiro em frente à casa de Quintino de Lacerda, onde
possivelmente ocorriam festas e outros tipos de cerimônias.
A casa do líder quilombola, vale dizer, contrastava com as habitações de madeira da
maioria dos habitantes, era feita de tijolos e nela morava apenas a família Lacerda.644A moradia
do arrendatário sergipano era muito bem mobiliada demonstrando o interesse da família nas
diversas mercadorias de consumo que eram propagandeadas em todas as edições do Diário de
642
Escritura de arrendamento presente em: Inventário de Quintino de Lacerda. Coleção Costa e Silva Sobrinho,
vol. 14, Fundação Arquivo e Memória de Santos. Apud. PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 27. Para outra descrição do
Jabaquara ver JARDIM, Silva, Op. cit., Apud. PEREIRA. Op. cit.,2011, pp. 100-101.
643
PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 31-32.
644
Idem, pp. 35, reproduz uma imagem da casa de Quintino de Lacerda. Originalmente, a fotografia foi reproduzida
por Ana Lanna, Op. cit., pp. 162, mas a autora não menciona quem a produziu.
287
Santos. A sala estava decorada com itens como um tapete, 17 quadros, uma cadeira balanço,
duas cadeiras, um sofá, duas cantoneiras de madeira, uma mesa, uma caixa de música grande e
duas escarradeiras. A religiosidade também estava presente na forma de um oratório pequeno,
vários quadros de santos e a imagem de dois santos em especial, Santa Catarina e São
Benedito.645 Quintino recebia visitas de personalidades importantes da cidade, como Américo
Martins do Santos e Silva Jardim, dando até jantares de gala nesse mesmo cômodo, portanto
este precisava estar equiparável aos gostos do momento.646
A família Lacerda possuía muito mais mobília, como lavatório, guarda-roupas, louças,
etc. Chama atenção as joias que possuíam, como pulseiras – de ouro e de plaquê –, corrente de
ouro, broche de ouro e pérolas, botão de ouro com coral e diamantes, alfinetes para gravata –
sendo um de ouro –, broche de ouro e rubi e anéis. O ouro era um investimento certo, que
representava alguma segurança para uma população de risco como a do Jabaquara. Ele podia
ser trocado a qualquer momento por qualquer produto, portanto, além de garantir essa
segurança, denotava poder aquisitivo.647
O que lhe possibilitou, em termos financeiros, acumular tantos bens, provavelmente foi
a renda que obtinha como arrendatário e com a venda dos excedentes de sua produção agrícola
no armazém, que estava sob sua responsabilidade, no próprio Jabaquara. Ao que tudo indica,
ao longo da década de 1890, Quintino de Lacerda reverteu essa experiência acumulada no ramo
imobiliário e no comércio de gêneros alimentícios na construção de uma venda/botequim, além
de ter adquirido mais três imóveis pela cidade, provavelmente com o objetivo de aluga-los.648
A escolha desses ramos de atividade não foi em vão. Como vimos no capítulo anterior, dentro
do seu universo social, as atividades comerciais e do ramo imobiliário tinham uma importância
bem grande, agregando não só prestígio e riqueza, mas também expandindo as possibilidades
de mobilidade. Essas atividades envolviam três importantes signos da liberdade e da cidadania
645
PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 35-38.
646
JARDIM, Op. cit., Apud. PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 100-101.
647
PEREIRA. Op. cit., 2011, pp. 37.
648
Em 1898, Quintino de Lacerda era proprietário de “2 casas de porta e janela na Rua 13 de maio nº 15 e 15a,
Vila Matias”; “um terreno na Av. Ana Costa de 20m de frente por 200m de fundo”; “uma casinha de madeira na
Rua Guerra, Vila Macuco”; “um terreno com chalé na Rua Campos Melo, Vila Macuco comprado de 12 de janeiro
de 1897 em nome do filho Avelino e um terreno com chalé na mesma rua comprado na mesma data em nome da
filha Sabina cada um avaliado em 2.500$”; “um terreno na esquina da Rua 27 de Fevereiro com Rua da
Constituição comprado em 25 de maio de 1898”. Pereira acredita que as casas da rua 13 de Maio e na Av. Ana
Costa já eram suas propriedades antes do ano de 1894, baseado em uma escritura de dívida de hipoteca datada
desse ano, na qual ficamos sabendo que Quintino hipotecara essas propriedades como garantia para um empréstimo
de 7:000$000 com Benjamin Fontana. Porém, em 1897, quando Maria Isidora de Campos, esposa de Quintino,
morre, as casas estavam em seu nome, talvez por precaução caso a hipoteca fosse cobrada. O líder quilombola
possuía outras dívidas com comerciantes santistas, demonstrando sua atividade como negociante ativo. Idem, pp.
40-41.
288
naquele contexto: propriedade, laços familiares e pessoais e mobilidade. Como vimos no caso
do comerciante Manoel Salgado os negócios podiam leva-lo a outras províncias e regiões do
Brasil e a lugares do outro lado do Atlântico. Será que é essa liberdade que Lacerda mirava ao
se pretender negociante?
É possível que nem isso lhe desse as prerrogativas necessárias para circular pelo país,
muito menos sair dele e tentar voltar, visto o que Wlamyra Albuquerque constatou ao estudar
negros livres e libertos que circulavam entre Cuba, Brasil, Europa e África. Esses grupos
começaram a ser privados de entrar no Império, quando não eram sumariamente deportados.
No entanto, conhecemos pelo menos dois homens de cor que conseguiram sair do país e
retornar. Um deles é o próprio Macuco, que foi estudar nos EUA. O outro é João Octavio dos
Santos, que além ter sido vereador, era um dos negociantes mais bem sucedidos de Santos.
Segundo Olao Rodrigues:
De fato, esses dois homens tinham mais recursos econômicos, familiares e sociais que
Lacerda. Eram membros de famílias tradicionais. Mesmo no caso de Octavio dos Santos que
era um bastardo, isso parece ter feito toda diferença, uma vez que foi apadrinhado por seu avô.
De qualquer forma, Lacerda demonstrava saber as portas que os relacionamentos pessoais
podiam abrir para ele. Durante os anos 1880, o sergipano construiu relações importantes que
ajudariam na escalada social de cozinheiro escravizado para livre negociante e líder quilombola.
Para tanto, ganhou a confiança e admiração da boa sociedade santista e dos quilombolas e
fugitivos do Jabaquara. A autoridade que exercia dependia de duas atuações distintas: uma
humilde e subordinada aos brancos, na qual se adequava ao papel designado pelas elites
humanitárias aos egressos do cativeiro; outra, destinada aos refugiados, era fortemente
autoritária, que se utilizava da manipulação de ferramentas e símbolos de poder retirados de um
repositório cultural específico, que instrumentalizava as lideranças orgânicas escravas com uma
autoridade inconteste de fundo africano. A forma como essas duas atuações se mesclavam no
649
RODRIGUES, Olao. Almanaque – Santos. Santos: Indicador Turístico de Santos, 1972, pp. 40 apud.
OLIVEIRA. Op. cit., 2017, pp. 281.
289
cotidiano era complexa e muito pouco podemos dizer sobre ela, baseado em evidências
documentais. Machado acredita que a autoridade de Quintino de Lacerda diante dos libertos e
fugidos provinha da subordinação aos brancos, um poder social contaminado por mensagens
de subserviência que sub-repticiamente propunham a aceitação pelos libertos do papel
subsidiário que o projeto abolicionista-paternalista acreditava caber aos negros. Por outro lado,
o relacionamento de Lacerda com Pai Felipe e suas articulações dentro da Irmandade de São
Benedito provavelmente lhe proporcionavam os subsídios para manipulação daquelas
ferramentas e símbolos de poder baseados numa cultura política afro-brasileira.650
Segundo a mesma autora, também as narrativas sobre Pai Felipe estão impregnadas de
alusões ao caráter autoritário do líder, descrito como “preto velho de tino aguçado que
governava com prudência”, detentor de um poder inconteste entre seus seguidores. Esse “rei
africano” mantinha relações com os abolicionistas da cidade, recebendo-os em seu reduto e
servindo-lhes bebidas enquanto eram apresentadas danças. Porém, Lacerda teria ido além nesse
relacionamento com os bons moços da sociedade santista, adquirindo a confiança deles refletida
na sua nomeação para cargos oficiais, como o de inspetor de quarteirão, nomeado pela delegacia
e cuja função era fazer rondas pelo bairro de sua responsabilidade, fazer denúncias de infratores
à polícia e realizar o recrutamento militar. Portanto, ele construiu a legitimidade de sua
autoridade atuando em uma teia complexa e multifacetada de relações sociais. Sua autoridade
era legitimada, tanto pelas suas funções de arrendatário e inspetor de quarteirão, como pelas
relações de poder que mantinha entre os quilombolas.651
Quintino de Lacerda pode ter se aliado a um projeto abolicionista de cunho paternalista
e fortemente marcado por interesses senhoriais, mesmo assim ele estava desempenhando um
papel que ele mesmo construía naquele jogo político, na tentativa de garantir um modo de vida
mais autônomo, para si e sua família. Em relação aos demais moradores do Jabaquara, o que
parece é que ele se colocava acima deles, numa posição de administrador daquelas terras e
daquele que comandava os demais. Talvez, seja possível comparar a posição de Quintino com
a de feitores escravizados nas fazendas, cuja situação era especialmente ambígua, “se de um
lado ele devia sua posição à confiança do senhor, de outro só podia mantê-la (e resguardar sua
própria vida das possíveis represálias de seus parceiros) se fosse visto pelos escravos como uma
espécie de representante da senzala perante a Casa Grande; [...]”.652
650
MACHADO, Op. cit., 2007, pp. 252-256.
651
MACHADO, Op. cit., 2007, pp. 252-256.
652
SLENES, Robert. “’Malungu Ngoma vem!’: África coberta e descoberta do Brasil”. Revista USP, n. 12, 1992,
pp. 56. GOMES, Op. cit., Capítulo 2, e PIROLA. Op. cit, Capítulo 1, também destacam a ambivalência dos feitores
290
Não estamos querendo dizer que Lacerda era simplesmente um capanga da classe
senhorial. Trata-se de uma relação bem mais complexa, multifacetada e ambivalente que
envolvia as balizas impostas pelo processo de racialização e como este era interpretado pelos
diferentes sujeitos históricos. Agora, sabemos que a racialização era um processo que
combinava de formas variadas marcadores raciais e sociais (origem, linhagem, religião, cor,
condição social, etc), com as expectativas e medos da sociedade sobre as pessoas. No Antigo
Regime, essa combinação se ampara mais em bases culturais, enquanto ao longo do XIX, a cor
e a genética se tornam os critérios mais importantes. Contudo, Aldair Carlos Rodrigues
acrescenta algumas observações sobre a racialização do período colonial que podem nos ajudar
a pensar a situação das últimas décadas do XIX, especialmente a de Quintino de Lacerda e a
forma como traçou sua trajetória e construiu sua autoridade.653
Segundo Rodrigues, durante o período colonial, a racialização ocorria em duas vias. Em
primeiro lugar, os euro-brasileiros se preocupavam em impor a diferenciação entre brancos e
negros, como a base da hierarquia social da colônia. Por outro lado, em segundo plano, era
empreendida uma subclassificação dos negros para melhor vigiá-los e controlá-los, de modo
que os elementos mais problemáticos no contingente negro fossem rapidamente identificados,
separados e punidos (ou eliminados). Essa subclassificação se dava por meio dos nomes de
nação, ou como os historiadores atualmente preferem chamar, os grupos de procedência. Assim,
combinando características físicas (formato do corpo, do nariz, da boca, sinais de escarificações
ou cicatrizes, etc) e comportamentos, era possível distinguir os bons e os maus cativos.
Entretanto, os africanos e afro-brasileiros também souberam se apropriar dessas
subclassificações para se organizar e afirmar identidades étnicas e seu direito à expressão, por
meio das confrarias, como já vimos. Com isso, elegiam representantes hábeis para negociar os
interesses coletivos com as classes dominantes, jogando também com essas duas vias de
racialização. As hierarquias do Rei do Congo, que tem na Irmandade do Rosário de Santo
Antônio do Recife e nos Maracatus que dela derivaram sua expressão mais elaborada, são
grandes sintomas desse processo.654
Ora, na virada para os Oitocentos e mesmo com o fim da escravidão, não nos parece
que esse processo deixou de ocorrer em duas vias, mas sim, outras novas passaram a ser
ensaiadas e mobilizadas pelos diferentes sujeitos históricos. Com o fim do tráfico internacional
escravizados que, mesmo gozando de alguma confiança da casa grande, não era raro encontrá-losenvolvidos em
insurreições de cativos.
653
RODRIGUES, Aldair Carlos. “African body marks, stereotypes and racialization in eighteenth-century Brazil”.
Slavery & Abolition, vol. 00, 2020, pp. 18-22.
654
MACCORD. Op. cit., 2001, especialmente capítulos 3 e 4.
291
de escravizados e a resistência cada vez maior do governo imperial em permitir que africanos
e pessoas negras libertas ou livres entrassem no país, a subclassificação étnica dos pretos
segundo os nomes de nação se tornou gradativamente inviável, pelo menos fora da Bahia e do
Rio de Janeiro.655 Em razão disso, a tonalidade da cor, a propriedade (ou a falta dela) e a
profissão se tornam critérios subclassificatórios mais operacionais. Isto fica palpável na
investigação de Elciene Azevedo sobre os carroceiros e cocheiros de São Paulo no final do
século XIX.656
Azevedo demonstra que estas eram categorias sobretudo composta por negros, fossem
cativos, libertos ou livres. Portanto, era difícil controlá-los por não se identificar com facilidade
sua condição social e, consequentemente, quão violenta podia ser a repressão, em termos legais.
Então, se por um lado, tentava-se destacar a cor em primeiro lugar, seguida de adjetivos
degradantes, a resolução disciplinar do problema demandava que se considerasse as hierarquias
internas àquela categoria, recurso que no período colonial pedia que se considerasse as
hierarquias internas à cada nação/etnia para controlá-los melhor. A categoria profissional
passava ser a nova marcação social e complementava a da cor. Se esta já não pode mais ser
mobilizada legalmente como critério punitivo, a primeira dará conta de enquadrar o sujeito
negro num procedimento disciplinar específico. Por essas razões, as autoridades paulistanas
procuravam os líderes de carroceiros e cocheiros para que eles repreendessem os trabalhadores
mais insubmissos, assim como antes se buscava os reis ou juízes das irmandades para fazer essa
mediação.
Essa pode ser uma explicação para o “nojo” de Macuco em relação a eleição de Lacerda.
Podemos interpretar que seu incômodo se deu em razão de uma figura que deveria ter
prerrogativa política apenas em espaços muito bem circunscritos – como a irmandade, os cargos
públicos mais baixos, a liderança das atividades clandestinas do abolicionismo etc. – estivesse
ultrapassando os limites ao pretender ocupar um espaço que à princípio era dos homens distintos
e honrados que tinham “autenthicas” mais respeitáveis. Para os contemporâneos as fronteiras
entre as diversas culturas políticas eram mais palpáveis. Como vimos, as irmandades até podiam
ter influência em outras formas de organização política, quiçá até mesmo na estrutura
administrativa da municipalidade. Inclusive, muitos sujeitos transitavam entre as duas.
Contudo, para eles, eram espaços distintos e deveria haver restrições quanto a circulação dos
655
ALBUQUERQUE. Op. cit., 2009, p. 45-93.
656
AZEVEDO, Elciene. “A metrópole às avessas: cocheiros e carroceiros no processo de invenção da ‘raça
paulista’”. In BATALHA, Claudio H. M.; FORTES, Alexandre; SILVA, Fernando Teixeira da. Culturas de
Classe. Identidade e Diversidade na Formação do Operariado. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2004, pp. 73-
105.
292
indivíduos entre esses ambientes e suas respectivas culturas políticas. Afinal, devemos lembrar
dos critérios de voto, entre os quais, na Primeira República, o do letramento implicava no
elitismo da política institucional da época. Lembre-se também, leitor, da ênfase dos homens de
cor na elevação intelectual necessária para torna-los cidadãos plenos. Assim, um negro liberto
analfabeto podia ocupar o cargo mais importante em uma irmandade e caminhar a frente de
brancos e pardos em procissões, até mesmo dando ordens nessas situações. Podiam até se coroar
reis fictícios nos festejos apropriados. Porém, ser vereador era algo que extrapolava o tênue
equilíbrio que muitos pardos e mestiços tentavam botar em prática para serem aceitos em
espaços como esses, fazendo que esse esforço perdesse seu sentido inicial.
Ademais, tudo indica que Lacerda e os demais fugitivos traçavam sua própria trajetória
política com base numa dinâmica que vinha se desenrolando entre escravizados, quilombolas,
senhores e sociedade circundante durante a escravidão e após seu fim. Mesmo que o movimento
político do qual faziam parte buscasse o fim dessa instituição, suas escolhas e ações políticas
estavam fundamentadas nas vitórias e derrotas que vinham tendo desde o cativeiro.
Voltando a olhar para a greve de 1891, fica mais compreensível a escolha de Quintino
de Lacerda e suas turmas de homens de cor de furar a greve dos carregadores do porto. Para
eles, fazia sentido correr em socorro dos exportadores da cidade, pois muitos deles haviam sido
seus aliados na luta contra o cativeiro, sendo alguns amigos pessoais de Lacerda, além de terem
negócios com ele. Seria mais uma troca de favores e obrigações, possivelmente pensaram eles.
Além disso, segundo Pereira nos informa, naquele ano os imigrantes já estariam em grande
número na cidade, disputando os cargos de trabalho costumeiramente ocupados pelos cativos
de ganho, libertos e quilombolas; a própria categoria de carregadores de café já era
majoritariamente ocupada por imigrantes portugueses e espanhóis àquela altura. Somada a essa
competitividade, também o caráter racista dos projetos imigrantistas – com grande voz no
movimento abolicionista e que foi o vencedor na aplicação da Abolição paulista – contribuía
para um desgaste político que a população de cor vinha sofrendo desde o fim da escravidão.
Quintino de Lacerda e as turmas de homens de cor, assim, diante desse cenário desfavorável
preferiram apostar suas fichas nas antigas alianças construídas ao longo da década de 1880.
Por outro lado, fica mais compreensível o erro que cometeu José Antonio Vinhaes ao
entrar em um conflito público com Quintino de Lacerda. Este detinha boa parcela de prestígio
acumulado entre membros das elites locais, mas também entre a população de cor que vivia no
Jabaquara e seus arrabaldes. A memória de suas ações no movimento abolicionista era
celebrada mesmo 3 anos depois do fim do cativeiro, um destaque que somente ele havia
ganhado entre todos os homens e mulheres de cor que participaram do mesmo movimento.
293
Contudo, mesmo tendo sido alçado pela memória santista como um dos heróis da
Abolição na cidade, sua cor sempre esteve bem marcada nessas memórias, sempre representado
como um “bom negro”, cuja “simpatia, [...] dignidade pessoal, [...] coragem davam-lhe o
suficiente prestígio para manter no respeito e no trabalho aquelas centenas de criaturas, cheias
de justificados ódios, de sofridas ambições, de anseios de toda ordem”.657 Seus adversários
políticos igualmente apelaram para sua cor para desqualificá-lo. O tenente Vinhaes, por
exemplo, procurou por Lacerda pessoalmente para cobrar satisfações sobre sua atitude em ter
reunido “turmas de homens de cor” para furar a greve dos trabalhadores do porto de 1891, a
quem o militar deputado representava nas negociações.
É importante atentar aqui que toda a trajetória de Quintino de Lacerda está ligada ao
trabalho. Ele era um escravizado; depois de liberto, mesmo conseguindo algumas posses,
continuou trabalhando como arrendatário e lavrador; agenciava e organizava trabalhadores
negros sob sua influência, inclusive liderando-os para furar uma greve portuária. Enfim, o
estigma do trabalho manual mantinha uma relação dialética com o tipo de racialização que ele
sofria.
Estudar a história dos homens negros e pardos no pós-emancipação, na abolição e no
pós-abolição, como ficou demonstrado acima, é oportuno no sentido de pensar problemáticas
específicas desse contexto histórico e da racialização dele decorrente. Os pertencimentos raciais
foram reforçados e construídos com e na crise do escravismo. Segundo Wlamyra Albuquerque,
a racialização, no XIX, foi um processo atravessado por outros, sem os quais é improdutivo
qualquer esforço de análise. Esses processos são o desmonte do escravismo, a falência da
sociedade imperial, a (re)formulação das teses do racismo científico à brasileira e o
abolicionismo.658 Acrescentaríamos também as confrarias e o associativismo negro. Ora, os
homens de cor que descrevi aqui estão justamente no âmago desses processos, apesar de
ocuparem lugares distintos.
Havia condições suficientes na vida social e na cultura política santistas que serviam de
baliza para a elaboração e execuções de identidades racializadas à nível individual e coletivo.
Apesar de não serem capazes de aglutinar a totalidade dos sujeitos de cada "raça", sua
concepção e os esforços empreendidos para executá-la ocorreu naquele próprio momento. A
competitividade no mercado de trabalho e nas habitações; o conflito de interesses de classes,
657
MACHADO, Op. cit., 2007, pp. 252-256.
658
ALBUQUERQUE, Wlamyra. “Eminências pardas”, “mulatos envergonhados” – homens negros no tempo da
abolição. In: Seminário Rice-Unicamp-Mora. “Direitos em perspectiva histórica. Avanços e retrocessos”, VII.,
2019; Campinas-SP.
294
e pardos, sempre ocultando a própria cor nos registros. Nesse sentido, Lacerda se destaca, pois
enquanto os primeiros se escondiam atrás do silêncio da cor ou de generalizações como "de
cor", o sergipano parece se empenhar mais em efetivar a possibilidade de existir efetivamente
um patrão negro.
José André do Sacramento Macuco, por outro lado, apesar de não ser branco, nasceu
bem de vida, com uma família detentora do prestígio que as patentes militares, a ascensão
econômica e a propriedade podiam conceder. Com o investimento familiar, pôde ter sua
formação em direito nos Estados Unidos e, quando retornou, passou a participar ativamente do
movimento abolicionista, mesmo que de forma ambivalente.
Pelo que sabemos, nenhum dos dois se autodeclarou negro, pardo ou qualquer outra
categoria racial. Contudo, enquanto Lacerda não era lembrado sem se fazer menção à sua cor,
Macuco passa quase que despercebido, o que provavelmente é resultado de um esforço tanto
individual quanto familiar, haja vista que no seu batismo foi omitida sua cor. A trajetória deste
último se assemelha em muito às de outros homens de cor de posses, como o Barão de Cotegipe
e Teodoro de Sampaio, com a diferença de que os opositores políticos destes últimos
registraram sua cor através de termos pejorativos, como “eminências pardas”, “mulatos
envergonhados” e “carrasco impassível de sua própria raça”. Para Macuco, porém, restou o
silêncio e algumas reminiscências de sua racialidade. De qualquer forma, para avançar nessas
questões em trabalhos futuros é necessário partir do pressuposto de que os sujeitos vão
delineando e construindo seu lugar de racialização ao longo da vida, dos embates e dos
obstáculos que cruzam seus caminhos. Encerro este capítulo da maneira mais apropriada para
os historiadores, com uma pergunta. Uma pergunta que tomo emprestada de Albuquerque:
como problematizar e criar questões conforme esses personagens vão se encontrando? Esse é,
enfim, um dos maiores desafios do campo do Pós-Abolição.
296
Como a história não tem fim, resta fazer o que o protocolo pede e sistematizar
resumidamente os resultados que obtivemos ao longo do trabalho para que não saiam
embriagados com essa enxurrada de informações e narrativas. Contudo, tão pouco essas
considerações são o final da história. São, na verdade, as considerações preliminares dos nossos
próximos intentos e por isso o título que demos: algumas notas que registramos para que
trabalhos futuros se beneficiem do que realizamos.
Em primeiro lugar, expusemos o cenário santista da segunda metade do século XIX.
Uma cidade portuária que se transformava em ritmo acelerado. A demanda de Santos como
principal porto da província cresceu, à medida que a expansão da cafeicultura no Sudeste elegeu
a cidade como escoadouro de sua produção e porta de entrada para os milhares de trabalhadores
imigrantes para servir de mão de obra nas plantações. Até então, Santos tinha acabado de ser
elevada à categoria de cidade, mas mantinha a estrutura física de uma pequena vila. A geografia
social da cidade era definida o suficiente para evitar maiores turbulências, com sua área urbana
se dividindo em praticamente três bairros e rodeada por uma paisagem rural repleta de morros
e mangues. Chácaras, roças e sítios se espalhavam desde o restante da Ilha de São Vicente,
ficando cada vez mais esparsas conforme atravessava-se o estuário para chegar às terras de
Bertioga, Cubatão e Guarujá.
No entanto, com o crescimento das atividades portuárias e comerciais, além do aumento
exponencial da população, essa geografia começou a se transformar. Os bairros ficaram menos
definidos, com cortiços espalhados por todos os lados. O perímetro urbano crescia em ritmo
razoável, com os maiores proprietários rurais da região esquadrinhando suas terras para loteá-
las e construir vilas operárias para hospedar a massa incessante de trabalhadores que chegava à
cidade. Portugueses, espanhóis, italianos, alemães, para citar os mais comuns, eram a maioria
dos estrangeiros, mas havia uma porção relevante de africanos. Migrantes nacionais também se
dirigiam para o litoral paulista, vindos principalmente do Nordeste do país. Brancos, pretos,
pardos, mulatos, homens e mulheres, velhos, adultos e crianças, essa população passou a ter
que conviver em um cotidiano intenso e caótico. Além de todos os problemas estruturais da
cidade, era preciso ter que lidar com a possibilidade de adoecer em um ambiente insalubre como
eram os portos do século XIX. Várias epidemias e doenças endêmicas assolavam a cidade,
ceifando centenas, às vezes milhares de vidas.
297
De modo geral, homens e casais brancos eram os mais ativos nesse comércio, justamente
quem tinha mais recursos para comprar cativos, enquanto entre os vendedores existia um grupo
um tanto mais diverso, contando com mulheres e homens mais humildes e velhos. Distinguiu-
se que os santistas detinham poucos recursos para participar dessas trocas, quando comparados
com o grande número de portugueses e brasileiros de outras regiões, que se estabeleceram na
cidade ao longo dos anos. Fazendeiros e comerciantes eram as profissões mais recorrentes.
Além disso, um pequeno, mas significativo número de negros e pardos, donos de cativos,
sugerem níveis menores e variados de riqueza.
Esse comércio de viventes trouxe para Santos um leque diversificado de pessoas negras,
pardas e mulatas, boa parte delas africanas oriundas de regiões como Congo, Angola, Benguela
e Costa da Mina. Entretanto, também vieram crioulos, mulatos, pardos e ladinos de outras partes
do Brasil, principalmente do Nordeste e de algumas vilas e cidades no litoral paulista, próximas
a Santos. Também um pequeno número de cativos do interior chegava à cidade por meio do
tráfico, mas essa região mais comprava do que vendia.
Paralelamente, havia aqueles que, apesar de chegarem livres na prática, eram fugitivos,
cativos que romperam definitivamente os laços com seus antigos senhores e fizeram a escolha
de migrar para o litoral paulista para tentar se passar por negros e pardos livres e libertos, ora
se refugiando na casa de particulares, ora conseguindo um pedaço de roça em troca de trabalho.
Os quilombos vinham de longa data na região, mas temos pouquíssimas informações
sobre essas comunidades. Porém, um suposto herdeiro dessas tradições rebeldes, Pai Felipe,
tido como um rei africano. Supõe-se que ele sobreviveu às expedições antimocambo e
continuou se refugiando nas matas próximas a Cubatão, quando foi encontrado por Quintino de
Lacerda em 1881 e levado para Santos, onde formou outro mocambo, próximo ao Jabaquara,
porém independente. Envolta em mistérios e romantismo, a história dos quilombos santistas
começou a ser problematizada por Machado, que encontrou evidências do costume de
arrendamentos de pequenas porções de terra praticado entre grandes proprietários e pequenos
roceiros abrindo a possibilidade para imaginarmos que acoitamento de cativos e grupos
quilombolas podiam fazer partes desses acordos. Os conflitos que ficaram registrados em
processos criminais envolvendo o Jabaquara e seus habitantes, já nos anos finais do século XIX,
revelam um universo social plural e complexo e de certa forma confirmam a intersecção entre
arrendamento, acoitamento e relações de trabalho alternativas.
O longo debate historiográfico sobre os quilombos no Brasil e no restante da América,
sua capacidade de agência e de recriação de uma cultura africana fora da escravidão nos
forneceu uma perspectiva teórica que desse conta de interpretar esse cenário complexo. Assim,
299
buscamos olhar para os quilombos santistas considerando que os sujeitos e grupos que os
compuseram não eram estáticos, mas extremamente dinâmicos. Eles não eram tal qual as
sociedades que deixaram na África, muito pelo contrário. Ao ter que enfrentar situações
perigosas, sujeitos a perseguições, prisões, torturas e execuções sumárias, esses agentes
compunham comunidades contingentes, cujas circunstâncias de funcionamento eram
diariamente negociadas e nas quais interesses individuais disputavam acirradamente. Não
obstante, de fato podia haver uma marca africana, ou uma gramática cultural, um conjunto de
referências culturais que serviam de parâmetro para eles se comunicarem e negociarem entre si
e com os sujeitos externos. Para tanto, era preciso botar os pingos nos “is”, estabelecer uma
linguagem política comum nova, mas não completamente original também. Quase como uma
língua franca, porém, cujos termos, símbolos e rituais podiam ter significados variados a
depender de quem ouvia, quem falava e quem agia.
Fazendo uso dessa matriz teórica, foi possível interpretar os quilombolas santistas como
capazes de engendrar uma geografia insurgente, um campo negro, que não estava
completamente fora da escravidão. Na verdade, estava emaranhado em pontos estratégicos,
funcionado de forma simbiótica com a ordem escravista, mas sob um tênue equilíbrio. Dessa
forma, mesmo quando as comunidades quilombolas não tinham a intenção de derrubar o
sistema como um todo, tensionavam naturalmente as relações escravistas. Como Yuko Miki
enfatizou, isso fazia da fuga e do quilombo um ato essencialmente político.
Contudo, a fuga e o aquilombamento não eram a únicas formas de fazer essas coisas e
se tornar livre. Outras formas igualmente dependiam da construção de laços e alianças com
outros cativos, libertos, livres, pessoas de outras classes sociais e até mesmo senhores de
escravos. A forma mais segura, mas não garantida, de se tornar livre era por meio do
aprofundamento dos laços com o próprio dono, procurando se adequar a suas expectativas de
bom comportamento, relacionadas à vida religiosa, familiar e laboral. Isso poderia render uma
alforria em testamento ou ser considerado para o fundo de emancipação, uma alternativa
institucional formalizada pela Lei 28 de Setembro de 1871 e também praticada por sociedades
civis com fins emancipatórios e abolicionistas. Famílias, mães solteiras e crianças eram mais
prováveis de serem alforriados por essa via. Por outro lado, mulheres e empregados domésticos
podiam conseguir uma manumissão condicional ou onerosa por meio de negociações pessoais
com o senhor, o que quase sempre resultava na extensão das relações de dependência após a
assinatura dos papéis de alforria. Havia também a opção de buscar a ajuda de terceiros.
Acoitadores de cativos, advogados abolicionistas, familiares e cúmplices em diferentes classes
sociais que poderiam ajudar a arrecadar dinheiro por vias alternativas.
300
a organização social. Mais uma vez, propomos olhar esse processo como uma tradução na qual
os sujeitos selecionam elementos-chave de suas próprias culturas, os quais se mostram mais
versáteis e dialogam com as demais. Assim, termos, símbolos e rituais que são acordados para
manter a boa comunicação entre os contemporâneos. Contudo, lembramos, cada um deles
agrega múltiplos significados, alguns dos quais não são acessíveis a qualquer agente,
dependendo das suas referências culturais.
Nesse terceiro capítulo, além do mais, foi possível discutir as participações de negros e
pardos nos festejos e associações, assim como as percepções dos homens de cor sobre a abolição
e sobre o preconceito de cor. Apesar de emancipadores, abolicionistas e o Estado buscarem
tratar com condescendência e relegar a essa população uma posição subordinada nas
celebrações e na memória que se pretendia construir, eles conseguiram sair às ruas ou mesmo
tomar a frente nas iniciativas oficiais para comemorar o tão sonhado fim da escravidão e a
república que se inaugurava. Igualmente, participaram de vários clubes e associações, sejam
exclusivas para eles ou naquelas mais heterogêneas.
Todavia, nota-se duas coisas nas percepções de um jornalista de cor. Primeiro, nas
notícias em que são citados “pretos” e “negros” quase sempre eles estão envolvidos em algum
acontecimento desqualificante, como suspeitos de crimes, fraudes, tendo suas reuniões
religiosas interrompidas ou mesmo nas denúncias de prisões abusivas que narramos
anteriormente. Por seu turno, dificilmente qualquer cor era mencionada quando se fazia elogios
a alguém. Segundo, ao lado do que falamos sobre João Macuco antes, isso reforça que alguns
homens de cor mais distintos socialmente enfatizavam essa associação entre os termos “preto”,
“negro”, “africano” e tais situações escusas, enquanto silenciavam sobre a própria cor de modo
a se distanciar destes sujeitos, mesmo que militassem a seu favor em certas ocasiões.
A ideia de raça era forjada também no interior das associações e atravessava as
identidades gestadas nelas, as quais serviam como catalisadoras para dimensões de cidadania
política, social, cultural, ideológica, econômica, etc. Por isso, um olhar mais atento para as
irmandades católicas se mostrou produtivo. Elas faziam parte da própria gênese da sociedade
santista onde as primeiras experiências associativas foram vivenciadas. Procuramos entendê-
las dentro da geografia social da cidade, apontando o lugar físico que ocupavam e como davam
abertura para seus membros circularem pelo espaço do município. A localização da sede de
uma irmandade dizia muito sobre seus interesses, no caso de um tempo próprio, ou sobre o tipo
de pressão social que elas sofriam, quando se viam obrigadas a ocupar capelas e igrejas alheias.
Paralelamente, foi uma oportunidade para compreendermos as referências em torno da
articulação em associações, a organização de festas e procissões e significados sociais
302
atribuídos à cor e à raça. Mais que isso, pudemos constatar que havia uma economia religiosa
na qual as irmandades e, consequentemente, as associações civis estavam inseridas. Entender
como elas mobilizavam dinheiro e mercadorias nos ajudou a ver como as próprias pessoas
estavam circulando. Por outro lado, o envolvimento das confrarias com pautas sociais e
movimentos políticos foi explorado, enfatizando sujeitos que transitavam entre esses espaços.
Mesmo que o sodalício não apoiasse explicita e oficialmente determinadas pautas e
movimentos, seus integrantes podiam usá-los como base de sustentação para conseguir aliados.
Além disso, estudar suas reuniões nos proporcionou compreender de que forma as
decisões eram tomadas coletivamente e como as rivalidades eram vivenciadas. Aqui, a proposta
metodológica de Fábia Barbosa Ribeiro foi essencial. Identificar quem participava das reuniões
e com qual era sua assiduidade fez toda a diferença para definir mais substancialmente os
interesses desses grupos sociais. Era necessária muita astúcia para mobilizar as pessoas certas
nas reuniões certas para levar seus interesses adiantes. Nessa dinâmica, era possível tanto
senhores e patrões cooptarem subordinados quanto o inverso.
Por sua vez, por meio da experiência dos confrades do Rosário dos pretos pudemos
reparar em como a identidade gestada no interior da confraria catalisava as dimensões da
cidadania. Atentos às mudanças que a modernização conservadora à brasileira trazia, eles foram
reelaborando sua identidade primeiro buscando afirmar a categoria “homens pretos”, depois
“homens de cor” e finalmente se abster de qualquer designação de cor, comprovando a tese de
Hebe Mattos sobre o silêncio da cor como signo de cidadania.
Ao final do quarto capítulo, a reconstituição do perfil dos irmãos de São Benedito ajudou
a entender quem eram eles em meio a sociedade santista mais ampla. Além disso, conseguimos
discernir quais características pessoais eram relevantes para se destacar na micro-política
confraternal. Habilidades como saber ler e escrever, aptidão para votar, ostentação de patentes
militares, cargos públicos e sucesso nos negócios eram elementos importantes que se
combinavam de maneiras complexas na realidade dessas pessoas e as favoreciam ou não a
ascender entre seus pares.
Também projetamos um provável perfil dos cativos e futuros libertos que ingressavam
na confraria por meio da reconstituição das unidades domésticas de alguns confrades e suas
famílias na primeira metade do século XIX. Constatou-se que os africanos de fato podem ter
sido uma presença marcante nessa irmandade, não à toa ela ficou conhecida como um sodalício
de “pobres pretos”, um termo que remetia tanto à escravidão quanto à origem africana. Contudo,
ainda é difícil apurar as origens étnicas devido a problemáticas dos nomes de nação. Entre os
cativos desse nicho, o mais frequente eram categorizações mais genéricas como “africano” ou
303
“nação”. Por sua vez, os cativos naturais de Santos e das demais vilas nos arredores litorâneos
de São Paulo representavam um contingente razoável.
Em seguida, mais uma vez atestamos indícios da diferenciação entre pardos e
pretos/negros ao prestar atenção nos fogos de algumas famílias pardas. Duas delas que
possuíam cativos, preferiram não adquirir nenhum que fosse classificado como elas, isto é, com
o termo “pardo”. Eram todos negros, a maioria africanos, o que nos faz crer que a propriedade
também era um distintivo importante, como também ressaltou Mattos. Ao repensar o que vimos
ao longo de todo o capítulo quatro, foi possível entender que estamos lidando com uma
comunidade afro-luso-brasileira que conectava as cidades de Santos, São Paulo, Rio de Janeiro,
Lisboa e Porto, para dizer o mínimo.
Finalmente, o capítulo cinco foi dedicado a estudar a trajetória de dois homens de cor
diferentes, um pardo e um negro, a fim de compreender de modo mais prático como eles
circulavam entre esses espaços e de que maneira essa circulação era balizada pela racialização.
Esta se tornou tema principal do capítulo que procurou se basear nos resultados expostos nos
anteriores. José André do Sacramento Macuco se mostrou um sujeito profundamente
interessante. Homem pardo, oriundo de uma família estável e livre a muitas gerações, ele teve
oportunidade de traçar uma trajetória de destaque. Foi jornalista, escritor, advogado, delegado
e político. A trajetória de sua família dá ênfase à importância da propriedade e das patentes
militares, assim como agrega mais alguns pontos para a hipótese da comunidade afro-luso-
brasileira existente em Santos. Aqui a linhagem volta a ganhar importância para a definição do
lugar dos Macuco na hierarquia sociorracial de seu tempo. Seria a conexão com o sangue
lusitano que lhes rendeu tanto sucesso no meio santista? Bem provável, considerando o poder
político e econômico que os portugueses mais antigos detinham na cidade.
Por outro lado, a atuação de Macuco no movimento abolicionista também se destaca
devido a sua peculiar ambivalência. Em alguns momentos auxiliou cativos a alcançarem a
liberdade, em outros deu assistência a senhores para garantir uma pequena extensão de seu
domínio para além da alforria. Paralelamente, participava nas sociedades emancipadoras e
abolicionistas, assim como nas beneficentes, com a esperança de moralizar sua cidade entregue
ao caos social na segunda metade do século XIX. Contudo, é na sua atuação como delegado em
um caso de fuga coletiva de escravizados que as tensões inerentes a sua identidade racial e o
caráter de suas intenções abolicionistas saltaram aos olhos.
Enquanto prestava assistência aos perpetradores da caçada nos bastidores, em público
parecia se mostrar mais desconcertado com o comportamento de seu superior. Na imprensa,
colegas jornalistas, alguns deles homens de cor, tentavam garantir que sua imagem não fosse
304
associada aos eventos daquele mês de novembro de 1885, mas deixavam escapar que, de fato,
não fosse os símbolos de distinção social que o delegado carregava, ele poderia muito bem ser
percebido como mais um cativo se passando por livre e acabar preso por causa da sua cor.
Apesar de não termos evidência de Macuco expondo seus pensamentos sobre raça e racismo,
seus contemporâneos discursaram longamente na imprensa sobre suas percepções do
preconceito de cor e as propostas para superá-lo. De certa forma, Macuco parecia dialogar com
eles, mas não abria mão de acumular mais alguns distintivos de prestígio social para silenciar
sua cor e, quem sabe, o preconceito.
Por sua vez, a trajetória de Quintino de Lacerda permitiu que observássemos outros
níveis da racialização. Muito mais ligado ao mundo do trabalho e da escravidão, Lacerda
passava por um estigma maior e frequentemente tinha sua cor destacada lembrando a todos de
sua origem. Apesar disso, o liberto se empenhou em construir uma posição estável e autônoma
na sociedade santista. Ele investiu seus esforços em duas coisas: criar laços tanto com os
quilombolas, quanto com as elites; e entrar no ramo comercial e imobiliário. Entretanto, ele foi
mais além do que simplesmente garantir uma boa moradia e estabilidade de vida. Lacerda foi
um líder político que angariou o respeito de vários estratos da sociedade santista. Apesar de
estar numa posição de subordinação em relação às elites santistas, estas se tornaram tão ou mais
dependentes dele quanto ele era delas. Sendo uma das únicas coisas que se colocava entre a
ordem e o estopim de uma revolta negra na cidade, podemos perceber que o sergipano
vivenciava um processo de encontro e tradução de culturas políticas no qual buscava construir
uma figura de autoridade ampla, multifacetada e versátil com referências tanto africanas quanto
lusitanas e brasileiras, entre outras que transitavam naquele contexto. Entretanto, como vimos,
essas coisas podiam ser muito úteis para que os homens de cor concretizassem seus interesses,
mas havia limites. Infelizmente, as “authenticas” de uma pessoa não tornavam a armadura do
cidadão tão invulnerável, como bem observado pelo cronista Ruy d’Alva. Conforme o 13 de
Maio ficava cada vez mais no passado, Lacerda e os demais quilombolas perdiam espaço e
alianças outrora valiosas. Foi por isso que o tenente Vinhaes achou possível afrontá-lo
publicamente, apelando para ofensas raciais. Pela mesma razão, Fontana e outros proprietários
começaram a expulsar a Lacerda e seus pares do Jabaquara e seus arrabaldes.
Ao longo da dissertação, esperamos ter comprovado a potencialidade da metodologia
que usamos. Com a utilização de leque variado de fontes ao lado do método onomástico foi
possível mudar a perspectiva com que a história social de Santos era interpretada.
Extremamente difícil de se reconstituir e analisar por causa da instabilidade dos acervos
santistas e a pulverização da documentação em vários lugares, essa história dificilmente
305
ultrapassava a superfície da vida social e política, com poucas informações sobre os sujeitos e
a complexa sociabilidade santista.
Não fomos pioneiros nesses esforços. Maria Helena Machado, Matheus S. Pereira,
Joyce F. de Oliveira e, principalmente, Ian Read deram os primeiros passos enfatizando a
importância das redes de relacionamento entre os agentes históricos. Especialmente Read se
destaca por ter conseguido reconstituir grande parte do universo social da escravidão em Santos,
discernindo melhor a geografia social do município, a composição das unidades domésticas e
a estratificação interdependente entre os habitantes. O que fizemos aqui foi meramente dar
continuidade a esses esforços seguindo seus passos. Mesmo ainda sendo necessário mais
pesquisas para caracterizar como efetivamente se dava as organizações sociais e políticas em
quilombos, outras irmandades e agremiações, buscamos ajustar a forma de interpretar os
processos políticos do final do século XIX. Nesse sentido, quisemos explicitar o caráter de
tradução das culturas políticas praticadas naquele contexto. Assim, as escolhas dos diferentes
homens de cor, por mais que nos pareçam contraditórias a partir de nossas concepções atuais
de solidariedade de classe e/ou de raça, mostram-se muito mais inseridas na realidade social em
que foram tomadas, não levando em consideração apenas o abolicionismo ou o movimento
operário, ou ambos, mas resgatando variados componentes do grande mosaico que era o
cotidiano do ser negro ou pardo livre em meio as transformações do final do século XIX em
Santos.
De certo, houve um esforço de parte desses sujeitos em forjar uma identidade racial e
política para todos aqueles que carregavam o sangue africano. Todavia a reivindicação ou não
da África para a elaboração de uma nova identidade de classe racializada variava, inclusive
diríamos que é um ponto expressivo que tensionava a maior coesão desses sujeitos. Enquanto
vemos homens como Luiz Gama e os jornalistas do A Pátria e d'O Progresso destacarem a
herança africana na constituição de uma identidade negra livre e cidadã; outros homens de cor
mais abastados e influentes veem o continente africano como símbolo de atraso e olham com
bons olhos as práticas neocoloniais na região, como Rebouças. De certo, a presença africana na
cidade fora grande na primeira metade do século XIX, enquanto na segunda diminuiu
consideravelmente. Todavia, continuava existindo e carregando alguma importância simbólica,
visto a manutenção das coroações de reis negros nas irmandades locais. Além disso, os
africanos, apesar de poucos, eram tão ativos na vida econômica, social e política quanto
qualquer outro.
Então, voltamo-nos para as irmandades para usá-las como porta de entrada para
percorrer caminho semelhante aos dos autores mencionados. Surpreendentemente, isso nos
306
permitiu olhar um nicho específico da população santista e entender o lugar dos homens de cor
nele, assim como a forma com a qual eles se relacionavam com o mesmo e a sociedade mais
ampla. Assim, uma cultura política racializada e em constante transformação se tornou mais
palpável. Portanto, concluímos que é impossível pensar a política no século XIX sem considerar
o associativismo e as manifestações públicas, seja dentro ou fora das irmandades, pois faz parte
da gênese das articulações sociais no período. Acreditamos que esse seja o caminho possível
para os historiadores superarem os obstáculos que a narrativa memorialista e o discurso
apaixonado da imprensa impõem.
O conceito de circulação foi vital para a investigação e interpretação desses processos.
Como destacou Albuquerque, enquanto sujeitos em trânsito, essas pessoas traziam referências
próprias e diversas e à medida que se encontravam precisavam traduzir e negociar essa bagagem
para chegar a um consenso sobre os termos da negociação. Suas identidades igualmente eram
afetadas por esse trânsito e pelas circunstâncias históricas. Nesse sentido, as ideias, os
significados, os rituais, as tradições circularam tanto quanto os próprios sujeitos. Eles se movem
no tempo e no espaço proporcionando uma série de desdobramentos e possibilidades de
arranjos. Sem considerar isso, dificilmente ultrapassaremos a velha narrativa memorialista que
não vê mais do que heróis, vítimas e evolucionismo. É necessário fazer uma história conectada,
que leve em conta encontros e desencontros, continuidades e rupturas, codificações e traduções,
enfim, pensar o deslocamento e suas consequências. Se não pensamos em movimento como
poderemos criar questões a partir de encontros?
Muitos são os caminhos que se abrem com essas considerações em mente. Por meio
dessa matriz teórico-metodológica, pesquisas futuras podem buscar entender o que não nos foi
possível acrescentar aqui devido às nossas próprias limitações. Trabalhos que tenham tempo e
recursos disponíveis, podem procurar expandir o raio de investigação, buscando maiores
conexões entre os sujeitos em Santos e outras regiões e suas culturas. No caso da família
Macuco, por exemplo, seria interessante se aventurar nos arquivos paroquiais e cartoriais no
Brasil e em Portugal para traçar sua genealogia demarcando os caminhos percorridos por seus
integrantes e o que tais trajetos implicaram em suas vidas. No caso de Quintino de Lacerda,
ainda se está por fazer uma investigação maior sobre sua vida em Sergipe e em que medida a
cultura e tradição nas quais foi criado lá, influenciaram nas suas escolhas e comportamento em
Santos. Também seria interessante explorar mais a circulação dos negociantes como Monteiro
Salgado, João Octavio dos Santos e Satyro Alves de Azevedo que importavam mercadorias e
bens de consumo para vendê-las aos seus conterrâneos. Diante da possibilidade de identificar
novos homens e mulheres de cor envolvidos no mesmo ramo, oportunidades podem se abrir
307
para repensar a própria capacidade de agência dessas pessoas diante de um contexto que
apresentava muitas adversidades para elas.
Por seu turno, através da reconstituição de trajetórias e a perspectiva teórica do encontro
de culturas, é possível investigar as problemáticas que os papeis de gênero geravam. Apesar de
não termos conseguido abordar o assunto, podemos ver que: no caso de Brandina Fiuza a
identidade de dona de casa, religiosa e praticante de caridade agregava poder de voz a sua figura
diante de uma praça comercial majoritariamente masculina e elitista; no caso de Macuco, sua
percepção de si mesmo enquanto um homem moralizado e erudito era importante para a
manutenção de seu prestígio social; e no caso de Lacerda se mostrar como um homem forte,
negociante, leal aos aliados, e autoritário com os subordinados, foi vital para traçar seu caminho
para a liberdade.
Enfim, resta também resgatar os vários maços de populações do final do século XVIII
e início do XIX que estão no Arquivo do Estado de São Paulo, para reconstituir mais
precisamente a comunidade negra que se estabeleceu em Santos nesse período pouco abordado
pela historiografia. Read começou a fazê-lo a partir de 1822, mas não aprofundou na análise
das origens africanas dessa população, algo vital para fazer uma história conectada das culturas
políticas ou qualquer outro aspecto da vida social das populações afro-brasileiras que
escolheram Santos como sua residência ou ponto de passagem.
Dito tudo isso, agora, sim, podemos acenar e nos despedir com a esperança de que,
também entre nós, aconteçam muitos outros encontros.
308
FONTES
Fontes Manuscritas
(1824-1890)
C5559, C5560 e C5561
(1880-1891)
CO5904
(1870-1875)
CO4810
(1883-1885)
CO4811
(1883-1887)
CO6037
(1885)
CO2641, CO2641, CO 2646 e CO2647
(1886)
CO2663
Fontes Impressas
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=332747&pasta=ano%20188&pesq=sacr
amento%20macuco&pagfis=3796>
8. Sentinella da Monarchia: Orgam Conservador. São Paulo, SP: 26 e 28 de julho, 26 de
setembro e 02 de outubro de 1889. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=305049&pasta=ano%20188&pesq=
sacramento%20macuco&pagfis=89>
9. Hemeroteca Municipal de Santos – Roldão Mendes
Diário de Santos. Livros: nº 1 e 2 de 1880-1884
Edição Comemorativa do 1º centenário da Cidade de Santos. A TRIBUNA, 26 de janeiro
de 1939.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
_______. “De rebeldes a fura-greves: as duas faces da experiência da liberdade dos quilombolas
do Jabaquara na Santos pós-emancipação”. In: Cunha, Olívia Maria Gomes da; & Gomes,
Flávio dos Santos. (orgs.) Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no
Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007;
_______. “Introdução – Maria Firmina dos Reis: invisibilidade e presença de uma romancista
negra no Brasil do século XIX ao XXI”. In: REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. São Paulo:
Penguin Classics/Companhia das Letras, 2018, pp. 7-42;
_______. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da Abolição. 2.ed. rev. São
Paulo, SP: Edusp, 2010;
MATTOS, Hebe. André Rebouças e o Pós-abolição entre a África e o Brasil (1888-1898).
In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, XXVII., 2013. Natal-RN, disponível em
http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364674765_ARQUIVO_HebeMattos_an
puh.pdf Acesso em 14 de novembro de 2019;
_______. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil,
século XIX). 3ª ed. rev. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2013;
_______. Marcas da escravidão: biografia, reacialização e memória do cativeiro na
História do Brasil. Tese (Professor Titutlar). Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004;
MELLO E SOUZA, Marina de. Reis Negros no Brasil Escravista: História da Festa de
Coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002;
MONSMA, Karl, FERREIRA, Lania Stefanoni, SILVA, Virgínia Ferreira da. “Imigração E
Violência Racial: Italianos E Negros No Oeste Paulista, 1888-1914”. Impulso, Piracicaba,
15(37): 49-60, 2004;
MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca. Uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
199;
MOURA, Clóvis. Rebeliões na Senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. 4ª ed. Porto
Alegre-RS: Mercado Aberto, 1988;
MÜLLER, Liane Susan. As contas do meu rosário são balas de artilharia. Porto Alegre-RS:
Pragmatha 2013;
MUNANGA, Kabengele. “Origem e histórico do quilombo na África”. Revista USP, São
Paulo (28), dez./fev. 1995/1996, pp. 56-63;
NASCIMENTO, Álvaro P. “Trabalhadores negros e o “paradigma da ausência”: contribuições
à história social do trabalho no Brasil”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 29, n. 9,
setembro-dezembro 2016;
317
REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século
XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991;
_______. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na
Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008;
_______. “Magia Jeje na Bahia: a invasão do Calundu de Pasto da Cachoeira, 1785”. Revista
Brasileira de História. São Paulo, vol. 8, num 16, 1988, pp. 57-81;
_______. “Quilombos e revoltas escravas no Brasil: ‘Nos achamos em campo a tratar da
liberdade’”. Revista USP, (28), dez./fev. 1995/1996, pp. 14-39;
RIBEIRO, Fábioa Barbobsa. Caminho da piedade, caminhos de devoção: as irmandades de
pretos no Vale do Paraíba paulista, século XIX. São Paulo: Alameda, 2014;
RIBEIRO, Jonatas Roque. O fardo da escravidão, as penas da liberdade: associativismo
negro e trabalho (Minas Gerais, 1880-1930). Campinas-SP: Tese de doutorado, UNICAMP,
2017;
RIBEIRO, Renata Francisco. A maçonaria e o processo de abolição em São Paulo. São Paulo,
Tese de Doutorado, USP, 2018;
_______. “Maçonaria: um lugar para a sociabilidade de homens de cor, nascidos livres e
libertos”. Revista História: Debates e Tendências, v. 20, n.2, p. 160-178, 29 abr. 2020.
RIOS, Ana Maria; MATTOS, Hebe Maria. “O pós-abolição como problema histórico:
balanços e perspectivas”. Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro , v. 5, n. 8, junho de 2004, PP. 170-
198;
RODRIGUES, Aldair Carlos. “African body marks, stereotypes and racialization in eighteenth-
century Brazil”. Slavery & Abolition, v. 00, 2020, pp. 1-30.
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 5ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1977;
ROSA. Júlio César da. Sociabilidades e territorialidade: a construção de sociedades de
afrodescendentes no Sul de Santa Catarina (1903-1950). Curitiba-PR: CRV, 2019;
ROSEMBERG, André. Ordem e burla: processos sociais, escravidão e justiça, Santos,
década de 1880. São Paulo: Alameda, 2006;
____. De chumbo e festim: uma história da polícia paulista do Final do Império. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2010;
SAMPAIO, Gabriela dos R. Juca Rosa. Um Pai de Santo na Corte Imperial. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 2009;
SANTOS, Francisco Martins dos. História de Santos. São Paulo: Emp. Gráfica Revista dos
Tribunais, 1937;
319
____. Lendas e Tradições de uma velha cidade do Brasil. São Paulo: Empresa Gráfica da
Revista dos Tribunais, 1940;
SANTOS, Jocélio Teles Dos. “De Pardos Disfarçados A Brancos Pouco Claros: Classificações
Raciais No Brasil Dos Séculos XVIII-XIX”. Afro-Ásia, 32 (2005), 115-137;
SAUDERS, A. C. de C. M. História Social dos escravos e libertos negros em Portugal (1441-
1555). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982;
SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos no Distrito Diamantino no Século XVIII. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura,
1975;
SCHWARCZ, Lilia Mortiz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial
no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993;
SCHWARTZ, S. B. “Mocambos, Quilombos e Palmares: A resistência escrava no Brasil
colonial”. Estudos Econômicos, vol. 17, n. especial. São Paulo, 1988, pp. 61-88;
_______. “Repensando Palamres: Resistência escrava na colônia”. Escravos, roceiros e
rebeldes. Trad. Jussara Simões. Bauru: Edusc, 2001, pp. 213-255;
SCOTT, Rebecca J. Provas da liberdade: Uma odisseia atlântica na era da emancipação.
Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2014;
SILVA, Eduardo. Dom Obá II d’África, o príncipe do povo – Vida, tempo e pensamento
de um homem livre de cor. São Paulo: Companhia das Letras, 1997;
SILVA, Fernanda Oliveira da. Os negros, a constituição de espaços para os seus e o
entrelaçamento desses espaços: associações e identidades negras em Pelotas (1820-1943).
Porto Alegre-RS: Dissertação de Mestrado, 2011;
_______. As lutas políticas nos clubes negros: culturas negras racialização e cidadania na
fronteira Brasil Uruguai no Pós-Abolição (1870-1960). Porto Alegre-RS: Tese de
Doutorado, UFRS, 2017;
SILVA, Fernando Teixeira. Operários sem patrões: os trabalhadores da cidade de Santos
no entreguerras. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 2003;
SILVA, Lúcia Helena Oliveira. Construindo uma nova vida: migrantes paulistas afro-
descendentes na cidade do Rio de Janeiro 1888-1926). Campinas-SP, Tese de doutorado,
2001;
_______. “Associativismo Negro: Federação Paulista dos Homens de Cor (1910-1936)”. In:
Ananis do 7º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Curitiba-PR: UFPR,
2015;
320